0% acharam este documento útil (0 voto)
11 visualizações

2021 Dis Rnmoreira

Este trabalho estuda a produção literária de autores negros no Brasil, focando na obra 'Olhos d'água', de Conceição Evaristo. Apresenta o contexto de ausência e estereótipos sobre negros na literatura brasileira e as iniciativas dos movimentos sociais negros. Analisa elementos comuns na literatura negra como ponto de vista e linguagem, e características da obra de Evaristo. Os contos de 'Olhos d'água' narram um processo de violência que enfraquece as relações sociais.

Enviado por

Ariston
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
0% acharam este documento útil (0 voto)
11 visualizações

2021 Dis Rnmoreira

Este trabalho estuda a produção literária de autores negros no Brasil, focando na obra 'Olhos d'água', de Conceição Evaristo. Apresenta o contexto de ausência e estereótipos sobre negros na literatura brasileira e as iniciativas dos movimentos sociais negros. Analisa elementos comuns na literatura negra como ponto de vista e linguagem, e características da obra de Evaristo. Os contos de 'Olhos d'água' narram um processo de violência que enfraquece as relações sociais.

Enviado por

Ariston
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
Você está na página 1/ 127

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE LITERATURA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

ROBSON NOGUEIRA MOREIRA

LEITURAS EM TORNO DE OLHOS D’ÁGUA, DE CONCEIÇÃO EVARISTO

FORTALEZA
2021
ROBSON NOGUEIRA MOREIRA

LEITURAS EM TORNO DE OLHOS D’ÁGUA, DE CONCEIÇÃO EVARISTO

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Letras do Centro de
Humanidades da Universidade Federal do
Ceará, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Literatura
Comparada. Área de concentração:
Literatura Comparada.

Orientador: Prof. Dr. Atilio Bergamini


Junior

FORTALEZA
2021
ROBSON NOGUEIRA MOREIRA

LEITURAS EM TORNO DE OLHOS D’ÁGUA, CONCEIÇÃO EVARISTO

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Letras do Centro de
Humanidades da Universidade Federal do
Ceará, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Literatura
Comparada. Área de concentração:
Literatura Comparada.

Aprovada em: 04 / 08 / 2021.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________
Prof. Dr. Atilio Bergamini Junior (Orientador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)

_____________________________________
Prof.a Dr.a Irenísia Torres de Oliveira
Universidade Federal do Ceará (UFC)

_____________________________________
Prof.a Dr.a Sarah Maria Forte Diogo
Universidade Estadual do Ceará (UECE)
AGRADECIMENTOS

À FUNCAP, pela bolsa de auxílio concedida.


À Maria Angelica, pela força e a fé na vida.
Ao Aníbal, pelo exemplo de superação.
À Lu, à Tê e ao Luisinho, pelo que cada um tem me ensinado.
Ao Atilio Bergamini, pelas leituras, orientações, paciência – apesar das dificuldades
de socialização deste orientando –, pela presença solidária e crítica dentro e fora da
universidade.
Aos professores e professoras com quem pude aprender ao longo desses anos.
Ao Antonio, à Dani, ao Issac, à Jemima, ao Jeová, à Luzia, ao Marcelo, à Vanessa,
pelos tempos idos e pela amizade.
Ao Grupo de Estudos Marielle, em especial a Andressa Barbosa, Fafá Ferreira,
Karina de Moraes, Luane Mota, Maria Porfírio, Rinaldo Viana, Samuelson Xavier e
Ues Batista, pela recepção, os afetos e as discussões.
Aos amigos do PPG: Alejandra, André, Camila, Djavam, Melissa e Renato.
Ao Diego e ao Vitor, pelo trabalho que fazem ao PPGLetras.
À Irenísia Oliveira e à Sarah Forte, por aceitarem formar a banca, pelas críticas e
comentários.
RESUMO

A seguinte pesquisa estudou o debate em torno da produção literária de autores(as)


negros(as) no Brasil. De modo específico, focalizou a obra Olhos d’água (2016), de
Conceição Evaristo. O trabalho apresentou um percurso que parte de uma
contextualização sobre uma ausência e estereótipos relacionados às pessoas
negras na literatura brasileira. Em seguida, foram apresentadas as inciativas dos
movimentos sociais e intelectuais negros(as) ao lado da produção literária. No
percurso, procurou-se trazer a discussão teórica recente em torno da literatura
negra/afro-brasileira, apresentando como essa produção consolidada (DUARTE,
2014) tem sido caracterizada pela crítica especializada. Assim, o trabalho analisou
as escolhas temáticas, linguísticas e de construção narrativa comuns à literatura de
autoria negra na literatura brasileira, e as particularidades da produção de
Conceição Evaristo. Para isso, o estudo utilizou sobretudo as análises de Fernandes
(2007; 2017), Gonzalez (2020), Slenes (2011), Moura (1992), Lemkin (2009) e
Nascimento (2016). Através de uma pesquisa de caráter bibliográfico e de
abordagem qualitativa as leituras descreveram a relação de autores(as) negros(as)
com os movimentos sociais, os quais foram abrindo novas possibilidades de
representação literária. O trabalho mostrou que os contos de Olhos d’água narram
um processo social de violência e debilitação das relações sociais entre os
indivíduos e as coletividades. Diante de tal contexto, lemos nas narrativas gestos e
falas de antecipação e antevisão que representam uma tentativa de prevenção de
desfechos desastrosos.

Palavras-chave: literatura brasileira; literatura negra; Conceição Evaristo.


RESUMEN

La siguiente investigación estudió el debate en torno a la producción literaria de


autores negros en el Brasil. De manera específica, focalizó la obra Olhos d’água
(2016), de Conceição Evaristo. El trabajo reunió un recorrido, que parte de una
contextualización respecto a una ausencia y estereotipos relacionados a las
personas negras en la literatura brasileña. Luego, estan presentadas las iniciativas
de los movimientos sociales y intelectuales negros al lado de la producción literaria,
que va siendo recreada a la medida que aquellos movimientos abren nuevas
possibilidades de representación literaria y interpretación del Brasil. En este
recorrido se buscó traer la discusión teórica reciente alrededor de la literatura
negra/afro-brasileña, presentando como dicha producción consolidada (DUARTE,
2014) ha sido caracterizada por la crítica especializada. Por lo tanto, fueron
analizadas elecciones temáticas, lingüísticas y de construcción narrativa comunes a
la literatura de autoría en la literatura brasileña, y las particularidades de la ficción de
Conceição Evaristo. Para esto, el estudio utilizó sobre todo las análisis de Fernandes
(2007, 2017), Gonzalez (2020), Slenes (2011), Moura (1992), Lemkin (2009),
Nascimento (2016). A través de una investigacón de carácter bibliográfico y de un
enfoque cualitativo las lecturas describierón la relación de escritores(as) negros(as)
con los movimientos sociales, los cuáles fueran abriendo nuevas posibilidades de
representación literária. El trabajo mostró que los cuentos de Olhos d’água narran un
proceso social de violencia y debilitamiento das relaciones sociales entre los
individuos y las colectividades. Delante de tal contexto, leímos en las narrativas
gestos e hablas de antecipación y previsión que representan la tentativa de
prevención de desenlaces desastrosos.

Palabras clave: literatura brasileña; literatura negra; Conceição Evaristo.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO……………………………………………………………. 8
2 OS NEGROS NA LITERATURA BRASILEIRA: ENTRE A
AUSÊNCIA E O ESTEREÓTIPO……………………………………….. 17
3 A LITERATURA NEGRA/AFRO-BRASILEIRA NA ESTEIRA DOS
MOVIMENTOS SOCIAIS NEGROS……………………………………. 31
4 UMA LOCALIZAÇÃO SOCIO-AXIOLÓGICA NO TEXTO
LITERÁRIO NEGRO…………………………………………………….. 48
5 ELOS AFETIVOS, AMPLIAÇÃO AFETIVA E QUILOMBAGEM…… 67
6 NARRATIVAS CONTÍGUAS DE UM GENOCÍDIO COTIDIANO…… 82
7 A BUSCA POR UMA PALAVRA PARA NOMEAR AS
NARRATIVAS…………………………………………………………….. 1061
8 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS………………………………. 119
REFERÊNCIAS...….……………………………………………………... 122

1 O trabalho apresenta esta quantidade de capítulos meramente por acaso, não fazendo parte de
qualquer significado, seja numerológico ou qualquer outro.
8

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho insere-se no debate sobre a produção literária de autoras e


autores negras(os) no Brasil e dedica-se a estudar a literatura na esteira dos
movimentos sociais negros. No segundo capítulo, após a introdução, serão
apresentadas principalmente reflexões de caráter teórico-histórico tratando de uma
tendência que tem apontado uma ausência/lacuna ou estereotipificação/folclorização
no que diz respeito à representação de pessoas negras na literatura ou no que se
refere à fortuna crítica sobre a produção desses autores. Em seguida, no terceiro
capítulo, será feito um panorama dos movimentos sociais negros e a relação deles
com a produção literária de autores negros no país. Depois, no quarto capítulo,
apresenta-se uma descrição e análise dos elementos textuais que têm caracterizado
esse segmento literário no Brasil, a exemplo da relação entre autoria e ponto de
vista, o uso da linguagem coloquial, o recurso da memória e a formação de uma
cartografia temática. Ao longo dos três capítulos iniciais procuraremos inserir
análises de textos literários de Conceição Evaristo e outros escritores, a exemplo de
Maria Firmina dos Reis, Luiz Gama, Gonçalves Crespo e Rubem Fonseca.
Em seguida, o quinto capítulo concentra-se mais detidamente na obra
Olhos d’água (2014), procurando dialogar ainda com outros textos teóricos e
literários. Debruçando-se sobre os elementos de composição da série de contos,
leremos o estabelecimento de elos afetivos entre as personagens enquanto uma
ampliação afetiva e a relação dela com o movimento de quilombagem do século XIX.
Após descritos tais vínculos, no sexto capítulo leremos naquela obra uma dimensão
de contiguidade que aproxima temporalmente as narrativas que a compõem, e
analisaremos os contextos de violência retratados na coletânea. Por fim, serão lidos
falas e gestos das personagens que parecem expressar um movimento de antevisão
e precaução ante o desenrolar de ações danosas às relações entre as pessoas e os
grupos sociais representados na obra.
Devido à condição interdisciplinar do texto literário, e às constantes
demandas de Olhos d’água por outros âmbitos, ao longo da pesquisa viemos
sentindo a necessidade de trazer contribuições da Sociologia e da História para
colaborara nas análises. Houve a necessidade de revisitar alguns(mas)
9

escritores(as), textos e movimentos sociais em seu comprometimento em examinar


a história das pessoas negras e interpretar o Brasil. Nesse sentido, buscamos as
contribuições de teóricas das análises de Florestan Fernandes (2007, 2017), Lélia
Gonzalez (1982a, 1982b, 2020), Celia Maria Marinho de Azevedo (1987), Robert
Slenes (2011) e Clóvis Moura (1992).
Existe um longo debate sobre o início dessa tradição literária. Alguns
pesquisadores consideram que as primeiras produções datam do século XVIII
(DUARTE, 2014). A escritora e pesquisadora Miriam Alves considera que essa
produção passou a ser autonomeada pelos seus próprios produtores durante a
década de 1970. Por volta dos anos 1960-70, constituiu-se uma série de antologias,
publicações de estudos autorreflexivos e eventos sobre a produção literária de
escritores(as) negros(as), sobretudo no eixo Rio-São Paulo.
Entre essas iniciativas e organizadores, podem ser citadas entre 1969 e
1978, as edições e distribuições de obras por conta dos próprios escritores, a
exemplo de Bélsiva, Éle Semog, Arnaldo Xavier, Cuti (SILVA, 2016). Este último, em
São Paulo, foi um dos idealizadores dos Cadernos Negros, série literária
fomentadora da criação e divulgação de textos em prosa e poesia, de autores
negros(as), de 1978 até o presente momento. Naquele mesmo ano, é publicada a
antologia Ebulição da Escrivatura: treze poetas impossíveis, ligada ao coletivo Garra
Suburbana, do Rio de Janeiro. De 1976 a 1978 funciona o Curso de Cultura Negra
no Brasil, ministrado por Lélia Gonzalez e dedicado à análise de instituições, valores
e presença negras na formação do Brasil, por meio de seminários, exposições
artísticas e lançamento de livros (GONZALEZ, 1982a). Em 1974, é criado, na
Universidade Federal Fluminense, o Grupo de Trabalho André Rebouças, do qual a
historiadora Maria Beatriz Nascimento foi uma das fundadoras e que realizou, entre
outras atividades, a Primeira Semana de Estudos sobre o Negro na Formação Social
Brasileira. Esses trabalhos, por sua vez, fazem parte de uma tradição de
associações que datam pelo menos do início do século XIX.
Mais recentemente, no início dos anos 2000, algumas iniciativas,
resultadas também das lutas dos movimentos sociais, mas não só, podem ter
influenciado na continuidade de debates, encontros e eventos sobre a literatura de
autoria negra no país, por exemplo: a implementação de ações afirmativas, como a
10

lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nas
instituições de ensino fundamental e médio, públicas e privadas; mais tarde a
11.645/08, que inclui também a história e a cultura indígenas. Além dessas
conquistas, a crescente discussão sobre o tópico das identidades ditas
“subalternas”, e o maior acesso à educação superior por parte das populações
negras podem ser outros fatores que intensificaram o debate sobre essa produção
literária no Brasil dos últimos anos.
Para conduzir nossa pesquisa escolhemos o livro Olhos d’água, um
conjunto de 15 contos publicado em 2014 por Conceição Evaristo. Fazem parte da
coletânea onze contos já publicados na série Cadernos Negros desde 1991 e outros
quatro inéditos, até onde conseguimos confirmar. Na coletânea, deparamo-nos com
personagens diante de situações extremas, atravessadas pelas problemáticas que
caracterizam a vida não só de crianças, mulheres e homens negras no Brasil, mas
dos povos brasileiros na sua diversidade, em seu conjunto herdeiras(os) de
desiguais condições sociais e raciais.
A escolha por ler as questões sociais e raciais dentro da ficção literária de
Conceição Evaristo explica-se, primeiramente e de modo geral, pela capacidade
daquele discurso de apreensão e composição da realidade de maneira que permite
acessar as contradições muitas vezes ocultas da sociedade brasileira, como é
característico da literatura e das artes em geral. Depois, deve-se ao fato de que a
obra literária sobre a qual está debruçada esta pesquisa também expõe, mas não
só, a história coletiva do grupo social e racial do qual faz parte este inexperiente
pesquisador, enquanto homem negro e da classe popular brasileira, ao mesmo
tempo em que ainda permite uma leitura da história do Brasil como um todo.
Antes, abrimos um espaço para explicar um dado da construção de nosso
texto. Como já é possível observar, optamos predominantemente pela escrita na
primeira pessoa do plural. A escolha justifica-se por dois motivos. Primeiro, por
encontrar nela uma ligação de maior alcance com a classe popular e negra da qual
fazemos parte. Recorrendo ao poeta, militante e pesquisador Luiz Silva, mais
conhecido pelo nome Cuti, pode se tratar de um plural de comunhão histórica (CUTI,
2010, p. 113), e, acrescentaríamos, também social. Almejamos incorporar nesse
plural, algo que só simbolicamente conseguiríamos, a experiência e a voz de tantos
11

outros e outras, – sem deixar de reconhecer que somos iguais na diferença e na


diversidade. Depois, porque a escolha desse plural não deixa esquecer que uma
pesquisa não se faz isoladamente. Dentro desse coletivo reconhecemos não só as
autoras e autores lidos, mas também cada pessoa e grupo com quem mantivemos
diálogo ao longo do processo de pesquisa e escrita.
O livro Olhos d’água, quarto publicado de Conceição Evaristo, reúne
contos que, a partir de uma camada de interpretação temática, podem revelar
personagens submetidas a processos de marginalização em diversos setores da
sociedade brasileira. Entre os tipos sociais presentes na obra estão mulheres,
homens e crianças negras e brasileiras(os) de modo geral na condição de
moradores(as) de barraco e de marquises, na mendicância, na prostituição, nos
serviços domésticos e no trabalho infantil. Essas personagens fazem parte de um
mapa de ausências na literatura contemporânea, como ficou demonstrado a partir do
estudo coordenado por Regina Dalcastagnè (2012).
A pesquisadora selecionou um corpus de 258 romances, publicados entre
1990 e 2004, por três editoras reconhecidas nacionalmente. Partindo de algumas
categorias a exemplo de raça/cor, sexo e posição socio-econômica, Dalcastagnè
apresenta resultados estatísticos e constata que as personagens desse recorte são
em sua imensa maioria brancas, do sexo masculino e de classe média. A partir
desses resultados a pesquisadora reforça que o campo literário tem refletido a
estrutura excludente da sociedade brasileira, gerando um ciclo homogêneo de
temas, enredos e personagens que invisibiliza a incorporação de outros enredos de
todo e qualquer grupo humano excluído dessa mesma estrutura. Aquela parcela de
“invisíveis” é a mesma que integra e protagoniza os contos de Olhos d’água, o que
pode fazer da obra, do ponto de vista da representação, uma contribuição no
suprimento de uma ausência de personagens situadas nesses lugares sociais.
Numa camada temática de leitura, as personagens dos contos são
apresentadas em contextos de perseguições policiais, assassinatos, fomes,
dificuldades no acesso à moradia e ao serviço de saúde, fugas e migrações,
rompimento de laços familiares e comunitários. As violências decorrem de vários
aspectos, entre eles os contextos de pobreza econômica, que têm relação com
outras tramas, as relações raciais e de gênero, por exemplo. Essa combinação
12

aproxima ainda mais as personagens de situações-extremas entre humanidade e


animalidade, vida e morte, liberdade e opressão.
Aquela relação entre protagonização e invisibilidade e os contextos em
que as personagens de Olhos d’água são apresentadas nos contos permitem
remeter à noção de “ordem social competitiva”. Em O negro no mundo dos brancos,
Florestan Fernandes refere-se de maneira menos detalhada à noção. De modo mais
desenvolvido, a noção é trabalhada em A revolução burguesa no Brasil,
originalmente publicada em 1974.
Nalgumas reflexões daquela obra, Fernandes procurou analisar a
situação brasileira a partir de duas perspectivas: a sincrônica e a diacrônica. A
primeira evocaria relações que guardariam efeitos dos modelos sociais anteriores a
1888, persistindo, assim, um caráter não moderno. A segunda seria atribuída à
revolução burguesa, que, em São Paulo, expressaria o padrão mais definido de uma
ordem social competitiva (FERNANDES, 2007, p. 19). Haveria, nessa perspectiva, a
conservação de uma estrutura não moderna, arcaica, que persistiria mais ou menos
intacta na sociedade brasileira mesmo nas grandes mudanças sociais. Fernandes
atentava, então, para o caráter desigual da modernização no Brasil, que não
alcançava todas as esferas da vida social (ibidem, p. 48).
Alguns contos evaristianos demonstram distanciar-se de um tom fatalista,
destacando a condição de agentes das pessoas representadas, ao construírem-nas
dentro de relações desiguais e capazes de utilizarem-se da fantasia, de uma
contraviolência2, ou da negociação na tentativa por transformar ou lidar com as
situações nas quais são retratadas nas narrativas.
Ao mesmo tempo, a essa dimensão mais áspera das experiências dos
personagens, Conceição Evaristo costura outra, que parece ser sugerida a partir de
dois elementos. Quando mencionamos anteriormente que um traço distintivo da
literatura de Evaristo é o olhar lançado sobre as personagens socialmente
marginalizadas, não foi à toa que utilizamos o verbo olhar. O olhar que jorra água
2 A noção de contraviolência é proposta por Florestan Fernandes ao analisar o potencial da
interpenetração da luta de classes e da luta de raças. Segundo o sociólogo, essas duas
categorias se fortalecem mutuamente na sociedade brasileira, de maneira que poderiam fornecer,
em conjunção, uma reação para transformar as desigualdades de classe e raça, e forjar uma
sociedade racial e socialmente igualitária. Nas palavras de Fernandes, em Março de 1988, “o
dilema social representado pelo negro liga-se à violência dos que cultivaram a repetição do
passado [escravocrata] no presente. E exige uma contraviolência que remova a concentração
racial da riqueza, da cultura e do poder” (FERNANDES, 2017, p. 84).
13

estampado em aquarela na capa3 de Olhos d’água e o próprio título, que


geologicamente pode remeter ao local onde se observa o florescimento de água
pelos lençóis freáticos, são chaves de leitura que prenunciam um aspecto da escrita
de Evaristo. Recuperando a conotação da água, elemento que em diversas culturas
está relacionado ao campo emocional do ser humano, sua presença frequente nas
narrativas pode indicar o cuidado da escritora com os aspectos emocionais e
subjetivos das personagens.
Além dos processos mais dramáticos vividos pelas populações
brasileiras, incluída nesse conjunto a parcela dos povos negros, em Olhos d’água a
escrita materializa criativamente uma perspectiva que traz à superfície as dimensões
emocionais decorrentes das relações sociais e raciais no Brasil. As personagens são
evocadas “em seus vínculos e dilemas sociais, sexuais, existenciais, numa
pluralidade e vulnerabilidade que constituem a humana condição” (GOMES, 2016).
Essa operação estilística de Evaristo é sintetizada, nas palavras de Eduardo de
Assis Duarte, por meio da ideia de “brutalismo poético” (DUARTE, 2006) e na
combinação de “violência e sentimento, de realismo cru e ternura”, nos termos de
Duarte e Campos (CAMPOS; DUARTE, 2014). A partir da leitura das narrativas
evaristianas é possível também inverter essa síntese e identificar nelas uma prosa
poética brutal, o que põe em evidência a característica contragressiva,
contraviolenta encontrada nos contos, em uns mais, noutros menos. Entre os
enredos em que a característica acima aparece mais abertamente, podemos citar
“Ana Davenga”, “Maria”, “Quantos filhos Natalina teve?” e “Os amores de Kimbá”.
Entre aqueles em que a característica é menos explícita destacamos “Beijo na face”,
“Luamanda” e “O cooper de Cida”.
Semelhante tom da escrita de Conceição Evaristo guarda reflexo em sua
trajetória pessoal e literária. No ensaio “Gênero e etnia: uma escre(vivência) de
dupla face” (2005), a escritora relembra sua adolescência já marcada pela
consciência de raça e de classe. Vale lembrar que Maria da Conceição Evaristo de
Brito nasceu em 1946, período em que, em termos de movimentos negros, ao
3 O projeto da capa é de autoria de Aron Balmas, designer gráfico e tradutor na editora Pallas
desde 2007. Entre os trabalhos de tradução de Balmas estão Duplo Duplo (2013) e Eu (2013),
ambos da venezuelana Menena Cottin. De acordo com apresentação no portal virtual, a editora
dedica-se a “temas afrodescendentes” em variados campos de conhecimento, tendo publicado,
além de Conceição Evaristo, autores como Nei Lopes, Eduardo de Assis Duarte e Cidinha da
Silva.
14

menos em São Paulo, centro urbano que apresentava condições históricas


favoráveis nesse sentido, é possível dizer que já havia movimentos estabelecidos,
como os periódicos da Imprensa Negra, a formação e extinção da Frente Negra
Brasileira (1931-1937), que direta ou indiretamente, abriram um caminho para a
trajetória de Evaristo.
Diante da “limitação do espaço físico e da pobreza econômica”, a futura
escritora caçava com gana na leitura, e depois na escrita, um “exercício prazeroso,
vital” para suportar e romper os limites impostos. Por meio da memória, Evaristo
evoca o reconhecimento das desigualdades estruturais do Brasil.

Eu não me sentia simplesmente uma mocinha negra e pobre, mas alguém


que se percebia lesada em seus direitos fundamentais, assim como todos
os meus também, que há anos vinham acumulando somente trabalho e
trabalho. (EVARISTO, 2005, p. 01).

A ação de leitura e escrita sugerem um valor de testemunho e elo de


reconhecimento do “eu” em sua relação com o “nós”, apesar dos contextos de
direitos fundamentais lesados. A incorporação da memória pessoal e social, seja
consciente ou inconscientemente, à produção literária ou ensaística, não parece ser
uma característica exclusiva de autoras(es) negras(os), mas uma constante entre
pesquisador(a) e objeto4. Diante da exposição do contexto, das justificativas e dos
aspectos gerais da obra evaristiana, passamos a apresentar os caminhos de
discussão do trabalho.
De modo detalhado, logo após a introdução, o trabalho concentra-se
numa leitura sobre o tradicional modo de construção de personagens negras na
literatura brasileira. De modo geral, em alguns momentos da história literária
brasileira, a exemplo do Modernismo, a representação desse coletivo variou entre a
ausência e a folclorização, como concluiu estudo de Nascimento (2016, p. 141-151),
que prossegue e sintetiza investigações anteriores do sociólogo Roger Bastide. O
problema da ausência ou folclorização dos(as) negros(as) na literatura implica trazer
para o texto análises a respeito da persistência de resíduos do comportamento

4 Esse posicionamento é categoricamente assumido, por exemplo, por Abdias Nascimento no início
de seu ensaio-testemunho sobre o genocídio perpetrado contra o negro brasileiro. O militante e
intelectual negro afirma a impossibilidade e seu pouco interesse em transcender a si mesmo,
sintetizando a relação entre pesquisador e objeto analisado por meio da máxima: “Quanto a mim,
considero-me parte da matéria investigada” (NASCIMENTO, 2016, p. 47).
15

escravocrata na ordem social competitiva no Brasil pós-Abolição, a partir das


análises sociológicas de Florestan Fernandes (2007, 2017).
No momento seguinte, o texto traz uma breve história da chamada
literatura negra em sua relação com os movimentos sociais negros que vêm sendo
criados no Brasil desde o início do século XX. Parte-se da análise do conto “Ei,
Ardoca”, de Olhos d’água, para apresentar as iniciativas de movimentos e
escritoras(es) na luta por aguçar e sensibilizar os sentidos da sociedade brasileira e
validar as vozes e demandas dos povos negros. Sendo assim, o capítulo recorre
momentos que compuseram aquela história, a exemplo da Imprensa Negra, a Frente
Negra Brasileira, o Teatro Experimental do Negro, o Movimento Negro Unificado e
os Cadernos Negros, além de nomes que fazem parte da tradição literária criada por
autores(as) negros(as) na literatura brasileira.
Depois, no quarto capítulo, já discutindo a produção literária de
autores(as) negro-brasileiros(as) ao lado dos movimentos sociais, apresentam-se
elementos que ajudam a configurar e confirmar essa produção no Brasil. Para isso,
são apresentadas constantes que Duarte (2011) considera na sua proposta de
conceituação de uma literatura afro-brasileira. A (auto)identificação racial do(a)
escritor(a) tende a ser traduzida, a partir de seu trabalho no texto (EVARISTO,
2009), não só na seleção temática, mas também na própria composição textual, por
meio do ponto de vista escolhido para apresentar o enredo do texto literário, do
vocabulário e da sintaxe empregados. Para embasar a argumentação são levadas
em conta também as contribuições da pesquisadora Regina Dalcastagnè (2012),
sobre uma produção literária denominada a partir de dentro, e do poeta e
pesquisador Cuti (2010), sobre um “sujeito étnico do discurso”.
Na segunda parte desse trabalho, focaliza-se no quinto capítulo as
relações afetivas que o narrador dos contos constrói nas personagens. Conceição
Evaristo com recorrência preza pela ênfase aos laços afetivos de natureza familiar
de suas criações sugerindo uma forma de solidariedade e resistência contra o
genocídio do negro brasileiro (NASCIMENTO, 2016), o qual é retratado nas
narrativas da escritora por meio da fome, da pobreza, de assassinatos, por exemplo.
No entanto, não se limitam aos laços estritamente familiares. Discute-se nesse
capítulo o trato afetivo na composição das(os) personagens negras(os) também
16

como um compromisso humanizador característico do projeto literário de Evaristo,


mas regular no conjunto de autores negros, de modo geral.
A partir da análise das narrativas, ainda nesse capítulo, interpretamos
naqueles diferentes laços uma ampliação afetiva (CUTI, 2010) que aproxima as
personagens num elo de reconhecimento mútuo, de resistência e continuidade aos
antepassados. Ainda nesse capítulo remete-se à noção de quilombagem,
denominado agente de mudança social durante a escravidão (MOURA, 1992).
No sexto capítulo procura-se analisar o conjunto de Olhos d’água a partir
de uma camada de leitura que observa escolhas vocabulares e marcas temporais
dos contos, lendo-os enquanto enredos que guardam uma relação de proximidade
cronológica uns com os outros, na qual um pode indicar uma sucessão ao outro em
um curto prazo de tempo. Nessa contiguidade de narrativas, lemos Olhos d’água
enquanto testemunho literário de um cotidiano e reincidente genocídio perpetrado
contra os povos negros e brasileiros. Para compreender o conceito de genocídio
retoma-se sua formulação inicial, em livro de 1944, com o jurista polonês Raphael
Lemkin; e em seguida, em livro de 1977-78, é sintetizado o uso do conceito por parte
do militante negro Abdias Nascimento para a interpretação das técnicas de
aniquilamento institucionalizadas no Brasil contra as pessoas negras.
No sétimo capítulo focaliza, diante dos contextos mais dramáticos
retratados em Olhos d’água, gestos e falas representadas nas personagens e em
vozes líricas de Conceição Evaristo. Tais gestos e falas expressam um movimento
acautelador, demonstrando uma antevisão e prevenção de atos e falas que causem
dano, no presente ou no futuro, às relações sociais e humanas e desperdício das
vidas retratadas na obra evaristiana.
O quadro teórico foi assim construído devido ao movimento social e
histórico que a sequência e totalidade da obra Olhos d’água permite ler ao ser posta
em diálogo com os processos vividos pelas populações brasileiras e humanas em
geral. Numa última nota, embora seja sabido, não custa salientar que as discussões
trazidas aqui são debates em aberto, devendo a uma série de pesquisas que nos
antecederam e a outras que podem trazer e trarão outras perspectivas sobre os
problemas discutidos na dissertação.
17

2 OS NEGROS NA LITERATURA BRASILEIRA: ENTRE A AUSÊNCIA E O


ESTEREÓTIPO

Nesse capítulo inicial procuramos visitar alguns momentos da história


literária brasileira, como o Modernismo, para discutir neles, a partir de alguns
pesquisadores, a ausência ou utilização do(a) negro(a) enquanto elemento estético
folclorizado. Pensar essas ausências e folclorizações traz a necessidade de focalizar
aspectos do comportamento brasileiro diante do dilema racial, a exemplo do mito da
democracia racial. Assim, a apresentação desse primeiro momento dá base para
compreendermos iniciativas dos movimentos negros. E, ao lado dessas iniciativas,
algumas escolhas linguísticas e de construção das personagens na obra de
Conceição Evaristo, de modo particular, e na tradição de escritoras(es) negras(os)
que compõem o conjunto da literatura brasileira.
A tradicional história da literatura brasileira demonstra o quanto sua
produção literária não pôde ser escrita nem lida deixando de lado um elemento
constante em sua história ainda hoje: uma busca por compreender o que caracteriza
os modos de ser, de ver e de agir, as ambivalências, os amores e dissabores, as
lutas e perdas dos diversos povos brasileiros.
Uma gama de exemplos pode ser encontrada no Romantismo do século
XIX, próximo da recente Independência política legal do Brasil. Com a missão
patriótica de estabelecimento de uma suposta identidade nacional, os românticos
buscaram, de modo geral, tal identidade essencialmente no cenário geográfico do
país e na elaboração de uma figura indígena imaginária. Alguns aspectos permitem
pensar a preferência por essa figura e a não inclusão dos povos negros como
elemento constitutivo das identidades nacionais no período da Independência.
Primeiro, o fato de que, na perspectiva do brasilianista David Brookshaw
(1983), a essa época os povos indígenas ainda vivos resistiam afastados do eixo de
habitação dos brancos, logo, da estrutura social do país 5. Depois, o comportamento

5 A perspectiva de David Brookshaw é anterior aos movimentos sociais e discussões sobre


literaturas indígenas. Para um debate mais autorizado sobre a questão, conferir, por exemplo, os
trabalhos da pesquisadora e poeta Graça Graúna, do povo Potiguara (RN), que, contrapondo-se à
ideia de invisibilidade e inexistência indígena, afirma que sua palavra, dos povos indígenas,
sempre existiu - seja na modalidade oral ou escrita -, apesar dos horrores causados pela
colonização. A pesquisadora interpreta essa palavra enquanto sinal de sobrevivência, instrumento
contra a aculturação, reafirmação e garantia de suas identidades étnicas e da sustentabilidade
18

racial da ordem social escravocrata, fortemente alicerçado sobre dois dispositivos: o


preconceito e a discriminação raciais. O preconceito permitiu estabelecer um rígido
fosso de distanciamento entre senhor e escravizado; a discriminação prescreveu um
código de valores que regula o comportamento e funciona na distinção daquelas
duas categorias sociais, conforme considera Florestan Fernandes (2007).
Apenas a título de apresentação, Fernandes é considerado um dos
fundadores de uma sociologia crítica no Brasil, tendo vasta produção e atuação
intelectual dedicada à história das classes e movimentos populares – da qual é
originário – negligenciados pelas perspectivas das classes dominantes (IANNI,
1996). Entre os grupos com os quais o sociólogo esteve comprometido estão os
povos negros e indígenas. Sobre as populações indígenas, vale recorrer A
organização da sociedade tupinambá (1948) e A função social da guerra na
sociedade tupinambá (1951). Em relação à população negra, seus estudos
contribuíram para revelar a situação concreta dessa população desde a
movimentação abolicionista na segunda metade do século XIX. Sobre essa questão
podem ser destacados Brancos e negros em São Paulo (1953), em coautoria com
Roger Bastide, A integração do negro na sociedade de classes (1964), O negro no
mundo dos brancos (1972) e Significado do protesto negro (1989).6 Essa produção
que atravessa pelo menos cinco décadas é um fator que atesta a preocupação
constante de Fernandes em acompanhar e reavaliar os movimentos da população
negra como processos históricos e dinâmicos.
Outra leitura sobre o preconceito é apresentada por Robert Slenes (2011),
segundo o qual o preconceito estabelece-se também na proximidade. A partir de
relatos de observadores estrangeiros e brasileiros do século XIX, o historiador afirma
que muitos dos que tentaram acompanhar de perto e descrever a vida íntima
dos(as) escravizados(as), raramente conseguiam livrar-se de ideias preconcebidas,
imprimindo em seus relatos uma imagem deformada da vida, preconceitos culturais

para as gerações futuras (GRAÚNA, 2012).


