@roendoletras - Mirta Vento Amarelo - André Regal PDF
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Fazia frio naquela manhã, meus amigos. E falo sério. Passava das seis e
o sol, ainda tímido, escondia-se atrás das colinas, deixando ansiosas as
fileiras do cafezal. Milhares de pés, plantados em paralelo, aguardando a
chegada do calor. As folhas verdes estavam cinzentas, observando a névoa
sólida que cobria o solo até a barra das plantas. Os galhos, antes repletos de
grãos vermelhos e amarelos, pareciam cobertos de flocos de neve. Até
mesmo os pássaros se espreguiçavam, encolhidos em seus ninhos. Abriam
um olho, para conferir a claridade do dia, e depois voltavam a cochilar,
desanimados. Não os culpo. Eu não faria diferente.
Logo abaixo, no terreiro, alguns insetos corajosos se arriscavam.
Pequenos besouros apressados, pontinhos negros na grama, tentando chegar a
algum lugar. Estavam com sorte, as galinhas não saíam em seu encalço. Se
percebiam suas presenças, não deixavam transparecer e voltavam a se aninhar
umas com as outras. Fome nenhuma valia esticar os ossos nesse tempo.
Quando os primeiros raios de sol surgiram, colo-rindo de dourado os
topos dos cafezais, a névoa traiçoeira e gelada começou a ser varrida do chão.
Ela se dissipava lentamente, quase reclamando, como se sentisse prazer em
resfriar troncos de árvores e capim. Se deixasse por sua própria vontade, ela
certamente se deitaria ali para sempre, como se não tivéssemos coisas a fazer.
Claro, no conforto de sua cama, Cal Wiston não viu nada disso. Próximo
ao terreiro de cimento, havia uma casinha modesta, construída em madeira,
com telhado de barro, onde ele morava com a esposa. No quartinho escuro,
enrolado em não-sei-quantos cobertores, só foi despertar quando o bode
berrou de fome. Ele descobriu a cabeça vagarosamente, enquanto porções de
ar frio entravam pela gola, deslizando até seus joelhos. Estremecendo, ele
voltou a se encolher e apertou os olhos, remelentos. Bocejou sem fazer
barulho, para não acordar a esposa, e resolveu tirar o pé das cobertas. Quando
seu dedão tocou o chão, trincou os dentes, de tão gelado. Com a mente
repleta de reclamações que preferiu não dizer em voz alta, pisou também com
o outro pé.
É o movimento que aquece. É só não ficar parado, gostava de pensar. Mas
certamente, nesse dia, não acreditava nisso. Nem o sol do meio-dia parecia
ser capaz de convencê-
-lo do contrário.
Ainda embrulhado em uma manta, Cal saiu do quarto para a cozinha. Pé
ante pé. Pobre Illyna; esse era seu dia de alimentar a criação, mas a deixaria
dormir um pouco mais. Ele se arrastou até a sala, os joelhos pareciam colados
nas canelas, de tão duros. Quando levou os dedos até a maçaneta da porta, já
via alguma claridade entrando pela soleira. Fechou a mão em volta do metal
congelado, respirou fundo e a abriu.
– Por mil maldições! – Gemeu de frio. Seu maxilar estava tão apertado
que teve medo de quebrar os dentes. Olhou para trás, conferindo se não
acordara a esposa, e saiu para a varanda.
Era outro lugar, outro sítio, não havia dúvidas. Olhou para as colinas à
esquerda, onde devia estar a lavoura, de um verde vivo, majestoso. Agora era
apenas uma espécie de plantação pálida, torturada pela geada. O chão
também não exibia qualquer cor, exceto a fumaça esbranquiçada que ainda
teimava em forrar a relva, na altura de seus pés. Conferiu à direita e se
acalmou um pouco. O curral estava no lugar, onde devia estar. O cercado de
madeira e bambus tinha se molhado por completo no orvalho, as varas
pingando água fria, mas sua criação estava no mesmo lugar de sempre. O
único porco dormia, como se não tomasse conhecimento do frio, e as
galinhas estavam encolhidas e emboladas entre as próprias penas. Os rostos
assustados, implorando algum calor. O bode berrou mais uma vez,
impaciente.
– Calma, Adiante – respondeu Cal. – Já vou! Cuidar de mim ninguém
quer, não é? Espere um pouco, vou colocar as botas.
Olhou para a mureta e viu o par de botas encardidas. Estavam com o
solado cheio de lama do dia anterior e pesavam o dobro. Sentou-se em um
tamborete, virou o cano do calçado para baixo e viu escorrer um filete de
água fria. Remexeu os dedos brancos dos pés, criando coragem, e disse
baixinho:
– Vamos acabar logo com isso.
Sentiu uma fisgada nos tendões da perna quando seu pé entrou no calçado
gélido. Calçou o outro e juntou as mãos na frente da boca, soprando para
aquecê-las. Levantou-se do banquinho e começou a dar alguns pulinhos,
balançando os braços. Por fim, esfregou as mãos e olhou para o Bode:
– Está na hora de soltá-los, não é? – Olhou para a cabra, amarrada ao
lado. – Tenho certeza que Sequencina também está ansiosa para esticar as
patas, correto? Adiante, já o ensinei várias vezes, não devemos aborrecer as
esposas. – Abaixou a cabeça, como se sussurrasse com o animal: – Não há
frio que as impeça de atirar algo em nossas cabeças.
Atolando as botas na lama, ele caminhou até a beira do curral e olhou por
sobre o cercado. O porco roncava, esparramado na sujeira.
– Honn, eu não sei qual o seu problema... Deve haver algo nesse mundo
que o emocione.
O suíno abriu um dos olhos, roncou novamente e voltou a dormir.
– Se não fosse o coração mole de Illyna – resmungou Cal –, veria como
eu faria sua vida interessante. Principalmente com ovos, no café da manhã.
Muito bem, minhas belezas – virou-se para o bode e a cabra –, vamos ver o
que consegue comer nesse tempo, Adiante. Se gostar de Capim congelado,
pode se servir à vontade. Temos também ração de gelo, flocos de geada e
adivinhe: mais capim gelado!
Ele desatou o nó que prendia os animais ao cercado. Adiante deu um
passo relutante, farejou o chão e em seguida se afastou, procurando algo
decente para comer. A cabra permaneceu no lugar. Era hora da ordenha e ela
já estava acostumada. Cal se ajoelhou, conferiu o volume em sua barriga e
sorriu, olhando de volta para ela.
– Parabéns, Sequencina. Hoje deve dar um belo litro. Mas não se
preocupe. – Levantou-se e deu dois tapinhas em seu dorso. – Illyna ainda não
acordou, então vá brincar por aí, ou, se tiver paciência, fazer companhia ao
resmungão do seu marido.
Cal não conversou com as galinhas. Achava que eram animais muito
estúpidos. Galinhas eram capazes de serem perseguidas em linha reta por
cinco quilômetros sem sair da frente da carroça. Qualquer animal daria um
passo para o lado, para não ser atropelado. As galinhas não. Elas seguiam em
linha reta. Inacreditável. Cal estalou os lábios, balançou a cabeça em negativa
e lançou um olhar em direção ao grupo que dormia. Esfregou novamente as
mãos e desejou um café bem quente, daqueles que só Illyna saberia fazer.
Mas não a acordaria. Exceto pelo patrão, o Sr. Melfes Joarque, e seu fiel
genro, Teoro A’brim, não imaginava mais ninguém merecedor de tamanha
tortura.
Voltando para a varanda, Cal limpou as botas no solado de madeira e
abriu a porta da sala. Ouviu o som de louças e panelas vindos da cozinha e
torceu a boca, numa careta. Sua conversa com os animais devia ter acordado
a esposa. Pobre Illyna.
Entrou na cozinha e a encontrou bem desperta, manuseando os utensílios
de forma animada. O fogão a lenha já fumegava, os gravetos estalavam
dentro da abertura. Um som muito bem-vindo aos ouvidos gelados de Cal.
Ajeitando os cabelos, ele se aproximou de Illyna. Ela usava um avental
branco por cima de um vestido azul-claro e sorriu de volta ao marido.
– Minha pombinha, eu a acordei?
– De forma alguma, querido. A cama ficou fria depois que levantou. Além
do mais, hoje é meu dia de alimentar Adiante e Sequencina, não se preocupe.
– Mas, querida, você podia ter ficado na cama, está um frio de assustar
sentinela do lado de fora.
– Deixe de bobagens. Tenho certeza que um café vai deixá-lo muito
melhor. Poderia me passar o coador, por favor?
Cal deu um beijo na esposa e esticou o braço até a prateleira, para pegar o
objeto.
– Como Honn reagiu a essa geada, o pobrezinho? – perguntou ela.
– Geada? Ele vai lhe perguntar. E voltar a dormir, quase certamente.
Illyna riu.
– Não seria ele, se não o fizesse. Veja – ela retirou do bolso do avental um
saco fechado. Havia um lacre de papel, com algo escrito –, eu trouxe ontem
da quitanda, o Sr. Bof disse se tratar de um açúcar escurecido, menos
refinado, melhor para fazer doces. Pode me dizer o que está escrito?
Ele apanhou o saco nas mãos da esposa.
– Claro, minha vida. Aqui diz: Açúcar Escuro Tulmense. O açúcar magro
da capital.
Ela apanhou de volta o pacote e apertou os olhos, tentando ler:
– Ah... – sua voz baixou. – Acho que a frase era muito grande. Quase tive
certeza de começar com a palavra açúcar.
Cal colocou a mão sobre seu ombro.
– Você está indo muito bem, minha flor. Continue as aulas com Lalan,
por favor. Ela me disse ter te visto muito desanimada no último encontro.
– Bem, eu...
– É verdade que falou em sair? Por favor, pode me contar.
A esposa virou-se de costas, envergonhada, e sussurrou:
– As pessoas ficam falando, Cal. Chegaram a dizer que Zilda, a mais
tapada dos moradores, é ao menos capaz de ler um bilhete. Eu tenho medo, a
Sra. Fufu tem me olhado de forma estranha, como se quisessem contratar
outro casal para tomar conta do sítio. – Ela virou-se para o marido, os olhos
avermelhados. – Não temos para onde ir, Cal.
– Ei, ei... – disse ele, se aproximando com as mãos abertas. – Ninguém
está sendo despedido. De onde tirou essas ideias, meu amor? Zilda não seria
capaz de encontrar o caminho até a lavoura, de tão estúpida. Além do mais,
não é ela quem manda. Nem o marido, aquele esnobe A’brim. Tenho boa
relação com o Sr. Joarque e te asseguro que nada vai acontecer conosco.
Cal sabia que não era verdade. Melfes Joarque, o dono das terras, estava
há tempos se enfurecendo com os resultados da colheita. Cal sabia que o
velho gordo só esperava uma oportunidade para enxotá-los da vila.
– Tem certeza? – perguntou Illyna, enxugando os olhos.
– Absoluta. Continue as aulas, eu lhe imploro. Agora, esqueça tudo por
enquanto e vamos experimentar esse açúcar estranho. Espero que não tenha
gosto de barro. Quase tudo que o Sr. Bof vende, tem.
Ela riu e abriu o pacote. Cal sentou-se, esticou as pernas e observou o
ritual preciso da esposa no preparo do café. Esperou ansioso, enquanto via as
linhas de fumaça cheirosa saindo do bule. Grãos que a própria esposa colhia
na lavoura e ele mesmo preparava, secava e torrava. Parte do mísero
pagamento do Sr. Joarque. Mas nesse momento preferia não pensar nisso. O
sol já iluminava a cozinha, com raios brilhantes entrando pela janela.
Enquanto Illyna despejava o pó dentro do coador, ele se lembrou de algo e
ficou de pé.
– Querida, o tempo está esquentando e vou esperar um pouco mais antes
de abrir o monte no terreiro. Enquanto isso, eu queria raspar os rodos de
madeira, estão encharcados de casca e folhas. Sabe onde está a espátula do
Sr. Joarque?
– Claro – respondeu ela, sem olhar para trás. – Eu a lavei anteontem e
deixei por cima do tanque, do lado de fora.
– Ainda bem. Eu não fazia ideia e hoje tenho de devolver. O velho
avarento ficaria uma fera se eu o perdesse.
Ele caminhou até a porta e jogou um beijo para a esposa.
– Estarei aqui fora. Me avisa quando servir a mesa?
Ela devolveu um olhar triste.
– Só temos café essa manhã. Acabou a farinha para os biscoitos,
desculpe...
Ele fingiu não ouvir e ergueu os lábios, num sorriso, olhando firme para
Illyna:
– Não temos café. Temos o melhor café de toda Virídea.
Cal foi até o tanque de pedra, que ficava ao lado da varanda. Uma calha
de bambu trazia água da bica e ele estendeu as mãos em concha, para apanhar
um pouco. Estava muito gelada. Resolveu que só ia molhar as pontas dos
dedos e limpar os olhos. Melhor deixar para lavar o rosto em uma outra hora.
Quando terminou, esfregou as mãos, ansioso, e procurou pela espátula
prateada do patrão. Olhou por cima dos beirais do tanque, em baixo, onde
ficavam botas encardidas, e na prateleira velha da parede. Procurou na mureta
de madeira da varanda, por toda parte.
– Estranho... – murmurou, coçando a cabeça.
Chegou até a porta de entrada da casa e gritou:
– Querida, tem certeza que a espátula está aqui?
– Certeza absoluta, Cal! – respondeu ela, da cozinha. – Eu mesma a vi
ontem, antes de me deitar!
– Com mil maldições... – grunhiu Cal. – Onde foi parar a maldita
espátula?
Ele deu de ombros e voltou para a cozinha, certamente com a pulga atrás
da orelha. Illyna já servia o café e o estendeu uma xícara fumegante. Ele
desabou na cadeira, olhando para o nada, o indicador pousado sobre os
lábios.
– Procurou direito? – perguntou ela.
– Em todo lugar possível. – Ele pensou por um instante e arregalou os
olhos. – Será que temos ladrões nos visitando? O povo do sul é bem estranho,
se me perguntar. De vez em quando aparecem por aqui, de passagem, e sabe-
se lá o que tramam.
– Está imaginando coisas, querido – observou ela, sorvendo um gole de
café quente. – Já tentou ver com Teoro?
– Ah, aquele infame! – levantou-se, com o dedo em riste. – Certamente a
apanhou sem me avisar. Vou para lá imediatamente ter uma conversinha com
ele. O esnobe, sempre tentando me passar para trás.
Cal tentou tomar o café todo de uma vez, mas queimou a língua. Resolveu
sentar-se novamente e tomá-lo com mais calma.
***
Cal se embrulhou em uma jaqueta surrada de lã e de braços cruzados saiu
pelo quintal, passando pela bica, o galinheiro de choca, e subindo uma
elevação até o piso de cimento. Era um retângulo totalmente plano, com área
para comportar três casas como a sua. O café estava amontoado em uma
única fileira de meio metro de altura e coberto por uma lona, molhada pelo
orvalho. Resolveu que o deixaria esquentando sob o sol, caso esse resolvesse
vencer a friagem, antes de descobri-lo e espalhá-lo pelo terreiro.
Pouco à frente, via o celeiro, onde armazenava os grãos já prontos e, ao
lado, uma construção de tábuas e latão, o galpão de ferramentas. Ambos
ainda meio embaçados pela neblina. Atravessando o terreiro, virou-se à
direita, já mais animado. Na trilha por onde se alcançava a casa de Teoro
A’brim, já batia alguma luz do sol.
– Não está saindo fumaça pela chaminé – resmungou ele, olhando para a
casa colorida de A’brim. – Vai ser um prazer acordar o maldito.
O terreno de Teoro A’brim parecia não pertencer à zona rural. Antes de
chegar à casa, seus pés encontrariam um piso ladrilhado de pedras, cercado
por canteiros de flores. A casinha do cachorro, Blobo, parecia maior que a de
Cal, com telhado vermelho de coloniais. Ele olhou para o enorme animal, que
dormia tão tranquilamente como se não notasse sua presença. Ele próprio
parecia maior que Cal. Se não fosse tão estúpido, talvez fosse encarregado de
tomar conta do sítio em seu lugar. Ele fez uma careta emburrada e se
aproximou da porta de entrada, socando-a com força três vezes. Alguns
minutos depois, foi aberta por uma figura vestindo pijamas e com um tapa-
olho preso à testa.
– Wiston! – grunhiu Teoro, sonolento. – O que faz aqui? Tem ideia da
hora que parei de trabalhar ontem à noite?
Cal sabia que ele não fazia nada. Ser genro do patrão tinha suas
vantagens, mas preferiu não comentar.
– Eu preciso da espátula, A’brim – retrucou Cal, cruzando os braços. –
Tenho toda aquela fileira para abrir no terreiro, uma centena de galinhas para
alimentar e uma dúzia de ferramentas para limpar. Não tem graça.
Teoro esfregou os olhos e ajeitou os bigodes tortos.
– Do que está falando, Wiston? Não sei de espátula alguma. Agora dê o
fora daqui, antes que Zilda se irrite.
– Estou falando da espátula de alumínio do Sr. Joarque. As ferramentas
estão encrustadas de papa de café e preciso dela. – Cal apertou os olhos. –
Levei quase toda uma tarde para criar coragem de pedi-la. Sabe o que ele
faria se eu a perdesse?
– Pois agora você me fez olhar fundo em meu coração, Wiston. E sabe o
que eu encontrei lá? Nada. Agora dê o fora.
Cal trincava os dentes e fumegava pelo nariz, sem ter o que dizer. E a
conversa teria acabado ali, caso Zilda não surgisse também junto à porta, com
rosto ainda mais preguiçoso que o do marido. Nada que fosse aumentar muito
as esperanças de Cal.
– O que houve, benzinho? – começou ela, com uma lamúria, olhando
enojada para as roupas sujas de Cal.
– Nada, minha especialíssima. O... – Teoro torceu os lábios – caseiro
aparentemente está em apuros com seu pai, mas nada que nos diga respeito.
Volte a se deitar, está muito frio.
– Zilda! Digo... Sra. A’brim, por acaso não viu a espátula de alumínio de
seu pai?
– Wiston, eu disse para dar o fora.
– Espere aí... – Os olhos de Zilda se iluminaram por um instante. – Está
falando daquela brilhante, com cabo de chifre? Vi sim!
Cal sentiu vontade de empurrar Teoro para o lado e dar um abraço na
mulher.
– Exatamente, Sra. A’brim! Pode me dizer onde ela está?
Ela olhou para cima, pensando durante vários momen-tos.
– Eu não sei. Mas eu já a vi, com toda certeza. É muito bonita...
Por que fui dar ouvidos? Ela é mais demente que uma porta, suspirou
Cal.
– Como tudo o que seu pai compra. – Teoro a envolveu pelos ombros e
começou a fechar a porta. – Agora, Wiston, se nos der licença...
Foi quando começou. Antes que Teoro pudesse bater a porta na cara de
Cal, algo que faria com muito prazer, uma verdadeira confusão entre os
animais tomou lugar no terreiro, lá em cima. As galinhas começaram a
cacarejar, assustadas, os vira-latas seguiam, enchendo o ar com seus latidos
esganiçados. Também ouviram ferramentas metálicas caindo ao chão, junto
aos balidos de Adiante e Sequencina. Até mesmo o cão, Blobo, ergueu as
orelhas e olhou para os lados, confuso.
– Mas o que... – Cal olhou para Teoro, sem reação. Em todos os anos
passados ali, os animais nunca haviam ficado em tal estado.
– O que está acontecendo lá em cima, Wiston? – rosnou Teoro, saindo de
vez da casa. – O que aprontou dessa vez?
– Eu sabia, eu disse a ela! Estamos sendo invadidos!
Teoro olhou para ele, sem entender. Cal continuou:
– Estou suspeitando de ladrões, seu estúpido! Vamos, tem alguma arma
em casa, ou só conjuntos de mesa banhados em ouro?
– Eu, eu... – Teoro tentava pensar. – Ladrões? Tem certeza?
– Tem ou não tem uma arma em casa? Precisamos correr para lá, antes
que fujam!
– Meu avô tinha uma besta, usada na Guerra dos Sem-
-Caminho, nem sei se aquela geringonça ainda funciona. E certamente não
deixarei que você a toque, Wiston.
Cal cuspiu no chão e lançou um olhar furioso.
– Pois deixe que levem até sua esposa, seu inútil. Eu vou lá em cima ver o
que está acontecendo.
– Es... Espere, Wiston. Eu vou apanhar a droga da besta. Se você morrer,
não quero ter de revirar todo aquele café do terreiro.
Cal esperou até que Teoro entrasse na casa e voltasse carregando uma
besta velha de madeira e algumas setas. Não parecia funcionar melhor que
Honn, ou Blobo. Cal apanhou um pedaço de madeira por precaução e subiu a
trilha na frente, com cautela, até poderem avistar o que se passava no terreiro.
Não havia estranhos, pelo que via, mas os animais ainda corriam para todos
os lados. O galpão de ferramentas estava com a porta aberta e um bando de
galinhas havia entrado, derrubando algumas prateleiras no chão. Isso
explicava os sons metálicos. Outras estavam empoleiradas por cima da fileira
de café, balançando as cabeças, nervosas. Sequencina berrava, andando de
um lado para o outro, mas não viu Adiante.
– Vê alguma coisa, Wiston? – perguntou Teoro, com a voz trêmula,
escondido atrás do caseiro.
– Aqui não. Mas as galinhas parecem estar fugindo do...
Cal não completou a frase. Um filete de fumaça parecia subir do telhado
do celeiro. Um telhado de palha. Isso não era bom. Isso não era nada bom, se
querem saber.
– Oh, não. – Cal apertou o pedaço de madeira e pisou no terreiro, em
direção à fumaça. – Por favor, digam que não é verdade.
– Isso não vai terminar bem para você, Wiston. – Teoro parecia se
divertir.
Quando Cal alcançou o celeiro, as labaredas já lam-biam metade da
cobertura. O interior do galpão estava envolto em fumaça preta. O cheiro de
café torrado imediatamente preencheu seus pulmões. Isso era ainda pior.
Seria aceitável se o próprio Cal estivesse embrulhado pelas chamas, sendo
torrado vivo, ou sua esposa, ou Honn, que daria um bom churrasco. Mas não
a produção do Sr. Joarque. Ninguém tocava na propriedade do patrão, mas o
fogo parecia não se importar.
Cal engoliu em seco e olhou para trás, balbuciando alguma coisa. Teoro
não estava mais ali. Sem muito tempo para pensar em algum nome para
xingá-lo, ele se apertou contra a blusa de lã e entrou no celeiro ardente, a fim
de salvar algumas sacas.
Illyna apareceu um tempo depois, correndo. Olhava horrorizada para o
incêndio e mais ainda por ver o marido sair do meio das chamas. Ele tinha as
roupas pretas de fuligem e arrastava uma saca para fora. Estava parcialmente
rasgada e derramava grãos pelo caminho. Cal as empilhava ao lado de uma
árvore e parecia já ter salvo cerca de uma dúzia.
– Cal, pelas terras verdes, o que aconteceu?
Ele olhou para ela com os olhos vermelhos e o rosto escurecido de
fumaça.
– Illyna, eu... – Ele apontou para os volumes que sal-vara, a expressão
devastada de agonia. – Havia mais de cinquenta. Perdemos todo o resto.
Estamos... O Sr. Joarque vai me matar.
Ela puxou o marido pelo braço, enquanto observavam o resto do celeiro
se transformar em cinzas. As chamas dançavam com estalos furiosos.
– Não foi culpa sua – disse ela. – Iremos descobrir quem fez isso.
Cal olhou para a estrada da lavoura e suspirou. A esposa acompanhou seu
olhar. O Sr. Joarque e seus capatazes já estavam a caminho.
2 – SOBRE GRANDEZA E SORTE
Eu pude viver por muitos anos, essa é a verdade. Aprendi o que pude e
escolhi um lugar especial em meu coração para as coisas ainda não
compreendidas – até algum tempo atrás, eu não sabia o valor de se acender
uma lamparina para ir à latrina à noite; topar com o tornozelo na quina da
mesa em pleno inverno certamente me ensinou muito. Entendi tudo possível
sobre os ciclos solares, as estações boas para plantio e colheita e também o
tipo de comida ideal para cada animal de criação. Hoje sei um pouco sobre
aragem de terra e tipos de minérios, sei construir abrigos e também umas
poucas amizades aqui e ali. Com sentimentos igualmente variados, conheci as
inúmeras formas por meio das quais a bondade e a maldade florescem no
coração dos homens.
Com plena convicção posso afirmar o seguinte: ninguém nasce grande.
Viemos ao mundo pequenos em corpo e essência e há quem permaneça dessa
forma até o fim de seus dias. Não há novidade alguma nessa afirmativa.
Todos temos um vizinho, padrinho ou parente cuja trajetória não
desejaríamos imitar. E digo mais uma vez: ninguém jamais nasceu grande.
Se alguém me dissesse que os grandes são corajosos, íntegros e altruístas,
eu concordaria. São sim, de fato, e têm mesmo de sê-lo. Mas, para mim, esses
atributos de nada valeriam sem uma boa pitada de sorte. Sim, sorte. E essa,
meus amigos, não se aprende nas bibliotecas, nos balcões de taberna ou da
boca dos mais velhos. Sorte é um luxo de quem arrisca. De quem frequenta o
lugar certo quando precisa. De quem está disponível quando a hora certa se
aproxima.
Sem sombra de dúvidas, esse seria um excelente dia para usá-la.
Mas Mirta Vento Amarelo nada sabia a respeito de um certo Cal Wiston e
suas complicações na fazenda. Numa estradinha não muito longe dali,
sentada em sua poltrona estofada revestida de couro, tinha os pensamentos
em outro lugar. Mais precisamente, no motor engasgado da carroça metálica.
Tudo parecia em ordem. As quatro rodas pareciam girar com suavidade, as
juntas estavam lubrificadas, os amortecedores engraxados e macios. Ela
aprumou o corpo, inclinando-se para frente, e conferiu as rodas dianteiras.
Perfeitas. Por que, então, saía fumaça preta do escapamento?
Manuseou o manche e encostou o veículo na beira da estrada, sem
desligar o motor. Exato. Não havia cavalos puxando a carroça. Nada de
animais para conduzir Mirta Vento Amarelo. São trabalhosos demais.
Precisam comer, dormir e descansar. Máquinas são mais confiáveis. Elas não
acordam de mau-humor, não ficam desanimadas e não se ofendem quando
alguém levanta a voz.
Máquinas são dádivas do intelecto humano e da ciência.
Mordendo uma mecha dos cabelos loiros, ela levantou-
-se do assento e colocou as palmas das mãos no piso. Estava vibrando de
forma diferente.
– Cró! – grasnou o pássaro em seu ombro. Ele te lembraria um canário, só
que maior e com penugem totalmente azulada. Tinha o bico mais fino e
comprido e seus olhos eram grandes e atentos. Na verdade, ele não se parecia
em nada com um canário, ou qualquer outro pássaro.
– Sim. – Ela estalou os lábios em desaprovação. – Era o que eu temia.
Entrou poeira demais no motor.
– Cró! – fez mais uma vez a ave, batendo as asas.
– Como por quê, Cerúleo? Porque não chove há quase um ano nessa terra
abandonada! O pó está cada dia mais fino e traiçoeiro.
– Cró! Cró!
– Está delirando. – Ela empertigou-se, bateu as palmas das mãos, ajeitou
os óculos e desligou o motor. – Não posso arriscar a carruagem. Vamos,
deixe de ser preguiçoso e levante voo. Descubra alguma casa onde possamos
pedir um pouco de óleo de colêmia.
– Cró!
– Claro que têm. Passamos por três colemeiras há um quilômetro e
duzentos metros. Duas delas com a copa arredondada. Não viu os riscos nos
caules? Além do mais, essa é uma região cafeeira. Precisam de óleo nos
moedores e não existem por aqui feiras para compra de alimento a livre
gosto. Produzem o que comem. Portanto... – Ela fez um gesto esperando pela
compreensão do pássaro, que não veio – fritam com óleo caseiro. Agora sem
discussão, Cerúleo, vá.
O pássaro saltou do ombro de Mirta e pousou em cima de um volumoso
caderno no banco traseiro. Bateu com o bico três vezes sobre a capa dura.
– Cró!
– Com quem pensa que está falando, seu frango azulado? Está no lugar de
sempre! Agora faça o que mandei, antes que eu resolva te vender para um
colecionador.
Ela cruzou os braços e observou, enquanto mordia outra mecha de cabelo,
o pássaro voar em linha reta para o alto. Ele ficou no ar por um tempo,
desenhando pequenos círculos quando crocitou novamente:
– Cró!
– Por que a surpresa? Toda fazenda tem fumaça! Não está falando de uma
chaminé?
– Cró! Cró!
Então os olhos dela brilharam. Era uma excelente sugestão.
– Não me interessa o que está pegando fogo, mas vamos para lá. Onde há
incêndio, há gente amontoada e uma roda de mulheres que falam demais.
Certamente uma delas cozinha com óleo. Desça, eu vou ligar os motores.
***
O celeiro era uma enorme fogueira ardente quando Melfes Joarque
chegou no terreiro de cimento. Ele vestia uma capa de peles grande o
suficiente para cobrir todo o corpo rechonchudo. Trazia no rosto uma
expressão séria, os olhos afiados como navalhas. Suas botas batiam firmes no
chão, um som desagradável aos ouvidos de Cal. A seu lado, seguiam três
capatazes com o dobro de seu tamanho, as barbas batendo na altura do peito e
os braços cruzados. Cal se levantou, torcendo para que o patrão não o tivesse
visto sentado. O Sr. Joarque passou por ele e a mulher, sem sequer olhar para
eles enquanto seguia até o local incendiado.
