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UM ESTUDO DE CASO
RESUMO
Na prática clínica de Psicologia, muitas vezes, aparecem casos de crianças encaminhadas para avaliação
psicológica pela escola ou por outros profissionais da saúde. A avaliação psicológica, no entanto, não
tem finalidade psicoterapêutica – como o próprio nome sugere, ela tem finalidade avaliativa. No estudo
de caso apresentado neste artigo, um paciente veio para o consultório com uma demanda desse tipo. O
objetivo da mãe e da escola era a obtenção do auxílio de um segundo professor em sala de aula. Porém,
durante esse processo, foram surgindo vários fatores que exigiriam um trabalho psicoterapêutico. Dessa
forma, após a devolutiva da Avaliação Psicológica, foi iniciado um processo de psicoterapia, com aborda-
gens de ludoterapia e arteterapia em razão do perfil do paciente. Com esse processo, o paciente foi capaz
de crescer internamente como sujeito, o que se refletiu, inclusive, em sala de aula.
Palavras-chave: Avaliação psicológica. Psicoterapia. Ludoterapia. Arteterapia. Criança.
1 INTRODUÇÃO
Quando uma mãe procura o serviço da clínica de psicologia para seu filho por encaminhamento da
escola e de outros profissionais, muitas vezes essa mãe não tem o conhecimento preciso acerca do trabalho
de um profissional da psicologia. É comum que o paciente venha com uma demanda, já rotulado por um
diagnóstico que é reforçado no dia a dia da criança, seja no ambiente escolar, seja no ambiente familiar.
Nesses casos, cabe ao psicólogo informar sobre o seu trabalho e atuar de maneira que permita
que a criança receba o que realmente esteja necessitando, dentro das atribuições do profissional da psi-
cologia. Muitas vezes, a criança possui um diagnóstico, acaba estigmatizada e não sabe como lidar com
essa situação, podendo sentir-se inclusive culpada pela psicopatologia que lhe é atribuída.
O estudo de caso apresentado a seguir exemplifica uma destas situações. A partir da demanda de
avaliação psicológica trazida pela escola e pelo neurologista, foi possível ir além deste processo, passan-
do por um processo psicoterapêutico adaptado para a criança em questão.
2 ESTUDO DE CASO
J. S., menino de 10 anos no início da terapia, cursava o quinto ano do ensino fundamental quando
foi encaminhado pela escola e pelo médico neurologista para realização de uma avaliação psicológica
no intuito de obter o acompanhamento de um segundo professor em sala de aula em decorrência de um
diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).
O encaminhamento do médico em questão requisitava apenas um “teste de QI”. Sabe-se, no en-
tanto, que a avaliação psicológica vai muito além da avaliação do Quociente de Inteligência (QI) do pa-
ciente, principalmente pelo fato de que o quociente de inteligência pouco tem a ver com o diagnóstico de
1
Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina; Especialista em Neuropsicologia pela Universidade Luterana do Brasil;
Professora no Curso de Psicologia da Universidade do Oeste de Santa Catarina de Joaçaba; [email protected]
2
Graduando em Psicologia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina de Joaçaba; [email protected]
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TDAH. Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), esse transtorno é
descrito tendo como característica essencial
Como a demanda inicial do paciente estava focada na Avaliação Psicológica, foram realizados os
procedimentos desta. O Conselho Federal de Psicologia, na Resolução CFP n. 007/2003 descreve a ava-
liação psicológica como um
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Por fim, o último instrumento utilizado foi a ludoterapia. Esta, segundo Pregnolato (2005), é a
“psicoterapia adaptada para o tratamento infantil, através do qual a criança, brincando projeta seu modo
de ser, o objetivo dessa modalidade de análise é ajudar a criança, através da brincadeira.” Nesse momen-
to, a ludoterapia foi utilizada para compreender algumas questões pontuais do paciente. Posteriormen-
te, no entanto, a ludoterapia foi amplamente utilizada no processo psicoterapêutico.
Nesse processo de avaliação psicológica, que durou seis sessões, foi notado que, de fato, J. S.
apresenta características que podem diagnosticá-lo com TDAH de apresentação predominantemente
hiperativa/impulsiva. A atenção do paciente, no entanto, foi considerada acima da média em algumas
situações.