6 As pesquisas de Fernandes da década de 1940 fizeram parte de um conjunto de estudos
encomendado pela UNESCO com o intuito de confirmar a ideia de que o Brasil havia melhor
“resolvido” a escravidão e, por isso, viveria sob uma “democracia racial”. As conclusões das
pesquisas, entre elas Brancos e negros em São Paulo (1953), revelaram, no entanto, uma
realidade racial estruturalmente excludente (FERNANDES, 2007; 2017). Ao lado desses estudos,
esteve ainda o de Virginia Leone Bicudo, que desenvolveu pesquisa na qual os resultados traziam
contrapontos às expectativas da UNESCO e do consenso da imagem do Brasil como paraíso
racial.
19

e um conjunto de ideias que enxergava no trabalho livre uma função moralizadora


(SLENES, 2011, p. 142-150). Ainda segundo Slenes, em muitas das grandes
propriedades do sudeste, as senzalas eram comumente construídas atrás ou ao
lado da casa-grande, de modo que assim a família senhorial conseguia manter um
olhar de vigilância sobre os escravizados (ibidem, p. 183-185).
Aqueles dois dispositivos simultâneos do comportamento racial
escravocrata firmaram no imaginário da sociedade brasileira uma ideia de
inferioridade, subumanidade, brutalidade e dependência das populações negras e
assim justificaram a exploração que a classe senhorial dominante exercia sobre o
grupo racial escravizado. Tal comportamento foi traduzido na ordem jurídica
brasileira, conforme a jurista Eunice Aparecida de Jesus Prudente, que nota que
apesar de a Constituição Política do Império do Brasil, de 1824, de caráter liberal,
abolir “os açoites, a tortura, a marca de ferro quente e todas as penas mais cruéis”, o
Código Criminal do Império do Brasil, de 1830 impunha essas penas aos
escravizados no caso de resistência à escravização (PRUDENTE, 1988, p. 138).
Naquelas condições, as pessoas escravizadas eram consideradas instrumento vivo
de extração de força de trabalho em diversos níveis. Parte da classe senhorial
brasileira convertia, amenizava a aniquilação de pessoas pela exploração lucrativa
de seu trabalho com a suposta ideia de uma salvação pós-vida.
A perspectiva de Florestan Fernandes de que o sistema escravocrata
utilizou pessoas enquanto instrumento vivo para extração de trabalho foi comum a
uma parte da bibliografia brasileira da década de 1960 sobre a escravidão no Brasil.
Um dos resultados da denominada Escola Paulista de Sociologia foi ter revelado o
caráter violento da escravidão no país. O resultado apresentava, assim, outra
interpretação à ideia, comum às décadas anteriores, de que a escravidão brasileira
teria sido caracterizada por certa brandura, e em decorrência dessa característica as
pessoas teriam vivido sob relações raciais harmônicas, onde negros e brancos
viviam sob iguais condições de vida. Ao lado dos nomes comumente citados,
Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni, pode ser lembrado, por
exemplo, o nome de Virginia Leone Bicudo e sua pesquisa Aspectos raciais de
pretos e mulatos em São Paulo (1945). A pesquisadora desenvolveu estudo
pioneiro, chegando a resultados que apresentavam um contraponto ao consenso
20

sociológico do nomeado mito da democracia racial comum à época, tendo, dessa


forma, influenciado algumas interpretações que a sucederam.
Uma interpretação da perspectiva de Fernandes é feita por Célia Maria
Marinho de Azevedo, em Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das
elites do século XIX (1987). A pesquisadora argumenta que, ao enfatizar a dimensão
violenta das relações entre senhor e escravizado, aquela escola sociológica, em
certa medida, acabava por atualizar as tendências racistas das décadas de 1870 e
1880; ao desconsiderar o papel dos escravizados enquanto agentes históricos no
interior daquelas mesmas relações.
No estudo, a questão central da historiadora é indagar até que ponto a
ideia de uma população que teria saído da escravidão enquanto uma massa inerte,
inculta, desagregada e incapaz para o trabalho livre, ideia comum à historiografia da
década de 1960, não traria no seu bojo um teor étnico-racista presente no século
XIX e que procuraria justificar a necessidade de imigração europeia em substituição
aos recém-libertos.
Além de lembrar a dita revolução ocorrida em São Domingos nos fins do
século XVIII e início do século XIX, as insurreições baianas, as revoltas e fugas no
dia a dia dos escravizados, Marinho de Azevedo analisa os projetos que durante o
século XIX buscaram “instituir uma nacionalidade”. Em síntese, entre eles estavam
os projetos emancipacionistas, que se preocupavam com os habitantes pobres do
país, escravizados, livres e mulheres, almejando e propondo variadas formas de
evitar o ócio, de formar um imaginário social positivo em relação ao trabalho. Com
isso, os emancipacionistas, propunham medidas graduais de superação da
escravidão, e pretendiam, de modo geral, promover uma integração da população
ao sistema de trabalho livre. Já os projetos abolicionistas, por volta da década de
1870 e 1880, ao mesmo tempo em que retomavam algumas ideias emancipadoras,
tinham como característica a proposta de um prazo estabelecido para a extinção da
escravidão. Noutro momento, desde a década de 1850, mas circulando com maior
força por volta de 1870, há a adesão dos emancipacionistas aos ideais de imigração,
passando por diversas e divergentes discussões sobre que povo seria “ideal” para a
formação de uma suposta identidade nacional e para ser usado enquanto força de
trabalho.
21

Enquanto Marinho de Azevedo acentua o significado das “pequenas lutas”


dos escravizados, que, por volta da década de 1870, nas fazendas de São Paulo,
ocorriam cada vez mais frequentemente nos espaços de produção, além das já
tradicionais fugas e formação de quilombos; Clóvis Moura realça as participações
dos escravizados na formação histórica e social do Brasil, dando ênfase ao
movimento de quilombagem ao longo do escravismo enquanto um agente de
mudança social que respondeu à exploração e violência senhoriais com um
movimento emancipacionista de caráter radical.
Considerados esses aspectos, afirmar os negros enquanto elemento
essencial na constituição de uma suposta identidade nacional naquele momento de
pós-independência, do ponto de vista das elites senhoriais, possivelmente exporia a
contradição de um país que ainda galgava sua economia e sociedade sobre o
sistema de trabalho escravo, do qual os negros eram os agentes fundamentais. Isto
é, um país que se construía e se afirmava em todas as dimensões sobre a negação
e exploração de uma parcela de sua própria população. Conforme a pesquisadora
Heloisa Toller Gomes, no contexto em que muitos escritores provinham geralmente
do grupo detentor de poder econômico, social e político, tornava-se mais “difícil” a
idealização dos povos negros escravizados (GOMES apud EVARISTO, 2009).
Parecia mais produtivo, do ponto de vista daquelas classes, buscar inspiração numa
figura indígena abstrata do que trazer à tona o elemento negro-africano, ainda
explorado e desumanizado pela escravidão (BROOKSHAW, 1983, p. 19).
Em meados da década de 1920, autores adeptos ao movimento
Modernismo buscavam representar uma harmonização dos diferentes matizes da
sociedade daquele período, o que transparecia na digestão de uma dicção próxima
à tradição oral e composta por um vocabulário oriundo de línguas indígenas e
africanas. Símbolo que personifica o tom daquele período é o anti-herói Macunaíma,
de Mário de Andrade7, do romance homônimo publicado em 1928. Sobre o
movimento que tem como marco o ano de 1922, em São Paulo, e que pretendia
abrasileirar as artes brasileiras se livrando da influência europeia, o ensaísta
7 Sobre Mário de Andrade (1893-1945) a partir da ótica da questão racial, conferir o ensaio Negro
Drama (2018), de Oswaldo de Camargo. Partindo do artigo de Mário “A superstição da cor preta”
(1938), Camargo reflete sobre alguns fatores que revelam ou dificultam a identificação dele,
Mário, enquanto intelectual negro brasileiro. Para isso, traça um diálogo entre poemas, trajetória
biográfica, produção artística do poeta e outros autores e movimentos negros do início do século
XX.
22

Oswaldo de Camargo revela que o olhar lançado para o negro brasileiro foi quase
nulo, citando como exceção o livro de poemas Raça (1925), de Guilherme de
Almeida (CAMARGO, 2018). Antes de expor o argumento de Camargo, cabem
algumas informações biográficas a título de apresentação.
Oswaldo de Camargo (1936-) é filho de Martinha da Conceição Camargo
e Cantiliano de Camargo, trabalhadores da lavoura de café. Migra do campo para a
cidade ainda na infância, na década de 1940, após a morte da mãe. Relata em
depoimentos que na adolescência, por conta do preconceito de cor que associava
os negros à sensualidade e à violência, é impedido várias vezes de exercer a função
de padre. Tem sido jornalista, contista, poeta e ensaísta, além de ativista dos
movimentos negros desde a juventude. Fez parte da Imprensa Negra Paulistana, da
Associação Cultural do Negro, das primeiras edições dos Cadernos Negros (1978) e
da fundação do Quilombhoje (1980). Estreou na literatura com os poemas de Um
homem que tenta ser anjo (1959), seguido de outros como O carro do êxito (1972),
A descoberta do frio (1979), O estranho (1984) e a autobiografia Raiz de um negro
brasileiro (2015). Ao longo desse ativo caminho, dedicou-se a resgatar e fomentar a
produção literária de autores(as) negro-brasileiros(as) através de estudos e
antologias a exemplo de O negro escrito: apontamentos sobre a presença do negro
na Literatura Brasileira (1987), Lino Guedes: seu tempo e seu perfil (2016), Negro
Drama: ao redor da cor duvidosa de Mário de Andrade (2018), entre outros,
desempenhando papel de elo entre as gerações pioneiras e as mais novas.
Voltando, na perspectiva de Camargo sobre o Movimento Modernismo:

O Movimento de 1922 veio para quebrar, demolir, zombar dos figurões,


refazer a mentalidade gasta; os movimentos negros, seus líderes, seus
poetas, sua imprensa – sabe-se – não tinham nada para quebrar, mas tudo
ainda por fazer. O negro passou ao lado do que não lhe interessava; passou
ao lado do Modernismo de 1922. Não era aquele caminho de sua subida, a
subida da coletividade negra [sic], ao menos em São Paulo (CAMARGO,
2016, p. 33).

Na reunião de análises escritas durante a década de 60 e 70 e publicadas


em 1972, em O negro no mundo dos brancos (2007), Florestan Fernandes destaca
dois aspectos centrais da questão racial no Brasil e que podem ajudar a entender as
barreiras no “caminho de subida da coletividade negra”. Primeiro, a natureza do
comportamento brasileiro diante do dilema racial, que tende a certa disposição a
23

consternar-se e condenar o preconceito e os padrões tradicionalistas da ordem


social no plano ideal. Ao mesmo tempo, não se convertia esse ideal em ação prática
de fato. O resultado dessa equação é a atenuação, o esquecimento e a preservação
dissimulada dos valores de dominação racial.
O segundo aspecto seria o mito da democracia racial. Naquele período,
Florestan descreve o surgimento da ideia através de pelo menos dois fenômenos: a
miscigenação e a mobilidade social vertical. Segundo o sociólogo, a miscigenação,
apesar de muito variável em termos de tempo e espaço, teria produzido um relativo
efeito de “inclusão” de “mulatos” nas “grandes famílias”, onde eram educados e
socializados com os valores do estrato racial dominante. Aquele processo foi
interpretado pela sociedade da época como índice de integração social e igualdade
racial. Fernandes argumenta que essa interação não se configurou de fato, uma vez
que a miscigenação no Brasil esteve rigidamente combinada à estratificação racial.
Segundo Fernandes, a parcela da população negra liberta, de mestiços e
de sua descendência já era associada no contexto escravista a certas oportunidades
que apontavam para uma relativa transição de status. Ao lado disso, a maratona
individual para “subir na vida” pelo caminho da mobilidade vertical exigia em troca a
identificação desse grupo com os códigos morais da classe senhorial. De outro lado
confirmava-se a regra: o conjunto da população negra não havia sido efetivamente
integrado ao projeto político que se estabeleceu após a Abolição, com a transição do
sistema de trabalho escravo para o sistema de trabalho livre. A esse conjunto, na
perspectiva de Florestan Fernandes, não foram dadas condições qualificadas e
preparo em termos psicossociais para se integrar coletivamente ao novo sistema de
trabalho.
O sociólogo Clóvis Moura destaca que os escravizados também fizeram
parte dos movimentos que levaram à transição do sistema de trabalho escravo para
o trabalho livre. Na perspectiva de Moura, através das práticas de quilombagem que
antecederam e foram concomitantes ao movimento abolicionista, os negros
escravizados, com o apoio de outros elementos discriminados socialmente –
perseguidos pela polícia, artesãos, índios, prostitutas e brancos pobres –, foram
agentes fundamentais no desgaste do regime escravocrata (MOURA, 1992).
24

No entanto, o conjunto das classes dominantes desconsiderou os


aspectos mais dramáticos da situação da população negra no contexto pós-Abolição
e utilizou a miscigenação e a pequena mobilidade social vertical como argumentos
para afirmar a concretização de uma ideologia de democracia racial no país e a
suposta “resolução” do problema do preconceito e da discriminação racial sem
muitos abalos para a ordem social vigente. Fernandes extrai daí uma síntese: a ideia
de democracia racial tornou-se não só um “expediente inicial”, um modo de fugir do
enfrentamento real dos efeitos da destituição dos povos negros do sistema de
trabalho escravo. Ela foi também uma “forma de acomodação” diante do grupo racial
que se concentrou nas cidades sob condições de desemprego, miséria e
desorganização social (FERNANDES, 2007).
A partir desse contexto, a produção literária teve, assim como os órgãos
oficiais de poder, o sistema educacional e os meios de comunicação em massa,
papel de difusor do chamado mito da democracia racial para o conjunto da
população brasileira (NASCIMENTO, 2016). O discurso está presente em escritores
que enfatizaram a estetização de elementos culturais emprestados da área da
culinária, da música e das religiões de matrizes africanas, por exemplo. Um dos
casos citados por alguns pesquisadores é Jorge Amado. Por meio da análise dos
romances Jubiabá (1935), Gabriela, cravo e canela (1958) e Tenda dos Milagres
(1969), do escritor baiano, o brasilianista David Brookshaw (2008) demonstra que
além de ter sido importante na preservação das formas culturais afro-brasileiras, a
literatura de Amado também reforça alguns mitos e estereótipos sobre os povos
negros e seus descendentes, a exemplo do mito da potência sexual e a figura da
mulata sensual8. Nessa perspectiva, tende-se a construir personagens negras e
suas formas de expressão culturais enquanto elementos pitorescos, folclorizados.
Analisando as técnicas de inferiorização e esvaziamento das culturas
afro-brasileiras, Abdias Nascimento antecipa, em 1976, algumas das conclusões de
Brookshaw sobre a folclorização. O intelectual negro cita como exemplo o romance
Jubiabá. No vocabulário utilizado para representar os rituais de candomblé,
Nascimento nota associações que remetem a uma erotização das danças, enquanto
na construção de personagens negros, observa a presença de qualificações de teor

8 Uma exposição e análise mais profundas de Brookshaw sobre a literatura do escritor baiano a
partir dessa perspectiva pode ser encontrada em Raça e cor na literatura brasileira (1983).
25

animalesco e selvagem. Diante disso, o autor de O genocídio do negro brasileiro


(1978) argumentou que

A redução da cultura africana à condição de vazio folclore não revela


somente o desprezo ao negro da sociedade vigente, branca, como também
exibe a avareza com que essa sociedade explora o afro-brasileiro e sua
cultura com intuitos lucrativos. Pois embora a religião e a arte sejam tão
ridicularizadas e folclorizadas, elas constituem valiosas e rentáveis
mercadorias no comércio turístico (NASCIMENTO, 2016, p. 146-147).

Nascimento relata que no método folclorizador de construção artística, a


pessoa negra e as formas de expressão simbólica e cultural são esvaziadas de
elementos vitais, de história, de problemas, de projetos, apenas reduzidas a objetos
unidimensionais e mercadologizados com vistas ao comércio turístico, o que
remonta a um processo colonial de compra e venda do trabalho dos escravizados.
Em estudo dedicado à Literatura negro-brasileira (2010), Cuti reitera as
argumentações de Abdias ao ver na folclorização uma forma de “retirar o conteúdo
vivencial que, por ser conteúdo humano, traz conflitos. É esvaziar a possível carga
transformadora que determinada área da cultura possa ter” (CUTI, 2010, p. 90).
Nesse sentido, a perspectiva folclorizadora é nociva aos negros brasileiros, pois
desconsidera ou eufemiza os conflitos, violências e discriminações que, ao lado do
canto às culturas afro-brasileiras, assolam histórica e cotidianamente a vida das
populações negras e brasileiras nas várias esferas da sociedade brasileira.
Os templos de candomblé, por exemplo, uma das fontes de dinamização
e resistência cultural dos povos negros, precisavam de registro obrigatório na polícia
para funcionar legalmente, o que sugere ao mesmo tempo um pressuposto e um
efeito de criminalização dos templos, dos símbolos, dos ritos e dos praticantes. Além
disso, esses espaços eram constantemente perseguidos, aterrorizados e invadidos
pela repressão policial, como parte de um plano de genocídio das populações
negras brasileiras e por meio da destruição de suas formas de expressão simbólica
(NASCIMENTO, 2016). Noutro exemplo, as estimativas levantadas no Atlas da
Violência 2020 no Brasil, revelam que 68 por cento das 4.519 mulheres brasileiras
assassinadas no país eram negras. Em relação aos homens, o mesmo documento
alerta que o jovem negro morador das periferias ou de regiões metropolitanas das
grandes cidades é, grosso modo, o perfil de 75,7 por cento das vítimas de homicídio.
26

As personagens negras eram escritas por mãos que vacilavam em virtude


de um imaginário social que as impedia de acessar o negro-brasileiro em sua
experiência histórica, social e subjetiva. Por isso, reforçavam outros estereótipos,
como o atraso cultural e psíquico, a malandragem, a perversão sexual e a
ingenuidade, construindo personagens de pouca profundidade, por isso,
unidimensionais. Quando não chegavam a ser assim descritas, elas apareciam
como um detalhe desprovido de função ou ação na narrativa, como uma mesa que
recebe o jantar, ou um prego que sustenta o quadro. Seu lugar era de mero objeto,
sem agência, enfeitando e colorindo o cenário narrativo (CUTI, 2010).
Semelhante folclorização e estereotipificação, ainda segundo Cuti, a um
só tempo tolhe o desfrute da autoestima do leitor negro-africano e sua descendência
no Brasil, e age no sentido de estimular um sentimento de superioridade nos leitores
não identificados com a parcela da população negra brasileira. Dessa forma, agindo
sobre o imaginário social para além de seu tempo, os escritores que se utilizaram ou
se utilizam daquele método de criação de personagens negras na literatura reforçam
a manutenção de uma rigorosa estrutura sociorracial que põe em legitimidade a
condição social a que está submetida a maioria dos negros no país (CUTI, 2010, p.
64-65).
As mulheres negras compartilham com os homens negros a experiência
de serem consideradas objetos. Mas, somado a isso, essas mulheres carregam a
cicatriz de terem sido objeto da exploração sexual de seus senhores. Considerando
a violação sexual a que foram submetidas as mulheres negras, a intelectual e
militante Lélia Gonzalez critica o tratamento “extremamente degradante, sujo e
desrespeitoso” dispensado à internacionalmente chamada “mulata brasileira”, um
dos resultados da “procriação covarde” daquela violação (GONZALEZ, 1982a, p.
36).
Aqui cabe uma breve apresentação de Lélia de Almeida Gonzalez (1935-
1994). Sua produção intelectual vai desde a segunda metade dos anos 1970 até a
metade dos anos 1990. Ao longo da trajetória, além de registrar e analisar de perto a
história dos movimentos negros no Brasil, também interpreta a formação colonial do
Brasil e da América Latina, suas características em relação ao racismo, ao
capitalismo e ao sexismo, através da formulação de conceitos e de um profícuo
27

diálogo entre o conhecimento e a linguagem popular, as teorias psicanalistas,


estudos marxistas e decoloniais9.
A trajetória de Gonzalez, apenas sintetizada aqui, não deseja significar a
ausência dos efeitos do racismo na sociedade brasileira. O sintoma da neurose
cultural brasileira, por vezes extremamente sutil, disfarçado e difícil de compreender,
outras vezes escancaradamente aberto aos olhos, é reiteradamente descrito e
analisado pela intérprete.
O conceito de neurose cultural brasileira é formulado por Gonzalez
principalmente nos ensaios “Racismo e sexismo na cultura brasileira” (1983) e “A
categoria político-cultural de amefricanidade” (1988), a partir de uma base de
estudos psicanalíticos, sobretudo lastreados na obra de Jacques Lacan. A
expressão refere-se a um sintoma social de denegação daquilo que o caracteriza,
embora continue a lhe pertencer. Conforme Gonzalez, o racismo e o sexismo seriam
marcas da nossa sociedade, mas não exclusivas dela, que ao mesmo tempo em que
se volta contra aquelas(es) pessoas que as testemunham, dizem não o fazer,
negando a existência dos fenômenos (GONZALEZ, 2020, p. 127).
Ainda em relação à mulher negra, em um estudo intitulado “Literatura
negra: uma poética de nossa afro-brasilidade” (2009), Conceição Evaristo, enquanto
escritora negra e pesquisadora em Literatura Comparada, considera o modo de
ficcionalização das mulheres negras um dos traços mais reveladores de um
imaginário social que deseja esquecer sua ascendência, portanto, a formação dos
povos brasileiros: os negro-africanos e sua descendência.
Evaristo observa que a produção literária brasileira tradicionalmente
reforçou o discurso de objetificação das mulheres negras no campo da sexualidade

9 Mineira de nascimento, filha de Urcinda Serafim de Almeida, empregada doméstica indígena, e de


Acácio Joaquim de Almeida, ferroviário negro, Gonzalez também migrou para o Rio de Janeiro na
década de 1940, junto com a mãe e os irmãos (RATTS, 2010), semelhante a boa parte da
população negra brasileira daquele período de industrialização-urbanização e demanda por mão
de obra de trabalhadores (FERNANDES, 2007, p. 51). Trabalhou na ocupação de empregada
doméstica e babá, formou-se em História, Geografia, Filosofia e participou das articulações de
fundação do Movimento Negro Unificado (1978) e do Nzinga - Coletivo de Mulheres Negras
(1983). A atuação de Lélia Gonzalez abrange diversas frentes, como o ensino, os coletivos
sociais e o campo político-partidário, o que permitiu a ela mobilizar a formação intelectual em
combinação com a intensa prática social dentro dos movimentos coletivos. Mais recentemente foi
organizada, por inciativa da União dos Coletivos Panafricanistas (UCPA), a edição limitada de
Primavera para as rosas negras (2018), reunião de textos, depoimentos e entrevistas da
intelectual-ativista. Em seguida, a Companhia das Letras publicou Por um feminismo afro-latino-
americano (2020), volume organizado pelas pesquisadoras Flávia Rios e Márcia Lima.
28

e do trabalho. Além disso, a pesquisadora observou nessa produção a persistência


de uma interdição que remonta à violência colonial: o exercício da maternidade por
parte das mulheres negras. De acordo com a escritora, essa ausência sistemática
da mulher negra na condição de mãe no discurso literário, age como uma forma
simbólica de negação da matriz africana na formação cultural, política e econômica
brasileira.
No já citado estudo coordenado por Regina Dalcastagnè, a pesquisadora
demonstra seu desconforto e estranhamento diante da ausência de dois grandes
grupos sociais nos romances da literatura brasileira contemporânea entre 1990 e
2004: os pobres e negros. Dalcastagnè registra alguns argumentos, os quais
entenderiam tais ausências como um procedimento narrativa que invisibilizaria no
texto um grupo social que estaria invisibilizado na sociedade brasileira de modo
geral. Considerando o argumento, pergunta “se para fazer isso não seria preciso,
muito mais que excluir esses grupos de suas histórias, mostrar alguma tensão
existente, provocada pelos que não parecem estar ali” (DALCASTAGNÈ, 2005, p
15).
A partir do mapeamento quantitativo das primeiras ausências, os negros e
os pobres, surgiram outros grupos ausentes, a exemplo de crianças, idosos,
homossexuais, deficientes físicos, indígenas… Discutindo a invisibilização de
perspectivas e grupos sociais e demonstrando como esse problema traduz-se em
números, Dalcastagnè explica que a pesquisa não tem o objetivo de julgar
escritores(as) individualmente nem de policiar a atividade criativa, mas reforça que
“a ausência de uma maior diversidade no conjunto de romances é, segundo
tentamos demonstrar, empobrecedora” (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 21) do ponto de
vista da percepção e representação estéticas.
Ao lado da pesquisadora Regina Dalcastagnè, o sociólogo Mário Augusto
Medeiros da Silva, numa investigação que resultou em A descoberta do insólito:
literatura negra e literatura periférica no Brasil (2013), questiona essa ausência
também no que diz respeito à fortuna crítica da Literatura Negra brasileira. O
pesquisador argumenta que nas obras de referência para o estudo de literatura
brasileira, a exemplo das enciclopédias, dicionários e panoramas literários, salvas as
devidas exceções, é raro encontrar menções a autores(as) negros(as) no século XX.
29

Se limitar-se a essas referências, que, dentre os autores negros brasileiros daquele


século, geralmente restringem-se a destacar a presença de Lima Barreto, o leitor
terá a impressão de que os negros no Brasil não fizeram literatura. O sociólogo nota
o fato de que naquelas obras de referência que incluem escritores negros no
panorama da literatura brasileira, estes não são relacionados a movimentos literários
e momentos históricos, como acontece na sistematização da literatura brasileira de
modo geral. Disso, conclui que a literatura negra e periférica no Brasil têm sido
marginalizadas desde a produção, passando pela distribuição e recepção, até
mesmo à sua avaliação crítica.
Medeiros da Silva ressalta que o trabalho de reparação e supressão
dessa ausência lacunar é realizado, sobretudo, por pesquisadoras(es) empenhados
em recorrer os nomes e movimentos que a compõem. Além disso, pelo trabalho vital
dos próprios escritores na organização de antologias, que desempenharam papel
social medular para o recolhimento, divulgação e fomentação de autores e obras da
literatura Negra e Periférica.
Entre os motivos que levam à construção daquela lacuna, o intelectual
negro não descarta o preconceito racial ou racismo. Porém, considera ainda, entre
outros, o problema da delimitação histórica e social das possibilidades de atuação
dentro da produção de discurso, na qual são recorrentes as imposições sobre o que
pode e como pode ser dito, custando caro àquelas ou àqueles que por ousadia e
criatividade perturbam os limites impostos por aquelas delimitações (SILVA, 2013, p.
209-216).
Dessa maneira, afirmar a existência de uma vertente negra na literatura
brasileira de modo geral carrega importância e propósito semelhantes aos de outros
aspectos das culturas e das sociedades salientados ao longo da história literária.
Além disso, contribui para a iluminação, ao modo literário, de realidades reincidentes
na sociedade brasileira, mas que não são exclusivas dela: fugas e migrações,
violências, perseguições, fomes, assassinatos, manifestações de autoritarismos e
misoginia, alcoolismo, trabalho infantil. Colocar essa vertente em debate é retirar do
canto e da sombra as problemáticas históricas e estéticas que ela pode suscitar,
dispondo-as no espaço de discussão, diversificando as perspectivas de criação,
testemunho e interpretação literárias.
30

Até aqui, em síntese, apresentamos uma discussão sobre uma


ausentificação e folclorização dos negros na literatura brasileira no período de pós-
independência e no Modernismo no Brasil. Vimos essas tendências, sobretudo a
partir de Florestan Fernandes, como efeito do comportamento racial brasileiro, que,
remetendo à ordem social escravocrata, alicerçou-se no preconceito e na
discriminação raciais. No primeiro período, citamos o fato de que o Brasil ainda
estava sendo construído sob a exploração do trabalho escravo, do qual os negros
eram os agentes fundamentais, e, além disso, alvo de leis punitivas que traduziam a
negação das pessoas negras enquanto pessoas. No segundo, a tríade formada pela
miscigenação, a pequena mobilidade social vertical, e a ideia de democracia racial
foi difundida na sociedade como argumento de que o Brasil havia supostamente
melhor resolvido a escravidão e as relações raciais, servindo como forma de
acomodação e fuga diante de tais relações no país.
Discutimos que a tendência brasileira à folclorização e exotização dos
negros esvaziou seu conteúdo humano, reforçando sobre o imaginário social
brasileiro ideias inferiorizantes. Em relação às mulheres, viu-se o uso exportativo da
imagem da “mulata brasileira” associada a sentidos sexuais, além de uma ausência
sintomática da mulher negra na condição e no exercício da maternidade.
Essas ausências, também demonstradas na literatura do final do século
XX e na historiografia literária, fragilizaram e empobreceram durante muito tempo os
espaços de representações literárias, de fortuna crítica especializada e de
interpretações do Brasil por meio da literatura.
Nesse sentido, antecipa-se um dos papéis que as iniciativas de
movimentos sociais, intelectuais e escritores(as) negros(as), apresentados em
seguida, exerceram. Cada um(a) a seu tempo, foram iniciativas que recorreram,
recolheram e repararam aquelas ausências lacunares e estereótipos sobre as
pessoas negras e, a partir daí, foram abrindo novas possibilidades de representação
literária e artística e de interpretação do Brasil para as gerações subsequentes.
Apesar do cenário apresentado até aqui, no qual parece não ter se vislumbrado
possibilidades de criação artística e política dos negro-brasileiros, também houve
nele brotos de concepção literária e de organização social.
31

3 A LITERATURA NEGRA/AFRO-BRASILEIRA NA ESTEIRA DOS MOVIMENTOS


SOCIAIS NEGROS

Nesse capítulo procuramos traçar um panorama da história da literatura


de autoria negra na esteira de movimentos e associações negras no Brasil. Faremos
esse percurso a partir de uma leitura do conto “Ei, Ardoca”, de Conceição Evaristo, e
procurando manter diálogo com textos de Gonçalves Crespo, Maria Firmina dos
Reis e da própria Evaristo. Com isso, o objetivo é sublinhar o papel de agência da
população negra nos campos artístico, literário, social e político no Brasil. Nesse
percurso, passaremos pela Imprensa Negra, a Frente Negra Brasileira, o Teatro
Experimental do Negro e os Cadernos Negros, inciativas consideradas relevantes
por especialistas na história dos movimentos sociais no Brasil, a exemplo de
Florestan Fernandes, Clóvis Moura e Lélia Gonzalez.
O conto “Ei, Ardoca” inicia-se aguçando os sentidos do(a) leitor(a) para o
campo semântico da percepção auditiva. É possível observar isso através das
escolhas dos substantivos: o barulhar, os ouvidos, os tímpanos, o silêncio, as vozes,
o grito; e dos verbos: ecoava, ouvia. O protagonista Ardoca é mais um exausto
trabalhador brasileiro que

[…] cresceu em meio aos solavancos [do trem], ao empurra-empurra, aos


gritos dos camelôs, às rezas dos crentes, às vozes dos bêbados, aos
lamentos e cochilos dos trabalhadores e trabalhadoras cansados.
(EVARISTO, 2016 p. 95-96, grifo nosso)

Em meio a esse coletivo de vozes em que diversas formas de expressão


procuram legitimar-se, é simbólica a aparição de um vendedor de água que,
“buscando um espaço para fazer valer sua fala, anunciava seu produto em altíssima
voz” (ibidem, 97).
Do ponto de vista do procedimento narrativo o foco é brevemente
transferido do protagonista para os personagens secundários. O movimento pode
sugerir uma reorientação pela qual os estudos literários passaram, sobretudo na
América Latina, pelo menos desde a década de 1970, quando passou-se a dar
centralidade, conforme Eduardo F. Coutinho (1996), aos registros marginalizados
32

pelo discurso oficial10. Aquela mudança teve forte influência das lutas anticolonais
ocorridas na África, sobretudo durante a segunda metade do século XX, o que levou
a uma crítica à centralidade europeia nas ciências humanas. A partir dessa
reorientação, pode-se explicar, por exemplo, a produção posterior de Lélia
Gonzalez, no fim da década de 1980, na busca por formular o conceito de
amefricanidade. Salientamos, então, que os desdobramentos dos movimentos
sociais negros ao lado da produção literária vão abrindo novas possibilidades de
representação literária e também de interpretação do Brasil através da literatura.
Além da citação anterior, que se refere a camelôs, crentes, bêbados e
trabalhadores, o procedimento de narração que focaliza as personagens
secundárias no enredo pode ser visualizado no fragmento abaixo. Neste, a voz
narrativa, que estava centrada em Ardoca, compõe a cena focalizando também nas
outras personagens a pluralidade de reações diante do protagonista: desde a
aversão, passando por certa indiferença, até a solidariedade.

Ardoca abandonava o corpo, que pendia lentamente para um lado. O


passageiro do banco próximo encolheu o pé. Um camelô que vendia água
pulou por cima dele [Ardoca] para atender uma pessoa. Ardoca respirava
com dificuldade, debaixo do negro de sua pele, um tom amarelo desbotado
aparecia. Uma mulher levantou, comprou um copo d’água e deu-lhe de
beber, tentando reanimá-lo. (EVARISTO, 2016, p. 96-97)

No enredo do conto citado, o narrador apresenta Ardoca, um trabalhador,


e antes disso uma pessoa, num estado de estranhamento e dissenção, em sua
relação com o trem e outros passageiros. Sua história remonta a outras anteriores,
por exemplo, à história de sua mãe, que também fazia o percurso diário na máquina
ferroviária, do subúrbio onde morava para o trabalho. Diante do cenário retratado, o
narrador descreve a tentativa de suicídio da personagem como um gesto entre o
desespero, a solidão e a recusa.