Ele parou em frente ao celeiro – ou o que restava dele –, observando em
silêncio as chamas destruírem seu dinheiro. O velho andou até a pilha de
sacas ainda intactas e as contou mentalmente. Fungou e voltou a encarar o
fogo, quase como se não se importasse. Mas Cal sabia que quando seus
bigodes tremiam daquela maneira era sinal de problemas. Um dos capatazes
estalou os dedos das mãos, outro estalou o pescoço. Todos lançando olhares
frios e ameaçadores para o casal de empregados. Cal engoliu em seco e se
aproximou.
– Sr. Joarque, eu posso lhe assegurar que sinto muitíssimo...
Em um segundo, veio um estalo e um clarão tomou as vistas de Cal,
fazendo seus joelhos falharem, derrubando-o no chão. Um dos capangas
dera-lhe um tapa poderoso. Cal levou a mão até a orelha quente, tentando
espantar a tontura. Illyna tinha os olhos arregalados e a boca entreaberta.
– Eu quero explicações – falou o patrão, sem desviar os olhos do celeiro.
Cal e Illyna se entreolharam e ela se preparou para responder.
– Nem pensem em abrir a boca – a voz fria do Sr. Joarque a interrompeu.
– Teoro?
Então surgiu a figura de Teoro vinda de trás de uma moita. Ele tinha um
meio-sorriso nos lábios, quase ansioso demais para falar. Cal apertou o
maxilar, furioso.
– Te desejo um bom dia, Sr. Joarque, meu caro sogro. Se é que isso é
possível em face de tal calamidade. Aparentemente, o destino nos prega hoje
mais uma de suas indecifráveis peças. Olhe para isso. Quase consigo sentir
em meu próprio peito a dor de ver todo seu trabalho árduo, de um ano inteiro,
se transformando em cinzas.
O velho sogro balançou a cabeça em afirmação, emo-cionado.
– Infelizmente o mundo tem uma estranha maneira de punir as pessoas de
bom coração. O seu, hoje, sofre um duro golpe, Sr. Joarque. Sua bondade
infinita deu a esse pobre casal a oportunidade de trabalho digno e bem
remunerado, além de um teto para se abrigar. Como eles agradecem? – Teoro
olhou para o casal.
– Hã... Como? – perguntou finalmente um dos capatazes, interessado.
– Com displicência, senhores. A produção de Melfes Joarque, um dos
maiores distribuidores do Norte, foi deixada nas mãos de um homem de
pouca instrução e ainda menos ambição. Isso sem mencionar o apoio
igualmente incompetente de sua... – Teoro torceu os lábios com repulsa –
esposa analfabeta.
– Teoro, seu verme, eu vou estrangulá-lo! – Cal tentou se levantar, mas
levou outra bofetada ainda mais forte e caiu quase desacordado. Illyna cobriu
a boca para conter um grito.
– Há muitos dias – continuou Teoro – Wiston vem se queixando de certos
barulhos de madrugada, bem como o sumiço inexplicável de ferramentas e
objetos pessoais.
– Como assim? – rosnou o Sr. Joarque.
– É a verdade, Sr. Joarque. Wiston vinha alimentando suspeitas de que a
fazenda era alvo de... saqueadores. – Teoro fez uma pausa, observando a
expressão do sogro passar de espanto para indignação. Em seguida, lançou
seu melhor sorriso. – Estou dizendo por dizer, Sr. Joarque. Não tenho a
menor dúvida de que ele tenha relatado tudo ao senhor, em detalhes.
O rosto do velho ficou imediatamente vermelho, como se fosse explodir a
qualquer instante. Um dos capangas ergueu Cal no ar.
– Isso é verdade? – ganiu o velho, com o indicador no nariz de Cal.
– Nã... Não é bem assim que ocorreu, Sr. Joarque, eu...
– É verdade, papai – Dessa vez foi Zilda quem apareceu, tentando segurar
nas mãos a besta de Teoro. – Wiston nos acordou essa manhã e chamou meu
marido para que lhe ajudasse a espantar ladrões. Até mandou trazer essa
geringonça velha.
– Sua... – Cal engoliu as palavras, antes de ser esga-nado.
O silêncio em seguida veio de forma quase palpável. O velho fechou os
olhos e cerrou os punhos, apertando-os até perderem a cor.
– Como pôde, Wiston? – quase havia mágoa em sua voz. – Depois de
tudo que lhe dei. Depois de eu tê-lo tratado como a um filho... – Ele acenou
para o capanga e Cal foi solto, caindo novamente ao chão.
– Por favor, Sr. Joarque, Cal não... – Um dos capangas agarrou Illyna por
trás, tapando sua boca.
– Eu deveria enforcá-lo, seu animal – Continuou o velho –, mas acredito
que seria uma punição pequena demais. Quero vê-lo humilhado e faminto,
Wiston. Você me tirou meus bens e vai sentir na pele o que é isso. Tem uma
hora para desaparecer de minhas terras. Leve o que puder carregar, junto de
sua esposa inválida, e nunca mais ponha os pés aqui novamente!
– Sr Joar... – Illyna tentava se desvencilhar do aperto forte.
– Levem algum agasalho – grunhiu o velho com satisfação –, parece que
o inverno veio impiedoso esse ano.
***
A carroça metálica balançava discretamente enquanto fazia uma curva na
estrada. Da lateral do veículo subiam alguns braços de ferro polido,
parafusados num ângulo reto. Entre uma vara e outra estendia-se um toldo de
lona e couro, que servia para proteger os tripulantes da chuva. As rodas eram
cromadas, com detalhes entalhados nos aros, e as traseiras tinham quase o
dobro do tamanho das dianteiras. Por cima de cada uma delas, uma chapa
retorcida de alumínio evitava que a lama – quando havia – e poeira fossem
lançadas no interior ou, o que seria pior, na própria Mirta.
Inclinando o manche para a esquerda, ela conferiu o terreno a seu redor.
De um lado da via a paisagem apresentava porções de terreno plano, um
pasto malcuidado, alguns brotos de matagal e troncos serrados ao meio. Do
outro, à sua esquerda, uma bonita cerca de madeira ladeava uma casinha
branca. À sua frente, na linha do horizonte, ela já podia ver o filete de fumaça
grossa e preta sobre a qual Cerúleo havia comentado. A essa hora o sol já
começava a tomar lugar no céu e Mirta tirou o casaco mais pesado.
Quando o motor da carroça engasgou, deu um sola-vanco e parou de
funcionar, uma das janelinhas de madeira da casa se abriu. Surgiu o rosto de
uma mulher idosa, que arregalou os olhos ao ver aquele estranho e
impressionante veículo de metal. Vento ajeitou os óculos e lançou um olhar
sério para a mulher.
– Algum problema? – perguntou, enquanto girava a manivela de arranque.
– Minha filha – disse a mulher, espantada. – Como é que sua carroça anda
sem um cavalo ou um boi?
– Olha, minha senhora – Começou Mirta, com um olhar que Cerúleo já
conhecia.
– Cró!
– Está bem, está bem, seu pássaro irritante! Vou responder com polidez. –
Virou-se novamente para a mulher. – Esta carroça é um experimento meu,
senhora. É movida a carvão mineral ou vegetal, e a poeira da estrada entupiu
os filtros. Seria pedir muito que me cedesse, por gentileza, um pouco de óleo
de colêmia para lubrificar as juntas?
A mulher olhou desconfiada e torceu os lábios.
– Isso está me parecendo magia negra, isso sim. Aqui não temos óleo de
colêmia, usamos somente azeite e girassol. Serve?
– Cró!
– Cale-se, Cerúleo. É um motor, não um petisco.
– Você conversa com esse passarinho? – A mulher arregalou ainda mais
os olhos.
– O óleo não serve, senhora. Passar bem. – E voltou a se concentrar em
dar partida.
– Eu não posso acreditar! – uma voz de garoto veio de dentro da casa. –
Você é quem estou pensando?
Devia ter uns dez anos de idade e tinha o cabelo castanho emaranhado,
com sardas espalhadas pelas maçãs do rosto. Ele olhava pela janela com um
sorriso largo, faltando um dos dentes. Os olhos abertos até o máximo, como
quem vê uma entidade divina.
– Arto! – A mulher deu um peteleco em sua nuca. – Volte para dentro. É
apenas uma estranha.
O garoto ignorou a avó e escalou a janela, saltando para o quintal.
– Mirta Vento Amarelo e a carruagem reluzente! – continuou ele. –Diga-
me que estou sonhando!
Mirta ajeitou os óculos e lançou um sorrisinho rápido para o pássaro.
– Em carne, osso e óculos. Este aqui é Cerúleo.
– Cró!
– Mas eu não posso acreditar! A mesma Vento Amarelo das histórias? Os
óculos, o cabelo... pelo rei! Como resolveu o Mistério das Três Luas? Meu
irmão, Artem, diz que você foi salva de três cobras gigantes e um morcego
devorador de mentes, e que ainda por cima humilhou os soldados da Ordem
com seu discurso! Que expulsou os mercenários do bairro das docas e usa
folha de espinhenta como travesseiro! É tudo verdade? – Ele não esperou a
resposta. – O que fazem aqui, tão distantes da capital?
– Respire, rapaz. As pessoas tendem a exagerar os meus feitos. Sou uma
pessoa normal, como qualquer outra. – Cerúleo a olhou de esguelha e fingiu
não ouvir. – Estamos justamente a caminho de Tulma. Preciso de algumas
peças e ferramentas para o aperfeiçoamento da carruagem.
O garoto deixou a boca aberta no ar e começou a circular o veículo,
tocando com a ponta dos dedos o metal polido.
– Aperfeiçoamento? É o veículo mais incrível que já vi! E olha que
conheço as carruagens dos duques, os navios do baronato e também gravuras
do carro real do Rei Silkai. Estou muito impressionado!
– Impressionada estou eu, Arto. – Ela fez uma pausa, até o garoto notar
que ela já aprendera seu nome. – Como um rapaz do ermo sabe tanta coisa?
– Bem, eu...
– ...Costuma roubar os jornais e periódicos quando vai à feira. – Ela
baixou a voz: – Fique tranquilo, será um segredo só nosso.
– Arto! – grasnou a avó. – Venha para dentro e deixe ela ligar sua...
coisa... máquina.
– Agora não, vovó! – ofegou ele, pulando o cercado e saindo pelos
fundos, em disparada. – Preciso avisar a todos que a maior detetive do mundo
está na Vila dos Porcos!
– Volte aqui, o motor já ligou! – gritou Mirta, mas o garoto já estava
longe.
– O que está fazendo? – perguntou Cal à esposa.
– Colocando a chaleira de volta na prateleira, oras.
– Mas essa não é a chaleira que ganhou de sua mãe?
– Sim... – Illyna baixou os olhos. – Mas não é essencial. Podemos levar
uma mais leve, de latão.
O saco de viagem já estava quase no máximo. Ao mesmo tempo, parecia,
pelo volume das prateleiras, que não estavam levando quase nada.
– Illyna, me escute; coloque-a de volta no saco. Eu carrego todo o peso,
não me importo.
Illyna obedeceu, relutante. Em seguida, abriu a portinhola da despensa.
– E quanto à comida?
– Deixe que eu me preocupe com isso. Vá até seu quarto e apanhe todo
agasalho que puder.
Ela assentiu com a cabeça, deu as costas e começou a sair da cozinha.
– Illyna...
Ela olhou de volta e ele continuou:
– Ficaremos bem.
Foi então que Cal pensou ter ouvido vozes estranhas vindas do lado de
fora. Ele deixou o saco de viagem no chão e abriu a porta, saindo para a
varanda. Viu alguns homens e mulheres subindo a estrada, em direção ao
terreno. Eram cerca de meia dúzia e pareciam estar curiosos e excitados. Dois
homens vinham à frente carregando enxadas nos ombros. Cal esperou até que
chegassem perto e os reconheceu. Um deles era caseiro do sítio vizinho e o
outro um empreiteiro, prestador de serviço aos donos de terra locais. Ambos
enrolados em blusões de lã, com os ombros encolhidos. Ao longe, no início
da curva da estrada, vinham mais dois ou três. Pelo que Cal conhecia da
vizinhança, viriam todos, eventualmente, ver o celeiro queimado. Ou rir de
sua cara.
– Wiston... – perguntou um deles –, é verdade o que estão comentando?
– Vá ver com seus próprios olhos – retrucou Cal. – Agora, se me dão
licença, tenho muito o que fazer.
Os homens começaram a rir.
– Olha toda aquela fumaça. Você conseguiu botar fogo na produção do
Sr. Melfes Joarque! Wiston, tenho de confessar que admiro sua coragem.
Dois garotos e uma garota vieram correndo de encontro aos homens e
puxaram as barras de suas calças.
– Papai, papai! – berrou a garotinha.
– O que é? Estamos ocupados, seja uma boa menina e volte para sua mãe,
sim?
– Mas papai, estão dizendo que uma mulher muito famosa está na vila! E
também que ela anda numa carroça mágica, puxada por dois cavalos
invisíveis! E que também é a maior inventora de toda Virídea!
O homem deu uma bofetada no irmão maior.
– Já disse para não encher sua irmã com essas histó-rias!
– Ei, mas não fui eu quem falou! Foi Arto quem nos contou!
– E eu já disse que esse Arto é um garoto problemático. Não bate bem da
cabeça. Voltem para a mãe de vocês e nos deixem trabalhar, vão.
– Mas é verdade, ele viu... – choramingou um dos meninos.
– Se Arto vir uma brasa acesa dentro d’água vocês acreditam. Não
aprenderam essas bobagens comigo, isso eu garanto. Onde está a mãe de
vocês?
– Foi na casa dos Fulle – respondeu o filho maior. – Disse que traria uns
biscoitos para nós.
– Biscoitos? – grasnou Cal. – Estão num circo, é isso? Por que não dão o
fora e me deixam trabalhar?
– Olhe lá, olhe lá! – A menina começou a dar pulos, empolgada,
apontando o dedo para a curva na estrada, lá embaixo.
Cal, curioso, saiu da varanda para conferir e viu a carruagem metálica
brilhando sob o sol pálido. Estava longe, mas realmente não havia cavalos
puxando-a. Especulou se o rei mandara um de seus feiticeiros para o
transformar em lagarto. Engoliu em seco e murmurou:
– Notícia ruim voa rápido... Pelo menos irei para a forca numa carruagem
real.
– Não diga bobagens, Wiston – observou um dos ho-mens. – Ninguém
viajaria tão rápido.
Cal virou-se para ele.
– Eu sei, foi uma piada. Mas não me diga que acredita nessa história da tal
mulher famosa?
– Aqui? – o homem riu e cuspiu no chão. – Provavelmente é algum
condutor real que se perdeu da unidade. Bem, vou subir com os meninos e
ver sua obra de arte no celeiro.
O amigo assentiu, tirando do bolso um pedaço de fumo e jogando na
boca.
– É a Vento Amarelo! – Dessa vez foi um dos filhos que falou, com um
sorriso largo.
Cal já havia ouvido esse nome. Tocou nos ombros do menino.
– Vento Amarelo, você disse?
– Sim, é disso que estamos tentando falar! A própria Mirta Vento
Amarelo está na Vila dos Porcos!
O pai das crianças soltou uma gargalhada e o amigo completou:
– Parece que hoje é seu dia de sorte, hein, Wiston? Se os boatos são reais,
ela é capaz de te tirar dessa enrascada.
A porta da cozinha se abriu e Cal virou-se para trás. Illyna também vinha,
atraída pela conversa.
– Do que estão falando? – perguntou ela. – De onde está vindo tanta
gente?
– Bem... – Cal olhou mais uma vez para a carruagem se aproximando
estrada acima. – Se os boatos estão corretos, parece que a tal Vento Amarelo
está chegando. Mas claro, deve ser um engano, o povo daqui é muito fácil de
se impressionar. Mas seria estranho, não? Afinal, o que ela faria aqui?
– Cal, querido... – Os olhos da esposa se iluminaram. – Conte tudo a ela!
Não foi você quem botou fogo no celeiro, talvez ela possa descobrir o
culpado!
Cal torceu os lábios e começou a limpar as unhas, sem nunca tirar os
olhos da carruagem que subia.
– Illyna, não me diga que também acredita.
– Se for ela a tal Mirta – completou o empreiteiro –, esse é realmente seu
grande dia, Wiston.
– É... – murmurou Cal, com um sorriso sem-graça. – Sorte...
A carruagem brilhante entrou na propriedade e as pessoas, maravilhadas,
deram passagem. Agora não havia qualquer dúvida, tinha de ser a própria
Mirta Vento Amarelo. Algumas esticavam os braços para tocar o metal,
outras pediam para ser beliscadas, pois pensavam estar em um sonho. E não
era para menos. Uma visita de Mirta Vento Amarelo nas terras ermas.
Ela encostou o veículo, desligou o motor e o escapa-mento parou de soltar
fumaça. Todos ficaram em silêncio. Ela ajeitou os óculos e olhou ao redor, e
em seguida para cada uma das pessoas. Sempre mordendo uma mecha dos
cabelos e com um sorriso no canto da boca. Cerúleo estava em seu ombro,
arredio e meio curioso. Ela saiu do assento e saltou para fora. Lançou um
olhar para o casal mais próximo da varanda.
– Vocês são os donos? – Perguntou ela.
Cal piscava sem parar, limpava os olhos, como se estivesse vendo uma
miragem. Illyna estava sem expressão.
– Então essa é a Vento Amarelo... – sussurrou alguém.
– Será mesmo? – resmungou outro. – Não me parece grande coisa.
Ela bateu as botas no chão, para sacudir um pouco a poeira e cruzou os
braços. Ficou a um metro de Cal e Illyna.
– Desculpem-me, vocês falam minha língua?
– Ah, sim – engasgou-se Cal, limpando as mãos nas calças e voltando a
cruzar os braços. – Perdão, o que era mesmo?
– Vocês são os donos do terreno? O que está pegando fogo?
Cal não respondeu. Não conseguia se concentrar. A carroça sem cavalos
já era uma ideia assustadora o suficiente. Mas a famosa Mirta Vento Amarelo
não era uma mulher. Era uma criança. Não devia ter mais do que onze ou
doze anos.
3 – MIRTA VENTO AMARELO
Ainda há muito a ser dito sobre o caso de Vento Amarelo na Vila dos
Porcos, mas, por ora, desviemos um pouco do assunto. Preciso, antes disso,
preparar as bases do relato falando um pouco sobre Tulma. Essa mesma, a
capital que todos conhecem. Para os estrangeiros – ou quem sabe os que
hibernaram até a idade atual – trata-se da capital dos Reinos do Norte. Uma
cidade elevada das bases de um monte até seu cume, subindo em espiral
numa saia de prédios e ruas de pedra, até se deparar com o castelo do rei, a
imponente Fortaleza Pálida. Por toda a margem leste da cidade, precipícios
de pedra lisa mergulham sem aviso nas águas do Mar Superior. Só existem
duas formas de se adentrar nos domínios tulmenses: pela estrada principal ou
pelo único porto, na saída nordeste. Ambas guardadas pela intransponível
guarda, as tropas de rua e a Ordem Branca.
Tendo como pano de fundo esse cenário estonteante, inserimos na história
a figura do próprio rei, ainda chamado na época de Silkai Crina-da-Alvorada
– foi ele mesmo quem inventou de mudar o próprio nome, mas isso não
durou muito tempo. Falaremos a respeito posteriormente.
Esse foi, talvez, o trecho – dentre todos do relato – mais difícil de ser
compilado, pois as opiniões a respeito do regente real eram muito diversas.
Havia em Tulma uma verdadeira divisão de opiniões, onde um lado o
apontava como salvador máximo, líder supremo e inovador, visionário,
dentre outras coisas. Outros preferiam vê-lo como um homem fraco, covarde,
de ambição apagada. Eu mesmo tive pouco – ou nenhum – contato com
Silkai, mas creio ter sido suficiente para formar minha própria opinião.
Era quase meio-dia e toda a cidade estava em polvorosa. As ruas
apinhadas de papel picado, grãos de arroz e milho, fitas coloridas e músicos
cantando rimas na praça. Os estábulos haviam sido limpos, todos deixados
sem o menor sinal de esterco. Os cavalos de pelo lavado e escovado
transportavam soldados em ronda, marchando pomposamente. Barracas de
iguarias fumegantes eram postas lado-a-lado, cercando vias inteiras.
Moradores humildes e pobres usavam suas melhores roupas por cima da pele
suja e pegajosa. No anel inferior de ruas, próximo ao nível do mar, uma
chuva de pétalas cobria os ladrilhos de pedra por toda sua extensão.
Lá no alto da colina, onde assentava-se a região civil da capital, o Salão
de Interesses, um prédio quase suplementar ao palácio branco, estava
apinhado. Os três camarotes elevados quase vomitavam as pessoas que se
acotovelavam e empurravam, lutando para ter uma chance de ver o
acontecimento da década. Era o dia do noivado de Silkai. Tulma ganharia
uma rainha, depois de anos de tentativas.
O próprio rei não andava bem e isso era nítido. Havia recebido, não fazia
muitas horas, a notícia dos primeiros batedores, avisando que o navio da
princesa já cruzara os domínios da capital. Seria a fusão dos reinos de Tulma
e Pava, o país das Pontes Baixas, ao sul. Nesse momento, Silkai estava
perdido em devaneios em seus aposentos reais. Conferia o estado das unhas
das mãos, enquanto suas duas amas-de-crina seguravam as pontas de seus
longos cabelos, de quase dois metros de comprimento. Uma vastidão de fios
delgados, brancos e brilhantes. Uma terceira ama tratava de escovar cada
mecha com uma escova de lã retangular.
Num descuido, uma das amas deixou que uma porção ínfima de cabelos
caísse de suas mãos e tocasse o chão. As duas colegas levaram as mãos à
boca, em espanto, mas Silkai não percebeu, parecia mais preocupado agora
com os pelos dos nós dos dedos, que já começavam a nascer de novo. Se ele
tivesse notado o desleixo da moça, seriam necessárias mais três ou quatro
horas para refazer a lavagem.
– Acabaram? – perguntou ele, distraído, ajeitando a fina tiara de
diamantes na testa.
– Os cabelos, sim, Majestade – respondeu a que segu-rava a escova,
olhando de soslaio para as outras, que já haviam recolhido a mecha no chão.
– Ainda tenho de polir a túnica, se me permitir.
Ele abriu os braços e tombou a cabeça para trás.
– Andem depressa, por favor. Ainda tenho muito o que fazer, e os homens
de Pava não são conhecidos por sua paciência.
– Majestade Silkai? – sondou a voz abafada do guarda, vinda do corredor.
– O novo mestre gostaria de esclarecer algumas dúvidas. Posso deixar que
entre?
– Alguém me afogue em azeite quente – gemeu o rei, baixinho. – Esse
homem é insuportável.
As amas tentaram disfarçar as risadas.
– Abra e deixe que ele entre! – ordenou Silkai.
O mestre de cerimônias entrou então no quarto. Era um homem magro, de
meia-idade, com cabelos falhados e alaranjados, e também barbicha e bigodes
pontiagudos. Usava um manto marrom com calças verdes e exibia um
constante sorriso no rosto, como se suas bochechas houvessem sido
esculpidas em pedra-sabão.
– Majestade Silkai Crina-da-Alvorada! – começou ele, com a impostação
de voz irritante que o rei já conhecia. – Permita que eu me apresente
formalmente, se é que isso é possível. Imagine, algo tomar forma em face do
próprio rei branco. – Ele se virou para as amas, com uma piscadela. – A
palavra formal implica forma, senhoritas, se permitem a piada.
– Não é necessário. – respondeu Silkai, sem abrir os olhos ou mover a
cabeça. – Nos falamos ontem e, apesar de não parecer, ainda tenho a memória
intacta. Podemos ir direto ao assunto?
– Pois não poderia ter dado ideia melhor, Vossa Majes-tade Lúrida.
Venho no ápice de minha humildade dar meu parecer sobre os arranjos do
banquete. Pelo que ouvi dizer nos corredores, o senhor optou por servir
galetos na maçã e frutos do mar com alcaparras e azeite. Seria impossível
protestar contra sua decisão, uma vez que ela só pode ser a voz dos deuses
manifestada em seu glorioso corpo humano. Mas é de meu ofício e profissão
ter a perspicácia para observar que essa pode não ser a melhor combinação
para um evento de tamanha magnitude. Veja bem, senhor; já que os mariscos
são leves o suficiente para uma digestão mais rápida...
– Qual é mesmo seu nome? – interrompeu-o Silkai. A voz seca como as
areias do deserto.
O homem sorriu e fez uma vênia teatral. Se ficou incomodado com a
interrupção, não demonstrou.
– É normal que tenha se esquecido, uma vez que tal mente brilhante
certamente está ocupada o tempo todo com os mistérios indecifráveis do
universo. Sou o mestre Fleros, Majestade. Graduado e instruído pelas mãos
diretas de...
– Mestre Fleros, terá alguma dificuldade em conseguir os pratos que
escolhi?
– Absolutamente não, Majestade. Não posso imaginar qualquer empecilho
na aquisição de algumas centenas de galetos. Devo acrescentar, inclusive, que
os frutos do mar foram pescados nessa mesma...
– Então o que estamos discutindo? – Silkai abriu os olhos e o fitou, sem
expressão.
Fleros engoliu a seco e pigarreou.
– Absolutamente nada, Majestade Lúrida. Peço... permissão para
continuar meu trabalho.
Quando Fleros saiu, Silkai aguardou um tempo até que ele se afastasse o
suficiente. A última coisa que desejaria nesse dia era ouvir novamente a voz
esganiçada do homem. O rei virou o pescoço para trás, conferindo se as amas
seguravam firme seu cabelo no ar e sinalizou para que mandassem abrir a
porta. Ele já passava pelos guardas e virava o corredor quando elas saíram do
quarto, suspendendo seus cabelos.
***
No salão de refeições não foi muito melhor. Era um aposento largo e
espaçoso, e a mesa enorme fora montada em forma de meia-lua, coberta de
ponta a ponta com uma toalha branca de bordados azuis. Parecia ser capaz de
acomodar duzentas ou trezentas pessoas. Todo o corpo de funcionários estava
em pé, com as mãos postas atrás das costas, prendendo nervosamente a
respiração enquanto o rei passava, acompanhado de suas amas. Ele olhava
cada jogo de prataria e talher arranjado sobre a mesa. A cada passo, sua
careta ficava pior.
– Não, não, não – resmungava ele, balançando a cabeça. – Não foi isso
que pedi.
Um dos empregados arriscou:
– Mas, Majestade, os conjuntos com rubi são para trinta pessoas. Como
poderíamos...
– Não me conteste, Stenn!
O homem baixou a cabeça enquanto o rei se aproximava dele, ainda
falando:
– Planejamos o evento há mais de um mês e nenhum problema me foi
apresentado. Eu listei desde o início os itens adequados para a chegada da
princesa e só agora me dizem que não havia o suficiente?
– Eu sinto muito, Majestade. Deveríamos ter enco-mendado outras
remessas. Sabemos da importância do evento.
Silkai agitou os braços e uma das amas quase tropeçou tentando evitar
que seus cabelos caíssem ao chão.
– Não, não sabem! Essa será a coroação da primeira rainha-em-união nos
últimos três séculos. Será a primeira mulher no trono desde que minha mãe
morreu!
Os empregados, em sincronia, levaram as mãos direitas na testa e
inclinaram os joelhos, em memória da antiga rainha.
– Stenn – continuou o rei –, não deixe que estraguem tudo, é só o que eu
te peço.
Quando o rei saiu com suas amas, os cozinheiros começaram a cochichar:
– Acha que ele se dará bem com essa? – perguntou um gordo. – Dizem
que a última não aceitou os termos do casamento e foi mandada embora às
escondidas no meio da noite.
– Eu pensei que ela havia adoecido – observou outro.
– Não, isso é o que querem te fazer acreditar. Se querem saber minha
opinião, acho que o rei nunca se entenderá com alguém. Podem mandar vinte
pretendentes e todas vão encontrar um motivo para nunca mais voltar.
– Não sei... – grunhiu uma colega desdentada. – Mas, de fato, ele anda
com um humor muito tempestuoso nos últimos tempos. Uma rainha o fará
bem, no fim das contas.
– Se tivermos sorte...
***
No momento em que o povo nas ruas começou a correr para as docas,
sabia-se que era chegada a hora. Quando o sol começava a tombar para as
montanhas, o navio avermelhado despontou no horizonte e a comoção foi
absoluta. Curiosamente, quanto mais perto a embarcação chegava, mais a
multidão se emudecia, como se tentasse ouvir as conversas vindas do convés.
Como se já especulassem qual seria o tom de voz da nova rainha. Falava ela
de forma aveludada, mesclando-se ao ritmo cadenciado de Silkai, ou seria
uma matrona de timbre áspero e pragmático, formando com o rei um tempero
agridoce? Seria bela e imponente como as altas amazonas do sul, ou, quem
sabe, teria a pele leitosa e aveludada de uma princesa das regiões geladas?
Preferiria um povo obediente e adestrado ou se interessaria ela por cidadãos
de pensamento livre e criatividade aflorada?
Quando já era possível ver o brasão de Pava nas velas do navio – um
círculo vermelho envolvendo um círculo negro menor –, a multidão já lutava
para não fazer barulho com suas respirações e farfalhar de roupas.
A princesa surgiu na balaustrada e olhou tímida para a população. Mesmo
à distância, era possível distinguir nela alguns detalhes. Ela tinha os cabelos
vermelhos como fogo presos numa pesada trança. Era magra e esguia,
exibindo sobre os ombros a elegância das grandes mulheres de comando. A
túnica prateada, discreta, balançava ao sabor do vento, revelando uma
silhueta firme e austera. A população geral julgou-a perfeita, mas tenho a
impressão de que o fariam de qualquer forma.
