Competênica X Caráter - MilitaryReview - Doty Sowden 2010 PDF

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 10

Competência X Caráter?

Ambos São Necessários!


Ten Cel Joe Doty e
Maj Walter Sowden, Exército dos EUA
As opiniões expressas neste artigo são dos autores e não re- mentalidade e abordagem em relação ao treinamen-
fletem as da Academia Militar dos EUA, do Departamento to, ensino e desenvolvimento de caráter dos nossos
do Exército ou do Departamento de Defesa. soldados. Essa total mudança cultural na forma
A competência sem o caráter é uma perversão e a nossa como o Exército treina, educa e desenvolve os solda-
maior ameaça. dos não será divertida ou fácil. Esse tipo de mudan-
—Dr. James Toner1 ça em uma organização tão grande, diversificada e
eficaz como o Exército terá de vir de cima para baixo

V isualize um Exército no qual os soldados


nunca tenham de assistir a aulas e a slides de
PowerPoint sobre ética e liderança. Imagine
um Exército sem aulas que se concentrem exclusi-
vamente nos sete valores do Exército. Considere um
e de baixo para cima.

Em que Pé Estamos?
Qual é o motivo dessa proposta? Por que agora?
Nosso Exército continuará a operar em alguns dos
Exército no qual o desenvolvimento de caráter é inten- ambientes mais moralmente ambíguos e complexos
cionalmente parte de, literalmente, tudo o que fazemos. da história — sem um final à vista. Nosso chefe de
Parece fantasioso e absurdo? Não deveria. Estado-Maior, general George Casey, chama, apro-
Conforme nosso Exército olha para o futuro, pre- priadamente, a presente
cisamos examinar como formamos e desenvolvemos época de era de conflito
soldados e líderes para que possuam o caráter e a com- persistente. Casey e ou- O Maj Walter Sowden
petência que compõem o contrato não negociável entre tros líderes mais antigos é o subchefe de logística
nossa nação e seus profissionais militares. Nossa proposta do 807° Comando de
é que nos livremos de praticamente todo o treinamento Apoio de Desdobramento
e ensino isolados em desenvolvimento ético e de caráter O Ten Coronel Joe Doty, Médico, Posto de Comando
em todo o Exército. Nada mais de aulas sobre assédio Ph.D., Exército dos EUA, Operacional, Seagoville, TX.
sexual. Nada mais de aulas sobre a “lei de guerra terres- é vice-diretor do Centro de Anteriormente, foi diretor
tre”. Nada mais de orientações jurídicas sobre conflito Excelência de Ética Militar de pesquisa e operações
de interesse e aceitação de suborno. Em vez disso, nossa Profissional, na Academia do Centro de Excelência de
proposta é incorporar o ensino de ética e caráter em tudo Militar dos Estados Unidos. Ética Militar Profissional na
o que fazemos, em todos os canais de treinamento, todas Comandou, anterior- Academia Militar dos Estados
as experiências educacionais, tudo. Essa significativa mente, o 1º Batalhão, 27º Unidos. É bacharel pela South
mudança cultural não só será mais produtiva e eficiente, Regimento de Artilharia Dakota State University e mes-
como também acabará sendo mais eficaz e mais acertada de Campanha (Sistema de tre pela Columbia University.
pedagogicamente e exigirá menos recursos. Lançamento Múltiplo de Atuou como comandante de
Entendemos que pedimos uma transformação Foguetes), V Corpo de companhia na 1ª Divisão de
enorme e revolucionária ao propor isso agora. Os Artilharia, Exército dos EUA Cavalaria durante a Operação
líderes do Exército terão de mudar radicalmente sua na Europa. Iraqi Freedom II.

30 Março-Abril 2010  MILITARY REVIEW


CARÁTER

Instruções de segurança com soldados e praças da Força Aérea da equipe de reconstrução provincial de Kapisa-Parwan, na base avan-
çada de operações Morales-Frazier, na Província de Kapisa, Afeganistão, 13 de agosto de 2009, antes de uma missão. (Departamento de
Defesa, Sgt Teddy Wade)