10 Segundo o crítico literário, por volta da década de 1970 os tradicionais modelos historiográficos e
comparativos vigentes nos estudos literários até então passam por uma atualização que é
sintetizada como a “passagem de um discurso coeso e unânime, com forte propensão
universalizante, para outro plural e descentralizado, situado historicamente, e consciente das
diferenças que identificam cada corpus literário envolvido no processo de comparação”
(COUTINHO, 1996, p. 67). Através dessa perspectiva é possível acentuar uma tradição literária
produzida por escritores negros brasileiros enquanto componente da literatura brasileira, uma vez
que foi também por volta daquele período que os estudos autorreflexivos analisaram as
especificidades da literatura de autoria negra no Brasil.
33

Ao lado do enredo central de Ardoca, a narração do conto é construída


como escoamento de vozes e tipos sociais que podem representar as(os)
trabalhadoras(es) do Brasil, entre eles(as) o contingente de negros(as) que compõe
essa categoria. O ambiente de competição construído nos fragmentos pode remeter
à chamada ordem social competitiva instalada com a dissolução do sistema de
trabalho escravista, conforme analisou Florestan Fernandes.
Essa dissolução foi simbolizada, legalmente, pela Abolição de 1888.
Como foi dito, na perspectiva de Fernandes, o conjunto da população negra não foi
preparado para tal transição. Logo, esteve em condições de desvantagem em
termos de qualificação de trabalho. À época, com o crescente incentivo à política de
imigração, o grupo de imigrantes, já familiarizado com o sistema de trabalho livre, foi
preferido para oportunidades econômicas que exigiam qualificação específica.
Dessa forma, esse estoque passou a representar uma “ameaça” para os negros que
tentavam inserção na ordem competitiva (FERNANDES, 2007, 2017). Noutra
perspectiva, como veremos mais à frente, uma limitação dos movimentos sociais da
primeira metade do século XX foi ter desconsiderado a população imigrante
enquanto pessoas que foram trazidas para o Brasil para extração de força de
trabalho (GONZALEZ, 2020).
O quadro explicitado no conto pode remeter a um contexto que dá suporte
para uma possibilidade de leitura: um dos legados da disposição desigual da
população negra e seus descendentes na ordem competitiva foi a concentração
desse grupo em ocupações como a economia de subsistência, o artesanato urbano
e o pequeno comércio. Isso aconteceu principalmente entre a parcela que ficou nas
zonas urbanas, onde a ordem competitiva causa efeitos mais dramáticos. Essas
ocupações informais e consideradas de menor prestígio social foram atualizadas e
hoje estão sintetizadas na figura do camelô, retomada em Olhos d’água no vendedor
de água representado em “Ei, Ardoca” e no de amendoins, em “Lumbiá”. Além disso,
formou-se um estoque de “bêbados” entre aqueles que recusaram submeter-se ao
trabalho livre, por verem nele uma continuação da escravidão (FERNANDES, 2017,
p. 80).
Aquele trecho referente ao “empurra-empurra” no trem permite ler então
um duplo movimento de inserção dessa parcela de pessoas relegada à
34

informalidade, ao ostracismo social e à estigmatização. O primeiro seria um esforço


por demandar e abrir um espaço no “empurra-empurra” da ordem social competitiva
onde esse conjunto pudesse concorrer em vias de igualdade com outros estoques
sociais e raciais. Somada a essa primeira inserção, uma segunda estaria ligada à
possibilidade de transformar suas demandas sociais e históricas, compostas e
representadas no conto através das imagens de “gritos”, “rezas”, “vozes” e
“lamentos”, em um objeto literário que possa ter legitimidade ao lado de outros já
focalizados pelas perspectivas oficiais. A construção das imagens pode ser índice da
proposta de uma produção literária de autores(as) negros(as) brasileiros(as) e de
outras camadas não-hegemônicas que pretende ser ouvida não só no sentido
fisiológico da ação, mas também no exercício da diversidade de perspectivas
literárias. A partir desse duplo movimento, demonstra-se a interdependência entre a
democratização da produção literária no Brasil e a democratização no âmbito das
relações sociais e raciais.
A metáfora da plurivocalidade que o conto pode indicar em segundo plano
permite apresentar aqui as iniciativas de escritores(as) e movimentos sociais
negros(as) que têm procurado aguçar os sentidos da sociedade brasileira para as
vozes e demandas de camadas não-hegemônicas, não contempladas pelos
discursos oficiais. Apesar do contexto histórico de negação brevemente esboçado,
os agentes dessas iniciativas desde muito vêm anunciando em diversos tons de
escrita suas produções, alicerçando uma tradição que remonta pelo menos ao
século XVIII (DUARTE, 2014) e vem contribuindo no sentido de propor outras
perspectivas de leitura da experiência coletiva das populações negras no Brasil.
Suas obras, cada uma a seu modo e em seu tempo, romperam barreiras erguidas
contra sua (auto)representação e sua participação na construção e interpretação do
Brasil, dessa forma, foram abrindo novas possibilidades de representação literária.
Preocupados em restaurar e repensar a historiografia e a crítica literárias
por meio da reunião de escritores de descendência africana no Brasil, Eduardo de
Assis Duarte e Maria Nazareth Soares Fonseca coordenaram em colaboração um
projeto que veio a resultar na publicação de quatro volumes de uma antologia crítica.
A intitulada Literatura e afrodescendência no Brasil (2010) reúne ensaios biográficos
35

assinados por pesquisadores(as) dessa produção literária, além de fragmentos de


textos das(os) escritoras(es) reunidas(os).
No projeto coordenado pelos pesquisadores, entre os nomes incluídos no
período de precursores dessa produção estão Maria Firmina dos Reis (1825-1917),
Luiz Gama (1830-1882), Machado de Assis (1839-1908) e Cruz e Souza (1861-
1898). Ao lado deles, outros de menor visibilidade, mas nem por isso menos
relevantes para o conjunto da produção, a exemplo de Gonçalves Crespo (1846-
1883) e Auta de Souza (1876-1901).
Filho de comerciante português e mestiça brasileira, Gonçalves Crespo
teve boa parte da formação em Portugal e foi poeta de expressão que une formas
fixas e ressonâncias africanas (DUARTE, 2011). Vale trazer rapidamente alguns
versos do seu poema “A negra”, publicado em 1882.

Teus olhos, ó robusta criatura,


Ó filha tropical!
Relembram os pavores de uma escura
Floresta virginal.
És negra sim, mas que formosos dentes,
Que pérolas sem par
Eu vejo e admiro em rúbidos crescentes
Se te escuto falar! […]
Mas andas triste, inquieta e distraída;
Foges dos cafezais,
E no escuro das matas, escondida,
Soltas magoados ais… […]
Amas a lua que embranquece os matos,
Ó negra juriti!
A flor da laranjeira, e os níveos cactos
E tens horror de ti!… (in. DUARTE, 2011, p. 199)

No poema é possível ver, entre outros aspectos, um dos efeitos subjetivos


que a estrutura de concentração racial da riqueza, do poder e do prestígio social
(FERNANDES, 2017) pôde causar nas mulheres negras: a dificuldade de associar a
si uma valorização social positiva sonegada dentro de uma estrutura em que ela foi
desvalorizada social e racialmente. Contrapondo-se a àquele desprestígio, o eu-
36

lírico sugere um procedimento que veio a ser uma pauta de movimentos posteriores
e uma tendência na tradição literária de escritores(as) negros(as), em diferentes
contextos: a restituição de uma (auto)estima e um prestígio social de que foram
sonegados a mulher negra e os povos negros em conjunto. Ao lado disso, o eu-lírico
sugere na interlocutora uma condição de agente da produção de riqueza do Brasil
nos cafezais, ficando implícita a impossibilidade de beneficiar-se daquela riqueza.
Além disso, a fuga pode sugerir uma expressão da agência das mulheres negras na
luta de autonomia e dependência nas relações senhoriais, tendo sido utilizada como
estratégia de negociação.
O poeta Cuti considera que autores do século XIX, a exemplo de Maria
Firmina dos Reis e Cruz e Souza não estavam organizados coletivamente. Tais
autores, que formaram a base para a consolidação desse aspecto da literatura
brasileira, segundo Cuti, eram amostras de uma solidão estético-literária que
dificultava a partilha consciente de uma dita intersubjetividade negro-brasileira
(CUTI, 2010, p. 115). Duarte, por outro lado, ressalta na introdução da referida
antologia que “os afro-brasileiros nunca foram voz isolada” (DUARTE, 2011, p. 14),
embora reconheça que os escritores do período não assumiam de modo explícito
um projeto afro-brasileiro na literatura. O posicionamento de Duarte baseia-se no
argumento de que as obras dos escritores nascidos antes da década de 1930 –
recorte por ele feito para delimitar a tradição de precursores – já “apresentam traços
discursivos que os situam, em muitos momentos, numa órbita de valores
socioculturais distintos dos abraçados pelas elites brancas […] transformando-os em
linguagem literária” (ibidem, p. 35).
Além disso, vale acrescentar que aqueles escritores estavam integrados
às movimentações sociais de seu tempo e atuavam em atividades abolicionistas.
Graças à pesquisadora Lígia Fonseca Ferreira, especialista em Luiz Gama e autora
de Com a palavra, Luiz Gama (2011) e Lições de resistência: artigos de Luiz Gama
na imprensa de São Paulo e Rio de Janeiro (2020), sabe-se hoje que o poeta e
jornalista advogava na ocupação de rábula em defesa da libertação de
escravizados, além de ter sido orador e articulista na imprensa. Ao lado de Gama,
Maria Firmina dos Reis, no Maranhão, demonstrava um envolvimento coletivo
através da publicação de poemas abolicionistas nas revistas literárias de São Luís,
37

de declamações públicas, de apresentações de teatro e de sua atuação enquanto


professora primária e fundadora de uma escola mista para crianças pobres.
Considerando esse aspecto, é possível afirmar também que havia por parte
daqueles(as) escritores(as) um engajamento em organizações coletivas no contexto
do século XIX11.
A título de ilustração, retomando a escritora do século XIX, destacamos
um trecho em que a personagem Suzana, do romance abolicionista Úrsula,
publicado por Reis em 1858, conta, através de seu exemplo, a experiência coletiva
de populações arrancadas de seus lugares de origem e escravizadas em terras
brasileiras, onde viram-se despojadas dos vínculos afetivos e sociais originais e
espoliadas na condição de mercadoria humana.

Era [Suzana] uma prisioneira – era uma escrava! Foi embalde que supliquei
em nome de minha filha, que me restituíssem a liberdade: os bárbaros
sorriam-se das minhas lágrimas, e olhavam-me sem compaixão. Julguei
enlouquecer, julguei morrer, mas não me foi possível… A sorte me
reservava ainda longos combates. Quando me arrancaram daqueles lugares
onde tudo me ficava – pátria, esposo, mãe e filha, e liberdade! (REIS, 2018,
p. 180-181)

No plano formal, a fala de Suzana sai do discurso direto para (co)fundir-se


à própria voz narradora, construção que destaca na personagem escravizada a
posição de sujeito da enunciação e seu caráter de agência. A própria Maria Firmina
dos Reis pode ser considerada um exemplo concreto dessa mudança de
perspectiva, enquanto mulher negra que assume sua agência criadora na
interpretação do Brasil através da escrita literária.

11 Pode confirmar essa declaração o estudo Flores, votos e balas: o movimento pela Abolição da
escravidão no Brasil (2014), de Angela Alonso. No estudo, a socióloga investiga o abolicionismo
enquanto o primeiro movimento social brasileiro, de natureza contínua, heterogênea e com
posicionamentos relacionais e dinâmicos. O movimento envolveu instituições políticas, espaço
público e clandestinidade; interlocução, interpretação, adaptação e improvisação de experiências
dos movimentos estrangeiros de acordo com a conjuntura local. A pesquisadora faz um
levantamento de variadas estratégias de mobilização abolicionista no Brasil, entre 1868 e 1888,
encontrando iniciativas institucionais, manifestações públicas em espaço aberto e fechado, ações
diretas, de difusão, simbólicas e de confrontação. Entre as ações de difusão são citadas
publicações de artigos, cartas abertas, ensaios, jornais, manifestos, romances, contos, poemas,
traduções e peças teatrais. Uma peculiaridade do abolicionismo brasileiro em relação ao de
outros Estados-nação foi ter-se incorporado às artes, em especial ao meio teatral, como espaço
para dramatização e difusão do movimento, que, por sua vez, absorveu recursos e linguagem
daquele meio. Esta característica pode fundamentar a afirmação do engajamento de
escritores(as) no movimento que resultou na Abolição da escravidão. Para uma síntese dos
argumentos de Angela Alonso, conferir “O abolicionismo como movimento social”.
38

Além dessa corrente de produções literárias pioneiras no século XIX


somam-se outras iniciativas de ordem coletiva e popular entre o final daquele
mesmo século e o início do século XX. Fazendo um resgate das experiências e
tentativas de organização da população negra brasileira, Lélia Gonzalez destaca no
período seguinte à Abolição a existência de algumas entidades qualificadas como
recreativas ou culturais de massa.
Nos contos de Olhos d’água é possível visualizar a organização de tais
entidades sociais ilustrada em “Duzu-Querença”. No conto, a voz narrativa descreve
a relação da personagem com entidades sociais, podendo se referir à atualidade e
ainda remontar ao período citado por Gonzalez.

[Querença] estava estudando, ensinava as crianças menores da favela,


participava do grupo de jovens da Associação de Moradores e do Grêmio da
Escola. Intuía que tudo era muito pouco. A luta devia ser maior ainda.
(EVARISTO, 2016, p. 37).

O fragmento apresenta um adjetivo que foi utilizado para qualificar um dos


movimentos no pós-Abolição e prezado por alguns militantes. Em análises feitas
durante a década de 1980, Gonzalez defendia o potencial daquelas entidades que
mobilizavam as massas, porque ao mesmo tempo combinavam o cultural e
possibilitavam o exercício de uma prática política, apesar das investidas de
manipulação por parte das classes dominantes (GONZALEZ, 1982a). Ao lado
dessas mobilizações havia as recreativas, mais em conformidade com as
perspectivas ideológicas das elites da época. Aquelas duas tendências aparecem
com maior realce a partir da década de 1920 e culminam na formação da Frente
Negra Brasileira (1931-1937), qualificado como o maior movimento de caráter
urbano após a Abolição (MOURA, 1992).
A Frente, a partir de São Paulo, mobilizou a população negra dos quatro
cantos do país. Aquelas tendências das entidades recreativas e culturais de massa
que culminaram no movimento urbano não se dissolveram, fazendo coexistir no
interior da Frente diversas correntes políticas, que iam desde a ala mais socialista
até a mais integralista. Diante das proporções nacionais alcançadas, seus membros
entraram com o pedido de transformação em partido político, em 1936. No entanto,
logo no ano seguinte, com a instalação da ditadura do Estado Novo, a FNB e outros
partidos e movimentos sociais foram vigiados e censurados pelos “órgãos de
39

segurança e repressão” (MOURA, 1992). Num ensaio revisado em 1985, em que


caracteriza o Movimento Negro Unificado em relação aos que o antecederam, Lélia
Gonzalez, embora não descarte a validade da FNB, destaca como problema
daquele movimento o fato de ter reproduzido o nacionalismo autoritário e a
manipulação de massas do governo Vargas. De acordo com a intérprete, muito
embora denunciasse o racismo e a discriminação social,

a FNB não lutou pela inclusão dos negros no mundo do trabalho [enquanto
classe operária]. Isso se torna claro, por exemplo, quando observamos o
tipo de denúncia que fizeram contra os imigrantes. Esses eram vistos como
brancos estrangeiros que tomaram o lugar dos negros no mercado de
trabalho, mas nunca foram considerados classe trabalhadora (GONZALEZ,
2020, p. 124, acréscimo das organizadoras).

Também naquela década de 1920, a Imprensa Negra no país dinamiza-


se, principalmente a partir do estado de São Paulo, fazendo-se circular uma série de
jornais e revistas, como o Clarim da Alvorada (1924-1932). Em seu conjunto essa
imprensa é criada como uma alternativa diante das barreiras raciais enfrentadas
pelos negros na grande imprensa da época. Os objetivos, além de refletir a vida
associativa, cultural e social da população negra (MOURA, 1992), eram didáticos e
educativos, uma vez que seu exercício alimentava certo apreço pela produção
escrita e pela leitura (CUTI, 2010). Segundo o sociólogo Clóvis Moura, a mobilização
da Imprensa Negra, ao travar discussões sobre problemas específicos da realidade
dos negros nas primeiras duas décadas do século XX, exerceu influência
considerável sobre editores e leitores das comunidades negras e sobre a fundação
da Frente na década seguinte.
Em análises escritas durante a década de 1980, Florestan Fernandes
atribuiu a intensificação daqueles movimentos a uma conscientização mais ampla da
natureza do racismo no Brasil. O sociólogo apontou o fato de que, apesar de o
racismo no país não ser materializado numa série de decretos legais, a exemplo do
que aconteceu nos Estados Unidos e na África do Sul – já que desde 1951 no Brasil
há a lei Afonso Arinos contra a discriminação racial –, o racismo ainda persiste de
maneira institucionalizada no país, produzindo efeitos nocivos à população negra e
ao próprio Brasil. A especificidade do racismo brasileiro ficou mais evidente, por
exemplo, através da
40

[…] concentração racial da riqueza, da cultura e do poder, da submissão do


negro, como “raça”, à exploração econômica, à exclusão dos melhores
empregos e dos melhores salários, das escolas, da competição social com
os brancos de mesma classe social etc., e à redução da maioria da massa
negra ao “trabalho sujo” [sic] e a condições de vida que confirmam o
estereótipo de que “o negro não serve mesmo para outra coisa”
(FERNANDES, 2017, p. 56).

Relembrando as diversas manifestações dos(as) escravizados(as), das


mais cotidianas, as “resistências passivas” e quase invisíveis, às de maior alcance e
destaque, a exemplo das insurreições, entidades e movimentos, é possível
considerar que eles nunca estiveram inertes e alienados das condições de
exploração a que estiveram submetidos(as). Cada uma daquelas manifestações
contribuiu a seu modo para que se solidificasse uma literatura produzida por
escritores(as) negros(as) brasileiros(as) na primeira metade do século XX e uma
ampliação da recepção daqueles textos. A partir daí, pode-se marcar, segundo Cuti,
a consolidação de uma chamada “vida literária negra” (CUTI, 2010, p. 115).
Essas fermentações também estiveram presentes na literatura dramática,
principalmente através do Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado em 1944
por Abdias Nascimento, no Rio de Janeiro. A proposta concentrava-se na
valorização da população negra brasileira por meio da educação, da cultura e da
arte e baseava-se em cinco objetivos gerais, de acordo com seu fundador: 1)
resgatar os valores da[s] cultura[s] africana[s]; 2) tentar educar a classe dominante
“branca” 3) eliminar a prática comum de utilizar atores brancos maquiados para
interpretar personagens negros; 4) impossibilitar a interpretação de atores negros
em papéis considerados grotescos ou estereotipados e 5) desmascarar a literatura
pseudocientífica que focalizava os negros como exercício esteticista ou
diversionista.
Aquela “tarefa histórica e revolucionária”, tal qual Nascimento descreveu o
TEN, formou os primeiros atores e atrizes negros no Brasil, documentando essa fase
pioneira da dramaturgia e atuando em diversas frentes, como: na alfabetização
das(os) participantes convocadas(os) das classes populares; na denúncia das
práticas sutis e explícitas de racismo; na resistência à imposição cultural europeia; e
na instalação de mecanismos de apoio psicológico aos participantes
(NASCIMENTO, 2004, 2016).
41

A expressividade do TEN como entidade comprometida com a discussão


e prática das reivindicações dos povos negros no Brasil expandiu-se para além de
seus limites. Conforme Lélia Gonzalez, o Teatro também pôde incorporar naquelas
entidades representantes dos ditos setores progressistas “brancos”. Ela lembra que
foi por aquele período (1945-1948) que surgiram, por exemplo, as primeiras
pesquisas de Florestan Fernandes sobre a população negra no Brasil, como vimos
anteriormente.
Ao lado disso, na perspectiva de Gonzalez, esse movimento trazia como
características limitadoras a atitude paternalista e autoritária, a dificuldade de
combinar os problemas específicos da população negra com os problemas gerais da
sociedade brasileira e a despreocupação com a integração dos negros no mercado
de trabalho (GONZALEZ, 2020, p. 125).
Na década de 1960 alguns eventos tiveram influência na organização da
população negra brasileira, ao lado de outros setores da sociedade civil, em
movimentos sociais e na produção literária. No cenário brasileiro, o regime ditatorial
militar estabelecido com o golpe de 1964 pregava, nos anos que variam entre 1968
e 1973, a concretização de um chamado “milagre econômico”, que tinha como
característica o “casamento entre estado militar, as multinacionais e o grande
empresariado nacional”, conforme descreve Gonzalez. No entanto, as massas
trabalhadoras do Brasil, e o conjunto da população negra que fazia parte dessa
totalidade, ficaram às margens daquele dito “milagre” (GONZALEZ, 1982a).
Também no período de 1960-1970 as disputas de libertação no continente africano
tiveram influência sobre o pensamento de jovens militantes negro-brasileiros, que,
conforme relato de Miriam Alves, acessavam e distribuíam cópias de literatura
angolana, principalmente (ALVES, 2010).
Naquele contexto, contra a situação de desigualdade na qual se
encontrava a maior parte das(os) trabalhadoras(es) negras(os) no Brasil, agredida
pela discriminação racial, a perseguição e violência policial, o desemprego e a
pobreza, um grupo de entidades e anônimos fundou em São Paulo, em junho de
1978, o Movimento Negro Unificado Contra a Desigualdade Racial (MNUCDR) –
depois sintetizado para MNU.
42

A tarefa de organização das entidades democráticas num movimento de


dimensão nacional em defesa do povo negro brasileiro nos níveis político,
econômico, social e cultural foi provocada, de modo mais específico, pela ampla
divulgação na imprensa dos casos de Robson Silveira da Luz, um trabalhador negro
torturado até a morte pela polícia de São Paulo, em abril daquele ano; de Nilton
Lourenço, operário negro também assassinado por um policial no bairro carioca da
Lapa; e de quatro garotos que foram barrados do time de vôlei do Clube de Regatas
Tietê por razões racistas (GONZALEZ, 1983a, p. 49-50). Na Carta de Princípios do
movimento, além dos problemas já citados, eram denunciadas a exploração sexual,
econômica e social da mulher negra, as condições subumanas de vida dos
presidiários e o abandono e maltrato de menores, em sua maioria negros(as).
A consciência da relação entre racismo e exploração socio-econômica e
de seus impedimentos à criação literária dos povos negros pode estar demonstrada
na apresentação de lançamento dos Cadernos Negros, na qual (as)os autoras(es)
manifestam por fim à imitação e arrancar as máscaras brancas, evidente alusão a
Frantz Fanon e às lutas anticoloniais. A preocupação em combater o racismo em
sua relação com a exploração econômica, de acordo com as análises de Lélia
Gonzalez, foi o diferencial do MNU em relação a outros movimentos anteriores,
como a FNB e o TEN. Embora esses movimentos da primeira metade do século XX
tenham sido necessários para a posterior organização dos militantes no MNU, este
movimento tinha como características a combinação das questões de raça e classe
como foco de preocupação; a criação de Grupos de Ação, objetivando evitar uma
figura de liderança com o poder de controlar o destino da organização; e a
articulação entre os problemas específicos das populações negras e os problemas
gerais dos povos brasileiros (GONZALEZ, 2020, p. 112-126).
A luta por liberdade de organização e expressão do povo negro, escrita
na carta, traduz-se também na criação, ainda em 78, dos Cadernos Negros, por
iniciativa de jovens universitários a exemplo de Cuti e Hugo Ferreira (GONZALEZ,
1982a). Naquela série, a poesia, gênero a que se dedicava a primeira edição, era
apresentada como “testemunha de nosso tempo”, como via de superação de
43

cicatrizes históricas e “vigilância contra as ideias que nos confundem, nos


enfraquecem e nos sufocam”12.
Dois anos após o lançamento dos Cadernos, que, como se viu, seriam
principal suporte para a divulgação de contos e poemas de Conceição Evaristo, foi
criado o grupo Quilombhoje, inicialmente formado por Cuti, Oswaldo de Camargo,
Paulo Colina e Abelardo Rodrigues, nomes que incentivaram o debate em torno da
literatura negra no Brasil. Entre as atividades do grupo, segundo Cuti, incluíam-se
conversas em bares, rodas de poemas acompanhadas de instrumentos percussivos
e pontos musicais intercalados às declamações (CUTI, 2010, p. 125-131). Ao lado
dessas, outras(os) também estavam preparadas(os) para a discussão e atividade
política, a exemplo da própria Lélia Gonzalez, além de tantas(os) outras(os)
anônimas(os) que fizeram o movimento. Em 1983 os Cadernos Negros unem-se ao
Quilombhoje, que passa a ser responsável pela continuidade da série, anteriormente
sob a coordenação de Cuti. Até hoje em exercício, o grupo é atualmente coordenado
por Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa, poetas que fazem parte dessa relação
colaborativa desde 1982.
Naquele período de proliferação dos movimentos de cultura negra em
diversos pontos do país, sobretudo no sudeste, Conceição Evaristo, recém-formada
no Curso Normal pelo Instituto de Educação, migra de Belo Horizonte para o Rio de
Janeiro, mais exatamente em 1973, conforme conta em depoimento. Além dessa
proliferação, o contexto mais amplo, de acordo com as análises de Gonzalez, era de
avanço vertiginoso do capital estrangeiro no Brasil, de processo de crescimento do
desemprego nos campos, e política de diferenciação regional do salário mínimo, que
desigualmente beneficiava o sudeste em detrimento do restante do país
(GONZALEZ, 1982; 2020). Diante daquele cenário, a migração de Evaristo para a
área urbana desenvolvida, nesse caso o Rio de Janeiro, ao tomar conhecimento de
um concurso para o magistério, é amostra de tantas outras fugas anônimas que
procuravam sobreviver às desigualdades representadas nos contos de Olhos
d’água.

12 Os trechos foram extraídos do manifesto de apresentação da primeira edição dos Cadernos, de


novembro de 78. Tanto esse texto quanto a Carta de Princípios do MNU, além de outros
depoimentos e documentos daquele período, podem ser encontrados em Lugar de Negro (1982),
de Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg.
44

Durante a década de 80, Evaristo participa do Coletivo de Escritores


Negros do Rio de Janeiro, formado por alguns poetas remanescentes do grupo
carioca Negrícia, a exemplo de Éle Semog, além de Nei Lopes e Elisa Lucinda
(DUARTE, 2011, p. 103-116).
Uma investigação de bastante fôlego que percorre eventos ocorridos
naquele período de final da década de 1960 até 1980, em São Paulo, e que
permitiram o encontro de escritores(as) e intelectuais negros(as), foi feita
recentemente pelo já citado Mario Augusto Medeiros da Silva. Através de notícias de
jornais, publicações de escritores e depoimentos, o sociólogo reuniu os eventos que
podem ser sintetizados em: 1) as antologias que no cenário nacional e internacional
reuniram a produção literária negra, principalmente do gênero poético, possibilitando
certo espaço de visibilidade crítica e social não só dos autores selecionados, mas da
literatura negra no Brasil; 2) a publicação de estudos autorreflexivos dos poetas ou
coletivos negros sobre sua produção, estimulando a discussão sobre seus desafios
políticos e estéticos; 3) a realização de eventos, também de alcance internacional,
que tornou possível a aproximação dos(as) autores(as) com a crítica especializada,
além de ter trazido o interesse de outros públicos.
Medeiros da Silva reitera o trabalho do associativismo político-cultural nas
primeiras décadas do século XX, citando a Imprensa Negra paulistana, a Frente
Negra Brasileira (1931-1937) e a Associação Cultural do Negro (1954-1976), para
que a congregação de escritores negros nos anos que antecederam e sucederam
1978 fosse possível. Além disso, lembra também o papel de intelectuais e poetas
negros da “velha guarda”, a exemplo de José Benedito Correia Leite (1900-1989) e
Oswaldo de Camargo (1936-), que, além dos próprios movimentos, são
considerados elos entre a trajetória coletiva de gerações anteriores e das seguintes
(SILVA, 2015).
A partir da longa história de movimentos sociais e literários que tentamos
sintetizar, Conceição Evaristo e tantas(os) outras(os) negras(os) brasileiras(os)
contemporâneos(as) puderam exercer ocupações anteriormente inacessíveis.
Bastante atenta, Evaristo dá uma linguagem poética a essa história em “Vozes-
mulheres”13, um de seus primeiros poemas publicados. O poema pode ser

13 O poema “Vozes mulheres” foi publicado pela primeira vez na 13ª edição dos Cadernos Negros,
em 1990. Naquela mesma edição, que era dedicada ao gênero poético, também saíram outros
45

considerado não só a certidão de nascimento de Evaristo enquanto escritora –


embora ela já escrevesse desde 1980 –, mas também o testemunho poético de uma
linhagem de mulheres desde a escravidão, passando por diferentes momentos da
história até indicar dias de liberdade.

A voz de minha bisavó


ecoou criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.

A voz de minha avó


ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe


ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.

A minha voz ainda


ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.

A voz de minha filha


recorre todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha


recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade. (EVARISTO, 2017, p. 24-25)

Podemos dizer que, em diálogo com o “espírito romântico”, que


estabelecia para si uma condição solitária e concentrava-se numa manifestação do
estado d’alma, meramente individual (CANDIDO, 2000), Evaristo constrói a voz lírica
de modo a destacar o senso de coletividade, integrando-se não só àquelas vozes
que a antecederam, mas ainda àquelas que darão continuidade à sua história. Além
poemas de Conceição Evaristo: “Mineiridade”, “Eu-mulher”, “Os sonhos”, “Fluida lembrança” e
“Negro-estrela”. Mais tarde, esses e outros poemas da escritora foram recolhidos em Poemas da
recordação e outros movimentos (2008).
46

do título, o recolhimento gradual de cada um desses “lamentos”, “revoltas”, “versos


perplexos” e “vozes mudas” até culminar numa fala maturada à geração que a
sucede, acrescenta ao poema um tom de aconselhamento ao futuro.
Com isso, lê-se também uma característica comum entre poetas
negros(as): a relação entre o “eu” lírico e o “eu” do(a) poeta. Poeta e voz-lírica
manifestam-se cientes de sua condição plural e coletiva. Ao recorrer a cada uma
daquelas vozes e lutas que antecederam a voz-lírica é possível abrir novas
possibilidades de criação e representação artística e de interpretação do Brasil.
Da perspectiva das mulheres negras, Evaristo recorre a uma parte do
povo brasileiro que por motivos históricos e socioeconômicos foram educadas para o
trabalho e tiveram mais atrevimento (ato de coragem) para combater cotidianamente
muitas das privações (GONZALEZ, 1982a): a exploração através do sistema
escravista; a divisão racial do trabalho livre, concentrando-as nas ocupações de
lavadeira e cozinheira, e do espaço, atualizado com o surgimento das favelas e de
bairros predominantemente negros; o criminoso genocídio que continua por meio da
fome e da violência combinada contra as populações negras e brasileiras. Vale
observar ainda que ao fundir o grupo racial “branco” com a posição de “dono”
(“brancos-donos de tudo”) a poeta sintetiza uma perspectiva de análise de Florestan
Fernandes sobre a concentração racial da riqueza, da cultura e do poder.
Como dissemos no início do capítulo, na leitura que procuramos fazer de
“Ei, Ardoca” duas linhas narrativas somam-se. Focalizamos a coexistência de vozes
que aparece em segundo plano pensando nela como uma construção analógica dos
movimentos sociais, em especial os movimentos negros aqui apresentados, por um
espaço de igualdade racial e social na ordem social competitiva brasileira
duplamente excludente. Na esteira desse movimento, ocorre também uma demanda
pela legitimidade da produção de escritores e escritoras negros(as) no espaço de
representação literária e construção de interpretações do Brasil.
Nessa leitura, o intra-enredo, entendendo-o como um segmento narrativo
aparentemente desimportante que é formado no interior e próximo à narrativa
central, complementa o enredo do protagonista: o suicídio de uma pessoa, numa
atitude desesperada e solitária ante o acúmulo do cansaço por todos os dias, todos
os trabalhos, e por toda a vida (EVARISTO, 2016, p. 96-97). O ritmo acelerado
47

massacrante, preestabelecido e repetitivo do trem, máquina de transporte utilizada


pelo protagonista e possível metáfora para a maratona social competitiva, fragiliza a
personagem a ponto de ela dissentir de todo o intra-enredo que se passa ao seu
redor e escolher o suicídio como resposta ao cenário narrado.
Embora destacados por datas aparentemente distantes e isoladas, a
Imprensa Negra Paulistana, a Frente Negra Brasileira, o Teatro Experimental do
Negro, o Movimento Negro Unificado e os Cadernos Negros, a publicação de
antologias, estudos autorreflexivos e realização de eventos, enquanto exemplos de
iniciativas da sociedade civil, foram resultado de iniciativas contínuas no sentido de
documentar e sensibilizar a sociedade brasileira para experiências que não são
inteiramente individuais, mas comuns a várias pessoas. Uma das características que
podem ser visualizadas nos trabalhos das associações desde o século XIX, dos
coletivos culturais e das antologias, ao lado de outras organizações da sociedade
civil, é que apresentavam como pressuposto a ideia de colaboração. Essas e outras
iniciativas parecem não só organizar e sensibilizar a luta contra as formas de
discriminação e exploração que agrediram os negros e outros grupos sociais. Ao
lado disso, também possibilitam a construção de diferentes representações e
interpretações literárias das relações sociais e humanas.
48

4 UMA LOCALIZAÇÃO SOCIO-AXIOLÓGICA INTERNA NO TEXTO LITERÁRIO


NEGRO

Até aqui procuramos ver como alguns(mas) escritores(as) negros(as) no


Brasil estabeleceram, ao lado de entidades, periódicos e movimentos sociais, o
compromisso histórico e estético de produzir literatura. Já tentamos mostrar que o
aspecto literário aqui destacado guarda em comum com a literatura brasileira de
modo geral a possibilidade de iluminar novas perspectivas para a interpretação do
Brasil: e de modo específico sobre a experiência social das populações negras.
Nesse ponto vale lembrar o entendimento do sociólogo Octavio Ianni, no
ensaio “Literatura e consciência”, de 1988. Naquela década, já descrita
anteriormente, e de centenário da Abolição, Ianni percebeu, sobretudo embasado na
noção candidiana de literatura como um sistema, a formação de uma literatura
negra, um segmento dinâmico que congregava obras, autores, leitores e temas
comuns. O sociólogo via naquela produção uma relação ao mesmo tempo de
dependência e autônoma, de dentro e fora com a literatura brasileira (IANNI, 1988).
Hoje, vê-se que aquela produção que se formava durante os anos 1980 consolidou-
se (DUARTE, 2014).
Agora procuramos apresentar o debate em torno de elementos textuais
que têm caraterizado o segmento da literatura de autores(as) negros(as) no interior
da produção literária brasileira de modo mais amplo. Para isso, faremos um diálogo
entre depoimentos de escritores(as), pesquisadores(as) da crítica especializada e
textos de Luiz Gama e de Conceição Evaristo. A escolha por inserir Luiz Gama
justifica-se por ser considerado um dos poetas pioneiros na construção e afirmação
de um “eu” negro na literatura brasileira, como se verá mais à frente; depois, pela
relação que o poeta estabeleceu com os movimentos sociais de seu tempo, como se
viu no capítulo anterior. Ao lado desse debate procuraremos demonstrar elementos
que têm caracterizado internamente uma postura estética de Conceição Evaristo, de
modo específico, e da literatura de autoria negra no Brasil, de modo geral.
Entendemos enquanto parte de uma postura estética de Evaristo uma série de
49

escolhas vocabulares, textuais, temáticas, de construção e posicionamento de


imagens e da voz narrativa e ainda de disposição editorial dos contos no livro.
Diante dos nomes de escritores(as), ativistas e pesquisadores(as) negros
mencionados até aqui, poderíamos pensar que a autoria é por si só o elemento que
caracteriza essa literatura. Nesse sentido, bastaria que Lima Barreto ou Conceição
Evaristo, por exemplo, fossem (auto)identificados enquanto negros para que se
estabelecesse uma vertente de autoria negra na literatura brasileira. A esse modo de
compreender a questão, o poeta Cuti argumenta que “pronunciar-se negro é uma
escolha” (CUTI, 2010, p. 57), e exigir da(o) artista o contrário pode ser autoritário.
Por isso, alguns(as) escritores(as) negros(as) no Brasil, apesar de serem
socialmente identificados enquanto tal, não afirmam para si nem essa condição, nem
uma proposta de literária negra, a exemplo de Marilene Felinto (1957-).
Para ilustrar o posicionamento da escritora em 2019, citamos uma
conversa dela com o Suplemento Literário Pernambuco. Na entrevista, Felinto
refere-se a uma mostra de poesia contemporânea brasileira que aconteceria
naquele ano, no Instituto Moreira Salles (IMS) e que não contemplava poetas
negras(os) na curadoria do evento.

