2021 Dis Rnmoreira
2021 Dis Rnmoreira
CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE LITERATURA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
FORTALEZA
2021
ROBSON NOGUEIRA MOREIRA
FORTALEZA
2021
ROBSON NOGUEIRA MOREIRA
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________
Prof. Dr. Atilio Bergamini Junior (Orientador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_____________________________________
Prof.a Dr.a Irenísia Torres de Oliveira
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_____________________________________
Prof.a Dr.a Sarah Maria Forte Diogo
Universidade Estadual do Ceará (UECE)
AGRADECIMENTOS
1 INTRODUÇÃO……………………………………………………………. 8
2 OS NEGROS NA LITERATURA BRASILEIRA: ENTRE A
AUSÊNCIA E O ESTEREÓTIPO……………………………………….. 17
3 A LITERATURA NEGRA/AFRO-BRASILEIRA NA ESTEIRA DOS
MOVIMENTOS SOCIAIS NEGROS……………………………………. 31
4 UMA LOCALIZAÇÃO SOCIO-AXIOLÓGICA NO TEXTO
LITERÁRIO NEGRO…………………………………………………….. 48
5 ELOS AFETIVOS, AMPLIAÇÃO AFETIVA E QUILOMBAGEM…… 67
6 NARRATIVAS CONTÍGUAS DE UM GENOCÍDIO COTIDIANO…… 82
7 A BUSCA POR UMA PALAVRA PARA NOMEAR AS
NARRATIVAS…………………………………………………………….. 1061
8 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS………………………………. 119
REFERÊNCIAS...….……………………………………………………... 122
1 O trabalho apresenta esta quantidade de capítulos meramente por acaso, não fazendo parte de
qualquer significado, seja numerológico ou qualquer outro.
8
1 INTRODUÇÃO
lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nas
instituições de ensino fundamental e médio, públicas e privadas; mais tarde a
11.645/08, que inclui também a história e a cultura indígenas. Além dessas
conquistas, a crescente discussão sobre o tópico das identidades ditas
“subalternas”, e o maior acesso à educação superior por parte das populações
negras podem ser outros fatores que intensificaram o debate sobre essa produção
literária no Brasil dos últimos anos.
Para conduzir nossa pesquisa escolhemos o livro Olhos d’água, um
conjunto de 15 contos publicado em 2014 por Conceição Evaristo. Fazem parte da
coletânea onze contos já publicados na série Cadernos Negros desde 1991 e outros
quatro inéditos, até onde conseguimos confirmar. Na coletânea, deparamo-nos com
personagens diante de situações extremas, atravessadas pelas problemáticas que
caracterizam a vida não só de crianças, mulheres e homens negras no Brasil, mas
dos povos brasileiros na sua diversidade, em seu conjunto herdeiras(os) de
desiguais condições sociais e raciais.
A escolha por ler as questões sociais e raciais dentro da ficção literária de
Conceição Evaristo explica-se, primeiramente e de modo geral, pela capacidade
daquele discurso de apreensão e composição da realidade de maneira que permite
acessar as contradições muitas vezes ocultas da sociedade brasileira, como é
característico da literatura e das artes em geral. Depois, deve-se ao fato de que a
obra literária sobre a qual está debruçada esta pesquisa também expõe, mas não
só, a história coletiva do grupo social e racial do qual faz parte este inexperiente
pesquisador, enquanto homem negro e da classe popular brasileira, ao mesmo
tempo em que ainda permite uma leitura da história do Brasil como um todo.
Antes, abrimos um espaço para explicar um dado da construção de nosso
texto. Como já é possível observar, optamos predominantemente pela escrita na
primeira pessoa do plural. A escolha justifica-se por dois motivos. Primeiro, por
encontrar nela uma ligação de maior alcance com a classe popular e negra da qual
fazemos parte. Recorrendo ao poeta, militante e pesquisador Luiz Silva, mais
conhecido pelo nome Cuti, pode se tratar de um plural de comunhão histórica (CUTI,
2010, p. 113), e, acrescentaríamos, também social. Almejamos incorporar nesse
plural, algo que só simbolicamente conseguiríamos, a experiência e a voz de tantos
11
4 Esse posicionamento é categoricamente assumido, por exemplo, por Abdias Nascimento no início
de seu ensaio-testemunho sobre o genocídio perpetrado contra o negro brasileiro. O militante e
intelectual negro afirma a impossibilidade e seu pouco interesse em transcender a si mesmo,
sintetizando a relação entre pesquisador e objeto analisado por meio da máxima: “Quanto a mim,
considero-me parte da matéria investigada” (NASCIMENTO, 2016, p. 47).
15
Oswaldo de Camargo revela que o olhar lançado para o negro brasileiro foi quase
nulo, citando como exceção o livro de poemas Raça (1925), de Guilherme de
Almeida (CAMARGO, 2018). Antes de expor o argumento de Camargo, cabem
algumas informações biográficas a título de apresentação.
Oswaldo de Camargo (1936-) é filho de Martinha da Conceição Camargo
e Cantiliano de Camargo, trabalhadores da lavoura de café. Migra do campo para a
cidade ainda na infância, na década de 1940, após a morte da mãe. Relata em
depoimentos que na adolescência, por conta do preconceito de cor que associava
os negros à sensualidade e à violência, é impedido várias vezes de exercer a função
de padre. Tem sido jornalista, contista, poeta e ensaísta, além de ativista dos
movimentos negros desde a juventude. Fez parte da Imprensa Negra Paulistana, da
Associação Cultural do Negro, das primeiras edições dos Cadernos Negros (1978) e
da fundação do Quilombhoje (1980). Estreou na literatura com os poemas de Um
homem que tenta ser anjo (1959), seguido de outros como O carro do êxito (1972),
A descoberta do frio (1979), O estranho (1984) e a autobiografia Raiz de um negro
brasileiro (2015). Ao longo desse ativo caminho, dedicou-se a resgatar e fomentar a
produção literária de autores(as) negro-brasileiros(as) através de estudos e
antologias a exemplo de O negro escrito: apontamentos sobre a presença do negro
na Literatura Brasileira (1987), Lino Guedes: seu tempo e seu perfil (2016), Negro
Drama: ao redor da cor duvidosa de Mário de Andrade (2018), entre outros,
desempenhando papel de elo entre as gerações pioneiras e as mais novas.
