1 - E. Gordon Craig - Da Arte Do Teatro-Editora Arcadia (1964) (Arrastado)

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 38

_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _---,_ _---,.

,,,---_ _

DA ARTE DO TEATRO

PRIMEIRO DIÁLOGO ENTRE .UM PROFISSIONAL E UM


AMADOR DE TEATRO (*)

O ENOENADOR

Agora, que Ja percorremos juntos todo o Teatro,


que já vos mostrei a sua construção geral, o-palco, a ma-
quinaria dos cenários, os instrumentos de iluminação
e o resto, sentemo-nos um momento na plateia e
falemos da sua arte. Sabeis o que é a Arte do Teatro?

(*) Este primeiro diálogo, escrito em 1905, esgotou-se


ràpidamente e não é possível encontrar um único exemplar.
Reimprimiu-se três anos depois com o mesmo título original;
teria preferido o título de A Arte do Teatro de Amanhã porque
representa bastante bem esse teatro. No dia que vem «depois
de amanhã», quer dizer, no Futuro, será preciso um teatro
mais novo, mais perfeito do que o descrito aqui, porque nesse
dia conheceremos a «Sur-Marionnette» e .o drama mimado
de que nos ocupámos atrás. - (N. do A.)
Apesar do prefácio da edição francesa de 1943, CRAIG
manteve a nota acima nessa mesma ediçãoe na edição inglesa
de 1957. - (N. do T.)
E. GORDON CRAIG

o AMADOR DE TEATRO

Parece-me que é a interpretação dos actores.

o ENOENADOR

Achais então que se pode tomar a parte pelo todo?

o AMADOR DE TEATRO

Claro que não. Quereis, então, dizer-me que é na


peça que consiste a Arte do Teatro?

o ENOENADOR

A peça é uma obra literária. Como é que uma


arte seria ao mesmo tempo outra?

O AMADOR DE TEATRO

Se essa arte não consiste na representação dos


actores nem na peça, teremos de concluir que é na
encenação e na dança? É isto que pensa?

o ENCENADOR

Não .. A arte do teatro não é nem a representação


dos actores, nem a peça, nem a encenaç ão, nem a
dança; é constituída pelos elementos que a cornpõem :
pelo gesto, que é a alma da representação; pelas pala-
vras, que são o corpo da peça; pelas linhas e pelas
cores que são a própria existência de cenário; pelo
ritmo, que é a essência da dança.

158
DA ARTE QX) TEATRO

o AMADOR DE TEATRO

E do gesto, das palavras, das linhas e das cores,


do ritmo - qual é o mais essencial' a essa arte?

O ENCENADOR

Nenhum tem mais importância do' que os outros.


Da mesma maneira que uma cor não é mais útil ao
pintor do que qualquer outra ou um' som mais neces-
sário do que outro ao músico. No entanto, talvez o
gesto seja o mais importante: é para a arte do teatro
o que o desenho é para a pintura, a melodia para a
música. A Arte do Teatro n3:-sceu do, gesto ,- do movi-
mento - da dança. .

O AMADOR DE TEATRO

Sempre pensara que nascera do discurso e que o


Poeta presidira ao seu destino.

o ENOENADOR

É a oplruao corrente, mas reflicta um instante.


A imaginação do poeta exprime-se em palavras harmo-
niosas; recita ou canta essas palavras e fica-se por aí.
Esse poema dito ou cantado dirige-se aos nossos ouvidos
e, através deles, à nossa imaginação. Nada ganha-
remos se o poeta acrescentar o gesto à recitação ou
ao canto; pelo contrário, isso só perturbará.

159

I
..du,
E; :.GORDON CRAIG

o AMADOR DE TEATRO

Sim, compreendo perfeitamente. que o gesto nada


pode acrescentar a um poema lirico perfeito, sem causar
uma desarmonia. Mas será o mesmo princípio apli-
cável à poesia dramática?

O ENOENADOR

Sem dúvida alguma. Lembrai-vos de que se


trata de poema dramático e não de drama. São duas
.coisas diferentes. O primeiro é escrito 'para ser lido O
segundo para ser: visto, representado .no palco. O .gesto
.é necessário ao drama e inútil ao poema. . O gesto e a
poesia nada têm que ver em conjunto. E, .da mesma
maneira que é necessário não confundir o poema dra-
mático com o drama, também é preciso não confundir
o poeta dramático com o dramaturgo. Um escreve
para o leitor ou o auditor - o outro para o público de
-u rn teatro.· Sabeis foi o pai . do dramaturgo?

. o AMADOR DE TEATRO

O .poeta, dramático, penso eu.

O ENOENADOR

Errado. Foi.'o dançarino; E em lugar de se servir


apenas de palavras à maneira do poeta lírico, o dra-
maturgo forjou ' a sua primeira peça com auxílio do
gesto, das palavras, da linha, da cor e do ritmo, diri-

160
DA ARTE DO TEATRO

gindo-se ao mesmo tempo aos nossos olhos e aos


nossos ouvidos por um jogo resultante destes cinco fac-
teres .

o AMADOR DE TEATRO

Que diferença existe entre as obras dos primeiros


dramaturgos c as dos contemporâneos?

O ENOENADOR

Os primeiros dramaturgos foram filhos do teatro,


enquanto que os contemporâneos não o são. Aqueles
sabiam o que estes ignoram ainda. Sabiam que
quando apareciam com os seus camaradas diante do
público, este desejava mais ver o que faziam do que
ouvir o que tinham para dizer. Sabiam, sem risco
de desmentido, que a vista é o sentido mais pronto e
mais agudo no homem. O que viam predominante-
mente diante deles eram linhas de olhos curiosos e
ávidos. E os espectadores colocados demasiado longe
para tudo poderem ouvir pareciam aproximar-se pela
intensidade perscrutadora dos seus olhares. O drama-
turgo dirigia-se-lhes tanto em verso como em prosa,
sempre por meio do movimento, o qual se exprime em
poesia pela dança, em prosa pelo gesto.