reconhecem que a presente época terá um efeito no jovens o treinamento e a educação necessários para o
desenvolvimento e no ambiente moral e ético do devido desenvolvimento e mudança cognitiva” — o que
nosso Exército. significa que os atuais métodos não estão produzindo os
O nosso é, sem dúvida, o Exército mais competen- efeitos que desejamos2.
te, experiente, bem treinado e equipado do mundo.
Nossos modelos, sistemas e centros de treinamento são, Sinais do Problema
de longe, os melhores, mais avançados e mais eficazes Uma análise recente do currículo do Centro de
do mundo, e nossa superioridade tecnológica é igual- Preparação dos Oficiais da Reserva (Reserve Officer
mente impressionante. O nosso é um Exército em que Training Corps — ROTC) do Exército revelou que mais
o “treinamento é rei”. E com razão. Contudo, ao olhar- de 90% dele se concentra em desenvolver a compe-
mos para o futuro e nos examinarmos de forma crítica tência, enquanto menos de 10% se refere ao ensino de
(como devem fazer os profissionais), constatamos um caráter. Além disso, apenas cerca de 5% da instrução
descompasso entre competência e caráter. do Comando de Instrução e Doutrina do Exército dos
Curiosamente, esse mesmo tema foi abordado há EUA (Training and Doctrine Command — TRADOC)
12 anos pelo coronel Darryl Goldman, agora re- no sistema de ensino tanto de oficiais quanto de
formado, no artigo “The Wrong Road to Character graduados se concentra na ética e na liderança. É essa
Development”, na edição em inglês de janeiro-fevereiro proporção de 5% de caráter para 95% de competência
de 1998 da Military Review. Em seu artigo, Goldman que o Exército quer defender?
também enfocou a necessidade de uma mudança E quanto ao treinamento e ensino voltados ao cará-
cultural em função da natureza compartimentada do ter em nossas unidades? O descompasso entre compe-
nosso treinamento de “caráter”. Observou, de forma tência e caráter existe em nossas unidades (em termos
acertada, que, no Exército, “não proporcionamos aos de tempo devotado a cada um), e as experiências o

MILITARY REVIEW  Março-Abril 2010 31


[…] 90% dele se concentra em desenvolver a
competência, enquanto menos de 10% se refere
ao ensino de caráter.

agravam. Por exemplo, examine o cronograma de trei- trabalho, etc.) como “treinamento obrigatório” ou
namento de qualquer unidade e compare o tempo gasto “ensino em cadeia”. Para executar esse treinamento, o
em competência com o tempo despendido em caráter. Exército normalmente envia apresentações “enlatadas”
Quantas vezes um grupo de combate teve de repetir de PowerPoint para os comandantes e instrutores,
um exercício tático porque ele não correu conforme o ordenando-lhes que treinem todos os integrantes da
planejado? Compare isso com o número de vezes que unidade sobre um tema específico antes de certa data.
um instrutor teve de repetir uma aula sobre os valores Essas aulas consistem em sessões de uma hora no
do Exército. Está claro que há um descompasso. Além cronograma de treinamento da unidade. Durante essa
disso, o Exército começou, recentemente, a eliminar hora, o comandante ou algum outro líder da unidade
vagas para capelães nas escolas mediante um plano de apresenta o treinamento. Depois que o treinamento é
transferir as aulas de ética para o ensino a distância. Por concluído, coloca-se um “X” na lista de conferência e a
muitos anos, essas aulas foram de responsabilidade dos unidade passa para a tarefa seguinte.
capelães. Todos esses são exemplos de uma incapaci- Esse método não é uma forma eficaz de desenvolver
dade sistêmica de entender e implantar uma estratégia um indivíduo ou incutir um valor referente à cultura
holística de ensino e desenvolvimento de liderança ética de uma organização4. Na verdade, pode ter o efeito con-
para o nosso Exército. trário. Esse método de transferir conhecimentos sobre
O Exército, inconscientemente, adotou um mo- esses importantes assuntos não é exclusivo das unidades
delo empresarial ineficaz de treinamento de caráter. valor companhia. É como o treinamento moral e ético
Contudo, as pessoas aprendem melhor a partir da ocorre em todos os níveis do Exército. Infelizmente,
experiência. Treinar para ensinar uma habilidade não funciona e talvez seja até contraproducente:
inclui tentar encaixar uma grande quantidade de Essa tendência de criar iniciativas novas e
experiências em um curto espaço de tempo. Isso se isoladas para tratar vários tipos de má condu-
dá normalmente por meio de uma palestra ou aula. ta em relações humanas constitui o fracasso
Essa abordagem só é eficaz se a intenção é munir o fundamental na forma como as forças mili-
aluno de uma habilidade. Esse é um ótimo método tares americanas abordam o desenvolvimen-
se o resultado almejado é ensinar um soldado como to de caráter desde o governo Eisenhower.
carregar e limpar uma arma ou trocar o pneu de um Presumimos continuamente que as iniciativas
caminhão. Contudo, essa não é a forma de desenvolver isoladas de abordar a ética, moralidade ou
alguém, especialmente no campo moral ou ético. Não valores sejam importantes só porque elas dão
se pode ensinar como reconhecer um dilema moral, a impressão de que “estamos fazendo algo”. Na
avaliar os efeitos potenciais de uma decisão e portar- verdade, essa fé enganosa em projetos novos
-se de forma moralmente correta por meio de uma e desconectados é um sinal de que eles fazem
apresentação de PowerPoint. A única forma de fazer mais mal que bem ao desviar a atenção da li-
isso é desenvolver — mudar — uma pessoa3. derança, que tem a autoridade para provocar
Como em relação à maioria dos temas que ensina- a verdadeira mudança5.
mos no Exército, atualmente transmitimos a ética e os Em outubro de 2008, o Exército realizou uma
valores de forma compartimentada. Isso fica evidente Reunião de Cúpula de Treinamento em Prevenção do
quando se examinam os cronogramas de treinamento Assédio Sexual e Redução de Risco. Durante a reunião
das unidades. Designamos os cursos enquadrados na (cujos palestrantes convidados incluíam o secretário e
categoria de educação moral e ética (respeito, ética o chefe do Estado-Maior do Exército), foi anunciada a
na guerra, assédio sexual, violência doméstica e no nova campanha “I A.M. Strong” para ajudar a prevenir