Surpresa pela recepção, a princesa abriu um sorriso de dentes imaculados
e acenou. Alguns murmúrios satisfeitos brotaram aqui e ali e, em poucos
segundos, tornaram-se um coro animado de boas-vindas, com vozes
retumbando dos quatro cantos do cais. Leona era seu nome. Filha do Rei
Felix II, regente real de Pava.
Pouco depois, ela descia, apoiada pela tripulação, e era colocada em uma
carroça real. Não teve muito tempo de conversar com a infinidade de pessoas,
e limitou-se a lançar gestos e sorrisos, fazendo seu melhor para retribuir a
simpatia que a ofereciam. Pouco depois, a carruagem começava a subir as
ruas, puxada por dois cavalos brancos, e levada até a fortaleza de Silkai. A
multidão seguiu, excitada, recebendo mais sorrisos e acenos da nova rainha.
A escolta da princesa, composta por uma meia dúzia de soldados, todos
vestindo armaduras de cor magenta, seguiu logo atrás.
***
A primeira formalidade seria o jantar em companhia do rei e sua cúpula
política e mercantil. Silkai providenciou para que Leona e seus seis soldados
recebessem os melhores lugares a seu lado quando chegassem. Infelizmente,
ele não teria a chance de mostrar sua hospitalidade ao rei Felix, pois este
estava em campanha militar nas terras secas do sudoeste e não pôde
comparecer. Após o banquete de coroação formal, a princesa seria
encaminhada para o Salão de Interesses, onde realizaria, junto do rei, a
proclamação pública de sua união.
Silkai estava sentado no centro da mesa principal, com as mãos
repousadas sobre ela. Suas duas amas seguravam seus cabelos logo atrás,
sentadas em cadeiras de espaldar alto, com estofados revestidos em camurça.
Dezenas de candelabros dourados ornavam toda a extensão da toalha bordada
e, acima de suas cabeças, havia um lustre com quase o diâmetro de uma roda
de moinho. Os bardos e atores, espalhados pelo salão, afinavam seus
instrumentos. Os empregados do castelo, e também as copeiras, ajeitavam os
uniformes novos com grande expectativa. Já era hora e o rei olhava para a
porta sem piscar, esperando o momento em que Leona entraria. Já chegara a
seus ouvidos que ela era dona de beleza impecável e carisma contagiante,
algo que ele só acreditaria vendo.
Ele quase teve um sobressalto quando bateram na porta do salão. Com um
gesto da impecável mão, ele mandou que abrissem as folhas de pinho maciço,
e foi então que ele a viu pela primeira vez.
Com uma mistura indecifrável de sentimentos, ele concluiu que não
havia, de fato, exagero algum nos boatos. Leona era a definição da mais
sublime perfeição. Os cabelos brilhantes, agora presos em um coque e com
mechas soltas de forma atrevida sobre as orelhas, eram labaredas vivas. As
sobrancelhas contornavam com delicadeza e personalidade os olhos grandes e
inteligentes, de cor âmbar. O nariz, discretamente apontado para cima, e os
lábios cheios num sorriso, seriam capazes de desconcertar qualquer mestre da
oratória em uma tribuna. Preenchendo o salão com um bonito compasso, o
corpo magro caminhou pelo salão com passos firmes e determinados, sem
nunca perder o toque de quem respeita terras estrangeiras. Quando ela se
aproximou do rei e fez uma reverência, entrelaçando os dedos, Silkai prestou
atenção em suas unhas. Tinham um comprimento ousado, com as pontas
arredondadas, e eram pintadas de dourado com riscos verdes.
– Majestade – disse ela, numa voz firme de contralto.
Silkai se lembrou de piscar e fechar a boca.
– Princesa Leona. – Ele se levantou abruptamente, mas as amas eram bem
treinadas e não deixaram os cabelos escaparem das mãos. – Peço que perdoe
a humildade com que a recebemos. Antes de mais nada, gostaria de dizer que
é um imenso privilégio tê-la em nossas terras pela primeira vez.
Ela não podia ser real.
A princesa abriu então seu mais largo sorriso e estendeu a mão de unhas
perfeitas para que o rei beijasse:
– A humildade mais estonteante que já me recebeu. Eu não me lembro de
ter visitado um lugar mais bonito e alegre, Majestade.
O rei deu um beijo curto em sua mão e foi como se um bando de aranhas
de patas compridas começasse a passear pelas paredes de seu estômago. Ele
rapidamente acenou para seus empregados:
– Rápido, providenciem para que a princesa e sua escolta sintam-se em
casa. – Lançou um olhar firme, mas não grosseiro para as copeiras: – E
comecem a servir!
O mestre Fleros bateu duas palmas animadas e os bardos tocaram as
primeiras notas de abertura em suas rabecas e alaúdes. O banquete da nova
rainha começava.
Silkai mostrou-se – para a surpresa dos que o conhe-ciam há anos – muito
prestativo, durante toda a cerimônia. Servia a princesa com as próprias mãos
e ela dava sinais de que se divertia com sinceridade. Quando a mesa
acumulava sobras, ele ordenava para que rapidamente a limpassem e
trouxessem mais comida. O vinho parecia nunca ter fim e não preciso dizer
que, a certa altura, o rei começou a ficar com os reflexos um pouco alterados.
Em determinado momento, ele se levantou da mesa, nauseado e
cambaleante. Quando tropeçou numa das cadeiras, metade de seus cabelos
roçaram numa travessa gordurosa de galeto assado. Sem se importar, e já
com o rosto tomando uma coloração amarelada, ele correu na direção da
latrina, sem dar tempo para que suas amas a o acompanharem. No caminho,
num dos corredores atapetados, ele esbarrou sem querer em um soldado alto e
por pouco não foi derrubado no chão.
– Majestade, perdoe-me – disse o homem de voz familiar, acudindo-o
com as mãos fortes. – Eu devia ter prestado mais atenção.
O rei, com um joelho encostado no solo, olhou para cima e deu um
sorriso, recompondo-se. Os cabelos, espalhados de qualquer maneira,
formavam um tapete branco no piso do corredor.
– Comandante Hillel! – Era um dos homens de maior confiança no reino,
e que em breve sairia com um batalhão em uma importante missão. – Acho
que bebi um pouco além da conta. Está gostando da festa?
– Acredito que essa é uma pergunta a ser feita a si próprio, Majestade. –
Disse Hillel, com suavidade. Os braços dele não moviam-se um só
centímetro, amparando o rei, que espalmava as mãos. – O senhor está
apreciando tudo até agora?
Silkai apoiou-se nos ombros do comandante, e com lentidão, chegou bem
perto do ouvido dele.
– Ela... é... linda – sussurrou ele, com um tom indecifrável.
Hillel o encarou de volta, com a expressão séria de quem já ouvira aquilo
dezenas de outras vezes.
– Está certo disso, Vossa Majestade? – perguntou o comandante, quase
implorando com a voz, mas sem perder a compostura.
Silkai girou sobre os calcanhares, fazendo menção de continuar andando,
e o encarou, disparando na direção dele com o olhar. Por um momento, a cor
voltara a seu rosto.
– Extremamente linda, Hillel. – ele respirou fundo, mas sem parecer
padecer-se muito. – Sabe o que fazer. Essa festa, infelizmente, terminará
agora. Falarei com meus homens para que providenciem a viagem de volta.
O comandante fez relutantemente um gesto afirmativo com a cabeça.
– Entendido, Majestade... cuidarei para que a população seja informada
sem quaisquer contratempos.
Sem dizer qualquer outra palavra, os dois se afastaram. As amas
chegaram apressadas e levaram o rei até a latrina, para que vomitasse.
***
Já era quase noite quando o rei entrou no Salão de interesses, pelo anexo
do castelo, onde seria feita a procla-mação para o público. As primeiras
tochas e candelabros já eram acesos, lançando faixas de luz tremeluzente por
sobre o piso banhado em cobre. A multidão havia sido mantida entretida com
toda sorte de espetáculo circense e teatral, mas já não via a hora de receber o
anúncio do noivado em pessoa. De um canto escuro, ele deu uma boa olhada
no local. As arquibancadas centrais estavam absolutamente lotadas e os três
camarotes superiores pareciam querer desabar a qualquer momento. Não seria
possível inserir um bebê de colo na plateia, de tão acumulada.
– Queremos a rainha! – gritava alguém.
– Leona terá o reinado mais próspero de toda Virídea! – berrou uma
mulher, já bêbada.
– O rei e a rainha! Que vivam eternamente!
Na tribuna central, uma passarela de velas foi acesa, anunciando a
chegada do mestre-de-cerimônias. O juiz supremo, um homem de cabelos
brancos cortados curtos, caminhou até o púlpito e o povo começou a aplaudir,
excitado. O juiz ergueu as mãos, pedindo silêncio, até que finalmente
começou o pronunciamento:
– População de Tulma e regiões periféricas – sua voz não exibia alegria, o
que chamou a atenção dos ouvintes mais experimentados –, hoje é um dia de
muito júbilo, pois recebemos para o banquete de noivado a princesa Leona,
futura rainha da capital!
A multidão vibrou, tremendo as estruturas de madeira das arquibancadas.
O homem continuou:
– Temos a promessa de uma união duradoura e feliz, como poderão ouvir
do próprio rei. – Ele sinalizou com a mão e o rei foi escoltado pelas amas até
a tribuna, sob aplausos ensurdecedores. – Silêncio, por favor... silêncio. Devo
dizer, porém, que as coisas não ocorreram essa noite como era esperado...
– De novo? – gemeu alguém, na plateia.
– Silêncio! – rosnou outro, na mesma fileira.
– ...O próprio rei Silkai tem algumas palavras que gostaria de
compartilhar. Atenção, povo de Tulma! – O juiz ergueu a mão. – Todos em
pé para o pronunciamento real de Sua Majestade, o Rei Silkai Crina-da-
Alvorada!
O local foi tomado de completo silêncio enquanto o rei se encaminhava
para tomar a palavra. As duas amas se posicionaram logo atrás, formando
uma curva de aspecto dramático com os longos cabelos.
– Podem se sentar – comandou o rei a todos. – Antes de mais nada, quero
agradecer a presença do sempre fiel povo da capital por ter dedicado as horas
de seu dia em prol dessa celebração. O banquete de noivado foi um absoluto
sucesso!
As arquibancadas tremeram em aplausos. O rei esperou até que
terminassem, antes de continuar:
– Contudo, parece-me que os costumes da princesa, que vem de terras
muito diferentes, não se alegraram com nossos modos no comer e beber.
Aparentemente, ela se sentiu mal e está em repouso, sob cuidados médicos na
própria câmara real.
– Oh, não – choramingou uma criança na plateia, levando, em seguida,
um tapa de sua mãe.
– Quero reforçar a todo vocês – seguiu o rei –, que um incidente tão pífio
não tirará o brilho dessa ocasião. Leona será a nova rainha, ajudando-nos a
manter a sagrada linhagem que há tantas décadas protege e trabalha pelo
povo da capital!
O local explodiu novamente em ovação. Vinham assobios de aprovação
de um lado da câmara, palmas ensurdecedoras e um bater de pés ritmado em
outro.
– Leona será encaminhada para suas terras essa madrugada, em total
discrição, onde se recuperará sob a tutela de seu pai. Mas não deixem que
seus espíritos se desanimem! Em trinta dias teremos a celebração do
casamento. Tulma tem uma nova rainha!
A orquestra voltou a tocar.
***
Três dias após o pronunciamento real, numa madru-gada, Silkai descia,
sem suas amas, e andava pelos corredores do castelo. Seus cabelos estavam
presos com fitas de couro, de modo que não arrastassem pelo chão. Ele
desceu uma escada em espiral, num corredor escuro e mal iluminado,
contornou o quintal escuro, onde se deparou com uma porta com grades de
metal, guardada por dois soldados. Sem dizer uma palavra, eles abriram a
porta e se afastaram, dando passagem ao rei. Àquela hora, só se ouvia o
cricrilar dos grilos e demais insetos noturnos. Um ocasional latido abafado
vindo das partes mais baixas da cidade, mas nada mais. Ouvindo a própria
respiração, ele deu em outro corredor, muito mais frio e escuro, onde as
paredes eram repletas de tochas apagadas. Ele apanhou uma delas com as
mãos, acendeu-a no caldeirão e enxergou o corredor da prisão. O túnel fazia
uma curva à direita e era para lá que seguiria.
Passou por uma parede repleta de celas, a maioria vazia, e deparou-se
com uma porta de madeira, do lado oposto do último cárcere. Desceu um
lance de escadas até o subsolo, onde havia mais um guarda vigiando uma
porta. O soldado fez uma reverência e também deu passagem ao rei, abrindo
a porta para a saleta.
Quase que instantaneamente, veio um cheiro podre de sangue, urina e
dejetos humanos, invadindo as narinas de Silkai. Ele fez uma careta e
caminhou pelo aposento. Era uma sala pequena e sombria, as paredes frias e
cheias de mofo, com duas celas de metal enferrujado num dos cantos. Ele
caminhou até a mesa de madeira no centro e apanhou um candelabro com
uma única vela acesa. Um vulto careca e magro se retorcia em uma das celas.
– Por favor... – choramingou a figura sofrida, com voz fraca.
Silkai ergueu a vela e caminhou até a grade, vendo de forma mais nítida o
que restou da princesa Leona. Ela tinha a cabeça raspada, cheia de
hematomas; o nariz quebrado e sangue seco colado sobre os lábios. Estava
nua e parecia muito mais magra que o normal, era possível contar o número
de suas costelas. Ao ver o rei, ela começou a chorar e agarrou as barras de
metal.
– Tire-me daqui, por favor! Por que está fazendo isso?...
Silkai, que parecia não ouvir os lamentos, tombou a cabeça e olhou por
um longo momento para as unhas dela. Estavam trincadas, as pontas dos
dedos raladas, mas ainda exibiam um bonito brilho dourado. Ele sorriu e
apanhou uma minúscula faca em sua cintura. A outra mão entrou no bolso e
retirou um molho de chaves.
– Achei suas unhas muito bonitas...
– Não! Não! Não! – Ela começou a se debater, sem forças.
– Muito, muito bonitas.
5 – RONCO, TREMOR E TERRA
Nil já não podia sentir as pontas dos dedos, de tão frias. Nem mesmo a
manta de peles que jogara por cima da armadura ajudava contra o frio
impiedoso das Geleiras. Se soubesse que seria tão desgastante fisicamente,
não teria aceitado se alistar para a Ordem, em primeiro lugar.
O céu era branco e maciço, como uma espessa nuvem de verão, e, mesmo
três ou quatro horas depois do nascer do sol, o ambiente era sombrio, envolto
em penumbra. Os flocos de neve eram trazidos no ar com violência,
arranhando as bochechas rosadas do soldado. Fazendo-o lamentar, a cada
segundo, ter sido o primeiro a se levantar quando Forg tocou a corneta. Agora
tinha uma tarefa. Como se tentar manter-se vivo não fosse trabalhoso o
suficiente.
Com um magro feixe de gravetos apertado contra o peito, ele procurou,
em meio à neve fofa, um lugar mais firme para pisar e deu uma boa olhada no
acampamento. Os soldados pareciam estar bem assentados, como se
estivessem fazendo das regiões baixas da montanha sua nova casa. Quase
como se não pensassem em levantar as barracas e seguir com a expedição,
quando a nevasca se abrandasse um pouco. Pelos quatro, ainda estavam nas
bases das montanhas!
Reparou nos rostos dos soldados, que apesar do vento frio afiado como
navalha, tinham expressões quentes, animadas. Se houvesse mensagens
escritas em suas testas, leria que mal podiam esperar para colocar logo as
mãos no rei dos dragões. Nil, obviamente, não gostava nem um pouco da
ideia. Não só pelos perigos evidentes em se engalfinhar com uma criatura
monstruosa, mas em como isso não soava certo em seus ouvidos. Pelo que
sabia, Corff era uma balança na ordem natural das coisas; mais que um
simples dragão. Era uma espécie de deidade no reino das criaturas. Nil podia
não ser o mais esperto do grupo, e era, de longe, o mais despreparado, mas
disso podia ter certeza: não havia possibilidade de sair algo de bom dessa
missão.
Seus pés encontraram um pouco de cascalho quando pisou na clareira do
acampamento. Com o rosto abaixado, quase como se quisesse sempre passar
despercebido pelo grupo, ele atravessou as discretas trilhas de grama gelada e
procurou se afastar, aos poucos. Enquanto caminhava, passando pelas rodas
de soldados, podia ouvir todo tipo de conversa. Sussurros confidentes de um
homem a outro, que gostaria de matar não-sei-quem, ou alguma proeza
impossível com mulheres dos bordéis ou com a esposa de alguém. Saía vapor
de suas bocas quando gargalhavam e suas barbas eram cobertas de neve
limpa, que ia se misturando à poeira e oleosidade da pele, formando uma
camada de lama sobre as bochechas. Como podiam se divertir em situação
tão desconfortável?
O acampamento cheirava como uma feira ao final do dia: cerveja
envelhecida, peixe azedo, urina e suor. De vez em quando subia no ar um
aroma adocicado do tabaco de cachimbo queimado e isso, pelo menos, era
agradável. Umas das poucas atividades masculinas que não lhe pareciam
completamente desagradáveis.
Apesar de parecerem estar em completa desordem, os soldados
mantinham algum resquício de disciplina ordeira. Quando mais ao longe, Nil
podia notar que os três grupos estavam bem separados e dispostos, mantendo
atividade e interação entre si: trinta e sete homens sob o comando de Habass,
trinta e sete sob as ordens do veterano Forg e outros trinta e sete à disposição
de Zano, grupo do qual ele mesmo fazia parte. Ainda não havia visto o
comandante Hillel, mas isso não era incomum. Ele sempre desaparecia com
seus seis homens de confiança para traçar a rota dos dias seguintes. Às vezes
saíam antes de o sol nascer e só voltavam quando escurecia. Isso era bom,
pois assim o comandante não o via com frequência.
Em um lugar mais silencioso, Nil parou de caminhar. Era um terreno
plano, na beira de um agrupamento de pinheiros, e parecia ter menos
incidência da brisa gelada. Seria um bom lugar para fazer a fogueira do
almoço. Infelizmente, não podia cuidar da comida, pois essa era uma tarefa
dos homens de Habass. E mesmo estando ainda no início da campanha, ele já
não podia mais suportar as sopas repulsivas dos cozinheiros. À distância em
que se encontrava, as conversas dos homens já ficavam um pouco mais
distantes; não podia identificar a enxurrada de palavrões que saía de suas
bocas e achou bom.
Ele deixou o feixe de lenha desabar no chão e espal-mou as mãos. Queria
poder coçar a nuca, mas as farpas na luva iam piorar a coceira. Não devia ter
cortado os cabelos assim, tão curtos. Demoraria meses até se acostumar com
o estilo militar.
Enquanto se abaixava, procurando uma superfície mais lisa onde poderia
iniciar a fogueira, ouviu o barulho das mulas. Elas estavam amarradas não
muito longe dali, as seis. Não pôde deixar de pensar em como seria bom
montar em uma delas e desaparecer, mas não teria coragem. Mulas não eram
rápidas e ele não era lá muito corajoso. Achou melhor começar a ajeitar logo
os gravetos no chão, pois o colega Labal chegaria logo para aporrinhá-lo.
Escolheu um pedaço de madeira bem curto para trabalhar mais tarde com a
faca e guardou-o no mesmo saquinho onde ficavam as pedras de pederneira.
Pensou no que esculpiria em seguida, enquanto ele não aparecia.
Um dia de cada vez, Nil... Um dia de cada vez.
***
– Vejo que hoje está menos lerdo que o de costume, Joelho! – a voz
engrolada e inconfundível de Labal violentou seus ouvidos, fazendo Nil
quase cair da pedra onde estava sentado.
– Você demorou, velhote – respondeu Nil, sem tirar os olhos do pedaço
de madeira nas mãos. – E não gosto desse apelido, já disse antes.
Labal se aproximou carregando um fardo enorme de madeira e, antes
dele, veio seu cheiro. Repulsivo. Era um homem alto, com um volume
considerável na região abdominal, e mãos grandes e ásperas. Da cabeça
brotavam moitas de cabelo encaracolado que quase se encontravam, pois o
topo era liso feito pedra polida. Uma barba espessa, que devia estar com o
triplo do peso devido às camadas extras de gordura e lama, e alguns dentes
faltando na boca. Nil diria que era um dos homens mais feios do mundo, se
pudesse apostar. Mas, por alguma razão, gostava dele. O exato oposto de si
próprio, que era magro, de feições suaves e rosto sem barba, como se
estivesse destinado a viver a vida toda com o aspecto de um adolescente.
O homem deixou sua braçada de lenha desabar no chão e os pedaços
rolaram para os lados, desmanchando todo a estrutura que Nil trabalhara com
os gravetos.
– Ei! – protestou Nil, largando no chão o que esculpia. – Seu saco de
banha, veja o que fez!
Labal abriu um sorriso falhado, deu dois tapas na própria barriga e
começou a recolocar a lenha no lugar. Catava algumas e deixava cair outras,
piorando a bagunça.
– Contra a morte... não há forte – declamou ele, insis-tindo jovialmente
com a lenha espalhada. – Para o resto, sopa e sono!
– Deixe que eu ajeito isso, seu atrapalhado – inter-rompeu Nil, com
vontade de rir. – Pode voltar para o grupo e eu cuido do resto aqui. Eu
gostaria que ficasse para me divertir com suas fofocas, mas tenho medo que
me derrube no chão também.
– Não vai se livrar de mim tão facilmente, aprendiz – falou ele,
abaixando-se e apanhando o pedaço de madeira em que Nil esculpia. – Vejam
só... o que é, dessa vez? Um cabo de espada?
– Deixe isso aí, Labal! Que coisa!
Labal ergueu o objeto no ar para que Nil não o alcançasse e ficou
observando os detalhes do trabalho do rapaz na madeira.
– Ah, agora vejo. É um cetro real. Olhe, meu rapaz, sou obrigado a dizer
que está muito bem feito. Muito bom, realmente. Para quem trabalha com um
canivete seco, incapaz de castrar um gato, você tem feito um excelente
trabalho. Na minha terra diriam que você tira “sumo da pedra”.
– Obrigado... acho. Agora pode me devolver? Ainda não acabei.
Labal atirou-lhe o pedaço de pau e virou a cabeça em direção ao
acampamento:
– Onde se meteram os cozinheiros? Já passou da hora da primeira leva de
sopa.
– Como pode ansiar por aquele grude malcheiroso? Meu estômago
começa a dar voltas só de pensar.
– É excelente para engomar a barba! – Labal gargalhou. – Você não
aprecia porque ainda não tem idade para isso, Joelho.
– Pois saiba que sou mais velho do que parece – Nil empertigou-se. –
Acontece que a natureza resolveu distribuir meus atributos sendo mais
generosa no emprego da inteligência.
Labal escarrou e cuspiu no chão. Abriu um sorriso largo e abaixou-se
novamente, voltando a recolher a lenha:
– Você não é burro, Joelho. Mas ninguém é mais esperto que o velho
Labal aqui.
Nil já começava a rir quando ouviu barulho de panelas batendo. Eram os
cozinheiros de Habass. Vinham quatro deles. Dois carregando enormes
caldeirões e os outros dois trazendo sacos cheios de banha de porco picada,
toucinho, linguiças e batatas. Com dor no coração, Nil pensou em como todas
aquelas delícias seriam desperdiçadas na próxima hora, pelas mãos dos
gordos incompetentes.
Quando estavam próximos o suficiente para serem ouvidos, um deles
berrou:
– Labal, o que anda fazendo, que até agora não acen-deu a fogueira?
Labal levantou-se com humildade na postura e descul-pou-se:
– Foi tudo minha culpa, peço perdão pelo atraso. Vim ajudar o jovem
Joelho aqui, que derrubou e espalhou toda a lenha. Em dois minutos vocês
terão uma fogueira tão vigorosa quanto a de centro de roda, no solstício.
– Ei, seu... – começou Nil, mas desistiu antes de continuar. Seriam melhor
que pensassem nele como um imprestável, e assim ninguém o chamaria para
mais nada nos próximos dias.
***
Depois de se alimentar todo um batalhão de uma centena de homens,
qualquer cenário se transforma drasticamente. Todo o local parecia um antigo
campo de guerra, tirando o fato de que, dessa vez, não havia sangue ou
corpos espalhados pelo chão. Bem, muitos soldados já dormiam, roncando
alto, mas não contam necessariamente como cadáveres. Havia tigelas vazias e
colheres distribuídas por toda a área, e a camada de neve, antes branca e
imaculada, agora era uma mistura de grama revolvida e lama escura.
Alguns soldados aproveitaram a nevasca para se embebedarem, e
sacavam alaúdes, saltérios e cornetos sabe-se lá de onde, para tocarem suas
músicas desafinadas. Outros, mais envolvidos com a missão em si,
agrupavam-se para discutir sobre as dificuldades dos dias que viriam. Nil,
ajudando a recolher os objetos da algazarra, não precisou ouvir muito, visto
que era evidente a discordância entre os grupos dos três capitães.
– Não me venha com essa, Marfel! – grasnou um homem mais velho, de
barba grisalha. – Eu nunca disse que não faria o que foi combinado. Apenas
defendi minha posição, pois fui treinado nessa área. Conheço os riscos
envolvidos em se cortar mato por lá. É mais rápido? Sim, mas a vida dos
homens vem em primeiro lugar.
– Estão vendo? – Marfel levantou-se, indignado. – Belus sempre vem com
essa conversa mansa, dissimulada, plantando nessas cabecinhas inocentes...
isso mesmo, a de vocês! Plantando a semente da discórdia! Eu nunca
coloquei a segurança do batalhão em segundo plano, isso é um ultraje! Tenho
toda uma história pendurada em meu traseiro, como a rabiola de uma pipa!
– Todos nós ouvimos, Marfel... foram suas palavras.
– Ah, cale-se, Belus! – berrou um dos soldados. – Eu sigo o Tenente
Marfel desde que éramos da vanguarda da capital. Ele nunca diria uma coisa
dessas. Você, por outro lado, nunca teve um grupo leal a seu comando. Te
presto as devidas reverências, mas não ofenda nossa inteligência, por favor.
A última coisa que precisamos é de alguém que nos parta o moral antes
mesmo de subirmos as encostas!
– Isso é outro erro! – dessa vez falou um dos soldados de Habass. – As
encostas são muito perigosas, devíamos procurar subir pelas colinas, onde
não há os carniceiros brancos, que esqueci o nome.
– Carcajus-albinos! – respondeu alguém.
– Não seja idiota, rapaz! Subir pelas colinas é suicídio! As Geleiras são
vigiadas por condores gigantes! E eles não contam só com os olhos aguçados
para nos avistar... acredito que até mesmo esses malditos ratos descorados da
baixada dão um jeito de nos delatar a eles.
– Que nos detectem! – berrou Belus. – Temos cento e vinte homens!
Contra o quê? Cinco ou seis pássaros comedores de carniça? Ah, não me
envergonhem, por favor! Somos a elite da capital, isso deve servir de algo,
não?
A corneta de Forg tocou uma nota estridente, incômoda, fazendo até os
músicos bêbados pararem suas atividades. Todos os olhos se viraram para ver
os três capitães, lado a lado, assistindo a toda a discussão.
– Já bateram boca o suficiente, seus inúteis? – sua voz era uma trovoada
escura, num ambiente que já não estava muito alegre. – Não tem sequer o
mínimo de respeito enquanto os capitães estão em conferência? Crianças me
dão nojo, sabiam disso? Por isso usam babadores e precisam o tempo todo de
amas. – Ele virou-se para o homem a seu lado. – Capitão Zano, gostaria de
tomar a palavra?
Zano encarou o batalhão com uma expressão de desgosto no rosto.
Levantou discretamente a mão direita e sua unidade se levantou, afastando-se
das outras duas. Nil largou as tigelas no chão e juntou-se a eles,
apressadamente. Labal, subordinado a Forg, permaneceu no lugar. Ao ver seu
grupo alinhado, em posição de sentido, o capitão ergueu um pouco o queixo e
soltou a voz, fria como uma vara de ferro:
– Homens de Zano! – Esperou que todos prestassem reverência. –
Amanhã, conforme o tempo permitir, tratarão de abrir caminho pelos
pinheiros. Quero a infantaria abrindo uma picada enquanto os arqueiros se
encarregarão do estoque de comida. Caçarão tudo o que se mover diante de
seus olhos. Se uma fruta balançar, ameaçando cair do pé, levará uma
flechada. À medida que subimos as geleiras, o terreno ajudará, visto que não
teremos tantas partes acidentadas. Chegará um momento da expedição em
que só teremos de atravessar dunas de neve e, nessas horas, homens, contarão
com o que têm em suas mochilas para sobreviver. Alguma pergunta?
Nenhuma. Nil, claro, tinha muitas, mas nenhuma delas deixaria o capitão
feliz. Ele continuou:
– O comandante Hillel e seus seis batedores trarão, em breve, as próximas
coordenadas. Ele as repassará a todo o batalhão e quero meus homens prontos
para levantar acampamento tão cedo ele fechar a boca. Estamos entendidos?
– Sim, senhor, Capitão Zano! – responderam em coro.
– Estão dispensados. Recreiem até a volta do coman-dante.
Nil esperou seu grupo afastar-se aos poucos e ficou parado, onde estava.
Escolheu uma pedra onde pudesse se sentar e procurou na bolsa pelo pedaço
de madeira, para continuar esculpindo. Olhou a tempo para o grupo de Forg,
que também recebia instruções duras, e Labal, no meio dos soldados, olhou-o
de volta, com seu sorriso irritante. Ele parecia ficar mais feliz quando havia
iminência de ação. Nil ficava triste. Pouca gente morria quando não havia
ação alguma. Pelo menos um dos dois estava contente.
