LEM.2002 Guerios - Ettiene
LEM.2002 Guerios - Ettiene
LEM.2002 Guerios - Ettiene
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
TESE DE DOUTORADO
CAMPINAS, 2002
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
TESE DE DOUTORADO
Comissão Julgadora
Campinas, 2002
iii
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP
iv
DEDICATÓRIAS
Dedicatória de honra:
À minha mãe Mirian Cordeiro Guérios: simplesmente tudo. Sempre e para sempre.
Dedicatória de amor:
Aos meus filhos Fernanda, Henrique e Silvia, partes de mim, de quem fui e serei,
antes de tudo e para sempre, uma orgulhosa mãe!
Dedicatória fraterna:
À minha irmã Henriette Cordeiro Guérios, lição na vida que me levou ao
amadurecimento: ser profissional é ser profissional.
Dedicatória Magna:
Ao meu pai Amauri Mauad Guérios, concretude de ato educativo permanente, cuja
trajetória de vida marcou a ética de meus passos. Estrela no firmamento desde 1972, é
a base sob a qual até hoje me faço Ser. Mostrou-me que a Educação não tem tempo
nem espaço, que se faz no fluir da vida. Saudade... mostra-me que o tempo não apaga
marcas efetivas. Fazer-me não cair nas esparrelas em que a vida nos joga, é prova de
que fundamentos são perenes se a lição é sólida e permanente. Caminhar é para
sempre. É mais que exemplo. Transcende ao presencial da vida no plano em que
circunstancialmente estamos. Ser o exemplo para o exemplo, é a sua lição.
A você meu pai, que se foi sem ir em 1972, dedico meu trabalho em 2002.
v
vi
DEDICATÓRIAS ESPECIAIS
Marcioney Guimarães
vii
viii
LEMBRANÇAS PARA SEMPRE
AGRADECIMENTOS
À Onice Payer pela revisão de linguagem do meu trabalho e pelo carinho a mim
dedicado.
ix
x
REGISTROS ESPECIAIS
xi
xii
SUMÁRIO
RESUMO...................................................................................................................xvii
ABSTRACT...............................................................................................................xvii
APRESENTAÇÃO .................................................................................................... 1
xiii
xiv
2 EM UM ESPAÇO SEM FRONTEIRAS, AS AÇÕES E OS SUJEITOS:
BREVE HISTÓRIA DO LABORATÓRIO DE ENSINO E APRENDIZAGEM
DE MATEMÁTICA E CIÊNCIAS FÍSICAS E BIOLÓGICAS DA UFPR
2.1 GÊNESE E CONFIGURAÇÃO DOS ESPAÇOS DE FORMAÇÃO ................................ ..39
2.2 NAS AÇÕES, O APRIMORAMENTO DE IDÉIAS E A CONSTITUIÇÃO
DOS SUJEITOS ............................................................................................................ ..48
2.3 DA AÇÃO INSTRUMENTALIZADORA À DINAMIZAÇÃO DO INSTRUMENTAL
NA AÇÃO DOCENTE ..............................................................................................67
xv
xvi
RESUMO
ABSTRACT
The object of this study has been to understand how teachers consist
professionally in thoughts, actions and knowledges in spaces of teaching formation and
practice. The study thoughts, actions and knowledges in spaces of teaching formation
and practice. The study involves six teachers who have participated in the Laboratory of
Teaching and Learning of Mathematics and Physical and Biological Sciences at UFPR,
which has been solidifying, since 1985, in instances of professional development
articulating University and schools. In order to narrate the historical evolution of the
Laboratory, documents and materials produced have been researched. In order to
understand the process of professional formation of the teachers, oral life history with
basis on semi-structured interviews has been adopted. Based on a concept of
professional development associated to authentic experience and anchored on
principles of the paradigm of complexity, this study shows - within the context of the
results obtained - that the teacher is professionally formed not only in official spaces,
but, above all, in interstitial spaces that arise out of the meanders between the known
and unknown, as well as between the foreseeable and the imponderable.
xvii
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 1
APRESENTAÇÃO
ALUNA
e, de salas interiores,
por altíssimas janelas,
descobrem coisas mais belas,
rindo-se dos professores...
Quando fiz minha opção profissional, eu a fiz determinadamente pelo trabalho com a
formação pedagógica de professores de Matemática. Toda a minha trajetória está
dirigida a identificar e compreender elementos constitutivos desta especificidade para
compor o meu acervo teórico pessoal, de sorte a subsidiar minha atividade,
cooperando, pelo meu trabalho como docente e pesquisadora, na composição do vir a
ser do professor de Matemática. Assim sendo, licenciada em Matemática e em
Pedagogia, fui buscar meu espaço profissional no Setor de Educação da Universidade
Federal do Paraná (UFPR) locus da formação pedagógica geral para os cursos de
Licenciatura, estabelecendo-me no então Departamento de Métodos e Técnicas da
Educação, atual Departamento de Teoria e Prática de Ensino, locus da formação
específica quanto a didática e metodologia de ensino nas áreas particulares para a
ação docente.
Antes de meu ingresso como docente na UFPR, já fazia parte de equipes
multidisciplinares de pesquisa vinculadas ao CNPq1, desenvolvendo estudos relativos à
iniciação ao ensino e à aprendizagem da Matemática. Estas experiências contribuíram
para minha determinação profissional, ao reforçarem suspeitas levantadas quando
licencianda, de que a formação pedagógica para o exercício do Magistério apresentava
pontos nevrálgicos que comprometiam, como um todo, a postura do professor frente ao
conhecimento da Matemática e seu ensino.
1
“Confronto entre a Lógica do Professor e a Lógica do Aluno em Classes de Primeira e Segunda Séries
do Primeiro Grau” (CNPq, 1982-1984) e “Recuperação da Legitimidade Conceptual do Processo de
Alfabetização” (CNPq, 1984-1986) coordenadas pela Profa. Dra. Zélia Milleo Pavão (UFPR). As equipes
foram formadas por professores de Matemática, Língua Portuguesa, Estudos Sociais, Ciências, e
também por psicólogos, sociólogos e alunos do curso de Mestrado em Educação da UFPR.
6 Ettiène Cordeiro Guérios
5
Utilizamos os termos “convivência” e “vivência” sendo o segundo para contemplar o “processo
individual” cuja experiência provoca movimento interior de transformação.O fazemos por entender que é
possível conviver, coletivamente sem, no entanto, viver “individualmente” o processo de conviver.
6
Espaço próprio de formação profissional que possibilitasse ações coletivas de modo a superar
desvínculo existente entre formação pedagógica e específica além de proporcionar vivências coletivas
entre professores das escolas e da universidade (Docs. 1, 2, 3; OLIVEIRA, 1995).
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 9
7
D’Ambrosio (1999, p. 37-43) evidencia que o conhecimento, após ser produzido pelo povo é
expropriado dele pelos grupos de poder e passa por um processo de estruturação e codificação para lhe
ser devolvido em uma forma mitificada, por meio de instituições de devolução como as escolas, as
profissões, os graus acadêmicos, etc. Creio que embora se refira a sociedade em sua relação com a
produção e recepção do conhecimento, sua posição é basilar para subsidiar a nossa quanto ao professor
em seu processo de constituição, por denunciar a verticalidade e externalidade a que o cidadão fica
submetido em sua relação com o conhecimento, em todas as esferas sociais. Afirma D ‘Ambrosio que o
trabalho do educador não é servir a um sistema de filtros, mas sim estimular cada indivíduo a atingir sua
potencialidade criativa, e estimular e facilitar ações comuns, que por sua vez, são as responsáveis pelas
revoluções no ciclo do conhecimento. Mas, pergunto-me, como vislumbrar este professor se, ele mesmo,
for produto acrítico de um sistema fundado na verticalidade e na externalidade?
10 Ettiène Cordeiro Guérios
não terem tido relação com o processo acadêmico de sua produção e que, muitas
vezes, lhes é desprovido de sentido, por estarem distantes da sala de aula, local de
atuação profissional do seu aluno - dos Cursos de Licenciatura – ou dos professores no
exercício do magistério.
Nesse processo de externalidade e verticalidade, Gauthier (1998) e Zeichner
(1998) observam haver tensão, quando não conflito, entre segmentos da esfera
educativa, em que a Academia não valoriza a pesquisa dos professores em sua prática,
por considerá-la trivial e não fundamentada teoricamente, enquanto estes, por sua vez,
apontam a irrelevância da pesquisa acadêmica para a prática escolar. Zeichner (1998,
2000) denuncia particularmente que universidade e escola vivem mundos diferentes e
que a formação de professores está fundamentada apenas em bibliografia produzida
academicamente, havendo pouco reconhecimento de teorias produzidas por aqueles
que estão na prática.
O que nos parece verdade é que, separados ou não institucionalmente,
universidade e escolas estão vinculadas a um mesmo processo: o da prática
pedagógica. Se as situações denunciadas acima nos causam estranheza, por que não
pensar em possibilidades formativas em que o professor seja sujeito de seu
desenvolvimento, tendo como características a horizontalidade, a não linearidade e a
possibilidade de conjecturar na construção processual em seu desenvolvimento
profissional? Que caminhos podem ser apontados capazes de cooperar para a
superação de um modelo linear e vertical de desenvolvimento profissional?
Os autores citados apostam na proximidade entre pesquisadores e professores
como possibilidade de superação deste quadro. Zeichner (1998, 2000), por exemplo,
informa que nos EUA os programas de formação estão considerando dinâmicas de
ação para unir os segmentos universitário e escolar com vistas à produção coletiva de
conhecimento, apostando na proximidade entre pesquisadores e demais professores.
O Laboratório da UFPR tem-se constituído como um espaço de formação que
tenta superar modelos lineares e verticais de formação e relação entre profissionais.
Instiga-nos investigar a trajetória deste espaço e de professores que dele participaram
visto que, como espaço multidisciplinar e articulador, ultrapassou as fronteiras da
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 11
8
Gauthier (1988, p. 17-37) identifica três circunstâncias na relação entre ofício e saberes, a saber: a) um
ofício sem saberes: contrapõe-se a posições que mantém o ensino numa espécie de cegueira conceitual
afirmando que basta conhecer o conteúdo, ter talento, bom senso, experiência e cultura; b) saberes sem
ofício: formalização do ensino, mas reduzindo de tal modo sua complexidade que não mais encontre
correspondente na realidade, reduzindo-se de um ofício sem saberes pedagógicos específicos, para
saberes que provocam o esvaziamento do contexto concreto de exercício do ensino; c) Um ofício feito de
saberes: competência relacionada à posse de um saber próprio ao ensino para ajudar na sua
profissionalização.
12 Ettiène Cordeiro Guérios
9
Marcelo (1999) faz revisão de literatura sobre os sentidos do termo “formação”. Aponta a necessidade
manifesta por autores de desenvolver uma Teoria da Formação, assim como se tem Teorias da
Educação, exemplificando com a sugestão de Honoré (1980) a denominada “Formática”. Um conceito
importante nesta teoria é o de “ação formativa”, ou “atividade formativa” ou ainda “ações de formação”,
nomenclatura que varia conforme o autor.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 13
10
Como possibilidade de superação do acatamento dogmático de tais atividades, Ponte aposta em
possibilidades formativas por meio de projetos, pois crê que, na interação entre seus pares, apreende o
princípio do trabalho colaborativo, o que lhe permite desenvolver uma postura para trabalhar em equipe,
que, associada a sua base experiencial, promoverá sua autonomia no percurso de desenvolvimento
profissional, desvinculando-se, assim, da necessidade de permanência em situações formais.
14 Ettiène Cordeiro Guérios
A afirmação “querer saber por que faz o que faz” nos é instigadora e provocante,
e nela centramos nossa curiosidade. Parece-nos que esta busca poderá ampliar o
entendimento sobre como o professor elabora suas teorias, realiza suas práticas e
constrói os princípios que sustentam sua ação docente cotidiana.
Não podemos esquecer que o Laboratório da UFPR surgiu em um momento
histórico (1985) em que ainda predominava o modelo da racionalidade técnica na
formação de professores. Entretanto, sempre houve uma crença muito forte no grupo -
e, em torno dela todos os participantes do Laboratório mobilizavam suas ações - de que
se professores e alunos vivenciassem e internalizassem outros modos do fazer
docente, então, ao afastarem-se desses espaços de formação, continuariam, em seu
percurso profissional, a buscar novas perspectivas ou alternativas para a melhoria da
ação didática (Doc 1). Será, portanto, significativo para nós saber também como isso
efetivamente aconteceu no processo de formação dos professores no Laboratório.
Para continuar a desenvolver a discussão a respeito de como entendemos o
processo de formação e de desenvolvimento profissional dos professores, poderíamos,
a princípio, afirmar que consideramos o professor como sujeito de sua formação, tendo
sua experiência profissional como balizadora para os novos fazeres. Se concordarmos
com a idéia de que o percurso de formação profissional, além de contínuo, é único, e
13
Esta obra apresenta detalhadamente objetivos de uma metodologia presidida pela investigação-ação
que possibilita o alcance pretendido para a formação inicial. O construto curricular em que se insere está
fundado no pensamento prático dos alunos e inclui os processos cognitivos, emocionais e afetivos que
incidem na prática individual e coletiva dos professores. A este pensamento prático o autor chama de
pensamento pedagógico prático reflexivo, e expõe que ele vai se desenvolvendo durante a formação
inicial (IMBERNÓN 1994, p. 49-55). Embora o autor apresente sua idéia para o período relativo à
formação inicial os pressupostos podem ser ampliados para o percurso contínuo do desenvolvimento
profissional.
16 Ettiène Cordeiro Guérios
14
Larrosa (1996, p. 134-145) opõe o saber da experiência a sua concepção de conhecimento (separado
do sujeito cognoscente) caracterizando-o como: a) saber particular, subjetivo, relativo, pessoal. b) saber
finito, ligado ao amadurecimento de um indivíduo particular e que revela ao homem singular sua própria
finitude. c) saber inseparável do indivíduo concreto que o encarna não estando, como o conhecimento
científico, fora dele.
15
Para Ponte Formação se refere a situações formais de aprendizagem marcadas pela externalidade e
para Larrosa ao movimento interior num contexto experienciável que transforma o sujeito.
16
Ponte (1998) apresenta o conhecimento profissional em três vertentes: a) dinâmica, associada a
prática letiva; b) organizacional, associada a participação nas tarefas da vida da escola e da comunidade;
c) pessoal, associada ao modo como encara e promove seu próprio desenvolvimento profissional.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 17
17
Poderia referir-me a modelos que consideram que esse saber se constrói desde o nascimento.
Montessori, educadora italiana, no início do século, já postulava por esta máxima. Prefiro referir-me aos
primeiros bancos escolares porque estou focando especificamente o movimento da sala de aula, da
relação professor-aluno, em relação ao que internaliza por ser parte desse processo e porque é em
lembranças advindas desta relação que vão se compondo os modelos referenciais a que me refiro.
18 Ettiène Cordeiro Guérios
18
Doll (1997) propõe diretrizes para a estruturação de um currículo fundado em princípios de Prigogine,
Piaget e Schön, cuja linha mestra vislumbra uma mudança orgânica em um modelo de emergência e
crescimento possibilitado pela interação e transação, visando à organização sistêmica em que alunos e
professores interajam, transformem e se transformem tendo em vista um espaço plural.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 19
É possível perceber, pelo que foi discutido até aqui, que tanto Larrosa, com seu
conceito de experiência autêntica, quanto Doll, com a abordagem adotada de
epistemologia experiencial, apontam para aspectos comuns do processo de formação
do sujeito e que nos interessa ressaltar. São aspectos que valorizam o movimento
interior de cada um ao constituir-se sujeito em relação ao mundo, ao conhecimento e ao
20 Ettiène Cordeiro Guérios
outro. É nesse tipo de movimento de constituição dos professores que passaram pelas
ações e discussões do Laboratório que estamos particularmente interessados em nosso
estudo. Em outras palavras, estamos interessados não tanto nas ações propriamente
ditas, mas no que elas representaram quanto ao processo de formação do professor, ou
seja, no que levou os professores a realizá-las de um jeito e não de outro. Estamos
interessados em conhecer e compreender os significados produzidos por cada um ao
experienciar suas ações.
Em função do conceito de desenvolvimento profissional adotado, ou seja, o de
um processo contínuo de permanente transformação advindo do movimento interior
protagonizado pelo professor em sua dialógica relação com o campo de conhecimento
que lhe é pertinente e com sua experiencialidade, valemo-nos também da noção de
recursividade para tentar compreender longitudinalmente as circunstâncias em que
noções conceituais acerca do conhecimento profissional foram sendo elaboradas, quer
nas ações em grupo quer nas individuais. O princípio da recursividade permite que a
reflexão realizada no decorrer das ações ilumine concomitantemente ações já
efetivadas e as que estão se efetivando, assim como fundamenta paulatinamente, em
um continuum, as ações futuras. Isto significa adotar um princípio de continuidade, em
que, para cada nova experiência, há outra ou outras que a precedem, o que nem
sempre é consciente para o sujeito da ação. É propósito deste estudo tentar captar e
compreender esse movimento, poder vir a torná-lo visível. A reflexão com recursividade
cria um elo entre práticas realizadas e por realizar. Ela vai além do feedback e da
retroação; é um círculo gerador em que produtos e efeitos são eles próprios produtores
e geradores daquilo que produz (MORIN; MOIGNE, 2000, p. 210). A segmentação, ou
separação, não mais se justifica segundo esse princípio, assim como a ordenação entre
saber para poder fazer, ou entre antes o primeiro, e depois, o segundo. É a articulação
entre elementos constitutivos da prática pedagógica que gera o movimento ininterrupto
das ações neles fundamentadas.
Trata-se, pois, de processos recorrentes: suas ações e efeitos finais geram seu
próprio recomeço (MORIN; MOIGNE, 2000). Por meio da reflexão recursiva os
indivíduos são transformados pela ação. Mas a relação ação-reflexão não se dá como
uma relação de causa-efeito; ao contrário, ela acontece em um processo simultâneo,
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 21
gerado pelo processo contínuo mas não linear em que ação-reflexão interagem
desencadeando-se em elos ação-reflexão-ação-reflexão...
É sob esse referencial teórico que tentamos compreender como professores que
participaram do Laboratório da UFPR se constituem profissionalmente em ações,
pensamentos e saberes nos múltiplos espaços de formação e prática docente.
19
Morin (2000, p. 87) apresenta a noção de ecologia da ação como sendo levar em consideração a
complexidade que uma decisão a ser tomada supõe: o aleatório, o acaso, a iniciativa, o inesperado, o
imprevisto, a consciência de derivas e transformações.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 23
20
Devido às modalidades de ações desenvolvidas pelos membros do Laboratório, consideramos, além
das pesquisas voltadas para laboratórios de ensino como espaços configurados, as que tratavam de
laboratório na perspectiva de atividade didática, atividades experimentais, experimentos, clubes de
ciências, feiras de ciências, jogos, oficinas, grupos de trabalhos, desenvolvimento e construção de
recursos didáticos, etc.
24 Ettiène Cordeiro Guérios
21
Catálogo que contém resumos e classificações de 572 teses e dissertações defendidas no Brasil até
1995 relacionadas ao ensino de Ciências (Ciências Naturais, Biologia, Física, Química, Geociências,
Educação Ambiental e Educação em Saúde). Corresponde ao estabelecimento do estado da arte da
pesquisa educacional brasileira na área do Ensino de Ciências, tendo sido desenvolvido pelo Centro de
Documentação em Ensino de Ciências – CEDOC - coordenado pelo Grupo FORMAR – Ciências
(Estudos e Pesquisas em Formação de Professores da Área de Ciências).
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 25
formais, mas que fluíssem como em uma conversa, para que os fatos fossem
emergindo, pela liberdade de o entrevistado abordar o que lhe era importante naquele
momento e o modo como lhe era importante.
Como entrevistadora, a posição adotada foi a de alguém que estava
conversando sobre as experiências dos professores e não a de pesquisadora
inquiridora que buscava respostas a perguntas previamente formuladas (afinal, toda
pergunta pressupõe uma resposta). Por não estarem preocupados com respostas
imediatas para perguntas previamente formuladas ou hierarquizadas em função de
critérios, parâmetros ou categorias pré-estabelecidas, a conversa fluiu, e, sem perder
de vista o objetivo e as intenções da entrevista, a reflexão concomitante acabou criando
um jogo que vinculava não linearmente presente/ passado/ presente/ futuro/ passado/
presente... estabelecido pelo movimento de cada entrevistado. Eles sabiam de antemão
que teriam acesso às fitas, que leriam, discutiriam e opinariam sobre a transcrição a ser
efetuada para garantir ao pesquisador a fidelidade à intenção de suas idéias. Roteiro
havia para garantir a abordagem de temas, mas não necessariamente para ser seguido.
Temas a serem abordados poderiam emergir independente do modo previsto. De fato
assim aconteceu, e então, potencializou-se as conversas pelo âmbito que lhe dava o
entrevistado. Nenhum tema ou fato foi abortado. Eles haviam de ter porque emergir.
Somente para consolidá-la e mostrar ao entrevistado a intencionalidade manifesta, é
que, aí sim com o roteiro em mãos, o líamos retomando os blocos temáticos.
A percepção refletida da ação docente manifestou-se como simbiose entre razão
e emoção no processo de desenvolvimento profissional dos professores. E desta
pesquisadora também. Percebemos que, quando cada entrevistado saía dele mesmo e
vagava por sua história - abandonando o controle de suas emoções, viajando por
dentro de si mesmo, mostrando um “eu” informal, despreocupado com as avaliações
sobre sua fala – então se mostrava à vontade para refletir sobre a própria caminhada,
contando “casos”, dando exemplos, contando fatos vividos que o marcam muito mais
pelos reflexos naquilo que hoje faz do que por resultados imediatos alcançados na
época em que fazia o que fazia. E isto era o que mais nos interessava. O que emergia,
não como uma resposta a uma pergunta prévia com expectativa de resposta imediata,
mas o que era importante a esse sujeito professor.
30 Ettiène Cordeiro Guérios
22
Entendamos por textualização, neste momento e no âmbito de nossa pesquisa, a elaboração de textos
que refletem histórias da vida de professores em seu percurso profissional.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 31
passagens, estas não figurariam como fatos isolados - como fragmentos - mas como
uma passagem individual impregnada dos sentidos da circunstancialidade que a
determinou. Foi então que, impregnados pelo efeito que o trabalho de Fonseca produziu
em nós, optamos por expressar em texto, e não em fragmentos, as histórias orais de
formação profissional dos professores. Pareceu-nos que apresentar os professores em
sua totalidade, permitiria ao leitor estabelecer suas próprias relações e “enxergar” cada
trajetória em função de si mesma, o que significa também deixar extrapolar o âmbito da
interpretação feita por esta pesquisadora.
A opção pela “textualização” teve portanto dois objetivos: permitir a esta
pesquisadora atingir seus objetivos e permitir também múltiplas interpretações dos
textos, de acordo com a experiência de vida e o arcabouço teórico de cada leitor.
O processo, em seu todo, da captação das informações à redação final dos
textos, passou por várias etapas e foi bastante longo, cuidadoso e criterioso.
Primeiramente foram realizadas as entrevistas que foram gravadas em fitas cassete.
Estas foram transcritas na íntegra, incluindo as marcas de emoção e as ênfases dadas
pelos entrevistados a determinadas passagens de suas vidas. Depois disso, foram
entregues a eles para que as lessem e fizessem as observações que entendessem
pertinentes. Após esta leitura, efetuou-se a redação prévia da textualização, que
consistiu na primeira tentativa de transformar em texto a história de cada em um. Esta,
por sua vez também lhes foi entregue para leitura e análise. Em encontros com cada
entrevistado, procedeu-se a discussão do texto. Os encontros para essas discussões
entre entrevistador e entrevistado aconteceram tantas vezes quantas foram necessárias
até à redação final de cada texto. Em alguns casos bastou um encontro. Em outros
foram necessários inúmeros encontros. Realizou-se, paralelamente, uma pesquisa
documental para confirmação e complementação de dados para os textos, para
aprofundamento de idéias e para complementação de fatos expressos inacabadamente,
uma vez que, pela dinâmica adotada durante as entrevistas, o entrevistado não teve
seus devaneios interrompidos em função de respostas a perguntas previamente
formuladas, e às vezes não concluía um raciocínio ou a narração de um fato ou
episódio. Depois disso, houve a revisão pelos entrevistados da versão final do texto,
após o que autorizaram o uso do mesmo pela pesquisadora.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 33
Pretendemos produzir os textos de modo que por detrás de sua leveza esteja a
densidade da vida; que a aparente leveza do texto leve o leitor a embarcar neles; que
ao ler se enxergue, se identifique e reflita. E que as suas dificuldades cotidianas se lhes
apresentem assim como se apresentaram para os professores historiados: sem ser um
drama, ou justificativa para o não fazer.
Por temos tido tais intenções, tivemos o cuidado de que nossa composição
textual não tivesse o contorno de transcrição em forma de texto de dados obtidos de
fontes orais, ou mesmo de transcrição textualizada. Ao refletirmos o professor, seus
pensamentos, suas idéias, e seu modo de ser, buscamos nas características de sua
fala marcas de sua identidade. Para demarcarmos sua trajetória profissional, buscamos
nas suas ações no contexto não linear de sua fala, os fatos encadeadores. Para
tentarmos entender os meandros de seu pensamento, potencializamos suas reflexões.
Valorizamos o subjetivo, as emoções e os sentimentos, fossem quais fosses. Estes são
exemplos de buscas efetivadas no interior das falas – o que significa no interior dos
sujeitos – o que em si só, já é pesquisar o sujeito e expressar em texto as percepções
do pesquisador.
Quanto ao tratamento dispensado à linguagem nos textos, tomou-se o cuidado
de manter um tom coloquial que proporcionasse uma maior aproximação com as vozes
expressas. Isto se deve ao fato de que as vozes pertencem a pessoas que ao se
expressarem como se expressam, dizem mais do que aquilo que as palavras
escolhidas por elas têm para dizer. Por trás do texto, portanto, corre um outro não
escrito, nem falado, que permanece nos espaços entre as linhas e entre as palavras. E,
a partir disso, devido à proximidade com a linguagem dos participantes da pesquisa,
ficou mais adequado para a pesquisadora buscar e discutir os conteúdos subjacentes
nestes espaços. Tomou-se também o cuidado na escrita, de assegurar que as formas
orais não obscurecessem a possibilidade da leitura. Pequenas alterações foram feitas
nesse sentido.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 37
Embora tenhamos realizado, no quarto e último capítulo desta tese, uma análise
e uma interpretação estruturada - momento em que procuramos responder mais
sistematicamente às questões da investigação - acreditamos que a estrutura de
organização e ordenação para a produção dos textos no terceiro capítulo representa um
nível de análise, o que nos dá uma idéia bastante viva e real do processo de
desenvolvimento profissional de cada professor. Foi necessária, ainda, uma análise que
compatibilizasse os processos vividos pelos professores. A idéia foi a de encontrar
algumas regularidades ou aspectos comuns nas experiências deles. Inicialmente,
havíamos pensado em realizar, no capítulo final, uma análise de conteúdo a partir de
categorias analíticas. Mas essa idéia foi abandonada quando percebemos que o
processo de categorização representava uma ameaça de fragmentação e redução dos
processos de desenvolvimento profissional dos professores.
Buscamos, então uma outra possibilidade que viesse mais ao encontro do que
procurávamos, que consistia em compreender o fenômeno de constituição profissional
dos professores em pensamentos, ações e saberes nos espaços de formação e prática
docentes mediados pelo Laboratório da UFPR.
Adotamos também como eixo de análise a “experiência” no sentido de Larrosa,
por considerá-la no âmbito da transformação. Ancoramos a análise em modalidades
didáticas para compreender, no movimento evolutivo dos sujeitos, que transformações
foram ocorrendo, que atitudes manifestas demonstravam tais modificações e as
reflexões efetivadas. Adentramos as filigranas de algumas ações, a fim de compreendê-
las em seu movimento, sobretudo no que se refere à formação processual no sentido
longitudinal, no percurso de desenvolvimento profissional.
Procuramos entender como os professores se desenvolveram e como as
experiências que lhes foram autênticas, recursivamente refletidas, se constituíram em
elementos de composição processual na construção de sua formação e da prática
coletiva do Laboratório.
38 Ettiène Cordeiro Guérios
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 39
23
Pierre Lucie, em homenagem póstuma recebida durante o XI Simpósio Nacional do Ensino de Física,
foi considerado catalisador de vocações e modelo de toda uma geração de físicos e professores, sendo
sua carreira apontada como um marco na história do ensino de Física no Brasil. Na década de 60 já
enfatizava o papel de laboratórios e da intuição na aprendizagem de Física, ao propor a redescoberta dos
conceitos da física através da observação e da experimentação (SIMPÓSIO NACIONAL DE ENSINO DE
FÍSICA, 11., 1995. Anais do... p. 527-534).