O AMADOR DE TEATRO

É 111UitO curioso. Continuai.

II :161
E o GDRlDON CRAlG

o ENCENADOR

Estabeleçamos, antes de tudo, os limites do nosso


caminho. Vimos que o dramaturgo descende do dan-
çarino, que tem por origem o teatro e não a poesia.
E acabámos de dizer que o poeta dramático contem-
porâneo só apela para o ouvido dos seus leitores. No
entanto, . a despeito do poeta, o público dos nossos
dias continua a ir ao teatro, como no passado, para ver
e não para ouvir qualquer coisa. Cornpreendei-me
bem: não quero de maneira alguma insinuar que o
poeta seja mau autor dramático ou que tem uma
desastrosa influência sobre o teatro; o que pretendo
fazer-vos compreender é que o poeta não pertence ao
teatro, que não está na sua origem e que não pode fazer
parte dele: Entre os escritores, só o dramaturgo pode,
pelo seu nascimento, fazer valer um direito ao teatro e,
mesmo assim, esse direito é muito fraco. Mas conti-
nuemos.
O público vem ao teatro para ver e não para ouvir .
Que prova isso senão que o público de hoje é o mesmo
que o de outrora? Facto tanto mais curioso quanto é
certo que as peças e os autores dram áticos, esses, varia-
rarn. As peças já não são urna harmoniosa combinação
de gestos, de palavras, de danças e de imagens, mas
apenas ou só palavras ou só imagens. As peças de
Shakespeare, por exemplo, diferem grandemente dos
antigos «mistérios» compostos unicamente para o
teatro. Hamlet não é de natureza a ser representada
no palco. Hamlet e as outras peças shakespearianas são
para a leitura obras tão vastas e tão completas, que só
têm muito a perder com a representação no palco.
O facto de terem sido representadas no tempo ele

162
DA ARTE IDO TEATRO

Shakespeare nada prova. As verdadeiras obras do


teatro dessa época eram as «Máscaras», os «Espectá-
culos», alegres e encantadoras ilustrações da Arte do
Teatro. Se os dramas shakespearianos tivessem sido
compostos para serem vistos, ter-nos-iam parecido in-
-com p lctos à leitura. Ora, ninguém que Ieia HamLet
achará a peça aborrecida ou incompleta, enquanto que
mais de uma pessoa, depois de ter assistido à represen-
tação do drama, dirá com desgosto:' «Não" isto não é o
HamLet de Shakespeare». Quando nada se pode acres-
centar a uma obra de arte, ela é «acabada», completa.
Ora a peça HamLet estava «acabada'» quando Shakes-
peare escreveu o último verso. Querer juntar-lhe o
gesto, o, cenário, a indumentária e a dança é sugerir
que a peça está incompleta e tem necessidade de ser
aperfeiço ada. (21).

o AMADOR DE TEATRO

Quer dizer que nunca se deveria representar o


Hamlet ?
O ENOENADOR

Para quê afirmá-lo! Continuará a representar-se


ainda durante algum tempo e ° dever dos seus intér-
pretes é fazerem o melhor que puderem. Mas chegará
o dia em que o teatro não terá mais peças para repre-
sentar e criará as obras próprias da sua Arte.

O AMADOR DE TEATRO

E essas obras parecerão incompletas à leitura ou


à recitação?

163
E. GORDON CRAlG

o ENCENADOR

Claro que serão incompletas noutro qualquer lado


que não seja no palco, insuficientes onde' quer que
lhes falte a acção, a cor, a linha, a harmonia do movi-
mento e do cenário.

o AMADOR DE TEATRO

Isso surpreende-me um pouco.

O ENCENADOR

Talvez porque isto vos pareça demasiado novo;


diga-me o que mais o surpreende.

O AMADOR DE TEATRO

A própria ideia· de nunca ter reflectido em que


consistia a Arte ·do Teatro. Para a maioria das pessoas
é apenas um divertimento.

O ENCENADOR

Para vós. também?'·


I

o AMADOR DE TEATRO

Para 'm im, o teatro teve sempre a atracção irre-


sistível de um divertimento e de um exercício intelectual.
O espectáculo diverte-me sempre - a representação
dos actores esclarece-me algumas vezes.

164
DA ARTE DO TEATRO

O ENCENADOR

Em suma, parece-vos uma espécie de prazer·incom-.


pleto?

O AMADOR DE TEATRO

Recordo-me de peças que me deram grande


satisfação.

O ENCENADOR

Se qu.alquer coisa de tão medíocre conseguiu con-


tentar-vos é talvez porque esperáveis pior e porque
haveis encontrado UlTI pouco melhor elo que esperáveis.
Muitas pessoas que hoje vão ao teatro esperam aborre-
cer-se. É natural: já viram muitas coisas fastidiosas .
Quando me dizeis que um teatro moderno conseguiu
agradar-vos, provais-me que não s ó a Arte mas uma
parte do público degenerou. Conheci alguém que tinha
a vida tão ocupada que não podia ouvir outra música
que não fosse a dos realejos da rua. Era para essa
pessoa o ideal da música; e, no entanto, pode ouvir-se
melhor ... Se tivésseis visto uma verdadeira obra de
arte teatral, não poderíeis mais suportar o que hoje vos
dão em seu lugar. E se não vedes obras de arte em
cena não é à falta do público as reclamar ou que o
teatro não tenha excelentes artifices capazes de as
executar; o que falta é o .artista que as crie, o artista do
teatro, entendamo-nos, e não o poeta, o pintor ou o
músico. Os numerosos e excelentes artífices que existem
nada podem mudar a este estado de coisas. Têm de
fazer o que os directores dos teatros exigem deles e

165
E. GORDON'" CRAlG

fazem-no de bom grado. A chegada do artista ao


mundo do teatro mudará tudo. Agrupará lentamente,
mas seguramente, esses operários de élite em torno dele
e animará com um sopro novo a Arte do Teatro.

o AMADOR DE TEATRO

Mas os ou tros?