Voltando, na perspectiva de Camargo sobre o Movimento Modernismo:
8 Uma exposição e análise mais profundas de Brookshaw sobre a literatura do escritor baiano a
partir dessa perspectiva pode ser encontrada em Raça e cor na literatura brasileira (1983).
25
pelo discurso oficial10. Aquela mudança teve forte influência das lutas anticolonais
ocorridas na África, sobretudo durante a segunda metade do século XX, o que levou
a uma crítica à centralidade europeia nas ciências humanas. A partir dessa
reorientação, pode-se explicar, por exemplo, a produção posterior de Lélia
Gonzalez, no fim da década de 1980, na busca por formular o conceito de
amefricanidade. Salientamos, então, que os desdobramentos dos movimentos
sociais negros ao lado da produção literária vão abrindo novas possibilidades de
representação literária e também de interpretação do Brasil através da literatura.
Além da citação anterior, que se refere a camelôs, crentes, bêbados e
trabalhadores, o procedimento de narração que focaliza as personagens
secundárias no enredo pode ser visualizado no fragmento abaixo. Neste, a voz
narrativa, que estava centrada em Ardoca, compõe a cena focalizando também nas
outras personagens a pluralidade de reações diante do protagonista: desde a
aversão, passando por certa indiferença, até a solidariedade.
10 Segundo o crítico literário, por volta da década de 1970 os tradicionais modelos historiográficos e
comparativos vigentes nos estudos literários até então passam por uma atualização que é
sintetizada como a “passagem de um discurso coeso e unânime, com forte propensão
universalizante, para outro plural e descentralizado, situado historicamente, e consciente das
diferenças que identificam cada corpus literário envolvido no processo de comparação”
(COUTINHO, 1996, p. 67). Através dessa perspectiva é possível acentuar uma tradição literária
produzida por escritores negros brasileiros enquanto componente da literatura brasileira, uma vez
que foi também por volta daquele período que os estudos autorreflexivos analisaram as
especificidades da literatura de autoria negra no Brasil.
33
lírico sugere um procedimento que veio a ser uma pauta de movimentos posteriores
e uma tendência na tradição literária de escritores(as) negros(as), em diferentes
contextos: a restituição de uma (auto)estima e um prestígio social de que foram
sonegados a mulher negra e os povos negros em conjunto. Ao lado disso, o eu-lírico
sugere na interlocutora uma condição de agente da produção de riqueza do Brasil
nos cafezais, ficando implícita a impossibilidade de beneficiar-se daquela riqueza.
Além disso, a fuga pode sugerir uma expressão da agência das mulheres negras na
luta de autonomia e dependência nas relações senhoriais, tendo sido utilizada como
estratégia de negociação.
O poeta Cuti considera que autores do século XIX, a exemplo de Maria
Firmina dos Reis e Cruz e Souza não estavam organizados coletivamente. Tais
autores, que formaram a base para a consolidação desse aspecto da literatura
brasileira, segundo Cuti, eram amostras de uma solidão estético-literária que
dificultava a partilha consciente de uma dita intersubjetividade negro-brasileira
(CUTI, 2010, p. 115). Duarte, por outro lado, ressalta na introdução da referida
antologia que “os afro-brasileiros nunca foram voz isolada” (DUARTE, 2011, p. 14),
embora reconheça que os escritores do período não assumiam de modo explícito
um projeto afro-brasileiro na literatura. O posicionamento de Duarte baseia-se no
argumento de que as obras dos escritores nascidos antes da década de 1930 –
recorte por ele feito para delimitar a tradição de precursores – já “apresentam traços
discursivos que os situam, em muitos momentos, numa órbita de valores
socioculturais distintos dos abraçados pelas elites brancas […] transformando-os em
linguagem literária” (ibidem, p. 35).
Além disso, vale acrescentar que aqueles escritores estavam integrados
às movimentações sociais de seu tempo e atuavam em atividades abolicionistas.
Graças à pesquisadora Lígia Fonseca Ferreira, especialista em Luiz Gama e autora
de Com a palavra, Luiz Gama (2011) e Lições de resistência: artigos de Luiz Gama
na imprensa de São Paulo e Rio de Janeiro (2020), sabe-se hoje que o poeta e
jornalista advogava na ocupação de rábula em defesa da libertação de
escravizados, além de ter sido orador e articulista na imprensa. Ao lado de Gama,
Maria Firmina dos Reis, no Maranhão, demonstrava um envolvimento coletivo
através da publicação de poemas abolicionistas nas revistas literárias de São Luís,
37
Era [Suzana] uma prisioneira – era uma escrava! Foi embalde que supliquei
em nome de minha filha, que me restituíssem a liberdade: os bárbaros
sorriam-se das minhas lágrimas, e olhavam-me sem compaixão. Julguei
enlouquecer, julguei morrer, mas não me foi possível… A sorte me
reservava ainda longos combates. Quando me arrancaram daqueles lugares
onde tudo me ficava – pátria, esposo, mãe e filha, e liberdade! (REIS, 2018,
p. 180-181)
11 Pode confirmar essa declaração o estudo Flores, votos e balas: o movimento pela Abolição da
escravidão no Brasil (2014), de Angela Alonso. No estudo, a socióloga investiga o abolicionismo
enquanto o primeiro movimento social brasileiro, de natureza contínua, heterogênea e com
posicionamentos relacionais e dinâmicos. O movimento envolveu instituições políticas, espaço
público e clandestinidade; interlocução, interpretação, adaptação e improvisação de experiências
dos movimentos estrangeiros de acordo com a conjuntura local. A pesquisadora faz um
levantamento de variadas estratégias de mobilização abolicionista no Brasil, entre 1868 e 1888,
encontrando iniciativas institucionais, manifestações públicas em espaço aberto e fechado, ações
diretas, de difusão, simbólicas e de confrontação. Entre as ações de difusão são citadas
publicações de artigos, cartas abertas, ensaios, jornais, manifestos, romances, contos, poemas,
traduções e peças teatrais. Uma peculiaridade do abolicionismo brasileiro em relação ao de
outros Estados-nação foi ter-se incorporado às artes, em especial ao meio teatral, como espaço
para dramatização e difusão do movimento, que, por sua vez, absorveu recursos e linguagem
daquele meio. Esta característica pode fundamentar a afirmação do engajamento de
escritores(as) no movimento que resultou na Abolição da escravidão. Para uma síntese dos
argumentos de Angela Alonso, conferir “O abolicionismo como movimento social”.