32 Março-Abril 2010  MILITARY REVIEW


CARÁTER

a agressão sexual no Exército. Por que o Exército pre- Cinco dos comandantes de brigada tiveram de subs-
cisaria tratar de questões de respeito por membros da tituir ou admoestar um chefe ou sargento de pelotão
força singular em 2008? Um dos sete valores do nosso pelo abuso de detentos ou violação das regras de engaja-
Exército é o “respeito”. Temos certeza de que a maio- mento ou regras de escalada da Força. Um comandante
ria das pessoas no Exército sabe os sete valores de cor. de batalhão no Iraque, envolvido em uma investigação
Contudo, não basta decorá-los. Para que os valores do segundo o Artigo 15-6 do Código Uniforme de Justiça
Exército tenham algum significado, é preciso internali- Militar dos EUA sobre as circunstâncias que levaram
zá-los, personificá-los e vivenciá-los. Podemos e deve- a um caso de sequestro e morte horrível, afirmou que
mos ser melhores que isso. seria preciso um “comandante especial” para impedir a
Um poderoso exemplo da mentalidade de “slogan” ocorrência desse terrível incidente (por causa do clima
dos nossos valores do Exército ocorreu em 2005, duran- depreciativo na unidade depois do amplamente divul-
te a corte marcial de um soldado acusado de empurrar gado estupro e assassinato de uma menina iraquiana).
um iraquiano de uma ponte sobre o rio Tigre. Durante Quando lhe perguntaram se o Exército possuía esses
a fase de sentença da corte marcial do soldado, o tenen- “comandantes especiais”, ele respondeu: “sim, mas muito
te-coronel Nate Sassaman, o comandante do batalhão, poucos apenas”7. Como cultivar e desenvolver esses sol-
depôs que todos os integrantes do batalhão portavam dados e líderes especiais para atuarem em um ambiente
um cartão “baseado nos valores do Exército” e “sabiam complexo e moralmente ambíguo que provavelmente
os valores do Exército — de trás para frente — e os se- persistirá por alguns anos ainda?

[…] carregar um cartão impresso com os valo-


res do Exército ou ser capaz de recitá-los não é,
nem de longe, compreender o que as palavras sig-
nificam […]