O ENCENADOR

Quereis dizer aqueles de que o teatro moderno


regurgita; esses artífices que não têm nem profissão nem
talento? Têm uma desculpa: é que não se duvida da
sua capacidade. Pecam não por ignorância, mas por
inconsciência. No dia em que esses meS1TIOS homens
se derem conta de que têm uma profissão e que se
trata de fazer urna aprendizagem - e não penso,
agora, nos maquinistas, nos clectricistas, nos figurinistas,
nos decoradores, etc., nem nos actores, que se excedem
na parte que lhes cabe, mas nos encenadores - ; no
dia em que os enccnadores se prepararern para a sua
profissão, a qual consiste em interpretar as obras elo
dramaturgo, a pouco e pouco, para um desenvolvi-
mento progressivo, reconquistarão o terreno perdido
pelo teatro, e restabelecerão a Arte do Teatro no seu
lar, pelo seu génio criador.

O AMADOR DE TEATRO

Segundo vós, o encenador está à frente dos actores?

166
DA ARTE DO TEATRO

o ENCENADOR

Sim, o encenador é para o actor o que o .chefe de


orquestra é para os músicos, ou o editor para0 impressor.

o AMADOR DE TEATRO

E tomais o encenador por um artífice ou por um


artista?

O ENOENADOR

Quando ele interpreta as obras do dramaturgo


com auxílio dos seus actores, decoradores e outros artí-
fices, é ele próprio um mestre-artífice. Quando, por
. sua vez, souber combinar a linha, a cor, os movi-
mentos e o ritmo, tornar-se-á artista. Nesse dia já
não teremos necessidade do dramaturgo. A nossa arte
será independente.

O AMADOR DE TEATRO

o renascimento da Arte do Teatro está, então,


estrci tarnente ligado ao do encenador?

O ENCENADOR

Sem dúvida alguma. Haveis acreditado que,


por um momento sequer, desprezei o encenador?
Desprezo apenas o homem que não conhece o seu
ofício de encenador.

167
E : GORDON CRAlQ

o AMADOR DE TEATRO

A saber?

O ENCENADOR

Em que consiste o seu oficio? Em interpretar


a peça do dramaturgo; e, para isso, compromete-se,
ao receber a peça das mãos do autor, a interpretá-la
fielmente segundo o texto (só me refiro a encenadores
de élite) . Depois, lê a peça e, à primeira leitura, toda
a cor, a tonalidade, o movimento e o ritmo que devem
caracterizá-la surgem nitidamente no seu espírito.
Quanto às indicações cénicas de que o autor recheia o
texto, não deve sequer tê-las em consideração, porque
sendo senhor da parte que lhe compete, elas não lhe
são de qualquer utilidade.

O AMADOR DE TEATRO

Essa agora? Parece-me que não compreendi


bem. Pretendeis que quando um autor se dá ao cui-
dado de descrever o cenário em que a acção se desen-
rola, o encenador não · deve fazer caso dessas indi-
cações e, ainda por cima , desprezá-las?

O ENCENADOR

Pouco importa que as depreze ou não. O que é


preciso é que a sua encenação se harmonize com os
versos ou a prosa do texto, com a sua beleza, com "O seu
sentimento. Qualquer que seja o quadro que o drama-

168
DA ARTE DO TEATRO

turgo pretenda por-nos diante dos olhos) só nos infor-


mará do cenário através do diálogo das suas perso-
nagens . Tornemos um exemplo) a primeira cena
(Acto I) do J-Iamlet:
B ernardo: Quem vem lá?
Francisco: Eh! respondei-me; alto! E dai-vos
a conhecer.
Ber.: Longa vida ao Rei!
Fran. : Bernardo? .
Ber.: O próprio.
Fran . : Chegais exactamente à hora.
Ber. : Acaba de soar a meia-noite; vai-te
deitar) Francisco.
Fran.: Obrigado por me vires render- está
um frio danado e tenho o coração transido.
Ber.: Nada de anormal?
Fran.: Não ouvi sequer chiar um rato.
B er.: Bem. Boa noite e se encontrates Horatio
e Marcellus, m eus companheiros de guarda) di-
ze-lhes que se apressem.

- Isto basta para informar o encenador. Com-


preende que é meia-noite, que a cena se passa ao ar
livre, que está a ser rendida a sentinela de um castelo
que a n oite está muito fria, muito silenciosa, muito
sombria. Todas as «indicações cénicas» que o dra-
maturgo pudesse acrescentar seriam supérfluas.

O A}'{AD üR DE TEATRO

Portanto, segundos vós) o autor não tem ne-


nhuma necessidade de fornecer indicações cénicas e,
se as der, pode até prejudicar o encenador?

169
E. GO RJDON C"'RAIG

o ENCENADOR

Sem dúvida. Ides ver. Sabereis porventura


dizer-me qual o mais grave prejuízo que um actor
pode causar a um dramaturgo?

o AMADOR DE TEATRO

Interpretar maIo seu papel?

O ENCENADOR

Não. Isso apenas provaria que o actor não sabe


da sua profissão. O prejuízo mais grave que ele pode
causar é cortar as suas réplicas ou «acr escen tar» o
texto (22). É lesar o autor, invadindo o seu domínio
privado. É raro que se «acrescente» Shakespeare e,
quando acontece, não é SClU provocar com entários.

O AMADOR DE TEATRO

Mas que tem isso que ver com as indicações cénicas


e em que lesa o autor o encenador quando as fornece ?

O ENCENADOR

Na medida em que invade o seu domínio e inter-


vérn na arte deste último. As indicações cénicas só
servem para o leitor - são supérfluas para o cnce-
nador ou para o actor.

O AMADOR DE TEATRO

No entanto, o próprio Shakcspcarc ...