Enquanto revirava a bolsa à procura do graveto, teve o olhar atraído até a
mesa dobrável, num dos cantos do acampamento. Lá, uma porção dos
homens de Habass marte-lava pedaços de ferro, pequenos triângulos afiados.
Enquanto isso, outro grupo trabalhava sentado no chão, preparando varetas
compridas e finas de madeira. Montes delas.
Flechas... Ainda bem que me deram uma espada. Odeio flechas. Uma
espada você vê chegando até seu peito, pelo menos.
***
Era quase noite e já caía uma cortina de escuridão sobre o céu das
Geleiras. Havia agora uma série de fogueiras vigorosas espalhadas pelo
acampamento, estalando a lenha verde e deixando no ar uma fumaça de
perfume agridoce. O lugar estava finalmente em silêncio.
Às vezes eu gostaria que houvesse mosquitos nas Geleiras, só para vê-los
incomodados pela fumaça. Criaturas abissais... pensou Nil, enrolado em um
cobertor, a poucos metros do fogo.
A princípio, ele pensou ter ouvido um grito distante, mas voltou a se
aninhar no cobertor, pois devia ser um engano. Poucos minutos depois, ouviu
novamente, dessa vez mais perto. Então ele levantou-se, praguejando
baixinho, tanto pelo frio de trincar os ossos, quanto pelo fato de sempre ser o
primeiro a se levantar. Se algum capitão o visse, provavelmente mandaria que
fosse até a mata averiguar. Antes que pudesse mudar de ideia e deitar-se
novamente, viu outros homens também se levantando ao redor da fogueira.
Todos curiosos com a gritaria e murmurando coisas que ele não pôde
compreender.
Enquanto decidiam quem iria e quem não iria ave-riguar, surgiu, na borda
do acampamento, a figura do comandante Hillel. Mesmo no escuro da noite
era possível ver as veias saltando de seu pescoço e testa. Isso não era bom.
Ele acenava para seus homens, que ficaram para trás:
– Andem, suas tartarugas! Ele vai morrer!
Logo em seguida apareceram cinco soldados, carre-gando um deles pelos
braços e pernas. O capitão os trouxe até perto do fogo e, antes que todo o
batalhão viesse como um enxame de abelhas, Nil pôde ver o estado em que se
encontrava o soldado desacordado quando a luz da fogueira bateu em seu
corpo. Precisou levar a mão até a boca, para não vomitar. O homem tinha a
pele inchada e aparentemente azulada. O rosto ficara redondo, assim como os
lábios, as pálpebras e as pontas dos dedos. A pele dos braços estava esticada,
formando uma enorme bolha, e começava a sair pelas frestas da armadura. O
elmo ficara enterrado no crânio, não sairia de sua cabeça sem uma cirurgia
delicada. Parecia um cadáver afogado, encontrado na água depois de uns
quatro ou cinco dias.
– O que aconteceu, comandante? – era a voz do Capitão Forg, que abria
caminho através da multidão de soldados.
– O imbecil foi picado por uma serpenplanta! – rosnou Hillel. – Eu disse
para tomarmos cuidado com essas aberrações! Eu sei o que elas fazem, eu já
vi! Agora o estúpido vai morrer sob meu comando!
Forg parecia mais calmo que o restante do batalhão. Ele aproximou-se do
comandante e permitiu-se colocar a mão no braço dele.
– Sim, eu sei, comandante. Conheço a história do seu tio. Não se
preocupe, mande seus homens o encaminharem para a unidade de Habass.
Eles têm um enfermeiro, se não me falha a memória.
Hillel apertava os olhos. Sua testa pingava suor, uma visão inédita para os
soldados. Quando falou, sua voz veio quase como um sussurro:
– Nunca me aconteceu, capitão. Ninguém se ma-chuca... ninguém pode se
machucar.
– Fique calmo, comandante. Todos sabemos de sua reputação. É um líder
maior que todos juntos e não pode se cobrar dessa forma. Não podemos
atender a cada uma das burrices que os homens podem cometer. Não foi
culpa sua. – Virou-se para os homens de Hillel – Ainda estão aqui? O que
vem primeiro? Seu colega ou a ordem do comandante? Andem, seus trastes!
Os cinco soldados enfiaram-se no meio do batalhão, procurando pela
unidade de Habass. Nil ainda tinha o estômago revirado muito tempo depois
que se afastaram.
– Agora descanse, comandante – continuou Forg. – Tenho certeza que
amanhã nos trará suas excelentes instruções.
– Não posso, Forg – desvencilhou-se Hillel. – Preciso de seis comigo.
Forg baixou o tom de voz a uma altura que só os mais próximos puderam
ouvir:
– Eu não continuaria contando com o soldado ferido, comandante, me
perdoe a sinceridade. Descanse, e amanhã designaremos alguém mais para
acompanhá-lo. Está bem assim?
Hillel enterrou as duas mãos no rosto e ficou nessa posição por um
momento. Depois de respirar fundo, voltou à sua postura ereta, habitual. Seu
rosto ainda estava vermelho, mas os ânimos pareciam mais controlados.
Falou com a voz mais limpa:
– Ajude-me com isso, Forg. Eu quero um homem com algum espaço para
aprender, na cabeça dura. Não posso mais lidar com animais.
– Alguém mais jovem, talvez?... – Forg correu os olhos pelo batalhão.
Pelo menos nos rostos que podia enxergar bem, com a luz. – Acho que posso
sugerir um novato. Tem sido excelente em cumprir ordens.
– É um dos seus? – perguntou o comandante.
– Sabe que sou uma velha raposa, não é, comandante? Não presto atenção
no meu trabalho, apenas. É um dos homens de Zano.
Nil torceu para que não estivessem falando dele, mas, quando olhou para
Forg, este já apontava o dedo em sua direção.
15 – RECÔNDITOS
Hillel berrou a plenos pulmões, mas, correndo até a moita, nada pôde
fazer além de observar a estreita trilha formada pelo corpo arrastado de Nil.
Começou a sentir as pernas fraquejando, e por um instante, tudo pareceu
parar de se mover a seu redor. Algo estava muito errado. Talvez ele não fosse
mais o mesmo de antes. Dois subordinados mortos em uma semana. Ele
estava ficando velho. Seria a hora de parar?
Os gritos de Valdor vieram distantes na primeira vez, e Hillel não deu
atenção. Na segunda vez, começaram a incomodá-lo. Não queria que o
chamassem agora. Ele precisava reunir forças e correr atrás do carcaju.
Talvez ainda pudesse salvar seu recruta.
Na terceira vez, a voz de Valdor entrou rasgante em seu ouvido. Assobios
estridentes e irritantes dos outros rapazes vieram acompanhando.
– Comandante, atrás de você, droga!
Primeiro veio o cheiro de pelo molhado, depois ouviu um chiado grave e
gutural. O comandante girou e tombou para o lado um segundo antes de o
carcaju rasgar sua perna com as garras afiadas. O animal voou para frente
dele, tropeçando na neve e levantando-se com agilidade.
Em um gesto mecânico, Hillel sacou a espada longa. Abriu bem os olhos
e, sem mover a cabeça, ficou atento à periferia. Seus flancos estavam seguros.
Ele observou o animal cravar as garras no chão e projetar o dorso para
trás, sugerindo que o próximo ataque viria a qualquer instante. Hillel enterrou
a ponta da espada na frente dos próprios pés e atirou um tufo de neve no
focinho do carcaju. Como esperado, o animal se agitou e ficou sobre duas
patas, pensando que a neve se tratava de um agressor. Afinal de contas, eles
não enxergam bem.
Um segundo depois, um talho enorme abria-se na barriga do animal,
derramando no chão uma cascata de sangue quente. O animal tombou para
trás, dando espasmos curtos e grunhidos, até parar de mover-se por completo.
Hillel virou-se para os companheiros e, já mais desperto, fez uma rápida
avaliação da situação. Dana acabava de abater um deles, enquanto Valdor se
aproximava, dando cobertura. Sóz e Iva golpeavam ao mesmo tempo outro
carcaju, e Lumuir acabava de pisar sobre a carcaça de um terceiro. Ele
tentava reaver sua espada larga, que estava cravada na espinha do animal. O
quarto carcaju, mais afastado, relutava em se aproximar do grupo e limitava-
se a tentar intimidá-los com seus grunhidos.
Eles estão se virando bem. Pensou Hillel, embainhando a espada e
enfiando-se na moita atrás de Nil.
***
Nil abriu os olhos, mas não conseguiu arregalá-los. Estavam pesados e
sonolentos. Não soube dizer, a princípio, mas teve a impressão de ver tudo
passando rápido diante de seus olhos. A nuca latejava em uma dor
insuportável, um dos lados de seu rosto ardia. Ao mesmo tempo, sentia um
frio cortante. De vez em quando sentia montes de gelo fofo entrando-lhe pelo
nariz, causando uma ardência na hora de respirar.
Ele demorou alguns instantes até perceber que seu rosto deslizava meio
enfiado na neve. Sua primeira reação foi tentar agarrar algo, mas seus dedos
dormentes fechavam-se somente em volta de gelo e terra fria.
Com um esforço, conseguiu girar e ficar de costas, e foi quando sua
panturrilha direita latejou numa dor aguda. Sua perna estava presa em algo
que se movia depressa. Deu um puxão para tentar desprendê-la, e veio uma
dor ainda mais forte quando algo afiado entrou em seu calcanhar.
– Pelos deuses! – berrou de dor, levando as mãos ao rosto.
Aos poucos, conseguiu recobrar a consciência e se lembrou dos últimos
acontecimentos.
– O carcaju... – balbuciou, desamparado.
Vendo as moitas e pedregulhos passando em veloci-dade, viu que
precisava fazer algo. Piscou os olhos várias vezes e tentou flexionar a coluna
numa posição onde pudesse ver o que acontecia à sua frente. As vistas
estavam ruins e embaçadas, mas ele viu o vulto branco e amarelado do
animal, puxando-o com os dentes, à sua frente. O cheiro da pelagem molhada
deixou-o nauseado. Parecia o mesmo cheiro que os cães sujos exalam quando
tomam chuva.
Nil abriu e fechou a mão direita algumas vezes, testando suas
articulações. Doíam como se despertassem de anos de congelamento. Ainda
assim, ele esticou o braço para o lado do corpo e começou a apalpar, em
busca de sua espada.
Os dedos correram pela cota de malha e alcançaram a cintura. Tatearam
pelo cinto, esperando tocar a bainha, quando seu corpo sacudiu ao passarem
por uma vala. As pedras lascadas do local começaram a causar pequenos
rasgos em suas nádegas e cotovelos. O animal puxava-o com pressa.
Gemendo e bufando de dor, Nil esticou o braço mais uma vez, e seus
dedos se encontraram com a protuberância sólida da bainha. Correram até o
cabo da espada, e Nil respirou aliviado. Ela estava no lugar.
Ele a puxou para fora o mais rápido que pôde e curvou novamente o
corpo. Estava vendo tudo em dobro à sua frente, mas não tinha muito mais o
que fazer. Começou a menear para frente e para trás com a lâmina, na
esperança de atingir o animal de alguma forma, mas parecia não poder
alcançá-lo.
Seu ombro começou a doer, e ele voltou a se deitar no chão, sentindo o
frio da neve onde a roupa fora rasgada. Passou a espada para a mão esquerda
e grasnou quando tentou ficar novamente sentado.
A lâmina começou a desenhar círculos no ar e não atingia alvo algum.
Projetou-se duas ou três vezes para frente e, na última tentativa, Nil sentiu
sua ponta cravar-se levemente em uma estrutura macia.
A pressão em seu calcanhar foi imediatamente aliviada, e o animal soltou
um urro enfurecido. Estava solto!
Não teve tempo para celebrar, pois quase que imediatamente sentiu o
outro calcanhar partir-se sob os dentes do animal.
Nil abriu a boca para gritar, mas não conseguiu pro-jetar a voz. Seu
queixo ficou escancarado, e o pescoço em tensão, com os músculos esticados
até o limite. As vistas começaram a falhar, e as veias em sua testa pareciam
querer saltar para fora da cabeça. O calor do sangue entrou imediatamente
por suas botas, encharcando os pés, e Nil só conseguiu se lembrar de seu
companheiro Labal. As malditas tiras prenderam bem o calçado, mas ele se
esqueceu de dizer que elas não o protegeriam das mordidas dos monstros. Se
saísse vivo dali, teria sorte em conseguir voltar a andar novamente.
O carcaju começou a chiar mais alto e colocou-se de pé. Nil sentiu que ele
começava a ficar frenético, agitando as garras no ar. Nesse momento, seu
coração começou a bater tão rápido, que pareceu falhar uma vez ou outra. A
criatura ereta, soltando linhas de saliva por entre os dentes, era uma visão
aterradora. Algumas patadas acertaram suas costelas com tanta força, que Nil
pensou ter sentido a cota de malha rasgando em duas. As garras de navalha
abriram rasgos em sua coxa, e ele se contorceu de dor. Se não fizesse algo,
seria estraçalhado.
Decidiu, enquanto tentava acalmar o turbilhão em sua mente, perfurar o
monstro mais uma vez com a espada. Quando seus dedos se fecharam,
porém, para segurar firme o cabo, não encontraram nada. Suas mãos estavam
vazias. Devia tê-la deixado cair quando foi mordido no calcanhar.
E o monstro seguia dilacerando-o vivo. Os olhos de Nil começaram a
fechar-se contra sua vontade, e os braços penderam para os lados. A neve
esfriava suas pernas. Suas roupas deviam estar em trapos. Era o fim. Estava
acabado.
E, gorgolejando de novo, dessa vez mais fraco, o animal tombou no chão,
desacordado. Acontecera muito rápido.
– O quê?... – gaguejou ele, com os olhos entreabertos. Levou alguns
instantes para dar-se conta do que ocorrera.
O que estava acontecendo? Nil ergueu o queixo e olhou para trás, pelo
caminho onde foi arrastado. Viu um vulto correndo em sua direção, seguido
por outros dois ou três. Devia ser o comandante, mas estavam muito longe,
não poderiam ter ajudado. Por que o monstro morreu?
Nil apoiou-se sobre o cotovelo esquerdo e olhou para o corpo do carcaju
caído. Piscou várias vezes e demorou um tempo até que suas vistas
desembaçassem, mas levou um susto quando notou três flechas cravadas até a
metade, nos pelos brancos do animal. Passos rápidos vieram de suas costas, e
ele girou rapidamente a cabeça, numa mistura de pânico e alerta.
Um soldado de armadura branca se aproximava. Tinhas nas mãos um arco
longo, feito de osso lapidado, e uma pequena mochila de campanha nas
costas.
– Você está bem? – perguntou o soldado, diminuindo o passo e
aproximando-se.
Nil sentiu a cabeça rodar várias vezes, fazendo a imagem do soldado ficar
de ponta-cabeça.
– Estou... – balbuciou ele, deixando o pescoço afrouxar, sem forças. –
Bem.
O soldado parou ao lado de Nil e guardou o arco. Quando foi examinar as
feridas dele de perto, viu algo que o chocou. Ele levou a mão até a boca e
retesou-se, dando um passo para trás.
– Oh, pelos deuses! – arfou o soldado, espantado. – Quem é você?
Nil já estava desmaiado.
***
Hillel chegou na frente, correndo com toda força que tinha nas pernas.
Nuvens de neve fina voavam por debaixo de seus pés. Gritava quando ainda
estava longe:
– Ele está vivo?
O soldado assentiu com a cabeça e fez um gesto para que o comandante
se acalmasse e diminuísse o passo.
– Ainda vive, comandante – assegurou o soldado –, mas precisa de
cuidados médicos urgentes.
Hillel olhou para o corpo de Nil caído no chão. Estava coberto por um
pelego cinzento, provido pelo soldado prestimoso. Na base de seus pés,
corriam rastros de sangue por todo o caminho que percorreram, tingindo o
branco imaculado das montanhas.
O comandante ouviu as respirações arfantes de seus homens na retaguarda
e os passos pesados de Lumuir desacelerando. Sóz vinha logo atrás, junto de
Iva. Mais afastado vinha Dana, sem pressa, carregando Valdor nas costas.
Hillel cruzou os braços e respirou fundo. O carcaju ainda estava no lugar,
cravado de flechas.
– O que houve? – perguntou ao soldado. – Você é um dos homens de
Forg, não é?
– Sim, comandante – respondeu o soldado, aproxi-mando-se de Nil. –
Meu nome é Svano. Sou o responsável pela batida. As unidades estão a meio
dia de nós e provavelmente nos alcançarão nas passarelas superiores de onde
veio. Graças aos deuses nos encontramos a tempo.
– Não posso agradecê-lo o suficiente – falou Hillel, tentando acalmar a
própria respiração. Em seguida, apontou com a cabeça para Nil, que estava
desacordado e pálido debaixo do pelego. – Ele está tão mal assim?
– Ele? – perguntou Svano, com uma expressão de ironia disfarçada.
Hillel franziu o cenho.
– Não sei se compreendo seu tom de voz, soldado.
O soldado fungou, cuspiu no chão e levou as mãos até o cobertor de peles,
descobrindo o corpo de Nil.
Iva levou a mão até a cabeça, em choque. Sóz permaneceu com o queixo
aberto, mas não conseguiu dizer nada.
– Pelos quatro desgraçados celestes... – trovejou a voz de Lumuir, ao lado
do comandante.
Hillel permaneceu inexpressivo, o cenho fechando-se cada vez mais.
Cruzou os braços e respirou fundo, desviando os olhos e fitando o próprio pé.
– E então, comandante? – insistiu Svano. – Pode me dizer o que está
acontecendo?
O corpo descoberto de Nil não deixava margens para dúvidas. Tratava-se
de uma mulher.
21 – NEM QUATRO, NEM SEIS
Nil abriu os olhos e a primeira coisa que viu foi um imenso borrão
esbranquiçado à sua frente. Um barulho suave de madeira estalando ao fogo
parecia vir de não muito longe. Questionou-se por um instante se estava viva
ou morta. O som de pés se arrastando logo seguiu-se de vozes familiares, e
ela aquiesceu, tentando recobrar a memória. O comandante Hillel não estava
muito distante e parecia explicar algo aos companheiros.
– Eu sei que devia ter compartilhado a informação – veio a voz quente
dele –, foi um erro grosseiro, admito. Mas prometi a Gherda não quebrar sua
confiança.
– O conselheiro do rei? – perguntou Sóz. – O que ele tem a ver com a
Ordem?
– De forma direta, nada – explicou o comandante. – Mas Gherda é um
velho e querido amigo. Eu não poderia dormir em paz se o negasse um
pedido pessoal. Coloque-se no meu lugar, Sóz. O homem disse que sua prima
corria risco de vida, que um homem poderoso e violento queria tomá-la para
si!
Conte a eles que o homem poderoso era o próprio rei Silkai, pensou Nil,
ou será que Gherda não contou esse detalhe?
– Eu não sei não... – resmungou Lumuir. – Aceitar uma mulher na
Ordem...
– Nunca foi com intenção de ser permanente – assegurou Hillel. – Vamos
tomar conta dela até o final da missão, depois me reunirei novamente com
Gherda para vermos o que podemos fazer.
– Não vejo problema – disse Dana –, desde que ela... é estranho falar
sobre uma mulher no grupo de busca. Desde que ela não nos atrase.
– Ela não nos atrasará – resmungou Hillel. – Você é o mais lento do
grupo, deveria ter um pouco mais de empatia, Dana!
– Sim, senhor – grunhiu o careca, dando de ombros.
– Onde está o maldito remédio? – perguntou Hillel a alguém.
Nil se contorceu, tentando falar, e sua cabeça come-çou a girar. O corpo
todo latejava, como se tivesse sido atropelada por um comboio. Ela apoiou o
cotovelo no chão para se sentar e sentiu a mão do comandante empurrando-a
gentilmente de volta para o solo.
– Tente não se mover, Nil. Estou deixando os homens a par sobre sua
história. Fique tranquila, que tudo terminará bem. Fizemos curativos e
torniquetes nos seus tornozelos. Não poderá andar por um tempo, mas a
ajudaremos com isso. Agora precisa repousar, está bem?
A voz de Hillel era reconfortante. Desejou ter forças para apertar sua mão,
mas já estava a meio caminho de adormecer novamente. Tombou lentamente
a cabeça e viu as silhuetas de Valdor e Iva, lado a lado. Pareciam estar o
tempo todo cochichando algum segredo, e era evidente que não haviam
gostado nada da novidade a seu respeito. Quando Valdor virou a cabeça e a
encarou com olhos sérios, ela estremeceu dos pés à cabeça. Queria ter falado
ao comandante a respeito deles, mas agora teria de melhorar primeiro...
estava com muito sono.
***
Nil sentiu alguém apertando seus braços e abriu novamente os olhos. Iva
estava a um palmo de distância, e a segurava com força. Valdor se
aproximava e dobrava os joelhos, com uma caneca fumegante nas mãos. Eles
iam envenená-la. Era isso. Aproveitaram alguma distração do grupo e iam
silenciá-la de uma vez, antes que os delatasse.
– Não! – grunhiu, sem muita força na voz. – Eles não! Comandante...
esses dois são...
Mas não teve tempo de concluir a frase. Valdor segurou seu queixo com
força, e encostou a caneca em seus lábios. Nil não soube dizer se era culpa do
entorpecimento na pele, mas não sentiu sua boca se queimando. O líquido
começou a descer por sua garganta.
– Tente não falar nada – disse Valdor, com uma voz suave, forçando um
sorriso. – Está muito fraca e vai melhorar, eu prometo.
Iva passou a mão por seus cabelos, também sorrindo. Malditos!
Ela engoliu e afastou a cabeça bruscamente. O remédio já fazia com que
seu corpo ardesse de calor por dentro.
– Ahhhh – ela tentou falar, mas a voz estava engrolada. Sua língua parecia
estar inchando aos poucos, dentro da boca. – Ahhhh...
– Está tudo bem com ela? – perguntou Hillel, se abaixando e tocando seu
rosto.
Nil tentou se debater, mas Iva a apertou com mais força ainda. O
comandante tinha de impedi-los de envenená-la. Ela tentou sacudir os pés,
mas a dor dos machucados veio rasgante, e ela contorceu o rosto numa careta.
– Ahhhh... Ahhhhh...
Valdor encostou outra vez a caneca em sua boca e lançou seu olhar mais
tranquilo para o comandante:
– É apenas o efeito do anestésico, senhor. Ela come-çará a se sentir mais
confortável em breve, assim que tomar toda a solução.
Hillel levantou-se e deu um tapinha nas costas de Valdor. O mestiço
retribuiu com um aceno de cabeça.
– O que faremos agora, comandante? – perguntou o arqueiro Svano,
finalmente. – Devo levá-la para as unidades?
– Não seria o mais prudente, soldado. Deve permane-cer em sua rota e
nos encontrar no local combinado. Quanto menos chamarmos atenção,
melhor. Não quero que o acampamento se torne um formigueiro de
mexericos enquanto não terminamos a missão. Vou pedir a meus homens
para que a levem aos médicos. Farão isso de forma discreta. Enquanto isso,
seguirei com o restante para as plataformas, como planejado.
– Perfeitamente, senhor. – Svano fez uma continência. – Permissão para
me retirar.
Hillel assentiu e observou o soldado se afastar. Em seguida, virou-se para
o restante do grupo. Nil começou a sentir uma estranha calma, como se o
corpo estivesse mergulhado em uma poça de água quente. A língua estava tão
inchada que parecia não conter-se atrás dos dentes. Os desgraçados
conseguiram. Ela não poderia falar nada.
– Valdor! Iva! – falou o comandante. – Ficarão encarregados de levá-la
para os médicos de Zano. A perna está bem enfaixada, mestiço? – Hillel
aguardou a confirmação de Valdor. – Não quero ninguém fazendo perguntas,
entenderam bem? Tratem de manter o corpo dela sempre coberto. Para todos
os efeitos, o recruta Nil feriu-se em combate.
Não, não! Os dois não!
Nil começou a se contorcer, grunhindo o mais alto que pôde. Iva envolveu
seu corpo com o pelego e a pegou no colo, enquanto Valdor tentava
imobilizar seus braços.
– Está tudo bem – diziam eles. – Fique quietinha.
Nil girou e torceu o corpo, tentando saltar do colo de Iva. Conseguiu
liberar um dos braços e acabou acertando o nariz de Valdor com o cotovelo.
– Desgraçada! – berrou ele, soltando-a e acudindo a ferida.
– O que está havendo aqui? – O comandante Hillel se aproximou dela, e
ela parou de se contorcer, olhando-o com os olhos esbugalhados. Tentando
fazer com que ele lesse seus pensamentos.
– Grfffff... – grunhiu Nil, com semblante perturbado.
– O que houve, Nil? – Ele levou a mão até a testa dela, conferindo a
temperatura. – Por que não quer ir? Você precisa de cuidados médicos.
– Ela só está delirando, comandante – assegurou Iva, voltando a
comprimi-la contra o próprio peito.
– Não... – Hillel olhou bem fundo em seus olhos. – Ela sabe onde está.
Sua temperatura não acusa nenhuma febre. – Tocou-a nos cabelos. – Nil,
você não quer ir, é isso? Está preocupada com alguma coisa e não consegue
dizer?
Ela moveu a cabeça em negativa.
– Não entendo... O que te perturba?
Ela girou os olhos e apontou para Iva. Em seguida, apontou para Valdor,
que nesse momento tentava limpar o sangue do nariz.
– Não quer ir com eles? – perguntou o comandante. – Mas, por quê?
– Mmmmmrfff...
Dana empurrou gentilmente o grandalhão Lumuir para a esquerda e
adiantou-se, parando ao lado do comandante.
– Eu a levo, senhor.
A expressão de Nil abrandou-se. Ela fazia um sinal positivo com a
cabeça.
– Era isso? – indagou Hillel. – Queria ir com Dana? Nil, eu não entendo...
o que está acontecendo?
– Mrrfff... – gemeu ela.
– Está certo, então. Não vou importuná-la com isso por enquanto. – Ele
deu de ombros e virou-se para o rapaz de cabelos lisos. – Sóz, pode
acompanhá-lo, para o caso de a garota precisar de mais anestésico?
– Claro, comandante – falou ele, sem muita convicção.
Hillel virou-se novamente para Nil:
– Está bem assim? Dana e Sóz? Se sentiria mais à vontade com os dois?
Nil assentiu novamente com a cabeça.
– Então está acertado. Dana, certifique-se de descer aquela garganta –
apontando para uma estreita trilha entre duas rochas altas – e seguir para o
leste, onde encontrarão as unidades. Segundo as informações de Svano,
calculo que dentro de cinco ou seis horas poderão avistá-los acima da borda
da floresta. Atente para qualquer fumaça, pois podem fazer pausas
esporádicas no caminho. Valdor e Iva, vocês vêm comigo. Vamos voltar à
plataforma dos carcajus e procurar por outra trilha. A missão não pode parar!
Iva deixou Nil no colo de Dana, mas não o fez sem antes lançá-la um
olhar sombrio de desaprovação.
– Sim, senhor, comandante! – disse ele, afastando-se em seguida.
***
– Como se sente? – perguntou Sóz, sem olhar para trás. Ele descia na
frente e Nil sentia os solavancos dos passos pesados de Dana. – Ah, perdão.
Esqueci que não consegue falar. Espero que as dores já estejam mais brandas
a essa altura. Usamos uma mistura de alípia com bainha-verde, e isso faz um
anestésico fabuloso. Suas pernas devem estar feito bambu seco, nesse
momento.
Nil tentou não responder. Seria inútil, e seu corpo estava entorpecido
demais, envolto em tontura e sonolência.
– Vi a forma como Valdor e Iva a assustaram – continuou ele.
– Sóz, fique quieto – resmungou Dana, lutando para não escorregar trilha
abaixo. – O trajeto é difícil o suficiente, mesmo em silêncio.
A garganta era, de fato, escorregadia e traiçoeira. Uma trilha, não muito
mais larga que um homem, cortava um rochedo alto e escuro, mergulhando-
se perigosamente à beira de um penhasco. Nil imaginou que nenhum dos dois
homens devia estar muito feliz em ter de carregá-la, ainda mais depois de
quase uma hora. Por um momento, lamentou o fato de estar se tornando um
fardo para o grupo. Queria poder compensá-los de alguma forma, e faria isso
quando pudesse.
Se um dia teve dúvidas, elas já não mais existiam. Depois de Valdor e Iva
terem neutralizado sua língua para que ela não falasse, tinha certeza de que
tinham alguma agenda diabólica e secreta. Ainda não sabia exatamente o quê,
mas quando o capitão soubesse, ele poderia investigar melhor, e descobriria.
Era o homem mais esperto que já conhecera.
Um solavanco fez seus pensamentos evaporarem. Dana escorregou, mas
apoiou-se a tempo nas paredes das rochas. Nil não quis imaginar o que
aconteceria se Dana rolasse ravina abaixo, com todo aquele tamanho.
– Tudo bem aí, gordão? – riu Sóz, fingindo não estar preocupado. – Se um
javali como você cai desse desfiladeiro, alimenta cinco gerações de carcajus
por um período de três anos!
– Muito engraçado – gemeu Dana, tentando apoiar a bota numa pedra
escorregadia, coberta por líquen.
– Mas como eu ia dizendo, soldado Nil... – continuou Sóz – aliás, é
soldado ou soldada? Não vou ter certeza. Enfim, como eu dizia, fez bem em
afastar-se de Valdor e Iva. Os dois estão me dando nos nervos há um tempo,
sabia disso?