Ter autores negros não é uma questão de cota. E, sim, de direito. Os negros
têm de estar em qualquer lugar. Eu nunca levantei na minha literatura a
bandeira de que faço uma literatura negra. Não me identifico com isso. Mas
me identifico com a bandeira de luta para que ocupemos todos os lugares .14

Na ótica de Eduardo de Assis Duarte, já citado anteriormente, a questão


da autoria é importante, embora proponha que o dado seja pensado ao lado de
outros elementos. Duarte é um dos estudiosos que, na primeira década dos anos
2000, procurou estabelecer um conceito para compreender a “literatura afro-
brasileira”. Segundo o pesquisador, essa produção tem se caracterizado pela
conjunção dinâmica de cinco constantes discursivas: autoria, temática, ponto de
vista, linguagem e público. Nas palavras de Duarte, a questão da autoria precisa ser
compreendida

[…] não como um dado “exterior”, mas como uma constante discursiva
integrada à materialidade da construção literária […], [a autoria] há que
estar conjugada intimamente ao ponto de vista. Literatura é discursividade e

14 (Disponível em: https://www.suplementopernambuco.com.br/edições-anteriores/2270-jornalismo,-


narrativa-e-resistência-marilene-felinto-na-flip-2019.html. Acesso em: 20/07/2020).
50

a cor da pele será importante enquanto tradução textual de uma história


própria ou coletiva. (DUARTE, 2011, p. 388-390, v. 4, grifos do autor)

Nesse sentido, a identificação racial do(a) escritor(a) pode ser construída


no próprio texto literário: pode traduzir-se ao mesmo tempo o entendimento da
história das populações negras e o compromisso e discussão das lutas dos
movimentos, por meio da escolha do ponto de narração, do vocabulário, do
percorrer as expressões culturais afro-brasileiras e da reflexão sobre os conflitos
sociais e raciais que têm marcado o Brasil, por exemplo. Noutras palavras, podemos
dizer que o(a) escritor(a) enegrece seu texto e vai enegrecendo junto com ele.
No conto plurivocal “A gente combinamos de não morrer”, uma das vozes
narradoras, da personagem Bica, pode sugerir a tradução, metalinguisticamente, da
reflexão levantada por Duarte sobre a autoria enquanto uma constante discursiva.
Antes, vale explicar que ao utilizarmos o termo plurivocal referimo-nos ao modo de
composição do conto. Este alterna-se entre a narração na terceira pessoa, que
insere as personagens, e na primeira do singular, na qual elas – Dorvi, Bica e Dona
Esterlinda – desempenham o turno de fala e projetam óticas que conduzem o
enredo. Essa alternância e plurivocalidade ficam evidente, por exemplo, no trecho
selecionado abaixo, em que a narração é transferida da terceira pessoa para a
primeira e, no início do parágrafo seguinte, após os colchetes de supressão, para o
turno de fala de outra personagem:

Uma programação mais amena vai entorpecendo os sentidos da mulher


[Dona Esterlinda]. O que mais gosto na televisão é de novela. […] Eu, Bica,
sei um pouco do segredo. Um pouco do saber basta. O saber compromete,
penso eu [Bica]. (EVARISTO, p. 101-102, supressão nossa)

Nesse sentido, diante de uma narrativa curta que é conduzida a partir de


variadas vozes narrativas, característica complementada também através do título,
adotamos o termo plurivocal.
Embora o texto “A gente combinamos de não morrer” não explicite o dado
racial da personagem Bica, ao longo dos trechos em que guia a narração do conto,
essa personagem recorrentemente faz referências e associações ao gesto de
escrever, a exemplo do que se lê em: “escrever funciona para mim como uma febre
incontrolável, que arde, arde, arde…” (EVARISTO, 2016, p. 108).
51

A reflexão metanarrativa acima, apresentada a partir da perspectiva da


primeira pessoa, pode indicar, primeiro, uma personagem que exerce a função de
escritora dentro dos contos; depois, podem conotar também uma representação da
condição de Conceição Evaristo enquanto escritora e autora do texto. O fragmento
abaixo, do mesmo conto, parece materializar mais explicitamente a “tradução” da
autora do texto no interior da própria narrativa.

Eu sei que não morrer nem sempre é viver. Deve haver outros caminhos,
saídas mais amenas. Meu filho dorme. Lá fora a sonata seca continua
explodindo balas. Nesse momento, corpos caídos no chão, devem estar
esvaindo em sangue. Eu aqui escrevo e relembro um verso que li um dia.
“Escrever é uma maneira de sangrar.” Acrescento: e de muito sangrar,
muito, muito… (ibidem, p. 109).

O sugestivo enunciado “eu aqui escrevo e relembro” parece conjugar


intimamente, no interior da narrativa, a constante discursiva da autoria do conto com
a localização do ponto de vista. O “aqui”, a partir do contexto narrado, entendido
como sinônimo de dentro, em relação ao “lá fora”, pode indicar, ao lado do sentido
espacial e de uma relativa proteção diante do contexto bélico descrito no decorrer do
conto, também pode aludir à autoria do texto literário enquanto um dado “interno”,
como propõe pensar Duarte.
Além disso, ao lado da função de escritora, pode ser considerada também
na personagem a condição de mãe. Pode-se ler então a representação de um duplo
exercício de concepção, do ponto de vista artístico e materno, o que acrescenta
novas perspectivas possíveis diante da ausência da mulher negra na condição de
mãe no discurso literário, outrora apontado por Conceição Evaristo (2009), quando
trouxemos seus argumentos sobre o tema.
Sem deixar de considerar as contribuições de Assis Duarte para uma
conceituação dessa vertente literária afro-brasileira e as possibilidades de criação e
análise que ela permitiu, pode-se considerar também que esta conceituação acabou
gerando um círculo vicioso, uma prescrição de criação e análise para as obras
literárias de escritores(as) negros(as), delimitando as possibilidades de perspectivas
e experimentações tanto da(o) artista quanto da crítica.
Em relação ao pioneirismo de um ponto de vista interno, de um “eu” negro
que é construído e afirmado dentro da literatura brasileira tem sido atribuído ao
poeta Luiz Gama, em seu poema “Quem sou eu”, conhecido também como
52

“Bodarrada” e publicado em Primeiras trovas burlescas de Getulino (1859). A


participação ativa do poeta na luta contra o sistema escravocrata traduz-se em
poesia, como podemos ver nos versos:

[…] Eu bem sei que sou qual Grilo,


De maçante e mal estilo;
E que os homens poderosos,
Desta arenga receosos,
Hão de chamar-me Tarelo,
Bode, negro, Mongibelo;
Porém eu que não me abalo,
Vou tangendo o meu badalo
Com repique impertinente,
Pondo a trote muita gente,
Se sou negro, ou sou bode,
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda casta,
Pois que a espécie é muito vasta… […] (GAMA, 1861, p. 141)

Em BrasilAfro autorrevelado (2010), estudo historiográfico que traz um


apanhado dos movimentos negros e de mulheres e a relação deles com a produção
literária no país, a escritora e pesquisadora Miriam Alves dialoga com o conceito em
construção proposto por Duarte e complementa os versos de Gama, acrescentando
que a Literatura Afro-brasileira

[…] consiste numa prática existencial para os seus produtores, que


ressignifica a palavra negro, retirando-a de sua conotação negativa,
construída desde os tempos coloniais, e que permanece até hoje, para fazê-
la significar autorreconhecimento da própria identidade e pertencimento
etnicorracial. (ALVES, 2010, p. 42, grifo da autora)

Como vimos em “Vozes-mulheres”, ao lado de outras mulheres negras de


sua geração Conceição Evaristo descende de lavadeiras e domésticas que
acumulam inúmeras experiências de privação material, de fome e de
desenraizamento, ao lado de gestos de resistência que passam pela memória e
alcançam uma ancestralidade. E uma vez efetivada a posição de escritora tem a
possibilidade de trazer para seus enredos, na camada de construção narrativa, a
perspectiva de personagens como a que encontramos em: Duzu, que tenta ludibriar
a todo custo a tortura de uma situação mendiga; Maria, que reage atrevidamente
(sem medo ou submissão) a um ato racista contra ela; Luamanda, que reconfigura
seu corpo e sua concepção de amor a cada nova experiência; Di Lixão, adolescente
53

morador de rua ultrajado por uma soma de dores, traumas e pela pobreza; Natalina,
que pode conotar um libertar-se simbolicamente de seu algoz15.
Assim, a escritora tem a possibilidade de construir a narrativa a partir do
ponto de vista das populações negras, podendo dar uma forma literária não só ao
legado do sistema escravista na ordem social competitiva, mas também à
capacidade de agência contra as condições retratadas nas narrativas. O(a) autor(a)
do texto literário tende a traduzir-se no texto enquanto porta-voz que faz ressoar as
vozes dos coletivos negros.
Analisando o lugar social de enunciação de escritores contemporâneos no
ato de representação do “outro”, Regina Dalcastagnè argumenta, dando
continuidade a uma hipótese já levantada por Antonio Candido em “A nova
narrativa”, de 1989, que autores a exemplo de Rubem Fonseca constroem a
alteridade de maneira exótica. Isso porque apesar de tratar de temas e personagens
marginalizados, o distanciamento entre a perspectiva de narração traduz-se no
interior da construção das narrativas, “o ‘outro’ aparece com as feições que a
tradição lhes deu – deformadas pelo nosso medo, preconceito e sentimento de
superioridade […] sob a perspectiva das classes dominantes” (DALCASTAGNÈ,
2012, p. 24). Assim, constrói uma alteridade de forma pitoresca, folclórica, como se
viu na estetização de elementos culturais afro-brasileiros nos anos 30.
Para ilustrar, podemos recorrer a um conto de Rubem Fonseca (1925-
2020), escritor conhecido ao longo da segunda metade do século XX por focalizar
tipos urbanos marginalizados, a violência no cotidiano das grandes cidades
brasileiras, e expor em seus contos e romances aspectos do comportamento
brasileiro, a exemplo do autoritarismo, do paternalismo e da misoginia. Numa
camada de leitura que observa as escolhas vocabulares e a construção das
personagens do conto “Feliz ano novo”, publicado na obra homônima, de 1975,
encontramos um narrador em primeira pessoa descrevendo suas relações com os
amigos e um violento assalto a uma denominada “casa bacana”.
A partir da perspectiva do personagem narrador do conto, estabelece-se
um nível de distinção diante dos outros, indicado, além dos elementos de educação

15 As personagens citadas protagonizam as narrativas de mesmo nome, respectivamente: “Duzu-


Querença”, “Maria”, “Luamanda”, “Di Lixão” e “Quantos filhos Natalina teve?”. Quando for o caso
de exceção, especificaremos de qual narrativa a personagem faz parte.
54

formal, pela segunda construção frasal, curta, direta e isolada: “Pereba sempre foi
supersticioso. Eu não. Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz quadrada. Chuto
a macumba que quiser” (FONSECA, 2004, p. 187). Dentro dessa distinção, as
características das demais personagens são descritas em tom pejorativo: “Pereba,
você não tem dentes, é vesgo, preto e pobre, você acha que as madames vão dar
pra você?” (ibidem).
De início, o narrador associa as expressões de religiões afro-brasileiras a
significados negativos e maus presságios, o que tende a retirar delas sua história,
desconsiderar e negar seu valor social, espiritual e religioso:

De manhã a gente enche a barriga com os despachos dos babalaôs, eu


disse, só de sacanagem. Não conte comigo, disse Pereba. Lembra do
Crispim? Deu um bico numa macumba aqui na Borges de Medeiros, a perna
ficou preta, cortaram no Miguel Couto e tá ele aí, fudidão, andando de
muleta. (ibidem, p. 186)

A partir da observação das ações atribuídas às personagens pode-se


considerar que elas, as personagens, são construídas predominantemente enquanto
pessoas reduzidas a ações fisiológicas e instintivas, a exemplo do que se vê em:

Pereba entrou no banheiro e disse, que fedor. Vai mijar noutro lugar, tô sem
água (ibidem, p. 186); [...] arrumei a colcha de cetim da cama com cuidado,
ela ficou lisinha, brilhando. Tirei as calças e caguei em cima da colcha. Foi
um alívio, muito legal. Depois limpei o cu na colcha, botei as calças e desci
(ibidem, p. 191); […] Não se ouvia nada, a não ser os arrotos do Pereba
(ibidem, p. 192).

Aos estereótipos de animalização e primitivização soma-se a descrição da


violência, da vileza e da criminalidade enquanto fenômenos supostamente
naturalizados nos grupos sociais representados através das personagens, como se
lê em: “Arranquei os colares, broches e anéis. Tinha um anel que não saía. Com
nojo, molhei de saliva o dedo da velha, mas mesmo assim o anel não saía. Fiquei
puto e dei uma dentada, arrancando o dedo dela” (ibidem, p. 191). Ao lado disso, a
ótica da personagem, ao descrever os ditos “bacanas”, também pode indicar outros
traços pitorescos em relação ao grupo retratado, fazendo sobressair nele elementos
excêntricos que supostamente serviriam para “satisfazer” a vileza do grupo do
personagem narrador, a exemplo do que se lê em:

Revistamos os sujeitos. Muito pouca grana. Os putos estavam cheios de


cartões de crédito e talões de cheque. Os relógios eram bons, de ouro e
55

platina. Arrancamos as joias das mulheres. Um bocado de ouro e brilhante.


Botamos tudo na saca (ibidem, p. 190). […] [Um dos homens] Usava um
lenço de seda colorida em volta do pescoço (ibidem, 191).

Esse modo de representação literária remete ao que foi discutido sobre a


ausentificação e folclorização dos negros e outros grupos sociais marginalizados na
literatura brasileira. Numa perspectiva de leitura, ao ostentar aqueles aspectos na
construção das personagens, o escritor que se serve dessas técnicas tende a
canibalizar e fossilizar suas criações, apresentando a alteridade a partir da
perspectiva do “mesmo”, enquanto seres sem história, objetos pitorescos que
tendem para a excitação do preconceito, do medo.
Ao lado de Fonseca na literatura brasileira, Conceição Evaristo recorre a
outra postura estética em relação às construções que folclorizam e exotizam o
“outro”. Ao conferir densidade a aspectos emocionais e psicológicos das
personagens, ao criá-las enquanto parte de uma linhagem familiar e ao compor
nelas itinerários pela memória, a escritora elabora, ao lado da tradição de escritores
negros brasileiros, um contraponto estético que distingue de representações
unidimensionais do “outro”.
O recurso da memória nos contos de Olhos d’água pode ser lido
enquanto um método de construção narrativa de Evaristo, cooperando para a
elaboração das personagens e, consequentemente, para o adensamento de suas
histórias. Esse movimento comumente está acompanhado da revelação da linhagem
familiar das personagens. Essa afirmação parte, por exemplo, de uma leitura de
“Olhos d’água”, representativo nesse sentido. Logo após o parágrafo inicial, situado
no presente da narração, a narradora dirige o foco para a rememoração de sua
infância e da relação familiar com a mãe. A indagação que orienta o enredo serve de
elemento intermediador, provocando a transição de um a outro tempo. Em seguida,
a narrativa subitamente retorna ao presente da narração, com a volta daquela
mesma indagação intermediadora.

[…] Então eu não sabia a cor dos olhos de minha mãe? Sendo a primeira de
sete filhas, desde cedo busquei dar conta de minhas próprias dificuldades,
cresci rápido, passando por uma breve adolescência […] A mãe e nós rimos
e rimos e rimos de nosso engano. A mãe riu tanto, das lágrimas escorrerem.
Mas de que cor eram os olhos de minha mãe? (EVARISTO, 2016, p. 15-16).
56

E novamente, a seguir, a personagem e o presente da narração emergem


do movimento de rememoração por meio da pergunta que insiste em revisitar a
protagonista.

Lembro-me ainda do temor de minha mãe nos dias de fortes chuvas. […]
Nesses momentos os olhos de minha mãe se confundiam com os olhos da
natureza. Chovia, chorava! Chorava, chovia! Então, porque eu não
conseguia lembrar a cor dos olhos dela? (ibidem, p. 17-18).

Noutras narrativas, a composição dos itinerários pela memória volta a


aparecer, em “Ana Davenga” e “Duzu-Querença”, por exemplo. Numa das camadas
de representação da personagem Davenga, o narrador refere-se a aspectos
emocionais, ao lado do movimento da memória e do recorrente registro dos laços
familiares. Dessa forma, apresenta-se um contraponto às representações em que
essas personagens são desprovidas desses laços: “Davenga se emocionou.
Lembrou da mãe, das irmãs, das tias, das primas e até da avó, a velha Isolina”
(ibidem, p. 25-26).
Já em “Duzu-Querença”, a narração também apresenta um itinerário pela
memória da protagonista, como fica sugerido no trecho abaixo. Nele, o uso do verbo
voar pode apontar para o movimento de rememoração que vem logo no parágrafo
seguinte, em que o narrador desdobra a história de vida da protagonista Duzu: “Se
as pernas não andam, é preciso ter asas para voar. Quando Duzu chegou pela
primeira vez na cidade, ela era menina, bem pequena […]” (ibidem, p. 32).
Através daquela técnica unidimensional de exotização e folclorização do
“outro”, escritores construíam suas personagens, segundo as argumentações de
Abdias Nascimento sobre folclorização, de maneira avarenta, carentes de histórias
de vida e psicologia, de laços familiares, a exemplo de mãe, pai e irmãos; enquanto
seres desprovidos de recordações, capacidade humana e socialmente vital para
qualquer pessoa e especialmente para os grupos ditos subalternizados.
Ainda em relação ao estudo de Dalcastagnè, a pesquisadora seleciona
obras de Carolina Maria de Jesus, Paulo Lins e Ferréz para pensar o que chama
uma produção literária a partir “de dentro”. Segundo Dalcastagnè, esses(as)
autores(as) teriam em comum a proximidade com a realidade que narram, o que
tende a conferir ao texto literário o que a pesquisadora chama de “autenticidade”,
não encontrada mesmo naqueles(as) autores(as) considerados(as) mais críticos(as)
57

em relação à exotização do outro, caso, por exemplo, de Clarice Lispector em A


hora da estrela (DALCASTAGNÈ, 39-46).
Concluindo a análise, Dalcastagnè enfatiza que a importância da
diversidade de perspectivas na literatura tem valor estético e político e não
meramente acadêmico. Primeiro, pelo fato de que a representação literária tem o
poder de oferecer uma maior riqueza e expressividade no acesso a várias
perspectivas. A monopolização dessas representações por determinados grupos
sociais e a consequente exclusão de outros agridem e empobrecem a diversidade
de percepção do mundo. Uma representação excludente fecha-se para a ampliação
e diversificação na escolha de temas, da construção de enredos e de personagens,
por exemplo, que enriqueceria a criação estética. Depois, porque “a luta contra a
injustiça inclui tanto a reivindicação pela redistribuição da riqueza como pelo
reconhecimento das múltiplas expressões culturais dos grupos subalternos”
(FRASER, 1997, cap. 1 apud DALCASTAGNÈ, 2012, p. 47, grifos da autora).
Dessa forma, a prática da leitura e produção literária somam-se como
uma via de enfrentamento, testemunho e denúncia ao áspero cotidiano de pobreza,
discriminações, violências, assassinatos, fomes, além de ser, ao lado disso tudo,
uma forma de continuidade. A possibilidade de experimentar essa dupla prática de
forma crítica dá base para construir o lugar de enunciação, traço que tem sido
considerado essencial para a compreensão da produção literária negra no Brasil.
Desempenhando o lugar de enunciação, o(a) escritor(a) negro(a) brasileiro(a),
Conceição Evaristo, por exemplo, situa-se no texto enquanto coletivo das
populações negras no Brasil, ao passo que também confere a ele, ao texto, as
singularidades que a caracterizam enquanto indivíduo. A relação de um nós que não
esquece ou apaga o eu, as singularidades que o compõem, e vice-versa.
A construção do texto literário a partir daquela localização surge como um
compromisso ético no sentido de fazer notar as sutis, maleáveis e contraditórias
formas de discriminação racial que estruturam a sociedade brasileira. Reelabora-se
e desloca-se para um ponto de referência que busca, dentro dos limites da literatura,
reparar os valores negativos atribuídos à imagem das pessoas negras ao longo de
nossa história. Cuti chama tal localização interior ao texto “sujeito étnico do
discurso”, que seria um ponto de partida daquele que organiza o texto e por meio do
58

qual acrescentam-se visões de mundo atravessadas por valores estéticos, éticos,


políticos etc. (CUTI, 2010, p. 18).
Ao lado da localização sociorracial interna é possível desdobrar-se uma
cartografia temática (PEREIRA, 2010) que permite uma leitura de uma camada
conteudística das narrativas comuns a produções literárias de autoria negra no
Brasil, e por inclusão, também presente em Olhos d’água: 1) a denúncia da violência
e exclusão social, através de personagens em situação de pobreza (“Lumbiá”); fome
(“Duzu-Querença”); de assassinatos (“Ana Davenga”, “Maria”, “Quantos filhos
Natalina teve?”, “Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos”); de trabalho e
mortalidade infantis (“Lumbiá” e “Di Lixão”); impedimento aos serviços de saúde (“Di
Lixão”); 2) a valorização das heranças afrodescendentes, como a referência às
águas de Mamãe Oxum, ou o extenso povo do conto “Ayoluwa”, todos com nomes
originários de línguas africanas; 3) a reapropriação positiva de símbolos associados
negativamente aos negros, como os toques de samba ou de religiões de matriz
africana prenunciando bons eventos e os traços fenotípicos revalorizados; 4) a
recriação do imaginário nacional, por meio da menção à África e sua presença na
formação da personagem de “Olhos D’Água”; 5) a reapropriação do corpo negro,
numa camada de interpretação imagética de “ela [Luamanda] não se envergonhava
de seu narcisismo. Era com ele que ela compunha e recompunha toda sua
dignidade” (EVARISTO, 2016, p. 63); 6) a projeção do discurso das mulheres
negras, simbolizada pela centralidade que elas ocupam nas narrativas, pelo “jogo
aparentemente passivo” (ibidem, p. 55) de resistência de Salinda (“Beijo na face”)
contra o controle do marido e em favor da própria liberdade, ou ainda pela menina
Querença (“Duzu-Querença”), que reinventa a vida através do estudo, do ensino e
da participação em organizações da sociedade civil, a exemplo da “Associação de
Moradores” e do “Grêmio da Escola” (ibidem, p. 37).
O conto “Olhos d’água” é o único inteiramente narrado na primeira pessoa
do singular e, numa mediação de leitura, pode ser lido enquanto um drama em torno
da “ascensão social” individual do(a) negro(a) brasileiro(a). Retomando e mantendo
neste conto um diálogo estreito com o enredo de seu romance Ponciá Vicêncio
(2017), Evaristo constrói uma personagem que narra os efeitos de sua migração da
59

cidade mineira natal, para correr atrás de condições de vida mais seguras, numa
longa trajetória que a distancia dos laços familiares e comunitários.
No romance, publicado primeiramente em 2003, mas escrito ao final da
década de 1980, a voz narrativa traça em discurso indireto livre a odisseia circular e
de (re)encontro da personagem que intitula o livro. Na trajetória que perpassa por
caminhos de recordação que remendam passado, presente e futuro das
personagens, lê-se o relato do engenhoso e zeloso trabalho com o barro como
metanarração da (re)criação das artes, autorizando nela também o texto da
experiência vivida pela escritora; o papel determinante das mulheres, representadas
pela figura de Maria Vicêncio, na vida das personagens; a experiência da migração
do campo para a cidade; o desenraizamento e interrompimento dos laços familiares;
a progressão de um estado de esvaziamento, acabrunhamento e alheiamento; uma
longa busca ontológica de Ponciá Vicêncio até culminar em um reencontro de
reconciliação com os vínculos familiares e da memória perdidos.
Dialogando com o romance, o conto “Olhos d’água”, retrata uma
personagem visitada pelo estranho esquecimento da cor dos olhos de sua mãe. A
partir daí, dá início a uma busca na memória pelo objeto de tal esquecimento. A
busca desencadeia na narradora um movimento de rememoração que alcança,
através da figura materna, uma história que remonta aos povos africanos
desterrados para terem seus corpos usados como força de trabalho escravo nas
Américas. Numa camada de leitura ao nível da construção temática e narrativa, o
conto pode retratar a personagem numa “busca de melhor condição de vida”
(EVARISTO, 2016, p. 18) na “cidade grande”. A protagonista desse drama é
continuamente martelada pela “(auto)acusação”, açoitada pela “culpa”, vigiada pela
“tormenta”, atordoada pelo “desespero” de não conseguir “lembrar como havia
chegado até ali” (ibidem, p. 15), de ter deixado para trás os seus, conforme indica
melhor o fragmento abaixo.

Uma noite, há anos, acordei bruscamente e uma estranha pergunta explodiu


de minha boca. De que cor eram os olhos de minha mãe? Atordoada, custei
reconhecer o quarto da nova casa em eu que [sic] estava morando e não
conseguia me lembrar de como havia chegado até ali. E a insistente
pergunta martelando, martelando. […] E naquela noite a pergunta
continuava me atormentando. Havia anos que eu estava fora de minha
cidade natal. Saíra de minha casa em busca de melhor condição de vida
60

para mim e para minha família: ela e minhas irmãs tinham ficado para trás.
(ibidem, p. 15-18)

Em síntese, pode-se ler uma narrativa sobre ter deixado para trás toda
sua história, que é a dos seus, a história dos(as) negros(a)s brasileiros(as).
Simbolizado pela volta à figura materna e ao lugar de onde tinha partido, pela
redescoberta dos “pequenos” valores e da cor dos olhos da mãe, o recolhimento
daquela história (re)abre caminhos para novos movimentos.
Acreditamos não ser por acaso essa narrativa principiar e ainda intitular o
livro de Evaristo. O estado de esquecimento e estranhamento e a tentativa de
reparar essa condição geram uma chave de interpretação para a coletânea de
contos. O recurso da memória para grupos sociais ditos subalternizados, objeto de
uma tradição de estudos, é caracterizado por Lélia Gonzalez enquanto um “não
saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi
escrita, o lugar de emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como
ficção” (GONZALEZ, 2020, p. 78). Na perspectiva de Gonzalez, o recurso da
memória emerge como um contraponto ao dito discurso dominante, da consciência,
entendidos como o lugar da exclusão, “do desconhecimento, do encobrimento, da
alienação, do esquecimento e até do saber” (ibidem). A partir dessa reflexão e
considerando os títulos de outras obras de Conceição Evaristo, a exemplo de Becos
da Memória e Poemas da recordação e outros movimentos, pode-se reiterar o valor
que a memória e a recordação têm para a criação e leitura do projeto literário da
escritora.
Numa camada de interpretação metafórica, o percurso feito pela
personagem, por meio do recurso da memória, no sentido de livrar-se de um estado
de esquecimento pode remeter ao trabalho pioneiro de construção de um discurso
psicanalítico sobre o negro brasileiro realizado por Neuza Santos Souza. Em Tornar-
se negro (1983), a psicanalista argumentava, a partir de histórias de vida das(os)
entrevistadas(os), que o fato de uma pessoa nascer com traços fenotípicos e
compartilhar de uma história comum de desenraizamento, escravidão, não organiza,
necessariamente, uma identidade negra. Esta, de acordo com a pesquisadora, é
elaborada ao longo de uma espécie de percurso formativo, de um livrar-se de todo
um conjunto de atribuições negativas que remetem à ordem social escravocrata e
que limitam a participação da pessoa negra na sociedade brasileira. A possibilidade
61

de “tornar-se negro” dá-se pela tomada de consciência do processo de


esquecimento, desconhecimento que tornou essa pessoa alheia, estranha à sua
própria história. E, a partir daí, recriar suas potencialidades.
A narrativa de “Olhos d’água” reitera um movimento de recordação já
presente no poema “Vozes-mulheres”, como vimos. Lendo “Olhos d’água” enquanto
uma dramatização, por meio do recurso da memória, de uma transformação do
estado de esquecimento, encobrimento e estranhamento; e considerando que a
narrativa foi escolhida para abrir e intitular o livro, podemos interpretar Olhos d’água
como uma obra que se instaura, desde o princípio, enquanto uma ficcionalização da
emergência de uma verdade velada. Ao lado disso, pode ser lida como uma
narrativa que desenvolve o movimento de “recorrer e recolher em si” condensado no
poema “Vozes-mulheres”, como procuraremos ver no capítulo 7.
No sentido de interpretação aberto por Gonzalez, a obra evaristiana
recorre e interpreta, através de variadas narrativas, histórias do Brasil que não foram
escritas, que têm sido, em verdade, esquecidas e encobertas pela consciência,
deixadas às margens das narrativas oficiais. Numa das camadas de memória, estão
inscritas no conjunto de contos narrativas contíguas de um duradouro e cotidiano
genocídio, através de fomes, de perseguições, de assassinatos, de fugas-
migrações, como procuraremos analisar noutro momento.
Assim, a narradora reconhece:

Mas eu nunca esquecera a minha mãe. Reconhecia a importância dela na


minha vida, não só dela, mas de minhas tias e de todas as mulheres de
minha família. E também, já naquela época, eu entoava cantos de louvor a
todas nossas ancestrais, que desde a África vinham arando a terra da vida
com as suas próprias mãos, palavras e sangue. Não, eu não esqueço essas
Senhoras, nossas Yabás, donas de tantas sabedorias (EVARISTO, 2016, p.
18).

Mais uma vez, como vimos noutros textos de Evaristo, o eu narrador


constitui-se na medida em que se reconhece como parte integrante de uma múltipla
e longa trajetória de mulheres negras, por isso o retorno à história coletiva com a
qual está conjugada. Numa mediação de leitura, a narradora pode indicar na “busca
de melhor condição de vida” (ibidem) através da estrada da “ascensão social”
individual um atarantar-se na “perda” de sua identidade, um inquietante sentimento
de “estar fora de” (ibidem) (estranheza) seus laços sociais e raciais de origem, é a
62

“anestésica acomodação racial” (FERNANDES, 2017). Além disso, a perspectiva da


narração atina o valor do reconhecimento da população negra brasileira, em
especial das mulheres, não só na formação pessoal da protagonista, mas na
formação do próprio Brasil, construído à custa de muitas “mãos, palavras e sangue”
(EVARISTO, 2016, p. 18). Recordamos aquele panorama dos movimentos sociais
negros no Brasil, trajetória que permite ler esse procedimento estético presente na
literatura de Evaristo, da elaboração de um eu que é construído a partir de sua
relação com o nós de hoje, de ontem e de amanhã.
Com aquela narrativa construída a partir de um ponto de vista interno,
Evaristo amplia e enriquece a literatura negra – e a literatura brasileira de modo
geral – ao incorporar como tema um drama que o(a) negro(a) brasileiro(a) em vias
de “ascensão social” está propenso a experimentar no corpo.
Retomando a relação entre autoria e ponto de vista, Conceição Evaristo
(2009) argumenta que esta faz-se no jogo de alteridade. Para isso, refere-se às
aproximações e distanciamentos entre as experiências de mulheres negras e
homens negros, de mulheres negras e mulheres brancas. A escritora dá
continuidade ao posicionamento adotado por outros pesquisadores negros, a
exemplo de Abdias Nascimento, como vimos, reforçando que aquele ponto de vista
interno não é dado, mas fruto do trabalho do(a) escritor(a) situado(a) no mundo
social. Em trecho que funciona quase como uma máxima para a questão da
perspectiva social e racialmente localizada, Evaristo sintetiza:

[…] quando escrevo, quando invento, quando crio a minha ficção, não me
desvencilho de um “corpo-mulher-negra em vivência” e que por ser esse “o
meu corpo, e não outro”, vivo e vivi experiências que um corpo não negro,
não mulher jamais experimenta (EVARISTO, 2009, p. 18).

É possível perceber que o ponto de vista alicerça-se na conjunção de


experiências comuns de discriminação racial, de enfrentamento às formas de
violência, de fome e aos obstáculos e vicissitudes da “ascensão social” (SOUZA,
1983), de hierarquização das relações de gênero, de organizações sociais em
associações e da leitura e exame críticos de seu tempo. Tal imbricação entre
autoria, experiência e perspectiva, que deságua na composição do texto literário,
constitui um elemento distintivo da literatura negra no conjunto da literatura
brasileira. É um dos aspectos pelo qual se busca a legitimação dessa vertente.
63

Podemos recorrer ao conto “Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos”


para ler essa imbricação. Numa camada de leitura imagética, o conto apresenta a
relação da protagonista com a irmã Naíta e com dois brinquedos de valor
representativo para as duas: uma “figurinha-flor” e uma “boneca negra”. A narrativa
acompanha a busca de Zaíta pelo objeto que falta, a “figurinha-flor”, que Naíta havia
pegado e depois perdido. No desenlace do conto, o narrador relata um tiroteio, ao
mesmo tempo em que a menina sai pela rua à procura do objeto.