38
a FNB não lutou pela inclusão dos negros no mundo do trabalho [enquanto
classe operária]. Isso se torna claro, por exemplo, quando observamos o
tipo de denúncia que fizeram contra os imigrantes. Esses eram vistos como
brancos estrangeiros que tomaram o lugar dos negros no mercado de
trabalho, mas nunca foram considerados classe trabalhadora (GONZALEZ,
2020, p. 124, acréscimo das organizadoras).
13 O poema “Vozes mulheres” foi publicado pela primeira vez na 13ª edição dos Cadernos Negros,
em 1990. Naquela mesma edição, que era dedicada ao gênero poético, também saíram outros
45
Ter autores negros não é uma questão de cota. E, sim, de direito. Os negros
têm de estar em qualquer lugar. Eu nunca levantei na minha literatura a
bandeira de que faço uma literatura negra. Não me identifico com isso. Mas
me identifico com a bandeira de luta para que ocupemos todos os lugares .14
[…] não como um dado “exterior”, mas como uma constante discursiva
integrada à materialidade da construção literária […], [a autoria] há que
estar conjugada intimamente ao ponto de vista. Literatura é discursividade e
Eu sei que não morrer nem sempre é viver. Deve haver outros caminhos,
saídas mais amenas. Meu filho dorme. Lá fora a sonata seca continua
explodindo balas. Nesse momento, corpos caídos no chão, devem estar
esvaindo em sangue. Eu aqui escrevo e relembro um verso que li um dia.
“Escrever é uma maneira de sangrar.” Acrescento: e de muito sangrar,
muito, muito… (ibidem, p. 109).
morador de rua ultrajado por uma soma de dores, traumas e pela pobreza; Natalina,
que pode conotar um libertar-se simbolicamente de seu algoz15.
Assim, a escritora tem a possibilidade de construir a narrativa a partir do
ponto de vista das populações negras, podendo dar uma forma literária não só ao
legado do sistema escravista na ordem social competitiva, mas também à
capacidade de agência contra as condições retratadas nas narrativas. O(a) autor(a)
do texto literário tende a traduzir-se no texto enquanto porta-voz que faz ressoar as
vozes dos coletivos negros.
Analisando o lugar social de enunciação de escritores contemporâneos no
ato de representação do “outro”, Regina Dalcastagnè argumenta, dando
continuidade a uma hipótese já levantada por Antonio Candido em “A nova
narrativa”, de 1989, que autores a exemplo de Rubem Fonseca constroem a
alteridade de maneira exótica. Isso porque apesar de tratar de temas e personagens
marginalizados, o distanciamento entre a perspectiva de narração traduz-se no
interior da construção das narrativas, “o ‘outro’ aparece com as feições que a
tradição lhes deu – deformadas pelo nosso medo, preconceito e sentimento de
superioridade […] sob a perspectiva das classes dominantes” (DALCASTAGNÈ,
2012, p. 24). Assim, constrói uma alteridade de forma pitoresca, folclórica, como se
viu na estetização de elementos culturais afro-brasileiros nos anos 30.
Para ilustrar, podemos recorrer a um conto de Rubem Fonseca (1925-
2020), escritor conhecido ao longo da segunda metade do século XX por focalizar
tipos urbanos marginalizados, a violência no cotidiano das grandes cidades
brasileiras, e expor em seus contos e romances aspectos do comportamento
brasileiro, a exemplo do autoritarismo, do paternalismo e da misoginia. Numa
camada de leitura que observa as escolhas vocabulares e a construção das
personagens do conto “Feliz ano novo”, publicado na obra homônima, de 1975,
encontramos um narrador em primeira pessoa descrevendo suas relações com os
amigos e um violento assalto a uma denominada “casa bacana”.
A partir da perspectiva do personagem narrador do conto, estabelece-se
um nível de distinção diante dos outros, indicado, além dos elementos de educação
formal, pela segunda construção frasal, curta, direta e isolada: “Pereba sempre foi
supersticioso. Eu não. Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz quadrada. Chuto
a macumba que quiser” (FONSECA, 2004, p. 187). Dentro dessa distinção, as
características das demais personagens são descritas em tom pejorativo: “Pereba,
você não tem dentes, é vesgo, preto e pobre, você acha que as madames vão dar
pra você?” (ibidem).
De início, o narrador associa as expressões de religiões afro-brasileiras a
significados negativos e maus presságios, o que tende a retirar delas sua história,
desconsiderar e negar seu valor social, espiritual e religioso:
Pereba entrou no banheiro e disse, que fedor. Vai mijar noutro lugar, tô sem
água (ibidem, p. 186); [...] arrumei a colcha de cetim da cama com cuidado,
ela ficou lisinha, brilhando. Tirei as calças e caguei em cima da colcha. Foi
um alívio, muito legal. Depois limpei o cu na colcha, botei as calças e desci
(ibidem, p. 191); […] Não se ouvia nada, a não ser os arrotos do Pereba
(ibidem, p. 192).
[…] Então eu não sabia a cor dos olhos de minha mãe? Sendo a primeira de
sete filhas, desde cedo busquei dar conta de minhas próprias dificuldades,
cresci rápido, passando por uma breve adolescência […] A mãe e nós rimos
e rimos e rimos de nosso engano. A mãe riu tanto, das lágrimas escorrerem.
Mas de que cor eram os olhos de minha mãe? (EVARISTO, 2016, p. 15-16).
56
Lembro-me ainda do temor de minha mãe nos dias de fortes chuvas. […]
Nesses momentos os olhos de minha mãe se confundiam com os olhos da
natureza. Chovia, chorava! Chorava, chovia! Então, porque eu não
conseguia lembrar a cor dos olhos dela? (ibidem, p. 17-18).
cidade mineira natal, para correr atrás de condições de vida mais seguras, numa
longa trajetória que a distancia dos laços familiares e comunitários.