Apesar da piada de mau gosto, Nil ficou satisfeita em ouvir isso. Parece
que ela não era a única a suspeitar dos dois desgraçados. Sóz prosseguia
falando enquanto gesticulava no ar:
– Sim, estão muito engraçadinhos para o meu gosto. Eu diria que se
tornaram ameaças e que deviam ser levados a sério.
Conseguiram sair da garganta para a claridade dos penhascos. Sóz parou e
deixou a mochila no chão. Em seguida, começou a esticar os braços e pernas
para descontrair os músculos. Dana chegou logo depois, e Nil pôde sentir a
mudança de temperatura quando um vento gelado, cheio de flocos de neve,
bateu em seu rosto.
– Dane, deixe-a no chão por um momento. Vá descansar os braços.
– Não estou cansado, idiota – grunhiu Dana.
Nil foi depositada com cuidado no chão. O local era uma plataforma
estreita, que descia em outra trilha ainda mais perigosa. O próximo trajeto
não contava com as paredes de pedra para socorrê-los de uma queda. Nil
estremeceu ao pensar no quanto balançaria no colo de Dana. Se pudesse usar
as pernas, seria menos apavorante.
Ela observou a movimentação dos dois homens. Sóz, abaixando-se por
um momento, abriu sua bolsa e enfiou a mão dentro. Pareceu revirá-la,
procurando concentrado por algo. Instantes depois, ele retirou um embrulho
de couro e colocou-o no chão.
– Está pronto? – perguntou ele a Dana.
O grandalhão fez uma careta e deu de ombros.
– Manda ver.
– Sabe, soldada Nil... um homem tem de estar sempre precavido. A vida é
cheia de intempéries, você sabe...
Nil não entendeu bem do que ele falava. Continuou olhando o que faziam,
e sua surpresa aumentou quando Sóz desembrulhou o pacote, revelando uma
pata cortada de carcaju. As garras afiadas e escuras projetando-se para fora
dos dedos e o sangue nas articulações ainda úmido.
– Rrrrfff... – ela tentou perguntar.
– Não se esforce à toa – falou Sóz. – O efeito na língua só passa depois de
duas ou três horas. Dana, vire-se de costas.
O grandalhão obedeceu, e Sóz caminhou até ele, com a garra de carcaju
nas mãos. Ele agachou-se, posicionou-a cuidadosamente na panturrilha de
Dana, e logo depois, com um movimento rápido, rasgou sua perna, deixando
a calça em trapos.
Dana deu um urro de dor, e o sangue espirrou imediatamente na neve,
formando pequenas poças quentes e fumegantes.
– Muito bem, gordão! – Sóz levantou-se e bateu duas palmas desajeitadas,
ainda com a pata nas mãos. – Aguentou como um verdadeiro comandante!
– Desgraçado, isso dói como o inferno! – rosnou o careca.
– Não se preocupe, pois agora é a hora da desforra. – Sóz esticou o braço,
exibindo as mangas do grosso casaco de peles, e virou o pescoço para o lado,
para não ver.
Dana apanhou a pata de carcaju e segurou firme o pulso do companheiro.
– Na panturrilha dói muito mais – reclamou ele. – Você é um covarde,
isso sim!
– Cada um... – bufou Sóz, preparando-se para a dor – carrega o fardo que
aguenta. Vamos lá!
Dana passou lentamente a garra no antebraço de Sóz, rasgando o casaco e
fazendo fissuras profundas em sua pele. Sóz se contorceu de agonia, e Dana
teve de segurar firme o seu pulso.
– Filho da mãe! – berrou o rapaz, vendo o próprio sangue escorrer até as
pontas dos dedos e jorrar no chão. – Você quase me aleijou!
Dana gargalhou.
– Tinha de parecer realista, não?
Pelos deuses... o que está acontecendo aqui?
Nil foi tomada subitamente por uma onda de calor que subiu por sua
espinha. Algo estava muito errado, e ela não sabia o quê.
Dana ajudou a fazer um torniquete no braço de Sóz, que começou a falar,
com os dentes cerrados:
– Isso que está vendo, soldada, chama-se reciclagem de diretrizes. O
comandante não está mais em condições de liderar. Temos à nossa frente –
ele apontou para o anel azulado, no cume do monte Yanen – a maior coleção
de tesouros de todo o planeta, e Hillel não quer pegá-los para nós. Ele alega
que a riqueza de Corff é por demais sagrada para que coloquemos nossas
mãos. Isso é conversa fiada, ele só está com medo!
– Eu diria que Hillel está se tornando por demais idiota – completou
Dana, sorrindo.
– Exatamente, gordão. Então, recruta Nil, sinto que tenha entrado nesse
barco furado. Digamos que esteja no lugar errado, na hora errada. Talvez o
seu suposto pretendente poderoso fosse mais atraente do que esse lugar,
afinal de contas.
A mente de Nil estava em redemoinhos. Estava ou-vindo direito? Havia
um complô para derrubar o comandante esse tempo todo? Quantos mais
estariam envolvidos?
Sem a menor vontade de ficar e ouvir mais, ela tentou começar a se
arrastar de volta para a ravina, mas os pés gigantes de Dana pisaram em seu
pulso, enterrando-o com força na neve.
– Não, não... – disse ele, estalando os lábios.
– Devia ter ido com Valdor, Nil – falou Sóz, conferindo se o torniquete no
próprio braço estava firme o suficiente. – Poderia ter tido a chance de falar
algo. Ah... que tolo sou eu! Você não pode falar!
Os dois começaram a gargalhar, e Sóz lançou uma espécie de vênia teatral
para Nil:
– O toque da língua inchada foi genial, não é? – Ele se abaixou e
aproximou a boca no ouvido de Nil: – Vou te contar um segredo: Se tivesse
vindo com Valdor e Iva, teria conseguido, no máximo, nos atrasar. Você
sabe... nunca fomos muito entusiasmados com a ideia de um novato no
bando. Não quando estamos a meio caminho de resolver algumas, digamos...
pendências. – Ele parou de falar, dando tempo para que ela digerisse a
informação. – Entende o que quero dizer, não?
– Teríamos pego você depois – completou Dana.
Nil sentiu o pânico entalando-se na sua garganta quando finalmente
entendeu. Valdor e Iva não iam machucá-
-la. Deviam estar investigando um possível complô, por isso andavam com
tantos segredos! Sóz e Dana eram os culpados, e sabe-se lá quem mais. O
soldado morto, Kormel, devia saber de algo, por isso Valdor andava mexendo
em suas coisas, talvez procurando algo que os incriminasse. Ela olhou para o
alto do desfiladeiro, na esperança de poder acenar para Hillel, Lumuir ou o
soldado Svano, mas a essa hora, já estavam muito longe. Começou a sentir a
boca ácida, e a queimação de refluxo na garganta. Devia haver algo que
pudesse fazer, eles iam matá-la a sangue frio!
– Bem... – continuou Sóz, fazendo um sinal para Dana. Nil sentiu
imediatamente o peso de um enorme pé sobre seu ombro. – Que azar, não?
Fomos atacados por carcajus e perdemos outro soldado. Logo quando
pensávamos tê-
-lo resgatado... Mas Hillel sabe que lutamos bravamente e quase fomos
mortos pelos malditos, não é verdade? Quem sabe no fim, você será vista
como heroína, soldada Nil? Ou seria herói?
– É... – falou Dana, com um sorriso largo. – Sóz, acha que Valdor e Iva
suspeitaram de algo?
– Depois do teatro dessa infeliz, é possível. Mas cuidaremos deles mais
tarde. Dana, ainda tem uma perna boa?
Dana fez mais pressão com o pé gigante no ombro de Nil. Ela estava
retesada, só conseguia tremer de pavor.
– Os dois estão bons, magricela – falou ele, com um sorriso. – Foi só um
arranhão.
E então ele a empurrou precipício abaixo.
23 – IAC AELFLUMBE
O rei Silkai tombou a cabeça para trás, a ponto de ser engolfado pelo
tédio. Descobrira algo capaz de ser ainda mais insuportável que seu servente,
Fleros. Era quando Fleros se juntava a um comerciante maluco para tentar
convencê-lo de algo. Ele revirou os olhos para as duas amas, checando se elas
também sofriam de aborrecimento, e as vozes entravam estridentes em seus
ouvidos, uma mais aguda que a outra:
– Majestade – o comerciante era um velho conhecido como Dr.
Polemides. Na verdade, tratava-se de um cientista. Tinha no rosto dois óculos
de aros finos e redondos, grandes demais para sua cabeça. Os cabelos
pareciam feixes de feijão em vagem, arrepiados para todos os lados e com cor
de areia. Havia uma discreta bancada de madeira montada diante do trono, e
ele segurava nas mãos um pote de vidro, cheio até a metade com pó escuro e
tapado com uma rolha larga –, pense nas infinitas possibilidades! Quando
esse produto alcançar todas as casas da capital, teremos uma revolucionária
mudança nas atividades diárias. Tarefas como acender o fogão, o cachimbo,
ou inclusive a cremação, se tornarão instantâneas! Até mesmo as funções
militares, e essas são as que devem atrai-lo ainda mais, ganharão muito mais
peso. Imagine como funcionaria uma barricada flamejante de combustão
instantânea!
O rei coçou o rosto e pensou no que responder. Queria mesmo é que o
próprio homem desaparecesse de sua frente em combustão instantânea, isso
sim. Silkai correu os dedos pelo trono e os tamborilou sobre os adornos
zelosamente polidos, chifres grandes e vermelhos.
– Não sei se estou plenamente convencido da utilidade de seu produto,
Dr. Polemides. Me pareceu um tanto perigoso, não acha? A cidade é repleta
de crianças, e prezo muito pelo bem-estar de meus súditos.
O velho retirou um lenço puído do bolso e o esfregou discretamente sobre
a superfície da madeira, onde havia um círculo negro de fuligem.
– Permita-me intrometer-me, sua Majestade Branca – Fleros já se
adiantava, em auxílio do velho –, mas creio que o Dr. Polemides não fez mais
do que demonstrar a real capacidade de seu produto. Veja o senhor, podemos
criar uma espécie de dosador, como um saleiro, para que as atividades de
casa sejam reduzidas a meras... pitadas. – Ele estendeu a mão aberta, com a
palma para frente. – Não responda ainda! Quer dizer... quem sou eu para
dizer o que o rei deve fazer ou não, mas apenas peço, com toda humildade
herdada nas ruelas do porto, que me ouça por um instante. Tente imaginar um
morador de casta simples, como... – Ele correu os olhos pela sala, procurando
um voluntário. Só havia dois soldados, o velho, o rei e as amas – como eu.
Estou em minha casa, cuidando de meus quatro filhos pequenos, e não tenho
tempo para cortar lenha... É uma cena fácil de imaginar, e tenho certeza que o
senhor tirou de letra, visto que os cérebros mais brilhantes do globo curvam-
se diante de sua excelência e primor. Então, o que fazer? Penso eu...
– Fleros... – o rei apertava um dos chifres com muita força. Afrouxou os
dedos, antes que o deslocasse do lugar. – Só vou dizer uma vez. Cale-se.
Fleros baixou a cabeça imediatamente e cruzou os braços para trás. O rei
não ouviu mais uma palavra, mas teve a impressão de ver a boca do serviçal
continuar se movendo.
– Majestade – adiantou-se o Dr. Polemides –, peço humildemente que
permita-me fazer somente mais uma demonstração.
O rei esfregou os olhos e respirou fundo. Em seguida, repassou em sua
mente o que teria de fazer no decorrer do dia. Ser lavado pelas amas, e todo
banho era um suplício, pois sempre davam um jeito para que algo
desagradável acontecesse a seus cabelos. Havia também uma reunião do mais
sólido enfado, onde repassaria os relatórios do tesouro aos representantes de
distrito. Gherda provavelmente apareceria para o chá semanal, e suas
observações ácidas certamente ajudariam a dar um pouco mais de cor ao dia,
mas não era certo se ele viria. Andava muito ocupado com o recrutamento
dos novos funcionários da fortaleza.
– Pois bem, Dr. Polemides – o rei estalou os dedos das mãos –, seja breve
e limpe essa bagunça em seguida, por gentileza.
– Certa e absolutamente, Majestade! – O velho emper-tigou-se, animado,
e estalou os dedos em direção à porta de entrada, que estava entreaberta. –
Ulla, pode entrar, faremos o petardo!
Uma moça entrou na sala, e o rei ajeitou-se na poltrona quando a
contemplou. Era um palmo mais alta que o Dr. Polemides. Tinha os cabelos
escuros, cascateando do lado esquerdo até as escápulas, e raspados quase
rente à pele do lado direito, perto das orelhas. Deu passos firmes e elegantes
em direção ao velho, e Silkai notou como suas pernas ficavam à mostra,
devido aos cortes cavados no vestido.
Apesar das vestimentas um tanto excêntricas, o rei achou que ela não
tinha as feições gastas e insolentes das meretrizes; pelo contrário. Ela emitia a
aura de quem nunca ergueria o tom de voz, e isso o agradou muito.
– Quem é essa agradável senhorita? – perguntou Silkai, sem desviar os
olhos da moça.
– É minha filha e ajudante, Majestade – completou o velho, com orgulho
na voz. – Será uma grande cientista um dia, não tenho a menor dúvida.
– Majestade Branca... – A moça fez uma reverência diante do trono.
Silkai estufou ligeiramente o peito e acenou com a cabeça. Sabia que sua
figura alva, em contraste com os chifres e escamas de dragão do trono,
formava uma imagem esplendorosa e irresistível.
– À vontade, Srta. Ulla. Prossiga com o experimento, por gentileza.
O velho abaixou-se e apanhou em sua bolsa um objeto redondo,
envolvido em tiras marrons, como couro curtido. Era do tamanho de uma
maçã e exibia um fio de barbante projetando-se da parte de cima. Ele fez um
sinal para que a filha se posicionasse de um lado da sala e deu passos para
trás, até que estivessem a certa distância um do outro.
– O que temos aqui nessa esfera, Majestade – começou o velho –, é uma
alta concentração do pó-de-fogo que mostrei agora há pouco. Essa quantidade
é capaz de derrubar um pequeno casebre, ou abrir um buraco em uma murada
de três blocos.
Os soldados ficaram em alerta, e Silkai estendeu a mão para frente,
pedindo-o para que parasse de falar.
– Dr. Polemides... – falou o rei, pausadamente. – Certamente não pretende
fazê-la explodir em meu palácio, eu espero.
O velho riu e atirou a bola para o alto, deixando-a cair nas próprias mãos.
Fez isso repetidas vezes, e Fleros dava passinhos para o lado, em direção à
porta.
– Não creio que gostaria de ver minha adorada filha – falou o velho – feita
em pedaços, Majestade. Não se preocupe. Nada nos ocorrerá. O que desejo
demonstrar – apontou para o barbante na ponta – é justamente a segurança do
dispositivo. O pó não é capaz de detonar por si só, a não ser que sofra atrito
ao mesmo tempo em que é exposto ao ar. Lembra-se?
Ele pegou uma pitada de pó em cima da bancada de madeira e atirou no
chão. O piso foi iluminado imediatamente por uma breve chama, que se
dissipou no ar.
– Portanto – continuou –, enquanto tiver o lacre, nada pode acontecer.
Ele atirou a bola nas pernas da filha, do outro lado da sala. O objeto
rebateu e caiu rolando no chão, intacto. Silkai demorou um segundo a mais
para desviar os olhos da moça.
– Se quiser fazer um comboio repleto de inimigos voar pelos ares, Sua
Alteza – concluiu o velho, com a voz dramática dos artistas –, basta remover
o barbante. É a última palavra em armas militares, posso lhe assegurar.
– Eu disse que o homem era um gênio, Majestade – Fleros começou a
bater palmas irritantes. – Eu disse! Mas o senhor tinha razão em não me
ouvir, como sempre. Não é prudente tomar decisões baseadas na própria
emoção ou no testemunho de outrem. Tulma se tornará o baluarte das terras
dos homens!
– Fleros...
– Sim, Majestade. Não falarei mais.
– Dr. Polemides – prosseguiu o rei –, sua invenção é decerto uma obra
muito engenhosa. Qual seria a proposta inicial que tinha em mente, quando
veio me procurar?
– Obrigado pela chance de negociar, Sua Alteza. Não procuro por
riquezas, minha vida é boa por si só, quando estou em minhas bancadas de
experimentos. Descobrir novas tecnologias é o que me move. Contudo, não é
possível que eu produza o pó por demanda e o entregue, pois as matérias-
-primas são escassas e esparsas. Podemos contar com todo nitrato de potássio
do mundo, mas conseguir enxofre em Virídea não é tarefa para o dia a dia de
um velho.
– Vá direto ao ponto, Dr. Polemides, por gentileza.
– Pois não, Majestade. Dê-me recursos e matéria-
-prima, e lhe entregarei seus estoques por demanda. Forneça-me entregas
semanais em barris ou caixotes fechados e providencie também mão-de-obra
extra. De preferência, estudantes promissores de alquimia e química de
componentes.
O rei fingiu pensar por um instante, para não parecer fácil demais.
– Não costumo tomar decisões sem antes ouvir os conselhos de Gherda,
mas hoje abrirei uma exceção. Tenho certeza que ele não se oporia a uma
tecnologia tão inovadora e útil para a capital. – Silkai deu uma última olhada
em Ulla. Ela parecia legitimamente feliz pelo pai, e ficava ainda mais bonita
quando tentava disfarçar o sorriso. – Então estamos acertados! Deixe seu
endereço e de suas instalações com o secretário, para que eu possa enviar
meus emissários para detalhes futuros.
***
O cavalo estacou de frente para os portões ao sul da capital, levantando
poeira com os cascos. O sol batia sem piedade no ouro que detalhava a
madeira. Os blocos de calcário e mármore dos muros faziam suas vistas
doerem ainda mais. Ele não aguentaria muito mais tempo. Olhou para cima e
viu os guardas no solo apontarem suas lanças e os quatro soldados no alto da
murada posicionarem suas bestas, de forma ameaçadora.
– Quem é você, viajante? – perguntou um dos guardas, aproximando-se.
Pela forma como ele refreou os passos e seus olhos abriram-se, podia-se notar
que tomara um susto com a aparência do homem.
– Não está me reconhecendo, imbecil? – rosnou o homem no cavalo,
mostrando um pequeno objeto de identificação nas mãos. – Ah, droga, meu
peito! Ande, abra logo essa droga, antes que minhas costelas perfurem o
fígado. Está difícil respirar!
– Sim, senhor, perdoe-me! – gaguejou o guarda, vi-rando-se para os
outros. – Abram, abram! Ele precisa ver um médico!
O homem escoiceou o cavalo e atravessou as enormes folhas dos portões.
A sombra parecia melhor do lado de dentro. As narinas estavam muito
entupidas de sangue seco, mas tinha certeza de estar exalando um cheiro
pútrido. Os outros guardas o encaravam em um misto de repulsa e espanto.
– Obrigado, idiotas!
Devo estar realmente um caco. Espero não causar um colapso em uma
daquelas velhas quando eu passar pela praça central.
– Quer que mandemos avisar o rei de sua chegada? – perguntou um deles.
O homem lançou-lhe um olhar reprovador. Os olhos exibiam um brilho
avermelhado em decorrência dos vasos sanguíneos arrebentados. Os cabelos
enrolados estavam empapados de gordura, suor e areia, e não cobriam as
equimoses inchadas no rosto. Mas esses eram machucados leves em
comparação com os do tórax, rasgado em vários talhos e com inchaços nas
laterais, provavelmente devido a um princípio de hemorragia interna.
Nas testas dos soldados estava nitidamente escrito:
Como esse infeliz ainda está vivo, e falando?
O cavalo trotou desajeitado pelas ladeiras de pedra, fazendo o homem
contorcer-se e quase cair do assento. Mas ele não cruzara tanto terreno,
enfrentando a morte por dias a fio, para morrer antes de falar com o rei.
Passou pela praça, sentindo os olhares quase palpáveis dos transeuntes, e
também ouvindo seus cochichos. Estavam horrorizados pelo morto-vivo que
andava a cavalo, e não era para menos. Subiu a via principal, e já podia
avistar, depois da quebra da ladeira, os topos brancos das fortalezas gêmeas
despontando no céu. Faltava pouco.
***
Gherda deixou a sala do secretário sem concluir a frase. O homem
permaneceu ainda um tempo com a pena nas mãos, esperando pelas
instruções, mas o conselheiro o ignorou. Ouvindo o burburinho das ruas, ele
deixou o cômodo, desceu pelo corredor de entrada e pediu aos guardas para
que abrissem a porta da frente.
A luz do dia incomodou suas vistas, e ele esperou um instante, cobrindo o
rosto com uma das mãos. Quatro soldados cercavam um cavalo que parecia
carregar um homem enorme e, aparentemente, muito ferido. Um círculo de
pessoas curiosas fechava-se em volta deles, cochichando e fazendo
especulações.
– O que está acontecendo aqui? – perguntou Gherda, em voz alta,
chamando a atenção dos soldados.
– Esse homem diz querer falar com o próprio rei – falou um dos soldados,
ainda apontando a lança para o cavaleiro.
Gherda empurrou algumas pessoas e chegou mais perto. De fato, o
homem estava praticamente morto, apoiado pela sela da montaria. Mas o
conselheiro, por mais que tentasse, não o reconheceu de forma alguma. Ele
estava muito deformado. Para dizer a verdade, mesmo a mãe dele teria
dificuldades em identificá-lo.
– Gherda, seu careca maldito – grunhiu o homem, fazendo bolhas de
sangue com os lábios. – Diga a esses emprestáveis para saírem do meu
caminho.
– Mas quem é você, cavaleiro? – perguntou Gherda.
– É um bandido! – gritou uma mulher.
– Calem-se todos, ou mando prendê-los! – ordenou o conselheiro. –
Vamos, cavaleiro, preciso que me diga o que quer, para que posa mandar os
soldados se afastarem.
O homem estendeu o braço, e sua mão enorme, calçada por uma luva,
revelou um objeto branco e brilhante. E Gherda soube quem era.
– Pelos céus... o que fizeram com você? Onde estão os outros?
– Os mataram, os desgraçados. Eu os quero em peda-ços, Gherda... –
rosnou, salivando. – Coloque-me diante do rei, é para isso que voltei!
– Mas você precisa...
– Faça esse favor a um camarada semimorto, seu maldito cafetão! Estou
viajando assim há dias! Não vejo comida há dois!
***
Silkai caminhava lentamente em direção à porta. Suas amas seguravam
seus cabelos, e era hora do maldito banho. Ia devagar, para não acontecer
nenhum incidente desagradável, quando alguém socou a porta pelo lado de
fora, quase fazendo-o tropeçar de susto.
– Majestade, sou eu, Gherda!
– Abram – ordenou o rei aos guardas.
Gherda entrou e imediatamente estacou diante da porta. Silkai achou que
seu rosto estava pálido demais. O conselheiro não vinha com boas notícias.
– Perdoe a intromissão, Sua Majestade. Há alguém aqui com notícias de
seu interesse. Posso mandá-lo entrar?
Silkai fez uma careta.
– Eu tenho escolha? – Ele esperou até que Gherda se sentisse
suficientemente desconcertado e concluiu: – Mande-o entrar, desde que seja
breve.
Gherda fez um sinal, e o homem enorme entrou, se arrastando. Andando a
pé ele parecia ainda mais machucado. Tinha pelo menos uma das pernas
quebradas, e as botas encharcadas de sangue seco. Ele freou, antes de pisar
no carpete do rei, e mantinha a cabeça meio abaixada, num gesto mecânico
que fazia em portas comuns. Mas a da sala do trono era alta demais, até
mesmo para ele.
– Quem é esse homem? – perguntou o rei, enojado, lutando para não tapar
a boca com uma das mãos.
O homem fez uma reverência sofrida e atirou um brasão branco no
carpete real. Logo depois, enfiou a mão no bolso e retirou mais três, que
também foram ao chão.
O rei abriu os olhos ao máximo quando entendeu.
– A Ordem Branca... – balbuciou. – E você deve ser...
– Mulle, majestade. – Ele tossiu, cobrindo a boca com a mão, e a
escondeu em seguida, para ocultar os perdigotos de sangue. – O resto está
morto. Jogaram-nos de uma ribanceira para sermos devorados pelos urubus,
mas, até para a minha própria surpresa, consegui escapar. Acho que vaso
ruim realmente não se quebra...
– Quem fez isso? – grasnou o rei. – Não estavam atrás de um dragão
moribundo?
– Um dragão moribundo e uma garotinha pequena. – Mulle respirou
rapidamente algumas vezes, para recobrar o fôlego. As respirações profundas
eram impossíveis a essa altura. – É com vergonha que admito, Majestade,
mas foi o que aconteceu. A garota não ofereceu muito risco, mas o tal dragão,
o mensageiro, é um emissário da morte, Sua Alteza. Nos pegou de jeito,
mesmo sem as asas.
– Incompetentes... Mataram a garota, pelo menos?
– Não. Matamos sua avó e ela entrou em choque. É uma tal de Mirta
Vento Amarelo, parece que é uma figurinha aqui na capital. Uma estudiosa
ou algo assim.
O rei começou a caminhar de um lado a outro, dando trabalho para as
amas.
– Essa garota é problema – pensou em voz alta. – Ela sabia quem eram
vocês?
– Se sabia, não deu o menor sinal.
– Menos mal. Ela não pode associar meu nome com o que aconteceu ao
dragão, estão me ouvindo? Seria um caos! Todos os malditos acadêmicos e
escolares carregam água na peneira por causa dessa fedelha!
– O que devo fazer então, Majestade? – perguntou Mulle, fazendo força
para manter os olhos abertos.
– Você, trate de ficar vivo, pelo menos. Podemos usá-
-lo no futuro. O dragão pode ser um problema. Se chegar às Geleiras e abrir o
bico, pode colocar tudo a perder.
– Majestade – interrompeu Gherda –, se estão viajando juntos, o
mensageiro não levaria a garota para as montanhas. Principalmente agora que
ela perdeu a avó. Ele deve sentir uma certa responsabilidade em protegê-la.
Acredito que possam estar em qualquer lugar civil, mas não lá, na minha
modesta opinião.
– Pode ter razão, Gherda – concordou Silkai. – Pode ter razão... De
qualquer maneira, não quero esperar para ver o que acontece. Esses dois já
deviam estar mortos há semanas! – Apontou o dedo para o conselheiro. –
Mande colar avisos por toda a capital. Darei uma recompensa farta em ouro
para quem me trouxer as cabeças desses dois! Essa pirralha tem de ser
eliminada!
25 – QUEIMA DE CARCAÇAS
Nil gemeu e fez força com o ombro, a fim de apoiar o cotovelo no chão
e levantar-se. Todo seu corpo estava anestesiado, coberto de gelo, e entrava
neve pelos rasgos de sua roupa fina, deixando sua pele levemente azulada.
Não sentia nada nas regiões onde fora machucada. Os dois calcanhares
destroçados, a coxa esquerda com um talho de dois ou três palmos, além de
inúmeras outras escoriações e lacerações pelo torso. Não sentia nada e, num
primeiro instante, Nil temeu perder algumas partes do corpo para o
congelamento.
Ela terminou de espalmar os flocos acumulados nos ombros e ficou de
joelhos. Os braços tremiam tanto que chegavam a balançar, e seu queixo
repicava, fazendo os dentes baterem um no outro, em velocidade. Ela levou
muitos minutos até se dar conta do que ocorrera. Devia estar morta nesse
momento, mas, aparentemente, e por muita sorte, caíra no monte de neve
deslizada da plataforma.
Pensou em bendizer o patamar salvador, mas logo percebeu a dimensão
do precipício em que se encontrava. Devia estar a mais de cem metros de
altura e era possível ver toda a linha da cadeia de montanhas das Geleiras
curvando-
-se no horizonte, misturada em um véu enevoado. Dali, a vista mostrava a
imponente montanha de Corff surgindo do solo, em toda sua nitidez. O anel
azulado refletia o sol pálido, com um brilho acanhado, e estava muito acima
do segundo monte mais alto. Atrás dela, o muro sólido subia uns seis ou oito
metros. Seria impossível escalar de volta.
Nil Inclinou-se para frente com muita cautela, pois o piso de pedra estava
liso e traiçoeiro. O vento forte também não ajudava. As palmas das mãos
começaram a deslizar na superfície, e ela decidiu que seria melhor não
arriscar qualquer movimento brusco. Nem se ela quisesse, pensou. Esticou o
pescoço trêmulo para ver além da borda e avistou o patamar seguinte, logo
abaixo. Que azar, era uma queda de uns vinte ou trinta metros. Seria morte
certa, mesmo se pousasse novamente em outro montante de neve.
Recuando com movimentos muito cuidadosos, ela voltou e deixou-se
tombar de costas na parede do patamar. Nil olhou ao redor e estudou suas
possibilidades. Já adianto, meus amigos, que nem mesmo os mais otimistas
conseguiriam sacar ou apontar ali uma saída feliz e bem-
-sucedida.
E então recomeçou a nevasca, batendo agressiva na pele da moça, e não
havia onde se esconder.
Era isso. Ela conseguira um destino pior do que estraçalhar-se lá embaixo.
Estava presa numa prateleira de pedra de três braças por quatro e nunca
sairia.
***
Lumuir arrastou as botas, sulcando a neve, e afastou as pernas, apanhando
o animal morto pelas patas traseiras. Que dia desgraçado, pensou ele, com
amargura.
– Desculpem-me... – explicou, meio sem jeito. – O comandante espera
que eu apareça com esse último, aqui. A pira já está acesa.
– Pira? – perguntou Dana, com a voz limpa. Lembrou-
-mn nmjse em seguida de simular um pouco mais de dor. – Estão queimando
os branquelos?