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 41
24
Subvencionado por organizações internacionais, com contrapartida brasileira (Banco Mundial, CNPq,
FINEP) tinha, entre outros, os objetivos de "melhorar o ensino de Ciências e Matemática; identificar,
treinar e apoiar lideranças; aperfeiçoar a formação de professores; promover a busca de soluções locais
para a melhoria do ensino e estimular a pesquisa e implementação de novas tecnologias O SPEC previa
e fomentava ações locais ou regionais, articulados em subprojetos elaborados por professores,
pesquisadores, instituições de ensino, Secretarias de Educação, Centros de Ciências, estabelecimentos
de rede de ensino, incentivando a formação de grupos interdisciplinares e a abertura de linhas de
pesquisa em ensino de Ciências e Matemática”. (GURGEL 1985, p. 25, 89). Além do SPEC, constituíram
o PADCT os subprogramas Biotecnologia (SBIO), Geociências e Tecnologia Mineral (GTM),
Instrumentação (SINST), Química e Engenharia Química (QEQ), Novos Materiais (SNM) e Ciências
Ambientais (CIAMB). Pierre Lucie foi um dos administradores do Programa SPEC.
25
O projeto para o Edital SPEC I foi elaborado pelos professores José Alberto Pedra, diretor do Setor de
Educação e Genésio Correia de Freitas Neto, responsável pelas disciplinas de Metodologia e Prática de
Ensino de Matemática e de Física dos Cursos de Licenciatura em Matemática e Física da UFPR......
42 Ettiène Cordeiro Guérios
26
A esta época, esses professores acompanhavam o movimento nacional no ensino que, influenciado
por tendências internacionais, creditava aos Clubes de Ciências e à atividade experimental a tônica no
processo de formação de professores. A professora Vilma Barra, da UFPR, com seus alunos de Prática
de Ensino, juntamente com professores do Colégio Estadual Arnaldo Busato, fundou o primeiro Clube de
Ciências em escola pública de Curitiba.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 43
prática escolar efetiva durante o curso de Licenciatura (OLIVEIRA, 1983, p. 5; 14; 89).
Ela propunha a criação de um laboratório para garantir a práxis educativa na área de
Matemática (p. 10), concebendo-o como espaço onde se criam situações e condições
para levantar problemas, elaborar hipóteses, analisar resultados e propor novas
situações ou soluções para questões detectadas. Quanto a vinculação apontada,
afirmou que um laboratório proporcionaria o aperfeiçoamento do processo de ensino-
aprendizagem, favorecendo a integração entre os setores de Ciências Exatas e de
Educação, responsáveis pelas disciplinas curriculares do Curso de Licenciatura em
Matemática. Esta concepção é evidenciada em sua afirmação de que, em um espaço
neutro e interdisciplinar, diferentes especialistas poderiam oferecer suas contribuições,
sem limite de espaço e de tempo (OLIVEIRA, 1983, p. 85-110)27.
Concomitantemente ao processo de revisão de literatura que efetuavam os
professores, observaram indícios de mudança na atitude dos alunos das Licenciaturas
frente ao conhecimento escolar. Ao investigar a gênese destas mudanças, detectaram
que elas eram provenientes de ações executadas nos clubes de ciências e de
percepções desenvolvidas durante atividades com o jogo de xadrez na escola.
Motivados por este fato, fundamentados teoricamente pela dissertação já mencionada,
e, de acordo com as normas estabelecidas pelo Sub Programa Educação para a
Ciência (SPEC II), o grupo elaborou o projeto “Laboratório de Ensino e Aprendizagem
de Matemática e Ciências Físicas e Biológicas”.28.
Assim, em 1985 este Laboratório foi instalado na Universidade Federal do
Paraná, tendo como objetivo geral não só a melhoria do processo de formação de
professores, mas também a cooperação na capacitação29 do profissional em exercício
em escolas da comunidade (Doc 1).
27
Por espaço neutro e sem limite, entenda-se aquele que não pertence a um departamento, ou a uma
unidade institucional específica, mas a um grupo de professores em que possam atuar juntos,
independente da origem institucional dos mesmos. Por limite de espaço e de tempo, entenda-se o tempo
não vinculado a disciplinas, mas ao desenvolvimento de atividades. Futuramente, neste trabalho,
estaremos operando com os termos “espaço”e “tempo” com outro significado.
28
Doravante, nominar-se-á pelo termo "Laboratório" o Laboratório de Ensino e Aprendizagem de
Matemática e Ciências Físicas e Biológicas do Departamento de Teoria e Prática de Ensino do Setor de
Educação da Universidade Federal do Paraná, e por "laboratório" espaços físicos onde se realizam
atividades práticas experimentais ou, quando for o caso, as próprias atividades didáticas.
29
Expressão característica das tendências educativas desta década, que acreditavam que o professor ao
receber verticalmente novos métodos, e sendo treinado a aplicá-los, estaria sendo capacitado a ministrar
um melhor ensino.
44 Ettiène Cordeiro Guérios
30
Consultando os projetos do SPEC aprovados na mesma época em que o Laboratório foi instalado,
pudemos perceber que traziam subjacente a idéia de que a melhoria do ensino de Ciências e Matemática
estava estreitamente associada à melhoria da formação do professor. Atendiam basicamente a dois
grandes objetivos: promover reformulação curricular e promover a capacitação docente em larga escala
no território nacional. A ênfase estava centrada na preparação para a ação docente que focasse
atividades experimentais e nos programas de treinamento. A instrumentalização para o ensino tinha nos
laboratórios o grande mote. Este pensamento é consoante às tendências que impactavam, à época, os
promotores de ações que visavam à esta melhoria. Consultamos os projetos desenvolvidos pelo Sub-
Programa Educação para a Ciência (SPEC) do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (PADCT), que diziam respeito especificamente a Laboratórios de Ensino e Aprendizagem
como instância de apoio à formação de professores. Uma análise crítica de projetos financiados e
desenvolvidos pelo programa SPEC/PADCT, com base nos relatórios institucionais, encontra-se na Tese
de Doutorado de GURGEL (1995). Em Busca da Melhoria da Qualidade de ensino de Ciências e
Matemática. Campinas: FE/UNICAMP.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 45
31
Foram membros do grupo de instalação: Genésio C. de Freitas Neto, Vilma M.M. Barra, Araci A. da
Luz, Ettiène C. Guérios, Sonia M. C. Haracemiv (Setor de Educação); Vanderlei Veiga, Izaura Kuwabara,
Ana Maria N. Oliveira (Setor de Ciências Exatas); Gastão P. da Luz (Setor de Ciências Biológicas).
32
Oficinas, no Departamento de Métodos e Técnicas da Educação e em escola da comunidade; Centro
de Didática, Metodologia e Prática de Ensino, no Departamento de Métodos e Técnicas da Educação;
Centros de Matemática, de Física e de Química, no Setor de Ciências Exatas; nos
departamentos/unidades correspondentes; centros de Ciências e de Biologia, no Setor de Ciências
Biológicas.
33
Expressão utilizada no discurso do Coordenador na cerimônia do ato de instalação do Laboratório na
UFPR.
46 Ettiène Cordeiro Guérios
membros (Doc 1). Assim estruturado, suas ações foram desenvolvidas até o
encerramento de sua primeira etapa.
O Departamento de Métodos e Técnicas da Educação da UFPR, após analisar a
trajetória até então percorrida, decidiu propor sua continuidade para o próximo Edital do
SPEC, tendo sido aprovada. Na qualidade de representante da UFPR, integrou o
Projeto de Rede de Disseminação de Inovações Curriculares entre Paraná e Santa
Catarina (1988-1991), estando vinculado às exigências do edital do PADCT/SPEC, que
visava à criação de projetos em redes para a disseminação dos resultados obtidos
pelos participantes da fase anterior, e para a elaboração de projetos de cooperação
internacional.
A coordenação da Rede coube à Universidade Federal de Santa Catarina, e os
sub-projetos foram locados em suas instituições de origem34, permanecendo o
Laboratório instalado no Departamento de Métodos e Técnicas da Educação. Sua
estrutura organizacional passou a ser composta por professores do Setor de Educação.
O objetivo nuclear dos projetos de rede propostos pelo SPEC está implícito no próprio
título: disseminar. As diretrizes políticas expressas pelo PADCT na proposição das
Redes de Disseminação visavam contribuir para a socialização do saber,
democratização da escola pública e a superação do impasse quantidade versus
qualidade dessa escola (Doc 3, p. 3). Uma das justificativas para a criação de Projetos
de Rede envolvendo várias instituições, era a de que, até então
(...) a maioria dos projetos de melhoria do ensino de ciências desenvolvidos pelo SPEC,
destinou-se a ações isoladas de professores ou pequenos grupos de professores que
atingiam a escola de forma parcial ou unilateral, isto é, apenas alguns professores, ou
uma determinada disciplina, de uma mesma escola, participavam do projeto. Não se
pode negar que muitos destes tiveram "sucesso", mas um dos problemas que parece
34
Dela fizeram parte os seguintes projetos da fase anterior do SPEC, aqui categorizados como sub
projetos:
• "Uma aplicação da informática nos componentes do Currículo de quinta séries" do Colégio
Estadual Emílio de Menezes e "Centro de Ciências do Paraná", CECIPr, da Rede Estadual de
Ensino de Paraná;
• "Parque de Ciências de Curitiba", da Rede Municipal de Ensino de Curitiba;
• "Laboratório de Ensino e Aprendizagem de Matemática e Ciências Físicas e Biológicas" da UFPR
• "Experiência de uma metodologia inovadora no ensino de matemática através da utilização de
materiais instrucionais concretos" e "Instrumentos para o ensino de Ciências" da FURB;
• "Centro de Informática e Educação", da Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina;
• "Instrumentação para o ensino de Física", da Universidade Federal de Santa Catarina.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 47
ocorrer é a não permanência dos efeitos após o término do estímulo financeiro. Desta
forma, a melhoria da prática pedagógica desejada não se fixa no interior do espaço
escolar. (Doc 3, p. 3).
35
As modalidades de ação refletiram sua metas, sendo: elaboração de alternativas metodológicas;
construção de recursos didáticos com vistas à instrumentação para a sala de aula; realização de eventos;
organização de cursos de extensão; organização de curso de especialização; assessoria técnica didático
metodológica à professores de 1o e 2o graus; realização de pesquisas; apoio às disciplinas de Didática,
Metodologia e Prática de Ensino dos cursos envolvidos; apoio à elaboração de projetos de ensino por
alunos de cursos de graduação; apoio a entidades científicas, entre outras
36
Detalhes podem ser encontrados nos relatórios do referido projeto arquivados no Setor de Educação
da UFPR. Relatórios técnicos foram encaminhados à CAPES periodicamente, durante a primeira e
segunda fase. Os referentes a terceira fase encontram-se na Pró Reitoria de Extensão e Cultura da
UFPR, além de no Laboratório.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 49
Observando estas ações com o olhar de hoje, evidencia-se a crença de que pela
atividade experimental seria possível ao professor aperfeiçoar sua ação didática. No
entanto, percebe-se que, também já naquela época, delineava-se um outro olhar para a
atividade experimental, expressa na declaração quanto ao entusiasmo e o prazer da
descoberta. A ação pedagógica se voltava para o processo em que a construção de
conceitos se anunciava mais importante do que a transmissão de conhecimentos
acabados. Postura que pretendia gerar uma educação científica, este processo foi
sendo desencadeado, vivenciado e construído com seus avanços e recuos próprios.
Iniciava-se um processo de transformação, na concepção didática do professor
42
Oriundos de cursos de Licenciatura em Ciências, professores de 8a série revelavam dificuldade,
quando não desconhecimento, dos conteúdos de Física e Química pertinentes à disciplina de Ciências.
43
Apostila desenvolvida no Laboratório e utilizada por professores da rede pública. Foi introduzida como
bibliografia nas disciplinas de Didática, Metodologia e Prática de Ensino. Na época, despertou interesse
devido à facilidade operativa com que as atividades foram apresentadas. Foi aprovada para publicação
pelo Conselho Editorial do CONCITEC (Conselho de Ciência e Tecnologia do Estado do Paraná). A
apostila está cadastrada no Laboratório e na Biblioteca do Setor de Educação da UFPR.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 53
si. Estas reflexões os levaram a discutir em anos futuros o papel das habilidades
técnicas no ensino sob outros parâmetros, reposicionado-as frente as concepções
teóricas então cristalizadas. A releitura feita acerca dos princípios teóricos do
construtivismo e dos fundamentos da técnica da redescoberta é uma indicação disso.
Tal releitura levou ao aprofundamento das considerações sobre “experiência” e
“redescoberta” que os participantes do espaço do Laboratório efetuavam no seu
processo inevitável de intercâmbio em torno de práticas experienciadas.
Olhando longitudinalmente, percebe-se que as ações, como um todo, foram
tendo, com o tempo, novos contornos quanto às bases que as sustentam. Projetos
passaram a ser concebidos como catalizadores de ações, tais como os realizados nos
clubes de ciências, nas propostas para a prática do ensino, nas criações de inovações
metodológicas, entre outras, conforme poderão ser acompanhadas nas histórias
textualizadas adiante.
Uma modalidade de ação implementada que refletiu no futuro do grupo foi a
organização de cursos estruturados em três fases: o docente do curso o organizava,
juntamente com membros discentes e com a equipe do Laboratório e o ministrava; após
o término, organizava-se uma "mesa redonda" com os participantes, a equipe do
Laboratório e comunidade para avaliar e sugerir novas ações. A intenção foi a de criar
uma sistemática que garantisse continuidade e avanço nas atividades, evitando ações
isoladas (Doc 2). O princípio foi o de que uma ação gerasse outra, criando-se um elo
contínuo entre elas. Exemplo foi o curso "História da Metodologia do Ensino da
Matemática"44, que originou dez novas atividades em diferentes áreas, tais como os
cursos "Estatística para Professores" e "A física de Aristóteles a Newton". Embora à
primeira vista não se perceba relação direta entre estes temas e aquele que foi o
gerador dos mesmos, foram exatamente as discussões coletivas que despertaram o
interesse por eles.
A dinâmica de concepção de ações e projetos “com os” participantes e não “para
os participantes”, teve influência na geração de propostas metodológicas que foram
44
Ministrada pelo Professor Luis Jean Lauand (USP), tratou dos seguintes temas: o pensamento de
Popper e a universidade atual; o ensino de matemática na idade média: resolução de problemas sem o
auxílio das variáveis; a função do teatro no ensino da matemática, a relação música e matemática; a
transposição do pensamento e da matemática grega pelo Império Romano dominado pelos bárbaros.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 55
dinamizadas na Prática de Ensino. Uma dessas propostas foi o projeto para o ensino
denominado "O Sistema Solar". Foi elaborada por professores do Laboratório e da
comunidade, juntamente com alunos dos cursos de Física, Matemática, Biologia e
Pedagogia. Considerada à época como modelo de atividade desenvolvida pelo
Laboratório, possibilitou que houvesse
A partir dessa experiência, o grupo inferiu que recursos utilizados para atividades
experimentais não necessitam de sofisticação, bastando que permitam a "visualização"
e a execução da "experimentação". Esta inferência, de certo modo, chocou-se com a
crença cultural de então de que para atividades práticas e experimentais haveria
necessidade de laboratórios bem equipados. Composto de quatro maquetes que
mostravam o funcionamento do sistema solar, atendendo ao princípio da diversificação
- para que o aluno não vinculasse conceitos a materiais didáticos, mas sim, a
fenômenos (Doc 2, p. 18-19) - licenciandos e professores formadores e da comunidade
encontraram dificuldades e muitas vezes foram surpreendidos por situações inusitadas,
tal como a apresentada em uma passagem singular que merece registro. A simplicidade
das maquetes foi tanta que "permitiu a alunos de 4a série do ensino fundamental
sugerirem modificação pois no modelo apresentado a lua provocaria um(a) eclipse a
cada ciclo!” (Doc 2, p. 19). Em aulas subseqüentes, outro destaque foi o de que
"o conceito em voga nas escolas é que no inverno a terra está mais afastada do sol e
no verão mais próxima. Pois bem, não se apercebendo do erro lógico embutido numa
afirmação desta natureza, tanto os professores quanto os acadêmicos dos cursos de
licenciatura não o identificaram no material que construíram, sendo novamente
surpreendidos por alunos" (p. 19).
56 Ettiène Cordeiro Guérios
45
Exemplo: os professores pertencentes ao Laboratório e os pertencentes ao Projeto Educação de
Adultos, cuja experiência está narrada adiante.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 57
46
MACHADO, E. M.; BARRA,V. M. (orgs) O Ensino nas séries Iniciais do 1o grau: reflexões e propostas,
Scientia et Labor. Curitiba: Editora da UFPR, 1989. Trata de temas referentes à reprovação em Ciências
nas séries iniciais, à prática avaliativa, à literatura infantil, à identificação de problemas que interferem e
determinam o processo de conceituação matemática, à sugestão metodológica para o seu ensino,
concluindo com o artigo de caráter mais genérico "Professor: para repensar a prática e a formação”.
58 Ettiène Cordeiro Guérios
47
Vilma e Sonia (ambas atuantes no Setor de Educação da UFPR, sendo a primeira com disciplinas
pedagógicas na área de Ciências e Biologia e a segunda nas de Química e Matemática), em grupo com
Alda Maria Pawlowsky e Stela Maris Romanowsky (ambas atuantes no Setor de Ciências Exatas da
UFPR com disciplinas específicas em Química) desenvolveram a pesquisa “Caracterização do Ensino de
Ciências nas Séries Iniciais do Primeiro Grau em Escolas de Curitiba”.
48
Projeto coordenado pela Professora Elinor Ribeiro, do Departamento de Métodos e Técnicas da
Educação da UFPR. Dados sobre metodologia, ações, detalhamento sobre o procedimento
interdisciplinar de trabalho da equipe e demais informações são encontrados em seus relatórios
arquivados na UFPR.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 59
temas escolhidos pelos próprios alunos Exemplos de temas foram "o homem e o
espaço" e "saúde" (Doc 5, p. 8). Os conteúdos abordados foram operações aritméticas
fundamentais, frações e porcentagem.
Os documentos dão conta de que
(...) do ponto de vista da formação do professor, foi a experiência que criou no aluno
mestre o sentido de e para a pesquisa de recursos que permitam a elaboração de
propostas metodológicas adequadas a realidades específicas (...) a partir do
pressuposto de que só ocorre aprendizagem quando há uma efetiva participação dos
alunos, o que tradicionalmente não ocorre em nossas escolas, talvez pelo fato de não
se levar em consideração o saber das crianças e se valorizar excessivamente o saber
dos professores, procurou-se uma alternativa metodológica que conseguisse provocar
mudanças nas atitudes da população no que se refere a saúde e higiene. Assim, a
preocupação não foi a de passar conteúdo numa atitude paternalista. Em primeiro lugar,
buscou-se o conhecimento da realidade, isto é, das verdadeiras condições de vida da
população, do saber por ela apresentado e de suas necessidades e interesses.
Escolheu-se o desenho e as conversas com as crianças (...) o fato de a atividade se dar
49
Este fato já havia aparecido durante o curso de especialização anteriormente citado que por sua vez já
tivera raízes na época da estruturação dos Centros como possibilitadores de ações interdisciplinares, o
que, além de não ocorrer, permitiu a percepção de que a interdisciplinaridade (1985) se daria pela
estruturação conjunta das ações.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 61
Esta ação foi singular, por ter influenciado o modo de ver e pensar sobre a
prática de ensino de Matemática, provocando reflexões sobre as disciplinas de Didática
e Metodologia do Ensino. Estas reflexões não estariam restritas a seleção e
organização de seu conteúdo programático, mas à possibilidade de efetiva preparação
para a ação docente. Perguntava-se: como incorporar na formação do professor as
questões vivenciadas nestes projetos? Como incorporar a vertente educacional na
preparação profissional? Como problematizar questões educativas em Matemática?
Que relações são possíveis entre cotidiano, realidade e vivência significativa na
estruturação didática matemática? Como sensibilizar o professor para, depois de
formado, ter uma postura voltada à incorporação significativa do cotidiano na
metodologia do ensino?
Durante o período do Projeto de Rede, o Laboratório esteve presente nas
discussões sobre a incorporação da Educação Ambiental ao currículo da escola
fundamental. À época, não havia clareza entre os professores de Ciências, tampouco
entre os técnicos da Secretaria de Educação, se estaria a Educação Ambiental incluída
nas disciplinas curriculares, ou se mereceria status de disciplina própria. Para contribuir
de modo "consciente" nesta discussão e para perceber como os professores a
entendiam, desenvolveu-se a pesquisa denominada “Diagnóstico da Educação
Ambiental em Escolas de Curitiba”.
Conforme se lê no Documento 5, os resultados desta pesquisa mostraram
disparidade em relação ao conceito de Educação Ambiental, aos tipos de atividades
rotuladas como sendo de Educação Ambiental, e o despreparo dos professores em
relação a questões que envolvem o tema (Doc 5, p. 31). Várias questões foram
problematizadas: se não há posicionamento conceitual sobre o tema, como seria
possível definir pela sua inclusão ou não como disciplina? Como estaria a questão
chegando ao professor na sala de aula? Que atividades ele elaboraria? Seria um tema
62 Ettiène Cordeiro Guérios
50
Saliente-se ainda sobre o conceito de interdisciplinaridade que ele estava sendo discutido entre os
membros do Laboratório e demais órgãos competentes em um momento em que os PCN não haviam
ainda sido elaborados.
51
Organizado em conjunto com a SUREHMA, com a Associação dos Geógrafos Brasileiros e com a
Associação dos Biólogos do Paraná. Ministraram o curso profissionais de órgãos específicos,
especialistas de Universidades que tratavam do tema e técnicos da Secretaria de Estado da Educação do
Paraná: Instituto de Terras, Cartografia e Florestas (ITCF), Superintendência de Recursos Hídricos e
Minerais (SUREHMA), (COLTEC), Secretaria Estadual de Abastecimento [SEAB], UFPR, UNESP, UEM.
52
Entre os temas abordados nesse curso pode-se citar o que seria uma proposta pedagógica que
incluísse a Educação Ambiental, a Legislação (pois a interpretação dos aspectos legais pertence ao
cabedal necessário que permite ao professor um posicionamento definido para elaborar proposta
pedagógica lógica e consistente), o que é participação comunitária, saúde [como força motriz para o
desenvolvimento da nação (...). o qual emerge do processo de formação do cidadão, fato este vinculado
à formação escolar], efeitos sobre o cidadão de comunidade rural na ausência de um programa ambiental
dentre outros temas que constam do relatório específico
53
Fizeram parte deste grupo profissionais do Instituto de Terras, Cartografia e Floresta (ITCF) e da
Secretaria do Meio Ambiente do Paraná, professores de Escolas da Rede Municipal de Curitiba e
membros do Laboratório.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 63
54
Jacques Marcovith, em artigo denominado “Modernidade e Ambiente’, afirma que no Brasil esta
militância ambientalista uniu-se a comunidades científicas, mas encontrou resistências características do
regime vigente na época, que “limitava a cidadania até quase sua anulação". Este fato foi constrangedor,
já que em 1960 os hippies norte americanos, ao lado das atitudes ingênuas típicas da especificidade
desta comunidade, "exigia, com grande lucidez um planeta limpo e um sistema educacional que
ensinasse aos homens o que fazer para preservá-lo" (MARCOVITH, Folha SP, 1999, Tendências e
Debates).
64 Ettiène Cordeiro Guérios
linha de ação que viria a denominar-se Matemática Ambiental, e que, em atividade até
os dias atuais, congregaria em sua trajetória profissionais de diversas áreas55 e ainda,
que estaria concretizando princípios educativos postulados por D’Ambrosio. Fato
curioso foi que nos anos de 1995 e 1996, alunos do ensino fundamental e médio que
participaram das ações do projeto de Matemática Ambiental, expressaram
curiosamente seu conceito adquirido sobre a Matemática, alguns rejeitando e
abandonando o projeto, outros manifestando surpresa: “eu vim participar de um projeto
de matemática , e não de outra matéria”, “eu não sabia que história usa matemática”,
ou, “pensava que só nos números dos anos e dos aniversários de morte das pessoas
existia matemática” (Doc. 6). Outros, ao contrário, tiveram envolvimento surpreendente,
tanto em relação à aprendizagem como em relação a princípio educativos que
desenvolveram com as atividades relativas às questões ambientais, chegando a
desenvolver em suas escolas e comunidades atividades de conscientização para a
cidadania pela via da Matemática.
Quanto aos professores, pode-se perceber como dificilmente crêem, a priori, em
inovações de ensino que alterem seu cotidiano. Manifestações como “é muito
interessante, mas tenho que cumprir com meu programa”, “é bonito mas não dá para
fazer na sala de aula”, “isto só dá para fazer lá na Universidade”, “os pais querem
Matemática mesmo, senão vêm reclamar na escola” ilustram como a resistência ao
inovador é fruto de uma formação profissional que dificulta perceber a dinâmica do
processo educativo, e em particular, a possível flexibilidade no tratamento dos
conteúdos programáticos em sala de aula.
O compromisso com a dimensão educativa pela via da educação ambiental foi
repercutindo na geração de novas ações nesta mesma época quanto em outras em
anos futuros quando, por exemplo, membros da área de Matemática se integraram ao
trabalho de Doutorado em Educação Ambiental da Professora Vilma Barra,
55
Participaram em suas diferentes etapas: alunos dos cursos de Licenciatura em Matemática e em
Biologia, professores de história e geografia das séries inicias, historiadores e geógrafos, professores da
UFPR dos cursos de Biologia, Geografia, Historia, Geologia, do Núcleo de Estudos do Mar, de
profissionais de órgãos afins, crianças de quinta a oitava séries do ensino fundamental, e como consultor,
professor João Frederico Meyer da UNICAMP. Ressalto que Eloísa Ramos Pinotti, uma das alunas do
grupo proponente, permaneceu vinculada ao Laboratório após formada. Por ter atuado como
coordenadora discente dos grupos atuantes na linha de ação, permanece vinculada sendo responsável
pelos devidos encaminhamentos para a continuidade das ações.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 65
56
Denominada “Exploração de Necessidades Sócio Educativas e Análise de Modelos de Programas
Formativos de Educação Ambiental com Caráter Experimental”, foi defendida na Universidade de
Santiago de Compostela, em 2000. A compreensão da educação ambiental como processo educativo se
constituiu no motivo deflagrador de sua pesquisa. Teve como objetivo a implementação e testagem de
um programa de intervenção sócio-educativo de educação em valores ambientais, pretendendo
desenvolver nos alunos conhecimentos, valores, atitudes e habilidades geradoras de comportamentos
que devem estar embasados em valores ambientalmente adequados, isto é, favoráveis a melhoria do
ambiente via resolução de problemas ambientais, tomada de decisão e ação, visando o desenvolvimento
sustentável.
66 Ettiène Cordeiro Guérios
Uma estratégia para chegar a isso foi organizar grupos integrados de trabalho
em torno de temas específicos. Para sua operacionalização, instituiu-se no Laboratório
linhas temáticas de ação, das quais fizeram parte professores da Universidade e alunos
bolsistas e/ou voluntários dos cursos de Licenciatura57, aos quais incorporam-se
anualmente alunos das disciplinas de Prática de Ensino Matemática58. Dependendo da
especificidade do trabalho, professores de escola pública do ensino fundamental
participam do processo. Entre as linhas temáticas destacam-se no momento a da
"Modelagem Matemática” (iniciada em 1993 e que com os anos de construção e
pesquisa, teorizou um método próprio focando o ensino fundamental); “Matemática
Ambiental” (início em 1993), “Jogos Matemáticos” (início em 1995) e “Matemática
Escolar Existente nas Profissões” (início em 1995). A sistemática de organização e
estruturação das linhas temáticas é a seguinte: configurada a linha temática, tem-se um
grupo central permanente que conduz o processo de composição metodológica ao qual,
no decorrer dos anos, vão-se incorporando professores de escolas, alunos do ensino
fundamental e médio, e alunos da disciplina de Prática de Ensino, conforme vai-se
construindo, aplicando experimentalmente, analisando, discutindo e desenvolvendo os
projetos. Em relação contínua e simultânea de pesquisa, teorização e prática, as
propostas das linhas temáticas foram se constituindo, permanecendo até os dias atuais.
57
Havia sido institucionalizado na UFPR o Programa Bolsa de Extensão Universitária, pelo qual um
número pré-determinado de alunos de cursos de Licenciatura vinculava-se oficialmente a projetos. Por
isso havia alunos que participavam voluntariamente, sem direito a bolsa ou certificado.
58
A dinâmica da disciplina Prática de Ensino de Matemática era a seguinte: alunos que não tinham
experiência de sala de aula desenvolviam as etapas usuais desta disciplina, quais sejam, observação,
monitoria e regência. Os alunos que já atuavam em sala de aula faziam um trabalho de reflexão sobre
sua prática desvinculada do conhecimento/teorização metodológica e desenvolviam um projeto de ensino
que fosse necessária e obrigatoriamente diferenciada do que já executavam cotidianamente. A idéia era
a de que, além de proporcionar-lhes a oportunidade de criar e testar uma prática diferenciada em relação
ao que faziam, pudessem, pelo contraste, comparar, analisar, refletir e compor uma nova prática pela
experiência fundamentada teoricamente.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 67
Desde sua instalação, em 1985, o Laboratório possui uma oficina equipada para
confecção de recursos didáticos, a qual é utilizada por professores de universidades, de
escolas da comunidade e por alunos de todos os níveis de ensino, da Pós Graduação
ao Fundamental59, tanto para apoio individual ao professor como para subsidiar os
projetos. À época em que foi montada, acreditava-se que a utilização adequada de
recursos didáticos garantiria a melhoria do ensino e que professores e alunos dos
cursos de licenciatura poderiam desenvolver habilidades para construir, eles próprios,
seu acervo didático.