No romance, publicado primeiramente em 2003, mas escrito ao final da
década de 1980, a voz narrativa traça em discurso indireto livre a odisseia circular e
de (re)encontro da personagem que intitula o livro. Na trajetória que perpassa por
caminhos de recordação que remendam passado, presente e futuro das
personagens, lê-se o relato do engenhoso e zeloso trabalho com o barro como
metanarração da (re)criação das artes, autorizando nela também o texto da
experiência vivida pela escritora; o papel determinante das mulheres, representadas
pela figura de Maria Vicêncio, na vida das personagens; a experiência da migração
do campo para a cidade; o desenraizamento e interrompimento dos laços familiares;
a progressão de um estado de esvaziamento, acabrunhamento e alheiamento; uma
longa busca ontológica de Ponciá Vicêncio até culminar em um reencontro de
reconciliação com os vínculos familiares e da memória perdidos.
Dialogando com o romance, o conto “Olhos d’água”, retrata uma
personagem visitada pelo estranho esquecimento da cor dos olhos de sua mãe. A
partir daí, dá início a uma busca na memória pelo objeto de tal esquecimento. A
busca desencadeia na narradora um movimento de rememoração que alcança,
através da figura materna, uma história que remonta aos povos africanos
desterrados para terem seus corpos usados como força de trabalho escravo nas
Américas. Numa camada de leitura ao nível da construção temática e narrativa, o
conto pode retratar a personagem numa “busca de melhor condição de vida”
(EVARISTO, 2016, p. 18) na “cidade grande”. A protagonista desse drama é
continuamente martelada pela “(auto)acusação”, açoitada pela “culpa”, vigiada pela
“tormenta”, atordoada pelo “desespero” de não conseguir “lembrar como havia
chegado até ali” (ibidem, p. 15), de ter deixado para trás os seus, conforme indica
melhor o fragmento abaixo.
para mim e para minha família: ela e minhas irmãs tinham ficado para trás.
(ibidem, p. 15-18)
Em síntese, pode-se ler uma narrativa sobre ter deixado para trás toda
sua história, que é a dos seus, a história dos(as) negros(a)s brasileiros(as).
Simbolizado pela volta à figura materna e ao lugar de onde tinha partido, pela
redescoberta dos “pequenos” valores e da cor dos olhos da mãe, o recolhimento
daquela história (re)abre caminhos para novos movimentos.
Acreditamos não ser por acaso essa narrativa principiar e ainda intitular o
livro de Evaristo. O estado de esquecimento e estranhamento e a tentativa de
reparar essa condição geram uma chave de interpretação para a coletânea de
contos. O recurso da memória para grupos sociais ditos subalternizados, objeto de
uma tradição de estudos, é caracterizado por Lélia Gonzalez enquanto um “não
saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi
escrita, o lugar de emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como
ficção” (GONZALEZ, 2020, p. 78). Na perspectiva de Gonzalez, o recurso da
memória emerge como um contraponto ao dito discurso dominante, da consciência,
entendidos como o lugar da exclusão, “do desconhecimento, do encobrimento, da
alienação, do esquecimento e até do saber” (ibidem). A partir dessa reflexão e
considerando os títulos de outras obras de Conceição Evaristo, a exemplo de Becos
da Memória e Poemas da recordação e outros movimentos, pode-se reiterar o valor
que a memória e a recordação têm para a criação e leitura do projeto literário da
escritora.
Numa camada de interpretação metafórica, o percurso feito pela
personagem, por meio do recurso da memória, no sentido de livrar-se de um estado
de esquecimento pode remeter ao trabalho pioneiro de construção de um discurso
psicanalítico sobre o negro brasileiro realizado por Neuza Santos Souza. Em Tornar-
se negro (1983), a psicanalista argumentava, a partir de histórias de vida das(os)
entrevistadas(os), que o fato de uma pessoa nascer com traços fenotípicos e
compartilhar de uma história comum de desenraizamento, escravidão, não organiza,
necessariamente, uma identidade negra. Esta, de acordo com a pesquisadora, é
elaborada ao longo de uma espécie de percurso formativo, de um livrar-se de todo
um conjunto de atribuições negativas que remetem à ordem social escravocrata e
que limitam a participação da pessoa negra na sociedade brasileira. A possibilidade
61
[…] quando escrevo, quando invento, quando crio a minha ficção, não me
desvencilho de um “corpo-mulher-negra em vivência” e que por ser esse “o
meu corpo, e não outro”, vivo e vivi experiências que um corpo não negro,
não mulher jamais experimenta (EVARISTO, 2009, p. 18).
uma linguagem, quase tão livre como o falar do povo, e [Barreto] desdenhou
aqueles escritores que se autoencarceravam aos rigores gramaticais e
estilísticos da língua portuguesa usada pelos acadêmicos do Brasil e do
além-mar (NASCIMENTO, 2016, p. 157).
enquanto retorno a duas figuras que simbolizam fontes de origem: a mãe no sentido
genealógico e o olho d’água, no sentido geológico.
Considerando as narrativas de Olhos d'água enquanto ficções
estruturadas através do recurso da memória, podemos ler a inscrição de marcas da
oralidade também como linguagem viva e testemunho de uma história que não foi
escrita. A partir da representação daquele retorno inicial incorporam-se esses traços
estéticos; desdobram-se na coletânea de contos uma série de verdades-
testemunhos, transformadas em arte, de um genocídio duradouro-cotidiano e de
diversificados meios de resistência.
Vale reforçar que a incorporação de um tom coloquial ao texto literário
não é característica isolada de Conceição Evaristo. De acordo com Antonio Candido,
que faz um recorte da ficção brasileira do final do século XX no ensaio “A nova
narrativa”, pelo menos desde os anos 20 vem se legitimando na literatura brasileira
uma tendência a acolher estilos populares e antiacadêmicos (CANDIDO, 1989, p.
205). Lino Guedes (1906-1951) pode ser citado enquanto poeta brasileiro e negro
que aderiu a uma poesia de linguagem popular em seu tempo. Considerado o
primeiro poeta do início do século XX a aceitar-se negro positivamente,
comprometia-se com as camadas negras populares de São Paulo, no geral
autodidata, e utilizava formas populares a exemplo da redondilha maior,
característica do cordel (CAMARGO, 2016).
Vimos ao longo desse capítulo, a partir de comentários de escritores,
pesquisadores e de textos literários, elementos textuais que têm caracterizado a
literatura de autores negros no interior da produção literária brasileira. A interação
entre temática, autoria, ponto de vista, linguagem e público leitor são constantes que
permitiram conceituar e consolidar essa produção literária (DUARTE, 2014). Essa
relação traz a possibilidade de organizar e elaborar uma fala, uma narrativa
vinculada com presentes e antepassados, e por meio e ao longo da qual a pessoa
negra assume-se enquanto sujeito de seu próprio discurso e de sua própria história.