– Sim – Lumuir deu um puxão e o animal começou a deslizar. – Queria
poder ajudá-los a subir, mas... sabem como é.
Dana e Sóz trocaram um olhar cheio de sombras, ao qual Lumuir não deu
muita atenção, e apoiaram-se um no outro, levantando-se do chão. Deram
tapas no próprio corpo, para espalhar os focos esparsos presos na roupa, e
também começaram a se arrastar em direção à colina.
– Não há problema, morto-vivo – zombou Sóz, sem muita energia,
sempre olhando para a carcaça do animal. – Tem razão em querer se apressar.
Não queremos o comandante ainda mais nervoso por conta da notícia.
Lumuir parou por um instante e pensou em Nil. Era realmente uma
lástima. Pobre garota.
– É... – foi o que disse, simplesmente. – Esperou até que os dois
adiantassem um pouco, talvez para checar se estavam em condições de
continuar por conta própria. Praguejou mentalmente contra a nevasca
impiedosa, que o obrigava a andar de olhos fechados. Depois disso, voltou a
inclinar o corpo e recomeçou a puxar o carcaju.
De costas, ele seguia puxando a carcaça colina acima. Olhava para trás de
vez em quando, checando o solo onde pisava, e seu olhar cruzou-se com o de
Sóz. O rapaz parecia notar algo de estranho. E não seria para menos; o animal
estava com os membros dianteiros esticadas acima da cabeça, afinal, e um
deles mostrava o nítido corte na articulação, onde faltava a pata.
– Pois é... – Lumuir puxou o assunto. – Estranho, não? Quem teria
cortado o carcaju morto e onde diabos foi parar essa pata?
Sóz demorou muito a responder, mas Lumuir julgou que fosse uma
letargia, ou lerdeza, como ele diria, devido aos ferimentos.
– Está faltando uma pata? – Sóz olhou, com expressão de surpresa no
rosto.
– E como não? – Lumuir apontou para o corte na pata do animal. – Isso é
muito estranho, se quer minha opinião.
– Certamente a garota o cortou, enquanto lutavam, e não nos demos conta
– raciocinou Sóz. – Essa neve é muito fofa, e a maldita nevasca está vindo de
forma imprevisível. Eu não me surpreenderia se a pata estiver enterrada logo
debaixo de nossos narizes.
Lumuir pensou na possibilidade, mas não concordava muito. Para não
contrariar o companheiro, apenas acenou positivamente:
– Pode ser que esteja certo. Não sei por que me aborreço com isso ainda.
***
Como Lumuir esperava, Hillel não recebeu bem a notícia. Nada bem, na
verdade. O comandante havia se aproximado de Sóz com rapidez e agarrado
com as duas mãos os trapos de suas roupas. Chegou a erguê-lo no ar, a
despeito dos ferimentos e aparente abatimento físico do rapaz:
– O que fizeram, seus animais? – rosnou, salivando por entre os dentes.
Era possível ver os perdigotos voando de sua boca e pousando no rosto de
Sóz.
Dana ainda havia tentado interferir, pedindo ao comandante que se
acalmasse, mas acabou sendo empurrado e desabou no chão.
Lumuir preferiu só assistir, ao lado da pira. Não iria deixar as mãos
virarem pedras de gelo só para defender os dois, que provavelmente
mereciam a bronca. Valdor e Iva, por outro lado, trancaram o rosto e deram
as costas aos dois colegas. A tensão entre os quatro já vinha crescendo há um
tempo, e Lumuir não se espantou com a reação. Mas era uma pena,
realmente. A garota não deveria ter morrido, e os culpados provavelmente
eram eles, pelo menos em parte. Sóz e Dana eram profissionais e muito bem
treinados. Proteger uma garota de um ataque era algo que se aprendia nos
primeiros vinte minutos de alistamento para o grupo de busca.
Sem contar a tal pata cortada do carcaju.
Desgraça... esse caso está fazendo meus miolos darem voltas.
Com o rosto vermelho de raiva, Hillel sacou a espada, sem mais nem
menos. Por um momento, Lumuir pensou que ele fosse degolar os
subordinados, pois nunca vira o comandante em tal estado emocional. Estava
pior do que quando Kormel morrera. Mas no fim ele não tinha intenção de
ferir ninguém. Hillel apenas afastou-se dos dois e seguiu em direção às
entradas do paredão, de onde saíram os carcajus pela primeira vez, e onde
Valdor havia sido atacado. Andava com passadas largas e pesadas, como se
castigasse o solo por seus problemas.
Como ninguém o seguia, Hillel virou-se para o grupo e berrou:
– Se quiserem passar a noite aí mesmo, não se acanhem. Desmontem as
barracas! As unidades esperam pelo tempo que for necessário do outro lado.
Todos os cinco recolheram seus pertences e foram atrás, sem dizer
qualquer palavra. Sóz e Dana pareceram subitamente ganhar velocidade, e até
pareceu que seus ferimentos estavam melhorando, o que, claro, não havia
acontecido. Na melhor das hipóteses, eles iam somente infeccionar com o
tempo. Valdor, ombro a ombro Iva, já conseguia andar sozinho, e Lumuir,
por alguma razão, preferiu seguir ao lado deles. Só lamentou ter de sair de
perto do fogo, que estava realmente reconfortante. De qualquer maneira,
pensou ele, ia apagar em pouco tempo, mesmo.
Entraram todos novamente na escuridão das caver-nas. Nenhum deles viu
o momento em que a pata de carcaju foi jogada na pira, pouco antes.
***
O vento forte assobiou no alto da torre de pedra, e Nil despertou. Ela
havia pegado no sono e abriu os olhos torcendo para que tudo não tivesse
passado de um pesadelo. Desejou não ter saído do lado do amigo Labal,
quando ainda fazia parte da unidade de Zano. Ele era um velho maluco, que
sempre a matava de susto com suas aparições repentinas, mas ela sentia
saudades. Ele certamente teria alguma solução para a situação atual, por mais
impossível que parecesse.
Melhor ainda, Nil pensou, se ela nem tivesse aceitado o convite de
Gherda para entrar na Ordem Branca. Mas isso implicaria que ela teria de ter
se casado com o rei Silkai. Ela estremeceu ao pensar nele. Na forma com que
ele a olhava quando ela foi até o salão de recepção falar com o primo.
– Como... – ela decidiu pensar em voz alta, para manter-se aquecida.
Nesse momento, até mesmo a respiração começava a ficar pesada e
endurecida. Podia estar perdendo os pulmões para o frio – Gherda, aquele
maldito... consegue... – ela fez uma pausa, recuperando o fôlego – trabalhar
para um homem feito Silkai?
Nil quase pegava no sono novamente, quando seus ouvidos acusaram um
ruído estranho. Primeiro começou como uma série de batidas muito distantes
e abafadas. Os ruídos vinham da superfície, seis metros acima de sua cabeça.
Ela ficou parada, tentando identificá-los, mas estava muito longe, e os
assobios do vento não ajudavam. Parecia, inclusive, que a parede atrás de sus
costas vibrava discretamente, mas não soube dizer se era sua mente pregando
peças.
Pouco depois, o vento deu uma trégua, apesar de a neve começar a cair
mais forte, e aí sim ela ouviu vozes. De início, pensou que fora sua
imaginação, como a dos viajantes sedentos num deserto, mas, depois, ficou
difícil contestar. As vozes foram ficando gradativamente mais e mais altas.
Em alguns momentos era possível identificar algumas palavras que eram
faladas e trazidas no ar.
– As... unidades! – gaguejou, tentando colocar-se de pé.
O calcanhar latejou instantaneamente, como se ela recebesse uma facada
nos tendões, mas mesmo assim, não caiu. As unidades estavam passando por
ela! Labal estava por perto!
– Socor... – tentou gritar, mas a voz não saiu. – So... corro!
Estava meio rouca, e o vento começava novamente a assobiar de forma
aguda. Nil começou a entrar em pânico. Eram poucos homens, passariam por
ela em minutos, e fariam uma curva para o norte, sumindo para sempre. Ela
sabia, passara por aquele trecho! A diferença é que não entrariam na garganta
por onde desceu com Sóz e Dana, eles virariam à direita e subiriam outra
colina, atingindo os patamares de cima. Só então parariam para descansar,
quando se encontrassem com os homens do comandante.
Nil ajoelhou-se com dificuldade, cada articulação espetada por mil
agulhas afiadas. Ela juntou as mãos, apanhou um punhado de neve e o
modelou, até formar uma esfera mais ou menos redonda.
As vozes estavam muito claras, e ela reconheceu algumas delas. Eram os
homens de Zano e Habass, na frente.
– Sem chances – dizia um deles. – a lebre é sempre de quem atira
primeiro, porque foi quem a viu!
– Ei, ei! – gritava outro, contendo alguma confusão. – Solte isso aí, rapaz!
Quer que eu fale com o capitão?
– Ela me procurou... – confidenciou uma voz jovem. – Juro pelo rei!
Outros passavam em silêncio, em marcha constante.
– Socorro! – ela gritou. A garganta doeu com o esforço e quase não fez
nenhum efeito. Seria melhor atirar a pelota de gelo.
Juntando toda força, o que não era muita, ela inclinou-
-se para trás e mirou para cima, atirando o objeto para cima. Seus ombros
quase estouraram com o esforço, e o projétil não subiu muito mais do que um
metro. Caiu de joelhos, ofegante, mas não desistiu.
Apanhou outro punhado de gelo e tentou novamente. Não conseguiu
atingir sequer metade da altura.
– Por favor... – gritou ela, de forma inaudível. – Olhem para baixo...
Nil sentiu uma dor estranha percorrendo por sua espinha. Os pelos dos
braços começaram a se eriçar. Era o pânico ao constatar que as vozes se
afastavam e ela seria deixada para trás.
Apanhou mais gelo e fez uma terceira tentativa. Dessa vez, a bola de neve
subiu menos que as outras duas. Era um sinal de que o corpo de Nil estava
desistindo.
Para piorar, ela não podia dizer se a unidade de Forg já havia passado ou
não, junto das outras. A colina era larga o suficiente para que as três
caminhassem lado a lado.
Nil só precisou de alguns minutos para descobrir, pois novas vozes
começavam a passar pela estrada, e suas esperanças se renovaram. Forg vinha
por último! Ainda podia ser ouvida por Labal!
Com uma onda de calor atravessando seu corpo, Nil olhou para o chão,
procurando não algo em específico, mas qualquer ideia que aparecesse. Se ela
tivesse uma corda ou algo comprido, poderia, girando-a feito um laço, atirar
algumas pedras para cima, e isso certamente chamaria a atenção de todos.
Mas ela não tinha.
De repente, suas sobrancelhas elevaram-se, e seus olhos ficaram mais
abertos. O pelego!
Mergulhando no monte de neve, ela começou a cavar com as mãos,
procurando pelo cobertor de peles.
– Que... idiota... – gaguejou. – de-devia ter pensado.. nisso antes...
estúpida Mienil... merece mesmo morrer.
O pelego não era nem de longe tão útil quanto uma corda, e não serviria
para girar e atirar pedras para o alto. Mas era feito para servir como capa,
então tinha uma abertura para a cabeça. A parede de pedra era repleta de
pequenas elevações, pequenos ressaltos de pedra pontiaguda, onde ela
poderia segurar. A maioria era protuberante o suficiente para se apoiar pés e
mãos, e ela era leve. Seu plano era jogar o cobertor para cima, torcer para que
ele se agarrasse em uma dessas protuberâncias, e então subir.
Se tudo desse certo, com quatro ou cinco movimentos, ela estaria na
beirada do precipício. Se desse errado, conseguiria ao menos atingir metade
da distância e atirar algo para cima, para chamar atenção. Ou, quem sabe, ele
rasgaria, derrubando-a de novo no monte de neve. Mas nessa última
possibilidade ela preferiu não pensar.
– Enc... encontrei! – O cobertor estava quase branco, com farelo de neve
grudado pelo tecido. Talvez ficasse um pouco escorregadio, mas essa seria
sua melhor chance. Ela conferiu mais uma vez o tamanho da peça de couro e
ficou satisfeita. Cobriria uma cama de casal e devia servir. Nil sentiu uma
pontada de animação, e seus braços já se aqueciam, o que diminuía
consideravelmente a dor.
Nil levantou-se no momento em que as vozes dos homens de Forg
ficavam nítidas sobre sua cabeça.
– Ago... agora ou... nunca.
A parte esquerda da calça ainda estava intacta, e ela encheu os bolsos
laterais de neve. Apoiou os pés, para não escorregar, e atirou o comprido
tecido de couro. Ele deslizou sobre as pedras, ameaçou agarrar-se em algo e
caiu de volta ao chão.
– Va.. vamos...
Ela tentou novamente, e a abertura do pelego encaixou-se em um ressalto
pontiagudo. Ela girou e torceu o tecido até ele ficar trançado e então o
agarrou com as duas mãos. Colocou o pé direto por cima de uma pedra na
parede e tentou puxar o corpo para cima. O pelego começou a escorregar,
mas ela segurou um ressalto acima da cabeça, antes que o cobertor se
soltasse.
Pronto. Ela estava a meio metro do chão. Faltava um pouco mais.
Nil continuou tendo um sucesso modesto e em poucos minutos já estava a
dois metros de altura. Era quase metade do caminho. A dor nas articulações,
contudo, passou a dar sinais mais violentos. O peito da moça já arfava de
cansaço, e as vozes já iam distanciando-se. A última unidade ia ganhando
terreno, deixando-a para trás.
– Preciso... continuar...
Fez o movimento mais uma vez, e subiu mais meio metro. Os joelhos
queimaram. Os dedos das mãos davam sinais de endurecimento e, quando ela
os abria e fechava, causavam dor lancinante.
Nil já não ouvia mais qualquer voz. Apenas um leve rufar dos passos,
batendo graves em marcha. Já deviam estar fazendo a curva para a direita.
– Por favor... Labal, eu estou aqui...
Com os ombros congelados, ela girou o braço direito e atirou mais uma
vez o pelego. Seus dedos a traíram e não seguraram firme o suficiente. Com o
queixo aberto, ela viu o cobertor ser carregado pelo vento, bailando de um
lado para o outro, passando pelo patamar de onde ela veio e desaparecendo
na névoa.
– N... não... volte... aqui.
Suas pernas começaram a sacudir de pavor. Já não sentia as mãos,
entorpecidas pelo frio. Quase não percebeu quando seu pé pisou em falso,
fazendo-a despencar de volta na neve.
***
Meia hora havia se passado. Nil ainda estava deitada de costas sobre a
neve macia, o rosto virado para cima, olhando o céu. Seus olhos eram duas
manchas vermelhas no rosto, de tanto chorar. Era isso. Ela havia tentado,
pelo menos.
Juntando suas últimas forças, Nil resolveu acabar logo com aquilo. Não
fazia sentido agonizar de fome até a morte. Com as pernas bambas feito
folhas de palmeira, ela tropeçou e caminhou passo a passo em direção a uma
das bordas do patamar. Especulou se a queda seria suficiente para matá-
-la, pois não queria cair em outro monte de neve com o resto dos ossos
espatifados. Isso sim seria uma morte lenta e agonizante. Depois disso viriam
os carcajus, ou abutres, para devorá-la viva.
Mas não. Estamos falando de cem metros de altura. Nada sobreviveria
àquilo.
Nil chegou a uma distância de um metro da beirada, e o vento bateu forte
em seu peito, desequilibrando-a um pouco. Ali era ainda mais escorregadio.
Havia líquen saindo da pedra no chão, e também na parede, além de
cogumelos minúsculos que conseguiram sobreviver naquele lugar tão
inóspito. Dois troncos secos e finos mostravam que plantas maiores não
tiveram tanta sorte.
Ela sentiu um peso incômodo na perna direita en-quanto caminhava.
Ainda estava com os bolsos cheios de neve. Torcendo os lábios para baixo,
ela fez uma careta enojada e enfiou a mão para retirá-la. Mirou nos troncos
secos e rosnou:
– Maldito lugar desgraçado – para sua surpresa, a voz voltara. Mas era
tarde demais.
A neve espatifou-se na parede, mas aconteceu tão rápido, que Nil não teve
tempo de reagir. Os troncos retorceram-se em um segundo e abocanharam o
ar. Por dois centímetros não alcançaram o joelho dela. Nil deu um grito
agudo de susto, que ecoou algumas vezes, ressoando pela parede. Sem
controle, ela escorregou, tombou para o lado e bateu as costas na parede, com
um baque.
Eram duas serpenplantas.
Recuperando-se do susto, ela respirou fundo algumas vezes e tentou
voltar a se levantar. Então um tufo pesado de neve veio do alto e caiu sobre
sua cabeça, esfarinhando-se para os lados.
– Quem está aí? – veio uma voz de homem, lá de cima.
E o coração de Nil disparou no peito.
27 – ÚLTIMO ACAMPAMENTO
Já era quase noite, e o sol flertava com uma paleta quente de cores,
variando a cada poucos minutos tons de laranja, amarelo, violeta. O terreno
era duas vezes mais largo do que o platô anterior, e também mais alto. As
dezenas de barracas estavam montadas e prontas para uso, e foi necessário
que os soldados escavassem a terra em cada lote, pois a neve fresca subira
três palmos acima do esperado. Nesse momento, a nevasca havia dado uma
trégua, e grandes fogueiras iluminavam o tapete branco, reluzindo e
acendendo as silhuetas aliviadas dos soldados.
Lumuir, com uma caneca de líquido quente nas mãos, caminhou para
longe do fogo e aproximou-se de um homem que se sentava mais afastado.
Ele estava desolado, o pobre coitado.
– Labal, não é? – sondou o pálido gigante. – Eu... trouxe um pouco de
chá.
Lumuir pensou em sugerir que ele se levantasse e fosse para perto do
fogo, mas no fim permaneceu calado. O homem estava aborrecido por ter
perdido o amigo, Joelho. Lumuir lembrou-se de como ele reagira quando as
unidades chegaram. Quando disseram que Nil havia morrido, e que, além
disso, era uma mulher, o velho ficou louco, literalmente. Não deviam ter dito
isso, mas, como Lumuir gostava de pensar, havia filhos da mãe em qualquer
grupo de humanos. Labal chegou a querer enfiar uma faca em Sóz e Dana,
que já estavam sendo encaminhados para os médicos. Fora uma cena
desgraçada, mas Lumuir entendia. Passar semanas no gelo, isolado do resto
do mundo, podia fazer a cabeça de um homem saltar piruetas no ar. No lugar
do velho, ele também ficaria furioso diante da negligência de Sóz.
Labal apanhou a caneca com uma das mãos. A outra segurava um
pedacinho de madeira, que parecia esculpido. Ele a girava cuidadosamente
entre os dedos. O velho percebeu os olhos de Lumuir no objeto e comentou,
com a voz baixa:
– Joelho gostava de esculpir. – Sorriu e enfiou o objeto no bolso. – Eu não
pensava em devolver, mesmo. Ele que fizesse outro.
Lumuir deixou os lábios subirem num sorriso disfarçado. O velho ainda
se referia a Nil como ele. Mas não diria nada. A cabeça de um homem depois
de muitos dias no gelo... ele sabia como era.
– Está acabando – Lumuir sentou-se também, e ainda assim ficaria da
mesma altura que um soldado de pé. – Sabe disso, não é?
– Sim – respondeu Labal. – Eu devia estar lá, cortando as peças de carne
de cervo, mas acho que hoje eu não seria de muita ajuda.
– Não se preocupe com isso. Nem o próprio Forg mandou vir buscá-lo. –
Lumuir olhou para as mesas de madeira espalhadas pelo acampamento.
Estavam rodeadas de homens com facas nas mãos. Cortavam pedaços de
carne, ensacavam e entregavam a alguém. – Além disso, são só uns dez ou
doze animais. Em poucos minutos já terão tudo preparado.
– Tem razão. Acho melhor pensarmos em ir dormir. Amanhã é o grande
dia. Sairemos antes de clarear, e vocês, do grupo de busca, irão na frente,
provavelmente. Queremos chegar na boca do anel até o início da tarde.
Era verdade. Lumuir animou-se ao pensar que era sua última noite
subindo montes gelados. Restaria só as missões de descida e caçada aos
mensageiros. E há poucas horas haviam encontrado uma excelente trilha de
carcajus nas redondezas. Deixariam os blocos de carne no chão, para que os
animais apanhassem, e os seguiriam em silêncio até que subissem aos
repositórios de oferenda. As unidades viriam logo atrás, cuidando para não
chamar atenção, ou espantar os animais. Todos estariam de armadura branca,
inclusive ele, e usariam peles claras por cima, para camuflar. Quando os
carcajus depositassem a oferenda e se afastassem, os arqueiros das unidades
estariam a postos para disparar flechas especiais nos blocos de carne. As
pontas dos projéteis viriam com um saquinho feito de vesícula de porco,
cheios de veneno de serpenplantas, que arrebentaria quando perfurasse o
alvo.
Teria de dar certo. Por mais que detestasse a ideia, iriam envenenar o rei
dos dragões e torcer para não matá-lo. Ele provavelmente sairia fulo da vida
do covil, ao sentir que temperaram demais sua comida. Mas, a essa altura, as
unidades já esperavam estar longe e fora das vistas do rei. Ele voltaria ao
covil agonizando e chamaria por ajuda.
Em dois ou três dias, as Geleiras estariam infestadas de dragões de todos
os tipos. As unidades caçariam os mensageiros e levariam as carapaças para
Tulma, como o rei Silkai havia pedido.
Lumuir não entendia o que havia de tão importante nas malditas couraças,
mas, claro, nunca questionou o assunto. Ordens são ordens, e o comandante
Hillel morreria por elas. E ele morreria pelo comandante, se precisasse.
– Por que não vai, Labal? – perguntou Lumuir, finalmente. – Digo, por
que não vai se deitar? Amanhã precisaremos de você com os sentidos em dia.
– Forg não gosta de nos liberar sem antes dizer umas palavras, toda noite.
Eu sei, ele se preocupa demais com o moral dos soldados. – Labal olhou para
o horizonte. Era a terceira vez que fazia isso. – Dois dos três batedores de
retaguarda são de nosso grupo. A noite só começará quando eles voltarem.
Lumuir também olhou. Ninguém vinha.
– Já deviam estar aqui, não?
– Eles andam separados, você sabe. Um deles já voltou há alguns minutos
e foi direto para o destacamento de Habass. Os nossos homens, por alguma
razão, estão atrasados. Podem ter visto rastro de lobos que nos seguiam ou
algo assim. Mas que tomem o tempo que precisarem. Eles trabalham para a
segurança do acampamento.
Lumuir assentiu com a cabeça, pois não tinha mais o que dizer. Inclusive,
segundo seu próprio julgamento, havia conversado, só nesse dia, o suficiente
para uma semana toda. Dando dois tapas amigáveis no ombro de Labal, ele
levantou-se e esticou as pernas. Viu figuras entrando no acampamento, ao
longe.
– Parece que se enganou, Labal – disse ele, apertando os olhos. – Os três
vieram juntos. Seu raciocínio está tão lento, que contou errado.
– Do que está falando? – Labal se levantou e olhou também.
Os dois batedores entraram gritando algo. Vinham carregando um corpo
magro, que parecia em frangalhos. Alguns soldados ao redor das fogueiras
levantaram-se bruscamente e começaram a gritar também. Era possível ouvir
o que diziam:
– Comandante Hillel, acharam sua recruta! Ela está viva!
Labal deixou a caneca cair das mãos. E os gritos continuavam:
– Chamem os médicos, depressa!
28 – NA ESTRADA
Era uma manhã de céu limpo e luz branca. Mirta sabia pelo volume de
claridade que atravessava as grades da janela. Alguns fachos estreitos vinham
até o chão, como uma vareta dourada que escapava dos furos e falhas através
do teto. O ar no interior escuro da cabana era pesado e úmido, e o cheiro de
mofo, uma regalia constante. As tábuas de madeira que compunham a parede
eram nodosas e desgastadas, e vigas estreitas de sustentação subiam do piso e
aguentavam firmes o peso do telhado antigo.
O primeiro instinto de Mirta, ainda deitada no catre bolorento, foi levar a
mão até o rosto, conferindo se os óculos estavam no lugar. Depois de senti-
los com as pontas dos dedos, repreendeu-se mentalmente, pois, se estivesse
sem eles, sequer se lembraria de sua existência. Ela então olhou para os
pulsos. Amarrados com um metro e meio de cordas finas e presos em uma
peça de metal na parede. Nos pés, a mesma coisa.
Com a cabeça leve e os membros flácidos, ela fez força e sentou-se. Ao
lado da cama improvisada, havia um balde cujo interior ela sequer ousou
olhar, apenas o empurrou de lado, com o peito do pé. Caixotes e ferramentas
antigas e empoeirados compunham, espalhados, o resto do ambiente.
Infelizmente, não havia sido um pesadelo. Todos os dias acordava ali da
mesma maneira. Desde que os dois irmãos os apanharam na estrada.
Nos primeiros dias sentiu-se tonta demais para pensar em qualquer coisa.
Os dois haviam lhe dado algum sonífero ou coisa do tipo, e isso, somado à
pouca alimentação e hidratação, custara a ela parte dos sentidos. Essa manhã
era o quarto dia, segundo seus cálculos. O sol da manhã atingia as janelas no
meio do caminho entre o amanhecer e o almoço, quando traziam comida. Isso
devia corresponder ao período entre nove e dez da manhã.
Dessa vez ela tentaria alguma coisa.
Olhou ao redor, na esperança de avistar uma superfície cortante onde
pudesse roer a corda, mas não viu nada. A força de seus braços não seria de
qualquer ajuda para arrancá-la da parede, evidentemente.
Parecia a ela que os garotos eram espertos e calcula-ram tudo muito bem.
Ainda que Mirta escapasse das cordas, teria de lutar contra as grades
metálicas da janela, ou tentar fugir pelo lado de dentro da casa, e isso não
seria nada fácil. Para tanto, ela teria de se arriscar antes de conhecer o interior
e ainda conformar-se em deixar Iac para trás, onde quer que ele estivesse.
Cerúleo também estava desaparecido, e isso era outro agravante. A última
lembrança que tinha do pássaro era ele fugindo da carruagem e esquivando-se
das flechas de um dos magricelas. Ela pôde ver que nenhum dos disparos o
atingiu. Depois disso, colocaram um saco em sua cabeça e a conduziram, ao
lado de Iac, floresta adentro.
Sim, os garotos não pretendiam deixá-la escapar, era fato. Mas o que
queriam? A coisa toda não podia se tratar de um roubo, era um sequestro que
não fazia sentido. Tinha de descobrir logo, e talvez sua melhor saída fosse
nas visitas, quando trouxessem água e comida.
Já é um começo, pensou.
Com a cabeça ainda enevoada, ela tombou as costas no catre, mas não
conseguiu evitar de pegar no sono outra vez.
Ela despertou com o barulho da porta se abrindo e rapidamente tratou de
levantar a cabeça para olhar. Com a mesma velocidade, ela foi fechada de
volta. Mirta ouviu uns murmúrios e sussurros do outro lado da parede e
conseguiu identificar algumas frases.
– ...Ela está acordada. Deve ter passado o efeito.
– E você está com medo da garota? – zombou um dos irmãos.
– Prefiro evitar contato.
Discutiram afastados alguma coisa indistinguível, e logo depois as vozes
retornaram:
– Não quero saber. Vou deixar aqui e empurrar com a vara. Se está tão
incomodado, entre você.
Silêncio.
Instantes depois, uma portinhola inferior abria-se na porta, rente ao chão.
Ela viu que era um mecanismo rudimentar, feito à mão. Um retângulo que se
desencaixava da porta, no tamanho suficiente para que um prato de comida e
um copo passassem para o outro lado. Mirta entendeu duas coisas; primeiro,
que o mecanismo havia sido feito, talvez, pelos próprios garotos. Não eram
profissionais, não usavam os modelos de dispositivos usados em celas de
prisões ou salas de interrogatório. E segundo: fossem quais fossem suas
intenções ou atividades, essa não era a primeira vez que faziam.
Um prato surgiu no chão do quarto. Nele parecia conter uma fatia de pão,
uma maçã meio enrugada e uma caneca esmaltada, cheia d’água. Em seguida,
um pedaço de bambu o empurrou meio desajeitadamente até os pés da cama,
e foi recolhido. A portinhola foi encaixada rapidamente, fechando-se em
seguida.
Mirta sentou-se, apanhou o prato e olhou para a comida. Não teria medo
de ser envenenada. Se quisessem matá-la, já o teriam feito. Mas seu estômago
não se animou com o banquete à sua frente. Ela depositou a comida de volta
ao chão, imaginando se Iac estava sendo alimentado. O pobre sujeito
precisaria, provavelmente, de muito mais do que aquilo para conseguir parar
em pé.
Mirta então entrou em uma espécie de devaneio, onde culpava-se pelo que
vinha acontecendo. Ultimamente fora alvo de incontáveis imprevistos,
perseguições e tragédias. Será que Iac teria ficado melhor se não a tivesse
conhecido? E quanto a Cerúleo? O que seria de seu amigo emplumado pelos
próximos dias? Ela não queria ter de testemunhar algo acontecendo a ele. O
mero pensamento fê-la arrepiar-se.
Por mais que pensasse, ela só conseguia atribuir qualquer culpa aos
óculos. Talvez não fosse Brinaff o culpado pelas suas desventuras, e nem um
monstro por ter sido responsável direto e indireto nas mortes em sua família.
Quem disse que o dragão não era também vítima dos experimentos de
Zaraff? Afinal, ele apenas trabalhava, alheio a tudo, quando viu a explosão na
floresta dos lagos e conheceu o amigo vermelho. Quem disse que o próprio
Zaraff também não era uma vítima das controversas forças naturais da
magia?
Coçando a nuca e fazendo uma carranca, Mirta retirou os óculos do rosto.