guiam rigorosamente na verdade”6. Contudo, carregar Treinamento – Ensino


um cartão impresso com os valores do Exército ou ser – Desenvolvimento
capaz de recitá-los não é, nem de longe, compreender O problema principal é que o Exército não dispõe
o que as palavras significam, acreditar nelas, interna- de um modelo para o desenvolvimento de caráter e
lizá-las e por fim, incorporar os valores nos próprios liderança. Temos uma “lista de conferência” de treina-
pensamentos, sentimentos, crenças e comportamentos. mento fragmentada e improvisada, que busca ensinar
Recentemente, durante entrevistas realizadas com caráter e ética aos soldados. Contamos com que os
12 antigos comandantes de brigada que haviam coman- líderes ofereçam aos subordinados “treinamento no
dado tropas no Iraque ou no Afeganistão, constatamos trabalho” em caráter sem um modelo explícito ou es-
que havia frustração e insatisfação com a forma como o tratégia e sem muni-los de conhecimentos e ferramen-
Exército atualmente conduz o treinamento e o ensino tas para realizar a tarefa. Nosso Exército precisa fazer
na área de desenvolvimento moral e ético. Os temas a melhor que isso.
seguir surgiram durante as entrevistas: O caráter deve ser desenvolvido, não ensinado.
• O Exército não faz um bom trabalho em desenvolver O treinamento resulta em uma habilidade, o ensino
os soldados moral e eticamente. resulta em mais ou novos conhecimentos e o de-
• A competência em caráter é tão importante quanto a senvolvimento resulta em uma pessoa transforma-
competência tática para o futuro do nosso Exército. da. Portanto, nosso Exército precisa desenvolver o
• Se tivesse de fazer tudo de novo, gastaria mais tem- caráter e, para se desenvolverem, as pessoas precisam
po desenvolvendo a competência em caráter dos sofrer uma transformação que altere fundamen-
meus soldados. talmente a forma como pensam, sentem e se com-
• O treinamento de ética em sala de aula não é eficaz. portam. Em suma, é preciso que haja uma mudança

MILITARY REVIEW  Março-Abril 2010 33


Um bom teste do caráter dos soldados é como
eles se comportam quando algo dá errado. O ca-
ráter não se revela em um vazio.

permanente. Por exemplo, podemos treinar (trans- Nossa meta precisa ser a de intencionalmente criar
ferindo habilidades e competências) um líder em oportunidades e estabelecer as condições para que os
técnicas de acompanhamento (mentorship). Podemos soldados entendam e internalizem as quatro etapas de
ensinar (transferindo conhecimentos) a um líder o desenvolvimento moral de James Rest9:
processo de desenvolvimento humano por trás dessas • reconhecimento moral;
mesmas técnicas de acompanhamento. Por fim, po- • discernimento moral;
demos desenvolver (mudanças duradouras na identi- • intenção moral;
dade, perspectivas e sistema de criação de significado • ação moral.
de uma pessoa) líderes ao criar uma identidade em Precisamos desenvolver soldados que sejam mais
que eles veem a si próprios como mentores e forma- complexos intelectual e moralmente e que tenham a co-
dores de líderes8. ragem moral de agir segundo suas crenças e valores. Isso
Os soldados revelam o seu caráter pelo seu é mais fácil falar do que fazer. Os programas de sucesso
comportamento — no contexto do seu dia-a-dia e “começam com um modelo que inclui a dimensão cogni-
enquanto exibem sua competência. Um bom teste tiva, afetiva e comportamental… e uma programação tão
do caráter dos soldados é como eles se comportam variada quanto o esclarecimento de valores, a discussão
quando algo dá errado. O caráter não se revela em de dilemas morais, a dramatização e a resolução de con-
um vazio. O conceito de “caráter” está visível no que flitos”. Além disso, há indícios de que “o desenvolvimento
fazemos o tempo todo (embora muitas vezes não moral possa continuar durante a idade adulta e que
pensemos nesses termos). Assim, nosso Exército mudanças especialmente drásticas possam ocorrer em
precisa desenvolver moralmente líderes éticos para jovens adultos no contexto da educação profissional… O
as contingências complexas. desenvolvimento moral e ético ocorre em vários contex-
Como as pessoas desenvolvem o caráter? As tos, tanto formais quanto informais”10.
pesquisas dessa área mostram resultados variados. Nosso Exército precisa criar esses contextos formais
Um poderoso método pedagógico, proposto por Lee e informais e praticar (por meio da dramatização e
Knefelkemp, da Universidade Columbia, em Nova do ensaio) a intenção moral e a ação moral. A maior
York, é fazer com que as pessoas saiam da sua zona lacuna no modelo de Rest é a etapa entre as intenções
de conforto — fazer com que se sintam incomodadas morais e as ações morais. Muitas vezes, nossos soldados
mediante debates sobre assuntos que elas não queiram sabem qual é o certo a fazer, mas (com frequência devi-
discutir. Esse processo provoca uma dissonância cog- do a um sentido distorcido de lealdade) não têm a co-
nitiva na mente das pessoas, que desafia suas crenças e ragem moral para de fato fazê-lo. Há muitos exemplos
leva à mudança. dos nossos conflitos atuais (os espancamentos na base
O Exército precisa adotar uma visão holística do aérea de Bagram, Abu Ghraib, Operação Iron Triangle);
desenvolvimento de caráter. Um modelo comum utili- os soldados sabiam qual era o certo a fazer, mas não o
zado para o desenvolvimento é descrito a seguir: fizeram. Toner observa que esse problema fundamen-
tal tem uma solução: “Um importante problema com
o ensino de ética é que ele não pode ser colocado em
Novos Conhecimentos
compartimentos perfeitos e convertido em resultados
de aprendizagem sonoros e desejados… Não existe uma
solução “mágica” — nenhuma bússola ética sempre se-
Reflexão Experiências de
gura. Devemos ensinar o raciocínio moral, e não apenas
Desenvolvimento
‘valores centrais’ ou ‘listas de conferência éticas’”11.