Tem-se aí a construção do texto literário a partir da ressignificação e do
autorreconhecimento da pessoa negra dentro de uma relação entre o “eu” e o “nós”
e vice-versa. Essa produção tem sido elaborada também como contraponto e
reparação estético-política de um longo e antigo processo de ausentificação-
66
Ela [Ana Davenga] era cega, surda e muda no que se referia a assuntos
dele [Davenga]. Ele, entretanto, queria dizer mais uma coisa: qualquer um
que bulisse com ela haveria de morrer sangrando nas mãos dele feito porco
capado (ibidem, p. 22, grifo nosso).
Ao ser confundido numa ação que não havia participado, Davenga passa
a ser perseguido pela polícia. Nos momentos como os narrados no conto, em
tempos de guerra, o narrador relata a necessidade de avivar o vínculo com os
companheiros. O narrador do conto dissolvido na voz da personagem observa,
Todos estavam ali. Isso significava que onde quer que Davenga estivesse
naquele momento, estava só. E não era comum em tempos de guerra como
aqueles, eles andarem sozinhos. […] A ausência de um significava sempre
o perigo para todos. (ibidem, p. 28)
Não havia de ser nada. Tinha alguém que faria o serviço para ele
[Davenga]. Dias depois, a seguinte manchete aparecia nos jornais: “Filha de
pastor [Maria Agonia] apareceu nua e toda perfurada de balas. Tinha ao
lado do corpo uma Bíblia. A moça cultivava o hábito de visitar os presídios
para levar a palavra de Deus”. (ibidem, p. 28)
pode levar o indivíduo a uma compreensão mais ampla das experiências comuns
aos negros e brasileiros e a ver-se como parte de uma história, gerando um
potencial de comprometimento no plano das ideias e também no plano da prática,
como exemplificam as iniciativas da sociedade civil no Brasil, entre elas os
movimentos negros apresentados anteriormente. As situações concretas comuns de
pobreza, da fome, da violência, da falta de moradia, de impedimento aos serviços de
saúde, da marginalização, da migração, da criminalização, de assassinatos, do
encarceramento em massa e ainda as reações representadas em Olhos d’água
permitem ler a obra enquanto um testemunho que sensibiliza as pessoas para o
cenário narrado nos contos, em que a possibilidade de relações sociais harmônicas
parecem já debilitadas, pondo em perigo a existência dos grupos e indivíduos
representados, como procuraremos analisar no capítulo 6.
O ponto alto da reconfiguração afetiva e do avivamento do desejo-
necessidade de pertencimento das personagens é sugerido numa camada de leitura
metafórica “Aylouwa, a alegria de nosso povo”, que encerra a coletânea. No conto, a
perspectiva de narração reitera aquela característica comum à obra de Conceição
Evaristo: o estabelecimento do “eu” por meio do reconhecimento do “nós”.
Sob o ponto de vista plural o narrador do conto apresenta a história de um
povo em funestos tempos de banzo causados: pela pobreza, a fome, pelo
alcoolismo; por um esquecimento das tradições e das lutas dos mais velhos; pelo
enfurnamento e descrença dos mais jovens, que se põem a matar entre si; pelo
corriqueiro dilaceramento de outros tantos jovens; pela escassez de nascimento de
novas crianças e pelo desprezo dirigido às já nascidas, esquecidas no meio das
tristezas descritas. A transformação daquele dramático e bélico cenário é
simbolizada pelo nascimento de Ayoluwa, em iorubá, a alegria do povo, filha de
Bamidele, a esperança. O fragmento a seguir flagra o momento de renovação que
compõe o conto.
[Ana] Deu um salto da cama e abriu a porta. Todos entraram, menos o seu.
Os homens cercaram Ana Davenga. As mulheres ouvindo o movimento
vindo do barraco de Ana, foram também. De repente, naquele minúsculo
espaço coube o mundo. (ibidem, p. 21)
senzalas, Slenes dedica uma parte de seu estudo à arquitetura das senzalas.
Segundo o estudo, a partir de pinturas e relatos de viajantes, em fazendas do Rio de
Janeiro, por exemplo, as senzalas teriam sido de pelo menos dois tipos: as
senzalas-pavilhão e as de tipo barracão. O pesquisador argumenta que aos
escravizados casados teria havido a possibilidade de “morar não apenas em
construções separadas, mas também provavelmente em barracos ou cabanas
individuais” (SLENES, 2011, p. 161), adquirindo uma relativa autonomia e controle
sobre o espaço do “barraco”.
Embora tenha tido uma arquitetura muito variável, a depender da região e
de outros fatores, os barracos eram descritos, grosso modo, como compartimentos
pequenos, geralmente de um cômodo, utilizados para atividades sociais como
dormir e armazenar. Ao mesmo tempo, o vocábulo é usado atualmente para referir-
se às construções geralmente feitas com pedaços de madeira, folha de lata, lonas
de plástico.
Ainda no mesmo conto, os vocábulos senhor e casa-grande indicam uma
tensão de sentidos temporais que remetem às relações escravistas. Tal tensão está
exemplificada no trecho em que o narrador apresenta a personagem Maria Agonia:
“Ela [Maria Agonia] vivia dizendo da agonia de uma vida sem o olhar do Senhor”
(EVARISTO, 2016, p. 27, grifo nosso). Pela carga semântica que o termo grifado
comporta, a narração aberta permite uma interpretação do ponto de vista teológico,
por meio da qual é possível ler características de onipresença e onisciência em
relação a comunidades adeptas de alguma crença. O termo também pode remontar
às relações entre senhores e escravizados, o que permite ler, a partir do trecho do
conto, traços de dependência entre as posições.
No estudo historiográfico já lembrado, Slenes dá continuidade à análise
da arquitetura das senzalas no século XIX e argumenta ter sido comum encontrar
aquelas construções, em grandes propriedades do sudeste, logo atrás ou ao lado da
casa-grande. Aquela disposição, analisa Slenes, permitia aos senhores uma maior
vigilância sobre o habitar dos escravizados no barraco e em volta dele, o que não
descartava os interesses destes em escapar do olhar daqueles (SLENES, 2011, p.