[…] Em meio ao tiroteio a menina ia. Balas, balas e balas desabrochavam


como flores malditas, ervas daninhas suspensas no ar. Algumas fizeram
círculos no corpo da menina. Daí um minuto tudo acabou. Homens armados
sumiram pelos becos silenciosos, cegos e mudos. Cinco ou seis corpos,
como o de Zaíta, jaziam no chão. A outra menina [Naíta] seguia aflita à
procura da irmã para lhe falar da figurinha-flor desaparecida. Como falar
também da bonequinha negra destruída? (EVARISTO, 2016, p. 76).

No nível da narração, a interrogação que segue ao relato pode referir-se à


reflexão de Naíta, irmã da protagonista, na tentativa de informar Zaíta que a mãe,
num acesso de “raiva”, destruíra a “boneca negra, aquela que só faltava um braço e
que era tão bonita” (ibidem, p. 72). Ao lado dessa leitura, a mesma interrogação
pode sugerir um dilema de Conceição Evaristo, de modo específico, na condição de
autora negra - e dos escritores de modo geral -, diante do trabalho e desafio de
buscar palavras para falar sobre os fatos, para narrar literariamente a vida perdida
de uma criança em um tiroteio; lançando a questão para si própria, para a escrita e
ainda para o(a) leitor(a).
A inclusão dessa interrogação pode sinalizar o trabalho de interação entre
a autora, constituída também por meio das experiências de vida no mundo social,
enquanto mulher negra e na condição de mãe, por exemplo; e a perspectiva de
narração, que se aproxima do ponto de impressão da personagem menina.
A abordagem temática e a estratégia de narração são características não
só de Olhos d’água, mas comuns ao conjunto da produção que buscamos
compreender como literatura negra, o que não descarta a possibilidade de
experimentar outras estratégias de criação artística. Acrescenta-se também como
um efeito da localização interna a elaboração de uma literatura que tem se
caracterizado, de modo geral, não pelo uso de uma norma culta da língua
portuguesa, de palavras e expressões que demonstrem erudição – postura
64

predominantemente comum até as décadas iniciais do século XX. O que se vê


também é uma tendência às orações curtas, coordenadas e na ordem direta, além
de uma forte preferência pelo vocabulário popular da língua e pela oralidade, a
exemplo de: “me pegava pensando”, “custei reconhecer” (p. 15), “cambaleante,
lerdeza” (p. 32), “de supetão” (p. 33), “amuada” (p. 35), “esmolambado” (p. 36), “dar
fé” (p. 44), “bulindo” (p. 49), “lambuzavam” (p. 60), “cusparada” (p. 77), “bimbinha”
(p. 79), “pipocar” (p. 99), “saraivadas” (p. 101), “pitimbava”, “sambango”, “sustância”,
“aprumar” (p. 111), “macambúzia”, “banzo” (p. 113).
A tendência estética ao vocabulário popular e à oralidade pode indicar
uma afirmação do conhecimento e das formas de significação do povo na sua fonte
de circulação cotidiana. Ao adotar esses traços, Evaristo recorre e dá continuidade a
uma tradição de escritores(as) negros(as) e brasileiros(as) do século XX. Os
aspectos que têm caracterizado o modo de narrar, dramatizar, poetizar e ensaiar de
Evaristo, de Lélia Gonzalez, de Solano Trindade, de Lino Guedes, por exemplo,
apresentam um contraponto a um uso da linguagem como cortina opaca, que
encobre os crimes e ofensas que marcam a memória do Brasil, mais do que os
descortina, tal qual argumentou Abdias Nascimento.
Nascimento também analisou as formas de assimilação cultural na
produção literária de autores negros no Brasil, e argumentou, especialmente
recorrendo a Lima Barreto, que o uso da língua viva, corrente no dia a dia, tem um
valor de recusa ao alheamento, ao distanciamento da fala do povo e mesmo ao
autodesprezo. Ao ler o escritor carioca, o pesquisador refere-se a

uma linguagem, quase tão livre como o falar do povo, e [Barreto] desdenhou
aqueles escritores que se autoencarceravam aos rigores gramaticais e
estilísticos da língua portuguesa usada pelos acadêmicos do Brasil e do
além-mar (NASCIMENTO, 2016, p. 157).

Nesse sentido, contribui para nossa análise a máxima de Trindade,


intenso fomentador das artes e movimentos populares em diversos pontos do país,
da segunda metade da década de 1930 até o final dos anos 1960. O chamado poeta
do povo, natural de Recife, defendia “pesquisar na fonte de origem e devolver ao
povo em forma de arte” (TRINDADE, 2008, p. 16), conselho que parece orientar ao
lado da linguagem do conto, também o movimento narrativo de “Olhos d’água”,
65

enquanto retorno a duas figuras que simbolizam fontes de origem: a mãe no sentido
genealógico e o olho d’água, no sentido geológico.
Considerando as narrativas de Olhos d'água enquanto ficções
estruturadas através do recurso da memória, podemos ler a inscrição de marcas da
oralidade também como linguagem viva e testemunho de uma história que não foi
escrita. A partir da representação daquele retorno inicial incorporam-se esses traços
estéticos; desdobram-se na coletânea de contos uma série de verdades-
testemunhos, transformadas em arte, de um genocídio duradouro-cotidiano e de
diversificados meios de resistência.
Vale reforçar que a incorporação de um tom coloquial ao texto literário
não é característica isolada de Conceição Evaristo. De acordo com Antonio Candido,
que faz um recorte da ficção brasileira do final do século XX no ensaio “A nova
narrativa”, pelo menos desde os anos 20 vem se legitimando na literatura brasileira
uma tendência a acolher estilos populares e antiacadêmicos (CANDIDO, 1989, p.
205). Lino Guedes (1906-1951) pode ser citado enquanto poeta brasileiro e negro
que aderiu a uma poesia de linguagem popular em seu tempo. Considerado o
primeiro poeta do início do século XX a aceitar-se negro positivamente,
comprometia-se com as camadas negras populares de São Paulo, no geral
autodidata, e utilizava formas populares a exemplo da redondilha maior,
característica do cordel (CAMARGO, 2016).
Vimos ao longo desse capítulo, a partir de comentários de escritores,
pesquisadores e de textos literários, elementos textuais que têm caracterizado a
literatura de autores negros no interior da produção literária brasileira. A interação
entre temática, autoria, ponto de vista, linguagem e público leitor são constantes que
permitiram conceituar e consolidar essa produção literária (DUARTE, 2014). Essa
relação traz a possibilidade de organizar e elaborar uma fala, uma narrativa
vinculada com presentes e antepassados, e por meio e ao longo da qual a pessoa
negra assume-se enquanto sujeito de seu próprio discurso e de sua própria história.
Tem-se aí a construção do texto literário a partir da ressignificação e do
autorreconhecimento da pessoa negra dentro de uma relação entre o “eu” e o “nós”
e vice-versa. Essa produção tem sido elaborada também como contraponto e
reparação estético-política de um longo e antigo processo de ausentificação-
66

exotização das pessoas negras na literatura e noutros espaços de interpretação do


Brasil.
Além disso, vimos a partir de Olhos d´água, o emprego da memória como
recurso narrativo de recuperação, recriação e subsistência e o uso predominante de
uma linguagem popular enquanto tendência estético-político de acessibilidade ao
mais vasto público leitor, contrapondo-se ao uso da linguagem como cortina opaca e
instrumento de exclusão, são elementos que têm constituído a produção literária de
autoras(es) negras(os) no Brasil.
67

5 ELOS AFETIVOS, AMPLIAÇÃO AFETIVA E QUILOMBAGEM

Adiantamos na introdução que nas narrativas evaristianas aqui analisadas


encontramos personagens perseguidas e violentadas por cotidianas dores,
rompimento de laços familiares e comunitários, desamparo afetivo e social. Tais
experiências decorrem também dos contextos de pobreza econômica narrados nos
contos e indissociavelmente amarrados a uma trama que inclui também as relações
raciais e de gênero. Esses contextos põem as personagens sobre uma corda bamba
na qual se equilibram e se (co)fundem os sutis limites entre a vida e a morte, a
liberdade e a opressão, a submissão e a revolta. Antecipamos ainda que o universo
ficcional evaristiano entrelaça com os contextos objetivos mencionados recorrentes
cenas de um potencial exercício afetivo, o que procuramos demonstrar adiante.
Até aqui, procuramos discutir uma ausência em relação à pessoa negra
no Brasil, seja na condição de representação fictícia, seja na condição de sujeito
produtor de um discurso sobre si e a população negra. Em seguida, acompanhamos
um percurso de iniciativas e movimentos sociais que tem procurado reparar, cada
um à sua época, aquela lacuna e as demandas das populações negras no país.
Ao lado de mobilizações abolicionistas, associações culturais, periódicos,
jornais, dramatizações teatrais, eventos, publicações de antologias, séries literárias
e textos autorreflexivos, a literatura de autoria negra foi consolidando-se enquanto
um compromisso histórico e artístico na construção de novas perspectivas estéticas
e de interpretação do Brasil, mas não só.
Depois, vimos elementos comuns a essa produção literária, de modo
geral, e à literatura de Conceição Evaristo, de modo particular, a exemplo de
outras(os) pesquisadoras(es) antes de nós. Entre os elementos, viu-se a reparação
de uma lacuna histórica em relação à (auto)representação das pessoas negras na
literatura; o reconhecimento, a partir do texto, de um eu em relação a um nós,
materializando a relação da produção literária com os movimentos sociais; o recurso
da memória e o uso da coloquialidade, formando um conjunto estilístico que tem
caracterizado, de modo geral, a produção literária de autores(as) negros(as) na
literatura brasileira.
68

Neste capítulo procuramos interpretar os laços estabelecidos entre as


personagens de Olhos d’água contra as ações planejadas de uma política de
aniquilamento, executadas através de fomes, rompimento de laços afetivos e
comunitários, vigilância, extermínio da juventude negra, exploração do trabalho.
Lendo os gestos representados nas personagens mobilizaremos os conceitos de
ampliação afetiva e quilombagem, abrindo uma mediação histórica que remete à
escravidão.

As ficções de Evaristo manifestam em diversos momentos que as


personagens guardam e formam elos afetivos e sociais que ultrapassam os limites
sanguíneos, físicos e temporais imediatos. Os vínculos podem ser aparentemente os
mais simples, entre mãe e filha, por exemplo, tão fortemente representado ao longo
da obra. Através da ênfase a esses laços, construindo personagens dentro de
relações familiares, de amizade e amorosas, Conceição Evaristo cria um
contraponto aos estereótipos que vimos noutro capítulo e humaniza suas criações
artísticas.
Ilustra o que queremos dizer o já citado “Olhos d’água”. No caminho de
recordação da cor dos olhos de sua mãe, a narradora acessa a infância vivida na
cidade natal junto das seis irmãs mais novas e da mãe. A fome é assídua na rotina
delas. “Muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era
como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento”
(EVARISTO, 2014, p. 16), lembra a personagem. Naqueles dias de falta de alimento,
o conto retrata, era justamente quando se gerava uma intensificação dos laços que
as uniam dentro do frágil barraco. Em seu conjunto as mulheres construídas por
Evaristo estão localizadas no audacioso e sobrecarregado feito de sustentar material
e afetivamente aquele laço. Diante do crime da fome, a ludicidade é utilizada como
último recurso de alimentação: “as línguas brincavam a salivar sonho de comida”
(idem). Em fricção direta com a realidade narrada no conto, numa camada de
interpretação metafórica, o estreitamento desse elo e a imaginação criativa surgem
como uma reação consciente para enganar a fome e sonhar com o acesso aos
direitos fundamentais que lhe eram sonegados: a alimentação, a moradia. Noutro
ponto, no capítulo 6, será apresentada outra perspectiva sobre essa reação diante
da fome.
69

Ainda no mesmo conto, a personagem aprende também, ao lado das


preocupações da mãe com as dificuldades e fomes circundantes, a “reconhecer, em
seus gestos [da mãe], prenúncios de possíveis alegrias” (idem). Tal aprendizado
complementa-se e amplia-se no reconhecimento do valor de outras figuras do meio
familiar e mais ainda de uma ancestralidade africana, como vimos ainda há pouco
numa mediação de leitura de “Olhos D’água”. Podemos então visualizar nos contos
um movimento que vai desde os laços sociais mais próximos até os mais remotos na
história das populações negras no Brasil.
Uma cena semelhante é retratada em “Beijo na face”, ficção que, entre
outras questões, lança luz sobre a realidade da violência doméstica contra as
mulheres. A protagonista Salinda resiste a um relacionamento abusivo no qual o
marido age com autoritária desconfiança, controle, vigilância, acusações e ameaças,
como “tomar as crianças, matá-la [Salinda], ou suicidar-se deixando uma carta
culpando-a” (ibidem, p. 53). Diante do contexto narrado no conto, a protagonista
adota estratégias de negociação, projetando no olhar da filha um pacto de união e
solidariedade ante as violências sofridas e das artimanhas de (auto)defesa. A
protagonista “percebeu na atitude da menina uma possível cumplicidade, que
esperançosamente guardou e aguardou poder realizar um dia” (ibidem, p. 55).
Chama a atenção o minucioso movimento de ações no trecho acima, com
que o narrador descreve sua personagem: perceber, guardar, aguardar e poder
realizar. Da percepção, compreensão, tomada de consciência, à realização, o ato, a
prática. Com isso, o estreitamento do vínculo afetivo, da relação de solidariedade
entre aquelas personagens assume um aspecto de convocação, de preparação, de
ponte para uma agência conjunta contra as ameaças que tentam aterrorizá-las no
contexto de vigilância narrado no conto.
O olhar estabelecido entre as duas gerações pode ser lido, numa
mediação de leitura histórica, a partir do valor que Robert Slenes enxerga na
formação da família dos escravizados no Brasil do século XIX. De acordo com o
historiador, aquela relação era medular na transmissão e reinterpretação entre
gerações diferentes (SLENES, 2011). O foco que o narrador do conto dá àquele
detalhe narrativo pode indicar um fio de amor e solidariedade formado entre mãe e
filha, duas gerações, no enfrentamento ao contexto de ameaças abusivas e
70

autoritárias retratado em “Beijo na face”. Voltaremos a discutir essa relação mais à


frente, no capítulo 6.
Em “Ana Davenga” essa atitude vai ganhando contornos mais amplos,
para além da relação familiar. A partir das análises demográficas de Slenes,
podemos encontrar uma camada de leitura histórica. A coletânea de estudos Na
senzala uma flor: esperanças e recordações na família escrava, publicada em 1999,
faz parte de uma modificação que marcou a historiografia brasileira sobre a
escravidão por volta da década 1980 e 1990. Aquela mudança foi caracterizada por
dar destaque às formas de agência dos escravizados e surgiu dentro de um contexto
em que havia certo consenso sobre a escravidão ter dizimado todas as formas de
socialização das pessoas escravizadas. Segundo esse consenso, aquele sistema
teria deixado-as “perdidas umas para as outras”, incapazes de formar laços afetivos
e familiares, numa evidente alusão a Florestan Fernandes.
Ao lado do estudo de Slenes, outros exemplos de pesquisadoras(es)
daquela modificação historiográfica são: Lélia de Almeida Gonzalez, em alguns de
seus artigos e intervenções, como “Racismo e sexismo na cultura brasileira” (1983),
no qual dá ênfase psicanalítica às mulheres negras no Brasil, a qual na aparente
passividade da condição de “mãe preta” e “ama de leite”, exerceu a função materna
na cultura brasileira, sendo aquela que introduziu os filhos de seus senhores no
mundo da linguagem, através da criação de um tipo de romance familiar
(GONZALEZ, 2020); Maria Beatriz Nascimento, em estudos a exemplo de “O
conceito de quilombo e resistência cultural negra” (1985), no qual apresenta uma
síntese das redefinições do conceito de quilombo, desde sua origem, que remonta
ao povo Imbangala na Angola do século XVI, até a interpretação pelos movimentos
sociais negros do final do século XX, quando foi recuperado como contraponto ao
colonialismo cultural e símbolo de esperança de uma sociedade melhor (RATTS,
2006); Célia Maria Marinho de Azevedo, em Onda negra, medo branco (1987),
estudo que dá atenção ao papel das chamadas “pequenas lutas” dos escravizados
no movimento que culminou na destituição do sistema escravista (AZEVEDO, 1987);
Clóvis Moura, em História do negro brasileiro (1992), que entre outras participações
do negro na formação histórica e social do Brasil, dá ênfase às práticas de
quilombagem ao longo do escravismo como um agente permanente de mudança
71

social que respondeu à exploração e violência senhoriais com um movimento


emancipacionista de caráter radical (MOURA, 1992).
Embora não descarte os horrores e a vulnerabilidade das relações entre
senhores e escravizados diante das condições de escravidão, nas palavras de
Slenes, o estudo Na senzala uma flor procura demonstrar que no interior daquele
sistema havia também a possibilidade de cultivar estratégias cotidianas de
sobrevivência. Aquelas estratégias persistentemente frustravam as tentativas dos
senhores de terem o controle total sobre os escravizados. A partir de uma longa
pesquisa demográfica, o historiador destaca a continuidade e adaptação de alguns
valores africanos ao contexto escravista, através da formação de famílias, do cultivo
de esperanças e recordações, da arquitetura das senzalas e da culinária, por
exemplo.
No capítulo “Companheiros de escravidão: a demografia da família
escrava em Campinas e no Sudeste”, o historiador estuda os lares dos escravizados
da região, analisando os diferentes índices de nupcialidade entre campineiros,
crioulos e africanos e descrevendo o “padrão de casamento africano”. De acordo
com as análises de Slenes, as mulheres africanas recém-chegadas ao Brasil no final
do século XVIII e início do século XIX, na sua liberdade de escolha, tenderiam a
eleger um parceiro tendo em vista os “laços de amizade e dependência” que este
estabelecia entre os companheiros, e sua capacidade de enfrentamento às
condições de escravidão. Segundo Slenes, o companheiro seria:

aquele que permitiria a ela e seus futuros filhos enfrentarem melhor as


condições incertas da escravidão e conseguirem mais rapidamente favores
da casa-grande e recursos que pudessem levar eventualmente à alforria de
algum familiar (SLENES, 2011, p. 91).

Outros autores, a exemplo do já citado Clóvis Moura e de Jacob


Gorender, também especialista no escravismo brasileiro, contrapõem-se
frontalmente aos argumentos de Slenes, que apresenta uma ênfase aos meios de
negociação e acomodação entre escravizados e senhores. Para aqueles dois
historiadores, a perspectiva de Slenes deixa de lado as estratégias de luta e
enfrentamento mais aberto ao sistema escravista por parte dos escravizados.
A partir dessa contextualização, é possível levantar a hipótese de que no
contexto de guerra constantemente mencionado pelo narrador do conto “Ana
72

Davenga” – com perseguições, amigos presos –, a formação do elo entre Ana,


recém-chegada na comunidade, e Davenga, figura com muitos laços de amizade,
possa ter também esse significado de enfrentamento àquelas condições. Slenes
argumenta que para olhos distantes de viajantes e alguns brasileiros, certas
características da vida íntima dos escravizados, a exemplo dessa, passaram
despercebidas ou mal entendidas.
A interpretação de tal relação não descarta outras mediações de leitura. A
construção da personagem Davenga também parece fazer pensar diversos
elementos que têm estruturado a sociedade brasileira, embora não sejam exclusivos
dela. No trecho que segue, quando o conto apresenta a chegada de Ana, alguns
desses elementos apresentam-se nas entrelinhas:

E de repente, sem consultar os companheiros, [Davenga] mete ali dentro


uma mulher. [Os companheiros] Pensaram em escolher outro chefe e outro
local para quartel-general, mas não tiveram coragem (EVARISTO, 2016, p.
22).

O trecho acima pode indicar: por parte de Davenga, a desconsideração


dos valores comunitários, ao incluir no dito “quartel” uma pessoa sem consulta
coletiva; depois, por parte dos companheiros, uma resistência misógina diante da
entrada de uma mulher no “quartel-general”. A mesma misoginia expressa-se no
comunicado do próprio “chefe” aos companheiros, recebendo Ana, mas negando a
ela a possibilidade de intervenção nos assuntos dos companheiros:

Ela [Ana Davenga] era cega, surda e muda no que se referia a assuntos
dele [Davenga]. Ele, entretanto, queria dizer mais uma coisa: qualquer um
que bulisse com ela haveria de morrer sangrando nas mãos dele feito porco
capado (ibidem, p. 22, grifo nosso).

As palavras do trecho destacado apreendem e revelam alguns dos


problemas que têm estruturado a sociedade brasileira, a exemplo do autoritarismo,
da misoginia e do paternalismo.
Quando Ana surge, os companheiros de Davenga a receberam com
desconfiança e quase inimizade. Aos poucos, apesar de certa resistência, a
convivência e as situações pelas quais passavam foram deixando evidente que não
cabia indiferença ou imparcialidade naquele espaço. “Ana passou a ser quase uma
irmã” (ibidem, p. 22) para a comunidade e ela “optou por amá-los” (ibidem, p. 24).
73

Ao ser confundido numa ação que não havia participado, Davenga passa
a ser perseguido pela polícia. Nos momentos como os narrados no conto, em
tempos de guerra, o narrador relata a necessidade de avivar o vínculo com os
companheiros. O narrador do conto dissolvido na voz da personagem observa,

Todos estavam ali. Isso significava que onde quer que Davenga estivesse
naquele momento, estava só. E não era comum em tempos de guerra como
aqueles, eles andarem sozinhos. […] A ausência de um significava sempre
o perigo para todos. (ibidem, p. 28)

O trecho pode conotar que o indivíduo sem o coletivo está em perigo, da


mesma forma que o coletivo está em perigo sem uma de suas partes. Ao retratar
essa inter-relação entre indivíduo e coletivo, o conto materializa e remete, através
das personagens, à discussão que trouxemos sobre uma característica presente na
obra de Conceição Evaristo: a criação de um “eu” que se constitui por meio do
reconhecimento do “nós”.
Mais uma vez, o contexto comum de cidadania usurpada, dá a
oportunidade, exige dos indivíduos a ampliação e sensibilização dos laços afetivos e
sociais contra a violência com a qual se defrontam. A solidariedade entre mãe e filha
que aguardava a possibilidade de ser realizada na narrativa “Beijo na face”, no conto
“Ana Davenga” vai se ampliando e assumindo um aspecto de comunidade.
Esse movimento traduz-se e é sublinhado pelas escolhas vocabulares da
escritora, como vemos em alguns trechos: “[o] coração de Ana Davenga naquela
quase meia-noite, tão aflito, apaziguou um pouco”; “[o] coração de Ana doía de
temor. Todos estavam ali, menos o dela” (ibidem, p. 21-22). Davenga é personagem
construído não só de modo a realçar força, coragem, mas também de maneira a
salientar aspectos subjetivos, a exemplo de andar “com temor no peito” (ibidem, p.
24) naqueles tempos de perseguição policial, construção que se contrapõe a
imagens que dão ênfase a características físicas e estereotipadas.
Justamente quando todos os companheiros se retiram, logo depois de
uma festa de aniversário arrumada para Ana, a guerra descrita pelo narrador do
conto “encerra” com a invasão de dois policiais ao barraco de Davenga e um
desfecho de tiroteio, sendo mortos Davenga, Ana, que estava grávida, e um policial.

Já estavam [Ana e Davenga] para explodir um no outro, quando a porta


abriu violentamente e dois policiais entraram de armas em punho.
74

Mandaram que Davenga se vestisse rápido e não bancasse o


engraçadinho, porque o barraco estava cercado. Outro policial do lado fora
empurrou a janela de madeira. Uma metralhadora apontou para dentro de
casa, bem na direção da cama, na mira de Ana Davenga. Ela se encolheu
levando a mão na barriga, protegendo o filho, pequena semente, quase
sonho ainda (EVARISTO, 2016, p. 30).

Ao assassinato, os companheiros da personagem respondem com um


choro, e os noticiários lamentam a morte do policial. A ausência, a dor e/ou o
assassinato de um membro da comunidade causam dor, temor, aflição e choro no
corpo todo.
Como dissemos na introdução, “Ana Davenga” é um dos contos em que o
narrador retrata a noção de contraviolência, de Florestan Fernandes, mais
explicitamente. Nesse sentido, numa camada de leitura morfológica, o nome da
personagem pode ser lido como uma corruptela de vinga, possível conjugação do
verbo vingar. Dois significados do verbo podem ser destacados: buscar recuperação
e reparação de uma ofensa ou crime (históricos) cometidos; e resistir vivos(as).
A partir dessa leitura, o nome da personagem pode conotar uma
reparação simbólica de uma estrutura social que sequestrou, prejudicou, perseguiu,
ofendeu, lesou e assassinou todo um selecionado estrato da sociedade; e, ao lado
disso, a cotidiana, atrevida, firme e contraviolenta (ação) de resistir vivas(os). Se a
hipótese sobre o nome da personagem estiver mais ou menos correta, o desfecho
construído pela escritora parece indicar também um desaconselhamento ao ato,
como ocorre noutras contos e como procuraremos ver no capítulo 7. As narrativas
de Olhos d’água, a exemplo do desfecho construído em “Ana Davenga”, revelam
lado a lado, como temos visto, personagens e enredos extremamente complexos.
Dos trechos transcritos podemos observar uma escolha frequente por
palavras a exemplo de coração e peito, figuras que popularmente sugerem o lugar
das emoções, dos afetos humanos. Além disso, verbos como sentir, chorar, ao lado
de intensificadores que os acompanham como tão e tanto reforçam a condição
humana das personagens. Por esse ponto de vista, a narração do conto – tomando-
o como um exemplo da coletânea como um todo – tende a contrastar com um
discurso de objetificação e desumanização dirigido às pessoas, no caso da
personagem Davenga, aos moradores de favela.
75

Tal discurso pode estar sugerido na personagem Maria Agonia, que


enxerga em Davenga não mais que um marginal, um bandido, reduzido a objeto de
satisfação sexual. Ao lado disso, a reação de Davenga à atitude de Maria Agonia
expressa o grau máximo da misoginia na sociedade brasileira, e reitera a
complexidade das construções narrativas de Evaristo, como procuraremos ver no
capítulo 6.

Não havia de ser nada. Tinha alguém que faria o serviço para ele
[Davenga]. Dias depois, a seguinte manchete aparecia nos jornais: “Filha de
pastor [Maria Agonia] apareceu nua e toda perfurada de balas. Tinha ao
lado do corpo uma Bíblia. A moça cultivava o hábito de visitar os presídios
para levar a palavra de Deus”. (ibidem, p. 28)

Ao dar destaque a variadas dimensões na construção das personagens


desumanizadas pelos contextos de guerra e pelo rompimento de laços afetivos
descritos nos contos, Conceição Evaristo parece dar continuidade a uma
característica singular de sua produção literária desde os primeiros romances, Becos
da Memória (2017) e Ponciá Vicêncio (2017): a humanização das personagens
negras através do trato afetivo por meio de procedimentos literários.
Essa singularidade prossegue também uma postura estética regular ao
conjunto da tradição literária negra no Brasil, como vimos com sua precursora Maria
Firmina dos Reis, ao usar inovadoramente o discurso indireto livre para apresentar a
fala da personagem escravizada, construindo-a enquanto sujeito da enunciação e
não objeto da enunciação de um terceiro.
Junto ao recorrente uso do indireto livre, fundindo a enunciação das
personagens à própria voz narradora dos contos, na obra de Conceição Evaristo a
reparação da humanidade das personagens também dá-se por meio da
coloquialidade, como procuramos analisar, aproximando as narrações do uso vivo e
cotidiano da língua portuguesa; a condensação de palavras como método de síntese
de ideias; a construção de personagens complexas, abertas a um vasto campo de
interpretações; narrativas com múltiplas camadas temporais, o que confere ainda
mais densidade às personagens e à obra.
Ao lado disso, lê-se uma densidade também nas complexas relações
estabelecidas entre as personagens, pondo em reflexão recorrentes situações de
objetificação que parecem ser seguidas de homicídio, por exemplo: o linchamento
76

sofrido por Maria após a personagem ter respondido a um ataque racista; o


assassinato nas entrelinhas de “Quantos filhos Natalina teve?”, após a protagonista
ser sequestrada e estuprada; a conotação de um desenlace de suicídio e homicídio
em “Os amores de Kimbá”, revelando as bases das relações sociais fragilmente
debilitadas, como procuraremos analisar no capítulo 6.
Se formos ao romance Ponciá Vicêncio, o segundo trabalho literário de
Evaristo, publicado primeiramente em 2003, vamos encontrar nas personagens
ações que realçam o campo da percepção dos sentidos humanos, como olhar,
escutar, perceber, ouvir, sentir, cheirar, esquecer, chorar, sofrer, lembrar, sorrir...
Além disso, numa camada de interpretação metafórica, a escritora já anunciava no
romance a ampliação dos laços afetivos para o terreno comunitário. O irmão de
Ponciá, Luandi, depois de um longo processo de embananamento na busca
individual por uma voz de mando, de poder, de prisão, igual à dos “brancos-donos
de tudo” – numa palavra, o assim chamado embranquecimento – finalmente
descobre “que sua vida, um grão de areia lá no fundo do rio, só tomaria corpo, só
engrandeceria, se se tornasse matéria argamassa de outras vidas” (EVARISTO,
2017, p. 109-110). O trecho reitera mais uma vez a inter-relação do eu que se
constitui por meio de um reconhecimento ao lado e com o nós, no seu sentido mais
amplo, e vice e versa, outra vez presente na literatura de Evaristo. A mãe dos irmãos
também, já desde a partida da filha para a cidade, “se sentiu meio aleijada. Foi como
se tivesse perdido uma parte de seu corpo” (ibidem, p. 66). Os trechos
complementam-se e mostram a dimensão ampla que o corpo assume na
rearticulação afetiva, enquanto metáfora e metonímia do coletivo das populações
negras e brasileiras.
Abdias Nascimento analisou e posicionou-se com mais veemência contra
o dito embranquecimento, termo que hoje pode-se ver que atribui uma conotação e
valores negativos à cor branca. Também denominada assimilação ou aculturação,
essa noção foi estudada e analisada por vários pesquisadores brasileiros e
estrangeiros. O militante referiu-se àquele processo como uma negação ou
impedimentos que a sociedade brasileira tinha escolhido para que os negros
dessem as costas às suas origens, a um conjunto de valores culturais de herança
africana que também formam o Brasil, citando àquela época, década de 1970, o
77

silenciamento que havia no sistema educacional em relação ao ensino da história


afro-brasileira, e a presença de um currículo de base europeia e estadunidense
(NASCIMENTO, 2016, p. 111-121).
Voltando a Davenga, um elemento simbólico para compreender a
rearticulação afetiva é a forma como se dispõe o grupo ao celebrar a vida de Ana.
“Os homens rodearam Ana com cuidado, e as mulheres também […] como se
estivessem formando pares para uma dança” (ibidem, p. 22). Ao longo do enredo, o
narrador de Ana gera um clima de tensão e suspense que nutrem a narrativa. Logo
em seguida, o círculo formado pelos companheiros revela sentidos de acolhimento,
proteção, união e igualdade. A cena, além de reiterar a centralidade que as
mulheres negras, representadas na figura de Ana, têm nas narrativas evaristianas,
sublinha também alguns traços basilares da identidade dos(as) negros(as)
brasileiros(as), segundo Cuti (2010, p. 90): a necessidade-desejo de pertencimento
e a inclinação a uma interdependência cooperativa.
Cuti segue essa argumentação lembrando o Diário Íntimo de Lima
Barreto. Ao revelar o desejo de realizar um projeto literário inspirado nas pessoas
negras, Barreto apresenta as populações negras ao mesmo tempo como origem e
motivo de um grande sentimento de amor (BARRETO, 1956, p. 32) 16. Numa via de
mão dupla, a população negra do Brasil inspiraria no escritor tal sentimento ao
passo que o escritor negro alimentaria e investiria em seu grupo socio-racial o
mesmo gesto projetado. Remetendo à meta de Barreto e à relação do escritor com
os povos negros, Cuti chama esse fenômeno de “ampliação afetiva” (2010, p. 91).
O gesto de Lima Barreto ou da comunidade de Ana Davenga expandem-
se e tomam um corpo mais complexo a partir da compreensão de uma narrativa
histórica mais extensa, que aproxima as experiências objetivas e sensíveis das
populações negro-brasileiras. Nas palavras do próprio Cuti, a “ampliação afetiva”

[…] envolve o indivíduo em um processo de idealização de um todo do qual


ele também faz parte. Compreender a história e se ver dentro dela leva o
indivíduo a estabelecer vínculos afetivos capazes de gerar um
comprometimento no plano das ideias […] a elevar sua sensibilidade a um
plano coletivo (CUTI, 2010, p. 91).

Como vimos nos contos, o contrário do movimento descrito por Cuti


também é possível: estabelecer vínculos afetivos com seus iguais mais próximos
16 Retirado de versão online disponível no portal Domínio Público.
78

pode levar o indivíduo a uma compreensão mais ampla das experiências comuns
aos negros e brasileiros e a ver-se como parte de uma história, gerando um
potencial de comprometimento no plano das ideias e também no plano da prática,
como exemplificam as iniciativas da sociedade civil no Brasil, entre elas os
movimentos negros apresentados anteriormente. As situações concretas comuns de
pobreza, da fome, da violência, da falta de moradia, de impedimento aos serviços de
saúde, da marginalização, da migração, da criminalização, de assassinatos, do
encarceramento em massa e ainda as reações representadas em Olhos d’água
permitem ler a obra enquanto um testemunho que sensibiliza as pessoas para o
cenário narrado nos contos, em que a possibilidade de relações sociais harmônicas
parecem já debilitadas, pondo em perigo a existência dos grupos e indivíduos
representados, como procuraremos analisar no capítulo 6.
O ponto alto da reconfiguração afetiva e do avivamento do desejo-
necessidade de pertencimento das personagens é sugerido numa camada de leitura
metafórica “Aylouwa, a alegria de nosso povo”, que encerra a coletânea. No conto, a
perspectiva de narração reitera aquela característica comum à obra de Conceição
Evaristo: o estabelecimento do “eu” por meio do reconhecimento do “nós”.
Sob o ponto de vista plural o narrador do conto apresenta a história de um
povo em funestos tempos de banzo causados: pela pobreza, a fome, pelo
alcoolismo; por um esquecimento das tradições e das lutas dos mais velhos; pelo
enfurnamento e descrença dos mais jovens, que se põem a matar entre si; pelo
corriqueiro dilaceramento de outros tantos jovens; pela escassez de nascimento de
novas crianças e pelo desprezo dirigido às já nascidas, esquecidas no meio das
tristezas descritas. A transformação daquele dramático e bélico cenário é
simbolizada pelo nascimento de Ayoluwa, em iorubá, a alegria do povo, filha de
Bamidele, a esperança. O fragmento a seguir flagra o momento de renovação que
compõe o conto.