A oficina foi disponibilizada para os professores construírem os recursos
didáticos de que necessitassem. Eles construíam um protótipo, tendo “oficialmente” a
liberdade de acertar e errar, até que conseguissem o que desejavam. Levavam o
recurso didático construído consigo, com o compromisso de, após o uso, relatar o
ocorrido aos membros do Laboratório. Não ficávamos com réplicas, para demarcar a
posição de que cada circunstância de trabalho é particular e única, e assim deve ser
considerada. No entender dos professores formadores, esta atitude provocava, a um só
tempo, efeito psicológico e didático. Psicologicamente, assegurava ao professor a
individualidade do seu processo, dando-lhe resguardo quanto a eventuais passos
errados enquanto construía seus recursos. Didaticamente, possibilitava-lhe perceber
seu potencial em criar. Por não haver um modelo a ser copiado, só lhe cabia criar, em
função de suas necessidades. Mesmo que professores diversos desejassem um
recurso didático para o tratamento de um mesmo conteúdo, ele tinha que fazer o SEU
processo. Tentar, pensar, acertar e errar era o que queríamos que experimentasse. O
ato operativo em si de construir um recurso não era o que interessava.
59
À guisa de esclarecimento, é preciso diferenciar atividades desenvolvidas no espaço físico da oficina
no Laboratório, do procedimento didático denominado "Oficina". O segundo se consolidou a partir de
reflexões que o grupo do Laboratório veio efetivando sobre os resultados que iam sendo obtidos pelos
professores.
68 Ettiène Cordeiro Guérios
Alguns professores traziam seus relatos, e além disso, muitas vezes, retornavam
seguidamente para construir novos recursos. Na época, entendemos que o retorno de
professores da comunidade à oficina na UFPR significava o sucesso da sistemática
criada. Com o tempo, ao analisarmos os relatos de resultados que nos faziam,
percebemos que os recursos que eles construíam produziam um efeito paliativo, porque
voltavam à oficina com as mesmas "necessidades", para conteúdos diferentes. Se
questionados sobre efeitos do uso do seu recurso, respondiam que as aulas ficavam
mais interessantes, que os alunos ficavam mais atentos e que aprendiam Matemática
com mais facilidade. No entanto, ao solicitarmos exemplos concretos em que isso
ocorria, não conseguiam evidenciar situações que comprovassem melhoria efetiva na
aprendizagem conceitual de seus alunos.
Face a isso, passamos a refletir sobre o que na verdade acontecia, pois nos
pareceu haver uma distância, que não se podia desprezar, entre os ditames do material
concreto, da instrumentação, do uso de recursos de todas as ordens e a melhoria
efetiva do ensino.
A sistemática para o uso da oficina foi então modificada.
Ao chegarem, questionava-se sobre qual era o problema que encontravam, que
dificuldade específica queriam sanar, e baseados em que argumentos eles acreditavam
que determinado recurso iria resolver seu problema. Após estes questionamentos é que
construíam protótipos do recurso desejado e discutiam sua intenção de uso, para
somente então construírem de fato o material didático desejado.
Esta sistemática, ao contrário do esperado, afugentou os professores, porque,
conforme entendemos, a expectativa deles era a de buscar soluções e não a de discutir
problemas. Interpretavam a oficina do Laboratório como um verdadeiro pronto-socorro
para suas dificuldades emergenciais e como lugar onde buscar meios para tornar mais
agradáveis suas aulas.
Um fato despertou nossa atenção: quando discorriam sobre qual era sua
dificuldade no ensino, tendiam a iniciar uma discussão sobre a conjuntura nacional, a
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 69
60
Conforme postulava Oliveira (1983) em sua dissertação de mestrado, já aqui comentada.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 71
(...) algo que compromete nossa capacidade de escuta, algo a que temos que prestar
atenção. É como se os livros, assim como as pessoas, os objetos, as obras de arte, a
natureza, ou os acontecimentos que sucedem ao nosso redor quisessem nos dizer
alguma coisa. E a formação implica necessariamente, a nossa capacidade de escutar
(ou de ler) isso que as coisas têm a nos dizer. Uma pessoa que não é capaz de se por à
escuta cancelou seu potencial de formação e de transformação.
E o que é a formação, senão uma experiência que leva o sujeito a seu interior?
Pôr-se à escuta enquanto lê o que esses professores têm a dizer sobre sua relação
com o ensino e com o Laboratório em sua história de formação, e ir compondo algo a
mais em seu próprio interior. Essa é a pesquisa. Essa é a viagem! Esse é o desafio!
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 73
Período de
Fases Membros Perfil no início da participação Perfil atual
atuação
Professora formadora na UFPR Profa formadora UFPR nos cursos
nos Cursos de Biologia, Ciências de Biologia e Pedagogia
Vilma e Enfermagem
Doutora
Mestre em Educação
1988 Vilma
a Sonia 88 a 91 Idem Idem
1990 Ettiène
Vilma 91 a 93
96 a 01
Sonia 91 a 93 Idem Idem
Ettiène 91 a 99
Professora Ensino Fundamental Professora Ensino Fundamental
Vera 91 a 99
Licenciatura em Matemática Especialista
61
Programa de Apoio e Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PADCT). Para detalhamento sobre a
gênese e a estruturação do Laboratório, ver o Capítulo 2 desta tese.
62
Coordenador do Laboratório de Ensino e Aprendizagem de Matemática e Ciências Físicas e Biológicas
da UFPR, durante o período em que este esteve vinculado ao SPEC/PADCT/CAPES no período de
1985-1988. À época, era professor de Metodologia e de Prática de Ensino de Matemática e de Física nos
cursos de Licenciatura em Matemática e Física.
63
À época era Diretor do Setor de Educação, responsável pelo conjunto das disciplinas pedagógicas dos
cursos de Licenciatura da UFPR.
64
Centro Politécnico é o campus onde estão localizados os Setores de Ciências Exatas e de Ciências
Biológicas, cujos departamentos são responsáveis pelas disciplinas de conteúdo específico dos cursos
de Licenciatura destas áreas. O Setor de Educação é o responsável pela formação pedagógica, estando
instalado no complexo da Reitoria.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 75
físico com equipamentos, com materiais, coisas que nós não tínhamos. Da nossa
história faz parte até a briga pelo espaço físico para a sua instalação. É bem verdade
que ganhamos quase meio corredor, o que era bastante espaço, mas as nossas
instalações eram precárias. Nós não tínhamos uma torneira, um bico de Bunsen no
espaço específico da Biologia. Era um absurdo, mas eu trazia um fogareiro a gás de
casa, e se quisesse lavar algo, ou pegar água, tínhamos que ir ao banheiro do nosso
departamento.
O Laboratório foi uma oportunidade para adquirirmos materiais para que
pudéssemos, então, congregar profissionais de diferentes áreas. Nessa época, existiam
as “áreas de estudo” que eram as divisões curriculares: de primeira a quarta séries e de
quinta a oitava séries. As “disciplinas” existiam só no Segundo Grau. Então, Ciências
Físicas e Biológicas e Matemática constituíam uma só área de estudo, que era a área
de Estudo de Ciências.
Nessa época a diretriz do Ministério de Educação era de que o professor de
Matemática e o professor de Ciências Físicas e Biológicas trabalhassem
integradamente. Não é a mesma idéia dos Parâmetros Curriculares de agora. Era no
sentido de que desaparecessem as disciplinas Ciências e Matemática. Isso nunca
ocorreu de fato, pelo menos em Curitiba. Mas houve fatos absurdos: eu, quando entrei
na Universidade, em 1973, tive que trabalhar com Prática de Ensino de Matemática,
sem conhecer nada de Matemática. Por outro lado, nas escolas da comunidade, muitos
professores de Matemática passaram a dar aulas de Ciências e muitos professores de
Ciências tiveram que dar aulas de Matemática, porque a área era ”Estudos de
Ciências”. E foi um caos. Então, um dos objetivos do Laboratório foi trazer os
professores das áreas específicas do Centro Politécnico para trabalharmos juntos. Nós
valorizaríamos o Setor de Educação, evidentemente, mas juntos iríamos procurar meios
de tentar atender o que a lei pedia, que era essa integração entre Matemática e
Ciências Físicas e Biológicas em uma só área de estudos.
A partir daí nós começamos a trabalhar juntos. Fizemos trabalhos muito bons
com os nossos alunos de Licenciatura da Física, da Química, da Biologia, da
Matemática. Por exemplo, nós tivemos participação no Seminário de Extensão
76 Ettiène Cordeiro Guérios
Universitária da Região Sul65 com um projeto que era de Biologia, mas com alunos de
Química e de Física atuando juntos, um auxiliando o outro, porque eram aulas de
Ciências. Fizemos vários projetos. Em outros, havia necessidade de lidar com questões
da Matemática, da Física e da Química, e o aluno de Biologia não tinha a preparação
necessária por não ser formado para isso. Então, esses grupos interdisciplinares que
constituíam a área de estudos atuavam juntos, produziam materiais de ensino, faziam
pesquisas... Produzimos muito material e desenvolvemos muitos projetos... Fizemos um
material, a partir de outro desenvolvido pela Fundação Brasileira para o Ensino de
Ciências – conhecida por FUNBEC,- em que nós acrescentamos atividades que
elaborávamos, mas em função das necessidades das escolas. A Sonia Haracemiv
orientou a elaboração das atividades na parte de Química, a Ettiène Guérios na de
Física, eu na de Biologia... Construímos módulos instrucionais, utilizando como recurso
para o ensino de Ciências o estudo dirigido com utilização de modelos. O aluno de
Biologia, sozinho, não tinha condições de fazer isso. Essa integração entre a Física, a
Química, a Matemática e a Biologia foi que permitiu fazer este trabalho. No começo, o
objetivo justamente era este. Nós constituímos, no Setor de Educação, um posto
avançado em que havia essa integração. Era uma coisa inédita na Universidade, inédita
mesmo, em que professores de áreas distintas, em todos os sentidos, atuavam juntos
para produzir material didático e preparar melhor os alunos da licenciatura para
trabalhar na forma de áreas de estudos, atendendo ao que a lei do momento – da qual
eu já nem lembro o número – preconizava: que de quinta a oitava séries o ensino fosse
por “áreas de estudo”. Então este foi um elemento motivador que estimulou esse
trabalho integrado e funcionou. Funcionou muito bem.
O Laboratório foi também muito importante, na época, porque havia uma disputa
institucional sobre onde estes professores seriam formados... Caberia ao Setor de
Educação dar essa nova orientação? Caberia aos outros setores? Quem saía professor
de Química, Física, Biologia e Matemática? Quem ficaria responsável por esta
orientação pedagógica? E nós conseguimos o Laboratório. Os professores Genésio e
Pedra tiveram um papel importante nisso, e o Setor de Educação passou a ter essa
65
Seminários anuais, promovidos pelas Universidades Federais da Região Sul que desenvolvem
programas de Extensão Universitária. Durante vários anos a UFPR financiou a participação de docentes
e discentes vinculados a seus projetos e programas de extensão universitária.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 77
responsabilidade66. Isso para nós foi ótimo, porque foi uma forma de colocar o Setor no
circuito, trazendo os outros professores de lá para cá, em uma integração que pela
primeira vez ocorreu.
Então começaram a surgir outras atividades, que eram importantes, e que foram
decorrentes das próprias alterações da lei, que depois já não organizava mais o
currículo por áreas de estudos. Mas o interessante é que nós conseguimos fazer essa
integração com as Ciências Físicas e Biológicas. Na verdade, no início, nós não
conseguimos integrar a Matemática com as Ciências no sentido que o MEC queria.
Nem aqui no Laboratório nós conseguimos fazer, na época, um trabalho bem integrado.
Nós conseguimos fazer, sim, com Química e Física, até pela proximidade dos
conteúdos. Com a Matemática conseguimos depois, bem depois. No começo nós
conseguimos a integração maior com as outras áreas.
Nessa época, o nosso trabalho integrado se refletia muito nos “clubes de
Ciências” que tínhamos em vários colégios . Era a época do "boom" dos “clubes de
Ciências”. Nós tínhamos o respaldo dos professores da Física, da Química e da
Matemática, no desenvolvimento das atividades destes clubes, as quais, muitas vezes,
eram organizadas pelos alunos da Prática de Ensino. Nem todas as escolas
participavam. O Colégio Estadual Arnaldo Busato foi um colégio de “ponta”, neste
sentido, porque o professor Hélio Marques participativa do Laboratório, a esposa do
Hélio também era professora, e eles tinham ligação com o CETEPAR – que é o Centro
de Treinamento de Professores do Paraná67. Os professores Gastão da Luz ,
assumiram o treinamento de professores de Ciências do CETEPAR. Então: o
CETEPAR tinha interesse nos Clubes de Ciências, nós tínhamos interesse nos Clubes
de Ciências e o Hélio estava na confluência disso tudo. Pelo que eu me lembro,
oficialmente, o “Arnaldo Busato” foi o primeiro colégio no Estado do Paraná a criar o
Clube de Ciências, e isto, junto com o Laboratório. Nós tínhamos Clubes de Ciência no
Instituto de Educação, no Colégio Militar... mas o do “Arnaldo Busato” é que recebia o
66
No Capítulo 2 encontra-se narrada a gênese e história do Laboratório, em que tais professores são
citados.
67
CETEPAR: Centro de treinamento dos professores da Rede Estadual de Ensino do Estado do Paraná,
órgão da Secretaria de Estado da Educação do Paraná. que promovia cursos e atividades afins.
78 Ettiène Cordeiro Guérios
68
Conforme consta no Capítulo 2, o Laboratório era organizado em Centros: de Matemática, de Física,
de Didática, Metodologia e Prática de Ensino, entre outros.
69
Professora do Departamento de Teoria e Prática de Ensino, atua com a formação pedagógica em
cursos de Licenciatura da área de Ciências Biológicas
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 79
Naquela época eram raros os alunos que participavam de projetos de pesquisa junto
com os professores. Tanto é fato, que em nossos cursos nem havia a disciplina
“Iniciação ao Trabalho Científico”. Passou a ter, bem recentemente, no curso de
Biologia. Então, os alunos também nunca tinham vivenciado um projeto de investigação
científica no seu todo, estabelecendo hipóteses, conclusões, e etc. Eles tinham aulas
práticas, o que é bem diferente. Isso na Universidade! A aula prática é bem diferente de
vivenciar, criar, iniciar um processo de criação. A aula prática, no curso de Biologia, que
conheço mais, é assim: a prática é dada para se mostrar para o aluno que o professor
não mentiu na aula teórica. Esta era a experiência que os alunos tinham de ensino e
aprendizagem. Nos clubes de Ciências era necessário romper com este modelo: tinham
que primeiro conversar com os alunos, para que, do interesse deles, surgisse o tema
que gostariam de estudar e desenvolver. Por isso os temas eram variadíssimos. Uma
vez eu levei seis alunos de Prática de Ensino, com seis projetos diferentes
desenvolvidos em clubes de Ciências para serem apresentados no encontro da USP,
“Perspectivas no ensino de Biologia”. O nosso aluno de Biologia, de Física ou de
Química, tinha que primeiro aprender a ouvir o aluno da escola, porque assim ele ficaria
sabendo o que o aluno gostaria de estudar, quais os seus interesses, quais as
dúvidas... para depois disso selecionar os possíveis temas, transformá-los em um
projeto de investigação científica. Para o nosso aluno isso era um salto qualitativo no
sentido de uma melhoria da estratégia, da metodologia normalmente utilizada em sala
de aula: ele aprendeu e ele ensinou.
Tínhamos clubes em vários colégios. Nós tivemos também um Clube de Ciências
que funcionava na Universidade, nas dependências do nosso Laboratório. Os alunos
das escolas vinham até aqui. Lembro-me que uma vez uma cobra fugiu do terrário... foi
um horror!
Os clubes de Ciências funcionavam muitíssimo bem e eram muito interessantes.
Depois, não sei precisar exatamente em que momento, eles foram caindo de moda, os
colégios foram deixando para trás. Foi uma época em que o Ministério da Educação
equipou todos os colégios com materiais de laboratórios, os famosos kits da FUNBEC.
Eles, em si, eram fantásticos. Eram para aulas práticas, mas aulas práticas de
investigação mesmo, de pesquisa. Os kits ofereciam várias sugestões de trabalho...
80 Ettiène Cordeiro Guérios
mas não deu certo... os professores não conseguiam usá-los, nem mesmo com o
manual que os acompanhava. O CETEPAR fez alguns cursos de treinamento para os
professores com o próprio pessoal da FUNBEC...e nem assim eles conseguiam usar.
Mas, além disso, havia o excesso de alunos por turma, a inadequação de espaço e
horário... Geralmente, as escolas que não tinham laboratório pegavam uma sala que
não estivesse em uso, no fundo do colégio – no Arnaldo Busato era no fundo do colégio
- e colocavam aquele material lá. Além disso, eu creio que, como esse material era
muito caro, criou-se nos diretores de colégios uma mentalidade de que eles deveriam
ser cuidados, preservados. Então eles eram fechados “a sete chaves”. Por causa disto,
não se deixava usar para não estragar, e estragou por não ter sido usado. No Colégio
Militar, ao contrário, eles eram usados, e bem usados, por muitos professores. E era
fantástico: já vinha tudo montadinho, arrumadinho. Mas, nas escolas da Rede Pública
em que atuávamos, as coisas foram mudando, o material foi virando sucata, as salas de
laboratório precisaram ser usadas como salas de aula e eu, especificamente na minha
vida de professora de Prática de Ensino, comecei a verificar que, apesar do clube de
Ciências ser muito interessante, não era suficiente - em termos de treinamento do
professor - porque era muito diferente do que normalmente se faz em sala de aula. Em
uma sala de aula “normal”, o aluno não tinha possibilidade de desenvolver as atividades
que fazia no clube de Ciências. Infelizmente. O clube de Ciências era visto como uma
atividade extra-classe. O nosso aluno que ia para o clube de Ciências, depois tinha
dificuldade de adaptação em sala de aula. E nós não conseguíamos dar o salto
qualitativo, no sentido de fazer o clube de Ciências passar a ser a “atividade-mor” do
colégio na área de Ciências. Ao mesmo tempo, as diretrizes mudaram, a área de
estudos deixou de existir, as direções dos colégios mudaram, os professores que
estavam mais ligados ao Laboratório começaram a sair para fazer sua qualificação,
deixaram este tipo de trabalho... enfim, os clubes de Ciências foram se acabando.
Agora, como professora formadora, os clubes de Ciências representaram muito
na minha vida profissional. Eu aprendi. Foi ótimo, porque nós tivemos que aprender a
trabalhar de uma forma diferente. Tivemos, por exemplo, que aprender a trabalhar em
grupo para trabalhar de forma integrada; em grupo, tentamos fazer um trabalho de
Física que não fosse exclusivamente a utilização de fórmulas matemáticas, como
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 81
As propostas de trabalho com os alunos dos colégios são voltadas a tentar resolver os
problemas metodológicos que eles encontraram na escola.
No mínimo, eles tentam alterar a “aula prática”, pois as organizam orientadas por
aquela visão do clube de Ciências, que é não mostrar o material por mostrar, "mostrar
que não estou mentindo", mas é o material sendo utilizado para que o aluno observe,
possa responder a questões investigativas e chegue a uma conclusão. É perceptível a
diferença. Abrir o sapo – aliás, eu sou contra abrir o sapo – mas, enfim, abrir o sapo e
mostrar: olhem aqui esta parte, aquela lá... como vocês viram na minha transparência...
vocês viram no livro? Olhem aqui. Ou identificar simplesmente, comparando a figura do
livro com o sapo mortinho, aberto ali... não. Não é isso! Definitivamente não é! Ao
contrário! Eles vão levar, por exemplo, exemplares de espécimes, e os alunos vão
observar, vão analisar os dados da observação para comparar os dados dos vários
espécimes e daí chegar a uma conclusão: são iguais? pertencem ao mesmo filo? à
mesma classe? Então tem a questão da investigação embutida aí. É muito, muito
simples comparado ao que se fazia no clube de Ciências, mas já é uma modificação
substancial em comparação ao trabalho que o professor faz em sala de aula, pois a
perspectiva é outra. Isso vem a ser influência dos clubes de Ciências. Mesmo na aula
expositiva, que vai ser uma exposição, eu sempre parto de questões investigativas. Não
é fazer, por exemplo, um trabalho sobre o sapo, em que o aluno copia da enciclopédia
ou da internet. Não é! Tudo se orienta para uma questão que precisa ser resolvida,
mas, para ser resolvida - para encontrar respostas - o aluno vai ter que buscar os
dados, analisá-los, compará-los... buscá-los... mesmo na aula expositiva! Outra coisa
que eu mudei: se pegarmos os livros didáticos, notamos que, geralmente, eles
apresentam, por exemplo, o corpo humano, todo divididinho... No Segundo Grau é uma
chatice! Estudam-se os tecidos: tecido epitelial, tecido muscular, tecido nervoso... como
se eles fossem estanques, como se não tivesse nada que os unisse. Acaba ficando
como objetivo final saber as características de cada um, desintegradas, isoladamente
do contexto, com umas minúcias, de arrepiar... e os alunos detestam!
Buscando a integração entre os conteúdos do programa de Biologia, um aluno
nosso deu aulas excelentes. Nós discutimos a preparação das aulas no Laboratório. Ele
tinha que trabalhar na Escola Técnica da Universidade em uma turma do curso de
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 83
Processamento de Dados, que odeia Biologia. Eles têm que aprender, em um ano, todo
o conteúdo de Biologia do Ensino Médio, o que é impossível. E eles odeiam, odeiam!
Foi então que o nosso aluno foi além da minha orientação: ele começou usando uma -
não é novidade nenhuma, todo mundo sabe que deve ser feito assim, mas
normalmente não se faz – usando uma situação estimuladora, a organização do
contexto. Então, ele começou com um jogo de futebol: a partir do jogo de futebol, que
era a situação do contexto, ele deu toda a aula falando do tecido nervoso e do tecido
muscular, integrados. A partir de um jogo de futebol perguntou: o que aconteceria se
um jogador levasse uma canelada? Ele extrapolou a orientação que eu havia dado. Por
que nosso aluno foi além da minha orientação ao preparar suas aulas? Eu não dei para
ele a idéia do futebol, eu me lembrei de um beliscão. Um beliscão provocaria as
mesmas respostas, poderiam ser feitas as mesmas ligações. No entanto, ele deu um
salto qualitativo, porque, conhecendo os alunos – aí é que está a importância da
observação na escola - sabendo das características da rapaziada, ele utilizou o futebol.
Ficou muito mais interessante do que o beliscão. Tinha que entrar a dor, por causa do
sistema nervoso e a reação no sistema muscular. Tinha que fazer esta caminhada. Aí...
só de pensar na canelada eles já sentiram a dor... muito mais do que a dor de um
beliscão, como eu havia sugerido. Isso foi muito interessante, porque ele aproveitou que
a aula anterior tinha sido sobre tecido epitelial e tecido conjuntivo, para mostrar a
diferença entre levar uma canelada - uma pancada na canela - e uma pancada no que
ele chamou de “partes íntimas”. A diferença de dor... os alunos passaram a prestar
atenção na aula. Fizeram perguntas. A professora deles ficou estupefata porque não
era o habitual.
Neste caso, a preocupação deixou de ser as células, quantas células tinham,
como eram as células, a forma das células... claro que, no sistema, a forma e a
disposição têm importância, mas relacionadas com a função que vão desempenhar. É
diferente do que o assunto estar solto no espaço, como os livros apresentam. Eu dou
esta orientação para todos os meus alunos. Agora, tem alguns que não conseguem dar
este salto qualitativo. Alguns não conseguem se soltar do livro didático, e há os que
ainda têm a preocupação de acrescentar mais coisas. Imagine... acrescentar mais
coisas, mais nomes...
84 Ettiène Cordeiro Guérios
A orientação que dou hoje é diferente daquela que dava há quinze anos atrás,
porque eu não tinha essa vivência toda, não tinha tanto estudo a respeito do ensino de
Ciências, de metodologias adequadas, etc. O modelo de professor que se tinha era
outro. O modelo de Ciências, se é que se pode dizer assim, era diferente. As Ciências
Físicas e Biológicas, a Matemática, a Geografia e a História, eram a mesma coisa. Não
havia a vivência do método da ciência experimental. Dava-se a aula do conteúdo
separada do método de aquisição do conteúdo, enquanto hoje se sabe que a
metodologia tem que ser em função da ciência. O método de aquisição do
conhecimento em Ciências Físicas e Biológicas é, seguramente, diferente do da
Matemática, da História e da Geografia. Tem sua especificidade. Agora oriento a
Prática de Ensino dos alunos para eles desenvolverem seu trabalho em função dessa
especificidade. As estratégias e a metodologia de ensino, devem ser adequadas à
Epistemologia. O Laboratório me ajudou muito nesta modificação, porque nós
estudávamos muito... lembro-me da época do construtivismo. Só se falava em
construtivismo. Nós, então, trouxemos a professora Ana Maria Pessoa de Carvalho
(USP) para realizar atividades conosco no Laboratório, porque precisávamos
aprender... conhecíamos teoricamente, sob uma determinada ótica, e a Professora Ana
Maria havia desenvolvido seu trabalho com o ensino de Física. Era assim. Sempre foi
assim. Discutíamos, estudávamos... Aliás, continua sendo assim.
Lembro-me bem da época da Rede70. Íamos uma vez por mês para Santa
Catarina, de ônibus. Tínhamos reuniões do grupo todo que compunha a Rede. Uma
parte de nossas reuniões era destinada para as discussões administrativas, para
nossos relatórios individuais, discussões de cronogramas e outros assuntos deste tipo.
Mas, havia outros momentos em que discutíamos as ações propriamente ditas, o que
estava sendo realizado, e aí, conhecíamos os trabalhos uns dos outros. Foi um período
muito bom. Eu acho que foi muito rica a troca de experiências. Uma das coisas que eu
gostaria de fazer é tentar o que um professor de Santa Catarina fazia. Eles
conseguiram fazer lá o que nós sempre quisemos fazer aqui e não conseguimos – fazer
do Laboratório o ponto de referência no ensino das Ciências e da Matemática. Eles
70
Rede de Disseminação de Inovações Curriculares entre Paraná e Santa Catarina - Projeto
SPEC/PADCT/ CAPES de que o Laboratório fez parte, no período de 1898 a 1991. A coordenação da
Rede era sediada na Universidade Federal de Santa Catarina. Detalhamento Capítulo 2.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 85
71
Referência ao Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná, do qual faz parte o
Departamento de Teoria e Prática de Ensino, onde está instalado o Laboratório.
72
Centro Politécnico é a denominação do campus onde está situado o Setor de Ciências Biológicas, do
qual o Departamento de Botânica faz parte. É responsável pela “formação específica” dos Cursos de
Licenciatura. O Setor de Educação, do qual faz parte o departamento de Teoria e Prática de Ensino é
responsável pela “formação pedagógica”.
73
José Roberto Dunke, até meados da década de 90 foi professor do Departamento de Física da UFPR,
sendo coordenador do Centro de Divulgação de Ciência e Tecnologia (órgão da UFPR) tendo atuado em
conjunto com os professores do Laboratório.
74
Eram membros da REDE de Disseminação já mencionada. José Pinho, professor do Departamento de
Física da UFSC, foi um dos coordenadores da Rede. A Professora Terezinha era da Escola de Aplicação
da UFSC.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 87
75
Parâmetros Curriculares Nacionais, sendo Educação Ambiental um dos seus temas transversais.
88 Ettiène Cordeiro Guérios
76
Psicólogo, professor do Departamento de Psicologia da UFPR.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 89
77
À época, professora do Departamento de Métodos e Técnicas da Educação da UFPR. Curso citado na
narrativa, no Capítulo 2.
78
Atuam com a formação pedagógica em Ciências Biológicas, Matemática e Física. Tânia e Ivanilda são
membros do Laboratório desde que ingressaram na Universidade. Tânia é professora entrevistada nesta
tese. Ivanilda ingressou em 1999. Odisséia na época em que eu elaborava esta tese não era. No
momento em que a finalizo, já é. “Já foi puxada ...e deixou-se puxar.”
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 91
ensinar o princípio do gravador em uma aula de Física... ele estudou, ele fez vestibular,
ele fez Física, mas ele não aprendeu Física. Ele até pode resolver os problemas de
Física, mas ele não aprendeu os fundamentos da Física. Quando ele vai para a sala de
aula, ele se dá conta disso, que ele estudou tanto, ele sabe tanto e não sabe nada ao
mesmo tempo. E metodologicamente também, porque a nossa influência é muito
pequena: ele vem de quantos e quantos anos de ensino problemático em todos os
aspectos? Desde o período da escola... Para mudar esta imagem de professor, de
como deve ser um professor, é muito difícil, muito difícil.
