@ 1 Psicanálise e Criminologia
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Psicanálise e
Criminologia:
Estudos Sobre a Delinquência
Tradutora
Yellbin Morote García
2ª edição
2019
Capítulo I
A distinção de Freud
INTRODUÇÃO
I
A Psicanálise aplicada à clínica com delinquentes começou a se
desenvolver paulatinamente junto ao próprio movimento analítico, e
mais especificamente após as guerras mundiais. É certo que a ques-
tão do crime está presente nos textos de Freud, todavia, este não se
ocupou diretamente da delinquência (exceto num breve artigo), sen-
do suas anotações sobre o tema, escassas e secundárias. Entretanto,
é possível encontrar em sua obra algumas conceituações e – quiçá
– precárias referências não divergentes.
No prólogo à obra de Aichhorn Verwahrloste junged de 1925,
Freud faz uma clara distinção entre a Psicanálise do neurótico e a
reeducação do jovem desamparado de um lado, e o delinquente im-
pulsivo, do outro (Freud, [1925] 1999: 298). Esta justa apreciação
manifesta cuidadosamente a profunda experiência de Aichhorn com
delinquentes juvenis. De fato, como se verá na segunda parte deste li-
vro, a partir de sua prática inaugural com jovens delinquentes, a figu-
ra de Aichhorn será decisiva na história da Psicanálise em relação à
terapêutica do adolescente. Por outro lado, no breve prólogo de livro
sobre o árduo labor terapêutico, educativo e político de Aichhorn,
Freud não deixa de fazer menção à piada sobre os três ofícios impos-
síveis: educar, curar e governar (Freud, [1925] 1979: 296).
Desde outra perspectiva, mais amparada, problemática e es-
trutural na Moral sexual cultural e o nervosismo moderno de 1908,
Freud faz uma nota à margem da temática central: “Quem, em conse-
quência de sua constituição insubmissa, não possa acompanhar esse
sufoco do pulsional enfrentará a sociedade como ‘criminoso’, como
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‘outlaw’ [‘fora da lei’], toda vez que sua posição social e suas real-
çadas aptidões não lhe permitam impor-se na condição de grande
homem, de ‘herói’” (Freud, [1908] 1979a). Esta concepção paradoxal
de herói criminoso supõe uma ideia não patológica do delinquente
que encontra uma correlação em duas teorias sociológicas:
1. A hipótese do delinquente com destacadas aptidões que lhe
permitem se transformar em herói resulta análoga ao “re-
belde funcional” de Émile Durkheim, e ao que Robert Merton
situa como modo de adaptação ao sistema de “tipo inova-
ção”. O rebelde funcional não é um delinquente absoluto, é
qualificado como tal pelas instituições porque questiona a
divisão imposta do trabalho e as desigualdades sociais que
a acompanham. Assim também, a rebelião que instiga é fun-
cional porque ilustra a falta de correspondência entre as ca-
pacidades individuais e a assunção de papéis sociais. O pro-
tótipo do criminoso herói que abre o caminho das mudanças
é Sócrates: um homem que sustenta ideias ilegítimas que
Durkheim denomina de “consciência coletiva”. Conforme o
direito ateniense, Sócrates era um delinquente e sua conde-
nação foi justa; no entanto, para Durkheim é um herói que
antecipa uma moral e uma fé novas (a liberdade de pensa-
mento) que se faziam necessárias na Atenas daquela época
(Durkheim, 2003: 99). Em Teoria e estruturas sociais, Merton
apresenta o inovador como uma forma de adaptação antis-
social a uma estrutura cultural como a norte-americana, na
que se promovem imperativamente objetivos exitistas e de
trunfo (o sonho americano) mas que distribui os meios de
realização de forma desigual (Merton, 1964: 150-158).
Por outro lado, segundo Foucault, o criminoso herói apa-
rece após o ano de 1840 no contexto burguês ou peque-
no burguês junto à constituição de uma estética que faz de
Lacenaire o protótipo deste novo criminoso. O criminoso
herói não é nem popular e nem aristocrático (é sim um ini-
migo das classes pobres). Os pais de Lacenaire fracassaram
nos negócios, mas ele foi bem educado de acordo com os
valores da burguesia: foi ao colégio, sabia falar, ler e escre-
ver, era lúcido e inteligente e por isso possuía os recursos
Psicanálise e criminologia: estudos sobre a delinquência 25
INTRODUÇÃO
Realizar um estudo sobre a delinquência torna necessária uma
breve indagação sobre as ambíguas categorizações que dão o títu-
lo ao presente capítulo. Pode-se adiantar desde já, que a escolha de
formar um ensamble entre psicopatias, carateropatias e perversões,
obedece estritamente à necessidade de diferenciá-las das delinquên-
cias que compõem o fundamento deste livro.