170
DA ARTE IDO TEATRO

O ENOENADOR

Shakespeare SÓ raras vezes dá indicações ao ence-


nador. Repare-se . no Hamlet, Romeu, D Rei Lear,
Otelo, qualquer das suas obras-primas, e nada vereis
a esse respeito, com excepção de, nalguns dramas
históricos, menção de lugares, castelos. Mas onde está,
no Hamlet, qualquer descrição de cenário?

o AMADOR TEATRO

o texto que possuo contém uma bem precisa:


«Acto I, cen. I, Elsínor. Um terraço diante do
castelo ».

O ENOENADOR

É porque se trata de uma edição posterior, anotada


por um certo Malone. Shakespeare não escreveu nada
de semelhante. O seu texto tem apen as: «Actus
Primus. Scena prima». - e nada mais. O mesmo
no Romeu e Julieta, o mesmo no Rei Lear.

O AMADOR DE TEATRO

Bem vejo. Shakespeare contava com a inteligência


do encenador para completar o cenário. Mas não é
verdade que deu indicações acerca da representação?
No Hamlet, por exemplo, encontramos: «Hamlet
lança-se sobre o túmulo de Ofélia» - e noutro lugar:
«Harnlet luta com ele» - e ainda: «Os assistentes sepa-
rarn-nos e ambos saem da fossa».

171
_ _ _ _- --_ . -----7':,."

·m. GORiDO:N CRAIG

o ENCENADOR

Nem uma palavra dessas se encontra em Shakes-


peare. Trata-se de pálidas invenções de diversos cornen..
tadores, .tais como os Srs. Malone,' Capell, Theobald
e outros que abusaram do seu direito relativamente ao
texto e somos nós, encenadores, que sofremos as con-
sequências .

o AMADOR DE TEATRO

Como assim?

O ENCENADOR

É que, um de nós, lendo Shakespeare, ' concebe


uma sucessão de gestos diferentes, contrários aos pres-
critos por esses senhores e se tem a audácia de os apre-
sentar em cena, logo aparecerão pessoas bem infor-
madas que tomam partido, acusando o encenador de
modificar as indicações de Shakespeare ou, pior ainda,
as suas intenções.

O AMADOR DE TEATRO

Essas «pessoas bem informadas» de que falais


ignoram, 'portanto, que o Poeta não dera qualquer
indicação?

O ENCENADOR

Temos de admiti-lo, considerando os seus comen-


tários deslocados. Em todo o caso, o que eu quis sa-

172
DA ARTE IDO TEATRO

lientar foi apenas que o maior poeta dos tempos mo-


dernos considerava inúteis e insípidas as indicações
cénicas. E, seguramente, Shakespeare compreendia
qual é a missão do encenador e que comporta, entre
outras coisas, a concepção da cenografia.

O AMADOR DE TEATRO

Ireis justamente descrever-me em que consiste


essa tarefa.

O ENOENADOR

Precisamente. Disse-vos que o encenador lia


cuidadosamente a peça, recebia uma primeira im-
pressão e começava a ver a cor, o ritmo, o movimento
da obra esboçar-se diante dele. Depois, deixando o
texto durante um certo tempo, combina no seu espírito
as cores que a peça lhe sugeriu: faz a sua paleta, se
assim posso dizer. Portanto, quando retoma o texto
pela segunda vez, sente-se envolvido por uma atmos-
fera, cuja propriedade ele deve, então, controlar. De-
pois desta segunda leitura, verá certas impressões
bastante precisas acentuarem-se claramente, definiti-
vamente, enquanto outras, mais vagas, se apagarão.
Anotará as primeiras e começará, talvez desde esse
momento, a esboçar certos cenários e ideias que se
apresentam no seu espírito, mas o mais natural é que,
antes de começar definitivamente, ainda leia a peça
uma dezena de vezes.

173
-E . GORlDON CRAIG

o AMADOR DE TEATRO

Julguei que o encenador confiava a concepção


da cenografia ao pintor-decorador.

o ENCENADOR

Em geral, cometem esse erro (23).

O AMADOR DE TEATRO

E em que consiste o erro?

O ENCENADOR

Nisto: A escreve uma peça que B promete inter-


pretar fielmente; ora nada mais delicado, mais fugi-
tivo que dar o tom, o espírito de uma peça. O meio
de conservar a sua unidade será confiar a missão total-
mente a B ou dividi-la entre ele e diferentes colabora-
dores, C e D, os quais podem ver o problema por ângu-
los diferentes?

O AMADOR DE TEATRO

Claro que é melhor que seja só B. Mas poderá


desempenhar-se sozinho de uma tarefa que deveria
ser feita por três?

O ENCENADOR

É, no entanto, o único meio de obter a unidade


indispensável a qualquer obra de arte. Mas notai

174

[I
DA ARTE IDO TIDATRO

bem que ele não vai executar uma bela maqueta, qual-
quer reconstituição histórica com, portas e janelas sufi-
cientes e artisticamente distribuídas; mas escolherá
certas cores que lhe parecem harmonizar-se com o tom
da peça e afastará outras que seriam discordantes.
Depois, escolherá qualquer objecto que será o centro
da sua maqueta - como um pórtico, UD1a fonte, um
balcão, uma cama - em torno do qual agrupará
todos os outros objectos que a peça exige 'e devem ser
visíveis. A pouco e pouco fará entrar cada uma das
personagens, e conceberá sucessivamente os seus gestos,
a sua indumentária. Cometerá alguns erros no seu
projecto; nesse caso, será necessário renunciar e corrigir
o defeito, quando não é o caso de recomeçar tudo de
novo. De qualquer maneira, a maqueta tem de elabo-
rar-se lentamente, harmoniosamente, de tal maneira
que agrade à vista. Enquanto compõe assim esta
harmonia visual, o encenador sofre igualmente a
influência da música, ,dos versos ou da prosa e, no 'sen-
tido geral, o espírito da peça. Tudo preparado assim,
a tarefa material poderá começar.