Ela os colocou na palma da mão e os dobrou, cuidadosamente. Seria possível
que as coisas passassem a dar certo sem eles? Ela teria de tomar uma decisão
rápida, antes que o efeito se dissipasse. Quando ela se tornasse novamente
uma garota comum, não se lembraria de mais nada.
– Cró! – veio a voz grasnada de Cerúleo, do lado de fora da janela. Mirta
se assustou, e os óculos caíram no chão.
– Cerúleo, você está vivo!
– Cró! Cró!
– Calma, calma, eu já vou colocá-los de volta. – Ela começou a tatear o
chão, procurando por eles. Por sorte, não haviam caído muito longe, e a corda
era longa o suficiente. – Eu estava apenas limpando as lentes, seu bobão.
– Cró!
– Não estou mentindo, sua galinha voadora! – Ela abriu as alças dos
óculos e os colocou de volta, ajeitando-
-nos com o indicador na ponte do nariz. – Ei, não mude de assunto! Por onde
andou todos esses dias?
– Cró!
– Mas eu não o vi em momento algum...
– Cró! Cró!
– Jura? Todo esse tempo? Pelos deuses, eu devia estar muito dopada, pelo
visto. Juro que não me lembro de nada. Mas fico tão feliz que esteja bem,
meu amigo! Conte-me tudo, então! Onde estamos? O que diabos está
acontecendo?
Cerúleo passou os próximos minutos atualizando Mirta de tudo que ele
sabia, o que não era muito. O pássaro havia escapado das flechas, mas foi
esperto em segui-los mata adentro, quando desistiram de atacá-lo. Desde
então, ele passara a monitorar os movimentos dos garotos. Eles não saíam
muito e estavam sempre discutindo dentro da casa. Cerúleo estava certo de
que havia com eles uma terceira pessoa. Ele também contou que ia todos os
dias até a estrada, para conferir se a carruagem havia sido roubada. Até então,
ninguém havia tocado no veículo, que permanecia com a roda dianteira
atolada no buraco.
O que mais perturbou Mirta foi o que o pássaro relatou por último. Não
era possível ver o que se passava no quarto de Iac, pois não tinha uma janela
como aquela. Porém, pelo vão do teto do corredor, ele podia ver que
entravam e saíam do quarto dele pelo menos duas vezes ao dia. Chegavam
com um frasco de vidro e uma mangueira de borracha que continha uma
agulha em cada ponta, e voltavam com o frasco cheio de sangue.
Segundo Cerúleo, ele acabava de vir de lá, e os meninos, dessa vez,
voltavam do quarto com apenas dois dedos de sangue no vidro. Mirta
estremeceu com a informação. Por que estariam drenando o sangue do rapaz?
– Cerúleo... isso é terrível. – Ela apanhou a caneca d’água e tomou um
gole. – Sabe se ele está... vivo?
– Cró!
– Entendo... daqui eu também não ouvi nada. O que faremos? Você
consegue um relatório de suas atividades? Preciso também de algo que possa
cortar essas cordas, mas não sei como você poderia ser capaz de atirar objetos
até aqui. – Ela começou a morder uma mecha de cabelos. – Se ao menos não
houvessem grades nessa janela...
– Cró!
– Mas isso é muita gentileza, meu amiguinho... – Ela sentiu o coração
partir-se em pedacinhos. – Sabe o quanto eu as adoro. Veja, deixe-as
guardadas lá no vão, por enquanto. Prometo que as aceitarei quando sairmos
daqui.
– Cró!
– O que você...
Mas Cerúleo já havia saído da janela e voado para cima do telhado. Mirta
aguardou ansiosa, enquanto pôde ouvir as patas do pássaro saltando de uma
telha a outra. De repente começaram a despencar amoras no chão, de um dos
filetes de luz que iluminava a cabeceira do catre. Mirta as apanhou, satisfeita,
e colocou no prato, ao lado do pão e da maçã velha.
– Cerúleo, não tenho palavras para descrevê-lo...
– Cró! – veio o grasnar abafado do teto.
– Exato! Vai ser difícil colocar as mãos em um dos frascos, você sabe.
Mas vale a pena tentar. Não podemos ficar aqui um dia a mais!
***
Quando a tarde caiu, o quarto ficou consideravel-mente mais escuro.
Mirta ouviu passos aproximando-se do corredor e retesou-se na cama. Torcia
para ouvir apenas mais uma discussão entre os irmãos e, quem sabe, receber
mais um pouco de comida. Mas não foi isso o que aconteceu.
A porta se abriu repentinamente e o ambiente se iluminou. Mirta
reconheceu o garoto pela sua aparência decrépita. Sem camisa, era possível
contar o número de suas costelas. Não era o garoto do arco, Kilrin, pois esse
não tinha uma cicatriz no queixo, e os cabelos, também longos, sujos e
rebeldes, tinham um corte diferente. Tratava-se do irmão, o responsável por
colocar a lâmina em seu pescoço. Com umas das mãos, ele coçou o longo e
afilado nariz, e com a outra segurava um lençol que devia ter sido branco um
dia.
Mirta notou que, em uma tira de couro amarrada à cintura, pendia uma
foice de mão meio enferrujada. O garoto aproximou-se de Mirta e fez um
gesto brusco para que ela levantasse da cama.
– Mexa um músculo e corto seu pescoço – falou ele, com a voz gelada.
Ela obedeceu e esperou em silencio, enquanto ele removia o lençol velho
do catre e o substituía pelo novo. Depois disso, ele mandou que ela se
deitasse de volta e inspecionou sua caneca d’água, recolhendo-a em seguida.
Apanhou também o balde e saiu do quarto, batendo a porta. Mirta especulava
se Cerúleo havia tido algum progresso.
Não se passaram mais que alguns minutos, e o garoto voltou. Dessa vez,
ele vinha com a caneca cheia, novamente. E trazia na outra mão um frasco de
vidro, enrolado com uma mangueira de borracha. Mirta sentiu os pelos na
nuca ficando de pé.
Kilrin, o garoto do arco, entrou logo atrás e puxou bruscamente o irmão
pelo braço.
– Spirin – disse ele, em tom repreensivo, inclinando a cabeça em direção a
Mirta. – É apenas uma garota!
Spirin virou-se para trás e agarrou o irmão pela camisa.
– E isso importa, agora? Devíamos deixá-la ir e passar por tudo aquilo
novamente?
– Sempre pegamos bandidos, Spirin! O combinado não foi esse!
– Entenda – grasnou Spirin, sacudindo o irmão. – Não há mais tempo!
Kilrin bufou, desvencilhando-se do irmão, e começou a dar voltas pelo
quarto. Spirin agachou-se e atarraxou as duas agulhas nas pontas da
mangueira.
– Não está funcionando, Kilrin... – Ele abaixou a cabeça, escondendo o
rosto. – Não está fazendo mais efeito...
Spirin levantou-se com o aparato nas mãos e apontou com a cabeça para o
irmão. Em segundos, Mirta sentia seus braços sendo segurados firmes contra
o colchão. As mãos cadavéricas dos garotos eram muito mais fortes do que
ela imaginaria. Spirin empurrou o frasco no chão com os pés, procurando
uma melhor posição. Depositou dentro dele uma das pontas da mangueira e
levou a outra ponta em direção à veia de Mirta. Ela sabia que seria inútil
resistir, então limitou-se a fechar os olhos, com força.
Foi então que uma voz de mulher começou a ressoar pelo corredor, aos
berros:
– Está queimando! Eu estou pegando fogo!
Os dois irmãos trocaram um olhar pesaroso, mas não soltaram o braço de
Mirta. A voz passou a vir mais nítida, seguida de gritos rasgantes. Coisas
começaram a ser atiradas no chão, espatifando-se. sons abafados de
prateleiras de livros indo ao chão, até que, em determinado momento, uma
figura maltrapilha surgiu na porta do quarto. Uma mulher de cabelos falhos,
uma cabeça calva em várias partes, e a pele pálida manchada de pintas
marrons. Seu rosto era uma constante careta deformada.
Spirin e Kilrin soltaram o braço de Mirta e pularam do catre, em direção à
porta.
– Você a deixou solta, seu imbecil? – rosnou Spirin.
– A culpa é minha, devo ter dado um nó muito frouxo – explicou-se o
outro, enquanto agarravam a mulher pelos ombros. – Ela vinha tão bem nas
últimas semanas.
– Por favor, eu estou pegado fogo – choramingou a mulher, soltando o
peso do corpo nos braços dos garotos. – Me ajudem... Não quero mais pegar
fogo, eu vou morrer...
Mirta já começava a experimentar uma onda de pânico legítimo. Um
filete de suor escorreu de sua testa pela primeira vez, em anos. O que esses
garotos andavam fazendo às pessoas?
Kilrin começou a acariciar os cabelos falhos da mulher.
– Está tudo bem, mamãe... o fogo vai passar. Vamos voltar para o quarto,
está bem?
32 – SOB O JUGO DO REI
Era ainda a tarde daquele mesmo dia. O quarto desde que deixaram os
Lagos Espalhados. Mirta sentava-
-se em silêncio, no quarto escuro, enquanto os dois gêmeos recolhiam sua
mãe e a colocavam de volta em seus aposentos.
Então era isso, pensou. Eles raptavam bandidos, pessoas das quais a
sociedade não sentiria falta, ou que ao menos não recorressem à ajuda da
guarda quando fossem soltos. E o motivo era óbvio. A mãe sofria de alguma
doença grave, que deixava a pele naquele estado, fazia cair os cabelos e
também alterava o juízo. Quando os sons de passos retumbaram de volta no
corredor, Mirta já sabia o que ia lhes dizer.
A porta se abriu, e entraram os dois de uma vez. Pela expressão corporal
dos gêmeos, vinham com intuito de continuar o serviço. Não sairiam dali sem
um frasco cheio do sangue de Mirta. Spirin aproximou-se primeiro e levou o
dedo em riste bem na ponta do nariz da garota.
– Nem uma palavra sobre isso, ou nunca sairá daqui.
Essa era outra coisa na qual Mirta vinha pensando desde que os irmãos
discutiram na sua frente. Se eles capturavam bandidos por motivos de
segurança, o que eles haviam preparado para evitar que ela fosse às
autoridades quando solta? No lugar deles, ela não soltaria reféns que
oferecessem um mínimo de risco como esse. Com o rosto sério, ela entendeu
que se não resolvesse de forma contundente aquela situação, jamais sairia
com vida da cabana.
Eles a seguraram firme novamente. Kilrin trouxe a mangueira, e Spirin
jogou o peso de seu corpo contra o de Mirta. Mais uma vez, as mãos magras
dos garotos a surpreendiam.
– Eu posso ajudá-la – falou Mirta, subitamente.
– O quê? – Kilrin afastou a mangueira, confuso, e trocou um olhar com o
irmão.
– Continue, idiota – ordenou Spirin. – Eles fazem qualquer coisa para não
serem espetados. Não dê ouvidos a ela!
– Eu falo sério – insistiu Mirta. O tom firme com que impostara a voz
devia ser suficiente para convencê-los, ou ao menos desconcertá-los. Ela já
sentia o aperto menos firme no braço. – Sei o que a mãe de vocês tem.
E foi o suficiente para que os dois irmãos a soltassem, afastando-se alguns
centímetros. Spirin ficou meio ator-doado, mas não demorou muito a se
recompor, voltando a apontar o dedo:
– Espero que não esteja fazendo piadas, garota. – Ele sacou a foice de
mão da cintura. – Eu não teria problemas em usá-la. É preciso que você
nunca duvide disso.
Ela não duvidava.
– Não faço piadas – seguiu Mirta. – Sua mãe sofre de uma doença rara
chamada Síndrome do mangu-de-manchas. É uma condição muito rara que
ataca o fígado e os rins, impedindo que certas toxinas sejam extirpadas do
sangue. Por conta desse efeito, o paciente que sofre da doença tem de
transfundir o tempo todo, e é isso o que fazem. – Ela viu que os garotos
ouviam atentamente. Mirta chegou a sentir uma pontada de pena deles. – Os
principais sintomas são queda de cabelo, manchas na pele e alucinações.
Essas últimas por conta do veneno no sistema nervoso. É perfeitamente
tratável!
– Está mentindo, não está? – Spirin fez um gesto largo, de repúdio. – Os
médicos disseram que era incurável! Isso quando não nos mandavam de volta
para casa, dizendo que não sabiam o que havia de errado com ela! Como uma
garota como você, quase da nossa idade, pode saber mais que eles?
– Acalmem-se. – Ela se sentou, com movimentos lentos para não deixá-
los em alerta. – Meu nome é Mirta Vento Amarelo, e eu sou uma estudiosa da
capital. Em primeiro lugar, devem saber que existe em Tulma apenas um
médico especialista em doenças da imunidade. Esse homem é conhecido
como Professor Deodenes, e é um sujeito de muito conhecimento. Fui sua
aluna por um tempo, quando me enveredei por esses assuntos.
Spirin cruzou os braços e olhou para o irmão, que lhe devolveu o olhar.
Pareciam se perguntar se deviam ou não acreditar. Kilrin resolveu arriscar:
– Então é uma espécie de enfermeira ou algo do tipo?
– De forma alguma. Não sei aplicar uma injeção melhor do que vocês,
mas me interesso por certos assuntos e, por um tempo, devorei os livros sobre
o mecanismo de algumas doenças. – Ela estendeu os braços, como quem
pede calma. – Deixem-me preparar para ela um chá de verruga-verde. Ela só
tem de tomar dois copos por dia. Um na hora do almoço e outro ao se deitar.
Verá como o sangue dela começará a correr mais limpo. Os sintomas
diminuirão!
Os meninos tomaram alguns minutos pensando a respeito, mas,
aparentemente, não tinham muitas opções. Foi Spirin quem deu as condições:
– Procurarei pela verruga-verde e farei o chá. Conheço a planta, mas
nunca passou pela minha cabeça os possíveis benefícios. – Apontou o dedo
pela terceira vez. – Você tem até amanhã para minha mãe começar a mostrar
sinais de melhora. Caso contrário, usaremos cada gota do seu sangue.
– Compreendo. – Ela tomou coragem e perguntou: – Como está meu
amigo, Iac? Ele ainda vive?
– O quê? – perguntou Spirin, coçando o nariz fino. – Está nos tomando
por assassinos?
E, com isso, deram as costas e saíram, batendo a porta do quarto.
O próprio Cerúleo, meus amigos, escondido o tempo todo atrás das grades
da janela, não fez ideia se Mirta falara ou não a verdade.
***
No fim daquela mesma tarde, enquanto Mirta tomava um gole d’água na
caneca, os meninos voltaram. O quarto estava em absoluto breu; isso
acontecia todas as tardes, quando o sol começava a se por. Spirin entrou
segurando uma lamparina a óleo nas mãos e a colocou sobre um dos caixotes
de madeira.
– Está bom aqui? – perguntou ele.
Mirta não entendeu direito. Ele estaria trazendo iluminação para o quarto,
sem mais nem menos?
– Essa altura está boa? – insistiu o garoto. – Consegue ver direito?
Mirta assentiu, e o garoto deixou o quarto sem dizer mais nada. Mirta
passou um tempo encarando as chamas tremeluzentes, deixando a
imaginação saltar junto das sombras na parede. Erguendo os lábios em um
sorriso, ela sabia que estava dando certo.
***
Era o nono dia desde a saída dos Lagos Espelhados. Mirta olhava para
frente, os olhos quase fechando de cansaço e tédio, a cabeça latejando de dor.
A carruagem balançava feito uma charrete sem molas, por causa do amassado
na roda dianteira. Cerúleo tinha de cravar as pequenas garras no couro do
assento e, mesmo assim, equilibrava-se de asas entreabertas, com os
solavancos. Fora uma viagem dura e nada confortável.
Quando o sol surgiu de dentre as nuvens, a penumbra do carro iluminou-
se, e Mirta viu que estava perto. Do alto do morro, ela via a estrada descer em
várias curvas e afunilar-se até desembocar na capital, Tulma. A cidade
erguia-se feito uma redoma de pedra, colorida pelas moitas esparsas e
planícies verdes dos arredores. O Mar Superior vinha do norte, banhando a
testa do continente, e, ao longe, era possível divisar as velas dos barquinhos
brancos, em uma eterna vigília pelos territórios do rei.
Ela estava com saudades, essa era a verdade.
Desligando temporariamente os motores, Mirta abriu a porta e desceu,
esticando as pernas. Queria sentir no rosto a brisa marítima que vinha até ela,
mais uma vez. Os cabelos loiros saltaram no vento, lembrando-a do porquê
de carregar aquele nome. Cerúleo dava voltas no céu, também contente pela
chegada.
Então a porta do lado do carona também se abriu, e saltou Iac, esfregando
os olhos, com sono. Ele, sessenta vezes mais alto, como ela gostava de
pensar, recebeu também o vento fresco na moita de cabelos, mas não pareceu
apreciar muito.
– Por que estamos parados? – resmungou o gigante.
– Que bom que acordou bem – ironizou ela. – Também estou a todo
vapor. Fico feliz que tenha gostado de conhecer a capital.
Os olhos do rapaz se abriram ao limite.
– Essa é Tulma? – Apontando com a manzorra. – De verdade?
– Sim, senhor.
– É linda! Eu só a conhecia pelas ilustrações nos livros. Pensei, por um
momento, que iríamos fazer outra parada, por isso não mostrei qualquer
empolgação. Estou muito contente, Srta. Mirta! Pelos céus... o mar, olhe
aquelas pastagens verdes! Vamos para lá, depressa!
– Acalme-se senhor. Ainda temos todo o dia de amanhã para sua tão
sonhada inscrição. – Mirta pensou por um momento e acrescentou: – Por
favor, não há necessidade de cantar.
E ficaram ali por momentos que não puderam contar. Mirta lembrou-se da
dolorosa trajetória até ali e de todos os marcantes acontecimentos do último
mês. Lembrou-se da última manhã na cabana, no quinto dia, quando ainda
estava dormindo no catre velho. A porta de seu quarto se abrira subitamente,
e ela, ansiosa, já se levantava e perguntava aos meninos se o chá surtira
efeito.
Mas não eram eles quem a visitavam, e sim a mãe. Ela aproximara-se da
cama com o olhar vago, perdido de um lado a outro, e suas pernas pisavam de
forma bamba. Mas a pele dela havia ganhado um pouco mais de coloração
rosada e estava menos ressecada. As manchas, inclusive, estavam muito
menores.
A mulher então puxara a mão de Mirta contra a sua e dera-lhe um beijo
terno, saindo do quarto antes que Mirta pudesse esboçar qualquer reação.
Fora assim que ocorrera. Mirta, ali no alto do morro, suspirou ao lembrar-
se daquela mulher. Ao pensar, satisfeita, que ela nunca mais acordaria com a
sensação da pele pegando fogo no meio da noite. Nunca mais sentiria a dor
de estar sendo esfolada viva e nem teria de contemplar a própria imagem
deformada no espelho outra vez. Os garotos teriam a mãe de volta.
Mirta ajeitou os óculos e descruzou os braços, deixando-os relaxar. Virou-
se para Iac e sugeriu:
– Então... vamos?
Daquele ponto em diante, ela sabia que nunca mais poderia pensar em
abandonar os óculos.
34 – REUNIÃO NA BALAUSTRADA
Silkai caminhou a passos lentos pelo piso frio da varanda. A tarde caía
vertiginosamente, trazendo um princípio de brisa refrescante. O manto branco
e prateado do rei esvoaçava a cada passada, e os pés descalços sentiam a
aspereza do piso de mármore. Com um movimento da cabeça, Silkai jogou os
cabelos para trás; estivera alisando-
-os até esse momento. Mas nem um só fio tocou o chão. Estavam penteados
de forma retilínea e aberta, como uma chapa, e foram dobrados ao meio,
presos por um laço de veludo.
Queria estar bem aparentado quando o encontrasse. Fora uma missão
longa e perigosa.
O rei encostou-se na balaustrada e levou as mãos ao parapeito. Era uma
belíssima meia-murada, banhada em cobre e montada em formato de meio
octógono. As quatro longas colunas de marfim subiam até quase o teto,
passando por divisórias entalhadas, cada uma delas, e encontrando-se com os
arcos de pedra que formavam o teto abobadado.
Era possível ver, à esquerda e direita, duas das torres de depósito da
fortaleza, ambas com vista para os fundos do castelo. No horizonte divisava-
se uma planície quase sem elevações, onde havia uma lavoura de tomates e,
depois dela, o mar estendia-se, abrindo para os lados e curvando-se onde a
vista não mais alcançava. O céu dividia-se em dois no fim da tarde. Logo
acima do nível do mar, as nuvens brancas pairavam displicentes e, logo
acima, a chapa azul-arroxeada do firmamento aguardava a chegada das
primeiras estrelas.
Silkai acertou, imaginando que o balcão dos fundos fosse um lugar mais
indicado para uma conferência. Claro, Hillel não se importaria de conversar
em qualquer lugar, mas os preparativos para o torneio estavam deixando a
cidade em verdadeira polvorosa. Chegava a ser insuportável, mas não podia
deixar transparecer à população geral seu descontentamento. Afinal, ele era
um homem do povo.
E Hillel, no fim das contas, acabaria agradecendo, pois Silkai o desviaria
um pouco das preocupações atuais. Desde que voltaram das Geleiras, no dia
anterior, não conseguira uma só oportunidade de falar com o comandante.
Ouvira alguns boatos, mas era só. Hillel estivera o tempo todo dando
assistência e cuidados aos soldados que trouxera feridos. Ouviu dizer,
inclusive, que um dos barcos até ficara para trás, aos pés das Geleiras, pois
havia faltado gente para montar uma terceira tripulação.
Para piorar, a missão ainda havia fracassado. De forma absoluta, ele diria.
Foram emboscados, pelo que parecia, mas não por culpa do comandante. A
campanha era, de fato, muito arriscada e perigosa. Mas oras, não era para o
bem de todos? Não era culpa do rei se para fazer uma omelete tivesse de
quebrar alguns ovos! Ele precisava das carapaças, pois encontrar a linhagem
de Merff seria praticamente impossível. Por isso, testaria todas no ritual.
Todas que pudesse.
Agora teria de se contentar com a do mensageiro do Bosque Verde. Silkai
só esperava que ela fosse promissora. Mas seria, ele tinha certeza. O principal
item do ritual era ele próprio, com sua linhagem sanguínea real e sagrada.
O rei ouviu passos atravessando o piso de mármore. Botas leves, passadas
com um ritmo incômodo, e meio apressadas. Não poderia ser Hillel, muito
menos Gherda. Virando-se para trás, com cuidado para não atrapalhar os
cabelos, Silkai tentou não soar muito grosseiro:
– Fleros, tenho firmes esperanças de que não tenha vindo aqui para
papear.
O mestre-de-cerimônias abriu os braços, com orgulho no rosto:
– Excelência, se existe alguém no mundo capaz de perceber minha
presença sem ter ao menos que olhar para trás, só pode ser sua Majestade
Branca. Veja o senhor, eu tentei ser o mais sutil possível, acredite. Sabe que,
quando quero, posso trotar como uma égua no calor. Mas não, mesmo eu
tendo usado de minha máxima destreza nos pés, implantado uma parte gorda
de minha suprema discrição, não fui silencioso o suficiente. Digo... não fui o
suficiente para o senhor! Um mero mortal seria um alvo fácil para minhas
emboscadas, o senhor sabe. Não costumo usar de violência, mas já precisei
me defender duas ou três vezes, e nessas horas, sim, Majestade...
Silkai estava pasmo. Não havia uma só ocasião onde Fleros falasse pouco
ou só respondesse o que fora perguntado. Mas não brigaria essa noite. Tinha
coisas importantes a tratar, precisava rever o comandante.
– Se eu o pedisse para que resumisse a visita a uma só frase, o que me
diria, Fleros?
O subordinado baixou a cabeça, o indicador sobre os lábios, tomando um
momento. Depois falou:
– Hillel está aqui, Majestade.
Era evidente seu desgosto com esse tipo de frase. Silkai, por sua vez,
apreciou muitíssimo.
– Esplêndido. Mande-o entrar, sim?
O rei esperou, inclinado sobre o corrimão dos balaústres, enquanto Hillel
atravessava o pátio. Ele estava com um aspecto esplêndido. Usava roupas
negras de linho e uma capa prateada por cima. Os cabelos, bem escovados,
pareciam dois dedos mais compridos e muito mais bran-cos. Na testa
exibiam-se marcas e cicatrizes, pequenas escoriações e equimoses. As mãos,
desgastadas, pareciam ter algumas pontas de dedo meio raladas. Mas sua
expressão era o que carregava de mais pesado. Não devia ter sido nada fácil
comandar aquela campanha.
– Majestade – saudou Hillel, aproximando-se e inclinando levemente o
corpo. Seu rosto era uma máscara dez anos mais velha e muito mais séria.
– Bem-vindo de volta, comandante. Sinta-se à vontade. Hoje não há
espaço para formalidades.
– Bem – começou Hillel, um pouco mais à vontade –, parece que se
afeiçoou mesmo do novo mestre-de-
-cerimônias. Fleros, não é isso?
– Sim – disse Silkai, com uma leve torcida nos lábios. – Ele não é que
poderíamos chamar de um nobre galhardo, não é verdade?
– Absolutamente, Majestade. Parece-me que ele tem verdadeiro apreço
pelas palavras. Está na posição correta, se quer minha opinião. Não deixe que
mais ninguém tome seu lugar nos púlpitos de pronunciamentos.
– Só se eu quiser matar a audiência com requintes de crueldade –
completou o rei. – Diga-me, Hillel, por acaso não foi recomendação sua a
contratação do infeliz?
Hillel abriu um sorriso, e Silkai ficou satisfeito.
– Não sobreviveria a uma sessão de entrevistas com ele, Majestade.
Provavelmente foi indicado por Gherda.
– Lembre-me de demitir o calvo também – brincou Silkai. – Mudando de
assunto, o que tem achado da cidade? Confesso nunca ter imaginado o
impacto que um torneio para a guarda pudesse causar. Não estou suportando
aparecer em público, as ruas estão verdadeiros chiqueiros!
– Parece-me que existe mais gente disposta a dar a vida pelo reino do que
pensamos, Majestade. De certa forma, fico orgulhoso. – Hillel deu alguns
passos para frente e encostou-
-se na balaustrada, baixando o tom de voz. – Que fim levou a noiva? – Silkai
se retesou com a pergunta. – Leona era seu nome, estou certo? Lembro-me de
tê-lo abordado nos corredores, e Vossa Majestade estava um tanto... alto pela
quantidade de vinho naquela noite.
– Ah, sim? – uma bandeira vermelha instalava-se na mente de Silkai. –
Não me recordo de muita coisa, foi uma data muito, muito conturbada.
– Juro pelos quatro. O senhor chegou a agarrar-
-me pelas roupas e implorar para que eu fizesse algo, pois ela era de beleza
extrema. Então segui o protocolo, entregando-a aos guardas, para que a
preparassem para a volta.
Silkai não percebia, mas estava com o semblante mais sério. Nem se deu
o trabalho de responder. Podia lembrar-se com clareza de quando descera até
o porão e ensinara à garota uma lição, mas não recordava-se de ter dito uma
só palavra a Hillel. Por sorte o comandante nunca soube mais a fundo. E
quanto ao pai dela... não havia recebido filha alguma, e já devia estar
arrancando os cabelos, devido à falta de notícias. Não demoraria até que ele
começasse a enviar emissários a Tulma, ou que até mesmo viesse em pessoa.
– Quanto tempo faz, um mês?
– Perdão?... Sim, sim. Mais ou menos isso.
Silkai presumiu se seria uma boa ideia conversar com Gherda a respeito.
– Espero que o pai da garota não tenha ficado furioso com a quebra do
acordo. Mas eu entendo, Majestade. Sei das questões de sua mãe e do que o
senhor me contou, quando ainda era garoto. Não haveria outra rainha de
beleza que se comparasse à dela na capital. Eu compreendo o que fez, estava
só defendendo o legado da rainha Silve.
Silkai começou a respirar de forma mais leve. Sim... havia contado essa
barbaridade quando criança e até hoje não sabia como ainda acreditavam.
– Precisamente, Hillel. Não posso trair o último desejo de minha mãe,
ainda que tal desejo se configure como imaturo ou caprichoso, em qualquer
instância.
Hillel ia falando, mas tossiu uma vez, recolheu um lenço para cobrir a
boca e depois tossiu mais um pouco.
– Perdão, senhor. Efeito das geleiras. – O comandante guardou o tecido
no bolso da calça. – Diga-me, majestade, o que devo fazer em seguida?
– Do que está falando, comandante? Ora, deve descansar, obviamente.
Seus pulmões sequer se recupe-raram por completo daquele frio miserável!
Sou muito benevolente por ainda deixá-lo andar por aí, devia estar no
hospital!
– Compreendo, Majestade, mas eu...
– Além do mais, e sinto por mencionar isso, mas perdeu quase todo o
batalhão. Não sei como andam os meandros de sua mente nesse momento,
comandante. – O rei exibiu o indicador em riste. – Ouça-me. Precisamos de
você mais do que nunca. Mas para isso é necessário que esteja inteiro. – O rei
virou-se para a vista dos campos e levou um tempo para perguntar. Queria
parecer mais emotivo ou preocupado com o assunto. – Quem mais conseguiu
escapar?
– O capitão Forg e eu não sofremos ferimentos sérios. Só precisei de
algumas horas de hidratação, pois passamos bem a viagem de volta. Os
suprimentos dos barcos eram suficientes para... – pausa – todo o batalhão
retornar para casa. Também pudemos trazer Lumuir e Valdor, sendo que o
mestiço ainda está em observação. Assim como uma dúzia ou pouco mais de
soldados, e foi só.