Ficamos plenos de esperança, mas não cegos diante de todas as nossas


dificuldades. Sabíamos que tínhamos várias questões a enfrentar. A maior
era a nossa dificuldade interior de acreditar novamente no valor da vida…
Mas sempre inventamos a nossa sobrevivência […] E todas nós sentimos,
no instante em que Ayoluwa nascia, todas nós sentimos algo se contorcer
em nossos ventres, os homens também […] Sabíamos que estávamos
parindo em nós mesmo uma nova vida (ibidem, p. 114, grifo nosso).
79

Diante de todo aquele contexto narrado no conto, de relações sociais


debilitadas, o nascimento da personagem pode simbolizar uma possibilidade de
revitalizar a construção de uma esperançosa sociedade comum à diversidade de
pessoas ficcionalizadas na obra, marcadas(os): pela usurpação de direitos
fundamentais, de dignidade e cidadania; pela reincidência da fome; pela violência;
pela exploração acumulada do trabalho; pelos ataques racistas e sexistas. E ainda
ante situações complexas narradas, em que o desenrolar das ações das
personagens pode causar danos aos mesmos. Mas também caracterizadas pelas
variadas formas de resistência e de sobrevivência, seja pela negociação seja pelo
enfrentamento, das mais isoladas às mais coletivas. A perspectiva da narração do
conto traduz-se no vocabulário, de substantivos e adjetivos a verbos e pronomes
possessivos, assim encorpando o discurso. Tudo é coletivizado: os seres – embora
não percam sua individualidade, porque trajados de nomes próprios –; suas
qualidades, aspectos, modos de ser; seus estados de escassez e de esperança,
ações de desilusão e de resistências; tudo o que lhes cabe ou pertence.
Os laços afetivos, de cumplicidade e solidariedade que procuramos
destacar ao longo das narrativas de Olhos d’água parecem conotar, numa camada
de interpretação metafórica, alguns aspectos: uma reação de enfrentamento aos
contextos de política de extermínio; uma ampliação para além dos limites familiares;
uma convocação para um momento de agência conjunta. Numa mediação temporal,
tais aspectos permitem remeter a um dos agentes de mudança social na história do
Brasil e do negro brasileiro na escravidão, conforme Clóvis Moura (1992): a
quilombagem.
Na perspectiva do pesquisador, em História do negro brasileiro (1992), a
quilombagem no período colonial foi descrita enquanto um movimento: 1) amplo que
apresentou diversas formas, seja através do protesto individual ou do coletivo (o
bandoleirismo e as insurreições baianas, por exemplo); 2) de tipo radical e
emancipacionista, tendo sido anterior e concomitante ao movimento abolicionista
dos anos 1870 e 1880 e influido no desgaste do sistema escravista e sua abolição;
3) que se consolidou por meio de uma atitude violenta provocada, expressando a
contradição fundamental daquela época (entre senhores e escravizados); 4) que,
através da formação de quilombos, foi um reencontro com a condição humana e
80

social dos escravizados. Outra característica daquele agente de mudança social


descrito por Moura é que ele abrangeu, além dos escravizados fugidos

[…] índios perseguidos, mulatos [sic], curibocas, pessoas perseguidas pela


polícia em geral, bandoleiros, devedores de fisco, fugitivos do serviço militar,
mulheres sem profissão, brancos pobres e prostitutas (MOURA, 1992, p.
25).

Noutros estudos, o sociólogo realça também que, assim como a


escravidão foi implantada noutras partes da América, a quilombagem também
esteve presente nelas como resposta àquele sistema de trabalho. Denominadas
marronagem e com características mais ou menos distintas, expressaram a
contradição fundamental do escravismo: o conflito entre senhores e escravizados
(MOURA, 2020). Deduz-se por sua característica violenta provocada, e por incluir o
bandoleirismo, ataques a povoados estradas e as insurreições, que aquele agente
também punha em perigo as vidas e relações sociais da época, expressando ainda
certa debilitação daquelas mesmas relações.
Trazidas essas noções a partir dos contos, eles permitem também
levantar a questão de até que ponto vale a pena levar em frente as ações
empreendidas nas situações-extremas representadas no conjunto de contos. Com
isso, o narrador ou algumas personagens também anteveem os desfechos trágicos
a que essas ações podem levar. Dessa forma, é bastante sugestivo e maturamente
aconselhador que Evaristo apresente e intitule, logo após uma série de narrativas
nas quais os desfechos trazem situações conflituosas e calamitosas, o conto “A
gente combinamos de não morrer”, precedendo “Ayoluwa, a alegria de nosso povo”.
No capítulo 6 analisaremos essa dimensão de antevisão que as narrativas de Olhos
d’água permitem ler.
Ao longo deste capítulo, leu-se, numa camada de interpretação
metafórica, as relações afetivas que os contos de Olhos d’água apresentam
enquanto gestos de resistência e continuidade diante de diferentes contextos de
autoritarismo, misoginia, fome, violência e extermínio da juventude negra. A
construção desses aspectos tem sido um traço regular na literatura de Conceição
Evaristo, mas também tem dado continuidade a uma tradição de escritoras(es)
negras(os), de modo geral. Por meio de procedimentos literários como o uso da
coloquialidade, o realce de aspectos subjetivos, o posicionamento de personagens
81

complexas em situações igualmente difíceis, as múltiplas temporalidades que os


enredos sugerem, e o estabelecimento do “eu” ao lado do reconhecimento do “nós”
geram efeitos de maior densidade e humanização das personagens e das pessoas
representadas em Olhos d’água.
Os gestos de ampliação afetiva remeteram, numa camada de
temporalidade, à noção do denominado agente de mudança social quilombagem, no
século XIX, ao mesmo tempo em que a leitura do diálogo entre contos e poemas
também permitirá ler na literatura de Conceição Evaristo uma dimensão de
antevisão e antecipação a atos e falas que venham a prejudicar as vidas e as
relações dos grupos envolvidos e representados no conjunto de contos.
82

6 NARRATIVAS CONTÍGUAS DE UM GENOCÍDIO COTIDIANO

Neste capítulo procuramos desenvolver a hipótese de que os contos de


Olhos d’água (2016) apresentam dimensões temporais que, ao lado do movimento
de retorno sintetizado e interpretado anteriormente no conto que abre e intitula a
obra, evocam uma sincronia entre um presente passado e um presente da escritora.
Nessas diferentes dimensões temporais indicadas nos contos, é retratada também a
reincidência de contextos de conflitos e violências diários entre as pessoas e grupos
representados. Selecionamos trechos com indícios materiais de temporalidade,
através dos quais, a partir de algumas inferências, podemos deduzir diferente(s)
período(s) histórico(s) que o enredo comporta.
Nas narrativas evaristianas, que abarcam uma densidade de sentidos e
temporalidades, uma dimensão histórica pode ser encontrada a partir dos vocábulos
barraco, casa-grande e senhor(a), que remetem à formação colonial do Brasil. Num
primeiro momento, procuramos reunir uma sequência de trechos que fazem
referência ao vocábulo barraco. Em “Olhos d’água”, nos movimentos de recordação
que são base para a narradora do conto, podemos ler: “E com os olhos alagados de
prantos balbuciava rezas a Santa Bárbara, temendo que o nosso frágil barraco
desabasse sobre nós” (EVARISTO, 2016, p. 17). No trecho de abertura do conto
seguinte, “Ana Davenga”, o narrador utiliza novamente a mesma referência:

[Ana] Deu um salto da cama e abriu a porta. Todos entraram, menos o seu.
Os homens cercaram Ana Davenga. As mulheres ouvindo o movimento
vindo do barraco de Ana, foram também. De repente, naquele minúsculo
espaço coube o mundo. (ibidem, p. 21)

A partir desse vocábulo, presente também em outras narrativas, a


exemplo de “Maria”, “Quantos filhos Natalina teve?”, “Zaíta esqueceu de guardar os
brinquedos” e “Os amores de Kimbá”, as narrativas de Evaristo vão abrindo para
sentidos que remetem ao passado e ao presente. No estudo já mencionado de
Robert Slenes, o historiador enfatiza as formas de negociação durante a escravidão,
de adaptação e continuidade das heranças africanas no cotidiano das pessoas
escravizadas no Brasil. Além de observar e analisar com detalhes a vida íntima e
afetiva dos escravizados e os significados sociais e simbólicos da culinária nas
83

senzalas, Slenes dedica uma parte de seu estudo à arquitetura das senzalas.
Segundo o estudo, a partir de pinturas e relatos de viajantes, em fazendas do Rio de
Janeiro, por exemplo, as senzalas teriam sido de pelo menos dois tipos: as
senzalas-pavilhão e as de tipo barracão. O pesquisador argumenta que aos
escravizados casados teria havido a possibilidade de “morar não apenas em
construções separadas, mas também provavelmente em barracos ou cabanas
individuais” (SLENES, 2011, p. 161), adquirindo uma relativa autonomia e controle
sobre o espaço do “barraco”.
Embora tenha tido uma arquitetura muito variável, a depender da região e
de outros fatores, os barracos eram descritos, grosso modo, como compartimentos
pequenos, geralmente de um cômodo, utilizados para atividades sociais como
dormir e armazenar. Ao mesmo tempo, o vocábulo é usado atualmente para referir-
se às construções geralmente feitas com pedaços de madeira, folha de lata, lonas
de plástico.
Ainda no mesmo conto, os vocábulos senhor e casa-grande indicam uma
tensão de sentidos temporais que remetem às relações escravistas. Tal tensão está
exemplificada no trecho em que o narrador apresenta a personagem Maria Agonia:
“Ela [Maria Agonia] vivia dizendo da agonia de uma vida sem o olhar do Senhor”
(EVARISTO, 2016, p. 27, grifo nosso). Pela carga semântica que o termo grifado
comporta, a narração aberta permite uma interpretação do ponto de vista teológico,
por meio da qual é possível ler características de onipresença e onisciência em
relação a comunidades adeptas de alguma crença. O termo também pode remontar
às relações entre senhores e escravizados, o que permite ler, a partir do trecho do
conto, traços de dependência entre as posições.
No estudo historiográfico já lembrado, Slenes dá continuidade à análise
da arquitetura das senzalas no século XIX e argumenta ter sido comum encontrar
aquelas construções, em grandes propriedades do sudeste, logo atrás ou ao lado da
casa-grande. Aquela disposição, analisa Slenes, permitia aos senhores uma maior
vigilância sobre o habitar dos escravizados no barraco e em volta dele, o que não
descartava os interesses destes em escapar do olhar daqueles (SLENES, 2011, p.
183-185).
84

A relação entre aqueles mesmos vocábulos, senhora e casa grande, está


presente também em outras narrativas, a exemplo de “Duzu-Querença”, em que o
narrador fala de

Uma senhora que havia arrumado trabalho para a filha de Zé Nogueira


[Duzu] ia encontrar com eles na capital. Duzu ficou na casa da tal senhora
durante muitos anos. Era uma casa grande de muitos quartos. Nos quartos
moravam mulheres que Duzu achava bonitas. Gostava de ficar olhando os
rostos delas. Elas passavam muitas coisas no rosto e na boca. Ficavam
mais bonitas ainda. Duzu trabalhava muito. Ajudava na lavagem e na
passagem da roupa. Era ela também quem fazia a limpeza dos quartos. A
senhora tinha explicado a Duzu que batesse nas portas sempre. Batesse
forte e esperasse o pode entrar (EVARISTO, 2016, p. 32).

Os vocábulos senhora e casa grande podem indicar camadas temporais,


remetendo ao sentido corrente durante o regime escravista e ainda ao sentido
comum, usado para referir-se cortesmente a mulheres adultas e casa espaçosa.
Numa camada de leitura metafórica, ao construir no enredo do conto cena que
referem à prostituição, o narrador critica uma relação de exploração do corpo e da
dignidade a que pessoas têm sido sujeitadas.
Em relação às mulheres negras, Abdias Nascimento, no ensaio O
genocídio do negro brasileiro (2016), aponta tal realidade enquanto uma prática
sistemática da escravidão nas Américas, apresentando-a como fato que desmistifica
a suposta ideia de que a escravidão no Brasil teria sido caracterizada por interações
sexuais saudáveis.

Desde que o motivo da importação de escravos [sic] era a simples


exploração econômica representada pelo lucro, os escravos, rotulados
como subumanos ou inumanos, existiam relegados a um papel, na
sociedade, correspondente à sua função econômica: mera força de
trabalho. [...] O costume de manter mulheres negro-africanas como meio de
renda, comum entre os escravocratas, revela que além de licenciosos,
alguns se tornavam também proxenetas (NASCIMENTO, 2016, p. 73).

Nessa leitura, a prostituição retratada no conto nos faz pensar que este
pode ser lido ainda enquanto uma metáfora ao caráter exploratório da escravidão
nas Américas, o que abre um diálogo com uma leitura de “Quantos filhos Natalina
teve?”, mais à frente.
O enredo central de “Ana Davenga” passa-se durante algumas horas da
madrugada. A narração sugere já nas primeiras linhas: “As batidas na porta ecoaram
como um prenúncio de samba. O coração de Ana Davenga naquela quase meia-
85

noite, tão aflito, apaziguou um pouco” (EVARISTO, 2016, p. 21). Utilizando o recurso
da memória, Evaristo constrói e dá densidade às personagens, sugerindo a
passagem do tempo em: “Quando a madrugada afirmou, Davenga mandou que
todos se retirassem, recomendando aos companheiros que ficassem alertas”
(ibidem, p. 29). Lemos que ainda naquela madrugada Davenga e Ana, grávida, têm
seu barraco invadido por dois policiais, o que acabou culminando numa disputa de
tiros e na morte do casal e de um policial.
Algumas linhas à frente, após a morte de Ana, de Davenga e de um dos
policiais, o narrador revela a repercussão do “combate” descrito no conto: “Os
noticiários depois lamentavam a morte de um dos policiais de serviço. Na favela os
companheiros de Davenga choraram a morte do chefe e de Ana” (ibidem, p. 30). A
partir dos vocábulos que o narrador utiliza ao descrever o trágico desfecho, a
exemplo de noticiário e favela, fica sugerida uma dimensão temporal presente e o
depois, enquanto elemento marcador de temporalidade, pode sugerir os noticiários
ainda daquele mesmo dia representado no enredo de “Ana Davenga”, nas horas que
se seguiram ao confronto narrado.
Fechando o quadro, o narrador põe em foco uma lembrança de
concentrado valor simbólico, deixando ainda uma última informação sobre Ana: “Em
uma cheia de água, um botão de rosa, que Ana Davenga havia recebido de seu
homem, na festa primeira de seu aniversário, vinte e sete, se abria” (idem, p. 30).
Numa mediação de leitura podemos destacar a idade da personagem.
Através daquele movimento narrativo, a idade sendo revelada precisamente após a
morte das protagonistas, o narrador do conto pode indicar um olhar sensível e
reparador sobre uma trágica característica da violência no Brasil. “Ana Davenga”
documenta um contexto, também presente de maneiras diferentes noutros contos da
coletânea, que tem resultado, sobretudo, na morte das populações brasileiras dentro
da faixa etária de 15 a 29 anos. Numa camada de interpretação temática e
sociológica, podemos ler tal característica em boa parte dos contos de Olhos d’água,
que põem em perspectiva, entre protagonistas e coadjuvantes, personagens dentro
dessa faixa de idade, a exemplo também de Kimbá, em “Os amores de Kimbá”; e,
sobretudo, das diversas personagens de “A gente combinamos de não morrer”, no
qual se lê, a partir da narração da personagem Bica:
86

A casa de Neo caiu. Aprontou, dançou! Mais um, que não será o último,
outros virão. Ele, Dorvi, Idago, Crispim, Antonia, Cleuza, Bernadete, Lidinha,
Biunda, Neide, Adão e eu temos ou tínhamos (alguns já se foram) a mesma
idade. Um ano e às vezes só meses variavam o tempo entre a data de
nascimento de um e de outro. Alguns morreram também em datas próximas
(idem, p. 107).

O relato da personagem permite recorrer aos dados do Atlas da Violência


de 2020. Segundo o documento, o homicídio, mais do que qualquer outra forma de
morte, é a que mais interrompe os sonhos da juventude no Brasil. Somente no ano
de 2018 foram 30.873 jovens. Somados os números apresentados no documento,
entre 2008 e 2018, o resultado é de 337,883 vítimas de homicídio numa década.
São quase oitenta e quatro vítimas a cada dia. Quase quatro vidas a cada hora. O
trecho de “A gente combinamos de não morrer”, ao contar sobre a proximidade entre
a morte de um e de outro personagem, por meio da ficção, documenta o que esses
primeiros dados vêm a informar.
Na categoria sexo, de acordo com o Atlas, os homens têm formado um
grupo vulnerável e atacado por esse tipo de violência. 29.064 do total de homicídios
foram executados contra homens. Esse grupo compõe 55,6 por cento dos
assassinados entre 15 e 19 anos; 52,3 por cento dos que estão entre 20 e 24 anos;
e 43,7 por cento daqueles entre 25 e 29 anos. Em relação às taxas observadas
entre os homens, o homicídio contra mulheres apresenta uma taxa de 16,2% entre
as jovens de 15 a 19 anos; 14% entre as de 20 e 24 anos; e 11,7% de jovens entre
25 e 29 anos – dados que, embora pareçam menores em relação ao dos homens,
não significam um menosprezo à realidade de violência contra as mulheres.
Ao lado de uma diminuição que o documento mostra nos casos de
homicídio entre 2017 e 2018 – diminuição de 13,6% na taxa e 13,7% nos números
absolutos –, o que se vê dentro da década analisada é um crescimento contínuo de
13,3 por cento, passando de 53,3 homicídios a cada cem mil jovens para 60,4.
Acompanhadas e mediadas pelos dados levantados pelo Atlas, os contos de Olhos
d’água documentam ficcionalmente um panorama de violência entre as populações
brasileiras.
Considerando o recorte racial, outras marcas de desigualdade no país
são indicadas. De acordo com os índices levantados pelo documento, o homem
jovem e negro da periferia ou das regiões metropolitanas das grandes cidades é,
87

grosso modo, o perfil de 75,7 por cento das vítimas de homicídio no Brasil. Na
década analisada, ao passo que houve uma redução na taxa de homicídio de não
negros (12,9%), no que diz respeito à população negra os números tomaram a
direção oposta, havendo um aumento de 11,5 por cento. De acordo com o
documento, mais que qualquer outro, os dados sobre morte por homicídio revelam a
face e os efeitos mais tristes da violência na sociedade brasileira. Isso se não
consideramos a recente pandemia de COVID-19 e as mais de 515 mil mortes
somente no Brasil, de acordo com veículo oficial de comunicação sobre a
pandemia17, país que concentra 44,3 por cento das mortes na América Latina e
Caribe, segundo informações da Organização Pan-Americana de Saúde 18.
Levando em conta a categoria região e considerando ainda o recorte
racial, o Atlas mostra que os casos de homicídio em 2018 concentraram-se,
sobretudo, no Norte e Nordeste, sendo Roraima (87,5%), Rio Grande do Norte
(71,6%), Ceará (69,5%), Sergipe (59,4%) e Amapá (58,3%) os cinco estados com
maior índice (IPEA, 2020).
Em “Duzu-Querença”, que dá seguimento a “Ana Davenga”, no segundo
parágrafo, o narrador situa temporalmente o enredo apresentando a protagonista
Duzu: “Olhou para trás, viu os companheiros seus estirados, depois do almoço,
contemplando o meio dia.” (EVARISTO, 2016, p. 32). Também sendo construído a
partir do encadeamento entre o presente da narração e movimentos de recordação,
que rememoram experiências que indicam migração, prostituição, fome,
mendicância, a dor da perda de familiares e as tentativas de manter vivos seus laços
afetivos, o conto é encerrado deixando outro indício de temporalidade, dessa vez
focalizando Querença, neta da protagonista, após uma descrição que indica a morte
da avó. O desenlace do enredo também sugere a passagem de poucos minutos ou
horas desde o “meio dia” apresentado no início: “O sol passado de meio dia estava
colado no alto do céu” (idem, p. 37). A narração do conto “Duzu-Querença” pode
desempenhar o papel de síntese das ofensas cotidianas que assolam o conjunto das
personagens apresentadas na obra evaristiana.

17 Disponível em: covid.saude.gov.br (Acesso em 29/06/2021).


18 Disponível em: www.paho.org/pt/noticias/21-05-2021-america-latina-e-caribe-ultrapassam-um-
milhão-mortes-por-Covid-19 (Acesso em 22/05/2021).
88

Estava chegando uma época em que o sofrer era proibido. Mesmo com toda
dignidade ultrajada, mesmo que matassem os seus, mesmo com a fome
cantando no estômago de todos, com o frio rachando a pele de muitos, com
a doença comendo o corpo, com o desespero diante daquele viver-morrer,
por maior que fosse a dor, era proibido o sofrer. Ela gostava desse tempo.
Alegrava-se tanto! Era o carnaval. (idem, p. 35)

A partir da descrição que o narrador do conto faz do carnaval como um


período de “exceção”, de uma “alegria apesar de”, parecendo expressar tons de
ironia, é possível deduzir a continuidade diária daquelas ofensas, da dignidade
ultrajada, dos assassinatos, da fome, do frio, das doenças, do desespero, da dor e
do sofrimento ao longo do ano.
Tal leitura do carnaval pode abrir uma camada de intertextualidade com
um poema de Solano Trindade, em Cantares ao meu povo, originalmente publicado
em 1961. Os versos de “Rainhas e escravas” são construídos a partir de uma série
de contrastes, que começam desde o ponto de visão de onde o eu-lírico narra a
cena carnavalesca.

Da janela do apartamento
vejo só barracos do morro
onde moram as rainhas
do carnaval
imponentes rainhas negras
riquíssimas de ritmo e de sexo
Rainhas por três dias alegres
escravas no resto do ano… (TRINDADE, 1999, p. 65)

O eu-lírico apresenta o carnaval como um período em que a condição


cotidiana de pessoa “escravizada” é “suspensa” e substituída por uma imagem de
imponência, riqueza, realeza e exaltação de características e sentidos sexuais. Nos
versos parece haver uma camada conflituosa entre o cotidiano e um evento pontual,
a ocultação e a visibilidade, regra e exceção. As reticências ao final do poema
podem sugerir aquilo que o evento pontual não mostra.
Tal movimento pode assemelhar-se àquele presente em “Olhos d’água”,
quando a narradora revela, trazendo à memória, os dias de desesperada fome:
“[n]essas ocasiões [de fome] a brincadeira preferida era aquela em que a mãe era a
Senhora, a Rainha. Ela se assentava em seu trono, um pequeno banquinho de
madeira” (EVARISTO, 2016, p. 17). A narradora declara em seguida, dando um
nome ao que as reticências do eu-lírico de Trindade sugeriram: “[e]u sabia, desde
aquela época, que a mãe inventava esse e outros jogos para distrair a nossa fome.
89

E a nossa fome se distraía” (ibidem, grifo nosso). A ação de distrair pode evocar
significados como entreter, fazer esquecer ou desviar a atenção de alguém para
outro objeto. Numa camada de interpretação metafórica, esses sentidos permitem
ler na figura da mãe retratada no conto um Brasil que desvia a atenção das pessoas
das realidades mais dramáticas vividas no país e no mundo.
Além desse ponto de vista, uma leitura complementar é proposta por Lélia
Gonzalez em alguns de seus ensaios, especialmente em “Racismo e sexismo na
cultura brasileira”, de 1983. Pouco mais de vinte anos depois do poema de Trindade,
a ativista destaca no carnaval brasileiro uma dimensão “de ultrapassagem dos
limites permitidos pelo discurso dominante, pela ordem da consciência”
(GONZALEZ, 2020, p. 91). De acordo com o texto da intérprete do Brasil, analisando
aquele período histórico, é no carnaval que a mulher negra sai do anonimato para
ocupar o trono exclusivo de rainha.

Não é por acaso que nesse momento [o carnaval brasileiro] a gente sai das
colunas policiais e é promovida a capa de revista, a principal focalizada pela
TV, pelo cinema e por aí afora. De repente, a gente deixa de ser marginal
pra se transformar no símbolo da alegria, da descontração, do encanto
especial do povo dessa terra chamada Brasil (ibidem).

Referindo-se àqueles dias de carnaval, Gonzalez argumenta que “a


negrada vai pra rua viver o seu gozo e fazer a sua gozação” (ibidem); “os não
negros saúdam e abrem passagem para o Mestre Escravo, para o senhor, no
reconhecimento manifesto de sua realeza” (idem, p. 92); além da exaltação do mito
da democracia racial. Para além do que o mito encena e mostra: “Carnaval. Rio de
Janeiro, Brasil. As palavras de ordem de sempre: bebida, mulher e samba. Todo
mundo obedece e cumpre.” (idem, p. 79) – sinalizando entre outros interesses
internacionais embutidos no evento, os de ordem econômica e social – a intérprete
sublinha a violência simbólica exercida em especial contra as mulheres negras no
Brasil. Violência sugerida pelas reticências do eu-lírico do poema e nomeada pelo
narrador de “Duzu-Querença”.
Lélia Gonzalez argumentou que a formação de uma imagem de “Antígona
negra”, heroína, única e inigualável neutraliza a culpabilidade de um país de marcas
racistas e sexistas, fazendo esquecer, desviando a atenção do que se apresenta
recorrentemente no cotidiano. Durante o anonimato, fora do período de serpentina, é
90

também a mulher negra que habita as periferias brasileiras, quem sustenta nas
mãos, principalmente através da prestação de serviços, sua família e o Brasil. São
Marias, Duzus e Benícias, personagens que podem representar tantas mulheres no
país. Em relação aos homens, companheiros, irmãos e filhos, a intérprete citou, em
meados dos anos 1980, a

perseguição policial sistemática (esquadrões da morte e ‘mãos brancas’ [sic]


[que] estão aí matando negros à vontade; observe-se que são negros
jovens, com menos de trinta anos. Por outro lado, que se veja quem é a
maioria da população carcerária deste país (GONZALEZ, 2020, p. 83, grifo
nosso).

Além da violência simbólica, acrescentam-se outras literais, não


divergindo muito, apesar de tempos históricos diferentes, do que o Atlas da Violência
demonstrou. Já naquela época, início dos anos 1980, a intérprete sinalizava para o
fato cotidiano de que os jovens negros, com menos de trinta anos, eram o principal
alvo dos homicídios cometidos no Brasil.
Voltando à personagem Duzu, numa mediação histórica, a protagonista,
que “estava mesmo ficando velha” e tinha a perna “querendo falhar” (EVARISTO,
2016, p. 32), pode remeter ao que Abdias Nascimento argumentou sobre a
libertação de pessoas idosas, doentes, inválidas e mutiladas durante a escravidão
no Brasil. Depois de sete (NASCIMENTO, 2016, p. 79) a dez anos de trabalho
(MOURA, 1992) aquelas pessoas, quando não mais mantinham satisfatória a
capacidade de produção de força de trabalho, eram descartadas como indesejáveis,
sem apoio, recurso ou meio de subsistência (NASCIMENTO, 2016, p. 79-82),
demostrando que a libertação sob aquelas condições tinha um caráter de “legalizado
assassínio coletivo” (ibidem).
Ao lado daquela dimensão de “ocultação”, de “exceção” sugerida a partir
da análise do conto e do poema, o período de carnaval também é caracterizado por
um valor de vivência do gozo, conforme argumentou Gonzalez, de resistência,
sentido que pode estar sugerido no fragmento de Duzu através das repetidas
adversativas “mesmo que”. O narrador do conto representaria em Duzu, nesse
sentido, uma alegria tanta que subsiste apesar de, mesmo que tantos motivos à sua
volta conduzissem ao contrário.
91

A inter-relação dos recortes do tempo nos contos analisados acima talvez


conote um varal temporal que sustente e amarre as narrativas entre si. Por essa
ótica, uma narrativa evaristiana parece principiar como continuidade, a poucos
minutos ou horas, da anterior, testemunhando sensível e criticamente, por meio do
texto literário, os conflitos e contextos de violências cotidianos no Brasil. Ao lado
disso, a literatura de Conceição Evaristo também apresenta gestos e falas que
procuram antecipar-se à consumação e catastrofização dos atos e das relações
entre pessoas e coletividades, como veremos noutro momento das análises dos
contos, mais exatamente no capítulo 7.
A interpretação de uma camada temporal diária em Olhos d’água pode ter
relação com os dados levantados pelo Atlas da Violência 2020 e apresentados
anteriormente, que permitem sintetizar em números o caráter diário e duradouro de
um contexto de violência e assassínio retratado numa faixa de leitura dos contos.
Em “Maria”, o narrador do conto apresenta alguns indícios de uma
camada temporal diária desde o início, sugerindo mais uma vez a obra Olhos d’água
como um conjunto de ficções que se alimenta de verdades passadas e presentes no
cotidiano de pessoas que ao mesmo tempo fazem e sobrevivem à história.

Maria estava parada há mais de meia hora no ponto do ônibus. Estava


cansada de esperar. Se a distância fosse menor, teria ido a pé. Era preciso
ir se acostumando com a caminhada. O preço da passagem estava
aumentando tanto! Além do cansaço, a sacola estava pesada. No dia
anterior, no domingo, havia tido uma festa na casa da patroa. Ela levava
para casa os restos (EVARISTO, 2016, p. 39).

A partir da referência ao dia anterior como um domingo, podemos inferir


que o presente da narração passa-se em um dia de semana, mais exatamente uma
segunda-feira. Esse detalhe narrativo talvez ganhe maior significado na leitura se
recordarmos outro detalhe do conto anterior: “Menina Querença, quando soube da
passagem da avó Duzu, tinha acabado de chegar da escola.” (ibidem, p. 36). No
desenlace que conota a morte de Duzu, o narrador, ao referir-se a um dia de aula de
Querença, permite deduzir que o presente da narração do conto também passa-se
em um dia útil. Noutras palavras, esses detalhes próximos talvez sinalizem uma
camada de contiguidade entre uma narrativa e outra.
92

Uma leitura do trecho abaixo pode indicar a existência de um corte e


divisão social e racial na alimentação dos povos brasileiros. Ao lado do pernil e das
frutas, são referidos os produtos enlatados industrializados.

Ela [Maria] levava para casa os restos [da festa na casa da patroa]. O osso
do pernil e as frutas que tinham enfeitado a mesa. Ganhara as frutas e uma
gorjeta. O osso, a patroa ia jogar fora. Estava feliz, apesar do cansaço. A
gorjeta chegara numa hora boa. Os dois filhos menores estavam muito
gripados. Precisava comprar xarope e aquele remedinho de desentupir
nariz. Daria para comprar também uma lata de Toddy. As frutas estavam
ótimas e havia melão. As crianças nunca tinham comido melão. (idem, 39-
40, grifo nosso)

Numa camada de leitura temática, ao lado da fome testemunhada noutros


enredos do conjunto de contos, a narrativa faz pensar a coexistência de um
processo de debilitação da saúde a curto e longo prazos, que deixa as famílias mais
pobres e vulneráveis expostas a tal dieta e mais sujeitas à baixa imunidade e a
infecções, como fica sugerido no mesmo fragmento; e do desenvolvimento de toda
uma geração, o que pode estar indicado na descrição de “um rapazinho negro e
magro, com feições de menino e que relembravam vagamente o seu [de Maria] filho”
(idem, p. 42). O processo de divisão socio-racial da alimentação apresentado no
conto pode indicar, além de privilégios, outra técnica que debilitação da população
negra e brasileira. Uma ameaça contínua, dia a dia e a longo prazo, à preservação
da saúde física, biológica e mental, podendo levar ao crescimento das taxas de
mortalidade, especialmente entres as crianças, e decrescimento das pessoas mais
vulneráveis a essa dieta.
Conforme informações do UNICEF coletadas do relatório Situação
Mundial da Infância 2019: criança, alimentação e nutrição, sobre a alimentação na
América Latina e Caribe, nas últimas décadas, de 1990 a 2006, o Brasil reduziu a
taxa de desnutrição crônica de 16,6% para 7%. Embora não considere os recortes
sociais e raciais mais detalhadamente, o texto avalia que o processo ainda reincide
sobre grupos indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Concomitante àquele movimento
de redução, houve um aumento no consumo de alimentos pouco nutritivos, ricos em
açúcares, gorduras e sódio. Segundo Florence Bauer, então representante do
UNICEF no Brasil, “como na maioria dos países da América Latina e do Caribe,
93

crianças e adolescentes [no Brasil] estão comendo muito pouca comida saudável e
muita comida pouco saudável”.19
No decorrer da narrativa de Maria, o narrador do conto apresenta um
conjunto de estados que vulnerabilizam a vida, a exemplo da exposição a
instrumentos que causam perigo e acidentes de trabalho: “Tinha sofrido um corte,
bem no meio [da palma da mão], enquanto cortava o pernil para a patroa. Que coisa!
Faca a laser corta até a vida!” (EVARISTO, 2016, p. 40); a suspeição, criminalização
e violência verbal por parte de alguns passageiros do metafórico ônibus que, além
de expressarem marcas sintomáticas de uma misoginia, legitimam a prática do
racismo e da violência pelo fato de terem sido assaltados: “Negra safada, vai ver
estava de coleio com os dois [homens que assaltaram o ônibus] […] Aquela puta,
aquela negra safada estava com os ladrões!” (ibidem, p. 42).
O testemunho literário retratado em Olhos d’água pode indicar uma
sucessão de fatos que corre ao longo de alguns minutos, a julgar pela viagem de
ônibus que leva a protagonista Maria de volta para casa, permitindo visualizar
situações recorrentes no cotidiano. A dimensão diária pode estar indicada na fala
preventiva do motorista do coletivo diante da iminência de um linchamento contra
Maria: “Calma pessoal! Que loucura é esta? Eu conheço esta mulher de vista. Todos
os dias, mais ou menos neste horário, ela toma o ônibus comigo. Está vindo do
trabalho, da luta para sustentar os filhos…” (ibidem). O caso do linchamento dentro
de um ônibus e a fala do motorista permitem pensar que os passageiros
possivelmente fazem aquele mesmo itinerário com certa frequência, também vindos,
muito provavelmente, de suas atividades diárias, como o trabalho; e que sofrem, tal
qual a protagonista Maria, o aumento do preço da passagem do transporte coletivo.
Levando em consideração a referência à “gorjeta de mil cruzeiros” (idem, p. 41), o
conto pode remeter a um dos períodos históricos de circulação da moeda, entre
1970 e 1986, e com isso abranger outra camada de temporalidade.
Em algumas das análises de Lélia Gonzalez sobre a sociedade brasileira,
a intérprete chama atenção para os linchamentos frequentes durante aquele
período, no início da década de 1980. Segundo Gonzalez, a consumação daqueles
atos poderia ser interpretada como uma manifestação reacionária – desumana,

19 Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/ma-alimentacao-prejudica-


saude-das-criancas-em-todo-o-mundo-alerta-o-unicef (Acesso em: 28/05/2021).
94

podemos acrescentar – de insatisfação das classes médias, em conjunturas políticas


e sociais a exemplo das ditaduras civil-empresarial-militar que reincidem sobre o
Brasil, em que elas, as classes médias, são afetadas diretamente e levadas ao
empobrecimento. Contextos a exemplo do descrito pela intérprete tendem a gerar na
população, como ocorreu naquela década, uma propensão para o apoio a medidas
como a redução da maioridade penal e a pena de morte como suposta “resolução”
ao “problema da violência” (GONZALEZ, 2020, p. 122).
Pensando anteriormente o assassinato retratado em “Ana Davenga”, da
mãe de Di Lixão (“Di Lixão”) e o linchamento de Maria, podemos retomar os dados
do Atlas da violência 2020 no Brasil apresentados ao discutir o intra-enredo da
personagem Maria Agonia. Semelhante ao movimento observado em relação ao
homicídio de homens, com redução entre 2017 e 2018, mas de aumento entre 2008
e 2018, de acordo com o documento, o homicídio de mulheres brasileiras também
apresentou uma redução entre 2017 e 2018 (9,3%), ao passo que se observou um
crescimento ao longo da década analisada (4,2%).
De modo geral, em 2018, uma mulher era assassinada a cada duas horas
no Brasil, somando 4.519 vítimas. Entre 2017 e 2018 os estados com maior redução
foram Sergipe (48,8%), Amapá (45,3%) e Alagoas (40,1%), enquanto Roraima
(93%), Ceará (26,4%) e Tocantins (21,4%) figuravam entre os estados com maior
aumento da taxa. De modo específico, 68 por cento das 4.519 mulheres vítimas de
homicídio no país eram mulheres negras brasileiras. Ao longo da década de 2008 a
2018, há um visível panorama das desigualdades raciais no Brasil: ao passo que
houve uma redução de 11,7% nos assassinatos cometidos contra as brasileiras não
negras, em relação às brasileiras negras o movimento foi diametralmente oposto,
com o aumento de 12,4% (IPEA, 2020, p. 34-46).
Ao lado de todo o cenário que os contos de Olhos d’água retratam, com
suas complexas personagens e camadas de interpretação, na coletânea são
construídas falas e gestos que sugerem uma preocupação e antecipação, por parte
de Conceição Evaristo e de seus narradores, diante do desenrolar das ações e do
futuro. Vale retomar como gesto significativo nesse sentido o alerta preventivo do
motorista de ônibus em “Maria”, como já dissemos. Diante do conflito instalado a
partir de uma sucessão de ações dentro do transporte e da possibilidade de um
95

cataclisma social, simbolizado pelo linchamento sofrido por Maria, o motorista clama
e adverte

O motorista tinha parado o ônibus para defender a passageira: – Calma,


pessoal! Que loucura é esta? Todos os dias, mais ou menos esse horário,
ela toma o ônibus comigo. Está vindo do trabalho, da luta para sustentar os
filhos… (EVARISTO, 2016, 42).