Sempre busco esta tentativa. No momento, vou apresentar para meus alunos do
mestrado - que são de Psicologia, de História, de Entomologia, de Processamento de
Dados, e de Bioquímica - o teatro como possibilidade de ensino. Eles são de áreas em
que... teatro? Que horror!!! Imagine, fazer teatro... Mas o teatro pode ser utilizado em
todas as áreas. Nesse caso, o conteúdo é apresentado somente através de expressão
corporal, sem verbalização. Isso porque estou trabalhando com eles estratégias de
ensino diferentes das usuais em sala de aula. Para eles, tudo é novidade: resolução de
problemas, estudo dirigido com modelos... Eu estou trazendo para eles muito do que já
fizemos. Vou fazer algumas coisas tradicionais como seminários, porque o que se faz
normalmente não é seminário. Eu não posso só fazer coisas novas. Também tenho que
melhorar o que já existe. Mas, para eles, é uma surpresa poder ensinar o conteúdo com
uma peça teatral criada pelos próprios alunos. O Ronaldo79, faz isso no Curso de
Psicologia, só com mímica e expressão corporal. E os alunos, depois que assistem, têm
que analisar, interpretar o que cada gesto quis dizer, a aí acabam por apresentar
conclusões diferentes uns dos outros. Tem-se que trazer coisas novas, porque a
imagem que o nosso aluno tem é daquele professor que ele teve a vida toda,
principalmente nessa área: então o professor diz, diz, fala, fala... sempre da mesma
maneira, do mesmo jeito... pena que o tempo de vivência que os alunos têm com novas
experiências é muito curto. Associe-se a isto, todas as dificuldades da escola em
equipamentos, materiais, aulas curtíssimas, principalmente na escola pública que está
um caos... é difícil.
79
Professor citado anteriormente, que assessorou sobre questões referentes ao âmbito da psicologia.
92 Ettiène Cordeiro Guérios
É muito difícil fazer uma inovação. Encontrei uma professora que está atuando
no Ensino Médio e que foi do clube de Ciências. É a professora que “cria mais caso” no
colégio porque ela quer inovar... e o colégio não quer. Os outros professores não
gostam dela, e nem os alunos, o que é um paradoxo. Os alunos não gostam porque o
nível de exigência dela é diferente do de um professor que “dita o ponto” e aplica uma
prova em cima daquilo. Ela se recusa a fazer isso; ela leva vários livros e faz questões
investigativas que os alunos têm de resolver. Então eles não gostam - a maioria -
porque dá trabalho; a diretora da escola não gosta porque as aulas dela são
tumultuadas; a coordenadora da área não gosta porque ela não dá o conteúdo que
deve ser dado, foge do padrão... Mas em compensação temos um aluno na
Licenciatura que foi aluno no Colégio “Arnaldo Busato” no primeiro e no segundo graus
e participou de praticamente todos os clubes de Ciências enquanto ele estudou lá. Ele
já dá aula em uma escola particular, onde faz atividades diferentes, apesar da rigidez
da escola. Como não fazia sentido propor a ele o mesmo tipo de estágio de quem não
tem experiência em sala de aula, eu o encarreguei de trazer atividades e problemas da
sua escola para os outros conhecerem. Ele trouxe coisas excelentes. E agora ele quer
fazer o Mestrado trabalhando sobre Feira de Ciências, Clube de Ciências... Só aí já foi
uma diferença em comparação com os outros. Os outros querem fazer Mestrado em
que área? Botânica, Zoologia, Genética... mas nós temos vários que estão tentando
fazer mestrado, ou pelo menos interessados na área de Educação.
Na época da instalação do Laboratório, em 1985, um dos nossos propósitos era
provocar modificações nos currículos dos cursos de Licenciatura. Tivemos neste campo
algumas influências. Por causa das nossas experiências é que foram instituídas
disciplinas que não existiam no currículo de Biologia: "Ensino e Pesquisa", "Iniciação do
Trabalho Científico" e "Metodologia do Ensino de Ciências" - antes era somente Prática
de Ensino. Nós brigamos para ofertar a disciplina de Metodologia do Ensino de Ciências
para o Curso de Pedagogia como matéria optativa... era nos sábados, às 07:30h da
manhã. Conseguimos provocar discussões a respeito do currículo do curso de
Pedagogia, porque neste não havia as metodologias específicas. Era uma só
metodologia do ensino, genérica. Era um absurdo isso. Nós, naquela época,
achávamos que o Laboratório era do Setor de Educação, e que os alunos de Pedagogia
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 93
80
Projeto do Sub-programa Educação para a Ciência (SPEC) do Programa de Apoio e Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (PADCT) da CAPES, no período de 1989-1991, vide Capítulo 2.
81
Coordenador do Laboratório de Ensino e Aprendizagem de Matemática e Ciências Físicas e Biológicas
da UFPR, durante a etapa em que esteve vinculado SPEC/PADCT/CAPES no período de 1985-1988.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 95
82
Subprojetos deste Projeto de Rede. Vide capítulo 2.
96 Ettiène Cordeiro Guérios
um tema muito interessante com elas: “saúde”. Elas faltavam muito à aula... Por que a
fulana não veio à aula? Alguém respondia: Está doente, está com dor aqui, dor no
“figo”, dor no “estômo”...
Baseada nesta constatação de que as alunas tinham problemas de “saúde”, a
Aracy trabalhou a parte do sistema digestivo, e eu comecei a trabalhar a questão
saúde. Eu perguntei o que elas faziam quando sentiam algum mal estar: ou elas
procuravam a medicina alternativa por questões financeiras, ou iam procurar o SUS da
época, o INPS. Como que as senhoras fazem? Eu perguntava. Ah, professora, a gente
prefere acho que até morrer, porque é tanto trabalho para procurar esse INPS...
Começamos a trabalhar a questão do tempo: o tempo que demora para chegar, o
tempo de deslocamento do ônibus, o dispêndio de tempo, o dispêndio de recursos
monetários, o tempo da fila, pegar um senha, ficar na fila horas e horas... Então
construímos todo o esquema para o cálculo do tempo para pegar a ficha, marcar para
não sei quando, voltar de novo ao médico... e tal... eu sei dizer que comparando os
tempos, o que elas ficavam no médico era mínimo: era questão de minutos. Em uma
hora o médico atendia a vinte consultas. Fizemos todos estes cálculos e deu três
minutos para cada consulta. Aí, simulamos uma consulta de três minutos para ver o que
dá para conversar em três minutos; elas mediram no relógio o que era minuto,
segundo... Aí elas falaram sobre outro significado do tempo: “e por que vamos ver como
que está o tempo? Eles dão temperatura; o repórter não diz agora vamos às questões
do tempo? Como está o tempo? Aí elas diziam: mas aí é outro tempo, não é
professora? Não é o tempo de minutos, segundos, horas. Aí eu dizia: são as condições
climáticas. Elas queriam saber o que significava umidade relativa do ar. Então a Aracy
pegava pegava o gancho e seguia em frente. A questão da febre... a temperatura...
porque é que no inverno dá mais infecções respiratórias, pneumonia... foi super
interessante. Nesse momento elas olharam no contra-cheque e viram o quanto
descontavam por mês para o INPS. Então elas fizeram o levantamento de quantas
vezes elas iam ao médico ao ano... e... elas diziam, mas olha... o que a gente paga pelo
o que a gente usa, quanto equivale isso no que a gente ganha... Fizemos toda essa
relação de cálculo junto com elas, com o hollerit do pagamento delas, com o mais
concreto que eu tinha para ensinar porcentagem naquela circunstância. E elas eram
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 101
trazendo da UFSC o professor José Pinho para um curso sobre ótica. Os professores
foram fazer o curso de lentes, lentes de faces paralelas, lentes de faces não paralelas,
a Primeira Lei de Newton, etc. Quando eu fui trabalhar com eles, retomei os
fundamentos de ótica, que tem tudo a ver - porque o dextrógeno desvia a luz para a
esquerda, o levógeno para direita e o racêmico , que funde a luz, não a desvia para
lugar nenhum - e utilizando estes conhecimentos na análise da estrutura molecular das
substâncias chegamos a uma definição por um caminho dieferente do que estávamos
acostumadas.. Por ser em um modo diferente para mim de trabalhar, e por ser a
primeira vez que fazia assim, eu fiquei com uma dúvida cruel. Achei prudente perguntar
para as professoras Estela Romanowski e Alda Pawlowsky83 do Departamento de
Química. Eu não estava errada. Era isto mesmo. Valeu a pena!
Há um acontecimento interessante em minha vida profissional. Eu sempre
participei muito de congressos. Uma vez fui dar um mini-curso que foi montado a partir
de um projeto chamado “Alfabetizando Trabalhadores em um Canteiro de Obras”. Era
um trabalho do tempo do projeto de Alfabetização de Adultos e acontecia com uma
empresa de construção. Eu estava trabalhando alfabetização em Matemática. O mini-
curso era para professores alfabetizadores de primeira a quarta séries. Durante o mini-
curso, estava trabalhando o que era o tijolo, como se fazia uma pilha de tijolos, uma
parede, a unidade, a dezena, a centena, o plano, a linha... de repente, na montagem do
quadro “valor lugar”, eles começaram a me questionar: então professora, por isso que a
senhora só conta de um em um nessa primeira ordem, porque o “x” aí está elevado a
zero. Na segunda ordem , o “x” está elevado a um. E na terceira ordem o “x” está
elevado ao quadrado e na quarta ordem. Então, eu disse “Ôpa! Há algo diferente do
que os professores estão acostumados a trabalhar em suas salas de aula”. Aí me
despertou: “então não são professores de primeira a quarta séries; essas questões que
eles estão abordando não são compatíveis para a clientela a que se destina o curso!” E
não eram mesmo. Eram professores da área de edificações de escolas técnica e eu
83
As professoras Alda e Estela haviam participado com Sonia do curso de especialização “Metodologia
do Ensino nas Séries Iniciais”. Vide Capítulo 2.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 103
84
Alunos da disciplina de Prática de Ensino de Matemática que não têm experiência docente realizam
estágio convencional (observação, monitoria, regência). Os que já têm prática docente desenvolvem
projetos de ensino diferenciados de sua prática cotidiana. Os dois grupos atuam inter-relacionadamente.
Detalhes dessa dinâmica no Capítulo 2.
106 Ettiène Cordeiro Guérios
desenvolver o nosso projeto com base na técnica da modelagem, porque era o que
havia de mais inovador na época. O fato de desenvolvermos nosso projeto no
Laboratório propiciou que conhecêssemos outros trabalhos, porque lá havia vários
grupos de alunos, de professores e de bolsistas que atuavam desde anos anteriores,
em várias áreas. Havia um deles, por exemplo, formado pelo pessoal da Física, da
Matemática e da Química, que não eram alunos de Prática de Ensino, e estavam no
segundo ano de atividades.
Nosso grupo era integrado por mim, pela Denise, pelo Sanfelice, pelo Tavares e
por mais alguém de que não lembro, sendo que só a Denise e o Tavares tinham algum
conhecimento da modelagem, porque haviam assistido a palestras promovidas pelo
Laboratório com os Professores Maria Salett Biembengut e Rodney Basanezzi. Eles
nos repassaram as informações que haviam tido, às quais foram somadas outras de
artigos de revistas e publicações que tínhamos disponíveis. A partir daí, nos
propusemos a conhecer o que estava sendo desenvolvido em outras instituições.
Pesquisamos muito e escrevemos cartas para professores de todo o Brasil que
desenvolviam trabalhos ou que tinham publicações sobre modelagem. Recebemos em
resposta a tese de doutorado do professor Dionísio Burak, e artigos dos professores
Rodney Basanezzi e Maria Salett.
O que conseguimos encontrar nós tínhamos lido, estudado e discutido
teoricamente. A partir disso, fizemos o planejamento e o cronograma de execução do
projeto, e elaboramos o roteiro das aulas com os alunos do Ensino Fundamental85. No
primeiro semestre daquele ano ficamos estudando, pesquisando, tentando criar as
diretrizes e, no segundo, conseguimos esboçar idéias, colocá-las no papel e em prática,
fazendo uma primeira aplicação experimental com alunos de quinta e de oitava séries.
Estávamos animadíssimos por desenvolver um projeto inovador para o ensino de
geometria. Iniciamos então a sua aplicação. Todas as aulas foram filmadas para que
fôssemos discutindo o que estava acontecendo ao mesmo tempo em que aplicávamos
o projeto. Fazia parte de nossa dinâmica de trabalho assistir a cada aula, discutir e
85
Era exigência que os projetos fossem concebidos, criados e aplicados experimentalmente com
crianças para gerar discussões de avaliação sobre o processo como um todo. Essas crianças eram
inscritas por suas escolas e/ou professores e participavam dos projetos desenvolvidos pelo Laboratório
no contra-turno escolar.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 107
reforçar ou redirecionar os roteiros das próximas aulas. Quando assistimos ao filme das
duas primeiras aulas, o que vimos? Alunos sentados com a mão no queixo, olhando o
relógio, olhando para cima... estilo aula tradicional... foi um verdadeiro desapontamento.
Pensamos e idealizamos uma coisa, e a reação dos alunos foi outra. Eles estavam
totalmente desestimulados. E nós, que nos propúnhamos a fazer diferente, nos vimos,
no filme, dando aula do mesmo jeito, sem que os alunos se envolvessem. Tivemos um
"choque".
Depois de muita discussão, tomamos uma decisão: paramos o que estávamos
fazendo e reestruturamos nosso projeto e nossa maneira de trabalhar. Surgiu a idéia de
preparar um ambiente diferente, em que os alunos observassem e pesquisassem
elementos geométricos. Decidimos por um ambiente fora da sala de aula, para que eles
vivenciassem a matemática e coletassem informações com as quais trabalharíamos
dentro da sala de aula. Só então é que a nossa proposta metodológica começou a
tomar caminhos diferentes; começamos a sentir os alunos se envolvendo e fazendo
relações matemáticas. A postura deles e a nossa estava mudando.
A passividade e a falta de envolvimento anteriores tinham acontecido apesar de
ser um projeto de modelagem, cujas idéias haviam sido enriquecidas pelos trabalhos
recebidos de profissionais que atenderam ao nosso pedido. Havíamos nos tornado
bons conhecedores da teoria, a partir da qual discutimos e elaboramos tanto o
cronograma quanto o roteiro das aulas. Contudo, a passividade dos alunos, que chegou
a nos provocar o "choque", foi o que demonstrou que havíamos permanecido na
repetição da teoria, enquanto só a mudança da metodologia de ensino lhes daria a
oportunidade de fazer observações, o que os deixou cheios de entusiasmo, de
questionamentos. Conseguimos, desta forma, enxergar outro caminho para percorrer.
Tínhamos que ir formulando e construindo os conceitos junto com os alunos,
gradativamente, e não como nós estávamos fazendo, isto é, passando o conceito e
pretendendo que o mesmo fosse aplicado a determinada situação. Só não sabíamos
que o caminho seria longo.
Nas nossas primeiras tentativas, acreditávamos que ensinar conceitos e aplicá-
los em atividades práticas faria surgir a modelagem. Depois, acreditamos que o melhor
processo seria o inverso, ou seja propor atividades e “fazer surgir” os conceitos. Assim,
108 Ettiène Cordeiro Guérios
86
Para participar como bolsista em projetos de extensão universitária, há exigência legal de que o aluno
esteja regularmente matriculado em curso de graduação da UFPR. Em vista disso, o grupo propôs
atuação no Laboratório como alunos do Bacharelado em Matemática ou como professores voluntários
vinculados à Rede Pública de Ensino. Alguns alunos solicitavam permanecer no Bacharelado, após
terminar a Licenciatura, para ter condição legal de participação no Programa de Extensão.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 109
Ensino, entre os quais a Flávia Dias Ribeiro e a Márcia Moura. Houve, então, uma
alteração na seqüência do projeto. Seguiu-se uma fase de ambientação dos novos
alunos no Laboratório e em relação à proposta de trabalho, para uma posterior
reelaboração da mesma, visando a uma nova aplicação experimental, com alunos do
ensino fundamental. Nesta fase de ambientação relatei a eles a experiência realizada e
indiquei os textos a serem lidos. Enquanto fazia meu relato, os novos integrantes iam
apontando aspectos que não havíamos enxergado no ano anterior. Estes novos
aspectos se constituíram em pontos-chave para serem trabalhados naquele ano. Eu fui
designada coordenadora discente da proposta e nesta etapa, fazia uma ponte entre nós
e a professora Ettiène, levando-lhe nossas discussões, estudos e questionamentos e,
recebendo dela um direcionamento para darmos continuidade ao Projeto87.
Em 1995, houve o Encontro Nacional de Educação Matemática – ENEM - em
Aracaju, para o qual havíamos inscrito nosso projeto no ano anterior. Nosso trabalho
fora aceito, porém, por ocasião da confirmação da participação, do grupo anterior
restava apenas eu. Tive dúvidas se iria ou não, mas então a Ettiène disse
categoricamente: você vai! Decidi por ir. Fomos eu e a Flávia. Ministramos um mini-
curso, em dois dias, e para prepará-lo tivemos que estudar bastante para entender
melhor o que era a modelagem e sistematizar o que havíamos feito no ano anterior.
Houve um fato interessante: a participação do professor Geraldo Perez88 que,
fazendo papel de aluno que não estava disposto a colaborar com nada, nos
bombardeava com perguntas. Não esperávamos contar com a presença de pessoas do
gabarito dele. No segundo dia, outros professores deste gabarito compareceram, não
sabe se por intermédio dele. No mini-curso, apresentamos um histórico da proposta,
87
Era hábito designar-se coordenadores discentes para projetos específicos e também para representar
o Laboratório como um todo. A filosofia de tal atitude era potencializar o desenvolvimento de lideranças
entre os alunos. Acreditava-se que o Laboratório poderia contribuir neste sentido. Deste modo, Tânia
assumira a coordenação deste projeto, e representava sua coordenadora entre os diferentes segmentos
atuantes nesta proposta. Cabia a Tânia não só a representação, como a responsabilidade pelo bom
andamento do projeto.
88
Geraldo Perez, professor da UNESP à época, tem forte presença na área de formação de professores
de Matemática. Sua presença causou impacto no grupo que apresentava o mini-curso, pois era a
primeira oportunidade em que alunos atuavam como docentes em congresso, embora tivessem
experiência em sala de aula e significativa passagem pelo Laboratório. No entanto, não tinham ainda
auto-suficiência característica dos profissionais já experientes. Possivelmente a presença do Professor
Geraldo Perez, com o que ele representava, associado às situações imprevistas para o desenvolvimento
do curso, associado à provocação que fizera o tempo todo do curso, tenha sido um grande propulsor do
encorajamento futuro do grupo lá presente.
110 Ettiène Cordeiro Guérios
89
Promovido pela UFPR através do Laboratório e pela Sociedade Brasileira de Educação Matemática-PR
em 1995. O Laboratório, inicialmente apoiando a institucionalização e posteriormente sediando a SBEM-
PR, promoveu os quatro primeiros “Encontro Paranaense de Educação Matemática” – EPREM -.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 111
Foi a primeira vez que cheguei pertinho do professor Ubiratan... minha emoção foi muito
grande e nunca mais vou esquecer este dia... Diante de nossa síntese, ele nos
parabenizou, e disse ao grupo todo ali presente que o caminho era esse mesmo,
enquanto folheava o livrinho que vínhamos produzindo desde os anos anteriores90.
No ano seguinte reaplicamos e reavaliamos a proposta. Estruturamos o que
tínhamos colocado no papel no ano anterior, revimos a fundamentação teórica e demos
ao projeto uma forma diferente daquela dos anos anteriores. No final desse ano a
Márcia saiu do Laboratório. Eu e a Flávia decidimos continuar, e propusemos que os
novos alunos de Prática de Ensino entrassem no grupo, mas numa perspectiva
diferente daquela que estava acontecendo até então. É que se eles entrassem no grupo
gerador e criador da proposta, teríamos nova parada para ambientação, e um novo
recomeço. Queríamos avançar, dar continuidade ao projeto. Consultada sobre esta
posição, a Ettiène concordou e ficamos as três no núcleo da proposta, com as
participações dos outros.
Até o ano de 1997, a construção do projeto de modelagem era desenvolvido no
Laboratório, mas se constituía em atividade de Prática de Ensino. Daí para a frente, o
Laboratório assumiu o projeto de modelagem como uma de suas linhas de ação91, onde
alunos de Prática de Ensino que já atuavam em sala de aula continuariam participando
voluntariamente, para vivenciarem algo diferenciado do que faziam cotidianamente,
atuando como colaboradores e não como elaboradores da proposta. Com esta nova
perspectiva, os novos integrantes da Prática de Ensino receberam o material escrito por
nós nos anos anteriores, estudavam, falavam de suas dúvidas, que eram discutidas e
analisadas, para então reencaminharem a proposta para novos grupos de alunos de
quinta série, que freqüentavam as atividades dos projetos do Laboratório no contra-
turno escolar. A nossa expectativa era a de que os alunos de Prática de Ensino
criassem suas próprias atividades, a partir do que propúnhamos como orientação
90
O grupo estava escrevendo um “livro” sobre o projeto de modelagem, cuja redação se dava
concomitantemente às atividades que se efetivavam. A cada ano, o livro foi sendo aperfeiçoado estando
no prelo para publicação.
91
Foram criadas no Laboratório linhas específicas de ação sendo esta uma delas. Outras foram
Matemática Ambiental, Jogos Matemáticos, Matemática Escolar Existente nas Profissões. Eram
desenvolvidas por grupos fixos de professores e alunos bolsistas, sendo abertas aos alunos da Prática de
Ensino. Detalhes no Capítulo 2 e na história de Vera, a frente.
112 Ettiène Cordeiro Guérios
metodológica. A idéia central do nosso projeto era que o professor criasse suas
atividades. A partir das dúvidas surgidas com as criações deles, iríamos reescrevendo
nosso projeto.
Durante um semestre, foram feitos estudos em reuniões sistemáticas no
Laboratório todas as segundas- feiras. Sob nossa orientação, os alunos de Prática de
Ensino passaram a escrever e sistematizar a aplicação que faziam com os alunos de
quinta série. Mas as coisas não aconteceram como previmos. Não se sabe se por
receio ou por falta de um esclarecimento maior, eles não extrapolavam o que já estava
escrito. Talvez não os tenhamos incentivado suficientemente. Eles começaram a
reproduzir, em vez de criar situações novas. Falávamos que não havia necessidade de
repetir o que estava escrito no nosso material, que deviam criar situações e exercícios
novos, ao que eles replicavam que tal ação implicaria em sair da proposta. Eles não
conseguiam entender que o essencial era o encaminhamento metodológico. Eles
entendiam que a proposta metodológica era exatamente os exercícios que estavam ali,
e não o modo como o processo tinha que acontecer. Ficamos frustradas. Muito
frustradas. Tivemos aquela sensação da época em que aplicamos nosso projeto de
modelagem pela primeira vez. Eles não conseguiam separar encaminhamento
metodológico e exercícios e nós não conseguíamos fazer com que eles entendessem
isto. Eu dizia: vocês não precisam fazer o que está escrito aqui, vocês podem inventar,
fazer coisas diferentes! E eles diziam: se a gente fizer coisas diferentes, vai mudar a
proposta. Quando descobrimos que a dificuldade era esta, para nós foi uma Eureka
danada!
Nós já havíamos feito aplicações do projeto para várias turmas de alunos no
Laboratório, e queríamos vê-la aplicada na escola no próprio horário de aula. Para nós
isto era importante, porque nos mostraria se o que estávamos desenvolvendo durante
estes anos estava, realmente, de acordo com a realidade da rotina escolar. Aplicamos a
proposta no Colégio Estadual Rio Branco, com a professora Vera, que já conhecia o
Laboratório. Entregamos a ela a proposta escrita e combinamos que a aplicação seria
filmada. Ela leu, discutimos as dúvidas surgidas, e ela a aplicou no quarto bimestre,
porque esse era o momento em que ela trabalhava os conteúdos programáticos de
geometria.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 113
92
Maria Salett Biembengutt, da Fundação Universidade de Blumenau, foi consultora no que se referia ao
aspecto da técnica da modelagem. Ana Maria Kaleff, da Universidade Federal Fluminense, assessorou
no que se referia à abordagem conceitual em Geometria.
114 Ettiène Cordeiro Guérios
como alunos das licenciaturas nos procuravam para esclarecer dúvidas sobre questões
didático-metodológicas, aliás, coisa que fazemos até hoje. Tínhamos rotineiramente
reuniões sistemáticas não só dos grupos específicos mas de todos os que atuavam no
Laboratório. Nessas reuniões sistemáticas acabávamos trocando informações, idéias e
questionando observações que os colegas faziam sobre outros projetos e outras ações
em andamento no Laboratório. Acontecia um processo de interação com muitas trocas,
e quando enxergávamos os conceitos de Matemática dentro da Física, por exemplo,
surgiam muitos debates. Era quando emergiam as maiores discussões, e então, a
gente ficava mais tempo estudando e pesquisando sobre certos assuntos.
Quando eu comecei a participar no Laboratório, em 1994, eu já atuava como
professora no Ensino Fundamental. Então, paralelamente às minhas atividades no
Laboratório, eu ia ministrando minhas aulas de Matemática na quarta série. Aí...
aconteceu uma coisa interessante! Eu tinha três turmas de quartas séries e, no quarto
bimestre, eu trabalhava com conceitos de medidas. Fazia com que as crianças saíssem
medindo as coisas. Então, falava-se em metro quadrado: O que é metro quadrado?
Pronto! Vamos construir, vamos fazer os alunos trazerem tijolos para a gente construir
um metro quadrado... o pedreiro falava quanto tijolos cabiam num metro, e assim por
diante. No ano anterior eu tinha proposto aos alunos que construíssem uma maquete
da escola, e para construí-la eu fiz com que eles saíssem da sala de aula e medissem,
observassem, desenhassem a escola... só que não existiu rigor, principalmente na
coleta das medidas: eles fizeram mais por aproximação. Junto com isso, eu desenvolvia
os conceitos, porque tinha que trabalhar com medidas e com operações decimais,
então eu trabalhava tudo junto. Quando conheci o trabalho com modelagem eu fiquei
angustiada. Queria saber melhor o que era, perguntava para todos na escola, para os
professores, para a pedagoga, mas ninguém sabia o que era modelagem. Resolvi
esperar para ver o que acontecia. Então, enquanto nós fomos elaborando a proposta no
Laboratório, eu comecei a fazer relação com o que eu estava fazendo em sala de aula.
Eu percebi que não era modelagem o que eu estava fazendo, mas também percebi que
eu podia fazer com que se tornasse. Partir de uma situação real, eu já sabia como
fazer. Então fiz um estudo da escola a partir de um contexto histórico, distribuindo para
cada turma o estudo de um período histórico: um antes, um hoje, um depois,
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 115
aproveitando a situação de reforma que a escola estava vivendo. Desta forma, uma
turma estudou o "antes da reforma", outra o "durante a reforma" e a terceira o "depois
da reforma”... Considerando a divisão proposta para as turmas, cada uma acabou
estudando aspectos diferentes dos mesmos conceitos. O proposto era que todos eles
chegassem a uma maquete, que era o meu objetivo. Todo o meu trabalho estava se
elaborando em função da maquete, e não em função de uma estrutura metodológica.
Os alunos concluíram seus trabalhos organizando as maquetes com três escolas:
"Escola hoje", ”Escola antes" e "Escola do futuro". Expuseram seus trabalhos,
convidando os demais colegas para visitação, o que deu ensejo para trocas e
discussões. Trabalhei, cansei, os alunos se envolveram, mas... meu objetivo era a
maquete. Eu não tinha a visão da postura metodológica adotada, a qual só fui começar
a adquirir ao relatar a experiência em um curso na Semana de Capacitação em um
colégio, a pedido da pedagoga da escola.
Ao fazer uma análise da minha fala para os colegas, comecei a identificar que a
questão não era a de construir a maquete, mas sim, de trabalhar com conceitos,
buscando significado, partindo da realidade, buscando procedimentos condizentes com
uma visão metodológica do processo de aprendizagem. Surgiram, pois, outras
preocupações além da construção da maquete em si, passo a passo.
Em decorrência do trabalho no Laboratório, houve um convite da Editora Lago
para escrever uma coleção de livros didáticos. Aspectos como o meu envolvimento na
questão da educação matemática, desenvolvimento de projetos, construção de
metodologias inovadoras tiveram peso grande nesse convite.
O Laboratório é para mim um lugar especial, onde me envolvo, e gosto do que
faço. Aos poucos ele foi significando cada vez mais, tornou-se belo, as pessoas se
envolvem, partilham, crescem, se humanizam num trabalho... apaixonante... é minha
vida, não consigo deixar a emoção de lado, me comovo e choro muitas vezes quando
penso ou falo no que aqui acontece.
Depois que comecei a participar do Laboratório como aluna do Curso de
Licenciatura, nunca mais saí dele. Ao concluir a Licenciatura eu continuei vinculada ao
Laboratório, ora como voluntária, ora como professora da comunidade, enquanto dava
aulas da primeira à quarta séries. Criar, poder contar o que fazemos, poder mostrar
116 Ettiène Cordeiro Guérios
já existentes. Criar a partir de concepções está presente o tempo todo nas atividades do
Laboratório. Sempre que há uma nova idéia, se pesquisa o que já há feito sobre aquilo.
Mas penso que devemos criar também sem idéias pré-concebidas, até mesmo do nada,
ou recriar, quando reelaboramos o que já existe. para a realidade da sala de aula. Nós,
que trabalhamos com a modelagem, elaboramos uma nova proposta para a sala de
aula a partir de algo já existente. Pesquisamos, observamos, levantamos dados das
aplicações, mas dentro de uma realidade que nós conhecemos. O pessoal da
Matemática Ambiental teve que criar uma proposta para qual não tinha antecedentes
para salas de aula do ensino fundamental. Isto porque uma de nossas concepções é a
de que tudo aquilo que se elaborar não deve fugir da realidade da sala de aula. Não
adianta ficar estudando e pesquisando uma coisa que não possa ser apropriada pela
sala de aula. Então, quando eu digo criar, é, muitas vezes, partir do nada mesmo,
elaborar uma idéia, uma proposta.