– Por Yanenna... – gemeu Silkai. – Foi um verdadeiro desastre. O que, em
nome dos deuses causou isso?
– O pior da história do reino, Majestade. – Hillel passou os dedos pelos
lábios, como se procurasse as palavras certas para dizer. – Alguns de meus
homens armaram uma espécie de... motim. Sóz e Dana foram os principais
articuladores, até onde sei. Eles pretendiam sabotar a operação por saquear os
tesouros do dragão. Sinto muito, Majestade, mas de agora em diante, teremos
de ter muita cautela ao aceitar novos membros, e... sinto que a culpa é minha.
– Diga isso novamente e mando prendê-lo. – Silkai encostou as costas nos
corrimões que forravam os balaústres. Precisava encarnar um rei preocupado
com a missão, ainda que não desse mais a mínima. – Estou absolutamente
petri-ficado. Nunca imaginei que os homens da Ordem fossem corruptíveis.
Comandante Hillel, anote minhas palavras: até o fim da semana, mandarei
providenciar um memorial em respeito aos traídos. Teremos uma cerimônia
belíssima no balcão da torre frontal com orquestra de réquiens, e as palavras
dos quatro escolares. Todo o corpo de oficiais estará vestindo luto, na fileira
da frente, e as pessoas se emocionarão com a história dos bravos, dos traídos.
É uma promessa do rei.
O comandante não respondeu. Apenas assentiu, aparen-tando profunda
gratidão. Ficaram em silêncio por um tempo, e Hillel tentou mudar o rumo da
conversa.
– Como o senhor fará daqui para frente, se é que posso perguntar? Usará a
única carapaça da qual dispomos?
– Ela terá de resolver o problema, comandante. Não sei se acredito mais
nas baboseiras de que os mensageiros têm também uma linhagem especial.
Os tomos sequer tocam no assunto. O dragão, entretanto, continua
desaparecido.
– O quê? Polos e os outros três não conseguiram rastreá-lo? Isso é
impossível!
– Infelizmente, é muito possível. O dragão, pelo que parece, é muito
esperto e vem sido ajudado pela tal Mirta Vento Amarelo.
– Sim, conheço a garota. Ela pode ser um problema, pois dispõe da
simpatia dos escolares... mas ainda assim não consigo conceber! Uma garota
e um dragão moribundo ludibriando quatro de meus homens!
– Matando é a palavra. Parece que a tal garota e seu amigo lagarto
conseguiram fazer o serviço reverso, comandante. Ela os emboscou e
massacrou. Nem conse-guimos os corpos.
Silkai viu o maxilar de Hillel se abrindo.
– Isso é...
– Mas não acabaram com todos. Um dos quatro, o tal Mulle, um sujeito
que mais parece um alce falante, conseguiu escapar e me contou tudo. –
Silkai cerrou os punhos. – Toda Tulma está atrás dela, comandante. Vamos
ver como ela se sai numa emboscada contra a capital.
– Sim, majestade. Ela precisa pagar pelo que fez aos homens do grupo de
busca. Mas, para ser sincero, já não continuaria preocupando-me com o
dragão. Os riscos que oferecia eram de entrar em contato com Corff e mandá-
lo em represália contra a Ordem Branca. Mas é tarde demais. O rei lagarto já
nos conhece.
– Então era verdade? Lutaram com o verdadeiro Corff?
Hillel baixou a cabeça, e seus lábios torceram-se para baixo.
– Corff é... não sei colocar em palavras. Seria nosso fim, se viesse. E
Majestade, temo que ele o fará.
Silkai devia ter ficado com medo, mas isso não aconteceu. As coisas
estavam indo bem para seu lado, e se continuasse dando certo...
– Não devemos pensar nisso agora, comandante! Amanhã é o último dia
de inscrição para o torneio, e quero fazer uma declaração pública. Esse é um
tempo para celebrar! Festeje o quanto puder, e trataremos de fazer planos e
formar alianças na próxima semana!
Hillel pareceu meio contrafeito, mas não rebateu o rei. Apenas assentiu
positivamente, com a cabeça.
– Como quiser, Vossa Majestade.
– Fleros! – berrou o rei em direção à porta. Silkai devia realmente estar
amedrontado, mas, pelo contrário, animava-
-se. – Providencie um brinde ao comandante. Sidra de maçã, pois sei que é
uma de suas bebidas favoritas. Depressa! O homem perdeu todo o batalhão!
Fleros apareceu com a cabeça na porta e abriu a boca, mas, aparentemente
lembrando-se das alfinetadas do rei, preferiu resumir-se a outra frase curta:
– Imediatamente, Vossa Majestade Alva. Sidra de maçã será!
***
Hillel apanhou a taça nas mãos e ficou observando-a atentamente.
– Linda, não? – perguntou o rei, enquanto Fleros enchia a sua própria. –
Alumínio, com entalhes em ouro. Chegou a época de aposentar o cobre e o
latão, comandante. Tulma está na premência do sucesso!
Fleros terminou de encher a caneca do rei e virou a boca da jarra dourada
na de Hillel, repetindo o procedimento. Quando terminou, deu as costas e
começou a andar, mas o rei o interpelou:
– Não aceita um pouco, mestre Fleros?
Fleros gaguejou e coçou a cabeça semi-calva. Pela primeira vez na vida,
pareceu perder o rumo das palavras e não soube o que dizer.
– Está... falando sério, Majestade? – perguntou, baixando a cabeça. – Eu
posso?
Silkai riu e ergueu a própria taça.
– Claro que não, idiota. Agora suma daqui.
Humilhado, Fleros deu as costas e saiu o mais rápido que pôde. Antes de
passar pela porta, ainda fez mais uma reverência e então fechou atrás de si.
Hillel não disse nada, só observou.
– Comandante – falou o rei, com o dobro da altura na voz –, ouça-me, e
ouça com atenção. – Ele tomou um gole da sidra e abriu ainda mais o sorriso.
Estava perfeita, como ele esperava. Como tudo estava. – Será meu novo
Primeiro-
-Ministro.
A frase deixou Hillel pasmo, ele demorou a processar. Seria o cargo da
mais alta honra, depois do regente real.
– Mas antes – finalizou Silkai – preciso que se recupere, está certo? E
depois conversaremos sobre o futuro.
Que viesse o rei de Pava, Felix, procurando por sua filha. Que viessem
Mirta e o dragão aleijado. Que viesse o rei deles, Corff, todos eles!
O rei branco, Silkai Crina-da-Alvorada, que em breve seria conhecido
como Merff, o primeiro rei dos dragões, esperaria por eles.
35 – VISITAS TARDIAS
Hillel puxou com força a pesada porta de madeira, trancando Mirta e Iac
em uma das celas. Fazendo um ruído metálico, o guarda ao lado dele passou
o gancho do cadeado na porta, trancando-a. Mirta, com os cabelos loiros
embaraçados sobre o rosto, ainda agarrou as grades com as mãos rosadas,
enquanto o soldado se afastava pelo corredor.
– Comandante, não pode fazer isso! Fui injustamente acusada de traição!
Hillel encostou o rosto no metal e apontou o dedo em riste para dentro da
cela. O ar pesado da prisão escura fazia as vozes reverberarem pelas paredes.
– Foi injusto que tenha matado meus quatro homens? Diga-me! Como se
isso não bastasse, ainda tem o atrevimento de voltar aqui e sequestrar um
herói militar bem debaixo do meu nariz!
– Não fui eu quem os matou! Como poderia? Sou uma cientista! – Ela
impeliu os óculos pelo nariz, para que não caíssem também, como a peruca
havia caído no caminho. – Só voltei à cidade para descobrir o porquê de me
perseguirem. Eu estou começando a encontrar evidências que podem nos
levar a um lugar muito diferente da Tulma que imagina, comandante! Podem
ser suficientes para fazer acusações sérias ao rei...
– Cale-se, fedelha! Não me venha com conspirações infantis, eu sei o que
o rei pretendia nas Geleiras! E quanto aos quatro membros mortos, pode ser
que não os tenha matado com as próprias mãos, mas teve ajuda daquele
dragão imundo!
Ela cerrou os punhos nas barras de metal, puxando o próprio corpo para
cima. Ficou na ponta dos pés e falou com os dentes cerrados:
– Brinaff não é imundo! Vocês o mutilaram para algum intento doentio do
seu rei! Comandante, a seu ver é por acaso que as pessoas acusam Silkai de
ser louco? Pense! E quanto ao dragão, tudo o que ele fez foi se defender de
seus homens, pois partiram em seu encalço! E foram os seus soldados os
assassinos de minha avó inocente, que nada tinha a ver com isso!
– Ei – lamentou Iac, com a voz chorosa – a próxima luta é a minha! Eu
estou lutando para trabalhar a seu lado, comandante!
Hillel lançou um olhar frio ao rapaz:
– Cale-se, bola de carne! – Depois virou-se para Mirta. – E onde está esse
valoroso amigo quando precisa? Por que não vejo nenhum dragão em sua
companhia?
– Brinaff ficou para trás – disse ela. – Tivemos algumas... divergências de
planos e nos separamos. Mas isso não descredita minhas palavras de forma
alguma.
– Muito bem... – Hillel soltou as barras e deu um passo para trás, sem tirar
os olhos da garota. – Se é verdade o que diz, não terá problemas se eu trouxer
um deles para confirmar.
– Um... deles?
– Mulle sobreviveu. – Hillel viu a garota também soltar as grades. Pela
forma com que o rosto dela ficava branco, conhecia bem o nome. – Sabe de
quem eu falo, não é? Um sujeito enorme, pouco menor que seu amigo aí...
– Comandante Hillel – as palavras de Mirta saíam falhadas –, ouça-me.
Não traga esse homem até mim, ou ele irá me matar.
– Quem é Mulle? – perguntou Iac.
Mirta fez um gesto com as mãos implorando para que o amigo gigante
não falasse mais nada. Hillel aguardou um pouco e ela continuou:
– Comandante, é um pedido solene o que eu faço agora: não diga a esse
homem onde sou mantida cativa. Não sabe do que ele é capaz.
– Mulle é um homem de confiança – assegurou ele. – Não faria qualquer
coisa enquanto estivesse sob meu comando. O trarei aqui antes de anoitecer,
para que eu ouça as duas versões. Pode ir inventando uma boa desculpa, pois
sei como é esperta.
– Um homem de confiança? – berrou Mirta. – Quão bem conhece seus
subordinados? Eu não acho que o senhor faça o perfil do espetáculo violento
que presenciei em minha casa!
Hillel estacou com a pergunta. Quão bem ele conhecia os próprios
homens? Até duas semanas atrás, Sóz era o melhor botânico naturalista que
conhecia. Um homem disposto a dar a vida pela capital. Dana, um amigo
querido por todos. Pouco depois, foram responsáveis pela morte de uns
oitenta soldados da Ordem, e quase a sua própria.
– Nem mais uma palavra – decretou o comandante, trincando os dentes. –
Aguarde meu retorno.
***
Hillel desceu os corredores ainda abalado pela conversa com Mirta. A
garota, de perto, não se parecia em nada com uma criminosa. Seria verdade o
que dizia? Que seus homens mataram sua avó? Se fosse o caso, Mirta teria
razão em querer se defender ou entender o que estava por trás de toda a
história.
Ele passou por uma série de celas, ocupadas pelos bandidos da pior
espécie na capital. O cheiro era insuportável, e a escuridão, quase absoluta. O
rei preferia deixar a prisão sem iluminação, como um acréscimo de punição.
Vinha fazendo isso há anos. Enquanto seus passos ecoavam no corredor,
alguns detentos tentavam puxar assunto, alegando inocência, pedindo comida
ou até mesmo companhia feminina, pois os tempos estavam difíceis.
Hillel, sem dar atenção aos presos, virou à esquerda, e a luz no final do
corredor sinalizava que a porta dos fundos não estava longe. Havia um
soldado sentado em um tamborete, fazendo uma vigília precária ao lado de
um caldeirão incandescente. O contingente militar da cidade estava quase
todo concentrado nas ruas, onde a comoção de fato causava muitos
problemas.
Até que ponto Mirta dizia a verdade? Ele continuava pensando. O que
podia haver de tão grave nos intentos do rei para chamar a atenção da garota?
Até onde todos na Ordem sabiam, Silkai acreditava ser o descendente do tal
Merff, o único dragão verdadeiro. Isso não queria dizer que o rei fosse louco.
Ele planejava executar um ritual mágico para mudar de aparência. Não era
segredo para ninguém a envergadura de sua vaidade! Apesar de a missão nas
Geleiras ter resultado em muitas mortes, isso não significava que o rei os
havia mandado para lá por imprudência. Quem pensaria que o tal dragão
Corff fosse realmente aquele monstro real?
Hillel passou por uma prateleira de armas vazia e a chutou sem querer,
causando um ruído estridente. Parou de andar, praguejou baixinho e tratou de
recolocá-la no lugar, sem perder a linha de pensamento.
Além do mais, caçar dragões era tradição no reino desde tempos
imemoriais. A diferença é que dessa vez haviam saído para capturar
mensageiros, que, como fora mostrado, eram tão violentos e desgraçados
quanto os de qualquer outra espécie. Não havia nada de errado nisso. Para
Hillel, a campanha nas Geleiras nada mais era do que uma oportunidade para
matar o maior número possível deles, bem como de atender a um pedido
pessoal do rei.
Hillel terminou de erguer a prateleira e tentou ajeitá-la da maneira que
estava antes.
...Por Okkon, Silkai era seu irmão e rei! Como poderia ter negado?
Hillel levou a perna para frente, a fim de continuar atravessando o
corredor, mas parou ao detectar algo no chão. Abaixou-se e examinou com
cuidado. Parecia uma mancha de sangue no chão, mas era difícil ver direito.
Com o rosto quase colado ao solo, ele confirmou não uma mancha, mas algo
como um rastro.
Seria normal haver sangue ali. Os presos eram frequentemente levados
feridos até os cárceres, mas aquele rastro conduzia em direção a uma
portinhola de madeira, do lado oposto das celas, e não até elas.
O comandante levantou-se, apanhou uma tocha apa-gada na parede e foi
até o soldado em vigília. Instantes depois, voltava com ela acesa nas mãos e
começou a iluminar o chão. De fato, o sangue vinha da porta dos fundos e
parava na tal portinhola, ao lado da prateleira.
Hillel tentou a maçaneta, mas estava trancada. Olhou para o final do
corredor, e o vigia já voltava a dormir, com os pés para cima. Hillel então
encostou os ombros na porta e deu um encontrão abafado, evitando chamar
atenção. A porta cedeu um pouco, e ele deu mais um, fazendo-a abrir-se,
finalmente. Espalmou a roupa, que se enchera de poeira, e pisou do lado de
dentro.
Com a tocha na mão esquerda, ele desceu um lance de escadas até
deparar-se com outra porta, no subsolo. Havia poeira no chão, mas as marcas
de pegadas sugeriam que havia ali sempre alguém fazendo guarda. Hillel
achou muito estranho, pois não tinha conhecimento de qualquer atividade
militar no porão. Levou a mão e arriscou a maçaneta. Como a de cima, estava
trancada.
Repetindo o procedimento, tomando ainda cuidado para não fazer muito
barulho, Hillel arrombou também essa outra porta. Quando ela se abriu, o
cheiro imediatamente penetrou seu nariz e estagnou-se em sua boca, fazendo-
o sentir náuseas.
A sala era pequena, pouco maior que uma cela indivi-dual, e bastante
escura. As paredes exibiam manchas de limo e emanava uma atmosfera
constantemente umedecida. Era a mesma sensação de se atravessar uma rede
de aquedutos. Havia uma mesa velha de madeira no centro, duas gaiolas
grandes e enferrujadas jogadas em um dos cantos. Cada uma delas
trancafiando uma mulher nua em estado deplorável.
Meio abalado, Hillel caminhou até uma delas, a que parecia em melhor
estado. Ela tinha resquícios de cabeleira escura, mas o topo da cabeça havia
sido totalmente escalpelado, deixando somente a pele em carne viva. A moça
se agarrava às grades, e o comandante pôde reparar em suas mãos. As unhas
haviam sido removidas, o rosto severamente espancado, e as pernas exibiam
queimaduras gravíssimas, possivelmente feitas com óleo quente ou piche.
– Me... ajude... – gemeu a moça.
Hillel ficou estupefato com a visão. Até sua respi-ração começou a vir
pesada nos pulmões. O que estava acontecendo no porão da prisão?
– Quem é você? – perguntou ele. – Quem fez isso?
– Ulla... – ela balbuciou. Hillel entendeu que era seu nome. – Rei...
Silkai... Por favor...
Então ela soltou as barras, sem força, mas continuou se contorcendo de
dor no fundo imundo da gaiola.
Hillel levou as mãos até os cabelos e deu dois passos para o lado,
conferindo o estado da segunda mulher.
– Você está bem? – perguntou ele à figura magra da outra cela. – Ei!
Você está bem?
A mulher tentou apoiar os cotovelos no chão, mas estava muito fraca. Seu
corpo era duas vezes mais magro que o da primeira, e tinha cabelos curtos,
como os de Nil, porém avermelhados. Hillel viu que ela tinha também o nariz
amassado, quebrado em alguns lugares. Os lábios eram brancos e ressecados,
e as pontas dos dedos também careciam de unhas.
– Água... – gemeu a mulher, sem conseguir se levantar.
– Vou trazer, aguente firme – Hillel não sabia o que dizer. Sua mente
estava um furacão. Quando a moça disse a próxima palavra, ele então
compreendeu tudo.
– Le... ona.
***
Hillel subiu pelos fundos do palácio. Havia algo muito errado, aquilo não
podia ser trabalho de seu irmão. Não o que fizeram com as moças, não uma
barbárie tão gratuita, tão doente. Era disso que Mirta falava?... Não seria
possível que ela soubesse do paradeiro da princesa Leona. Não... Mirta tinha
outras suspeitas. Mas quanto a Leona, havia alguém que poderia responder, e
Hillel saberia se ele mentisse. Somente um nome vinha à mente. Gherda.
Quando subia as escadas, Hillel quase foi derrubado por meia dúzia de
soldados apressados. Estava de cabeça tão quente que nem se perguntou o
que faziam. Ele pisou no último degrau e passou pelo vão que ligava a
cozinha e o depósito de grãos. Continuou apressado pelo assentamento da
guarda, e em seguida cruzou todo o pátio do vestíbulo principal. Antes de
avistar a porta dos aposentos reais, já ouvia o estardalhaço que ocorria do
outro lado.
Mais soldados entravam, e duas ou três amas passaram chorando, com um
pano cobrindo as bocas, consoladas pelo sujeito falante, Fleros. Hillel apertou
o passo e deparou-
-se com uma dúzia de soldados embaralhados no meio do salão, trocando
palavras de ordem. Todos com as armas em mãos. Os quatro escolares,
Aberlo, Venai, Uk’h e Boa’Gaar reuniam-se perto dos vitrais, em uma coluna
de mármore. Pareciam profundamente abatidos.
E então Hillel viu Gherda. Ele estava sendo suspenso pelos braços por
quatro guardas e se debatia, com as pernas elevadas no ar.
– Me soltem, seus imbecis, eu posso explicar! – berrava o conselheiro.
Seu rosto estava meio manchado de sangue, e também os braços. Ele
segurava um punhal ensanguentado nas mãos, e os guardas tentavam
desarmá-lo. – Com quem pensam que estão falando? Ponham-me no chão!
Deixem-me explicar o que houve!
– O que aconteceu aqui? – perguntou Hillel, chocado com o que via.
– Comandante! – implorou Gherda, largando o punhal no chão. – Não
deixe que me levem, foi tudo uma armação! Eu não fiz nada!
– Comandante, abra caminho, por gentileza – pediu um oficial. – Guardas,
cerquem a área para que ninguém entre nos aposentos!
Hillel sentiu uma mão em seus ombros e virou-se bruscamente. Era
Aberlo, o clérigo-mor, com seu chapéu escuro chamativo.
– Comandante Hillel – disse ele, com tom monocórdio. – Chegou em
péssima hora.
Hillel tirou as mãos do velho de seu ombro com um gesto brusco.
– Professor Aberlo, pode me explicar o que está havendo nesse palácio?
O velho respirou fundo e baixou a cabeça, agitando-a de um lado a outro.
– Aparentemente o conselheiro Gherda apunhalou Sua Majestade, o rei.
Foi pego em flagrante, uma coisa terrível. – O velho estalou os lábios, com
desprezo. – Ele deve ir a julgamento amanhã mesmo.
Hillel afastou-se do clérigo, com as pernas bambas.
– Do que está falando? Está dizendo que Gherda, ele... enfiou um punhal
em Silkai? Mas por que? Ele jamais faria isso!
– Talvez saibamos quando ele se declarar, ou fizer seu último pedido,
comandante. Gherda vai para a forca, não tenha dúvidas. Foram as amas
quem o surpreenderam. A guarda foi chamada em questão de segundos, e lá
estava ele, com o punhal em mãos, manchado com o sangue do rei branco.
– Não pode ser... – balbuciou Hillel. – Não viram mais alguém? Talvez
Gherda tenha surpreendido o verdadeiro assassino e estava tentando ajudar o
rei! Como podem acusá-lo sem ao menos ouvi-lo antes?
Aberlo aproximou-se de Hillel e disse baixinho, en-cerrando o assunto:
– Elas o viram usar o punhal, comandante. – Respirou fundo novamente.
– Ele cortava os pulsos de Sua Majestade. Quando viram o rei debatendo por
sua vida, tentando desvencilhar-se de Gherda, o mesmo tentou fugir, mas foi
pego ainda no vestíbulo. Eu sei, é uma informação difícil de se processar, e as
amas passarão por um rigoroso inquérito. Mas acredite, senhor, o caso é
difícil para o rapaz, as meninas têm excelentes justificações, dezenas de
testemunhas... às vezes, comandante, essas coisas vêm de quem menos
esperamos.
Deviam estar brincando com sua cara. O rei, atacado por um punhal?
– Mas por que? – berrou Hillel. – Silkai já está grave-mente doente!
– Ambição... – sugeriu Aberlo – medo de que o rei se recuperasse... não
sei. Acredito que nunca saberemos.
Um pedaço de madeira ecoou no piso de pedra. Era o mestre Boa’Gaar, o
cego, aproximando-se com sua bengala.
– O comandante está abalado, não? – perguntou ele, tentando emitir uma
voz reconfortante. – Sabemos como se sente, senhor Hillel. Tínhamos muitos
planos para com o rei. Planos grandiosos para o futuro, e agora, jogados pela
latrina.
Hillel sentiu a nuca ficando gelada.
– Como tínhamos? O que houve com os planos?
Os dois professores ficaram nitidamente descon-certados diante da
pergunta.
– Não... – arriscou Aberlo – lhe contaram? O rei não resistiu aos
ferimentos, comandante. O médico declarou que ele sangrou até a morte.
Estava muito debilitado pela doença e, bem... sentimos muito pela perda da
capital.
Hillel procurou uma parede, coluna ou soldado onde pudesse se escorar.
Não podia ser verdade. Estavam brincando com sua mente. Primeiro veio a
garota, dizendo que ele era louco; em seguida, encontra duas mulheres
mutiladas e presas, à beira da morte, em um porão secreto. Agora vinha a
notícia de que Gherda o assassinara. Algo estava muito errado, era tudo uma
grande piada.
Quando Hillel percebeu, estava abraçado ao mestre Boa’Gaar, e ambos
quase caíam juntos. O comandante tratou de firmar as pernas, colocou-se
novamente em posição e passou a mão pelo cabo da espada. Dando
encontrões em quem via pela frente, caminhou a passos largos em direção aos
aposentos de Silkai.
– Saiam da frente! – rosnava. – Quero falar com o rei!
– Comandante... – um soldado tentou interpelá-lo, mas o reitor Uk’h
adiantou-se, puxando-o para si.
– Deixe-o, soldado – sussurrou Uk’h, com gentileza. – Ele está em
choque. Deixe que veja.
Hillel passou pelo cordão de guardas e entrou no quarto. À medida em
que via a imagem do irmão na cama, sentia os braços pendendo frouxos sob
os ombros. Silkai estava deitado de peito para cima, os cabelos espalhados
por toda o lençol, e tingidos de vermelho. Os olhos do irmão permaneciam
abertos, sem vida, e o rosto, ainda mais encovado, estava praticamente sem
cor. O pulso direito exibia um corte pequeno, mas que aparentemente atingira
uma veia importante, causando a hemorragia. Todo o carpete era um lago de
sangue empoçado.
Hillel tocou o rosto de Silkai uma última vez e sentiu-o gelado. Não se
importou em molhar as botas de sangue e não percebeu quando sentou-se ao
lado do irmão, afundando na cama.
***
Naquela mesma noite, em uma sala escura, iluminada por dois lampiões,
reuniam-se os cinco. Os únicos sons no ambiente eram as vozes sussurradas,
o arrastar de cadeiras e também o farfalhar dos tecidos pesados.
– Não há qualquer dúvida de que sua participação tenha sido crucial,
mestre – falou o sorridente reitor Uk’h, em voz baixa. – O corte no pulso do
rei não teria sido suficiente para matá-lo, e no fim... bem, que os deuses
tenham piedade. Gherda teve o que mereceu.
– Ele vai mesmo para a forca? – perguntou Venai. – Não quero esse
homem solto, colocando tudo a perder.
– Não diga bobagens, professor Venai – retrucou Ukh. – O conselheiro
era tão louco quanto Silkai. Se um deles precisava ser eliminado, o outro
também precisaria.
Boa’Gaar pigarreou aborrecidamente, pedindo a palavra. Os outros
fizeram silencio, sempre respeitando o ancião.
– O culpado foi o próprio rei. Não quero sentir o menor resquício de
dúvidas entre meus colegas. Desde que os malditos Tomos passaram a ser
traduzidos, o rei se esqueceu de sua missão. Já não tinha mais interesse em
defender a capital. – Ele mastigou a língua por um tempo e deu continuidade:
– Silkai jamais se ofereceria depois do ritual. Precisava ser feito!
Os outros quatro murmuraram vozes em concordância. O mestre era
realmente um poço de sabedoria.
– E agora quem garante que teremos êxito? – perguntou Aberlo. – Será
suficiente o material que coletamos?
Venai estendeu a mão, pedindo um objeto que estava ao centro da mesa.
– Deixe-me ver mais uma vez.
Uma mão empurrou o frasco para frente, deixando-o ao alcance do
professor de alquimia. Venai apanhou-o e colocou-o contra a luz,
inspecionando detalhadamente. No frasco havia uma grande mecha de
cabelos brancos e dois dedos de sangue.
– Bem – passou a declarar –, os Tomos dizem que é preciso ter o sangue
do rei. Evidentemente, tudo é mais fácil quando se é o rei em pessoa, mas, no
nosso caso, teremos pouco a perder. Não posso dar, porém, nenhuma
garantia. Se formos dar prosseguimento, é preciso que se tenha em mente a
quantidade de riscos envolvidos.
– Certamente – falou Ukh –, e vale ressaltar a questão do mensageiro.
Existe somente uma linhagem aparentada de Merff, e só dispomos de uma
carapaça. É mais um risco, mais um agravante. O candidato tem a obrigação
de saber que pode morrer no processo, ou causar um mal ainda pior. Estamos
levando tudo isso em conta?
O homem no centro da mesa pediu a palavra, mas Boa’Gaar decidiu falar
antes.
– Esse homem – apontando para o centro da mesa – não é nenhum
estúpido. Ele não teve contato com a história desde o princípio, mas, desde
que o recrutamos, vem executando o trabalho de forma primorosa. Sem
cometer quaisquer erros, eu insisto. Se não fosse pela toxina artisticamente
administrada, o rei não teria caído acamado, e não poderíamos sequer cogitar
a hipótese de coletar seu material. Gherda teve azar em ser pego, mas
acabaríamos encurralando-o até o fim da noite, isso já sabemos. Mas o ponto
é o seguinte: o corte no pulso seria um mero arranhão, porém o veneno do
candidato agiu como um poderoso hemorrágico. Essa tarefa é, agora, tão dele
quanto nossa.
Ninguém ousou discordar. Boa’Gaar estendeu a mão, dando a palavra ao
homem. Ele ajeitou a gola da camisa e começou:
– Sinto-me honrado por suas palavras, mestre Boa’Gaar. Sua sabedoria
tem servido, não tenha dúvidas disso, como fonte de inspiração à minha
pessoa. Logo eu, que vim a essa cidade sem maiores ambições, acabei por
assassinar o rei. – Ele ergueu a mão. – Um rei louco, certamente, que nos
faria rastejar no chão até nos lanhar os joelhos! Não, não... eu pergunto a
mim mesmo toda noite: existe algo que possa fazer para tornar o mundo um
lugar mais feliz? E digo aos senhores: não havia, até o momento. Pelo menos
era o que eu pensava. – Fez uma pausa, respirando profundamente. – De
minha parte, têm minha palavra. Estou pronto para aceitar o lugar de Sua
Majestade Branca, na cerimônia ritualística. Assim como percorri os ladrilhos
do castelo a serviço de príncipes, duques e convidados importantes, servirei
agora à maior causa. Não pensem que não sei dos riscos! Ora, logo eu, que
cresci no meio da balbúrdia... Não vejo candidato mais capacitado, meus
senhores, tão profundamente disposto a sacrificar corpo e alma! Serei eu o
humilde servo a pôr fim a essa guerra. A fortaleza precisa morrer!
Os quatro escolares assentiram, com profunda satis-fação. Boa’Gaar
finalizou:
– A capital fica imensamente grata, mestre Fleros. Com o que temos em
mãos, acredito que possamos dar início. Já estamos no último dia.
42 – ENQUANTO OS PILARES PROCLAMAM