O contexto descrito, marcado também por uma violência de gênero,


evoca a construção da narrativa “Quantos filhos Natalina teve?”. No conto, o
narrador retrata diferentes tipos de exploração dirigidas contra as mulheres: uma
delas dá-se na relação com a patroa:

A mulher [a patroa] queria um filho e não conseguia. Estava desesperada e


envergonhada por isso. Ela e o marido já haviam conversado. Era só a
empregada fazer um filho para o patrão. Elas se pareciam um pouco.
Natalina só tinha um tom de pele mais negro (idem, p. 47).

Numa faixa de interpretação, a conversa antecipada do casal e decisão


sem a consideração e consentimento da protagonista sobre a “solução do problema”
coisifica-a, porque enxerga-a próxima à condição de bem semovente sem
possibilidade de fala e escolha. Essa relação pode estar reiterada no verbo
selecionado em: “O patrão ficava no quarto dele, de noite ele levantava e ia buscar
Natalina no quarto de empregada” (ibidem).
Na “sutileza” da resolução do problema do casal, o narrador do conto
expõe o que Nascimento chamou “mito do senhor benevolente”, quando o intelectual
referia-se à escravidão na América Latina. Tal mito diria respeito à ideia de que a
proximidade entre senhor e escravizado teria propiciado, necessariamente, um
tratamento suavizado, livre de racismo entre ambos os grupos. Nascimento expõe
que aquela imagem de uma escravidão benigna e mais humana em relação a outras
foi mais um mito de conveniência internacionalmente difundido, inventado para
encobrir a natureza espoliadora e racista da escravidão e atenuar a “consciência de
culpa do opressor” (NASCIMENTO, 2020, p. 57-72).
Ao lado de tal exploração, outra apresentada na trama de Natalina é o
estupro, após ser erroneamente sequestrada. A agressão do sequestrador é
carregada de violências física e simbólica, atentando não só contra a dignidade
individual e humana, mas ainda contra a coletiva. O teor de violência que a escritora
96

representa no conto fica expressado na seleção vocabular e na construção dos


enunciados do trecho abaixo:

O homem desceu do carro puxou-a violentamente jogou-a no chão; depois


desamarrou suas mãos e ordenou que lhe fizesse carinho. […] Ele gozou
feito cavalo enfurecido em cima dela. (ibidem, p. 49-50, grifo nosso).

Os verbos, advérbio, adjetivo e a eufemização destacados materializam


uma das dimensões de uma estrutura de poder patriarcal que tem submetido a
liberdade e dignidade humana, culturalmente as mulheres, e, no caso específico do
conto, as mulheres negras, à condição de coisa. Enquanto, resultado das
contrapartidas reais e variadas e tal estrutura reconheceu-se legalmente no Brasil,
em 2009, o estupro enquanto crime contra a dignidade e a liberdade sexual, com a
Lei 12.015. Numa camada morfológica, lendo o nome da personagem Natalina
enquanto anagrama de latina, a narrativa indica também um testemunho que se
contrapõe aos mitos que sugerem a benevolência da escravidão no continente
latino-americano, revelando, em forma de ficção, as dimensões violadoras,
espoliadoras e dissimuladas daquela história.
Ao lado disso, no mesmo conto, considerando o sentido e o emprego do
verbo “esbarrar” e o enunciado “[o] movimento foi rápido.” (idem, p. 50) na
composição do desenlace que leva à morte do homem que sequestrou a
protagonista, numa camada de leitura semântica, pode ser interpretado como um
fato decorrente de uma trágica casualidade. Nesse sentido, o conto lança olhar
sobre um desenlace que sucede a explorações e violências, o que confere ainda
mais complexidade às personagens e enredos construídos por Conceição Evaristo.

Depois [o homem] tombou sonolento ao lado. Foi quando, ao consertar o


corpo para se afastar dele, ela [Natalina] esbarrou em algo no chão.
Pressentiu [sic] era a arma dele. O movimento foi rápido. O tiro foi certeiro e
tão próximo que Natalina pensou estar se matando também. Fugiu (idem, p.
50).

Observando a sucessão de ações representadas nos contos e que


procuramos analisar até aqui, a obra Olhos d’água pode representar todo um
contexto social que entrelaça desigualdades e violências, em que as bases das
relações entre os indivíduos e as coletividades têm sido debilitadas, pondo em
perigo a existência dos grupos e pessoas envolvidas nas situações retratadas. Esse
97

argumento, do jurista polonês Raphael Lemkin, sobrevivente do genocídio durante o


nazismo, será retomado e apresentado no capítulo seguinte.
A exemplo das outras narrativas, em “Beijo na face” a dimensão cotidiana
é novamente destacada pelo narrador do conto, como fica sugerido no enunciado
que abre o terceiro parágrafo do conto: “Salinda tentou guardar as lembranças e
retomar a rotina.” (EVARISTO, 2016, p. 52). Numa camada vocabular, seguem-se a
esse enunciado parágrafos que permitem ler um relacionamento abusivo entre o
marido e a protagonista Salinda. A personagem é descrita numa rotina de
cerceamento e constante vigilância, a considerar o campo semântico a que a
seleção vocabular remete: vigias, observada, vigilância, detetive particular,
controlada, vigiada, perseguição, seguida, ameaças, vigilância severa e constante,
acuada e prisão domiciliar.
O contexto descrito no conto permite abrir uma mediação histórica e
recorrer a uma leitura de Robert Slenes (2011) já referida noutro momento do
trabalho, quando analisamos a personagem Maria Agonia, do conto “Ana Davenga”.
Entre seus estudos, o historiador sublinha as estratégias de negociação nas
relações entre escravizados e senhores nas posses maiores de Campinas no século
XIX. Na perspectiva historiográfica de Slenes, aquelas relações eram caracterizadas
por uma tensa e constante relação entre autonomia e dependência: os senhores
ambicionavam extrair o máximo de força de trabalho possível e os escravizados
almejavam o máximo de autonomia.
A formação familiar dos escravizados, relação central nas análises de
Slenes, apresentava duas dimensões. Numa delas, aqueles que formavam família
ficavam mais vulneráveis às medidas disciplinares dos senhores; diminuíam-se as
chances de fugas, escolha que separaria o(a) fugitivo(a) de seus entes queridos.
Apesar disso, o historiador acredita que a família de escravizados não era condição
estrutural imprescindível para a manutenção da relação de dominação entre os dois
grupos. Noutra dimensão, a formação da família tinha importância vital enquanto fio
transmissor e reinterpretativo da[s] cultura[s] e das experiências intergeracionais.
(SLENES, 2011, p. 118-125).
O estado de vigilância representado em “Beijo na face” pode remeter
também a regimes ditatoriais que reincidem na sociedade brasileira, personificados
98

na figura do marido. Nesse momento, adquire maior valor simbólico aquele olhar
entre Salinda e a filha, gesto que lemos anteriormente, no capítulo 6, como a
projeção de uma união e solidariedade mútuas em resposta às violências sofridas
em um contexto de controle e constante vigilância. Robert Slenes reforça o aspecto
de transmissão e reinterpretação sugerido por aquele fio.

O grupo subalterno [sic] que tem instituições familiares arraigadas no tempo


e redes de parentesco real e fictício não está desprovido de ‘formas de
união e solidariedade’, muito menos de uma memória histórica própria;
portanto, suas interpretações da experiência imediata nunca serão idênticas
às dos grupos dominantes nem poderão ser previstas a partir de um
raciocínio funcionalista (idem, p. 124).

Na perspectiva de Slenes sobre aquela instituição, o reconhecimento de


que o fio que tece as redes de parentesco real e fictício desaconselham a rebelião,
além da constatação de que os indivíduos da família encontravam-se numa
conjuntura de suspeição e cerceamento “aproxima os cativos [sic] a todos os outros
grupos subordinados da história” (ibidem). Nesse sentido, concomitante àqueles
regimes de controle retratados no conto, a escritora constrói nas personagens
formas de negociação também cotidianas que frustravam as tentativas de
dominação total por parte da figura opressora, representada no enredo do conto pelo
marido. A narrativa “O cooper de Cida” é iniciada com a observação e descrição do
tempo, que a nosso ver podem ser indícios de que, numa camada temporal, os
contos tragam uma dimensão de continuidade entre eles.
Assim o narrador do conto apresenta o tempo ao redor de Cida:

O sol vinha nascendo molhado na praia de Copacabana. A indecisão do


tempo, a manhã vagabunda nos olhos sonolentos dos moradores de rua, o
trabalho inconsequente das ondas em seu fazer e desfazer, tudo isso
comprometia o cooper de Cida. (EVARISTO, 2016, p. 65, grifo nosso)

A narrativa do conto também segue os movimentos estilísticos


encontrados noutros enredos de Conceição Evaristo, equilibrando o presente da
narração com passos de recordação. O cenário do conto apresenta lado a lado a
formação de moradores de rua e uma acelerada modernização e urbanização do
espaço, especialmente a partir do Rio de Janeiro, cidade onde o enredo é situado.
Esse cenário é revelado, sobretudo, através da construção civil, com a referência
aos prédios; e da indústria automobilística, com os carros (idem, p. 69), a
intensificação do trânsito e os efeitos desse processo nas pessoas: “peças, gente-
99

máquinas se cruzando, entrecortando braços, rodas, cabeças, buzinas, motos,


pernas, pés e corpos aromatizados pela essência da gasolina” (idem, p. 66, grifo
nosso). Alguns passos à frente, a narração dá outros indícios da passagem do
tempo na corrida diária de Cida:

Como uma pessoa, em plena terça-feira, às seis e cinquenta e cinco da


manhã, podia estar tão tranquilamente brincando no mar? Deveria ser
extremamente rico. Viver de juros. Lembrou-se dos mendigos que
constantemente cruzavam o seu caminho. Eram extremamente pobres.
(idem, p. 68-69, grifo nosso)

Pondo em foco a perspectiva da protagonista de classe média, o narrador


do conto apresenta através de um exercício da memória a presença e a frequência
de mendigos na rua, intensificada pelo advérbio constantemente. Nesse ponto,
podemos lembrar a discussão retomada por Dalcastagnè (2012), ao analisar um
conjunto de ausências na literatura brasileira contemporânea. Através da
perspectiva da personagem o narrador do conto apresenta pessoas socialmente
invisibilizadas, incluindo-as na narrativa por meio de um procedimento referido pela
pesquisadora. Ao serem descritas como aparentemente inexistentes, parecendo não
estarem presentes, geram uma camada de tensão entre protagonização e
“invisibilidade” que traduziria e representaria um estado de exclusão na sociedade
brasileira de modo geral.
Alguns minutos depois, o conto de Cida traz mais elementos:

Era preciso continuar as ações rotineiras, incorporar-se novamente ao


cotidiano. Às sete e quarenta e cinco, Pedro acionaria a buzina do carro em
frente ao prédio dela. Já pronta, desceria rapidamente a escada, e antes,
bem antes das oito e trinta, se o trânsito estivesse bom, eles aportariam no
escritório da Rio Branco (idem, p. 69, grifo nosso).

Algumas expressões como o sol vinha nascendo, seis e cinquenta e cinco


da manhã, sete e quarenta e cinco, e oito e trinta, além de indicar que o presente da
narração do conto ocorre dentro desse curto intervalo de tempo matinal dão ênfase
ao caráter cotidiano e rotineiro dos contextos narrados nos contos. Nesse sentido,
ao transformar tal realidade em literatura, Conceição Evaristo, recorre nos enredos
um panorama de modo a interpretar o Brasil e a realçar os sentidos, sensibilizar a
leitora e o leitor diante dos processos cotidianos de privação dos meios de
preservação da vida física, biológica, intelectual, econômica; da fome e divisão
sociorracial da alimentação; debilitação das relações sociais ao nível da pessoa e do
100

coletivo; de extermínio da juventude negra brasileira; conjunturas de cerceamento e


vigilância, discriminação racial e de violência, entre outros. O nome da protagonista
Cida pode ser uma chave de leitura dessas ofensas constantes e rotineiras
retratadas na série de contos de Olhos d’água, mas violenta e vertiginosamente
presente no Brasil de nossos dias. Voltaremos ao nome da protagonista no capítulo
seguinte.
A partir do característico uso da memória como recurso narrativo, Evaristo
também constrói a personagem Di Lixão enquanto um menino de quinze anos que
carrega uma junção de dores, a experiência de ter presenciado o assassinato da
mãe, a manifestação de um sintomático sentimento de ódio e misoginia e a fome. Ao
lado disso, o narrador descreve uma simbólica dor de dente que infecciona um lado
do rosto do protagonista, deixando patente uma diferença em relação ao outro. A
imagem pode evocar as desigualdades no que diz respeito às condições de garantia
do direito à vida, à saúde, à moradia, à convivência familiar, por exemplo, situações
apresentadas no conto.

Di lixão abriu os olhos sob a madrugada clara que já se tornava dia.


Apalpou um lado do rosto, sentindo a diferença, mesmo sem tocar o outro.
O dente latejou espalhando a dor por todo o céu da boca. Passou
lentamente a língua no canto da gengiva. Sentiu que a bola de pus estava
inteira (idem, p. 77, grifo nosso).

Ao longo da narração do conto, encontramos indícios de condições de


debilitação da alimentação e da saúde que ameaçam a preservação da vida não só
de um indivíduo, mas de todas as pessoas alijadas de direitos fundamentais,
gerando um consequente crescimento nos casos de mortalidade infantil, também
escrita em “Lumbiá”. Noutro trecho do conto, o narrador descreve o avançar das
horas da perspectiva do protagonista.

Os primeiros trabalhadores passavam apressados. Di Lixão teve vontade de


chamar um deles, mas silenciou o desejo na garganta. O sol anunciava o
dia quente. Ele, entretanto, tremia de frio (idem, p. 79, grifo nosso).

Na última oração do trecho, o frio que racha a pele do protagonista é


intensificado e visualizado através da sonoridade das palavras que podem evocar o
corpo frágil e trêmulo do garoto. Lembrando o enredo de “O cooper de Cida”, que
também é construído no intervalo de tempo das primeiras horas do dia, podemos
supor que aqueles são contos de um presente concomitante apresentados por um
101

mesmo narrador onisciente. O trecho a seguir traz um vocábulo (transeunte) que se


refere tanto ao masculino quanto ao feminino, podendo evocar, dessa vez a partir de
outra perspectiva, a cena em que a personagem Cida e alguns mendigos são
apresentados lado a lado.

[Di Lixão] Sentia um vazio na cabeça, no peito e no estômago. Tinha um


pouco de fome. […] Tudo doía. A boca, a bimbinha, a vida… Deitou
novamente, retomando a posição de feto. Já eram sete horas da manhã.
Um transeunte passou e teve a impressão de que o garoto estava morto.
Um filete de sangue escorria de sua boca entreaberta. Às nove horas o
rabecão da polícia veio recolher o cadáver (idem, p. 80, grifo nosso).

Analisando as técnicas de extermínio da escravidão no Brasil, Abdias


Nascimento abre uma mediação histórica para leitura do conto. O intelectual cita
uma facilidade que o país tinha diante de outros países em relação ao comércio de
escravizados, por conta da localização geográfica próxima ao continente africano, o
que diminuía o “preço” das pessoas.
Diante disso, Nascimento argumenta que, do ponto de vista do
comerciante escravocrata, era mais “vantajoso” substituir as pessoas escravizadas
já consideradas imprestáveis para a extração de força de trabalho do que cuidar
delas e alimentá-las (NASCIMENTO, 2016, p. 57-72). Numa mediação de leitura,
aquele contexto parece estar representado em narrativas a exemplo de “Di Lixão” e
“Duzu-Querença”, como já vimos.

O tratamento descuidado e os abusos de que eram vítimas provocaram uma


alta taxa de mortalidade infantil entre a população escrava. […] A fácil
aquisição de novos escravos significava que as classes governantes não
perdiam tempo nem dinheiro com a saúde de seus cativos (NASCIMENTO,
2016, p. 70).

Mais uma vez, o conto testemunha um estado de extermínio em que a


vida parece perder seu valor não-apreçável. A representação da morte do
protagonista do conto “Di Lixão”, ao lado de outros contos, a exemplo de “Lumbiá” e
“Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos”, podem representar um estado
derradeiro de um processo longo de violências.
O enredo representado em “Di Lixão” e seu protagonista evocam um
fenômeno eminentemente urbano: cerca de 221.869 de pessoas morando nas ruas
do Brasil em março de 2020, apesar de não ser uma regularidade exclusivamente
brasileira. De acordo com uma nota recente do Instituto de Pesquisa Econômica
102

Aplicada (IPEA), o país não possui uma contagem a nível nacional da “população
em situação de rua”, limitação que pode reforçar ainda mais a invisibilidade social
dessas pessoas no campo das políticas públicas, por exemplo. Um olhar atento para
as ruas urbanas, praças, igrejas, calçadas, canteiros e terminais de ônibus
anunciava o que a nota reúne e revela em números: o crescimento de pessoas
nessas condições, sobretudo nas metrópoles, como é tradicional, mas também nos
municípios de pequeno porte populacional.
Concentrado no período que vai desde setembro de 2012 a março de
2020, a nota estima que a acentuação ocorreu nos intervalos de setembro de 2016 a
março de 2017 (139.720 – 156.898), setembro de 2017 a março de 2018 (164.329 –
183.020), setembro de 2018 a março de 2019 (186.480 – 202.631). Mais
recentemente, outro pico entre setembro de 2019 e março de 2020 (206.691 –
221.869) mostra efeitos da pandemia de Covid-19, conjuntura que agrava a
vulnerabilidade diante dos obstáculos ao acesso à água, à higiene e à alimentação,
por exemplo (NATALINO, 2020), constituindo, do ponto de vista dos perpetradores,
um verdadeiro método de aniquilação física não só dessa parcela de pessoas, mas
do conjunto das populações brasileiras e um crime contra a humanidade.
No recorte por região, o Sudeste concentra mais da metade (124.698) do
total de pessoas registradas em março de 2020, ao lado do Nordeste, com 38.237 e
seguido do Sul, com 33.591. Vale observar que no Norte o aumento de pessoas
moradoras de rua saltou de 5.901, em setembro de 2017, para 7.406, em março de
2018. O documento indica que aquele salto justifica-se por questões fronteiriças,
possivelmente relacionando-se com a corrente de fuga-imigração de uma parte da
população venezuelana para o Brasil, forçada pelo alto índice de desemprego,
aumento dos preços alimentícios e da fome20.
No conto que segue a narrativa de Di Lixão, o narrador focaliza o menino
Lumbiá numa rotina que sinaliza o trabalho infantil: um vendedor de amendoins,
chicletes e flores de rua como alternativa para complementar a renda familiar. Ao
lado disso, o narrador introduz a relação do protagonista com uma chamada
20 Estimativa da população em situação de rua no Brasil (setembro de 2012 a março de 2020) Nota
técnica n° 73. IPEA, Junho de 2020. (Disponível no portal do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada). A estimativa foi levantada a partir de dados de 5.500 municípios. Os números, que se
referem às pessoas registradas no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal,
podem ser maiores, devido à característica muitas vezes dinâmica das pessoas moradoras de
rua. Apesar disso, o documento considera um evidente avanço nos cadastramentos.
103

tradicional casa especializada em vendas de iluminárias, e o vínculo carregado de


significados entre ele e a representação do presépio.
Por meio da evocação ao trabalho ambulante, podemos inferir que o
enredo da personagem passa-se durante o dia. Mais à frente, o narrador refere-se
às tentativas do protagonista para entrar no tradicional Casarão Iluminado, num dia
em que havia sido montada a representação de um presépio. O texto traz ainda
outros elementos que podem ser indício do encadeamento ou proximidade temporal
das narrativas de Olhos d’água entre si. O narrador observa, abrindo um parágrafo:
“Enquanto isso, o tempo corria”; e continua, começando o seguinte: “[o] dia
caminhava para seis da tarde, vinte e três de dezembro. O menino aguardava ali
desde as nove da manhã” (EVARISTO, 2016, p. 85). Notamos que a vigília de
Lumbiá à espera de uma oportunidade para entrar na loja e ver o presépio, conjunto
de símbolos no qual a personagem indica depositar e guardar recordações e
esperanças, inicia-se precisamente no mesmo horário em que a personagem Di
Lixão havia sido recolhida pelo rabecão da polícia.
A representação do momento de encontro de Lumbiá com a
representação de Deus-menino no presépio e a associação construída por Evaristo
entre as duas, evoca um movimento de continuidade de temporalidades e
representações, por meio de semelhanças a exemplo da fome, da pobreza e do frio:
“Deus-menino de braços abertos[,] nu, pobre, vazio e friorento como ele [Lumbiá].
Nem as luzes da loja, nem as falsas estrelas conseguiam esconder a sua pobreza e
solidão” (idem, p. 85).
O conto pode evocar novamente uma relação entre o cotidiano e um
evento pontual, a ocultação e a visibilidade, frequente em outras narrativas da
coletânea através de imagens diversas. As figuras das lâmpadas, estrelas,
iluminárias, piscas-piscas, ao lado do sentido literal de iluminarem, fazerem ver, são
associadas pelo narrador do conto a uma tentativa de esconder pontualmente a
fome, a pobreza, a solidão, o vazio, a morte e outras ofensas ou crimes cotidianos
representados no enredo de Lumbiá e nas outras narrativas.
A iluminação das noites natalinas na loja Casarão Iluminado talvez conote
os shoppings enquanto lugar-símbolo da urbanização, da mercadoria e das relações
104

em torno desta. A figura pode indicar uma tentativa de esconder as cotidianas


desigualdades e violências, a exemplo da fome, da pobreza e do trabalho infantil.
Num momento anterior, ainda referindo-se à representação do presépio, o
narrador talvez indique outra camada de temporalidade: “[Lumbiá] [g]ostava da
família, da pobreza de todos, parecia a sua” (idem, p. 84). O pronome sua, ao
remeter à personagem, gera uma ambiguidade que parece denotar também o tempo
presente do(a) leitor(a), a depender de sua condição social. Esse efeito de
ambiguidade talvez destaque a natureza comum dessa condição e aponte ou
preveja a reincidência de cenas de pobreza, a exemplo das narradas no conto. Na
particularidade temporal do conto, o enredo de Lumbiá pode abrir para várias
dimensões temporais.
A vida da personagem Lumbiá, como vimos na referência ao dia que
caminhava para as seis da tarde, é interrompida durante a noite. Se consideramos
uma camada de inter-relação e sequência temporal entre os contos, temos aí mais
uma situação de morte. Nesse caso, novamente uma personagem que permite
pensar o extermínio da juventude brasileira nas suas especificidades de raça e
gênero. Os enunciados breves do desenlace, carregados de sentido em sua
agilidade, podem indicar gestos e falas de espanto, de terror e/ou de lamento
recolhidos pelo narrador do conto, e de antecipação ao desastre, como veremos no
capítulo 7: “O sinal! O carro! Lumbiá! Pivete! Criança! Erê, Jesus Menino.
Amassados, massacrados, quebrados! Deus-menino, Lumbiá morreu!” (idem, p. 86).
Os sentidos dos verbos escolhidos na construção da cena final, sobretudo
amassar e quebrar, são comumente utilizados para referir-se às coisas. Porém
também evocam uma condição anterior de pessoa coisificada. Ao lado disso, o
desenlace do conto Lumbiá pode dialogar com a interpretação do final de “Quantos
filhos Natalina teve?”. Nesse sentido, os contos representariam uma sucessão de
desigualdades e casualidades que culminam numa fatalidade, com o pulo de Lumbiá
na rua no instante em que o sinal abre para a passagem dos carros, construção
narrativa que reitera as múltiplas e complexas dimensões das narrativas e
personagens que compõem a obra evaristiana.
Ao longo desse capítulo procuramos destacar indícios que podem
sustentar uma hipótese de que os contos de Olhos d’água apresentam, numa
105

camada de leitura temporal, uma relação de contiguidade entre eles. Destacamos


nestes contos enunciados e expressões que podem sugerir tal relação, procurando
ler e entender os contextos de violência, fome, violência contra as mulheres e as
dimensões temporais históricas que os contos permitem refletir. Apresentaremos
agora uma síntese da trajetória de formação de uma palavra para nomear o projeto
de extermínio de nações ou grupos étnicos; e do uso do conceito por Abdias
Nascimento para interpretar o racismo no Brasil.
106

7 A BUSCA POR UMA PALAVRA PARA NOMEAR AS NARRATIVAS

Retomando o nome da protagonista de “O cooper de Cida”, podemos nos


perguntar o que ele evoca. Talvez o nome próprio surja como uma dica, ao poder
remeter ao sufixo de origem latina -cídio, que significa ato(s) que provoque(m)
corte/morte/extermínio, e vem a formar os vocábulos homicídio, suicídio, infanticídio,
feminicídio, genocídio, entre outros. Ao lado disso, é significativo notar que no
projeto editorial de Olhos d’água (2016) aquele conto tenha sido posicionado
precisamente no centro do livro.
Em relação à tradição de estudos sobre genocídios podemos citar como
referência na América Latina nos últimos anos o Centro de Estudios sobre
Genocidio, da Universidad Nacional de Tres de Febrero (UNTREF), em Buenos
Aires. No Brasil, na Universidade Federal do Ceará (UFC), pode ser citado o projeto
de pesquisa Atrocidades, Genocídio, Etnocídio: Narrativas, sob coordenação e
mediação de Atilio Bergamini. No projeto reúnem-se pesquisadoras e pesquisadores
que têm-se dedicado a analisar narrativas de sobreviventes e testemunhas de
crimes contra a humanidade, além de divulgar e intervir contra o projeto de
extermínio atual e cotidianamente executado no Brasil.
A tradição de estudos sobre o genocídio deve a formulação do conceito a
Raphael Lemkin, no texto “Genocidio”, publicado em El dominio del eje en la Europa
ocupada, originalmente em inglês, em 1944. Durante a Segunda Guerra Mundial o
jurista polonês de origem judaica conjuga a palavra grega genos e a latina -cídio
para se referir, de modo geral, a uma “destruição de uma nação ou de um grupo
étnico” (LEMKIN, 2009, p. 153) 21, mencionando naquele instante os atos nazistas
contra os povos judeus, checos, polacos, e grupos que eram ditos “não desejáveis”.
Raphael Lemkin vinha construindo o conceito já havia alguns anos. Em
“Ponencia de Madrid”22, de 1933, propõe a caracterização do extermínio de grupos
humanos, que define como “atos de barbárie”, enquanto crime internacional,

21 As referências a El dominio del eje en la Europa ocupada aparecem aqui numa tradução livre da
versão em espanhol.
22 As referências à “Ponencia de Madrid” aparecem numa tradução livre do texto na versão em
inglês. O documento pode ser acessado em: (http://www.preventgenocide.org/lemkin/madrid1933-
english.html).
107

embasado no pressuposto de que causam perigo à comunidade internacional.


Alguns anos antes, na 1ª Conferência para Unificação da Lei Penal, realizada em
1927, foram listados os seguintes crimes contra a lei das nações: a pirataria; a
falsificação de moedas, cédulas e títulos; tráfico de escravos, de mulheres e
crianças e de drogas; o uso intencional de instrumento que produza perigo público;
além do comércio de publicações obscenas. A partir dos crimes elencados naquela
Conferência, e num contexto em que milhares de judeus refugiavam-se do eixo
nazista, durante a década de 1930, o jurista propunha também a inclusão do
extermínio de grupos humanos àquela lista.
Na sua reformulação, propõe reconhecer na lista de crimes contra a lei
das nações: os atos de barbaridade, atos de vandalismo, a provocação de
catástrofes em comunidades internacionais, interrupção intencional de
comunicações internacionais, além da propagação de contágios humanos, animais
ou vegetais.
Entre os “atos de barbárie”, Lemkin considerou os ataques aos direitos
humanos individuais e às relações entre o indivíduo e a coletividade; contra um
indivíduo enquanto integrante de uma coletividade; contra coletividades étnicas,
religiosas ou sociais; ataques brutais e humilhantes contra a dignidade de um
indivíduo enquanto parte de uma campanha de extermínio dirigida à coletividade.
Considerados em conjunto, aqueles atos representam crimes contra a lei das
nações por apresentarem em comum a característica de: pôr em perigo ambas as
existências das coletividades envolvidas e a ordem social inteira. Conforme Raphael
Lemkin, as ações prejudiciais a uma coletividade produziram um perigo geral, uma
vez que avançaram de um lugar a outro e tornaram-se estáveis. Dessa forma,
abalaram as bases da harmonia das relações sociais entre coletividades
particulares.
Lemkin acrescenta ainda aos “atos de barbárie”, aqueles dirigidos contra
as pessoas de uma coletividade, os “atos de vandalismo”, aqueles sistematicamente
organizados e executados contra as contribuições de herança artística, cultural e
simbólica desses coletivos. Os atos de vandalismo dirigidos contra obras de herança
artístico-cultural, não só causam a perda imediata do objeto de arte para a
coletividade em particular, mas ainda para toda a humanidade (LEMKIN, 2009).
108

O artigo “El genocidio sovietico na Ucrania”, de 1953, constituiu outro


passo da trajetória de Raphael Lemkin na formulação do conceito. No texto, analisa
o avanço expansionista e uniformizador da União Soviética em direção à Europa
levado a cabo através de um antigo e longo processo de assassinato em massa de
povos, nações e culturas. No texto de Lemkin, o extermínio da Ucrânia é citado
enquanto parte do genocídio soviético, constituindo uma política de aniquilamento
seletivo e a longo prazo dos povos ditos não-russos.
Para comprovar o argumento, além do texto sobre a dominação do eixo
na Europa, o jurista identificou e descreveu as quatro principais etapas e alvos do
genocídio soviético na Ucrânia. Num primeiro momento, o grupo de intelectuais foi
apontado enquanto inimigo por ter sido considerado quantitativamente menor e por
representar a defesa da Ucrânia, incluindo professores, escritores, artistas,
pensadores e dirigentes nacionais, foram sistemática e violentamente atacados
através de deportações, trabalho escravo, exílio, fome e executados com
instrumentos de morte em massa.
Ao lado desse grupo, os membros, bispos e sacerdotes da Igreja Católica
Ucraniana também foram apontados enquanto “inimigos do povo” e do “bem estar”
soviético. Muitos foram presos, levados ao “desaparecimento” e assassinados pelo
simples fato de serem ucranianos, e por sua função essencial nas organizações de
caridade e assistência social daquele país.
Os agricultores constituíram outro grupo alvo, por sua importância na
preservação das tradições folclóricas e musicais, da língua nacional, da literatura e
do espírito ucraniano. Sobre aquele grupo, o método política e deliberadamente
utilizado pelo regime comunista entre 1932-1933 foi a fome, por meio do aumento de
impostos, de exportações obrigatórias e mesmo apodrecimento intencional de
alimentos. Holodomor foi o termo que os ucranianos criaram para referirem-se à
técnica genocida de matar de fome perpetrada contra eles. Ao lado da eliminação
física decerca de cerca de 5.000.000 pessoas, holodomor gerou também danosos
efeitos culturais, mentais e demográficos na população, a exemplo de fenômenos de
migração em massa rumo às cidades. De acordo com o Instituto Ucraniano da
Memória Nacional, em junho de 1933 uma média de vinte e quatro ucranianos
morriam de fome a cada minuto.
109

Ao lado dos ataques a intelectuais, a representantes da Igreja Católica


Ucraniana, e do uso deliberado da fome contra as comunidades agrícolas, Raphael
Lemkin descreveu a fragmentação do povo ucraniano enquanto outra etapa do
genocídio soviético. Mais uma vez, do ponto de vista dos perpetradores, através da
fome, de deportações, da assimilação de populações estrangeiras, as ações
objetivavam a dispersão dos ucranianos, o decrescimento de sua população e a
destruição da unidade étnica do povo originário da Ucrânia (LEMKIN, 2009a, p. 166-
173).
Enquanto polonês de origem judaica, Raphael Lemkin era considerado,
pela ótica do extermínio alemão, duplamente parte dos grupos-alvo dos ataques
genocidas. Essa condição levou-o a viver situações de perseguição, de fuga-
migração e de perda de amigos e familiares, que levaram a uma necessidade de
descrever e denunciar, através de textos e conferências, o projeto do eixo nazista
que destruía as bases essenciais da vida de judeus, polacos, checos, ciganos,
homossexuais…
De maneira mais detalhada, já no texto “Genocídio”, de 1944, o
sobrevivente define o genocídio como um plano que objetivava

a desintegração das instituições políticas e sociais, da cultura, da língua,


dos sentimentos patrióticos, da religião e da existência econômica de
grupos nacionais, além da destruição da segurança, da liberdade, da saúde
e da dignidade pessoal e inclusive da vida dos indivíduos que pertencem a
esses grupos (LEMKIN, 2009, p. 153).