34 Março-Abril 2010  MILITARY REVIEW


CARÁTER

Albert Bandura descreveu a escolha de não fazer por uma série de prismas éticos (voltados para o re-
nada (ou fazer vista grossa) como um ato de “desco- sultado, voltados para regras/processos, voltados para
nexão moral”: valores). Ao expô-los a operações táticas, multitarefas
Em palavras simples, a “desconexão moral” é e complexas, devemos incorporar variáveis moral-
o que acontece com as pessoas quando elas mente intensas à equação. Devemos buscar fazer com
recebem uma carga além da sua capacidade que os soldados saiam de suas zonas de conforto, gerar
emocional e psicológica. Seus corpos, psiques, ansiedade e exigir que tomem decisões difíceis que
mentes e almas se desconectam dos eventos não tenham uma resposta necessariamente certa, mas
à sua volta e elas se tornam alheias, em um que tenham consequências.
estado quase de dissociação. Se não for con- A orientação (coaching) e o acompanhamento (refle-
trolada, a pessoa “reinterpretará” ou utilizará xão orientada) de qualidade devem ser contínuos du-
uma lógica forçada para justificar comporta- rante todo o processo. Um líder, orientador ou mentor
mentos amorais12. deve ajudar os alunos a encontrar significado em suas

[…] soldados sabem qual é o certo a fazer, mas


(com frequência devido a um sentido distorcido
de lealdade) não têm a coragem moral para de
fato fazê-lo.

A presente era de conflito persistente sobrecarrega experiências e examinar suas percepções e decisões. Os
e continuará a sobrecarregar os soldados além de sua líderes e orientadores também devem transmitir suas
capacidade emocional e psicológica: experiências sem julgar. Escolhemos a palavra “orien-
Para desenvolver o bom caráter, os alunos tador”, e não professor ou conselheiro, porque a forma
precisam de várias oportunidades diferentes como se transmite a mensagem é importante. Para que
para aplicar valores como responsabilidade alguém mude, é preciso que se desenvolva, e isso exige
e justiça em interações e discussões diárias… realismo, experiência e repetição. O ponto-chave é que
Por meio de repetidas experiências morais, os o treinamento é ineficaz quando se tenta desenvolver
alunos… desenvolvem e praticam as habili- as pessoas. “Só depois que o ‘líder em treinamento’ é
dades morais e os hábitos comportamentais obrigado a passar por um problema e resolvê-lo em
que compõem o aspecto da ação do caráter… primeira mão é que ele absorve a lição”14.
em uma comunidade moral e que aprende, na Essa ideia não é nova. A integração do treina-
qual todos compartilham da responsabilidade mento, ensino e desenvolvimento em um modelo ho-
pelo ensino de caráter e buscam aderir aos lístico de desenvolvimento de competência começa a
mesmos valores centrais13. infiltrar-se na cultura do Exército. Nosso Exército se
Como se criam as experiências de desenvolvimento movimenta lentamente em direção a um modelo de
e se introduzem os novos conhecimentos para desen- treinamento e desenvolvimento de liderança adap-
volver os soldados moral e eticamente? Não é difícil, tável. Por causa da complexidade cada vez maior do
mas leva tempo, raciocínio e acompanhamento. Um campo de batalha moderno, os soldados e os líderes
ponto de partida é oferecer aos soldados experiências devem tomar decisões extremamente importan-
simuladas do mundo real, semelhantes às pistas de tes em uma fração de segundo, que têm efeitos de
exercício tático, e acrescentar contextos e situações segunda e de terceira ordem e, às vezes, estratégicos.
realistas a serem enfrentados; desenvolver problemas Não devem ser treinados em habilidades específicas,
do mundo real com os quais eles precisem lidar; criar mas desenvolvidos para possuir certas características
oportunidades para que os soldados e líderes prati- e traços — os soldados e líderes terão de ser ágeis
quem a tomada de decisões éticas e analisem cenários física, mental, social e emocionalmente — e possuir