183-185).
84
Nessa leitura, a prostituição retratada no conto nos faz pensar que este
pode ser lido ainda enquanto uma metáfora ao caráter exploratório da escravidão
nas Américas, o que abre um diálogo com uma leitura de “Quantos filhos Natalina
teve?”, mais à frente.
O enredo central de “Ana Davenga” passa-se durante algumas horas da
madrugada. A narração sugere já nas primeiras linhas: “As batidas na porta ecoaram
como um prenúncio de samba. O coração de Ana Davenga naquela quase meia-
85
noite, tão aflito, apaziguou um pouco” (EVARISTO, 2016, p. 21). Utilizando o recurso
da memória, Evaristo constrói e dá densidade às personagens, sugerindo a
passagem do tempo em: “Quando a madrugada afirmou, Davenga mandou que
todos se retirassem, recomendando aos companheiros que ficassem alertas”
(ibidem, p. 29). Lemos que ainda naquela madrugada Davenga e Ana, grávida, têm
seu barraco invadido por dois policiais, o que acabou culminando numa disputa de
tiros e na morte do casal e de um policial.
Algumas linhas à frente, após a morte de Ana, de Davenga e de um dos
policiais, o narrador revela a repercussão do “combate” descrito no conto: “Os
noticiários depois lamentavam a morte de um dos policiais de serviço. Na favela os
companheiros de Davenga choraram a morte do chefe e de Ana” (ibidem, p. 30). A
partir dos vocábulos que o narrador utiliza ao descrever o trágico desfecho, a
exemplo de noticiário e favela, fica sugerida uma dimensão temporal presente e o
depois, enquanto elemento marcador de temporalidade, pode sugerir os noticiários
ainda daquele mesmo dia representado no enredo de “Ana Davenga”, nas horas que
se seguiram ao confronto narrado.
Fechando o quadro, o narrador põe em foco uma lembrança de
concentrado valor simbólico, deixando ainda uma última informação sobre Ana: “Em
uma cheia de água, um botão de rosa, que Ana Davenga havia recebido de seu
homem, na festa primeira de seu aniversário, vinte e sete, se abria” (idem, p. 30).
Numa mediação de leitura podemos destacar a idade da personagem.
Através daquele movimento narrativo, a idade sendo revelada precisamente após a
morte das protagonistas, o narrador do conto pode indicar um olhar sensível e
reparador sobre uma trágica característica da violência no Brasil. “Ana Davenga”
documenta um contexto, também presente de maneiras diferentes noutros contos da
coletânea, que tem resultado, sobretudo, na morte das populações brasileiras dentro
da faixa etária de 15 a 29 anos. Numa camada de interpretação temática e
sociológica, podemos ler tal característica em boa parte dos contos de Olhos d’água,
que põem em perspectiva, entre protagonistas e coadjuvantes, personagens dentro
dessa faixa de idade, a exemplo também de Kimbá, em “Os amores de Kimbá”; e,
sobretudo, das diversas personagens de “A gente combinamos de não morrer”, no
qual se lê, a partir da narração da personagem Bica:
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A casa de Neo caiu. Aprontou, dançou! Mais um, que não será o último,
outros virão. Ele, Dorvi, Idago, Crispim, Antonia, Cleuza, Bernadete, Lidinha,
Biunda, Neide, Adão e eu temos ou tínhamos (alguns já se foram) a mesma
idade. Um ano e às vezes só meses variavam o tempo entre a data de
nascimento de um e de outro. Alguns morreram também em datas próximas
(idem, p. 107).
grosso modo, o perfil de 75,7 por cento das vítimas de homicídio no Brasil. Na
década analisada, ao passo que houve uma redução na taxa de homicídio de não
negros (12,9%), no que diz respeito à população negra os números tomaram a
direção oposta, havendo um aumento de 11,5 por cento. De acordo com o
documento, mais que qualquer outro, os dados sobre morte por homicídio revelam a
face e os efeitos mais tristes da violência na sociedade brasileira. Isso se não
consideramos a recente pandemia de COVID-19 e as mais de 515 mil mortes
somente no Brasil, de acordo com veículo oficial de comunicação sobre a
pandemia17, país que concentra 44,3 por cento das mortes na América Latina e
Caribe, segundo informações da Organização Pan-Americana de Saúde 18.
Levando em conta a categoria região e considerando ainda o recorte
racial, o Atlas mostra que os casos de homicídio em 2018 concentraram-se,
sobretudo, no Norte e Nordeste, sendo Roraima (87,5%), Rio Grande do Norte
(71,6%), Ceará (69,5%), Sergipe (59,4%) e Amapá (58,3%) os cinco estados com
maior índice (IPEA, 2020).
Em “Duzu-Querença”, que dá seguimento a “Ana Davenga”, no segundo
parágrafo, o narrador situa temporalmente o enredo apresentando a protagonista
Duzu: “Olhou para trás, viu os companheiros seus estirados, depois do almoço,
contemplando o meio dia.” (EVARISTO, 2016, p. 32). Também sendo construído a
partir do encadeamento entre o presente da narração e movimentos de recordação,
que rememoram experiências que indicam migração, prostituição, fome,
mendicância, a dor da perda de familiares e as tentativas de manter vivos seus laços
afetivos, o conto é encerrado deixando outro indício de temporalidade, dessa vez
focalizando Querença, neta da protagonista, após uma descrição que indica a morte
da avó. O desenlace do enredo também sugere a passagem de poucos minutos ou
horas desde o “meio dia” apresentado no início: “O sol passado de meio dia estava
colado no alto do céu” (idem, p. 37). A narração do conto “Duzu-Querença” pode
desempenhar o papel de síntese das ofensas cotidianas que assolam o conjunto das
personagens apresentadas na obra evaristiana.
Estava chegando uma época em que o sofrer era proibido. Mesmo com toda
dignidade ultrajada, mesmo que matassem os seus, mesmo com a fome
cantando no estômago de todos, com o frio rachando a pele de muitos, com
a doença comendo o corpo, com o desespero diante daquele viver-morrer,
por maior que fosse a dor, era proibido o sofrer. Ela gostava desse tempo.