Foi notado também que J. S. apresenta muitas características que podem ser consideradas sinto-
mas de dislexia que, segundo a Associação Brasileira de Dislexia (ABD) (2016), consiste em “um trans-
torno específico de aprendizagem de origem neurobiológica, caracterizada por dificuldade no reconhe-
cimento preciso e/ou fluente da palavra, na habilidade de decodificação e em soletração.” Por essa razão,
foi sugerido à mãe do paciente que lhe encaminhasse a um fonoaudiólogo e a um psicopedagogo. No
entanto, até a presente redação deste artigo, ele não teve contato com esses profissionais.
A maior parte da descrição acerca do paciente se mostrou muito focada em sintomas, com uma
abordagem que compreende o sujeito de maneira estigmatizada, em um contexto de patologização, pa-
recendo esquecer que os sintomas apresentados por um paciente geralmente estão relacionados com
questões muito mais abrangentes, as quais envolvem todo o contexto biopsicossocial em que o sujeito
está inserido.
No DFH III, teste que utiliza desenhos, foi possível notar que o paciente havia perdido parte de
sua espontaneidade, parecendo viver constantemente sob o constrangimento das regras. J. S. parecia
se expressar muito mais livremente quando entendia que não estava sendo observado sob uma ótica
avaliativa. Muitas vezes, parecia esperar a aprovação do terapeuta na realização de atividades e testes,
esperando ser corrigido prontamente caso cometesse algum erro. A falta de estímulos para que o pa-
ciente encontrasse as soluções dos problemas por conta própria no cotidiano parecia estar influencian-
do diretamente seu desempenho, pois ele desistia facilmente de algumas atividades quando encontrava
alguma dificuldade.
Foi dada então a devolutiva da avaliação psicológica para a mãe do paciente. Nessa mesma sessão
foi realizada uma nova entrevista com ela, momento em que se decidiu continuar com o atendimento de
J. S. na clínica.
Logo após a devolutiva da Avaliação Psicológica de J. S. para sua mãe, esta relatou vários compor-
tamentos agressivos e que beiravam a obsessão. Esses comportamentos incluíam bater a cabeça contra a
parede, agressividade aparentemente injustificada contra o padrasto e inúmeros descartes de desenhos
recém-iniciados na busca de um traço melhor.
Por esses motivos, ao final da avaliação psicológica, optou-se por sugerir que J. S. iniciasse um pro-
cesso psicoterapêutico na clínica, pois se entendeu que problemas de cunho emocional e social também
poderiam estar diretamente relacionados com suas dificuldades de aprendizagem e desenvolvimento.
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Da avaliação psicológica à psicoterapia infantil: um estudo de caso
Indo muito além das dificuldades de aprendizagem apresentadas em contexto escolar, J. S. tem
uma história de vida com eventos traumáticos que ainda repercutem em sua individualidade. Quando
tinha cerca de dois a três anos de idade, presenciou diversas agressões de seu pai biológico contra a sua
mãe. O pai era alcoólatra e, entre as agressões, houve uma tentativa de homicídio com uma faca. Nesse
evento, a mãe de J. S. atribui o fato de ter sobrevivido ao aviso proferido pelo filho, que visualizou a arma
na mão do pai e a alertou.
Seu pai veio a falecer de cirrose quando J. S. tinha cerca de três anos de idade. Nesse momento, o
paciente criou um forte vínculo com a avó, que faleceu posteriormente. Ele passou por um longo proces-
so de luto até aceitar a perda. Nesse meio tempo, após cerca de um ano e meio do falecimento do pai, a
mãe de J. S. começou a namorar e veio a morar com o atual padrasto do paciente.
No processo psicoterapêutico que se iniciou, foram utilizadas abordagens lúdicas. O paciente
apresentou dificuldades em se comunicar e expressar verbalmente o que sente e o que pensa. Nesse
caso, optou-se por intercalar momentos de ludoterapia com o auxílio de jogos e brinquedos com técnicas
lúdicas e momentos de arteterapia que permitissem que o paciente expressasse aquilo que parecia não
conseguir expressar verbalmente.