Tivemos muitos problemas no Laboratório com alguns grupos que trabalhavam
com jogos Algumas vezes pretendiam somente ganhar uma bolsa de estudos. Quando
mudavam os grupos e eu percebia isto, ficava lamentando comigo mesma: não vai
andar de novo... e para azar meu, não andava mesmo! Mas esses grupos não se
criavam no contexto do Laboratório, e isto era bom. Eu agora estou envolvida com os
jogos, tentando enxergar de outra maneira que não só como recurso. Estou sentindo
dificuldade, estou em conflito com a questão do jogo frente a uma preocupação
metodológica, e não apenas como recurso. Não posso aceitar usar esporadicamente,
em dia que falta professor, em dia de chuva, quando se quer trabalhar determinado
conteúdo ou, em vez de passar exercício, aplicar um jogo como alternativa ao exercício.
É isso que estou chamando de usar o jogo como recurso. É isto que estou tentando
compreender, que estou em análise. Estou tentando um encaminhamento para isso.
Pedi às bolsistas do Laboratório que utilizem jogos para iniciar um conteúdo e
tentassem passar daí para uma sistematização e depois retornar ao jogo como fixação.
É uma primeira idéia. Na Licenciatura, os alunos criam jogos novos. Não se encontra
nada similar no mercado. Só que na avaliação da disciplina que fiz ao final do ano, os
alunos apontaram que criaram, elaboraram, testaram, conheceram outras idéias, mas
não souberam como colocar o jogo em sala de aula considerando a questão
118 Ettiène Cordeiro Guérios
metodológica. Então eu pensei: eles têm razão neste sentido. Paralelamente a estas
discussões com os alunos, as bolsistas da linha de ação dos jogos estavam
trabalhando. Elas sabem quando o jogo surgiu, quem começou a jogar, quais as fases
segundo Piaget, por exemplo... mas a concepção quanto à metodologia não está
encaminhada. Temos alguns direcionamentos... mas não mais do que isso. O Imenes,
em seus livros didáticos, coloca alguns momentos para a sua utilização em sala de
aula, mas também sob o ponto de vista da utilização como recurso. Os PCNs definem o
jogo como uma tendência dentro da Educação Matemática... mas não está claro. É uma
questão que me incomoda.
Há uma diferença entre alunos da Licenciatura que participam e que não
participam do Laboratório. Faço esta referência devido ao tempo destinado às
disciplinas didático-metodológicas no currículo do Curso de Licenciatura em Matemática
e em Pedagogia. Não há tempo para perceber na Licenciatura o que se percebe com o
tempo que se tem no Laboratório. Não há tempo para se estabelecer relações entre o
que se aprende e a prática. Mesmo que os professores da Licenciatura ensinem com
um direcionamento para a prática, não há tempo para os alunos estabelecerem suas
próprias relações e avançarem. Estou afirmando isto por experiência própria, pois
iniciei minhas atividades no Laboratório quando ainda era aluna. Os que participam têm
a possibilidade de se envolver com as atividades nele desenvolvidas e passam a ter em
suas salas de aula uma atenção maior com o ensino em relação aos que não
participam. Eu vivi o Laboratório como aluna do Curso de Licenciatura e agora vivo
como professora formadora, e por isso esta questão se evidencia para mim. Percebo
que preocupam-se se estão atuando de acordo com a realidade escolar em que se
acham inseridos. Estão mais atentos aos probelmas da sala de aula. Sabem onde
buscar mais informações ou até mesmo criar estratégias para atender a situações
específicas da sala de aula. Desconfio que eles vão ter sempre consciência de que
existem múltiplos caminhos, e quando não encontrarem ou não existirem, saberão que
podem ser criados... recriados, talvez...
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 119
93
Alguns membros atuavam no Laboratório em projetos específicos, não necessariamente vinculados a
disciplinas dos cursos de graduação.
94
BARRA,V. Exploração de necessidades sócio educativas e análise de modelos de programas
formativos de Educação Ambiental com caráter experimental. Santiago de Compostela, 2000. Tese
(Doutorado) - Universidade de Santiago de Compostela. Informações no Capítulo 2.
120 Ettiène Cordeiro Guérios
Eu lembro de um jogo que nós fizemos sobre números inteiros. Era como se
fosse aquele jogo de percorrer caminhos, em que vai se jogando dados, e vai
avançando ou regredindo, conforme acerte ou não a solução da situação-problema que
caia para ser resolvida. Lembro de vários jogos com cartas, todos diferentes,
elaborados por outros grupos... lembro de um que era relacionado com educação no
trânsito e que envolvia bastante a Matemática... estou até enxergando a nossa colega
Katy explicando para todos nós porque ela e o seu grupo tinham elaborado "aquelas"
estratégias, com a finalidade de desenvolver objetivos educacionais concomitantemente
à aprendizagem de conceitos matemáticos. Apesar de já se ter passado algum tempo,
lembro de muitos jogos que nós fazíamos.
Houve outra ação do Laboratório, que eu gostei muito, em que construímos
recursos didáticos e materiais concretos. Lembro que trabalhamos com bolas de isopor,
cartolinas, fizemos muitas coisas... pintávamos isso, aquilo... era muito divertido. Só que
não tive muita oportunidade para atuar nessa parte porque estava mais envolvida com
as outras atividades. Eu, que estava dentro do Laboratório como bolsista pude
aproveitar bastante, mas muitos alunos que não faziam parte dos grupos permanentes
não puderam aproveitar como nós. Eu acho que isso faz muita falta para os acadêmicos
que não têm esta oportunidade.
Eu me lembro que nós discutíamos muito quando construíamos algum material
concreto, inclusive com pessoas que já freqüentavam o Laboratório antes de nós e que
trabalhavam com os alunos de escolas públicas que vinham até ali. Então, assuntos
polêmicos de Matemática, que os professores têm muita dificuldade para ensinar, eram
discutidos conosco. Esse retorno era uma coisa que acontecia ali. Muitas dificuldades
eram trazidas para serem discutidas ali. Não é que eles saíssem dali sabendo. Não era
como se fossem para o Laboratório e pronto, num passe de mágica, acabassem as
dificuldades... mas quantos de nós não acabávamos pegando o “fio da meada” com
esses trabalhos que eram feitos? Eu lembro que participávamos de todos esses
comentários porque nós ficávamos envolvidos com as diversas equipes do Laboratório,
conversando e trocando idéias. Isso é muito importante, no Laboratório a gente trocava
muitas idéias. Deu certo por isso, não deu certo por aquilo... e isso ajuda muito. Muitas
vezes havia críticas. Não era que a idéia desenvolvida por alguém não fosse boa, mas
122 Ettiène Cordeiro Guérios
talvez se modificasse um pouco, a idéia desse certo. As discussões que tínhamos eram
muito importantes. Com esta dinâmica, recursos que construíamos acabavam sendo
frutos de uma discussão, que por sua vez, geravam uma outra discussão. Dessas
discussões, sempre ficava alguma coisa... Como podemos resolver esse problema?
Então vamos criar isso, vamos fazer aquilo... e aí começávamos a desenvolver... um
dava uma idéia daqui, outro puxava alguma coisa dali, começavamos a discutir e
acabava saindo alguma coisa interessante.
Nós tínhamos livre acesso ao Laboratório. Tínhamos inclusive a chave dele.
Então, íamos e vínhamos à hora que fosse preciso e acabávamos trabalhando de uma
maneira bem divertida, procurando desenvolver nossos projetos, construindo os nossos
recursos, ajudando na construção dos recursos dos outros, recebendo muitas
informações de grupos que estavam em outras modalidades de trabalho e que podiam
nos orientar por causa das experiências que tinham. Foi uma maneira muito rica de
desenvolvimento.
Quando estamos na licenciatura, é muito interessante fundamentar e aprofundar
seriamente o conteúdo matemático específico que se está aprendendo na universidade.
Claro que é! Só que, se nós sairmos da universidade sem saber como aplicar o que
aprendemos, vamos chegar na sala de aula do mesmo jeito que entramos, quer dizer,
seremos um ser com uma bagagem enorme, mas com a inscrição “sem aplicação”.
Sim, é isso mesmo! Sairemos com a tarja “sem aplicação”. E daí? Pode-se ter muito
conteúdo, mas não é possível separar o conteúdo que você carrega da aplicação que
você tem que ter na sua experiência profissional. Quando eu digo "aplicação", estou me
referindo a utilização dos conhecimentos para a prática como professora. Não dá,
porque um sem o outro não funciona. Não adianta ter receita de aplicação muito boa
para tudo e não ter o conteúdo para dinamizá-las; pode-se até ter idéias próprias, mas
se não tiver o conteúdo, acabará por abafá-las; e também, não adianta ter o conteúdo e
não saber onde nem como aplicar. Quando falo em conteúdo, estou me referindo a
conteúdo matemático e a conteúdo metodológico, porque sem este, nada se faz com
fundamento na sala de aula. Na verdade, o professor "não passa" conceitos para o
aluno, o professor não é mais aquele ser que sabe, dotado de todos os saberes. O
professor ajuda a formar os seus, não sei se digo alunos ou coleguinhas, ou o quê.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 123
àquela coisa como a gente aprendeu: não tem aplicação e aprende-se o conteúdo
porque tem que aprender. Na verdade, quando eu comecei a trabalhar com jogos e com
o projeto de Educação Matemática Ambiental, vi que quase todo conteúdo pode ser
aplicado e fui aprendendo a buscar essa aplicação. Não é do nada que surgem
mudanças. Nem de repente... Então sem dúvida essa passagem pelo Laboratório me
ajudou e me ajuda muito.
Na minha turma de supletivo, à noite, eu tenho alunos que têm cinqüenta e
poucos anos e que nunca entenderam conteúdos elementares. Em frações, trabalhei
diferentemente do método tradicional com eles e também usei jogos. E, de repente,
eles conseguiram enxergar o que estava acontecendo. Experiências assim é que são
fantásticas. Eu sei que essas idéias surgem como reflexo do tempo do Laboratório,
dessas coisas que eu aprendi, porque o único lugar que eu lembro que eu aprendi a
trabalhar com isso, assim como a puxar tudo para a realidade, foi no Laboratório. A
gente trabalhava com jogos que, além de serem matemáticos, muitos ainda eram
educativos. Trabalhava-se com problematização a partir de dados da realidade... Mas
da realidade dos alunos, e não da "minha" realidade. Antes de cursar a disciplina de
Metodologia e de fazer parte do Laboratório, eu nunca tinha participado de nada que
envolvesse a problematização assim como fazíamos. Então eu venho puxando,
puxando, puxando desde lá. O que eu percebo nesse modo de trabalhar, e até certo
ponto me instiga, é que quando eu preciso dar aulas puramente teóricas, ou de
exercícios - porque isso é necessário - os alunos não reclamam. É como se eu
conseguisse "puxá-los para o nosso lado". Parece que eles percebem que há hora para
tudo e que isto é necessário. Claro, falta muita coisa ainda, eu estou muito longe de ser
o que penso ser uma boa professora, pois, às vezes, eu fico muito triste porque vejo
que não consigo atingir totalmente os objetivos. Mas só o fato de ver que, ao ensinar
assim, o rendimento é cem por cento maior do que quando unicamente se passa o
conteúdo, é uma coisa fantástica. Isto acontece com os pequenos com quem eu
trabalho pela manhã e com os alunos de quinze até sessenta e cinco anos que eu
tenho no Supletivo à noite. Tenho um senhor na sala de sexta série que tem sessenta e
cinco anos. É fantástico ver como eles também descobrem as coisas.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 127
Eu uso recursos nas minhas aulas, mas eu sempre procuro fazer com que eles
construam os conceitos. Eu nunca vou passando respostas para eles. Nunca, nunca
mesmo! Eu sempre vou perguntando: e aí, o que foi? E agora? O que a gente
conseguiu? Até que de repente eles formam o conceito da maneira deles e, se tiver que
fazer algum ajuste nas palavras deles, eu faço. Se não precisa de ajuste nenhum, se
não tem nada errado, eu não vou aplicar uma linguagem formal, aquela linguagem bem
formal, categórica. Eu vou formando o conceito a partir das conclusões deles. É bem
verdade que, às vezes, sai cada absurdo, cada coisa impensável... mas eu lido com
isso. Faz parte.
Um dos grandes desafios que enfrentei em minha passagem pelo Laboratório foi
a participação com a Regina Kaspreck e a Ettiène no Projeto de Doutoramento da
Professora Vilma Barra95. Era sobre Educação Ambiental e envolvia todas as disciplinas
da quarta série. Na época, o Laboratório já tinha a linha de ação da Matemática
Ambiental bem consolidada.96 Mas no projeto da Vilma era diferente, porque o foco era
Ciências. Foi algo inédito e pioneiro. Era um grupo formado por vários profissionais que,
sob a orientação geral da Professora Vilma, tinha que desenvolver material para ser
aplicado no Município de Pinhais (PR). Nós tínhamos que criar em Ciências a
matemática para a sala de aula com as crianças de quarta série. Aqui, a Matemática
não era a protagonista. Na verdade, não existia protagonismo, porque a grande questão
era a educação ambiental sendo trabalhada em todas as disciplinas. Era um modo
diferente de ver e criar em matemática. Não sabíamos fazer isto.
Escrevíamos o material para as professoras da escola, e elas trabalhavam com
as crianças da maneira que achavam melhor. A proposta era que as professoras da
escola discutissem nossas atividades em aulas de História, Geografia e Ciências. Eu
acho que os alunos aprendiam matemática sem perceber que aquilo era Matemática,
porque trabalhavam com informações direcionadas a cosncientização ambiental que
continham dados numéricos e faziam operações sem perceber que o objetivo era a
matemática.
95
Informações sobre a Tese de Doutoramento citada no Capítulo 2.
96
No Laboratório há várias linhas de ação: Matemática Ambiental, Modelagem Matemática, Jogos,
Matemática nas Profissões. Embora houvesse integração com outras áreas/ disciplinas, todas elas
tinham como foco central a Matemática Escolar.
128 Ettiène Cordeiro Guérios
Foi muito difícil de conceber esse trabalho. Mas muito, muito, difícil. Não
tínhamos noção de como fazer. Tivemos medo de desenvolver algo fora do que tinha
que ser feito. Na verdade, nem nós, nem nossa coordenadora de matemática, nem os
professores envolvidos com as outras disciplinas, nem a professora Vilma, nem os
profissionais de órgãos estaduais ligados ao meio ambiente que participavam do grupo,
sabiam exatamente o que tinha que ser feito. Em matemática, ninguém de nós sabia
sequer por onde começar. Não tinha onde pesquisar, porque nunca se tinha ouvido
falar de um trabalho desse jeito. Claro, existem trabalhos no Brasil que envolvem
matemática ambiental, tínhamos muitos deles no Laboratório. Mas, dentro da
proposição da tese de doutorado da Professora Vilma, nada havia. Começávamos a
criar as atividades e, de repente, achávamos que aquilo não era adequado para a faixa
etária das crianças, que elas não iriam poder fazer, que não iria surtir efeito nenhum,
que não iria adiantar nada... eu e a Regina olhávamos uma para a outra e dizíamos:
isso aqui não vai dar certo, vamos desistir! Só não desistimos por causa do “empurrão”
que levávamos o tempo todo de nossa orientadora: vão, façam! É por aqui... não é por
aqui; vamos tentar assim... daí íamos discutindo com ela o que fazíamos, e ela: não,
não é bem isso... não vai provocar o que queremos, vamos redefinir o que queremos
porque agora até eu me perdi... as crianças vão dispersar da matemática... agora ficou
só matemática, desvinculou do contexto... vamos retomar o que tínhamos feito que
estava melhor... Mas não era aquele comentário do tipo está totalmente errado! Na
verdade, nada estava errado, apenas não encontrávamos o caminho certo. Tínhamos
medo de que nada desse certo, justamente porque o foco não era a Matemática. Era
desesperador. Era realmente desesperador! Além de trabalhar a matemática em
Ciências, ainda tínhamos que despertar nas crianças o senso crítico... Foi muito difícil,
era um vai e volta, não está bom, está muito complicado, não está compreensível, volta
para cá, ajusta daqui, arruma dali, vai para as professoras verem se está bom, se não
está bom volta; era desgastante, porque só esse vai e volta, ajeita daqui, vê dali, pode
isso, não pode aquilo, como que vamos transformar... mas quando começamos a ver o
trabalho tomar forma, a desenvolver as primeiras páginas com ares de definitivas...
quando as professoras nos informavam que estava sendo ótimo, estava surtindo efeitos
não só em matemática e nem só nas turmas em que estava sendo aplicado, mas dentro
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 129
Normalmente, o que o professor tem tendência a fazer? O aluno diz que não entendeu
e o que faz o professor? Explica de novo, exatamente do mesmo jeito. Ele não disse
que não ouviu, ele disse que não entendeu : ressoa até hoje em minha cabeça. Por isto
é que insisto que aplico, e aplico muito, o que vivemos no Laboratório. Se não fosse a
base do Laboratório, se não fosse a base dos jogos, se não fosse a experiência com a
construção de recursos didáticos, se não fosse o projeto da Educação Matemática
Ambiental, eu teria muito menos para acrescentar do que eu tenho agora.
O Laboratório é um tempo da vida da gente em procuramos aprimorar, estáamos
sempre buscando, porque não tem como parar, não tem porque dizer eu me formei, já
aprendi tudo o que eu tinha que aprender, agora não preciso fazer mais nada... Muito
pelo contrário. Aí é que eu percebi que temos que sempre buscar, buscar, buscar,
estudar, estudar, estudar... porque tudo muda, tudo é muito dinâmico... não fica parado.
As coisas não ficam paradas. E quando nos formamos, como é o meu caso, já não
ficamos mais no Laboratório. Podemos permanecer vinculados como profissionais das
escolas, mas não é mesma coisa do que quando somos alunos e, muito mais, quando
somos bolsistas, como foi o meu caso. Eu lembro com muito entusiasmo e saudade
dessa época.
Como dizia uma amiga minha, às vezes eu tenho “memória de elefante”. Mas
não é bem assim, eu não lembro de tudo, lembro-me das coisas que realmente me
chamam a atenção e que têm a me acrescentar.Tudo o que eu acho que tem a me
acrescentar, que vai me ajudar, eu guardo. O que acho que não vou aproveitar, eu já
esqueço no dia seguinte. Com certeza o que lembro hoje daquilo que já vivi eu nunca
vou esquecer. Se eu for falar sobre minha experiência profissional quando estiver com
oitenta anos, eu vou lembrar das mesmas coisas, como por exemplo, a afirmação de
que eu não disse que eu não ouvi, eu disse que eu não entendi.
Agora vou tentar o Mestrado em Educação porque eu não posso parar por aqui,
tem muitas coisas que eu quero pesquisar. Como tivemos caminhos abertos no
Laboratório para trabalhar, o que eu vou pesquisar é a limitação, ou a interferência da
busca de uma só resposta certa na formação intelectual do indivíduo. A maioria dos
professores tem dificuldades com a diversidade de respostas, desde a época em que
eram alunos E o que acontece? Os professores limitam os alunos a pensar de uma
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 131
maneira só, ou induzem o caminho sem abrir espaço para o pensamento deles. Quando
o aluno propõe uma solução diferente da prevista, se o professor ficar em dúvida e não
souber se aquilo vai dar certo - porque ele está acostumado a trabalhar em um caminho
só - pronto! Ele não permite que o aluno tente caminhos próprios. Por que os
professores consideram errada uma fração quando não está simplificada? Ela não está
errada. Se ela é uma fração equivalente àquela fração primeira, então ela é a mesma
fração. Eu questiono com os alunos: você vai ganhar errado se você fizer isso na
prova? De maneira nenhuma! Por que trabalho com vocês a simplificação de frações?
Porque em qualquer lugar, em qualquer conceito formal de Matemática você vai
enxergá-la simplificada. Aí você resolve seu exercício e não sabe que tem que
simplificar a fração. O que você vai ver: “Ah, errei o exercício!”. Mas não errou só
porque aquela resposta que você achou não tem ali. Você não errou, você só não
simplificou a fração. A resposta não está errada, ela está certa. Você só não a deixou
irredutível. Se perguntar para muitos professores, o que eles vão dizer? Que está
errado! E consideram errado na prova. Essa é a minha preocupação, a busca de uma
única resposta certa. Não tem a única resposta certa para tudo, e é isso que eu quero
trabalhar na minha dissertação de Mestrado: achar um caminho que possa abrir a
minha cabeça e a cabeça dos outros professores para abrir espaço para o aluno
pensar. Do contrário, em vez da gente trabalhar seres pensantes a gente vai trabalhar
máquinas copiadoras e reprodutoras que, com certeza, vão fazer a mesma coisa
depois.
Se hoje, com a experiência que tive no Laboratório, mais a minha experiência
profissional, eu pudesse fazer sugestões para o Curso de Licenciatura, sugeriria que os
licenciandos fossem para a sala de aula, e que tivesse mais tempo no currículo para as
disciplinas de Metodologia e de Prática de Ensino, porque se com tão pouco tempo
conseguimos captar tanta coisa diferente, quanta coisa poderíamos ver com muito mais
tempo e oportunidade de trabalhar? Poderíamos explorar mais o conteúdo escolar
associado à vivência dos alunos. Não quero rejeitar conteúdos específicos de
Matemática. Digo apenas que é preciso que tenham sentido. Eu não estou dizendo que
Análise Matemática, por exemplo, não é fundamental. É fundamental. Só que se formos
colocar lado a lado a Análise e a Metodologia em relação à preparação do professor
132 Ettiène Cordeiro Guérios
para a sala de aula, vamos concluir que não adianta ter todo o conteúdo de análise se
com ele o professor não consegue ajudar os alunos na aprendizagem. Eu acho que
deveríamos poder trabalhar mais com metodologia durante o curso, e, não sei se como
disciplina ou de outra forma, ter vivência no Laboratório, mas nos moldes em que nós
tivemos esta oportunidade.
Para mim esse Laboratório foi um espaço onde podíamos construir, podíamos
colocar as dúvidas ali, sem medo de não poder reverter um eventual erro. Foi um
espaço em que podíamos ver até que ponto o que queríamos fazer era ou não era
viável, onde ia ajudar, se ia confundir em alguma coisa ou não ia... foi um espaço para
trocar idéias, para construir propostas, para construir recursos, era tudo o que
precisávamos para sair com idéias dali e dizer: se eu fizer assim, eu tenho noventa e
oito por cento de chance de acertar. Eu diria que o nosso Laboratório não é como um
laboratório de Química, onde se fazem misturas nas devidas porcentagens com os
produtos químicos disponíveis para encontrar uma solução. Para mim é exatamente o
contrário, porque lembro, vagamente, que tinha pouca coisa construída, que fosse para
o professor ir lá e usar. A prioridade do Laboratório sempre foi a construção de idéias,
de conceitos, de propostas. Nunca foi um laboratório de experimentos elaborados. Você
está criando, está querendo fazer alguma coisa para experimentar, mas vai discutir
aquilo que você criou. Tudo o que queríamos, partíamos para a construção daquilo. Se
tinha alguma coisa pronta, estava bem escondido. Fosse exercício, fosse recurso físico,
fosse atividade para o projeto da professora Vilma... era tudo construído. Por quê?
Porque não se pegava a idéia do colega, ao contrário, trocavam-se idéias, discutia-se,
via-se o que era e o que não era viável, mas nunca se pegava a idéia pronta do colega,
ele fez assim então eu também vou fazer. Tínhamos oportunidade de desenvolver
conforme a necessidade que tivéssemos. Tem um material, construa, veja, faça, monte
sólidos, pegue canudinhos, faça da sua maneira, veja como ensinar aresta, ensinar
vértice desta maneira não dá certo, vá lá, construa... Eu lembro que era tudo assim,
dessa maneira: construir, construir, construir! E construir explicando, discutindo,
mostrando...Talvez seja por isso que a minha maneira de trabalhar em sala de aula é
nunca entregando a resposta certa e sempre dizendo: vamos construir o conceito.
Vamos fazer isso, vamos fazer aquilo...
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 133
Eu quero, pelo menos, tentar ajudar a amenizar esse mito da única resposta
certa. E como que o aluno vai poder trabalhar nesse sentido? Ele vai poder trabalhar a
partir do momento em que ele souber que ele pode construir, que ele tem certeza que
pode tentar, ele tem a noção de que ele não faz o exercício por fazer, só porque ele
quer se livrar do exercício. Aquilo tem que realmente fazer sentido para ele, é uma
construção de conceito. Então, ele não vai se preocupar, porque se ele tem certeza do
que ele está construindo, mesmo que ele chegue a uma resposta não esperada, ele
pode tirar dúvida do porquê ficou desse jeito e não ficou daquele, mas ele não vai
chegar em um momento e dizer eu fiz e está tudo errado.
É também importante ele não “jogar no escuro” ao fazer exercícios: vou fazer o
exercício para me livrar disso. Esta é uma preocupação minha, a do aluno “fazer o
exercício”, do fazer pelo fazer. Em uma sala de aula, você tem alunos de todo tipo,
alunos que fazem porque apenas porque tem que fazer os exercícios, aqueles que
acham realmente fantástico e aqueles que ficam na dúvida. Então o objetivo é puxar
todo mundo para que construam os conceitos e possam trabalhar na certeza de que
não tem só uma resposta certa. Isso é muito importante. Mais do que isso, é embutir
essa idéia na cabeça dos professores, porque mudar só a cabeça de uma turma eu vou
mudar um ano, mas e daí? Quando ele mudar de turma de novo, tudo o que eu faço
aqui esse ano quem me suceder também vai fazer? Então se houver uma equipe e a
equipe trabalhar assim como nós trabalhamos lá no Laboratório, aí será interessante e
produtivo porque todos vão trabalhar com os mesmos princípios. A experiência com a
Mostra Disciplinar indica que isso é possível.
A questão é a seguinte: a matemática é a mesma, é universal, mas a maneira de
ensinar e de aprender não é a mesma para todas as pessoas. Os caminhos é que são
diferentes. Aqui é que está o grande mistério!
134 Ettiène Cordeiro Guérios
construção de uma maquete, que ficou muito bonita. Apesar de ter dado a maquete
feita pelos meus alunos para ficar exposta na Universidade, fiquei com ciúmes dela e a
pedi de volta.
Nessa época, eu participei do Projeto Vale Saber97, da Secretaria Estadual de
Educação do Paraná. Desenvolvi um projeto sobre jogos no ensino de Matemática,
para o qual solicitei que a Professora Ettiène fosse minha mentora. Nosso desafio foi o
de que os meus alunos criassem, ou seja, que eles inventassem os próprios jogos com
os conteúdos que eu tinha que ensinar, o que é bem mais complicado do que usar
jogos prontos. Acreditávamos que eles conseguiriam fazer isto, e mais, que isto
mudaria os rumos da minha sala de aula. A participação de meus alunos no projeto de
jogos foi maravilhosa. Tive cem por cento de aprovação nessa época. Eles estavam
sempre dispostos a participar, a inventar, a criar, a jogar, a convidar as pessoas a jogar
e a entender... Foi um trabalho de equipe: eu, meus alunos e minha mentora. Com a
orientação que ia tendo, eu sempre procurava descobrir como meu aluno se sentia. O
resultado foi tão bom, e eu fiquei tão entusiasmada que no ano seguinte, quando fiz
minha Pós-graduação, a minha monografia foi sobre "O lúdico e a Construção da
Aritmética para Quinta e Sexta Séries". Todo este processo me ajudou bastante. Tenho
que agradecer pela oportunidade de ter passado por tudo isto... cresci bastante.
Em algumas escolas tive, e tenho, dificuldades porque alguns colegas não
conseguem entender o valor do jogo como um recurso didático dentro da sala de aula.
Às vezes, pais de alunos vão reclamar, porque acham que é um desperdício de tempo
o filho jogar na escola, que é brincadeira... ainda mais na aula de Matemática!
Eu consegui muitos resultados, não só em relação à aprendizagem mas,
também, em relação à disciplina escolar. A conduta mudou porque mexeu com a auto-
estima deles: eles se sentiam "poderosos", porque estavam criando. Isto provocou um
modo de relacionamento entre eles que facilitou a disciplina. Às vezes, eu levava alguns
jogos prontos como estímulo e os alunos criavam outros. O que acontecia? Ao criarem
e ao jogarem com os jogos que criavam, os alunos trabalhavam os conceitos
97
Projeto da Secretaria Estadual de Educação do Paraná, que visava ao aprimoramento do professor,
em que este desenvolvia atividades fora de seu horário de trabalho, para o que recebia o equivalente a
um salário mínimo por um período de um ano. Cada professor tinha um "mentor" ou "tutor" de uma
Instituição de Ensino Superior.
136 Ettiène Cordeiro Guérios
porque eles só queriam criar, criar, criar... e o tempo não dava. Eles queriam criar não
só em Matemática, mas em outras disciplinas também. Começou a virar uma bola de
neve. Eles queriam criar em tudo. Tive que segurá-los.
Em uma das escolas em que atualmente trabalho tentei desenvolver o mesmo
processo, mas fui um pouco podada porque a escola cobra que tem que ensinar o
conteúdo do livro todo, esquecendo-se que, às vezes, tem conteúdos no livro que não
são relevantes, e outros que estão implícitos nos próprios jogos. Foi uma poda sutil,
porque não disseram “não faça". Apenas deixaram claro que pode-se fazer tudo o que
quiser, mas do jeito deles.
