Artigo Bombal
Artigo Bombal
Artigo Bombal
ABSTRACT: We would like to present throughout this paper the Chilean writer
María Luisa Bombal, still almost unknown to the Brazilian academic public and
common readers. Her work, brief and stirring emerged in the Chilean literary map
as one of its most important spots. Her tale “The tree”, from 1935, holds its due
place in many Latin American Contemporary short story anthologies. I hope to
establish a parallel between her and Clarice Lispector´s first production, although
some distances between them have to be recognized. These two Latin American
authors´ s trajectories never crossed during their live times, even though their
biographies led them parallel roads. Among their characteristic themes, motives
and procedures one can draw a line that joins them in a surprising and happy
manner.
KEY-WORDS: Chilean Literature; Brazilian Literature; Comparative Literature;
Feminine Literature.
a cada nova leitura), parecia se perfilar a presença difusa de outra leitura que,
embora feita em outro espaço linguístico e outro contexto geográfico, insistia em
se imiscuir ali, persistindo em propor algo que hoje entendo como um diálogo de
sombras.
No centro dos devaneios da jovem Joana, elaborados por meio de
cenas entrecortadas que pulavam em ritmo de um quadro cubista, indo de sua
infância junto da máquina de escrever do pai até a adolescência, quando tentava
mitigar a dor da súbita perda desse pai com impulsos de maldade e pequenos
desajustes que escandalizavam as expectativas da família burguesa, eu escutava
ecos de uma outra mocinha que também por meio da rememoração de episódios
partidos de sua infância e adolescência desajustadas ensaiava um sentido para
sua vida adulta. Assim, sentada na poltrona de uma sala de concertos, enquanto o
pianista tocava uma sequencia de solos de Mozart, Beethoven e Chopin, Brígida
se transportava em direção a seu passado, pulando de episódio em episódio,
partindo da infância junto do pai viúvo até chegar ao presente de um casamento
enfadonho e estéril do qual acabava de se desfazer.
Mas não era somente do lado do assunto, que essas reverberações de
María Luisa Bombal, a escritora chilena, iam se instalando em minha leitura de
Lispector. Havia um ritmo, uma afinidade na poetização da linguagem; um uso
similar de mecanismos comparativos com abundancia de metáforas, analogias,
comparações diretas e símiles, além de repetições e acumulações frequentes que
davam conta de um ritmo poético e dessa atmosfera linguística estranha em
ambas, avessa a lugares comuns.
Era possível descobrir também uma cumplicidade no abuso de silêncios
e até da própria palavra “silêncio”: “silencio, um grande silencio, um silencio de
anos, de séculos, um silencio aterrador que começava a crescer no quarto e
dentro de minha cabeça”, constatava a protagonista do romance A última nevoa;
ao passo que em Perto do coração selvagem ”o silencio na sala se prolongava em
espera do que pudessem dizer” ou “bastava existir, de preferencia parada e
silenciosa, para sentir a marca, por Deus, a marca da existência” ou ainda “o
Revista Araticum 26
Programa de Pós-graduação em Letras/Estudos Literários da Unimontes
v.7, n.1, 2013. ISSN: 2179-6793
silencio das cadeiras imóveis e finas se comunicou com seu cérebro, esvaziando-
o lentamente...”. Essas formas de dizer e de dar voz ao silencio contrastavam, de
modo parecido nas duas escritas, com os múltiplos barulhos do entorno,
provocando um efeito melódico de impacto. De fato, galopes de cavalo, galhos
batendo nas janelas, o repicar da chuva sobre o telhado ou o tique-taque do
relógio ou o rumor do mar ao longe emergem e dialogam com os muitos silêncios,
combinados e alternados na construção de trechos verdadeiramente sonoros,
rítmicos e musicais.
Muitos anos depois, quando me embarquei na tradução ao português
de María Luisa Bombal entendi que isso que num primeiro momento havia
experimentado como o eco de uma leitura sobre a outra era na verdade um
encontro entre ela e Clarice Lispector. Minha tradução foi avançando e se
construindo a partir da convicção de estar aproximando-as e de estar servindo de
elo hipotético entre elas.