MILITARY REVIEW  Março-Abril 2010 35


[…] para que a reflexão resulte em desenvol-
vimento, algu […] deve forçar os limites e facilitar
uma experiência de reflexão que faça o indivíduo
sair da sua zona de conforto.
força de caráter e de competência. Todos os soldados Como se Apresenta em Ação
precisam ter a capacidade de pensar de forma crítica Analisemos dois componentes-chave do caráter:
e agir com determinação. o respeito e a integridade. Temas como o respeito
Como mencionado, um aspecto importante do e a integridade não devem ser compartimentados
modelo de desenvolvimento é a reflexão. A reflexão é nos cérebros dos soldados e líderes. O respeito e a
um conceito do qual muitas pessoas no Exército não integridade não são termos vagos e teóricos, sobre
gostam ou não têm conhecimento, mas é vital para o os quais devamos pensar e discutir ocasionalmente.
desenvolvimento do caráter. A reflexão implica que Eles devem ser o que somos. Os soldados não podem
uma pessoa (ou grupo) pense, escreva e discuta em compreender e demonstrar o respeito e a integridade
detalhe sobre uma experiência, ideia, valor ou novo em termos de estar “de serviço” ou “de folga”. O re-
conhecimento. Além disso, para que a reflexão resulte cente escândalo sexual envolvendo sargentos instru-
em desenvolvimento, alguém (um líder de grupo de tores e recrutas é um exemplo dessa mentalidade “de
combate, um sargento ou chefe de pelotão, um orien- serviço” em contraste com “de folga”.
tador ou um mentor) deve forçar os limites e facilitar Por exemplo, um comandante de pelotão pode
uma experiência de reflexão que faça o indivíduo sair discutir a importância de um relatório preciso de
da sua zona de conforto. contagem e aprestamento de recursos ao conduzir uma

Soldados do Gabinete de Relações Públicas ouvem um graduado na Estação de Segurança Conjunta Zafaraniya, leste de Bagdá, Iraque,
18 de abril de 2009. (Exército dos EUA, Sgt James Selesnick)

36 Março-Abril 2010  MILITARY REVIEW


CARÁTER

inspeção da seção de transportes. Um comandante de integrar lições de caráter e competência no currículo.


batalhão pode iniciar uma discussão de dez minutos Os indivíduos mais aptos a modificar essa cultura no
sobre o respeito no final de uma reunião de treina- Exército são os selecionados para liderar os soldados nos
mento. Um comandante de companhia pode discutir escalões de companhia, batalhão e brigada — os co-
lealdades conflitantes com outros comandantes ou com mandantes e os sargentos-ajudantes. Esses líderes-chave
soldados durante uma refeição. Durante um intervalo têm a influência mais direta sobre os soldados e líderes
de “descanso” selecionado em um exercício de treina- subordinados e devem liderar o caminho na transfor-
mento da missão, um sargento de pelotão pode inserir mação da cultura (e ambiente) do Exército. Também
uma discussão de cinco minutos sobre a importância estabelecem a cultura e o ambiente de suas unidades de
da precisão nos relatórios. Há inúmeras oportunidades modo que os soldados façam e se sintam parte da equipe.
como essas, e vale lembrar que, de uma perspectiva de Os líderes-chave de uma organização têm mais êxito em
desenvolvimento, “a omissão de discurso não é uma mudar sua cultura16.