Eu tenho, às vezes, surpresas com os meus alunos, e gosto de comentar com
eles quando eles me surpreendem. Por exemplo, numa questão de prova apareceu o
seguinte: quarenta por cento de um determinado total dava um valor, e eu queria saber
quanto era o total. Um aluno inovou, apresentou um caminho diferente do previsto para
a solução. Na verdade, não sei bem se ele inovou, ou se me surpreendeu com a
maneira como pensou. Assim ele pensou em questões de uma prova e raciocinou: 40%
era oito. Ele pensou: 40% dá oito, e 20% dá quatro, pois 20% é metade de 40% e dá
quatro. 40% mais 40% mais 20% dá 100%. Então ele fez o cálculo: oito mais oito é
igual a dezesseis, mais quatro é igual a vinte. São vinte questões que tem na prova! O
aluno pensou diferente, olhou a matemática com outros olhos, e isto facilitou a vida
dele. Realmente a matemática é fácil. Muitas vezes nós, professores, a complicamos.
Nós somos um processo complicador na Matemática quando tentamos explicar do jeito
que está no livro. O professor tem que explicar do seu jeito, na linguagem do aluno e
depois chegar à linguagem matemática. Você tem que começar falando na linguagem
do dia a dia para que ele "pegue" a matemática. Eu gosto de saber como o meu aluno
pensa.
Com os alunos descobri coisas novas. No ano passado, aprendi uma coisa nova
em relação a noção de Mínimo Múltiplo Comum. Uma aluna me disse: professora, mas
eu faço diferente. Perguntei-lhe se era pelo processo das frações equivalentes. Ela me
explicou que não, que era de outro jeito, de um jeito diferente. “E qual é seu jeito
diferente?” Eu pego o maior denominador - disse ela- eu vejo se os outros cabem
dentro dele ou se ele é múltiplo desses outros. Se não cabe, multiplico por dois e vejo
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 139
se os outros cabem nesse multiplicado por dois. Daí eu vejo por três, se o dois não deu,
vou para o três. Daí eu vejo por três, se o dois não deu, o três não deu, vou para o
cinco, e vou multiplicando, multiplicando, até que eu acho o valor e ele dá certo. Fui
testar e dá certo! Dá certo! Eu chego à conclusão que a matemática é fácil, e nós,
professores, é que a complicamos. Nós ficamos com "firulas", "coisinhas" da
Matemática que para meu aluno não interessam. Ele quer saber a matemática para se
virar amanhã. Ele não quer saber das firulas da Matemática. E, de repente, o caminho
dele é tão fácil e eu complico a vida dele achando do meu jeito o Mínimo Múltiplo
Comum, trabalhando algoritmo de Euclides para o Máximo Divisor Comum. Ninguém
usa o Algoritmo de Euclides para o MDC. É só ir simplificando, simplificando... para quê
usar o algoritmo de Euclides? Posso até informar que existe, mas não vou cobrar isto.
Outra experiência que tive foi - quando estava desenvolvendo as atividades no
Laboratório - a de eu ser a autora e redatora de minhas próprias idéias. Escrevi um
artigo sobre meu trabalho. Isto foi idéia da minha mentora, que me pressionou, me
enlouqueceu de tanto cobrar para eu fazer. Eu tinha receio e dificuldades para
organizar as idéias. Foi um exercício enorme. Foi um parto. Eu escrevia, entregava para
ela, ela me devolvia dizendo: pode ficar melhor, estruture isto, isto e aquilo... e para tal
dia! E cobrava... chegava no dia combinado, lá estava ela cobrando... e eu lutava para
colocar as idéias em ordem. E enquanto tentava escrever, pensava sobre o que tinha
feito e sobre o que estava tentando escrever. Pensava muito. Quando encontrava com
ela para discutir o que tinha escrito, discutíamos o que eu tinha pensado a respeito do
que tinha feito. Acabava sempre pensando muito sobre o que tinha escrito que tinha
feito. Mas, com muito esforço, eu escrevi, e foi publicado. Foi muito bom. O único
problema foi lidar com o ciúme de muita gente. Sofri até perseguição em uma das
escolas em que trabalhava quando meu artigo foi publicado.
Eu fui mudando muito durante meus anos de profissão. A minha vivência no
projeto de modelagem do Laboratório mudou a minha maneira de observar o mundo.
Foi uma das experiências mais marcantes que tive em minha vida. Eu adquiri um outro
olhar... hoje, vejo a Matemática com olhos diferentes, e adquiri este olhar vivenciando,
realizando projetos, refletindo, dialogando, interagindo. Um dos objetivos do projeto de
geometria era o de fazer com que os alunos olhassem ao redor com olhos especiais,
140 Ettiène Cordeiro Guérios
disso! ... Comecei a ver, de fato, uma janela... como ela é desenhada, e aí já percebia o
vidro... onde podia trabalhar ângulos... Eu estou vendo paralelas cortadas por uma
transversal, que maravilha! Posso usar na sala de aula! Posso usar na prova! Eu me vi,
de repente, maluca ao observar tudo isto! Foi havendo uma revolução em mim em
forma de redemoinho, comigo e meus alunos dentro desse redemoinho.
Voltando ao trabalho com geometria, eu vi coisas muito interessantes
acontecendo durante a aplicação do projeto do Laboratório na minha quinta série. Vi
meus alunos medindo, e de repente, no Jardim Botânico, eles perceberem que as
medidas do canteiro que estavam medindo eram iguais às medidas do canteiro do outro
lado... apesar de estarem em lados diferentes... pois estavam descobrindo sobre
simetria... e por conta disso, acabaram "vendo" o eixo de simetria, sem terem idéia
prévia sobre isso. A idéia despertou lá, e aí eu a explorei em sala de aula. Nós
filmamos, tiramos fotos e os alunos também tiraram fotos. Fizemos até um piquenique,
mas não foi só um piquenique. Foi um grupinho medindo para cá, outro medindo para
lá, e “tem que bater”, “não bateu, não deu certo”... O que aconteceu? Vocês não
mediram certo? O que houve? Algumas vezes surgiam situações não previstas, e
tínhamos que dar conta delas. Nossa! Quantas perguntas eles faziam para as quais não
tínhamos respostas... e quantas situações aconteciam nas aulas externas, que não
haviam sido previstas. Até o pessoal do Laboratório que assistia às aulas não sabia o
que fazer em algumas circunstâncias. Quando voltávamos para a sala de aula, os
alunos se envolviam muito, porque nós usávamos as observações e os dados deles
para desenvolver o conteúdo de geometria. As crianças extrapolaram o que deveriam
fazer. Elas tiveram interesse até em pesquisar e foram, por conta própria, até o
IPPUC98 obter as medidas corretas e conseguir a planta baixa oficial do local para
comparar com os dados que eles coletaram: olhem, então as medidas que coletamos
estão próximas das medidas oficiais! Ocorriam diferenças de medidas na hora de medir,
porque, às vezes, eles precisavam de uma trena maior, ou de algum instrumento de
medida mais apropriado... Existem essas diferenças, mas a Física explica essa
diferença de medição. E eu expliquei isto para eles.
98
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba.
142 Ettiène Cordeiro Guérios
99
Tratava-se de projetos de criação de possibilidades metodológicas inovadoras em Matemática, as
quais eram gestadas e desenvolvidas pelos participantes do Laboratório, em um processo mútuo que
envolvia criação, aplicação experimental com crianças das escolas, discussão, reelaboração, nova
aplicação com novos grupos, e assim sucessivamente. O período de cada aplicação variava de poucos
meses a um ano, dependendo de cada projeto. As turmas para aplicação eram livres, abertas à
comunidade, no contra-turno escolar. Não havia vínculo formal da Universidade com as escolas.
144 Ettiène Cordeiro Guérios
100
O tempo de permanência no Laboratório e o número de alunos que participavam como bolsista ou
voluntário eram significativamente maior nos cursos diurnos do que nos noturnos, devido à ausência de
disponibilidade de tempo dos alunos desses últimos.
146 Ettiène Cordeiro Guérios
calcule a idade de cada um”. É diferente: “o sanduíche da loja tal”... Era algo real para
os alunos, eles viam que a Matemática de sala de aula é a matemática da vida deles.
Certa noite, eles fizeram uma atividade de trigonometria, em que usaram
instrumentos de medida. Os estagiários queriam que os meus alunos aceitassem que
Tgα=h/d, e mais, que aceitassem a importância deste tipo de conhecimento. Com esta
determinação, desenvolveram uma atividade em sala de aula, muito interessante e com
um efeito bastante duradouro. Eu mesmo pude perceber esse efeito quando utilizei
esse conhecimento em outras ocasiões.
Determinaram um ponto "∙" no chão da sala, e a distância deste ponto até um
aluno. Utilizando um barbante, visualizaram o ângulo formado entre este ponto e a
altura do aluno. Com o transferidor, mediram este ângulo, e procuraram na tabela
trigonométrica o valor de sua tangente. Assim, tendo a medida da distância "d" e a
tangente do ângulo formado, determinaram a altura do menino. Na seqüência, fiaziam
variar o ângulo e a distância, e o que obtinham? A altura do aluno. Fizeram então esta
atividade com vários alunos, verificando a relação trigonométrica que estudavam.
Obviamente, surgiu o questionamento por parte dos alunos: se uma pessoa sabe a
medida de sua altura, qual é o interesse em saber uma relação trigonométrica para
determiná-la? Ou, ainda, por que medir a altura de algo do qual se sabe a altura? Então
aconteceu o grande momento! Os estagiários lhes disseram: por que conhecer estas
relações matemáticas? Eu sei que vocês conhecem a medida de suas alturas. Sugiro
então, que a próxima atividade seja vocês medirem a altura de um prédio. Então eles
repetiram o processo com vários alunos e concluíram: dá certo com os alunos, dá certo
também com alguma coisa mais alta que não pode ser medida manualmente; pode-se
obter a altura de algo impossível de ser medido manualmente, tendo-se outros dados.
O que me chamou a atenção foi a preocupação com que os estagiários trataram a
questão. Era uma atividade que poderiam ter feito do modo tradicional, desenhando no
quadro negro o que queriam que os alunos aprendessem... mas eles estavam
incomodados com o questionamento dos alunos.
Como já disse, quando saí da faculdade, eu tinha aquele jeito tradicional de
trabalhar. Ao assumir as salas de aula, percebi que a coisa não era bem assim. Você
vai evoluindo, vai vendo métodos novos, vai experimentando outras possibilidades e,
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 147
com isso, a tendência é você mudar, porque a aula tradicional - quando somos alunos,
por exemplo - nem a gente que é professor agüenta!
Em 1997, depois de treze anos de formado, eu voltei para a Universidade para
fazer em um curso de Especialização e, ao assistir às aulas, parecia que eu tinha
regredido no tempo. Mesmo nas aulas de especialização, a postura dos professores e o
modo de organização das disciplinas era muito tradicional. É bem verdade que o nível
era outro, era nível de Pós-graduação, mas eu não vi nada de diferente de treze anos
atrás na postura dos professores. Alguma coisa tinha que ter mudado naqueles
professores da especialização. Eu esperava isso, pois me parecia evidente que eles
teriam evoluído. Eu já havia feito outros cursos e havia percebido mudanças em relação
ao meu tempo de graduação. Por isso pensei que teria aulas interessantes na Pós-
graduação, treze anos depois. Não foi o que ocorreu.
Antes disso, eu havia feito um Curso de Extensão no Laboratório sobre
Tendências em Educação Matemática. Terminado o curso, tivemos que elaborar um
projeto de ensino para usar em nossas salas de aula. Eu, a Professora Olga - que
trabalhava no Colégio Estadual Zacarias e depois permaneceu no Núcleo da Secretaria
Estadual de Educação - e uma outra professora desenvolvemos um material para o
ensino dos conteúdos que envolvem frações. Trabalhamos no Laboratório durante um
ano inteiro elaborando esse material. Nós queríamos produzir algo que tivesse
fundamento e objetivo, que estivesse em conformidade com os princípios do Curso, que
fosse original, e não que fosse só original e diferenciado, mas que pudesse realmente
ser aplicado em nossas salas de aula. Esta era a proposta do Laboratório e ao mesmo
tempo o nosso desejo. Usei este material muitas vezes em sala de aula.
Alguns anos depois, usando o Power Point, eu informatizei esse material e o
disponibilizei na Internet para os alunos do Colégio Santa Maria. Está interessante,
diferente, mas foram mantidas as mesmas atividades que os alunos faziam antes. No
Santa Maria, desenvolvi outros projetos relativos à álgebra geométrica utilizando este
software, mas seguindo a mesma linha original de trabalho daquela época. Ficaram
bem interessantes também. Se bem que, se pensarmos bem, uma criança de quinta
série não deve ficar restrita ao uso da informática, porque ao lidar com recortes - por
exemplo, ao estar recortando um meio, um terço... - estará desenvolvendo outras áreas
148 Ettiène Cordeiro Guérios
que lhe são importantes, como a psicomotricidade. O fato é que ao ter alguns anos
depois informatizado o material, criei mais um modo de acesso a uma organização
metodológica que havia criado para ensinar frações.
Voltando ao material desenvolvido naquela época, as crianças fizeram recortes,
colagens, e acondicionaram esse material em uma caixinha. Então, durante a aula, se
eu ia trabalhar com multiplicação, eles puxavam suas caixinhas e demonstravam - não,
não demonstravam somente - na verdade, eles visualizavam e construíam os conceitos
da multiplicação, da divisão e a redução ao mesmo denominador. Eu tenho atualmente,
no período noturno, um aluno que estudou comigo naquela época, na quinta série. Ele
ficou muito tempo afastado dos estudos e quando ele retornou eu estava falando sobre
este conteúdo - só que dessa vez eu estava trabalhando no quadro - e ele falou:
professor, lembra que a gente fazia isso com fichinha, que a gente recortava, que a
gente colava? Isto permaneceu na lembrança dele. Na época, não me detive em
perceber se ele havia lembrado do conceito, ou das aulas, por serem diferentes. O que
sei é que ele entendeu certinho o que eu estava ensinando. Foi uma situação bastante
interessante para mim, porque ele poderia ter lembrado de um modo bem desanimador:
pô, vim aqui e encontrei esse mesmo professor, de novo! Mas ele lembrou de uma
maneira boa: professor, lembra do que a gente fazia...?” Há também uma aluna que,
depois de algum tempo, eu a reencontrei em sala de aula e comentei: pôxa, se fosse
naquela época em que tínhamos as fichinhas dava para mostrar o que estamos
trabalhando... Então, na aula seguinte, para minha surpresa, ela trouxe as fichas. Ela
havia guardado as fichas durante tanto tempo...isto me foi muito significativo e
estimulante.. Houve outros casos de alunos que, muito tempo depois, lembravam de
atividades e manifestavam suas lembranças de modo muito interessante.
Com aquele material eu cheguei a trabalhar, no colégio, com professoras de
primeira a quarta séries. Houve um projeto em uma das escolas em que trabalho
chamado “Salto para o Futuro”. A supervisora, que sabia que eu sempre procurava
fazer coisas diferentes, disse-me: Marcioney, você não quer vir trabalhar com o
pessoal, mostrar alguma coisa para elas? Eu nunca tinha passado por esta experiência.
Concordei. Ao desenvolver as atividades com as professoras, aconteceram fatos
interessantes. Uma delas falou para mim: professor, me explica mais uma vez a divisão
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 149
no material? Ela descobriu o conceito da divisão enquanto fazia a atividade. Quer dizer,
ela trabalhava os conceitos com os seus alunos mas não entendia o que estava
fazendo. Ela não sabia o conceito que ensinava e, quando manipulou o material que eu
estava usando, entendeu. Se ela não entendia... imagine os alunos dela.
Eu tenho bastante contato com professores da nossa área e percebo que o
número dos que fazem atividades diferenciadas das tradicionais, é ainda pequeno.
Mesmo na escola particular poucos o fazem. Faz tempo que trabalhamos com
atividades que criamos a partir das que desenvolvemos no Laboratório... se eu comecei
a trabalhar no Cristo Rei em 1991, imagine quantos anos já se passaram! E mesmo
depois de tantos anos, atividades que já fazíamos em 1991, hoje professores ainda não
fazem!
Lembro que foi criado no Laboratório um material como se fosse um livro.
Quando conheci esse material, ele ainda estava sendo produzido, estava escrito a mão,
inclusive. Desenvolvia conceitos matemáticos através de curiosidades. Eu ainda tenho
esse "livro" na minha casa. Certa vez, nós pedimos ao pessoal do Laboratório para
adotá-lo na escola. Os alunos fotocopiaram, encadernaram e nós o usávamos como
material didático no dia a dia. Esse material ficou na Escola e está lá até hoje. O
material também foi usado no Colégio Nossa Senhora de Fátima. As crianças o usavam
durante as aulas e nós o complementávamos à medida em que se fazia necessário.
Eles usaram demais esse material e não só durante as aulas de Matemática. Quando
faltava professor, em qualquer disciplina, a supervisora o pegava, levava para sala e os
alunos ficavam envolvidos fazendo as atividades. Aproveitava-se o tempo com os
alunos porque eles realmente ficavam entretidos com o material. Era uma oportunidade
de fazê-los estudar, desenvolver o raciocínio e também deles se manterem ocupados
enquanto faziam as atividades propostas no material.
É importante utilizar material concreto em sala de aula, mas seu uso é uma
questão de estratégia. Serve como material de apoio ao se poder lançar mão de algo
palpável - não necessariamente que ele pegue na mão para manipular - mas que ele
possa visualizar, como fotos por exemplo. O material concreto, para mim, não garante a
aprendizagem do aluno, porque uma demonstração não pode ser feita através de um
material concreto. O Teorema de Pitágoras, por exemplo, pode ser visualizado mas não
150 Ettiène Cordeiro Guérios
quê? Eu respondo categoricamente: às vezes você aprende porque você tem que
aprender. Por causa disso, quando vou começar uma turma nova, eu explico para eles:
“a Matemática é um conjunto de saber elaborado desde a época consciente da
humanidade, então tem coisas que você vai poder utilizar já, tem outras que você não
vai utilizar... tem coisas que são particulares da Matemática, e tem as que não são. Tem
coisas que você vai usar e tem coisas que você não vai.” O aluno às vezes busca suas
próprias respostas: isso eu posso usar aqui, isso não dá no momento... Esta busca tem
que ser como ato consciente e não como muitos que questionam os “por quê? para
que?" apenas porque virou modismo o aluno perguntar o porquê.
Eu diria que o Laboratório da Universidade é uma oportunidade de se mostrar o
que se faz, ou de pesquisar, ou de trocar experiências com alguém, seja com os
professores da Universidade ou com seus alunos, ou ainda com os demais professores
que por lá transitam. É uma oportunidade para exercitar a Matemática através da
criação de materiais, ou mesmo de assessoria. Se o professor fez alguma coisa nova e
quer trocar idéias com alguém, ele pode ir lá. Sempre me era dito: vai lá que discutimos
aquilo que você está fazendo. Se você quer fazer alguma coisa, você pode usar o
Laboratório. Eu fui. Algumas vezes eu fui. Conversei com a Joana,101 com a Ettiène,
com o Carlos Henrique e com a Maria Tereza102, que são professores da Universidade,
com professores de outras escolas, com os bolsistas, com alunos das licenciaturas.
Com a Joana conversava sobre a questão da fundamentação pedagógica, não
matemática, e ela me orientava: veja isso, veja aquilo... eu não me lembro exatamente
os termos e as idéias, mas ela me passou muitas informações sobre fundamentação
pedagógica. Ela tinha muita experiência. Eu ia buscar o que ela dizia. Sempre. E
sempre tinha fundamento. Ela nunca deixava uma idéia vaga... Ela dizia: Marcioney, é
assim, assim, assim, por causa disso, disso e disso... não quero interferir na sua ação,
mas veja isso... Ela não dizia: Não faça! Mas ela dizia assim: veja esse outro lado... às
vezes cabia bem para mim, às vezes não... mas também precisamos experimentar as
101
Joana Romanowski era, na época, membro permanente do Laboratório. Pedagoga de formação,
trabalhava com formação de professores e atuava nos cursos de Pedagogia e Licenciaturas, inclusive na
de Matemática.
102
Carlos Henrique dos Santos, professor do Departamento de Matemática e Maria Tereza Soares
professora do Departamento de Planejamento e Administração Escolar.
152 Ettiène Cordeiro Guérios
coisas. Eu gosto demais de conversar com a professora Joana; ela é muito inteligente e
sensata nas coisas que diz.
Teve um ano em que houve uma mostra de trabalhos de Matemática feitos pelos
alunos do Curso de Pedagogia. Alguns professores de escolas da comunidade foram
convidados para ver e avaliar as atividades. Eu fui. Os alunos mostravam o material que
elas produziram para nós e para os alunos do curso de Matemática. Nós
comentávamos com eles. Havia painéis, materiais didáticos, e algumas oficinas que
eles ministraram. Foi muito interessante o material que os alunos produziram e também
foi interessante observar as trocas entre os alunos do curso de Pedagogia ao discutir
matemática com os da Matemática.
Eu tive uma convivência múltipla com o pessoal do Laboratório. Na parte de
recursos didáticos, na de criação de propostas inovadoras por intermédio dos meus
alunos, até nas atividades experimentais em campo eu cheguei a ir. Se alguém
dissesse: “vai ter um projeto do Laboratório...” lá estava eu enviando meus alunos das
escolas. Eles participaram dos projetos de Matemática Ambiental, de Modelagem, de
Jogos, de Matemática nas Profissões, nas atividades didáticas na oficina... Acho que
não teve uma vez que eu tenha deixado de enviar alunos.
Eu procuro me aprimorar e me modifico sempre. Nem sempre sei dizer,
exatamente, de onde vem o que eu faço. O que acontece é que acabamos vendo uma
coisa aqui, outra ali... às vezes estou trabalhando em sala de aula e percebo que os
alunos estão reagindo àquilo que estou ensinado. Cada um trabalha do seu jeito! De
repente aparece uma dúvida, e eu penso: “pôxa, eu já vi isso de uma maneira
diferente”. Então posso usar uma dessas estratégias para que o aluno assimile de
maneira mais satisfatória o conteúdo. Eu não me lembro exatamente quais foram as
atividades que fiz aqui ou ali, mas, às vezes eu uso algo que nem sei de onde veio, pois
são tantas as coisas que se já vi... aprende-se também a buscar. Tem-se um primeiro
impulso a buscar o que já se fez, mas não é possível ficar a vida inteira dependendo do
que já se fez. Então começamos a buscar caminhos alternativos. Com as atividades do
Laboratório buscam-se caminhos alternativos e aprende-se a aprender. Aprender a
aprender interfere na prática docente.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 153
para utilizar em sala de aula, ou então estudar o que já existe lá. Estaria associando
Prática de Ensino com o Laboratório de Ensino e Aprendizagem. O Laboratório seria o
espaço de discussão da prática. Se o acadêmico gostar, ele fica, e se não gostar, sai
logo, não perdendo tempo da vida dele. Se gostar, precisa de um local adequado, que
ofereça possibilidades dele criar, de discutir. Seria assim: eu sou um acadêmico, fui
para a escola para conhecer a realidade. Aí eu vejo as dificuldades que os alunos têm;
vou para o Laboratório ver como é que meus colegas estão trabalhando ao mesmo
tempo em que os meus colegas vão ter oportunidade de trocar idéias sobre estratégias
comigo. Por exemplo, se não consegui explicar multiplicação, outros colegas me dizem
como fizeram. Aí eu analiso e se não estiver adequado para mim, eu posso fazer algo
diferente. O Laboratório pode cumprir uma função como esta: constituir-se em espaço
para a preparação e discussão da prática. Grande parte dos alunos tem saído das
universidades sem formação pedagógica para dar aula. Saem com uma quantidade
enorme de conhecimento de Matemática mas não vêm preparados para ensinar .
Como que eu vou ensinar “isso” ou “aquilo” para os alunos? Eu sei fazer
operações na “base cinco”, mas como que eu vou ensinar isso para alguém? Essa eu
acho que é a grande questão. Como que eu vou passar para os alunos um conceito?
Eu sei o que é uma “integral”, eu sei o que é uma “derivada”. Mas como é que eu vou
ensinar isso para alguém? Como fazer com que alguém entenda isso e não esqueça
mais? Como fazer para que o aluno perceba a relação de conceitos matemáticos com
sua vida? Essas são questões importantes para mim como professor. Tenho um aluno
que um dia desses foi dividir mil e duzentos por dois e achou sessenta. Esqueceu de
dividir o último zero. Então eu falei para ele: nós estamos andando juntos na rua e
achamos mil e duzentos reais. Aí vamos dividir esse dinheiro em partes iguais: você fica
com sessenta e eu fico com o resto. Ele falou: não Marcioney, o certo é seiscentos para
cada um! Então eu falei: o que você fez aqui? Ele imediatamente respondeu: ah, eu me
enganei, eu esqueci de abaixar o zero! Isso mostra que ele não se apropriou daquele
conhecimento. Se ele tivesse se apropriado, pegaria tranqüilamente o mil e duzentos,
iria dividir por dois e achar a metade. Então se eu conseguir passar para alguém um
conceito e essa pessoa usar esse conceito em algum segmento da sua vida, eu vou
ficar feliz. E acho que essa é a função da Universidade, preparar os futuros professores
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 155
para mostrar isso para os alunos, ou seja, propiciar-lhes conhecimentos sobre como
ensinar os conteúdos de modo significativo. Hoje, com todos os anos que tenho de
formado, para mim, seria inadmissível que os alunos saíssem da universidade da
maneira como eu saí. Notam-se diferenças. Há melhoria.
Atualmente eu dou aula também numa instituição particular que possui uma
editora. Como eu tenho feito um trabalho diferente, a diretora da instituição me indicou
na editora para escrever apostilas para quinta e sexta séries. Eles me convidaram em
função do trabalho que eu estou fazendo lá. Um dia eles disseram: você está
trabalhando conosco há dois anos, o trabalho que você tem feito tem tido um efeito
diferente para os pais, e os alunos gostam daquilo que você está fazendo...Você quer
escrever o material? Eu nunca tinha feito isto na vida, então pedi para escrever sobre o
conteúdo de um bimestre e, se ficasse bom, continuaria. Aí eu fiz isso e eles pediram
para eu continuar. Esse material não é totalmente novo, ele já existia e eu reformulei.
Este relaciona Matemática com as outras áreas do conhecimento, além de desenvolver
todos os temas transversais dos PCNs. Nós temos uma diretriz de trabalho para todas
as disciplinas, e eu tento fazer convergir os princípios que desenvolvi durante minha
experiência profissional. Um exemplo é o que estou escrevendo sobre “Representação
por Extensão”, “Representação por Compreensão” e “Representação Gráfica”. Eu
inicio com textos que tratam de temas atuais, como o Mercosul, através do qual mostro
o “Diagrama de Venn” de uma forma diferente: é uma representação gráfica,
relacionado com o texto “Mercosul". Utilizando conhecimentos de Geografia, proponho
a compreensão da “relação de pertinência” aprofundando o texto: “O Brasil pertence
ao Mercosul?”. Por estar no contexto da Geografia, exercito uma “interpretação
cartesiana” com a ordem crescente da distância dos planetas em relação ao sol; os
alunos visualizam os planetas e os relacionam com a Matemática. Proponho atividades
de acordo com os propósitos dos PCNs quanto ao meio ambiente, apresentando um
texto sobre a reciclagem do lixo, em que é possível trabalhar com planilha e “relação
entre conjuntos”; retomo a questão gráfica relacionada à Geografia, assim como
retomo questões do meio ambiente para trabalhar “relações”. Como os PCNs dizem
que se tem que trabalhar com questões relacionadas a arte, retomo as “relações de
pertinência” - para o aluno entender bem o que é isto - por exemplo, se o templo de
156 Ettiène Cordeiro Guérios
Zeus pertence ao estilo dórico. Este modo de trabalhar provoca uma relação diferente
do aluno com as disciplinas, porque, de repente, o aluno está lendo o material didático
de Geografia e pensa: ...“Mas isso aqui tem em Ciências também!” Utilizo também
Literatura, com a “Quadrinha” do Drumond... "João que amava Teresa, que amava...
que não amava ninguém! “Que não amava ninguém”: então peço o conjunto das
pessoas que amavam. A Lili não amava ninguém. E temos o “conjunto vazio”! Para
desenvolver “operações com conjuntos”, relaciono a matemática com estilos
musicais, com elementos de uma orquestra, e foco a valorização da vida, retornando às
situações que envolvem meio ambiente. Para trabalhar com os “sistemas de
numeração”, cito o primeiro computador, os computadores de última geração, a
robótica. Entro com “desenho geométrico e geometria”, utilizando novamente
literatura, obras de arte e pintores famosos. Dizemos que a Geometria veio do rio Nilo,
não dizemos? Então utilizo textos e informações sobre este fato histórico. Mas tenho
também que desenvolver os conceitos que envolvem “números positivos e
negativos", e para isto utilizo elementos do cotidiano sobre reposição de coisas que o
aluno perdeu. Desenvolvo “potenciação” contando a história da mitologia grega através
de alguns fatos interessantes. Pergunto: Você já assistiu àquele filme do Hércules? Falo
do trabalho que ele tinha para cortar a cabeça da Hidra de Lerna... cada vez que ele
cortava uma cabeça nasciam duas... aí ele cortava outra e nasciam mais duas... e
desenvolvo “a potenciação” em cima disso. Estudar potenciação assim é diferente.