Alegrava-se tanto! Era o carnaval. (idem, p. 35)
Da janela do apartamento
vejo só barracos do morro
onde moram as rainhas
do carnaval
imponentes rainhas negras
riquíssimas de ritmo e de sexo
Rainhas por três dias alegres
escravas no resto do ano… (TRINDADE, 1999, p. 65)
E a nossa fome se distraía” (ibidem, grifo nosso). A ação de distrair pode evocar
significados como entreter, fazer esquecer ou desviar a atenção de alguém para
outro objeto. Numa camada de interpretação metafórica, esses sentidos permitem
ler na figura da mãe retratada no conto um Brasil que desvia a atenção das pessoas
das realidades mais dramáticas vividas no país e no mundo.
Além desse ponto de vista, uma leitura complementar é proposta por Lélia
Gonzalez em alguns de seus ensaios, especialmente em “Racismo e sexismo na
cultura brasileira”, de 1983. Pouco mais de vinte anos depois do poema de Trindade,
a ativista destaca no carnaval brasileiro uma dimensão “de ultrapassagem dos
limites permitidos pelo discurso dominante, pela ordem da consciência”
(GONZALEZ, 2020, p. 91). De acordo com o texto da intérprete do Brasil, analisando
aquele período histórico, é no carnaval que a mulher negra sai do anonimato para
ocupar o trono exclusivo de rainha.
Não é por acaso que nesse momento [o carnaval brasileiro] a gente sai das
colunas policiais e é promovida a capa de revista, a principal focalizada pela
TV, pelo cinema e por aí afora. De repente, a gente deixa de ser marginal
pra se transformar no símbolo da alegria, da descontração, do encanto
especial do povo dessa terra chamada Brasil (ibidem).
também a mulher negra que habita as periferias brasileiras, quem sustenta nas
mãos, principalmente através da prestação de serviços, sua família e o Brasil. São
Marias, Duzus e Benícias, personagens que podem representar tantas mulheres no
país. Em relação aos homens, companheiros, irmãos e filhos, a intérprete citou, em
meados dos anos 1980, a
Ela [Maria] levava para casa os restos [da festa na casa da patroa]. O osso
do pernil e as frutas que tinham enfeitado a mesa. Ganhara as frutas e uma
gorjeta. O osso, a patroa ia jogar fora. Estava feliz, apesar do cansaço. A
gorjeta chegara numa hora boa. Os dois filhos menores estavam muito
gripados. Precisava comprar xarope e aquele remedinho de desentupir
nariz. Daria para comprar também uma lata de Toddy. As frutas estavam
ótimas e havia melão. As crianças nunca tinham comido melão. (idem, 39-
40, grifo nosso)
crianças e adolescentes [no Brasil] estão comendo muito pouca comida saudável e
muita comida pouco saudável”.19
No decorrer da narrativa de Maria, o narrador do conto apresenta um
conjunto de estados que vulnerabilizam a vida, a exemplo da exposição a
instrumentos que causam perigo e acidentes de trabalho: “Tinha sofrido um corte,
bem no meio [da palma da mão], enquanto cortava o pernil para a patroa. Que coisa!
Faca a laser corta até a vida!” (EVARISTO, 2016, p. 40); a suspeição, criminalização
e violência verbal por parte de alguns passageiros do metafórico ônibus que, além
de expressarem marcas sintomáticas de uma misoginia, legitimam a prática do
racismo e da violência pelo fato de terem sido assaltados: “Negra safada, vai ver
estava de coleio com os dois [homens que assaltaram o ônibus] […] Aquela puta,
aquela negra safada estava com os ladrões!” (ibidem, p. 42).
O testemunho literário retratado em Olhos d’água pode indicar uma
sucessão de fatos que corre ao longo de alguns minutos, a julgar pela viagem de
ônibus que leva a protagonista Maria de volta para casa, permitindo visualizar
situações recorrentes no cotidiano. A dimensão diária pode estar indicada na fala
preventiva do motorista do coletivo diante da iminência de um linchamento contra
Maria: “Calma pessoal! Que loucura é esta? Eu conheço esta mulher de vista. Todos
os dias, mais ou menos neste horário, ela toma o ônibus comigo. Está vindo do
trabalho, da luta para sustentar os filhos…” (ibidem). O caso do linchamento dentro
de um ônibus e a fala do motorista permitem pensar que os passageiros
possivelmente fazem aquele mesmo itinerário com certa frequência, também vindos,
muito provavelmente, de suas atividades diárias, como o trabalho; e que sofrem, tal
qual a protagonista Maria, o aumento do preço da passagem do transporte coletivo.
Levando em consideração a referência à “gorjeta de mil cruzeiros” (idem, p. 41), o
conto pode remeter a um dos períodos históricos de circulação da moeda, entre
1970 e 1986, e com isso abranger outra camada de temporalidade.
Em algumas das análises de Lélia Gonzalez sobre a sociedade brasileira,
a intérprete chama atenção para os linchamentos frequentes durante aquele
período, no início da década de 1980. Segundo Gonzalez, a consumação daqueles
atos poderia ser interpretada como uma manifestação reacionária – desumana,
cataclisma social, simbolizado pelo linchamento sofrido por Maria, o motorista clama
e adverte
na figura do marido. Nesse momento, adquire maior valor simbólico aquele olhar
entre Salinda e a filha, gesto que lemos anteriormente, no capítulo 6, como a
projeção de uma união e solidariedade mútuas em resposta às violências sofridas
em um contexto de controle e constante vigilância. Robert Slenes reforça o aspecto
de transmissão e reinterpretação sugerido por aquele fio.
Aplicada (IPEA), o país não possui uma contagem a nível nacional da “população
em situação de rua”, limitação que pode reforçar ainda mais a invisibilidade social
dessas pessoas no campo das políticas públicas, por exemplo. Um olhar atento para
as ruas urbanas, praças, igrejas, calçadas, canteiros e terminais de ônibus
anunciava o que a nota reúne e revela em números: o crescimento de pessoas
nessas condições, sobretudo nas metrópoles, como é tradicional, mas também nos
municípios de pequeno porte populacional.