Em síntese, conforme as análises do jurista polonês, genocídio diz


respeito a “um plano coordenado de diferentes ações que o objetivo é a destruição
das bases essenciais da vida de grupos de cidadãos, com o propósito de aniquilar
os mesmos grupos” (ibidem). O jurista descreve como bases essenciais da vida de
um grupo de cidadãos as esferas política, social, cultural, econômica, biológica,
física, religiosa e moral. As coletividades expostas por anos a fio aos seletivos
ataques às suas bases essências viram-se numa posição debilitada diante da
imposição e instalação dos paradigmas nacionais do colonizador, seja sobre a
população “dominada” ou sobre o território já despovoado.
Uma tradição de ensaios, obras literárias e testemunhais documentou de
diferentes maneiras processos semelhantes no mundo desde então, seja em relação
110

às populações indígenas nas Américas, ao tráfico de escravizados, aos povos


judeus na Europa, por exemplo. Dando continuidade à tradição levantada por
Raphael Lemkin, no que diz respeito à conjugação do conceito com a história das
pessoas negras no Brasil, a luta por empregar o conceito genocídio para referir-se
ao processo perpetrado contra os negros brasileiros remonta a pelo menos a década
de 1970, tendo como referencial o ensaio O genocídio do negro brasileiro: processo
de um racismo mascarado, de 1978.
No ensaio, além de discutir e desmistificar a imagem internacionalmente
difundida de que o Brasil vivia sob uma democracia racial, Abdias Nascimento
preocupava-se em examinar a escravidão enquanto um escândalo na história da
humanidade. Os testemunhos e argumentos reunidos no ensaio foram trazidos aqui,
ao lado de outros estudos, para analisar os contos de Olhos d’água (2016).
Nascimento mostrou e salientou em suas exposições o caráter silencioso, disfarçado
e institucionalizado do racismo no Brasil. Com isso, revela que tal caráter expressou-
se na linguagem, na exploração sexual das mulheres negras, nas perseguições às
expressões culturais e artísticas, na folclorização e esvaziamento dessas
expressões, na difusão de mitos sobre uma suposta natureza benevolente da
escravidão no país, por exemplo.
Ainda naquele período, a partir da segunda metade da década de 1970,
observa-se a atuação não só do Movimento Negro Unificado, formado sobretudo a
partir das classes médias da população negra brasileira, mas também os
movimentos e associações de moradores nas favelas e periferias, formadas
majoritariamente pela população que migrara do campo para os centros urbanos. As
reivindicações dos movimentos de favela daquele período tratam de bases
essenciais à vida física, cultural, econômica, social e biológica de grupos de
cidadãos prejudicados: melhores condições de habitação/saneamento básico, de
transporte, educação, saúde etc. e ao título de propriedade do solo urbano que
ocupam (GONZALEZ, 2020, p. 94-111).
Ao lado dessa tradição de investigações jurídicas, obras literárias e
testemunhais e movimentos, vale lembrar mais recentemente uma obra curta, mas
nem por isso menos contundente no movimento a que se propõe desde o título. Zero
a zero: 15 poemas contra o genocídio da população negra (2015) é uma coletânea
111

de Maria Nilda de Carvalho Mota. Poeta e ativista nascida no Ceará, Dinha migrou
em 1979, ano seguinte ao do nascimento, junto com a mãe, o pai e sete irmãos,
tendo feito parte do movimento de migração rumo ao sudeste que marcou a década
de 1970. A obra foi editada colaborativamente pelos coletivos sociais Núcleo Poder
e Revolução, Coletivo Perifatividade, Edições Um por Todos e Força Ativa. Com
fortes características performáticas dos versos de slam, Zero a zero apresenta-se
enquanto mais um testemunho poético de um genocídio diário-duradouro.
Em termos de mobilização, pode ser citada a “Parem de nos matar!”, de
26 de maio de 2019, no Rio de Janeiro, organizada por moradores(as) de favelas e
apoiada por movimentos da sociedade civil, que objetivava sensibilizar o Brasil e
clamar “pelo fim do genocídio do povo das favelas”. A mobilização foi organizada
também em memória a William de Mendonça Santos, de 42 anos, que trabalhava na
função de gari comunitário no Vidigal (RJ) e que havia sido assassinado no dia 22
de abril daquele ano, durante um tiroteio; Evaldo Rosa dos Santos, de 51 anos,
músico morto durante uma operação do Exército em Guadalupe (RJ) dias antes, em
7 de abril; e o jovem catador Luciano Macedo, de 27 anos, que morreu em 18 de
abril, após ser atingido ao prestar socorro ao músico.
Aqueles casos, que ganharam maior repercussão e sensibilidade da
sociedade civil, exemplificam e revelam o caráter cotidiano do genocídio das
populações negras e brasileiras. Na perspectiva de Barbara Nascimento, integrante
do coletivo Favela no Feminino, uma das organizadoras da mobilização, a iniciativa
estava

a favor de nossas vidas, é para que parem de nos matar, parem de matar a
juventude negra favelada, parem as incursões em horários escolares, parem
de entrar em nossas casas sem mandato, parem de criminalizar nossa
existência.23

Os contos de Olhos d’água representam recorrentemente atos de


genocídio, seja nos segmentos centrais dos enredos ou nos intra-enredos, que
compõem o todo de cada narrativa, como procuramos analisar. Esperamos ter sido
possível demonstrar, numa camada de interpretação temporal, os contos dentro de
uma relação de contiguidade. Nessa relação entre as narrativas, procuramos
interpretar os contextos de violência, fome, violência contra as mulheres e as
23 A fala foi retirada do texto de divulgação da mobilização, disponível em:
(https://www.anf.org.br/parem-de-nos-matar/).
112

dimensões temporais históricas que os enredos evaristianos permitiram refletir.


Apresentamos a construção do conceito de genocídio na primeira metade do século
XIX, pelo polonês Raphael Lemkin, para referir-se ao extermínio de nações ou
grupos étnicos. Ao lado do jurista, na segunda metade do mesmo século, Abdias
Nascimento empregou o conceito caracterizando e expondo a escravidão enquanto
um crime contra a humanidade.
Diante da análise da relação de contiguidade dos contextos de debilitação
das vidas e das relações sociais; diante da apresentação da formulação do conceito,
e da reincidência de atos como aqueles desde sua conceituação, é possível retomar
o conto utilizado para iniciá o capítulo. Em “O cooper de Cida”, o narrador
acompanha as reflexões da protagonista diante do mar, onde se lê uma dupla
dimensão temporal e uma imagem metafórica. O trecho destacado abaixo, parece
expressão de um deslumbramento diante dos “movimentos repetidos” da natureza.
Ao lado disso, a interrogação pode expressar a dimensão de longa duração e
historicamente reiterada naqueles atos. Enquanto isso, as imagens rotineiras do dia
e da noite podem conotar uma dimensão diária.

A princípio [Cida] experimentou uma profunda monotonia observando os


movimentos repetidos e maníacos das ondas. Como a natureza repetia
séculos e séculos, por todo sempre, os mesmos atos? O dia raiar, a noite
cair, o sol, a lua (EVARISTO, 2016, p. 68).

Ao lado das ficções narradas em Olhos d’água, retratadas com suas


complexas relações e situações extremas e relação de contiguidade, o narrador dos
contos apresenta nas personagens falas e gestos que expressam uma antevisão e
precaução diante da intensificação, no presente e no futuro, de ações danosas e
contagiosas que têm ocorrido e sido narradas nos contos. Pode-se se referir a essa
dimensão e antevisão por meio do verso da escritora: “antevejo, antecipo, antes-
vivo”.
Como já vimos, significativas nesse sentido são as palavras enunciadas
pelo motorista de ônibus em “Maria”. Diante do conflito instalado dentro do meio de
transporte e do risco de a protagonista ser linchada ali, o motorista clama e adverte:

O motorista tinha parado o ônibus para defender a passageira: – Calma,


pessoal! Que loucura é esta? Todos os dias, mais ou menos esse horário,
ela toma o ônibus comigo. Está vindo do trabalho, da luta para sustentar os
filhos… (EVARISTO, 2016, p. 42, grifo nosso).
113

A sequência de ações preocupadas com a vida da mulher e com o


desenrolar prejudicial e desumano dos atos, expressados pelos verbos parar e
defender, é também intensificada pelo sinal exclamativo ao chamar a atenção dos
passageiros. Gestos desse tipo, que expressam uma ansiedade quanto à
reincidência e desenrolar de ações prejudiciais à vida no presente e no futuro,
ecoam e estão presentes ao longo da coletânea de Olhos d’água.
Noutra narrativa o gesto também é salientado, em “Zaíta esqueceu de
guardar os brinquedos”. No enredo, a personagem, como antecipa o título, deixou os
brinquedos dispersos no barraco para ir à rua, distraída, procurar uma figura-flor de
valor afetivo e simbólico. Distraída no meio de “mais um tiroteio”, a personagem é
advertida por um garoto:

Uma criança, antes de fechar violentamente a janela, fez um sinal para que
ela [Zaíta] entrasse rápido em algum barraco qualquer. Um dos
contendores, ao notar a presença da menina, imitou o gesto feito pelo
garoto, para que Zaíta procurasse abrigo. [...] Daí a um minuto tudo acabou.
Homens armados sumiram pelos becos silenciosos, cegos e mudos. Cinco
ou seis corpos, como o de Zaíta, jaziam no chão (ibidem, p. 76, grifo nosso).

A narrativa como um todo pode evocar dois movimentos que aparecerão


sintetizados mais à frente no poema “Vozes-mulheres”, de Evaristo. Primeiro, a ação
de “procurar abrigo para resguardar a vida”, orientada pelo sinal e pelo gesto das
personagens; depois, a ação de “juntar o que está disperso ou espalhado”, sugerido
no título para referir-se aos brinquedos, mas também como alusão às crianças
mortas durante o tiroteio.
Em “Os amores de Kimbá”, o narrador descreve numa mulher mais velha,
experiente e os apelos receosos dela diante da previsão de um futuro “guerra”. O
narrador constrói a protagonista enquanto um jovem “que não via nada de bom
acontecer com ela [Vó Lidumira] ou com a família” (ibidem, p. 92). Diante disso, de
uma geração personificada e sintetizada pelo protagonista do conto, a personagem
Vó Lidumira, “que nascera de mãe e pai que foram escravizados [e] já era filha do
‘Ventre Livre’” (ibidem), perita no tempo e na vida, demonstra gestos de antevisão,
pedindo e clamando a prevenção da possibilidade de uma “guerra”.

Zezinho gostava de jogar capoeira. Vovó Lidumira pegava o Rosário e


ficava rezando-rezando, enquanto ele atacava um inimigo imaginário. Ela
rezava pedindo a Senhora do Rosário que protegesse o menino. Estava
114

chegando o tempo de guerra, dizia Vovó Lidumira (ibidem, p. 89, grifo


nosso).

Esses gestos podem indicar que Conceição Evaristo, enquanto escritora,


retrata em suas narrativas, por meio de seus narradores e personagens, não só
situações limites complexas e os conflitos que historicamente caracterizam a
sociedade brasileira – embora não sejam exclusivos dela. A escritora também
imprime nas falas e nos gestos das personagens, sobretudo nas mais velhas, um
teor acautelado e preventivo, que olha para o futuro como modo de tentar prevenir o
desencadeamento de possíveis ações danosas para as personagens construídas, e
para as pessoas e grupos representados nas narrativas da coletânea.
Retratados ao longo das narrativas de Olhos d’água, escolhemos esses
gestos e falas como exemplares de uma dimensão preventiva que caracteriza a
narração e as personagens dos contos evaristianos. Nesse sentido, então,
recorremos aqui o poema “Vozes-mulheres”, de 1991, que consideramos noutro
momento uma certidão de nascimento de Evaristo enquanto escritora, ao mesmo
tempo em que pode ser testemunho histórico de uma linhagem de mulheres desde a
escravidão, passando pelos dias presentes da voz-mulher até aconselhar dias de
liberdade à geração que a sucede, os dias da filha. Segue abaixo novamente o
poema na íntegra.

A voz de minha bisavó


ecoou criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.

A voz de minha avó


ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe


ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.

A minha voz ainda


ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
115

A voz de minha filha


recorre todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha


recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida–liberdade. (EVARISTO, 2017, p. 24)

A voz-mulher lírica, indicando a própria Conceição Evaristo enquanto


escritora materializada em elemento interno ao texto, pode sintetizar o tom
aconselhador também presente nos contos selecionados, dirigindo-se à geração que
lhe dá continuidade na linhagem temporal do poema e da história. Essa
característica materializada de modo estético remete ao estudo recolhido por Robert
Slenes, que salienta o papel medular da formação de redes de parentesco entre os
escravizados do século XIX, fossem elas reais ou fictícias. A formação daquelas
redes exercia função vital na transmissão e reinterpretação de experiências,
ensinamentos e esperanças entre as gerações (SLENES, 2011).
Complementando o dado historiográfico trazido por Slenes, a observação
dos significados a que remetem os verbos selecionados pela escritora, recorrer e
recolher, parece válido nessa camada de interpretação semântica. De acordo com o
Dicionário da língua portuguesa Houaiss, o primeiro verbo pode denotar ações
como: pedir auxílio a, apelar a, servir-se de e percorrer novamente (HOUAISS,
2010).
Esses sentidos permitem ler na ação descrita pela voz-mulher um
percurso formativo feito por uma geração, personificada pela filha da voz lírica, que
percorre “todas as nossas vozes”, histórias de lutas, saberes e fazeres de tantas e
tantos que vieram antes dela, pedindo-lhes auxílio e amparo, a exemplo dos gestos
e rezas de Vó Lidumira anteriormente citados, percorrendo-os para que não sejam
esquecidos e “transmitindo” as experiências, ensinamentos e esperanças colhidas
em cada uma daquelas vozes, reestabelecendo o percurso.
O movimento de recorrer ganha complemento no verbo que o sucede:
recolher. O gesto denota, segundo o Houaiss, juntar e reunir o que está disperso,
116

pegar para guardar dentro de si, conduzir para local privado ou abrigo e afastar-se
do convívio social (HOUAISS, 2010). A ênfase no verbo recolher, repetido nas duas
últimas estrofes, pode salientar sua relevância para a “transmissão” do ensinamento
lírico que a voz-mulher dirige à geração que a sucede.
O poema “Vozes-mulheres”, nesse sentido, pode conotar uma
condensação de uma característica preventiva encontrada nas falas e gestos das
personagens de Olhos d’água: recorrer e recolher em si, preventivamente, as falas e
os atos danosos no presente, como lê-se nos tempos verbais (“recolhe em si”), para
anunciar e ressoar no futuro (“se fará ouvir”) uma vida liberdade.
Também publicado nos Cadernos Negros ao lado de “Vozes-mulheres”,
os versos de “Eu-mulher” integram aquele poema, sublinhando a relação dialética
eu-nós e a condição de mãe enquanto elementos que traduzem a autoria na
composição literária. O caráter acautelado indicado nas vozes-mulheres líricas e
presente nos narradores de Conceição Evaristo, olha para o tempo antecipando-se a
ações e falas que possam causar dano à vida.

Uma gota de leite


me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas.
Meia palavra mordida
me foge a boca.

Vagos desejos insinuam esperanças.


Eu-mulher em rios vermelhos
inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo.

Antes – agora – o que há de vir.


Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher.
Abrigo da semente
Moto-contínuo
Do mundo. (EVARISTO, 2017, p. 23, grifo nosso).

Fazendo eco ao poema anterior e aos contos exemplificados, nesse


poema a voz lírica mulher experiente, a exemplo dos versos “inauguro a vida” e “Eu
117

fêmea-matriz”, demonstra uma preocupação com diferentes tempos, seja na


literatura, seja na vida, como é sugerido em: antes – agora – o que há de vir.
Ressaltando o detalhe que também trata-se de uma voz lírica mulher, à
semelhança de “Vozes-mulheres” e da personagem Vó Lidumira, a voz lírica contém
em si um passado que remonta à escravidão, um presente, e uma antevisão e
prevenção de um futuro “de guerra” que possa ser danoso às vidas. Essa visão e
palavra preventivas podem estar sugeridas no caráter acautelado da voz lírica
através do verso em sequência: antevejo, antecipo e antes-vivo.
O último conto de Olhos d’água, “Ayolwua, a alegria de nosso povo”
aproxima-se das vozes-mulheres dos dois poemas ao desenvolver, numa das
chaves de interpretação, o movimento preventivo de recorrer e recolher. Como
vimos anteriormente, o narrador do conto sugere recorrer todas as narrativas
construídas na série, aludindo e sintetizando todos os dramas apresentados ao
longo da obra, como fica indicado no parágrafo de abertura do conto:

Quando a menina Ayoluwa, alegria de nosso povo, nasceu, foi em boa hora.
Há muito que em nossa vida tudo pitimbava. Os nossos dias passavam
como café sambango, ralo, frio e sem gosto. Cada dia era um sem quê nem
porquê. E nós ali amolecidos, sem sustância alguma para aprumar o nosso
corpo. Repito: tudo era uma pitimba só. Escassez de tudo (EVARISTO,
2016, p. 111).

Nos poemas, com a escolha daqueles verbos destacados, a voz-mulher


lírica também olha para o pretérito percorrendo e relembrando seus antepassados e
seus sofrimentos, vê e descreve seu presente, até antever, antecipar-se, e
aconselhar, enfaticamente, a juventude por meio de palavras maturadas pelo tempo,
pela vida e pela memória. Os ensinamentos intergeracionais desaconselhavam a
rebelião. Na perspectiva do estudo recolhido por Slenes (2011) sobre as redes de
parentesco reais ou fictícias, formadas por escravizados do século XIX e outros
grupos subalternizados, enraizadas no tempo, as transmissões de experiência e
ensinamentos intergeracionais desaconselhavam a rebelião (2011, p. 124), a
exemplo do que parecem representar os gestos preventivos das personagens e das
vozes-mulheres dos poemas e contos evaristianos.
O derradeiro conto de Olhos d’água, “Ayoluwa, alegria de nosso povo”,
sugere desenvolver aquilo que os primeiros poemas, trazidos anteriormente,
parecem condensar e antecipar: recorrer e recolher. O narrador percorre novamente
118

cada uma das vidas representadas na coletânea de contos, recolhendo-as,


reunindo-as e conduzindo-as para um abrigo, como indica a referência a um
“povoado”. Sugere, com isso, o recolhimento da fala ou ato de enfrentamento aberto,
como uma via de conceber uma vida em liberdade.
Procuramos demonstrar ao longo deste capítulo uma dimensão
reparadora na literatura de Conceição Evaristo, lendo contos e poemas em que essa
atitude narrativa parece-nos mais salientada. Ao lado de um olhar crítico sobre
diversas situações limites ou extremas das relações sociais, a escritora também
expressa uma antevisão aos efeitos danosos que tais relações entre pessoas e
grupos podem desencadear. Assim, através de falas e gestos preventivos
construídos nas personagens e nas vozes-líricas, como procuramos ler, a escritora
“aconselha”, do seu lugar de transmissora de experiências e ensinamentos, toda
uma geração não a rebelar-se, a vingar-se por uma ofensa histórica – como foi
retratado em “Ana Davenga” e depois lido aqui –: mas sugere recorrer e recolher em
si a fala e o ato, como modo de antecipar-se e evitar ações que prejudiquem, no
presente ou no futuro, a vida e as relações humanas e sociais.
119

8 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo da dissertação viemos buscando localizar e apresentar traços


estéticos e políticos que têm caraterizado uma tradição de escritores(as) negros(as)
no Brasil. O estabelecimento desse tema específico incluiu a escritora Conceição
Evaristo e suas obras, em especial o conjunto de contos Olhos d’água.
Espera-se que este estudo em aberto contribua, ainda que de maneira
sintética, para uma leitura da reunião da formação de uma tradição de escritoras e
escritores negros(as) ao lado de associações culturais e movimentos sociais
abolicionistas, imprensa alternativa, eventos e cursos, publicação de antologias,
séries literárias e estudos autorreflexivos. Pode-se explicitar, dessa forma, que essa
tradição dinâmica fez-se ao lado de diferentes momentos históricos e movimentos
literários e sociais. Isso não significou a exclusão das particularidades artísticas e
políticas de cada artista.
A constituição daquela tradição guardou uma relação de resposta a um
imaginário social que remonta à ordem social escravocrata e que gerou um estado
de invisibilização, ausência e folclorização na construção de personagens negras,
como indicado pelas(os) pesquisadoras(es). A respeito do conjunto dessa literatura,
que foi permitindo novas óticas de representação em relação às pessoas negras,
foram levantadas reflexões teóricas que reconheciam nele traços específicos, a
exemplo da (auto)identificação interna ao texto literário. Considerando válidas as
conceituações formuladas pela crítica especializada para compreender e analisar a
produção literária de escritores(as) negros(as) no interior da literatura brasileira,
pode-se se considerar também, hoje, que elas acabaram gerando um círculo vicioso
que tende a delimitar as possibilidades e diversidades de perspectiva social, artística
e de avaliação crítica.
Em especial no livro de contos analisado, estudamos a construção das
personagens evaristianas dentro de relações afetivas, familiares e sociais, lendo
nessas relações um contraponto a representações que privavam as personagens de
vínculos como aqueles e também um procedimento estético e ético de humanização
dos grupos representados. Em conjunto com esse dado, sinalizamos nas narrativas
120

o reconhecimento do “eu” a partir de sua relação com o “nós”, e a função desse


procedimento na composição dos textos; a utilização da memória enquanto recurso
de qualidade estética e política na construção das personagens e narrativas,
conferindo a eles densidade psicológica, e representando-os enquanto verdades
estruturadas em forma de ficção.
Os laços afetivos que os contos representam foram lidos enquanto gestos
de reconhecimento mútuo, de solidariedade, de sobrevivência, de continuidade e
enfrentamento às diversas formas de violência, de autoritarismo, de fome, retratadas
ao longo das narrativas evaristianas, o que trouxe ao debate a noção de ampliação
afetiva. Numa camada de interpretação histórica, os gestos de solidariedade e
sobrevivência remeteram à noção de quilombagem, do século XIX. Daquele
movimento, pode-se ler, ao lado da sua denominação histórica de agente de
mudança social, uma caracterização que punha em perigo as vidas e relações
sociais da época, expressando também uma debilitação daquelas mesmas relações.
Ao lado da análise da representação dos elos afetivos, foram também
analisadas na obra Olhos d’água, a partir de elementos vocabulares, dimensões
temporais que levam a pensar o período escravocrata. Noutra camada temporal, leu-
se uma relação de contiguidade entre os contos, e, nela, analisamos o testemunho
complexo e sensível de situações limites e dos estados mais trágicos das relações
humanas e sociais. Ao lado da leitura de dados sobre a violência no Brasil,
considerando algumas das características desse fenômeno, os contos permitiram ler
um país marcado pela violência entre diversos grupos sociais, embora não seja uma
exclusividade brasileira. A partir dos contextos retratados nas narrativas
evaristianas, nas quais se apresentam desigualdades e violências, foi apresentada a
formulação do conceito de genocídio por Raphael Lemkin e sua utilização por
Abdias Nascimento. Com essa leitura, pôde-se compreender melhor como as
relações entre as pessoas e os grupos sociais representados têm sido debilitadas e
postas em perigo.
Diante disso, também foi analisado nos contos de Olhos d’água, em
consonância com poemas de Evaristo, representações de gestos e falas de
personagens e vozes-líricas que simbolizam uma antevisão e precaução diante dos
contextos limites retratados nas narrativas e do possível desencadeamento de ações
121

danosas. Vimos a partir daqueles gestos e falas um ensinamento intergeracional que


cautelosamente olha para o presente e para o futuro e tenta prevenir ações que
prejudiquem as relações humanas e sociais ou possam desperdiçar as vidas
representadas no conjunto de contos.
Por fim, reiteramos que as leituras apresentadas ao longo da dissertação
dão continuidade a outras pesquisas e pesquisadoras(es) que nos antecederam, e
esperamos que estes estudos possam trazer contribuições para uma diversidade de
pesquisas posteriores em torno da literatura de Conceição Evaristo ou dos temas
aqui levantados, abrindo outras perspectivas e possibilidades de interpretação
literária e do Brasil.
122

REFERÊNCIAS

ALONSO, Angela. O abolicionismo como movimento social. Novos estudos. -


CEBRAP, São Paulo, v. 33, n. 3, p. 115-137, Nov. 2014. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
33002014000300115&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 8 mai. 2021.

ALVES, Miriam. Brasilafro autorrevelado: literatura brasileira contemporânea. Belo


Horizonte: Nandyala, 2010.

AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no
imaginário social das elites século XIX. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987.

BARRETO, Lima. Diário íntimo. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional,


1952. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?
select_action=&co_obra=2078. Acesso em: 22 jun 2021.

BROOKSHAW, David. Raça e cor na literatura brasileira. Porto Alegre: Mercado


aberto, 1983.

CAMPOS, Consuelo Cunha; DUARTE, Eduardo de Assis. Conceição Evaristo. In:


DUARTE, Eduardo de Assis. (org.). Literatura e afrodescendência no Brasil:
antologia crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. v. 2. p. 207-226.

CAMARGO, Oswaldo de. Lino Guedes: seu tempo e seu perfil. São Paulo: Ciclo
Contínuo, 2016. (Coleção Contextura Negra)

CAMARGO, Oswaldo de. Negro drama: ao redor da cor duvidosa de Mário de


Andrade. São Paulo: Ciclo Contínuo, 2018.

CANDIDO, Antonio. A nova narrativa. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela


noite e outros ensaios. São Paulo: Editora Ática, 1989. p. 199-215.

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Belo


Horizonte: Itatiaia, 2000. v. 2.

COUTINHO, Eduardo F. Literatura comparada, literaturas nacionais e o


questionamento do cânone. Revista Brasileira de Literatura Comparada. Porto
Alegre, v. 3, n. 3, p. 67-73, 1996. Disponível em:
https://revista.abralic.org.br/index.php/revista/article/view/37. Acesso em: 07 ago.
2020.

CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010.


123

DALCASTAGNÈ, Regina. A personagem do romance brasileiro contemporâneo:


1990-2004. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, DF, p. 13-
71, n. 26. jul-dez 2005. Disponível em:
https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9077. Acesso em: 22 set.
2020.

DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura contemporânea: um território contestado.


Vinhedo, Editora Horizonte/Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2012.

DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura afro-brasileira: um conceito em construção.


In: DUARTE, Eduardo de Assis; FONSECA, Maria Nazareth Soares. (org.).
Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2011. v. 4.

DUARTE, Eduardo de Assis. O bildungsroman afro-brasileiro de Conceição Evaristo.


Estudos feministas, Florianópolis, v. 14, n. 1, p. 305-308, jan/abr, 2006. Disponível
em: https://www.scielo.br/j/ref/a/g7gPJT4f9yzqMyFyLxR6HBb/?lang=pt. Acesso em:
03 fev. 2020.

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.

EVARISTO, Conceição. Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade.


SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 13, n. 25, p. 17-31, 2009. Semestral. Disponível em:
http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/4365. Acesso em: 01
maio. 2019.

EVARISTO, Conceição. Gênero e etnia: uma escre(vivência) de dupla face. In:


MOREIRA, Nadilza Martins de Barros; SCHNEIDER, Liane (org.). Mulheres no
mundo: etnia, marginalidade e diáspora. João Pessoa: Ideia, 2005. p. 201-212.

EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. 1. ed. Rio de Janeiro: Pallas/Fundação


Biblioteca Nacional, 2016.

EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. 3. ed. Rio


de Janeiro: Malê, 2017.

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. 3. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.

FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. 2. ed. São Paulo:


Global, 2007.

FERNANDES, Florestan. Significado do protesto negro. 1. ed. São Paulo:


Expressão popular/Fundação Perseu Abramo, 2017.

FONSECA, Rubem. Feliz ano novo. In: 64 contos. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004. p. 186-193.
124

GAMA, Luiz. Quem sou eu?. In: Primeiras trovas burlescas de getulino. 2. ed. Rio
de Janeiro: Typ. de Pinheiro & C. 1861. p. 138-143. Disponível em:
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4906. Acesso em: 22 maio 2021.

GOMES, Heloisa Toller. Minha mãe sempre costurou a vida com fios de ferro. In:
EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas/Fundação Biblioteca
Nacional, 2016.

GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira. In: LUZ, Mandel (org.).
Lugar de mulher: estudos sobre a condição feminina na sociedade atual. Rio de
Janeiro: Graal, 1982a. p. 87-104.

GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Marco


Zero, 1982b. (Coleção 2 Pontos, v. 3)

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios,


intervenções e diálogos. LIMA, Márcia; RIOS, Flavia (org.). Rio de Janeiro: Zahar,
2020.

GRAÚNA, Graça. Literatura indígena no Brasil contemporâneo e outras questões em


aberto. Educação e linguagem. São Paulo, v. 15, n. 25, p. 266-276, jan-jun, 2012.
Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/EL/
article/view/3357. Acesso em: 08 nov. 2020.

HOUAISS, Antonio. Minidicionário Houaiss de Língua Portuguesa. 4. ed. rev. e


aumentada. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

IANNI, Octavio. A sociologia de Florestan Fernandes. Estudos Avançados, São


Paulo, v. 10, n. 26, p. 25-33, 1996. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/8910. Acesso em: 25 ago. 2020.

IANNI, Octavio. Literatura e consciência. Revista do Instituto de Estudos


Brasileiros, São Paulo, n. 28, p. 91-99, 1988. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/70034. Acesso em: 6 ago. 2021.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Atlas da violência 2020.


Brasília, DF: IPEA, 2020.

LEMKIN, Raphael. Genocidio. In: LEMKIN, Raphael. El dominio del eje en la


Europa ocupada: leyes de ocupación, análisis de la administración gubernamental,
propuestas de reparaciones. 1. ed. Buenos Aires: Prometeo Libros: Univ. Nacional
de Tres de Febrero, 2009a. p. 153-175. (Colección Estudios sobre Genocidio).

LEMKIN, Raphael. El genocidio sovietico en Ucrania. In: Soviet genocide in


Ukraine. article in 28 languages. Kiev: Editor Roman Serbyn, compiler Olesia
Stasiuk Kyiv, Maisternia Knyhy, 2009b. Disponível em:
http://history.org.ua/LiberUA/978-966-2260-15-1/978-966-2260-15-1.pdf. Acesso em:
15 fev 2021. p. 68-75.
125

LEMKIN, Raphael. Ponencia de Madrid. Madrid: [s. n.], 1933. Online. Disponível
em: http://www.preventgenocide.org/lemkin/madrid1933-english.html. Acesso em: 15
fev. 2021.

MOTA, Dinha Maria Nilda de C. Zero a zero: 15 poemas contra o genocídio da


população negra. São Paulo: Edições Me Parió Revolução, 2015.

MOURA, Clóvis. História do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1992.

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo


mascarado. 3. ed. São Paulo: Perspectivas, 2016.

NASCIMENTO, Abdias. Teatro experimental do negro: trajetória e reflexões.


Estudos avançados, São Paulo, v. 18, n. 50, p. 209-224, 2004. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/ea/a/B8K74xgQY56px6p5YQQP5Ff/?lang=pt. Acesso em: 16
jul. 2020.

NATALINO, Marco A. C. Estimativa da população em situação de rua no Brasil.


(setembro de 2012 a março de 2020). Brasília, DF: IPEA, 2020. (Nota técnica, n. 73).

PEREIRA, Edimilson de Almeida. Territórios cruzados: relações entre cânone


literário e literatura afro-brasileira. In: JUNIOR, Robert Daibert; PEREIRA, Edimilson
de Almeida (org.). Depois, o Atlântico: modos de pensar, crer e narrar na diáspora
africana. Rio de Janeiro: Editora UFJF, 2010. p. 319-349.

PRUDENTE, Eunice Aparecida de Jesus. O negro na ordem jurídica brasileira.


Revista da Faculdade de Direito, São Paulo, v. 83, p. 135-149, 1988. Disponível
em: https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67119.pdf. Acesso em: 1 maio
2021.

RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento.


São Paulo: Imprensa Oficial/Instituto Kuanza, 2006.

REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. Porto Alegre: Zouk, 2018.

SILVA, Mário Augusto Medeiros da. Por uma militância ativa da palavra: antologias,
mostras, encontros e crítica sobre literatura negra, anos 1980s. História: Questões
& Debates, Curitiba, v. 63, n. 2, p. 161-194, jul./dez, 2015. Disponível em:
https://revistas.ufpr.br/historia/article/view/46706. Acesso em 20 jul. 2020.

SILVA, Mário Augusto Medeiros da. Sociologia da lacuna. In: SILVA, Mário Augusto
Medeiros da Silva. A descoberta do insólito: literatura negra e literatura periférica
no Brasil (1960-2000). 2011. 448 p. Tese (Doutorado em Sociologia) – Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Campinas,
2011. Disponível em: http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/280297.
Acesso em: 4 maio 2020. p. 209-216.
126

SLENES, Robert. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da


família escrava. 2. ed. Campinas: Editora Unicamp, 2011.

SOUZA, Neuza Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro


brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.

TRINDADE, Solano. O poeta do povo. São Paulo: Ediouro, 2008.

Você também pode gostar