Para “relações e funções”, eu preparei uma questão sobre a época da ditadura. Para
elaborá-la, eu tive que ler o livro do Chico Buarque chamado “Fazenda Modelo”, onde
ele fala como naquela época, em 1966, usavam-se metáforas para denunciar as
arbitrariedades da ditadura militar. Então eu contei a história do Governo Jânio Quadros
e depois citei um trecho de um show do Osvaldo Montenegro onde ele fala um
pouquinho do livro, preparando com estas informações uma questão de “relações e
funções.”
Atualmente, estamos empenhados em fazer disso um trabalho interdisciplinar
visando a todas as disciplinas. Agora, para trabalhar com esse material, tem que
estudar muito, tem que ler, que ver vídeo, que estar atualizado para discutir com o
aluno, porque ele hoje em dia é muito mais esperto do que o aluno de antigamente...
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 157
No anfiteatro,
sob o céu de estrelas um concerto eu imagino
onde, num relance, o tempo alcance a glória
e o professor, o infinito.
4.1 PRELIMINARES
Vilma, Vera, Joceli, Tânia, Marcioney, Sonia... Seis vidas, cada qual um
indivíduo, um sujeito, uma pessoa... humana. E por serem humanos, disponibilizaram
facetas de sua existência como profissionais para que outros professores possam
compreender como fizeram o que fizeram, e, como sobreviveram às dificuldades que
encontraram em seu processo de desenvolvimento profissional.
O que isto quer dizer? Que eles tornaram público o que lhes era próprio, o que
lhes era constitutivo. Expressando suas alegrias, tristezas, angústias e contradições,
nos contaram como viveram o que viveram, com sua cadência própria, o que nos
permite mais do que conhecer, pela simples leitura, passagens de suas vidas: nos
permite sentir com eles o que viveram. Singulares que são, cada qual com sua história,
nos autorizaram a “deslizar” pelos caminhos percorridos por eles, tentando
compreender como desenharam e marcaram suas trajetórias103. Pelo que nos contam,
103
“Essa história não se reduz a trajetória. Trajetória é um deslocamento em um espaço (social); é
relação que um observador externo pode estabelecer entre sucessivas posições. A História pertence ao
tempo, e não, ao espaço; é a relação entre três dimensões do tempo (presente, passado e futuro) que se
supõe mutuamente e não podem ser justapostas, como as posições. É uma relação constitutiva do
sujeito (CHARLOT, 2000, p. 86).
158 Ettiène Cordeiro Guérios
104
Por não encontrar um termo que expresse a idéia de exposição estática para observação (ação de
colocar em uma vitrine) lanço mão do neologismo “vitrinização”: elevar erros e acertos à condição de
exposição.
105
Utilizarei ora o termo “composição” ora “constituição”. Ambos significam o processo de compor um
todo com elementos, com diferentes partes. Constituir é mais próprio ao sentido de arregimentar; compor
carrega consigo a idéia de autoria, de criação, de invenção, tendo mais identidade com a idéia de
laboratório, como espaço de criação, do artista que compõe um personagem.Constituição é mais
genérico e composição é mais particular, peculiar. Autoria tem relação com o conceito de Larrosa de
inter-relação consigo mesmo, com sua experiencialidade. Constituição é processo demarcado.
Composição nos soa mais íntimo, mais individual, processo em processo, carrega consigo o “humano” na
sua essência. Por isto o “constituir” pode significar o processo genérico de tornar-se professor, ou
médico, ou pedreiro, ou engenheiro... e o professor, ao tornar-se participe de sua constituição vai
“compondo” o seu modo de ser, de se fazer. Ademais, fazemos referência a esta arte implícita no ser
humano, de se compor ao caminhar por espaços oficiais e... intersticiais.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 159
106
Neste capítulo estaremos operando com resgates “individuais” que se deram no contexto de ações e
projetos coletivos e que foram, em um continuum, marcando e constituindo profissionalmente cada um.
As situações que vivenciaram estão contempladas em seu aspecto contextual no capítulo 2. Episódios
vão sendo aqui “refocados” e não citados na íntegra, visto que estão nas histórias orais textualizadas,
que por sua vez estão circunstanciadas pela narrativa que mostra o Laboratório em seu movimento
evolutivo.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 161
107
REDE a que refiro não é a Rede Institucional do PADCT/SPEC de que o Laboratório fez parte, mas
sim, uma rede de relações, conexões e interconexões.
162 Ettiène Cordeiro Guérios
para fazeres não previsíveis. De um certo modo, são sistemas em que objetivos e
metas são definidos e traçados a priori, e se bastam. Mas como podemos acatar tal
modelo engessante, compatível com a epistemologia verificacionista que separa e
ordena no centro do fazer pedagógico? Se a natureza mecânica dos sistemas fechados
promove o intercâmbio, os abertos promovem transformações108. Transformações são
processos que trazem, em seu bojo, a noção de movimento, que, por sua vez, induz à
instabilidade, por não ser controlável em todas as suas instâncias. Se uma causa
provocava um efeito, agora causa e efeito são movimentos mútuos e contíguos a gerar
novos e contínuos processos transformativos. Doll (1997) faz da teoria de prigogine
(1996) o alimento de seu delírio sobre a possibilidade de uma nova ordem educacional,
vislumbrando outras relações entre professores e alunos, culminando com um novo
conceito de currículo.
108
Mony ao dialogar com Prigogine sobre palestra intitulada “O fim das ciências?”, afirma que, sob o
prisma da abordagem sistêmica em psicoterapia, para o estudo de famílias, a teoria dos sistemas
afastados do equilíbrio foi uma abertura significativa. As famílias eram entendidas não só como
“sistemas” mas como “sistemas mutantes” pois tanto os indivíduos como as famílias estão em mudança
permanente. Prigogine permitiu a construção de uma concepção com uma riqueza particular: não é um
tempo determinista, mas um tempo que graças ao fato de ter amplificações de elementos pequenos que
podem conduzir a bifurcações, dá margem ao imprevisto, ao acaso, ao surgimento do novo
(SCHNITMAN, 1996, p. 43). Causou-me curiosidade esta observação; lembrou-me a visão de Larrosa
sobre experiência e sua proposição de se caminhar por caminhos não programáveis na formação
profissional.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 163
complexa que está sempre em transição, em mudança. Isso lembra também a posição
de Ballenilla (1995) a respeito do movimento na relação que se estabelece entre teoria
e prática, provocando e fundamentando modificações no professor.
Ballenilla (1995) situa o desenvolvimento do professor em dois planos: um é o
fundado no modelo didático de referência ou teórico, que é um modelo racionalmente
construído por um construto teórico próprio ao ensino; outro é o da simbiose da sua
história acadêmica como aluno, história profissional como docente e pelo reflexo de sua
adaptação ao contexto institucional e social. Afirma que o desenvolvimento profissional
é um movimento que se desencadeia quando o professor inicia-se em um processo
com vistas a alterar o modelo didático pessoal de referência, ou seja, o que é composto
por elementos advindos de sua experiência natural como indivíduo e, portanto, não
sentida conflitivamente, para a mesma prática sentida conflitivamente. Esse conflito
refere-se à reflexão iluminada por um plano teórico, que gera um modelo didático de
referência que, por sua vez, orienta e gera um modelo didático pessoal modificado
(idem:69). Isso parece sugerir que mudanças de concepções, de saberes e de postura
acontecem durante o próprio exercício da prática docente, pois é nesse momento e
neste contexto complexo que os saberes profissionais ganham realmente significado.
Imbernón (2000, p. 68-71) de certa forma, nos ajuda a compreender isso:
109
Vilma e seu grupo acreditavam que conviver com novos modos de fazer propicia ao professor a
autonomia no ato docente, ao afastarem-se da Universidade ou de seus Cursos de Licenciatura.
164 Ettiène Cordeiro Guérios
(...) o pensamento complexo110 não é o que expulsa a certeza para colocar a incerteza,
que expulsa a separação para colocá-la no lugar da inseparabilidade, que expulsa a
lógica para autorizar todas as transgressões. Ao contrário, a caminhada consiste em
fazer um ir e vir entre certezas e incertezas, entre o elementar e o global, entre o
separável e o inseparável (...) não se trata de abandonar os princípios da ciência
clássica - ordem, separabilidade e lógica – mas de integrá-los (...) é preciso articular os
princípios da ordem e da desordem, da separação e da junção, da autonomia e da
dependência, que estão em dialogia (complementares, concorrentes e antagônicos) (...)
o paradigma da complexidade ordena juntar tudo e distinguir.
contemporâneo de seus colegas de décadas anteriores, pois o que o tempo comeu das
folhas de seus professores, é expressão da manutenção repetitiva de um mesmo modo
de fazer... é a força daquilo que Tardiff (1997) e Gauthier (1998) chamam de tradição
pedagógica. Alguns até “ditavam” o que era “seu” para o aluno, na ânsia de
compartilhar seu conhecimento... e eram respeitados por isto. Não era considerado
“errado” o que faziam. Apenas os referenciais eram outros. Alguns desses professores
se constituíram em ícones de seu tempo, tendo ajudado a fazer nossa História!
Ao termo “experiência”, que tanto pode representar estratégia didática para a
atividade experimental (caminho tido como seguro para chegar à verdade) como
constituir-se em objeto direto111 do profissional, aditou-se a “experiência na vida”.
Professores percebiam que a experiência adquirida pelo ato repetido, por si só, não era
garantia de qualidade docente. Por outro lado, já se percebia que a experiência de vida
continha ingredientes que poderiam compor um repertório de conhecimento relevante à
prática profissional112. O dia a dia da profissão docente sinalizava que a experiência de
cada um estava relacionada aos modos de aprender e que existia algo a mais entre o
professor, o conteúdo a ser ensinado e os alunos.
Larrosa assim se manifesta quanto a diferentes dimensões da experiência:
111
O professor tem experiência: Experiência como objeto direto e objetivo, simultaneamente, por ser o
que adquire com o tempo, e o que almeja, para tê-lo como adjetivo. O professor tem o quê? Experiência.
Logo, ele é experiente!
112
Vilma, por exemplo, em 1983, viu no SPEC a oportunidade para criar um espaço “neutro” de
desenvolvimento profissional, em que ações coletivas pudessem ser realizadas, com vistas a melhoria
qualitativa dos cursos de Licenciatura. Em 1985 foi instalado o Laboratório de Ensino e Aprendizagem de
Matemática e Ciências Físicas e Biológicas, origem deste trabalho, cuja trajetória está narrada no
capítulo 2.
168 Ettiène Cordeiro Guérios
113
O conceito de evolução adotado por esta pesquisadora é expresso, como foi dito, movimento não
linear, não relacionado a resultados absolutos e quantificáveis. Evolução é movimento que transforma e
progredir é modificar.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 169
frente às situações. Gauthier (1998)114 chama a atenção para o fato de que, embora
saberes experienciais sejam adquiridos por meio da experiência, estes podem tornar-se
“regra” pela repetição rotineira não refletida. Deste modo não estará o caminheiro se
fazendo ao caminhar mas dirigindo-se mecanicamente de um mesmo ponto a outro, do
mesmo modo, pelo mesmo caminho antes percorrido por ele mesmo ou por outro
alguém. Provocada pelas posições teóricas de Gauthier (1998) e de Ponte (1998), me
pergunto: o que é experiência, afinal? Estará o professor em permanente formação pelo
fato de receber orientações para novos fazeres, tais quais mapas com trajetos
absolutamente definidos, que lhes dê o caminho certo para o exercício docente? Os
professores das escolas que freqüentavam a oficina do Laboratório, que lá voltavam
inúmeras vezes para buscar recursos para suas aulas, não estariam eles justamente
buscando tais mapas?115 Qual teria sido o motivo que afastou muitos deles ao serem
perguntados sobre suas práticas em sala de aula quanto à utilização dos materiais que
construíam? Estariam eles se transformando e modificando sua prática? Estaria sendo
efetivada a expectativa dos fundadores do Laboratório que se os licenciandos
vivenciassem um ambiente que lhes acenasse com diferentes modos do fazer docente,
ao se afastarem da Universidade, haveriam de ter uma atuação profissional
diferenciada? Na perspectiva de que falamos em um processo de formação, o mais
importante não é assimilar mapas que, pontual e imediatamente, venham pela via
externa modificar a prática.
Na formação a questão não é aprender algo. A questão não é que, a princípio, não
saibamos algo e, no final, já saibamos. Não se trata de uma relação exterior com aquilo
que se aprende, na qual o aprender deixa o sujeito imodificado. Aí, se trata mais de se
constituir de uma determinada maneira. De uma experiência em que alguém, a princípio
era de uma maneira, ou não era nada, pura indeterminação, e ao final, converteu-se em
outra coisa. Trata-se de uma relação interior com a matéria de estudo, de uma
experiência com a matéria de estudo, na qual o aprender forma ou transforma o sujeito.
(...) Alguém é levado a si mesmo e isto não se faz por imitação, mas por algo assim
como por ressonância (...) E alguém vai sendo levado a sua própria forma (LARROSA,
1999, p. 52).
114
Gauthier (1998, p. 28-37) concebe o ensino como a mobilização de vários saberes que formam uma
espécie de reservatório, no qual o professor se abastece para responder a exigências de situações
concretas de ensino. São eles: disciplinares, curriculares, das ciências da Educação, da tradição
pedagógica, experiencial e da ação pedagógica.
115
No capítulo 2 narra-se sobre a oficina, o uso de seu espaço físico, as atividades desenvolvidas, a
relação dos professores com o Laboratório e a transformação da concepção instrumentlizadora para a
ação instrumental dinâmica.
170 Ettiène Cordeiro Guérios
Que experiência é esta que leva o sujeito a seu interior, possibilitando-lhe ser
caminheiro que, ao se fazer autor de seus mapas, se forme ou se transforme
permanentemente? Toda experiência é, por si, formativa? Toda “situação” vivida é
experiência? Toda situação vivida provoca evolução? Nem tudo é experiência porque
toda experiência modifica diz Larrosa (1996, p. 136-37): a experiência seria aquilo que
nos passa. Não o que passa, senão o que nos passa. Quando sabemos muitas coisas
mas nós mesmos não mudamos com o que sabemos... essa seria uma relação com o
conhecimento que não é experiência, posto que não se resolve na formação ou na
transformação daquilo que somos.
Conforme Larrosa, experiência é o que “nos passa”. Pela experiência pessoal
que tenho na minha relação com o seu texto, nas reflexões teóricas que efetivo
enquanto tento produzir significado para o termo “experiência”, no modo como vou me
colocando em diálogo comigo mesma, em um movimento interior que me vai
transformando, então eu estou também indo além. Vou além porque na ânsia de
compreendê-lo e de extrair dele, Larrosa, a sua mensagem de modo a que faça sentido
para mim, sou transpassada pelo significado que construo, por mim e para mim, à sua
luz, no contexto do meu trabalho. Não consigo mais olhar do mesmo modo que olhara
até então para as pessoas cujas trajetórias textualizei. Percebo-as diferente; percebo
nuances que me provocam outros questionamentos. Relaciono-as diferentemente com
os teóricos que elegi e relaciono-as diferentemente também, agora, entre si . Portanto,
aventurando-me nesse ir além, arrisco-me a tentar compor uma definição própria para o
termo “experiência”, ao arriscar-me a pensar que mais do que aquilo que nos passa, a
experiência é o que nos transpassa, e que, por nos transpassar, nos marca, ecoa e
ressoa continuamente dentro de nós, explica e fundamenta o vivido e o a viver
simultaneamente, provocando modificação. Mas não só.Tentarei ir ainda além.
Se há modificação, há formação, em um movimento interior, que se manifesta
em ações concretas. No desenvolvimento profissional concebido como movimento
interior, permanente e contínuo, a transmutação formativa (LARROSA, 1999) ocorre em
elos entre o passado e o futuro, como moto contínuo, na qual os indivíduos vão se
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 171
116
Conforme citado no texto historiado deTânia, as atividades eram filmadas para serem discutidas em
grupo.
172 Ettiène Cordeiro Guérios
aprimorando a proposta, e assim decidiram fazer até que houvesse modificação nos
alunos. Mínima, mas que houvesse. Nesse processo contínuo e simultâneo de
aprimoramento da proposta, aplicação e discussão, iam se transformando eles próprios,
os professores. Tal transformação ia-se dando em função da gama de circunstâncias
que envolviam a todos, e da construção de conhecimentos que se ia efetivando
individualmente, nas ações em grupo. Vilma, Sonia, Marcioney e Joceli também se
reportam a casos em que nada modificava seus alunos ou os professores que
assessoravam: tem alguns que não adianta. Não mudam... O que quer que seja
proposto para que façam até fazem, mas são resistentes, não aceitam e não se
modificam, dizia Sonia. Em anos posteriores, Tânia e equipe117, sempre colocando em
xeque sua prática (BALLENILLA, 1995), descobrem que um dos grandes problemas de
a experiência inovadora passar ao largo dos alunos era o fato dela ser “aplicada”118.
Esta descoberta muda o rumo futuro do trabalho do grupo, pois passam a desenvolvê-la
não mais como aplicação imputada verticalmente para ser executada pelos outros, mas
como atividades a serem construídas pelo conjunto dos envolvidos: alunos e
professores.
Larrosa (1996; 1999) postula que a experiência não pode ser planejada de modo
técnico como um experimento. A experiência comporta a incerteza, pois os
acontecimentos são emergentes e, portanto, não são programáveis, controláveis e nem
submetidos a leis de causa e efeito. Por isso, uma mesma atividade pode ser
experiência para uns e não ser para outros (LARROSA, 1996). Tânia e seu grupo
vivenciaram as mesmas atividades, em um mesmo contexto de formação. Alguns
reagiram de um modo, outros de outro; tanto que, no ano seguinte, alguns de seus
colegas desistiram, optando pela manutenção da prática que já desenvolviam.
Certamente não foram transpassados pelo que viveram, pois, se tivessem sido não
seriam mais os mesmos; não voltariam a ser o que eram antes da experiência. A
117
Os membros dos grupos não eram sempre os mesmos. Tânia foi partícipe desde a concepção do
primeiro grupo até o momento atual. Esta experiência está exposta no capítulo 2 e na textualização da
história de sua vida.
118
A atividade ocorria paralelamente à de outros membros do Laboratório e discussões ocorriam nos
demais grupos. Havia, como parte da dinâmica do Laboratório, conforme expresso no Capítulo 2, a
orientação de que a proposta fosse inovadora. O critério para definir o que era inovador fazia parte do
trabalho intelectual do grupo. Deveria ser, no mínimo, diferente do que faziam rotineiramente em seu
cotidiano, para o que, prioritariamente, exigia a discussão anterior e reflexão sobre o que era o cotidiano
de cada envolvido.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 173
tradição pedagógica pode ter exercido uma força oculta sobre eles, fazendo-os resistir à
inovação e impedindo que arriscassem uma viagem por mares nunca dantes
navegados. Preferiram o conhecido, a segurança do controle da situação de suas salas
de aula. Mesmo conhecendo o poder da força oculta da tradição pedagógica, o fato
concreto é que, por algum motivo, a mesma atividade foi experiência para uns e não foi
para outros, o que nos traz à mente a seguinte questão: o que faz com que, ao
vivenciar uma mesma atividade, alguns a transformem em experiência autenticamente
formativa e outros não? Talvez Doll e Morin nos ajudem a refletir e compreender um
pouco mais isso.
Afirma Doll (1997, p. 24) que educacionalmente precisamos ser treinados119 na
arte da criação e da escolha, não apenas na do ordenamento e do seguimento, ao
mesmo tempo em que Morin (1998, 2001) postula que não é mais suficiente ordenar; é
preciso organizar. Tudo precisa ser educativamente conduzido de modo que o homem
seja capaz de operar com a imprevisibilidade, o que exige outros modos de pensar e
outras “competências”. O imprevisível, que não é compatível com os padrões
positivistas e com as concepções deterministas, comporta incertezas, elevando à
primeira ordem o desenvolvimento do pensamento estratégico. Estratégia é a arte de
trabalhar com a incerteza. A estratégia de pensamento é a arte de pensar com a
incerteza. A estratégia de ação é a arte de atuar na incerteza. (MORIN,1996, p. 284).
Cada um a seu modo, fruto de sua experiencialidade, em um mundo plural.
A Experiência é o que nos passa... e nos transpassa... e nos faz evoluir120. Os
caminheiros se fazem ao caminhar, muitas vezes, por espaços desconhecidos, tais
quais bandeirantes que - com as ferramentas que têm em mãos – desenvolvem
estratégias para desbravar irregulares caminhos, em circunstâncias imprevisíveis, a
mercê do imponderável. Na minha caminhada como pesquisadora, neste meu ir e vir
pela trajetória do Laboratório simultaneamente ao meu adentramento nas vidas aqui
historiadas, percebo que caminhou-se para uma nova perspectiva conceitual: da
experiência como método - um caminho seguro para chegar à verdade - à experiência
como formadora, capaz de possibilitar caminhar na construção do conhecimento pela
verossimilhança em relação ao vivido.
119
Treinar, no contexto do texto, não significa ato de “treinamento mecânico”. Significa criar condições
educativas que combinem a dimensão científica com a estética, o tecnológico com o humano, e demais
vertentes da composição humana, que em complementariedade possibilite o desenvolvimento da
criticidade e da autonomia cognitiva, possibilitando estabelecimento de juízo de valor.
120
Relembre-se o conceito de evoluir adotado no Capítulo 1.
174 Ettiène Cordeiro Guérios
O que conta para a transmutação formativa não são as aulas... sempre simplificadoras123
(...) o que conta são os espaços intersticiais: o lugar do perigo, porque aí, fora do mundo
seguro e insignificante das salas de aula, não valem as seguranças da verdade, da
cultura, do saber, do sentido. Renunciando à segurança dos espaços tutelados, nos
quais se comercia uma verdade intranscendente, habitando a diversidade caótica e sem
marcas dos lugares marginais, os estudantes divagam (...) é aí, nesta extravagância
onde testam seus gestos, suas armas (...) é aí, nestes espaços fronteiriços não
tutelados, que (...) vai se dar a viver na intempérie, formar sua maneira de ser, começar
a reconhecer seu destino, acumular forças para novos saltos, para novas rupturas (...)
vai enfrentar o risco inevitável, o extremo perigo em cujo contato vai se converter no que
ele é.
121
Representação para alunos estáticos, um atrás do outro, sendo a “nuca” do colega da frente o
“mundo” do colega de trás, aquilo que ele vê na sala de aula. Parece-me pertinente usar esta “alegoria”
de Sonia para representar também um modo de o aluno se esconder e se alienar do mundo, sem que
precise decidir, escolher, optar estabelecer juízos de valor, ou seja : fazer-se atrás do outro.
122
Interstício : fenda,intervalo de tempo. Na linguagem popular refere-se ao espaço (de tempo) entre dois
pontos. Ex: Interstício de dois anos para uma promoção profissional.Como adjetivo, intersticial refere-se
ao que ocupa os interstícios. Aqui, refere-se a espaço e tempo.
123
No sentido de ordenado, disjunto, restrito, segmentado, compatível, previsível, linear. Compatível com
os pilares do pensamento simplificador , os quais estão explicitados em Morin e Moigne (1999).
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 175
124
Grifo meu.
125
“Como fazer” refere-se ao modo de trabalhar com situações que emergem. O processo de levar o
aluno à construção dos conceitos matemáticos ilustra isso.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 177
vida pulsante nos espaços intersticiais. Vera conta que, ao enveredar por espaços
intersticiais, arriscando-se em novas vivências ao trabalhar com geometria, aprendeu
até a ver o mundo. Sim a “ver o mundo”, a observar o mundo. Diz ela: eu aprendi a
olhar para o chão. Eu nunca havia me dado conta de olhar para o chão. Eu aprendi a
olhar para o chão durante as atividades dos projetos do Laboratório... eu comecei a ver
hexágonos, pentágonos... tudo isso a meus pés. Como dizíamos no Laboratório: o
mundo matemático está a meus pés! Vilma fazia, e faz até hoje, de cada nova idéia
brotar um projeto de pesquisa, muito simples, diz ela, mas original. Para as idéias
brotarem,Vilma dá voz e vez ao aluno. E o escuta! Dedica-se a aprender para encarar e
potencializar o novo, tal como ele se apresenta126 e não o fazendo entrar a força em
uma teoria capaz de recebê-lo (MORIN, 2000). Marcioney escreve seu material didático
como quem desliza127 por situações originais e compõem ao invés de repetir. Vera128
descobre o poder do ato de criar como desencadeador de aprendizagem. Nas situações
que fogem ao tradicional modelo de cerceamento das idéias para garantir um
andamento programado, o inesperado tende a ser a mola mestra para desencadear
ações didáticas compatíveis com o emergir do pensamento dos alunos. Ser capaz de
permitir a ocorrência do inesperado é um saber que se dá ao longo de um processo de
desenvolvimento profissional, pois não é um saber que se possa adquirir por
transmissão acadêmica. Exige a elaboração de um modo de ação que se configura
paulatinamente. Exige um “encorajamento” do professor. É a ultrapassagem de um
paradigma arraigado, o da resposta direta para a pergunta do aluno, a qual tende a ser
previsível. Disseram as vozes vivas que, no Laboratório, aprendemos a deixar a coisa
acontecer... criamos confiança e coragem... confiança de que daríamos conta de traçar
126
Vilma ressalta várias situações que em teve que aprender para superar o que se apresentava. Desde
o tempo da Rede de Disseminação (cap. II) já “estudava” para encarar o novo. Marcioney teve que
aprender para dar aula para professor (para aluno, tudo bem, dizia ele, mas para professor... escrever
material didático... nunca tinha feito isto... e encarou!).
127
Utilizo a “quadrinha” do Drumond... e peço o conjunto das pessoas que João amava... uma questão
sobre a época da ditadura.. o Chico Buarque... Zeus que pertence ao estilo dórico, e Hércules,.. o filme
do Hercules.... e diz que o conteúdo programático é “representação por extensão, por compreensão e
gráfica”.
128
Vera teve que aprender para ser autora e redatora das próprias idéias em artigo que publicou. Teve
que aprender para encarar os projetos de Jogos e de Modelagem. para as novas atividades que fazia... e
quase ficou paranóica quando descobriu a vida pulsar em um mundo que se lhe tornou “matemático”.
178 Ettiène Cordeiro Guérios
Penso que experiência é o que nos passa, nos transpassa, nos leva a nosso
próprio interior, nos coloca em estado de inquirição com o modo de ação e, pela
permanente transmutação, provoca transformações formativas, nos faz evoluir,
caminhando por espaços intersticiais, a deixar o novo brotar.
Quando se enfrenta desafios, diz Joceli, aprende-se que muitos dos problemas
que se tem em sala de aula se resolvem; basta saber que é só encontrar o caminho
para isto!
129
Nos anos 80 e início dos 90, a instrumentação para o ensino era considerada preponderante para a
promoção da competência didática. A orientação dedicada a ações na oficina do Laboratório explicitava o
caminho percorrido na evolução da concepção instrumentalizadora. Detalhes encontram-se no capítulo 2.
180 Ettiène Cordeiro Guérios
130
A narrativa no Capítulo 2 contempla encaminhamentos referentes a esta vertente de ações.
131
Parecia haver sempre uma questão introjetada nas ações dos professores que compunham grupos de
trabalhos: fazer o quê? Instrução programada: programa o quê?
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 181
132
Sabemos haver polêmica nos posicionamentos quanto à ação procedimental, conceitual e semântica
nas atividades lúdicas em matemática, particularmente no que tange a jogos. À primeira vista “aprender
de modo divertido”, conforme expressa Joceli, pode parecer restrito a sua dimensão procedimental. No
entanto, ao seguir suas reflexões percebe-se que estava construindo as bases sobre as quais repousarão
futuramente os princípios didáticos que está a construir. É o seu processo em andamento que está aqui
“em jogo”, e não sua idéia prontamente consolidada. Está rumo a aprendizagem significativa e rumo a
construção de princípios fundantes para práticas significativas – para a professora – que possibilitem
aprendizagem matemática significativa – para seus alunos- em um processo no qual ambos aprendem...
enquanto ensinam um ao outro.
182 Ettiène Cordeiro Guérios
133
Em meu processo de tentar compreender o que acontece entre a teoria e a prática - enquanto refletia
sobre as reflexões de Joceli - lembrei-me de Ponte ao dizer que há momentos formais de formação em
que o professor recebe atividades estruturadas para adotar em sua prática. Coloquei-me a pensar sobre
o que evitaria que tais atividades “recebidas” se esvaziem e se percam devido a verticalidade e
externalidade com que tais momentos tendem a ser revestidos. Esta construção que veio se construindo
e que operou em Joceli tamanha abertura em suas manifestações didáticas, seria incorporada por
professores em cursos estanques, de modo a modificar-lhes a prática, ou estaria apenas munindo-os de
recursos didáticos, a serem dinamizados procedimentalmente?
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 183
Joceli não consegue mais aceitar outros modos de pensar a ação docente, que
não os fundados na diversidade, na pluralidade de idéias, no respeito ao livre pensar.
Sente-se aflita ao observar que o pensamento pode ser tolhido por condutas didáticas
vinculadas a uma dimensão mecânica, diretiva e limitante. Aflige-se com a constatação
de que professores de matemática normalmente têm dificuldade de estimular e aceitar
diversidade de respostas e que, por isso, limitam os alunos a pensar de uma maneira
só 134. Ela constata que este modo engessado de os professores tratarem seus alunos
advém do tempo em que os professores eram alunos. É uma atitude recorrente,
portanto. Só que estatizante. A tradição pedagógica (GAUTHIER,1988) estatizante e
engessante, perpetuando-se de geração em geração, perturba Joceli, que aprendeu a
viver pedagogicamente em um mundo didático dinâmico, que ela mesma construiu,
estabelecido em princípios advindos de sua experiência (LARROSA, 1999) que, por ser
significativa, foi lhe transpassando e continua a lhe transpassar em uma dinâmica
aberta e intercambiada (PRIGOGINE, 1996).