O AMADOR DE TEATRO

E em que consiste essa tarefa? Parece que todo


o caminho já está suficientemente desbravado.

O ENCENADOR

Aparentemente. Mas as dificuldades surgem cons-


tantemente. Entendo por tarefa material aquela que
exige ofício, como a execução dos cenários e da indu-
mentária.

175
m. GORDON .ORAIG

o AMADOR DE TEATRO,

Mas não pretendeis, com certeza, que o encenador


pinte os cenários, corte e cosa os trajos.

O.ENCENADOR

Não, não pretendo que o faça sempre, nem por


cada peça que monta - mas deve ter trabalhado nisso
uma vez ou duas durante a sua aprendizagem, para
adquirir a suficiente prática da profissão que lhe per-
mita dirigir com autoridade os operários executantes.
Quando tiver começado a execução dos cenários e do
guarda-roupa, devem distribuir-se os papéis aos acto-
res (24), para que os aprendam antes de os ensaios terem
principiado. (Não é este o hábito, mas contínuo a falar
de como deveria proceder o encenador ideal). Entre-
tantã, cenografia e guarda-roupa estarão quase con-
cluídos, Não me deterei em pormenores acerca da
tarefa interessante mas árdua que se empreende até
essa altura, . mas deveis saber que, implantados os cená-
rios e vestidos os actores; há ainda grandes dificuldades
a vencer. .

O AMADOR DE TEATRO

A missão do encenador não terminou ainda? Os


actores não farão o resto?

O ENOENADOR

Não. É agora que . começa o trabalho mais inte-


ressante. Os cenários e os actores com a sua indu-

,176
---_._--_.- . .. _---_..

DA ARTE DO TEATRO

mentária formam um quadro diante do encenador.


Conserva no palco apenas as personagens que abrem
o diálogo e procura i luminá-las.

O A MAD OR DE TEATRO

Mas isso não compete ao ch efe electricista e ao


seu pessoal? (*)

O. ENCENADOR

No que diz respeito ao mecanismo da iluminação;


mas é ao en cenador que compete regular o seu em-
prego. E como este último é um homem inteligente
e competente, imaginou um dispositivo de iluminação
especial p ara a peça em qu estão, da mesma maneira
que concebeu cenários e vestuário especiais. Se não
atribuísse importância à «harmonia» da peça, então
poderia deixar a iluminação ao cuidado de qualquer.

O AMADOR DE TEATRO

Quer dizer que observou tão cuidadosamente a


natureza que pode indicar aos maquinistas como
tornar um raio de sol mais ou menos oblíquo ou o
grau de intensidade do luar banhando as paredes de
uma sala?

(*) «Porq u e perde tempo a falar a alguém tão lento de


espírito como esse seu amador»? pergunta urna encantadora
dama que nem sequer esperou pela resposta. Evidente, no
entanto: é que aos sábios não sc fala, escutam-se.-(N. do A.)

12 1.77
·m. GORDON CRAIG

o ENOENA.DOR

Não, porque o meu encenador nunca procurou


reproduzir os jogos de luz da Natureza. Não procura
reproduzir a Natureza, mas sugerir alguns dos seus
fenómenos. O encenador pode tentar ser um artista,
mas não pode aspirar ao homem celeste; seria tomar
ares ornnipotentes pretender fazer como faz a Natureza.

o AMADOR DE TEATRO

N esse caso, em que se inspira ele e que é que o


grua na sua maneira de iluminar cenários e persona-
gens?

o ENOENA.DOR

Mas justamente os cenários e as personagens,


o ritmo do texto, o sentido da peça; todas as coisas
que a pouco e pouco se fundem num conjunto harmo-
nioso; é natural que a tarefa progrida e que o ence-
nador seja o único capaz de manter essa harmonia
que criou desde o principio (25).

o AMA.DOR DE TEATRO

Podeis dizer-me como, nos nossos dias, se ilu-


mina a cena e, nomeadamente, para que serve a
ribalta e a luz rasante?

178
DA ARTE DO TEATRO

O ENOENADOR

É O que OS renovadores de teatro bastas vezes têm


perguntado a si próprios - sem .nunca encontrarem
resposta - e pela boa e simples razão de que não há
resposta, que nunca houve nem haverá. O melhor é
fazer desaparecer a ribalta o mais depressa possível
de todos os teatros e não se falar mais nisso. É uma
das bizarrias que ninguém' sabe explicar e que sur-
preende até as crianças. Em. 1812, a pequena Nancy
Lake foi ao teatro de Drury Lane e seu pai diz-nos que
a ribalta a surpreendeu grandemente: .

«E essa fila de lâmpadas, oh!,


Como elas brilham!-pergunto-me
Porque as puseram no chão».
- Rejected Addresses

Isto passava-se em 1812! e ainda hoje não estamos


mais elucidados.

o AMADOR DE TEATRO

Um actor disse-me, um dia, que sem a ribalta


as caras dos actores ficavam todas no escuro.

O ENOENADOR

Sem dúvida porque não lhe ocorreu a ideia de


que se poderia substituir a ribalta por um outro dispo-o
sitivo para iluminar as ditas caras. As coisas mais
elementares escapam àqueles que não se preocuparam
em instruir-se nas diversas partes do seu oficio.

179
E. GORDON aRAIG

o AMADOR DE TEATRO

Esse actor dizia-me, ainda, que sem a ribalta o


público não podia ver a expressão do rosto dos actores.