Na ludoterapia com jogos e brinquedos, J. S. teve liberdade para se permitir fluir livremente den-
tro do consultório, podendo escolher as brincadeiras e permitindo ao terapeuta uma melhor formação
de vínculo, até então pouco estabelecida em decorrência do excesso de tecnicidade e formalidade dos
testes psicológicos. Em jogos competitivos, o paciente demonstrou novamente que pode seguir regras
e lidar com a frustração, apesar de ser inquieto. Já nas brincadeiras com carrinhos, foi possível notar a
necessidade de fugir às regras em alguns momentos e de deixar a agressividade fluir.
A ludoterapia, conforme explicado anteriormente, consiste na terapia com aporte do brincar da
criança. Já a arteterapia é:
Uma abordagem que utiliza os suportes artísticos com objetivo de promover mudanças psíquicas.
Para isso realiza-se em diálogo com a arte, a psicologia e com a educação artística e por meio de
processos e procedimentos artísticos potencializam-se a expressão e comunicação com afetos in-
conscientes, fantasias, sensações, sentimentos e ideias complexas. (ANDRADE, 2000; PHILIPPINI,
2004; VALENTE, 2010 apud RODRIGUES, 2015, p. 4).
Nas técnicas de arteterapia, J. S. teve a liberdade para expressar de maneira lúdica questões in-
conscientes que pareciam estar impedindo que sua energia psíquica fluísse de maneira espontânea.
Apesar de não compreender racionalmente o que expressava, ele trouxe conteúdos muito ricos para se
trabalhar. Como o paciente se expressa pouco verbalmente, essa abordagem foi muito proveitosa pois,
segundo Martins (2012, p. 16), “a comunicação verbal faz parte da elaboração do conteúdo expresso
artisticamente, mas esta não é essencial, ou seja, não é fundamental para o desenvolvimento de um pro-
cesso arteterapêutico.”
Em uma sessão, foi utilizado o instrumento do Desenho da Família que, segundo Ortega (1981, p.
74), “além de possibilitar uma maior objetividade na caracterização das relações familiares, possibilita
também a projeção da imagem do próprio corpo.” Ao executar esse desenho, J. S. relutou a princípio,
dizendo não gostar de desenhar, mas aceitou a proposta. Tal fato pode estar relacionado ao fato de que,
segundo Martins (2012, p. 89), em casos de pacientes com pouca escolaridade, o indivíduo pode rejeitar
o desenho, pois esta é uma atividade aludida à escola.
Mesmo com essa resistência, encontraram-se algumas pistas sobre o momento de vida atual de J.
S. em seu desenho, bem como nos desenhos de figuras humanas que surgiram durante a avaliação psico-
lógica; neste desenho, as figuras seguem padrões rígidos, com poucas características que o diferenciam.
É um desenho extremamente racional, cheio de linhas e cantos retos, em que foi possível encontrar uma
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possível ressignificação de sua relação com seu padrasto. Também foi possível notar que a figura de sua
mãe ocupa o centro da família. O paciente apresentou novamente características que fizeram crer que
ele vive sob o constrangimento das regras, sem espontaneidade, com muita criatividade e agressividade
reprimidas.
Posteriormente, quando J. S. demonstrou interesse pelo trabalho com argila, essa ferramenta foi
aplicada. O trabalho com argila vem se mostrando versátil e eficiente como técnica psicoterapêutica.
Martins (2012, p. 102) afirma que o barro “é um símbolo de coesão e de unificação do Eu, e da mesma
maneira o movimento de criação no setting arteterapêutico favorece a execução de símbolos preenche-
dores do vazio interno.” Oaklander (1980, p. 85) afirmava que o trabalho com a argila
[...] promove a manifestação ativa de um dos processos internos mais primários. Proporciona a
oportunidade de fluidez entre material e manipulador como nenhum outro. Ela aproxima as pes-
soas de seus sentimentos, ocorre a união entre o meio e a pessoa que o usa. Freqüentemente ela
parece penetrar na armadura protetora [...]; Pessoas muito distanciadas do contato com seus senti-
mentos e que continuamente bloqueiam sua expressão, geralmente estão fora de contato com seus
sentidos. Aqueles que estão inseguros e temerosos podem ter uma sensação de controle a domínio
através da argila. Ela constitui um meio que pode ser “desmanchado” e que não tem regras específi-
cas definidas para o seu uso. É bastante difícil cometer um “erro” ao trabalhar com argila.