As transformações pelas quais vai passando (LARROSA, 1996, 1999; MORIN,
1998; MORIN; MOIGNE, 2000) vão se consolidando pelas conexões que Joceli
estabelece entre seu passado e seu momento presente, pois ela se vê em suas
reflexões e dialoga consigo mesma, se conflita (BALLENILLA, 1995), contrasta-se com
teorias fundantes e, nesta relação teoria e prática vivenciada, constrói sua própria
“teoria prática”, como bem mostra sua história de vida135.
O modelo aplicacionista e linear, que dominou as propostas didáticas de ensino
de ciências durante décadas de 70 e 80, começou a ser questionado por Vilma desde
quando fundou os primeiros clubes de Ciências. O que mais lhe incomodava era o
reducionismo tecnicista destas propostas. Se os projetos de investigação científica136
que desenvolvia eram “muito simples”, como diz ela, em nada eram simples os efeitos
134
Diz ela que... quando o aluno propõe uma solução diferente da prevista... se o professor ficar em
dúvida ou não tiver o domínio de que vai funcionar porque ele está acostumado a trabalhar em um
caminho só... .pronto! Ele não permite que o aluno tente caminhos próprios. Esta constatação acaba se
constituindo em tema de pesquisa de seu projeto de mestrado em um processo institucional que ampliará
certamente o engendramento dessa sua “descoberta no mundo educacional”.
135
Lembro-me novamente de Ponte e pergunto-me se, ao estabelecer tais conexões, e tendo em sua
veia um modo de ser, atividades estruturadas recebidas em momentos formais de formação seriam por
ela dinamizadas, não se restringindo a sua dimensão estática tais quais receitas ditadas externamente .
136
Envolvia alunos de prática de ensino, professores e alunos da escola fundamental. Em sua história
explica que o fundamento da investigação é que interessava.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 185
que provocavam. Era exatamente na simplicidade que estava embutida a potência que
a levaria a questionar a validade de aulas práticas e experimentais, fossem em
laboratório, em clube de Ciência ou na própria sala de aula. Estava a perceber que não
é o ambiente físico que deve determinar o didatismo da ação, senão os princípios
didáticos que subsidiam as ações. Ao não se conformar que “a aula prática era dada
para mostrar ao aluno que o professor não mentiu na aula teórica”, e que além de
“dada”, era para confirmação de verdades dogmaticamente consolidadas, estava
rumando da concepção de prática experimental verificacionista para a experiencial.
Como a própria palavra expressa, aula dada significa um ato didático de mão única em
que o aluno participa como mero espectador, mesmo em modalidades práticas de aula,
de uma encenação que tem como principal ator o professor.
O conceito de experiência de Larrosa, em comparação ao de experiência como
ato didático parece trazer um outro modo de conceber “aulas práticas”. Ora, o que se
pretende com o “fazer experiência”? Parece-me que a posição de Vilma pode ser assim
entendida: ou a experiência é verificacionista137, ou em um termo criado por esta
pesquisadora, confirmacionista, ou ela é experienciada e conduz a uma dimensão de
sujeito circunstanciado em sua relação com o saber, em que a questão do aprender é
mais ampla do que a do saber por existirem maneiras de aprender que não consistem
em apropriar-se de um saber, entendido como conteúdo (intelectual)138 do pensamento
(CHARLOT, 2000, p. 59).
O reflexo das ações nos clubes de Ciências com os projetos de investigação foi
recorrente na sua construção conceitual sobre a modalidade prática da aula, pois foi
desta sua relação com um saber não relacionado à dimensão intelectual do
conhecimento que evidenciou e diferenciou o verificacionismo experimental da aula
prática dos princípios que regeram as ações nos clubes de Ciências. A
operacionalização das ações nos clubes de Ciências levou Vilma a discutir consigo
137
Utilizo as epistemologias verificacionista e experiencial, tal como coloca Doll (1997). É dos
fundamentos dela que lanço mão para dar clareza ao movimento de transformação pelo qual Vilma está
passando em seus questionamentos e preocupações. Bastante próximos ao modelo da racionalidade
técnica, os princípios da epistemologia verificacionista isolam o sujeito de sua ação, além de segmentar
teoria e prática e a própria teoria em sua estrutura interna.
138
“ Intelectual” foi acrescido por mim para fazer jus ao contexto do extrato do texto. Para Charlot
aprender pode ser adquirir um saber (conteúdo intelectual), dominar uma atividade (nadar) ou entrar em
formas relacionais (contacto com os outros).
186 Ettiène Cordeiro Guérios
mesma e com os membros de seus grupos de trabalho o conceito de aula prática: o que
é aula prática afinal?139
Vilma evoluiu e se transformou, mas não só ela. Seus alunos de prática de
ensino dos anos seguintes foram influenciados por sua evolução ao mudarem o foco da
ação didática: o aluno de Prática de Ensino teve que aprender a ouvir o aluno da
escola... para então estruturar os projetos de investigação140. Ouvir o aluno da escola:
eis aí evidenciada uma mudança de perspectiva, pois, até então, a única voz que tinha
vez oficial na escola era a do professor a “dar” aulas. O novo encaminhamento proposto
por Vilma a todos os que atuavam com ela passou a ser que, antes de o professor
preparar seu projeto de investigação, tinha que ouvir o aluno da escola... o que era
fantástico, porque eles - os alunos da prática de ensino e os professores das escolas -
tinham que ser criativos porque tinham que desenvolver metodologia própria. Claro,
dizia ela: não bastava dar voz e vez ao aluno. Era preciso ouvi-lo.
Foi ouvindo os alunos que Vilma e seus estagiários começaram a mudar e a
mudar radicalmente suas práticas escolares. O aluno, aos olhos e ações deles, passou
a configurar-se não mais como alguém que está aí para apenas receber ou aprender
algo. O aluno, de repente, passou a configurar-se também como alguém que produz
saberes ao aprender. Portanto, alguém que também ensina aos outros. E, para que isso
de fato possa vir a acontecer nas aulas, as atividades e situações-problema não podem
ser questões fechadas de mão única, o aluno é apenas um ponto de chegada. Ao
contrário, precisam ser abertas, permitindo fazer emergir a multiplicidade de sentidos
que os alunos produzem durante o ato educativo. Ou seja, as atividades precisam ser
investigativas e exploratórias, instigando os alunos a partilhar seus achados e sentidos
em relação ao que estão estudando. Quando Vilma alcança este nível de compreensão
139
A prática indagativa de Vilma vinha se construindo desde os primeiros tempos do
Laboratório.Recorrente no grupo, pode-se ser percebida no capítulo 2 em que é possível perceber uma
“indagação” sempre no ar no contexto dos grupos no Laboratório.
140
Em sua trajetória, Vilma foi transformando seus conceitos na sua relação com os grupos do
Laboratório. Houvera discutido os fundamentos teóricos do construtivismo, não aceitara pacificamente os
pressupostos da interdisciplinaridade quando esta despontou no meio acadêmico, nos primeiros clubes
de ciências que fundou procurara um modo em que a participação do aluno da escola lhe fosse
significativa, ao mesmo tempo em que o de Prática de Ensino pudesse dar sentido aos seus “conteúdos”
assim, aos poucos mudou o foco da ação: de projetos de investigação em que temas são desenvolvidos,
para projetos de investigação em função de temas originários do interesse do aluno. Consultando-se a
narrativa no Capítulo 2, estes princípios se fizeram sentir no percurso dos projetos em Matemática. Ver o
exemplo narrado na construção do projeto de Modelagem Matemática.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 187
141
A expressão “aprender ao ensinar”, cunhada por teóricos da educação, aqui está sendo utilizada para
designar o movimento evolutivo e transformativo de Vilma.
142
Isto é compatível com a concepção que apresento no Capítulo 1 para a expressão “Educação
Permanente”: como um estado de espírito, em que o professor encontra-se no decorrer de seu
desenvolvimento profissional, é o que o leva a adentrar os espaços intersticiais, pela constante busca do
fundamento a ancorar-lhe a ação docente.
188 Ettiène Cordeiro Guérios
E o que é aula prática afinal? Esta pergunta, sempre no ar, fazia companhia a
outros questionamentos que o grupo do Laboratório houvera feito durante seu trajeto
desde 1985 até então, quando instigavam as ações que vinham se efetivando. Por
exemplo na questão: “o estudo dirigido dirige o quê?"143. Com o passar do tempo, o
sentido de “aula prática” foi-se modificando, através do permanente processo de
atribuição de significado, decorrente de uma prática docente investigativa, em que
princípios fundantes foram sendo elaborados por cada um144. Tânia evidencia tal
evolução no sentido que foi construindo para a prática como fator didático. Percebeu
que as aulas práticas estavam confirmando verdades, isto saltou a vista do grupo e
incomodou a todos. Estavam construindo seus princípios didáticos, processualmente,
cada um a seu modo, pela experiência que lhes transpassava provocando
transformações conceituais. No caso de Vilma, o fundamento didático da aula prática, a
princípio, estava no desenvolvimento de habilidades: elaboração de perguntas,
preparação do contexto, etc. A modificação começou pela preparação do material a ser
utilizado, cujo objetivo de servir à consolidação da verdade pelo professor perdeu o
sentido. A epistemologia verificacionista caiu definitivamente por terra. Morin se
manifesta! Não basta ordenar, é preciso organizar. Não basta identificar por
semelhança... é preciso observar, analisar, identificar, classificar por compreensão o
conhecimento, em função do contexto a que pertence. Não basta comparar um sapo
aberto em uma bancada com o sapo mostrado em uma transparência ou em um livro.
“É igual?“ é uma interrogação que admite apenas duas alternativas excludentes como
possibilidade de resposta. Na verdade esta interrogação é uma afirmação, porque,
didaticamente, não havia sequer a oportunidade de o aluno conjecturar para concluir
por uma das possibilidades de resposta. O que Vilma percebe em interrogações desta
natureza? Percebe estar implícita a voz oculta do professor que diz, como num sussurro
mudo: olhe, caro aluno, e aceite que é igual. Em síntese, podemos traduzir do seguinte
143
No capítulo 2 encontra-se narrado o contexto em que tais questionamentos surgiram, e o modo como
perpassaram os professores e alunos vários grupos e projetos.
144
Em Matemática, este processo se fez sentir nos projetos desenvolvidos. No Projeto de Modelagem,
por exemplo, a reação dos alunos da escola frente às atividades práticas propostas chegou a chocar o
grupo. O conceito de aula prática que estava em construção instigava a todos. As reações de Tânia, se
combinadas com a narrativa do capítulo 2 e com as histórias de Vilma e de Joceli, evidenciam este
processo.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 189
modo este percurso: o sapo aberto na bancada é igual à gravura do sapo que está no
livro, que por sua vez é igual a como o professor falou que o sapo é! C.Q.D.145
As experiências que provocaram transmutações formativas desta natureza em
Joceli tiveram como base questões similares: a revolta de Vilma com a imobilidade
imposta ao aluno, com a questão “é igual?”, aproxima-se dos princípios embutidos no
termo “situação aberta”, que certamente vai se refletir em sua proposta de investigação
para seu futuro Mestrado: os prejuízos causados aos alunos pelo mito da única
resposta certa em Matemática. Em sua história como professora, Joceli contou sobre
essa sua intenção. É recursiva em sua trajetória esta preocupação, e Joceli vai
ampliado durante o próprio caminhar. Pelos efeitos que vai notando, pelas observações
que vai fazendo e pelas reações que vai observando em si e em seus alunos, vai se
fazendo e se transformando em sua caminhada evolutiva, onde é cada vez mais
perceptível e manifesta a sua preocupação com o livre pensar de seus alunos.
“O princípio... tudo é uma questão de princípio!” À medida que, de modo
recorrente, iluminam e geram novas práticas, vão-se fundamentando os construtos
teóricos que solidificam e apontam um norte para o fazer metodológico do professor.
O princípio investigativo que desencadeou movimentos estruturantes em Vilma é
de tal modo potencializado que se torna a base de todas as suas ações: processo de
investigação contextualizada, qualquer que seja a modalidade didática. É preciso
investigar. Há que haver sentido. O significado não está no conhecimento em si.
Tampouco está na experiência que passa ao largo do sujeito e não lhe passa.146 Não
lhe transpassa, e portanto não o modifica. Está, outrossim, na relação dos sujeitos com
o saber/conhecimento (CHARLOT, 2000)147 em situações significativas em um contexto
experiencial (LARROSA, 1999) e no contexto da estrutura do conhecimento (MORIN,
145
Clássica expressão da comunidade de Matemáticos ao término de demonstração. Significa "Como
Queríamos Demonstrar".
146
Experiência que é e que não é experiência (LARROSA, 1996, 1999), explicada e exemplificada
anteriormente, é um fator determinante nas relações entre sujeito e saber, que efetivam relações
complexas.
147
Relações de saber é algo diferente de relações com o saber (CHARLOT, 2000).
190 Ettiène Cordeiro Guérios
1999, 2000). Vilma não aceita o esfacelamento dilacerante do conhecimento, ao ser ele
organizado em forma de conteúdos programáticos escolares148. Ensinar o corpo
humano por partes acaba tendo como objetivo o estudo estanque de características de
partes isoladas. Parece-me que ela compõe um princípio didático em que conteúdos
fragmentados, dissociados de seu contexto estrutural, não têm sentido conceitual
(MORIN, 1998). É o que infiro ao perceber, por exemplo, as preocupações que ela vem
a ter atualmente, nos fundamentos que regeram a preparação de aulas acerca do
sistema nervoso149.
Além do esfacelamento do conhecimento, outros componentes são partícipes de
uma mesma malha constitutiva. Por isto, quando atuou com professores de 4a série,
uma gama de preocupações a afligiram. Uma delas referiu-se a como falar sobre
aparelho e sistema reprodutor com alunos desta série, uma vez que há outras questões
que os envolvem, como a sexualidade, a libido, a linguagem, a banalização dos termos
específicos, as piadas dos meninos. Como vou falar de sexualidade? Não sou
especialista. Isto transcende o conteúdo de Ciências. De acordo com o “modo de ser”
que vem desenvolvendo, para ela, o impossível é não tratar de sexualidade, pois isto
seria ignorar um aspecto fundamental tanto do conhecimento como do desenvolvimento
dos alunos. Seria mais fácil, mas isto não lhe passa à mente. Por transcender e por
extrapolar seu repertório de conhecimento, de acordo com seu “modo de ser”, adentra
por espaços intersticiais, enfrenta o inesperado na complexa malha em que a prática
pedagógica está inserida. Busca apoio em outros especialistas. Afinal, atuar
colaborativamente tanto no contexto do espaço de trabalho como em projetos é um
modo de trabalho que desenvolve desde 1985, época inicial do Laboratório.
148
Na história de Vilma está circunstanciada sua posição frente ao conhecimento e o modo como tal
posição tem influência direta na metodologia do ensino, ao embasar um tratamento didático que
possibilite a compreensão. Ver a discussão sobre as aulas acerca do sistema nervoso.
149
Esta é uma preocupação decorrente do conjunto de sua história de vida, quando resgatada na
composição de seu fazer pedagógico desde os primeiros princípios estabelecidos nas atividades
experimentais e nos projetos dos clubes de Ciências. São princípios que vão sendo construídos na
relação acadêmica com a prática escolar e com alunos em formação, numa sistemática colaborativa.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 191
não tinham sido conceptualmente mudadas, até aquele momento. Àquela época
procurava-se seguir à risca os passos sugeridos pela nova técnica de ensino e
acabaram por comportar-se didaticamente de acordo com os preceitos da racionalidade
técnica: primeiro conhecer o novo método, ouvir exemplos e explicações sobre como se
faz, elaborar o projeto utilizando a técnica e depois aplicar, de modo preciso, o método
na prática. Esperava-se com essa nova metodologia que os alunos ficassem mais
motivados para aprender matemática e “descobrissem” a matemática necessária à
situação de estudo. Mas, na prática, isso não aconteceu. Tânia, então, sentiu-se
desconfortável, incomodada com esta nova experiência. E como de praxe, o problema
foi discutido em grupo no Laboratório.
As primeiras discussões no grupo eram de perplexidade; não entendíamos o que
estava de fato ocorrendo, pois tínhamos aplicado a proposta corretamente, e seguindo
rigorosamente suas diretrizes. Porque os alunos não se envolveram? Foi nesse
momento também que surgiram perguntas que ainda não tinham sido objeto de
discussão e reflexão pelo grupo: o que é modelagem, afinal? O quê modela a
modelagem? A quem cabe modelar? Em que princípios pedagógicos se sustenta a
modelagem?
Outras indagações foram surgindo no grupo: quem sabe, fazendo os alunos
“sentirem” a proposta...? Quem sabe tornando-os partícipes da coisa, eles não se
envolveriam? Se eles... se eles... Se eles!... sentirem! Se eles sentirem a proposta!
Esta expressão parece-me evidenciar ter sido este o momento em que a dimensão
mecânica do método começou a tomar outro rumo, para o qual não seria possível
aplicar rigorosamente, ou controladamente, uma proposta, principalmente se o que
pretendido era uma participação mais livre e não mecânica do aluno durante a
atividade.
Embora a técnica fosse nova, o modo de agir não era novo. Ainda persistiam os
comandos: o que os alunos devem fazer; como devem proceder; o que eles devem
descobrir. O “se eles” - isto é , a perspectiva do aluno - passa a ser, então, o vetor
estruturante na construção da proposta para o ensino, a qual não poderia mais ser
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 193
simplesmente “aplicada” pelo professor e executada pelo aluno. Teria que ser “sentida”
pelo aluno. Ao tentar desenvolver um modo diferente de trabalhar com a modelagem,
modificou-se a proposta inicial.152 Procurou-se torná-la menos diretiva, ampliando o
espectro de ação do aluno. Foi preciso, então, tirar a centralidade do professor no
processo, de modo que o aluno se constituísse em sujeito do fazer matemático e que o
professor percebesse que poderia mediar as atividades dando vez e voz aos alunos,
instigando-os a fazer perguntas e a buscar respostas.
Tânia e seu grupo, então, assumiram o risco de adentrar por espaços intersticiais
onde é permitido dar vazão ao livre pensar; onde são estimuladas a pesquisa, a
discussão e a negociação. E, assim, durante as novas experiências, pôde-se ver os
alunos, entre si, trocando idéias, discutindo sobre o que faziam e sobre o que fazer... ao
mesmo tempo em que Tânia discutia com seu grupo, trocava idéias a respeito de
causas e efeitos das ações efetivadas...
Em uma dessas intercorrências, alunos do Ensino Fundamental, ao coletarem
dados para a construção de um croqui para elaboração de uma maquete, depararam-
se, no local onde estavam, com uma lata de lixo aberta na parte de cima, isto é, sem
tampa. Eles identificaram nela a forma de um cilindro, e pensaram em representá-la no
material a ser preparado. A exploração desta figura geométrica não havia sido prevista
no planejamento inicial da atividade. Entretanto, como os alunos quiseram representá-
la, houve necessidade de um redirecionamento da atividade, de modo a incluir a
especulação desta figura. Para isso, foi formulada a seguinte pergunta: “que medidas
da lata de lixo com forma de cilindro são necessárias para colocar na maquete?”. Após
conjecturarem, os alunos concluíram que para construir a lata de lixo na maquete
152
Foram várias as modificações no decorrer de anos de trabalho conjunto (professores formadores,
professores e alunos de escolas do Ensino Fundamental e do Curso de Licenciatura em Matemática). A
primeira referiu-se a mudança de enfoque em duas ordens: uma, a ordem “preparar e aplicar”
(racionalidade técnica) para “preparar ao aplicar”, em um processo intermediado por reflexões em grupo
sobre os efeitos verificados. A outra foi a busca de sentido matemático em situações que pudessem ser
“sentidas” pelos alunos. Esta, no futuro, veio a desencadear uma posição metodológica e teórica que se
tornou eixo do desenrolar da proposta no decorrer dos anos. O princípio foi o de que alunos e
professores estariam em posição de investigação frente ao conhecimento matemático, o que, por sua
vez, possibilitaria o emergir do mesmo conhecimento matemático escolar, mas em momentos diferentes,
ditados pela característica de cada realidade ou de modo genérico, de cada sala de aula. Pode-se
traduzir isso como a quebra da linearidade programática, em nome do significado matemático, ditado por
circunstâncias não previsíveis por antecipação.
194 Ettiène Cordeiro Guérios
153
Tânia se refere ao conjunto das pessoas envolvidas pelo termo “a gente”. A “gente” é o grupo.
Professores formadores, alunos do curso de Licenciatura. Reflete mesmo em seu modo de falar o espírito
de grupo.
154
O fundamento da proposta era oferecer um material didático ao professor que lhe possibilitasse um
fazer autônomo, criando a partir dela, entendendo que cada caso é um caso, e que o fundamento está
em possibilitar ao aluno a posição de destaque no processo de aprender.Ver história de Vera.
196 Ettiène Cordeiro Guérios
155
No capítulo 2 descreve-se o que ocorreu com professores e alunos envolvidos com um projeto de
Matemática Ambiental. Também na História de Vera há passagens que demonstram tais resistências não
só em relação a professores, como em relação a comunidade.
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 197
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
• “Eu me aprimoro e me modifico sempre. Nem sempre sei dizer, exatamente, de onde
vem o que eu faço...” (Marcioney);
• “...você está sempre buscando, porque não tem como parar, não tem porque dizer
eu me formei, já aprendi tudo o que eu tinha que aprender, agora não preciso fazer
mais nada... Muito pelo contrário, aí é que eu percebi que temos que sempre buscar,
buscar, buscar, estudar, estudar, estudar... porque tudo muda, tudo é muito
dinâmico..." (Joceli);
• Eu fui mudando muito durante meus anos de profissão. A minha vivência no projeto
de modelagem do Laboratório mudou a minha maneira de observar o mundo. Foi
uma das experiências mais marcantes que tive em minha vida. Eu adquiri um outro
olhar... Hoje, vejo a Matemática com olhos diferentes, e adquiri este olhar
vivenciando, realizando projetos, refletindo, dialogando, interagindo. Meus hábitos
chegaram a se transformar. Houve uma mudança em minha pessoa... Foi havendo
uma evolução em mim em forma de redemoinho, comigo e meus alunos dentro
desse redemoinho (Vera);
• Quantos de nós não acabávamos pegando o “fio da meada” com esses trabalhos
que eram feitos?... Nós ficávamos envolvidos com as diversas equipes do
Laboratório, conversando e trocando idéias... As discussões que tínhamos eram
muito importantes... Dessas discussões, sempre ficava alguma coisa... O Laboratório
foi um espaço onde podíamos construir, podíamos colocar as dúvidas ali, sem medo
de não poder reverter um eventual erro... O Laboratório é um tempo da vida da gente
em que você procura aprimorar, você está sempre buscando, porque não tem como
parar, não tem porque dizer eu me formei, já aprendi tudo o que eu tinha que
aprender, agora não preciso fazer mais nada... (Joceli).
É possível perceber, através das falas dos professores, que não foram as
modalidades didáticas ou as propostas metodológicas em si que desencadearam em
cada um o processo de mudança e de desenvolvimento profissional. Embora elas
possam ter ajudado a deflagrar o processo, parece evidente que foi a busca
compartilhada de sentido para aquilo que faziam e para o modo como faziam, que os
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 201
fez evoluir, que os levou a ser outros sujeitos, a produzir outras práticas e a estabelecer
outras relações com o conhecimento escolar.
É interessante ressaltar, mais uma vez, que foi durante o caminhar que esses
professores se transformaram. Durante essa trajetória, elaboraram e significaram suas
idéias, saberes e ações. E, aí, não importa se se trata de modelagem, de clube de
Ciências, de aula prática, de jogos ou de outra modalidade didática qualquer. Estas
modalidades, na verdade, são modificadas e transformadas com o tempo, pela prática
reflexiva do professor, à medida que ele as experiencia, constrói seus próprios
princípios didáticos. Esses são os que nortearão sua prática. Ou seja, o princípio
transformador não está nas ações em si, mas sim nas relações que o sujeito estabelece
com elas. É, portanto, também nos meandros das ações, nos espaços intersticiais, que
acontece a experiência autêntica, aquela que realmente forma.
Para entendermos o processo de formação em pensamentos, saberes e ações,
buscamos perceber marcas do que o professor fez no que hoje faz.
Ao olharmos a história de Vera, por exemplo, percebemos o quanto as ações
com os projetos dos jogos influenciou suas ações no projeto de modelagem para
trabalhar com geometria, e como suas experiências passadas vêm influenciando o seu
modo de pensar e agir atualmente. Quando trabalhou com jogos, superou a perspectiva
lúdica. A partir do uso do jogo passou a querer a criação do jogo pelos alunos. Ela
queria que o aluno desenvolvesse estratégias, que ele criasse, e que, nesse processo,
compreendesse conceitualmente os conteúdos. Mais tarde, ao experienciar a
modelagem no ensino, novas mudanças iriam ocorrer, pois passou a perceber as
múltiplas relações que existem entre o mundo da vida cotidiana e o mundo da
matemática. A partir daí, sua prática e sua relação com o aluno e a matemática nunca
mais foi a mesma. Em suas palavras: “foi havendo uma revolução em mim, em forma
de redemoinho, comigo e meus alunos dentro desse redemoinho”.
Ao olharmos para Tânia em sua atividade atual, como formadora de professores,
percebemos que sua angústia pela busca permanente de novos caminhos, de novos
saberes e de novas alternativas para a prática e a formação docentes são recorrentes
desde quando iniciou sua participação no Laboratório, em 1993. O que sempre a
encantou no Laboratório foi a busca de “uma maneira diferente de enxergar a
202 Ettiène Cordeiro Guérios
EPÍLOGO
Vilma, Sonia, Joceli, Marcioney, Tânia, Vera... pessoas normais que fazem parte
do mundo cotidiano. Que abriram suas portas para eu entrar na intimidade profissional
de cada um. E que, então, carregados de emoção, contaram facetas dificilmente
reveladas por métodos clássicos de coleta de dados e informações. Não os recortei,
nem os distribuí em tabelas de dados para análise. Procurei tão somente compartilhar
suas vidas, procurando entendê-las em seus meandros. Aprendi que amar o que se faz,
sem ter medo de ter medo, influencia o percurso de desenvolvimento profissional. Ao
estar com eles, ao permitir que suas histórias fluíssem sem fixar parâmetros que os
delimitassem ou categorizassem, pude perceber a singeleza do movimento
transformativo que foi ocorrendo no processo constitutivo de cada um. Pude,
compreender o que significa estar junto, sentir-se acompanhado e amparado quando
ousamos, individualmente, caminhar por mundos desconhecidos e pouco tutelados.
Por serem pessoas normais, iguais a cada um de nós, possibilitaram que se
desvelasse que o movimento de constituição profissional, embora contínuo e
permanente, não é linear, nem previsível, por considerar os acidentes de percurso e a
ousadia com que cada um os enfrenta, assumindo os riscos da mudança. Ou seja, são
todos, como diz Sonia, “caminheiros que se fazem ao caminhar... Uns chegam com as
mãos cheias, porque numa caminhada conjunta, uns chegam com as mãos vazias,
outros com as mãos cheias, outros com as mãos quase cheias, outros com pouco...
Mas o importante é que, nesta caminhada, caindo, levantando, sacudindo, ajudando
uns aos outros... marcas vão ficando, transformações vão ocorrendo”.
A experiência de caminhar, delineando o próprio trajeto, é única, intransferível e
configura a história de cada um... transformações vão ocorrendo. São transformações
que, fruto de experiências vividas, vão “compondo” o modo de ser do professor. Ou
seja, o processo de formação vivido por cada um pode ser comparado, como o faz
Larrosa (1999, p. 53), a uma viagem:
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 205
(...) o processo de formação está pensado como uma aventura, uma viagem não
planejada e não traçada antecipadamente (...) Experiência formativa seria, então, o
que acontece numa viagem e que tem a suficiente força como para que alguém se
volte para si mesmo para que a viagem seja uma viagem interior. A formação é uma
viagem, que não pode estar antecipada e uma viagem interior na qual alguém se
deixa influenciar a si próprio, se deixa seduzir e solicitar por quem vai ao seu
encontro, e na qual a questão é esse próprio alguém, a constituição desse próprio
alguém e a prova de desestabilização e eventual transformação desse próprio
alguém.
Foi muito difícil de conceber aquele trabalho. Mas muito, muito, difícil. Não tínhamos
noção de como fazer isto. Tivemos medo de desenvolver algo fora do que tinha que ser
feito. Na verdade, nem nós, nem nossa coordenadora de matemática, nem os
professores envolvidos com as outras disciplinas, nem a professora Vilma, nem os
profissionais de órgãos estaduais ligados ao meio ambiente, sabiam exatamente o que
tinha que ser feito. Em matemática, ninguém de nós sabia sequer por onde começar.
Não tinha onde pesquisar, porque não se tinha ouvido falar de um trabalho desse jeito.
DECORRER PROFISSIONAL
208 Ettiène Cordeiro Guérios
Espaços oficiais e intersticiais da formação docente 209
CHARLOTT, B. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre:
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210 Ettiène Cordeiro Guérios
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