O ENCENADOR

Se tivessem sido Henry Irving ou Eleonora Duse


a fazer a observação, ela teria um certo valor. Mas,
ordinàriamcnte, o rosto do actor é tão violentamente
expressivo ou tão destituído de expressão, que seria uma
bênção suprimir-se não apenas a ribalta mas toda a
iluminação de cena. No seu livro «Os Cenários, a
Indumentária e a Encenação no Século XVII»,
Ludovic Celler propõe uma explicação excelente da
origem. da ribalta. Iluminava-se, então, a cena por meio
de grandes lustres redondos ou triangulares, suspensos
por cima das cabeças dos actores 'e do público; Celler
é da opinião que a ribalta deve a sua: origem aos pe-
quenos teatros . . populares que, não tendo meios de
pagar os lustres, coloca,vam,. diante da cena, castiçais
no chão. Esta hipótese parece-me bastante justa;
porque enquanto o bom-senso nunca teria sugerido
semelhante. falta de arte, as receitas de lotação podem
muito bem ter sido a causa. Há tão pouco sentimento
artístico nas bilheteiras! Um dia, dir-vos-ei algumas
palavras sobre esse temível rival da Arte do Teatro.
Mas voltemos a um assunto bem mais importante
do' que esse da ribalta. Tendo passado em revista os
diferentes trabalhos do encenador : composição dos
cenários, da indumentária, da' iluminação - che-
gamos ao mais interessante: a encenação das persa.:

180
DA ARTE DO TIDATRO

nagens, a composição de todos os seus movimentos e de


todos os seus discursos. Parece ter-vos parecido sur-
preendente que não se deixe aos actores o arbítrio de
regular os seus próprios gestos e réplicas. Mas refiecti
um instante na natureza deste trabalho. Quereríeis
comprometer, de repente, o conjunto harmonioso que
se formou a pouco e pouco, introduzindo um elemento
de acaso?

O AMADOR DE TEATRO

Que quereis dizer? Em que poderia o actor corn-


prometer o conjunto?

O ENCENADOR

Notai que o faz inconscieniemenie ! Não quero dizer,


de maneira alguma, que o actor desejasse estar em
desacordo com o que o rodeia, não; mas ficaria
à mercê da sua ignorância. Um pequeno número de
actores é guiado por um sentido muito seguro dessa
harmonia, outros não o possuem mesmo nada, mas
mesmo aqueles cujo instinto é o mais justo não podem
integrar-se no conjunto, fundir-se nele harmoniosa-
mcn te, senão seguindo as instruções do encenador:

."
O AMADOR DE TEATRO

Os principais protagonistas, mesmo esses, não


têm liberdade de se mover e de representar à sua
'.
vontade, segundo o seu instinto e a sua razão?

181
E. GOR'Dü!N GRArG

ü ENCENADüR

Não. Pelo contrário, devem ser eles os primeiros


a seguir as instruções do encenador, porque são o
centro, o próprio coração desse conjunto harmonioso.

o AMADOR DE TEATRO

E eles compreendem e .partilham essa opinião?

o ENCENADOR

Sem dúvida, mas só a partilham se se dão conta


de que é a peça, a interpretação justa e verdadeira da
peça a coisa essencial do teatro moderno. Quereis um
exemplo? Supunhamos que se trata de representar
Romeu e Julieta. Estudámos a peça; cenários, figurinos,
iluminação - tudo está pronto e os ensaios começam.
Estamos assombrados pelo tumulto furioso dos cidadãos
de Verona que se batem, se cobrem de injúrias e se
matam uns aos outros; horroriza-nos que nesta clara
cidade de rosas, de cantos e de amor, campeie um ódio
monstruoso, prestes a explodir à porta das próprias
igrejas, em plena festa de Maio, sob as janelas de uma
criança que acaba de nascer; logo depois - enquanto
nos recordamos ainda da fealdade perversa de Monta-
gue e Capuleto, eis que caminha ao longo da rua
Romeu, que será, não tarda, o amante e amado de
J ulieta. Assim, o actor que interpretará Romeu deverá
mover-se corno uma parte, um fragmento do con-
junto que tem, como disse, urna forma definida. De-
verá apresentar-se diante de nós de urna maneira deter-

182
DA. ARTE 00 T·EATRO

minada, passar num certo ponto da cena, com uma


certa luz, a cabeça voltada num certo ângulo, todo o
corpo em harmonia com a peça e não (como .acontece
a maior parte das vezes) com os seus pensamentos
pessoais, que colidem com a peça. Por mais belos
que sejam, podem não concordar com o todo harmo-
nioso, o conjunto tão cuidadosamente composto pelo
encenador.

o AMADOR DE TEATRO

o encenador dirigirá todo Ó Jogo de cena do intér-


prete de Romeu, mesmo que o papel seja confiado a um
actor notável? .

o ENOENADOR

Absolutamente; e quanto mais inteligente e maior


bom gosto tiver o actor, tanto mais fácil será dirigi-lo.
Falo-vos, evidentemente, de um teatro onde todos os
actores são pessoas cultas e o encenador um homem
de talento excepcional.

o AMADOR DE TEATRO

Pretendeis, então, reduzir esses actores inteli-


gentes ao estado de «rnarionnettes»?

o ENOENADOR

Fazeis-mea pergunta com o mesmo tom indig-


nado com que a faria um actor que duvida dos seus
meios. Uma «rnarionnette» não é hoje senão' um

183
E. GORDON CRAIG

boneco que convém, aliás, perfeitamente ao ginhol,


mas nós, no teatro, precisamos de melhor que um
boneco. Mas é esse o sentimento de certos actores a
respeito do encenador: têm a impressão de que não
passam de «marionnettes» de que ele puxa os corde-
linhos, mostrando-se tão ofendidos como se se tra-
tasse de uma ofensa pessoal.

o AMADOR DE TEATRO

Compreendo 18S0 ...

O ENCENADOR

Mas não compreendeis também que devem dese-


jar ser dirigidos na sua interpretação? Pensai, por um
instante, nas relações hierárquicas dos homens a bordo
de um barco e. cornpreendereis melhor como encaro
as que unem entre si a gente de teatro. Quem é que
dirige o barco? '.

O AMADOR DE TEATRO

o homem do leme - o timoneiro .. .