Apesar do fato de que a matéria-prima utilizada pelo paciente tenha sido a argila, ele a utilizou
de maneira similar a uma tinta sobre o papel, criando uma imagem quase bidimensional. Por essa razão,
considerou-se interessante interpretar esse material de maneira similar a um desenho. É importante
mencionar que, ao mesmo tempo que J. S. fazia sua modelagem, o estagiário também executava uma
modelagem.
Em sua modelagem, J. S. trouxe a figura de um lago com peixes à esquerda, seguida pela imagem
de uma cobra no centro e um menino à direita. No céu, à esquerda, havia um sol. O paciente descreveu a
seguinte narrativa para a cena: um menino queria chegar ao lago para ver os peixes, mas no caminho ha-
via uma cobra que o impedia de passar. O menino, com medo, afastou-se da cobra. Essa cena, que parece
simples à primeira vista, carrega profundos significados.
A modelagem executada pelo estagiário, por sua vez, apresenta um menino de camiseta vermelha
e calção preto, com uma bola de futebol sobre o pé esquerdo. As figuras estão dispostas sobre um grande
gramado com uma única e grande flor ao lado do personagem central. Racionalmente, foi uma tentativa
de desenhar o próprio paciente em si. Acreditou-se, porém, que houve um processo de identificação do
estagiário com o paciente. Paciente, terapeuta e suas obras formam um triângulo que permite que tanto
o paciente quanto o terapeuta cresçam e se desenvolvam durante o processo terapêutico.
A interpretação desse material foi realizada utilizando, em grande parte, a teoria dos Arquétipos
de Carl Gustav Jung. Esse autor afirma que “as crianças ainda possuem lembranças muito vivas do mun-
do primordial; ele nasceu com elas.” (JUNG, 2011, p. 105). Sobre a teoria dos Arquétipos e do Inconscien-
te Coletivo, Hopcke (2012, p. 24) afirma que
[...] ao usar sua teoria dos arquétipos para justificar as similaridades no funcionamento e no ima-
ginário psíquicos através dos tempos em culturas altamente diferentes, Jung concebeu uma se-
gunda camada do inconsciente, que ele chamou de inconsciente coletivo. Essa camada do incons-
ciente era a que continha aqueles padrões da percepção psíquica, comuns a toda a humanidade,
os arquétipos. Pelo fato de o inconsciente coletivo ser o campo da experiência arquetípica, Jung
considerou a camada do inconsciente coletivo mais profunda e, em última análise, mais significa-
tiva do que a do inconsciente pessoal. Ficar ciente das figuras e dos movimentos do inconsciente
coletivo levou as pessoas ao contato direto com as experiências e percepções essencialmente
humanas, e o inconsciente coletivo foi considerado por Jung como a suprema fonte psíquica do
poder, da totalidade e da transformação interior.
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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É comum que, ao receber em consultório a demanda de um paciente, essa demanda seja apenas
uma pequena parte de um sistema muito maior e mais complexo do que aparenta ao senso comum. No
estudo de caso apresentado se poderia ter se contentado apenas com a avaliação psicológica do paciente,
dando uma devolutiva que poderia dar nome às dificuldades do paciente e rotulá-lo. No entanto, ao se
optar por iniciar um processo psicoterapêutico em razão do que foi levantado durante esse processo, o pa-
ciente pôde começar um processo de crescimento interno que lhe era necessário, apesar de desconhecido.
A capacidade de querer ir mais a fundo dentro do que é trazido para o consultório é uma atri-
buição do psicólogo que pode trazer resultados amplos, positivos e eficientes para o paciente, permi-
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tindo-lhe lidar com situações que, em outros contextos, não poderiam ser trabalhadas. No estudo de
caso apresentado, ficou claro que as dificuldades de aprendizagem apresentadas pelo menino iam muito
além de um simples diagnóstico de TDAH.
Portanto, ao psicólogo que recebe esse tipo de demanda é interessante que ele seja capaz de
identificar e trabalhar com o paciente considerando o fato de que este é um indivíduo que deve ser com-
preendido em sua totalidade biopsicossocial, com uma história única, que muitas vezes não consegue
expressar verbalmente o que sente e o que pensa. As abordagens que permitem a expressão dos con-
teúdos sem a necessidade do uso das palavras surgem como uma ferramenta importante nesses casos.
REFERÊNCIAS
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Paulus, 2004.
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