Concentrado no período que vai desde setembro de 2012 a março de
2020, a nota estima que a acentuação ocorreu nos intervalos de setembro de 2016 a
março de 2017 (139.720 – 156.898), setembro de 2017 a março de 2018 (164.329 –
183.020), setembro de 2018 a março de 2019 (186.480 – 202.631). Mais
recentemente, outro pico entre setembro de 2019 e março de 2020 (206.691 –
221.869) mostra efeitos da pandemia de Covid-19, conjuntura que agrava a
vulnerabilidade diante dos obstáculos ao acesso à água, à higiene e à alimentação,
por exemplo (NATALINO, 2020), constituindo, do ponto de vista dos perpetradores,
um verdadeiro método de aniquilação física não só dessa parcela de pessoas, mas
do conjunto das populações brasileiras e um crime contra a humanidade.
No recorte por região, o Sudeste concentra mais da metade (124.698) do
total de pessoas registradas em março de 2020, ao lado do Nordeste, com 38.237 e
seguido do Sul, com 33.591. Vale observar que no Norte o aumento de pessoas
moradoras de rua saltou de 5.901, em setembro de 2017, para 7.406, em março de
2018. O documento indica que aquele salto justifica-se por questões fronteiriças,
possivelmente relacionando-se com a corrente de fuga-imigração de uma parte da
população venezuelana para o Brasil, forçada pelo alto índice de desemprego,
aumento dos preços alimentícios e da fome20.
No conto que segue a narrativa de Di Lixão, o narrador focaliza o menino
Lumbiá numa rotina que sinaliza o trabalho infantil: um vendedor de amendoins,
chicletes e flores de rua como alternativa para complementar a renda familiar. Ao
lado disso, o narrador introduz a relação do protagonista com uma chamada
20 Estimativa da população em situação de rua no Brasil (setembro de 2012 a março de 2020) Nota
técnica n° 73. IPEA, Junho de 2020. (Disponível no portal do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada). A estimativa foi levantada a partir de dados de 5.500 municípios. Os números, que se
referem às pessoas registradas no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal,
podem ser maiores, devido à característica muitas vezes dinâmica das pessoas moradoras de
rua. Apesar disso, o documento considera um evidente avanço nos cadastramentos.
103
21 As referências a El dominio del eje en la Europa ocupada aparecem aqui numa tradução livre da
versão em espanhol.
22 As referências à “Ponencia de Madrid” aparecem numa tradução livre do texto na versão em
inglês. O documento pode ser acessado em: (http://www.preventgenocide.org/lemkin/madrid1933-
english.html).
107
de Maria Nilda de Carvalho Mota. Poeta e ativista nascida no Ceará, Dinha migrou
em 1979, ano seguinte ao do nascimento, junto com a mãe, o pai e sete irmãos,
tendo feito parte do movimento de migração rumo ao sudeste que marcou a década
de 1970. A obra foi editada colaborativamente pelos coletivos sociais Núcleo Poder
e Revolução, Coletivo Perifatividade, Edições Um por Todos e Força Ativa. Com
fortes características performáticas dos versos de slam, Zero a zero apresenta-se
enquanto mais um testemunho poético de um genocídio diário-duradouro.
Em termos de mobilização, pode ser citada a “Parem de nos matar!”, de
26 de maio de 2019, no Rio de Janeiro, organizada por moradores(as) de favelas e
apoiada por movimentos da sociedade civil, que objetivava sensibilizar o Brasil e
clamar “pelo fim do genocídio do povo das favelas”. A mobilização foi organizada
também em memória a William de Mendonça Santos, de 42 anos, que trabalhava na
função de gari comunitário no Vidigal (RJ) e que havia sido assassinado no dia 22
de abril daquele ano, durante um tiroteio; Evaldo Rosa dos Santos, de 51 anos,
músico morto durante uma operação do Exército em Guadalupe (RJ) dias antes, em
7 de abril; e o jovem catador Luciano Macedo, de 27 anos, que morreu em 18 de
abril, após ser atingido ao prestar socorro ao músico.
Aqueles casos, que ganharam maior repercussão e sensibilidade da
sociedade civil, exemplificam e revelam o caráter cotidiano do genocídio das
populações negras e brasileiras. Na perspectiva de Barbara Nascimento, integrante
do coletivo Favela no Feminino, uma das organizadoras da mobilização, a iniciativa
estava
a favor de nossas vidas, é para que parem de nos matar, parem de matar a
juventude negra favelada, parem as incursões em horários escolares, parem
de entrar em nossas casas sem mandato, parem de criminalizar nossa
existência.23
Uma criança, antes de fechar violentamente a janela, fez um sinal para que
ela [Zaíta] entrasse rápido em algum barraco qualquer. Um dos
contendores, ao notar a presença da menina, imitou o gesto feito pelo
garoto, para que Zaíta procurasse abrigo. [...] Daí a um minuto tudo acabou.
Homens armados sumiram pelos becos silenciosos, cegos e mudos. Cinco
ou seis corpos, como o de Zaíta, jaziam no chão (ibidem, p. 76, grifo nosso).
pegar para guardar dentro de si, conduzir para local privado ou abrigo e afastar-se
do convívio social (HOUAISS, 2010). A ênfase no verbo recolher, repetido nas duas
últimas estrofes, pode salientar sua relevância para a “transmissão” do ensinamento
lírico que a voz-mulher dirige à geração que a sucede.
O poema “Vozes-mulheres”, nesse sentido, pode conotar uma
condensação de uma característica preventiva encontrada nas falas e gestos das
personagens de Olhos d’água: recorrer e recolher em si, preventivamente, as falas e
os atos danosos no presente, como lê-se nos tempos verbais (“recolhe em si”), para
anunciar e ressoar no futuro (“se fará ouvir”) uma vida liberdade.
Também publicado nos Cadernos Negros ao lado de “Vozes-mulheres”,
os versos de “Eu-mulher” integram aquele poema, sublinhando a relação dialética
eu-nós e a condição de mãe enquanto elementos que traduzem a autoria na
composição literária. O caráter acautelado indicado nas vozes-mulheres líricas e
presente nos narradores de Conceição Evaristo, olha para o tempo antecipando-se a
ações e falas que possam causar dano à vida.
Quando a menina Ayoluwa, alegria de nosso povo, nasceu, foi em boa hora.
Há muito que em nossa vida tudo pitimbava. Os nossos dias passavam
como café sambango, ralo, frio e sem gosto. Cada dia era um sem quê nem
porquê. E nós ali amolecidos, sem sustância alguma para aprumar o nosso
corpo. Repito: tudo era uma pitimba só. Escassez de tudo (EVARISTO,
2016, p. 111).
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