A breve exposição sobre psicopatia não pressupõe nenhuma
pesquisa que possa aportar algo novo à tradição e evolução psiquiá-
tricas que têm desembocado basicamente no transtorno antissocial
da personalidade. Inversamente, a noção de carateropatia possui
uma conotação de origem freudiana, e como sua etimologia indica
relaciona-se com os traços de caráter. Por último, realizar um recor-
rido pela perversão e as perversidades mereceria um volume à parte
começando pelos gregos, passando por toda a filosofia e a psiquiatria
até chegar à psicologia e à psicanálise.
Por outro lado, a básica reconstrução conceitual das categorias
psiquiátricas sobre a psicopatia, de modo algum implica numa dialé-
tica linear na qual os termos chegam a sobrepor-se ou substituir-se
trás uma categoria do tipo ideal. Contrariamente à Sociedade Suíça
de Psiquiatria de sua época, Schneider entende que o termo “psico-
pata” – e outros conceitos clínicos amplamente utilizados – encon-
tra-se em retrocesso e decadência quanto a sua denominação, po-
rém, não quanto a sua efetiva existência (Schneider, 1962: 77).
Por último, este capítulo pode ser lido a partir de uma perspec-
tiva diacrônica tomando como eixo o tratamento teórico e clínico de
um mesmo problema “delituoso”. Em sendo assim, a série “psicopa-
tias, carateropatias e perversões” teria mais valor como história de
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1. PSICOPATIAS
INTRODUÇÃO
Em conferência proferida em 1906 no seminário de A. Löffler
(professor de jurisprudência da Universidade de Viena), Freud dis-
tingue “responsabilidade subjetiva” de “responsabilidade jurídica”,
ao advertir aos juristas presentes sobre o falso testemunho vinculado
ao sentimento de culpa. Assinala também, que o método psicanalíti-
co não pode ser validado como elemento probatório numa sentença,
nem pode servir de ferramenta jurídica, e tampouco o inconsciente
pode revelar uma verdade certa para o direito (Freud, [1906] 1979).
Por outro lado, também em 1906 – ano significativo para a psicanáli-
se –, Freud discorre sobre os trabalhos de Jung e Bleuler (em Zurich)
e os de Wertheimer e Klein (na Alemanha) sobre as provas da asso-
ciação, com o objeto de estabelecer legalmente a verdadeira nature-
za dos fatos requeridos pela lei (Zilboorg, 1956). O cineasta Ettore
Scola mostra a tese de Freud sobre o falso testemunho em seu filme
traduzido ao espanhol como Crónica de un jóven pobre, onde um dos
personagens pensa a execução de um assassinato que não chega a
cometer, não obstante, acaba sofrendo uma condenação porque teve
a intenção e o desejo de matar.
INTRODUÇÃO
O conceito de acting out em Freud, e para o conjunto de autores
pós-freudianos, tem resultado ser o mais discutido e ambíguo, mas
ao mesmo tempo tem sido reconhecido como uma peça fundamental
da psicanálise.
Uma prova da imprecisão do acting out encontra-se na dúvida
acerca da origem do termo na obra de Freud, posto alguns autores
considerarem que aparece em Psicopatologia da vida quotidiana de
1901, embora a maioria aluda o termo à obra Fragmento de análise
de um caso de histeria de 1905.
De fato, no primeiro texto, o capítulo IX é intitulado “Atos sin-
tomáticos e casuais”, os quais posteriormente seriam chamados de
acting out (Freud, [1901] 1990). Não obstante, trata-se de ações
casuais que possuem um propósito inconsciente, consideradas por
Freud como ações sintomáticas em geral, e que não podem identi-
ficar-se como acting out. A referência que mais sobressai do termo
acting out, é o termo alemão agieren que se encontra no epílogo do
“caso Dora”: “De tal modo, atuou [agieren] um fragmento essencial
de suas recordações e fantasias, ao invés de reproduzi-lo na cura”
(Freud, [1901-1905] 1978: 104). A respeito, faz-se conveniente des-
tacar que o verbo usado em Psicopatologia da vida quotidiana, não é
o clássico agieren do “caso Dora”, mas a palavra handeln que também
significa atuar. Como se verá posteriormente, esta primeira distinção
delineia um problema essencial: definir se o acting out é ou não um
ato sintomático.
Em Recordar, repetir e elaborar de 1914, Freud introduz o con-
ceito de compulsão de repetição para referir-se ao fenômeno trans-
ferencial, e a relação entre recordação e repetição torna-se mais
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