O ENCENADOR

o qual obedece ao oficial de navegação, que por


sua vez está sob as ordens do comandante, não é ver-
dade? E deve obedecer-se a alguma ordem que não
tenha sido dada pelo comandante?

181
DA ARTE .DO TEATRO

O AMADOR DE TEATRO

Não.

O ENCENADOR

A tripulação obedece ao comandante e aos seus


oficiais e fá-lo de bom grado.

O AMADOR DE "TEATRO

Sem dúvida.

O ENCENADOR

Não é a isso que se chama disciplina, quer dizer,


a submissão inteira e voluntária à regra e aos princípios,
o primeiro dos quais é a obediência? Vereis sem difi-
culdade a analogia com um teatro onde trabalham
centenas de pessoas e que precisa de um mesmo género
de governo. Compreendereis fàcilmente que o mais
ligeiro índice de desobediência seria desastroso. Pre-
viram-se as amotinaçães na marinha, mas não no teatro.
A marinha teve o cuidado de declarar em termos claros
e peremptórios que o comandante é todo-poderoso e
senhor absoluto a bordo. Os homens culpados de
rebelião são julgados em conselho de guerra e conde-
nados a penas severas, tais corno a prisão ou a demissão.

O AMADOR DE TEATRO

Pretendeis que se faça o mesmo no teatro?

·185
E. GORDQIN ORATG

o ENCENADOR

o teatro não foi criado, como a marinha, com


vista à guerra, e não se sabe porque não se atribui a
mesma importância à disciplina, apesar dela ser indis-
pensável a qualquer serviço, de qualquer ordem que
ele seja. Mas o que pretendo demonstrar é que en-
quanto não se compreender que a disciplina no teatro
consiste na obediência voluntária, absoluta, ao director
da cena - equivalente ao comandante - nada se
poderá fazer de grande.

o AMADOR DO TEATRO

Os actores, maquinistas e os outros não fazem o


seu trabalho de bom grado?

o ENCENADOR

São, meu caro amigo, as melhores naturezas


do mundo. São trasbordantes de entusiasmo e de
zelo; mas, por vezes, enganam-se e ei-los também
prontos a revoltar-se por terem de obedecer, prontos a
arriar a bandeira tão depressa C01110 a içaram, Quanto
a fazê-la flutuar no alto do mastro, é outro negócio
- porque o compromisso, a desagradável doutrina da
concessão ao inimigo prejudica sempre o teatro.
O inimigo é o fausto vulgar, a baixa opinião pública,
a ignorância. É nessa ferida que deve pôr-se o dedo!
O que não se compreendeu ainda plenamente no teatro
foi o valor de um alto ideal artístico e de um director
que o sirva fielmente.
DA ARTE IDO TEATRO

o AMADOR DE TEATRO

E porque não há-de ser esse director ao imesmo


tempo actor e pintor-decorador}

O ENCENADOR

Ireis nomear um comandante eao mesmo tempo


obrigá-lo a participar nas manobras do cordame?
Não. O director não exerce nenhuma das profissões
do teatro. Conhece bem as manobras, mas não lhe
compete executá-las.

O AMADOR DE TEATRO '

Mas não há numerosos exemplos célebres de


encenadores que eram ao mesmo tempo actores? ;

O ENCENADOR

De facto. Mas teríeis dificuldade em provar-me


que não houve rebeliões sob o seu comando. Fora
todas essas questões de situação, há a da Arte, do tra-
balho. Se um actor assume a direcção da cena e é
superior aos actores que o rodeiam, será naturalmente
levado a fazer de si próprio o centro de todas as coisas.
Terá a sensação de que se o não fizesse, o resultado seria
fraco, insuficiente. Dedicar-se-á menos à peça do
que ao seu papel; a pouco e pouco, deixará de encarar
o seu trabalho como um conjunto, um todo. Ora o
seu trabalho não basta e não é assim que pode criar-se
uma obra de arte no palco.

187
E. GORDON ORAIG

o AMADOR DE TEATRO

Mas não pode ver-se um grande actor, e grande


artista também, que sendo encenador não caia nesse
erro e que se aplique ele próprio como actor exacta-
mente como usa com todos os outros elementos do
teatro?

O ENCENADOR

Tudo pode acontecer; mas é contrário à natureza


do actor agir como aeabais de dizer; contrária à do
encenador aparecer em cena; impossível a um só
homem estar em dois lugares ao mesmo tempo.
Ora, o lugar do actor é no palco onde, colocado
de certa maneira, entre certos cenários e certas pessoas,
exprime, com au xilio da sua inteligência, certos senti-
mentos; e o lugar do encenador é precisamente
diante de tudo isto de maneira a ter uma visão' do con-
junto. Ainda que encontrássemos o actor perfeito
que fosse ao mesmo tempo o encenador sonhado, não
poderia, no - entanto, ,estar em dois lugares ao mesmo
tempo. Sem dúvida quejá temos visto o chefe de uma
pequena orquestra conduzir e tocar o primeiro violino;
mas não o fez 'de seu agrado e a execução sofre com
isso. E !isto não se usa grandes orquestras.

O AMADOR DE TEATRO

Donde deve "concluir-se que ninguém tem o


direito de dirigir a cena senão o encenador - nem
mesmo" o autor dramático?

188
T
i
I DA ARTE DO TEATRO
i
O ENOENADOR
I
Este, apenas no caso de ter estudado e conhecer
a prática dos diversos ofícios do teatro, isto é, inter-
pretação, execução de cenários e figurinos, iluminação
e dança. Nunca noutras circunstâncias. Os autores
dramáticos que não tiveram o teatro por berço igno-
ram, em geral, esses diferentes oficios. Goethe, que
toda a sua vida conservou um jovem e vivo amor pelo
teatro, foi, a muitos títulos, UD1 dos maiores encena-
dores. Mas, ligando-se ao teatro de Weimar, omite
o que o grande músico que lhe sucedeu soube conside-
rar. Goethe admite que havia no teatro uma autoridade
superior à sua: a do seu proprietário. Wagner, esse,
teve o cuidado de adquirir a casa e reinou como
senhor absoluto, como um barão feudal no seu castelo.

o AMADOR DE TEATRO

Foi isso que provocou o Insucesso de Goethe;


director de teatro?