Penso que esse encontro à revelia das duas se deu, sobretudo, entre a
primeira produção da escritora brasileira (falo de Perto do Coração selvagem e de
alguns contos do livro Laços de família1) e grande parte da exígua produção de
Bombal (em particular, seus romances A última névoa e A amortalhada e o conto
“A árvore”). Deixemos claro desde já que as duas nunca se encontraram de fato,
embora pudessem tê-lo feito, posto que foram contemporâneas, ainda que Bombal
(1910-1980) fosse dez anos mais velha que Lispector (1920-1977). Tampouco há
nenhuma notícia de que tenham lido uma à outra. Também é preciso destacar
muitas diferenças de percursos e de estilos: além de dois romances e oito
pequenas narrativas que publicou entre 1935 e 1946, e considerando que sua
morte só veio a acontecer em 1980, podemos dizer que María Luisa Bombal
permaneceu a segunda metade de sua vida sem produzir, a não ser uma breve
crónica lá pelo final dos anos cinquenta2. Sua frustração foi arrastando-a como
numa vertigem para o alcoolismo. Morreu aguardando receber no Chile um dia o
1
Em particular, os contos “Amor” e “A imitação da rosa”.
2
“La maja y el ruiseñor” (1956).
Revista Araticum 27
Programa de Pós-graduação em Letras/Estudos Literários da Unimontes
v.7, n.1, 2013. ISSN: 2179-6793
Premio Nacional de Literatura que nunca veio. Com efeito, a sua é uma biografia
repleta de episódios romanescos e por vezes trágicos que já foram amorosa e
poeticamente descritos3.
Por sua vez, sabemos que Clarice estreava em 1944 com Perto do
Coração selvagem e não pararia de escrever e de publicar até sua morte, com
apenas 57 anos. Sem contar com a obra publicada postumamente foram no total,
doze livros, somados aí romances e coletâneas de contos, além das muitas
crónicas que redigiu para jornais e revistas. Também houve em sua vida
momentos fortes, como o incêndio que deixaria sérias sequelas em sua mão
direita, tudo isso documentado em mais de uma oportunidade por mais de um
especialista, biógrafo e admirador. Recebeu prêmios e reconhecimentos nacionais
e internacionais que a consagraram com razão como uma das narradoras mais
notáveis e originais do século XX na América Latina. Sua obra foi alcançando com
o tempo uma sofisticação experimental que a aproximaria do existencialismo. A
linguagem, por outro lado, irá receber em livros como Água viva (1973) um
tratamento próximo da fenomenologia husserliana, dilacerando a relação
convencional entre significado e significante, num movimento na direção do pré-
linguístico, pré-expressivo do vivido e da cosa.
Mas já nos seus itinerários biográficos é possível detectar certas
veredas paralelas que as levaram, por exemplo, a se ausentar de seus países de
origem por longas temporadas, forçando-as a manter uma relação estrangeira
com a própria língua. No mesmo ano de 1944, as duas casavam e passavam a
residir vários anos no exterior. Lispector voltaria ao Brasil, já separada, em 1957 e
Bombal regressaria dos Estados Unidos ao Chile, depois de viúva, em 1973,
meses antes do golpe militar.
O plurilinguismo e a familiaridade com vários idiomas, decorrentes
dessas experiências internacionais, determinaram, entre outras coisas, a maior
aproximação com outras literaturas. Ambas leram Joyce, Faulkner, Kafka, Woolf,
Mann, Proust e Mansfield e certamente muitos outros a respeito dos quais
3
GLIGO, 1984.
Revista Araticum 28
Programa de Pós-graduação em Letras/Estudos Literários da Unimontes
v.7, n.1, 2013. ISSN: 2179-6793
nenhuma fez menção sequer. As duas evitavam mencionar suas leituras com uma
mesma dose de anti-intelectualidade e de desprezo pelo eruditismo. Rara vez
falavam ou escreveram de literatura, a não ser para refletir sobre os próprios
métodos e processos de criação, o que em Bombal também foi raríssimo.