Podemos e devemos tornar assuntos como ho-


nestidade e integridade parte comum da conver-
sa nas seções de transporte, bases avançadas de
operações, áreas de treinamento, postos de co-
mando de comandantes de subunidades e praças
de esporte.
educação de valor neutro. Isso não existe. A omissão é Portanto, os comandantes e subtenentes em todos
um sinal poderoso, ainda que não intencional, de que os escalões devem desafiar uns aos outros e desafiar seus
essas questões não são importantes”15. Em consequên- soldados a ajudar a mudar nossa cultura. Essa não é uma
cia, quando nosso Exército, em qualquer canal, deixa tarefa intensiva em recursos. Podemos e devemos tornar
de abordar implicações morais e éticas, uma mensagem assuntos como honestidade e integridade parte comum
clara é transmitida para o público: “No presente mo- da conversa nas seções de transporte, bases avançadas
mento, isso não é tão importante”. de operações, áreas de treinamento, postos de comando
Um ponto de partida para implantar essa mudança de comandantes de subunidades e praças de esporte.
pode ocorrer em nossas escolas se os instrutores sim- Devemos falar abertamente e à vontade sobre o que
plesmente se perguntarem: “Quais são alguns dos desa- essas palavras significam. Devemos ter diálogos abertos
fios éticos que surgem em minha disciplina (gestão de e francos sobre o tema do respeito (Em que consiste? Em
manutenção, tática, primeiros socorros, comunicações, que não consiste?). Essas discussões não precisam ser aulas
Inteligência, segurança de tiro, gestão de suprimento, formais, constantes de um cronograma de treinamento.
operações de comboio, etc.)? O instrutor pode, então, Desenvolver as pessoas para serem mais complexas mo-
inserir os desafios no currículo ou mediante técnicas ral e intelectualmente (em vez de treiná-las ou ensinar-
pedagógicas. Por exemplo, uma aula sobre como reali- -lhes os assuntos) exige tirá-las de suas zonas de conforto
zar verificações e serviços de manutenção preventiva e falar com elas, e não a elas.
em um veículo pode incluir uma discussão sobre a im- Os comandantes e outros líderes devem deixar que
portância de relatórios precisos sobre o aprestamento jovens soldados liderem discussões nessas áreas. Um
do material bélico. O instrutor talvez diga: “seus colegas comandante de pelotão pode solicitar que um especia-
soldados podem ser colocados em risco se você infor- lista dê um exemplo de um conflito entre lealdade e
mar que uma viatura está plenamente habilitada para integridade. Dois sargentos de pelotão podem discutir
a missão quando, na verdade, não está”. Na solução de o que não constitui o respeito na frente de seus pelotões.
longo prazo, especialistas no campo de desenvolvimen- Um grupo de soldados pode atuar em uma dramati-
to de caráter auxiliariam o TRADOC e nossas escolas a zação de exemplos de honestidade. A interação entre

MILITARY REVIEW  Março-Abril 2010 37


Soldados americanos e policiais de fronteira afegãos caminham ao longo de uma trilha de montanha durante uma patrulha na Província
de Paktiya, no Afeganistão, 13 de outubro de 2009. (Exército dos EUA, Sgt Andrew Smith)

colegas quanto a esses temas difíceis e incômodos é uma diferente nas mentes dos comandantes. Os comandantes
das técnicas de desenvolvimento mais eficazes. Somos compreenderão que, se deixarem de desenvolver o caráter
limitados nessa área apenas pela nossa imaginação e de seus soldados de forma adequada e plena, estabelecerão
não precisamos reservar um período de instrução de condições para o fracasso.
uma hora para iniciar essas discussões.
Garantir que os soldados de uma unidade verdadeira- Como Mudar uma Cultura
mente tenham caráter (e sejam competentes) é uma res- A mudança que defendemos seria uma transfor-
ponsabilidade de liderança e comando em seu nível mais mação revolucionária na cultura do Exército, não uma
básico. Como a maioria dos “problemas” no Exército, esse é transformação gradual ou metódica. Para que ela seja efi-
simplesmente um problema de liderança. Historicamente, caz, os líderes dos escalões mais elevados da organização
“os comandantes são responsáveis por tudo que uma teriam de exigi-la. Esses líderes precisam criar, direcionar
unidade faz ou deixa de fazer”. Esse é um conceito sim- e impulsionar essa mudança para assegurar que ela afete
ples, mas poderoso. Curiosamente, em termos de aceitar todas as facetas dos sistemas de desenvolvimento e ensi-
responsabilidade pelo ambiente e comportamento de “ca- no de liderança do Exército17. O atual status quo separa o
ráter” de uma unidade, podemos aprender algo dos nossos desenvolvimento de competência do baseado em caráter.
companheiros de armas da Marinha. Se nosso Exército O novo paradigma sempre desenvolverá a competência
adotasse o conceito da Marinha de que “se um navio enca- e o caráter simultaneamente — aumentando, assim, o
lha, o comandante é o responsável”, criaria um paradigma tempo gasto no desenvolvimento do caráter.