O ENOENADOR

Certamente. Se tivesse na algibeira as chaves do


teatro, a Grande Estréia não tornaria o teatro e ela
própria ridículos - Weimar não traria a tradição do
mais grave erro que pode cometer-se em teatro.

O AMADOR DE TEATRO

A crer na maioria dos anais do teatro não parece


que se tenha grande consideração pelo artista, em cena.

189
-m. GORDCXN CRAIG

o ENCENADOR

Seria fácil preencher U1TI questionário contra o


teatro e a sua ignorância da Arte. Mas não se bate
num ser vencido senão na esperança de que o golpe
o ponha de pé. E o nosso teatro do Oci dente está
bem por baixo. O Oriente possui ainda um teatro.
O nosso está no fim. Mas espero um Renascimento.

o AMADOR DE TEATRO

E quem o provocará?

O ENCENADOR

O aparecimento de um homem que reúna, na sua


pessoa todas as qualidades que fazem um mestre do
teatro e a renovação do teatro como instrumento.
Quando esta se completar, quando o teatro for uma
obra-prima de mecanismo, quando se tiver inventado
a sua técnica particular, engendrará sem esforço a sua
própria arte, urna arte criadora. Seria demasiado longo
expor aqui em pormenor como esta profissão, desen-
volvendo-se a pouco e pouco, se transformará numa
arte independente e criadora. Já entre os artífices do
teatro, uns trabalham na sua construção, outros modi-
ficam a cenografia, outros, ainda, a representação dos
actores. E esses esforços devem valer alguma coisa.
Mas o que é preciso compreender antes de tudo é que
o resultado obtido será fraco ou nulo, tanto quanto se
tentar reformar unl ou outro dos oficios do teatro, sem
tentar simultâneamente no mesmo teatro reformá-los a

190
DA ARTE [)O TEATRO

todos. Todo o renascimento daArte do Teatro depende da me-


dida em que isto seja compreendido. A Arte do Teatro com-
porta tantos ofícios diversos que é preciso ter bem em
conta, desde o princípio, que é necessária uma reforma
total e não parcial)' estando cada ofício em relação directa
com os outros ofícios, nada se pode esperar de uma
reforma intermitente, desigual; só uma progressão
sistemática será efectiva. Eis porque a reforma da Arte
do Teatro não pode ser realizada senão 'por aqueles
- e só, por esses - que estudaram e praticaram os
diversos' oficios do teatro. .

O AMADOR DE TEATRO

Quer dizer, pelo vosso 'encenado'r ideal.

O ENCENADOR

Precisamente. No começo desta conversa disse-


-vos que o Renascimento do Teatro tinha por ponto
de partida o Renascimento do Encenador. No dia
em que este compreender a adaptação verdadeira dos
actores, dos cenários, dos figurinos, das iluminações
e da dança, saberá, com auxilio desses diferentes meios,
compor a interpretação e adquirirá a pouco e pouco
o domínio - do movimento, da linha, da cor, dos sons,
das palavras que escorrem naturalmente, e, nesse dia,
a Arte do Teatro retomará o seu lugar, será uma arte
independente e criadora, e não mais um ofício de
in terpretação.

191

1.
E. GORDON ORArG

o AMADOR DE TEATRO

Vejo bem o que pretendeis, mas que será a cena


privada do poeta?

O ENOENADOR

Que lhe faltará no dia em que o poeta deixar de


escrever para o teatro?

O AMADOR DE TEATRO

A peça ...

O ENOENADOR

Estais certo disso? Não haverá mais peça no


sentido em que ·hoje seentende.

-O AMADOR DE TEATRO

Mas é necessário que haja qualquer coisa, se se


pretende mostrar qualquer coisa ao público.

O ENOENADOR

Seguramente, é muito justo. Mas o equívoco


resulta do facto de julgar que esse qualquer coisa tem
forçosamente de ser feito .de palavras. Uma ideia não é
também qualquer coisa?

192
DA ARTE DO TEATRO

O AMADOR DE TEATRO

Mas falta-lhe a forma ...

O ENCENADOR

Não pode o artista emprestar à ideia uma forma


da sua escolha? Seria um crime odioso se o artista de
teatro usasse um outro meio de expressão diferente do
do poeta?

o AMADOR DE TEATRO

Não .

o ENCENADOR

Assim, para dar uma forma à idéia, não somos livres


de recorrer ou de inventar os materiais que quisermos,
com a condição de lhes darmos o melhor uso possível?

o AMADOR DE TEATRO

Certamente.

O ENCENADOR

Ouvi atentamente o que vou dizer-vos e meditai


nisso quando voltardes para casa. Urna vez que estais
de acordo com o que pretendo, eis os elementos com os

13 .193
ID. GORDON CRAlG

quais o artista do teatro futuro (26) comporá as suas


obras-primas: com o movimento, o cenário, a voz. Não é
simples?
Entendo por movimento o gesto e a dança, que são
a prosa e a poesia do movimento.
Entendo por cenário tudo o que se vê, isto é, os
figurinos, a iluminação e os cenários propriamente
ditos.
Entendo por voz, as palavras ditas ou cantadas em
oposição às palavras escritas; porque as palavras escritas
para serem lidas e as escritas para serem faladas são
de duas ordens inteiramente distintas.
Sinto-me feliz por ver que, ainda que não faça mais
do que repetir o que enunciei no principio da nossa
conversa, vós me pareceis muito menos surpreendido
agora.

Berlim, 1905.

194

Você também pode gostar