As duas se afastaram de modo veemente de todas as modas e grupos
literários, rejeitando inclusive vínculos que resultavam óbvios. Como se a mera
possibilidade de uma relação intertextual fosse para elas intolerável. Circulam
nesse sentido algumas anedotas que permitem continuarmos imaginando este
diálogo de sombras, como por exemplo, a evidente inscrição da produção de
Bombal e de Lispector numa linhagem próxima à de Katherine Mansfield. Pois
bem, cada vez que elas se enfrentaram a essa evidencia, as duas esquivaram-se
com a mesma ênfase. Clarice, alegando que nunca tivera guia nenhum e que
como membro ativo de uma biblioteca pública ia escolhendo nomes de autores por
ordem alfabética e que desconhecia Mansfield até muito avançado seu itinerário
produtivo4. Bombal, diante da pergunta sobre a coincidência de títulos entre “The
apple tree” da Mansfield e seu famoso conto, “El árbol” respondia que não havia
nenhuma conexão, afirmando que “hay títulos que son de dominio público”.5
A fluidez em outros idiomas favoreceu, por outro lado, o acesso de
ambas às traduções de seus livros. As duas foram extremamente cuidadosas na
revisão e na apreciação dessas versões. Diante do que considerou uma
verdadeira aberração, Bombal mandou retirar de circulação toda uma edição do
seu segundo romance, A Amortalhada, em tradução ao inglês. Ela mesma, então,
com a ajuda de seu marido Fal de Saint Phalle, o traduziu com o título de The
shrouded woman, publicado na Inglaterra, em 1948. Lispector, por sua vez,
escrevia em 1954, de Washington, comentando a tradução ao francês de Perto do
Coração Selvagem: ”...é extremamente ruim. Preferiria que o livro nunca tivesse
sido publicado na França para sair dessa forma, sem correções”.6 O cuidado com
4
VARIN, 1987.
5
GALVEZ LIRA, 1996.
6
Apud. BORELLI, 1981.
Revista Araticum 29
Programa de Pós-graduação em Letras/Estudos Literários da Unimontes
v.7, n.1, 2013. ISSN: 2179-6793
a forma de seus textos, com o tom, o ritmo, a sonoridade da prosa que é possível
verificar a cada passo revela-se igualmente intenso nesse afã por conseguir
mantê-los na língua de chegada.
Ao deixarmos um pouco de lado o anedotário biográfico para adentrar
na ficção verificamos também que todas essas experiências estrangeiras,
inclusive a segunda Grande Guerra, ficam do lado de fora. Considerando que
Lispector estava em Itália, em 1945, e que Bombal morava nos Estados unidos
desde 1944, a omissão de qualquer alusão à contingencia chama mais a atenção.
Mas a verdade é que pouco ou nada disso é registrado em suas páginas de ficção
e suas produções se afastam do factual da história para privilegiar o filtro da forma
poética.
Embora seja possível detectar certa Buenos Aires e a paisagem rural
argentina, fundidas com a chilena, como acontece em A última névoa, os espaços
dos que fala Bombal (açudes, parreiras, casarões) estão aí num sentido
bachelardiano. Não são lugares físicos concretos e sim de arquétipos
incorporados à memória particular e subjetiva das protagonistas. Em Lispector há
uma evidente preferência por espaços urbanos cujo referente remete a uma Rio
de Janeiro difusa, percebida como um lugar impessoal, de muitos e de ninguém. A
metrópole é o cenário da solidão contemporânea em contraste com a profusão de
estímulos visuais e auditivos que dela mesma provêm. Com Bombal e Lispector
estamos diante de uma completa ausência de `cor local` que convida para o
universal. Os espaços são impregnados de um Eu onipresente cuja percepção
íntima e subjetiva capta o mundo ao redor. Trata-se de narrativas ensimesmadas,
voltadas sobre si mesmas, no exercício da introspecção.