38 Março-Abril 2010  MILITARY REVIEW


CARÁTER

Depois da mudança cultural, a competência e o facilitar essas conversas incômodas. Entretanto, boa
caráter passarão a fazer parte de tudo o que fizermos. parte da estratégia para implantar essa mudança é
Como um guia para impulsionar essa mudança, propo- “simplesmente fazê-lo”. Precisamos estabelecer as
mos que se utilizem os oito passos de John Kotter para condições e criar oportunidades para os soldados
mudar a cultura de uma organização: pensarem sobre a forma como entendem questões di-
1. estabelecer um sentido de urgência (de cima para fíceis, como o assassinato, a tortura, o estupro, e como
baixo e de baixo para cima); elas são relacionadas com detentos e estrangeiros. Os
2. criar uma coalizão orientadora (para iniciar e con- soldados precisam testar e desafiar seus pensamentos,
tinuar o processo); crenças e valores. Esse simples primeiro passo será, na
3. desenvolver uma visão e estratégia para integrar o realidade, um enorme passo rumo a tratar da mudan-
caráter e a competência; ça cultural que propomos.
4. comunicar a visão de mudança utilizando os líderes Se o Exército decidir realizar essa mudança
mais antigos; cultural, economizará na verdade tempo e dinheiro.
5. possibilitar a ação de base ampla ao remover obstá- A economia líquida ocorrerá porque os soldados não
culos à mudança; terão mais de entrar em salas de aula ou auditórios
6. gerar ganhos de curto prazo integrando o ensino de para assistirem a treinamentos referentes a ética.
caráter em nossos currículos; Nosso Exército se transformará em uma profissão
7. consolidar os ganhos e produzir mais mudança em que o treinamento, ensino e desenvolvimento de
(integrando o ensino de caráter em nossos canais caráter e competência ocorrerão simultaneamente
de treinamento); — e o resultado será soldados que entendem e
8. fixar novas abordagens na cultura desafiando ou- internalizam o que significa ser um soldado america-
tros na organização a falar sobre a mudança18. no. Por fim, nosso Exército e nossa nação se benefi-
Haverá uma curva de aprendizado pronuncia- ciarão de tal mudança. É a coisa certa a fazer e agora
da para os instrutores e líderes sobre como criar e é a hora de fazê-lo.

Referências
1. TONER, James. “Mistakes in Teaching Ethics”, Airpower at the Harvard Business School (Boston, Massachusetts: Harvard
Journal (Summer 1998). Business School, 2007), p. 13.
2. GOLDMAN, Cel (reformado) Darryl. “The Wrong Road 11. TONER, p. 5.
to Character Development”, Military Review ( January-February 12. BANDURA, Albert. “Moral Disengagement in the Perpe-
1998). tration of Inhumanities”, Personality and Social Psychology Review
3. MOYER, Don. “Training Daze”, Harvard Business Review 3, no. 3, (1999), pp. 193–209; JAMES, Cel (reformado) Larry;
(October 2008): p. 144. FREEMAN, Gregory. Fixing Hell: An Army Psychologist Confronts
4. BEBEAU, Muriel; REST, James; NARVAEZ, Darcia. “Beyond Abu Ghraib (New York: Grand Central Publishing, 2008), p. 149.
the Promise: A Perspective on Research in Moral Education”, 13. HUNTER, James. The Death of Character: Moral Education
Educational Researcher (May 1999). in an Age Without Good or Evil (New York: Basic Books, 2000).
5. GOLDMAN. 14. VANDERGRIFF, Don. Raising the Bar, Creating and Nurtu-
6. SASSAMAN, Nathan; Layden, Joe. Warrior King: The Trium- ring Adaptability to Deal with the Changing Face of War (Washin-
ph and Betrayal of an American Commander in Iraq (New York: gton, DC: Center for Defense Information, December 2006).
St. Martin’s Press, 2008), p. 289. 15. PIPER; GENTILE; PARKS, p. 6.
7. Entrevista pessoal, outubro de 2008. 16. SHEIN, Edgar. Organization Culture, and Leadership, 2d
8. HANNAH, Cel Sean. Leader and Leadership Development: ed. (San Francisco, CA: Josey Bass, 1992).
Concepts and Processes, apresentação (2008). 17. BURKE, Warner. Organizational Development: A Process
9. REST, James. Development in Judging Moral Issues (Minnea- of Learning and Changing, 2d ed. (New York: Addison-Wesley
polis, Minnesota: University of California Press, 1979). Publishing Co., 1992).
10. PIPER, Thomas; GENTILE, Mary; PARKS, Sharon Daloz. 18. KOTTER, John. A Force for Change: How Leadership
Can Ethics Be Taught? Perspectives, Challenges and Approaches Differs from Management (New York: Free Press, 1990).

MILITARY REVIEW  Março-Abril 2010 39

Você também pode gostar