Com seus romances de estreia, Bombal e Lispector inovaram,
romperam esquemas e se aventuraram na criação poética para se introduzir na
literatura latino-americana como duas alternativas de renovação formal7. Estamos
7
Os primeiros críticos já apontaram em ambos casos para essa novidade: ver Amado
Alonso e Ricardo Latcham, no caso de Bombal, e Alvaro Lins e Antonio Candido, no
caso de Lispector.
Revista Araticum 30
Programa de Pós-graduação em Letras/Estudos Literários da Unimontes
v.7, n.1, 2013. ISSN: 2179-6793
em Lispector:
A moça ri mansamente de alegria de corpo. Suas
pernas delgadas, lisas, os seios pequenos brotaram da água.
Ela mal se conhece, nem cresceu de todo, apenas emergiu
da infância. Estende uma perna, olha o pé de longe, move-o
terna, lentamente como uma asa frágil. Ergue os braços
acima da cabeça, para o teto perdido na penumbra, os olhos
fechados, sem nenhum sentimento, só movimento. O corpo
se alonga, se espreguiça, refulge úmido na meia escuridão –
é uma linha tensa e trêmula. Quando abandona os braços de
novo se condensa, branca e segura. Ri baixinho, move o
longo pescoço de um lado a outro, inclina a cabeça para trás
–a relva é sempre fresca, alguém vá beijá-la, coelhos macios
e pequenos se agasalham uns aos outros de olhos
fechados.- Ri de novo, em leves murmúrios como os da
água. Alisa sua cintura, os quadris, sua vida. 9
8
BOMBAL, 2013, p. 20.
9
LISPECTOR, 1980, pp. 68-69.
Revista Araticum 33
Programa de Pós-graduação em Letras/Estudos Literários da Unimontes
v.7, n.1, 2013. ISSN: 2179-6793
REFERÊNCIAS
ALONSO, Amado. “Aparición de una novelista” (1936) em María Luisa Bombal
Caridad Tamayo Fernández e Pedro Simón (ed.), La Habana: Arte y Literatura,
2008.
BOMBAL, María Luisa. Obras Completas. Lucía Guerra Cunningham (Introdução
y recopilação), Santiago: Andrés Bello, 1996.
BOMBAL, María Luisa. A última névoa. (tradução Neide T. Maia González), São
Paulo: DIFEL, 1985.
BOMBAL, María Luisa. A última névoa. (tradução e posfácio Laura Janina
Hosiasson), São Paulo: Cosac & Naify, 2013.
BORELLI, Olga. Clarice Lispector. Esboço para um possível retrato. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
CANDIDO, Antonio. “No raiar de Clarice Lispector”(1944), em Vários escritos.
São Paulo: Duas Cidades, 1977.
Revista Araticum 38
Programa de Pós-graduação em Letras/Estudos Literários da Unimontes
v.7, n.1, 2013. ISSN: 2179-6793
GÁLVEZ LIRA, Gloria. “Entrevista con María Luisa Bombal” (1979) em Obras
Completas (Introdução e recopilação Lucía Guerra Cunningham). Santiago:
Andrés Bello, 1996.
GLIGO, Ágata. María Luisa. Santiago: Andrés Bello, 1984.
LATCHAM, Ricardo. “La última niebla” (1935) em María Luisa Bombal. Caridad
Tamayo Fernández e Pedro Simón (ed.), La Habana: Arte y Literatura, 2008.
LINS, Álvaro. “Romance lírico” (1944) em Os mortos de sobrecasaca. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.
LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira,
1980.
LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.
LISPECTOR, Clarice “A lição de piano” em A descoberta do mundo. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1984; pp. 57-59.
MENDES DE SOUZA, Carlos. Clarice Lispector: figuras da escrita (2000). Rio de
Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2012.
VARIN, Claire. Rencontres brésiliennes. Quebec: Trois, 1987.