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e Subjetividade: as culturas
como patrimônios
Patrimônio s. m. (...) 1. herança familiar 2. conjunto dos bens familiares 3. fig. Grande
abundância; riqueza; profusão (p. artístico) 4. bem ou conjunto de bens naturais
ou culturais de importância reconhecida num determinado lugar, região, país, ou
mesmo para a humanidade, que passa(m) por um processo de tombamento para
que seja(m) protegido(s) e preservado(s) (...) 5. JUR. Conjunto dos bens, direitos
e obrigações economicamente apreciáveis, pertencentes a uma pessoa ou a uma
empresa (...) (Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa).
I.
São muitos os estudos que afirmam que a categoria “patrimônio cultu-
ral” constitui-se em fins do século XVIII, juntamente com os processos
de formação dos Estados nacionais. O que não é incorreto. Omite-se no
entanto o seu caráter milenar e sua ampla distribuição geográfica. Ela não
é simplesmente uma invenção estritamente moderna. Está presente no
mundo clássico, na idade média e a modernidade ocidental apenas impõe
os contornos semânticos específicos que ela veio a assumir (Fumaroli 1997:
101-116). Podemos dizer que, enquanto uma categoria de pensamento,
ela se faz presente mesmo nas chamadas “culturas primitivas”. Estamos
provavelmente diante de uma categoria extremamente importante para
a vida social e mental de qualquer coletividade humana.
Evidentemente, nem todas as sociedades ou culturas humanas consti-
tuem, de forma dominante, patrimônios acumulados e retidos com finali-
dades de troca mercantil. Muitas são aquelas cujo processo de acumulação
de bens tem como propósito a sua redistribuição ou mesmo a sua ostensiva
destruição, como nos casos clássicos do Kula trobriandês e do Potlatch no
noroeste americano (Malinowski 1976 [1922]; 2003 [1950]: 185-318). Nesses
contextos, cabe assinalar, existem os chamados “bens inalienáveis”, cuja
natureza é definida pela impossibilidade social e simbólica de circula-
rem amplamente, desenhando assim hierarquias fundamentais (Weiner
1992).
O que é preciso colocar em foco nessa discussão, penso, é a possibi-
lidade de se transitar analiticamente com essa categoria entre diversos
mundos sociais e culturais, iluminando-se as diversas formas que pode
assumir. Em outras palavras: como é possível usar a noção de patrimônio
em termos comparativos? Em que medida pode nos ser útil para também
entender experiências estranhas à modernidade?
II.
Ressonância
A noção de patrimônio confunde-se com a de propriedade. Mais pre-
cisamente com uma propriedade que é herdada, em oposição àquela que
é adquirida. A literatura etnográfica está repleta de exemplos de culturas
nas quais os bens materiais não são classificados como objetos separados
{josé reginaldo santos gonçalves} 213
dos seus proprietários. Esses bens, por sua vez, nem sempre possuem atri-
butos estritamente utilitários. Em muitos casos, servem evidentemente a
propósitos práticos, mas possuem, ao mesmo tempo, significados mágico-
religiosos e sociais, constituindo-se em verdadeiras entidades, dotadas de
espírito, personalidade, vontade, etc. Não são desse modo meros objetos.
Se por um lado são classificados como partes inseparáveis de totalidades
cósmicas e sociais, por outro lado afirmam-se como extensões morais e
simbólicas de seus proprietários, sejam estes indivíduos ou coletividades,
estabelecendo mediações cruciais entre eles e o universo cósmico, natural
e social. Marcel Mauss assinalou certa vez que: “...se a noção de espírito
nos pareceu ligada à de propriedade, inversamente esta liga-se àquela.
Propriedade e força são dois termos inseparáveis; propriedade e espírito
se confundem...” (2003 [1950]: 136-137). Essa categoria de objetos não apre-
senta assim fronteiras classificatórias muito definidas, sendo ao mesmo
tempo objetos e sujeitos, materiais e imateriais, naturais e culturais, sa-
1 Um exemplo consis- grados e profanos, divinos e humanos, masculinos e femininos, etc.
te naquela categoria
de objetos que Victor Nas análises dos modernos discursos do patrimônio cultural, a ênfase
Turner, num estudo
clássico, chamou tem sido posta no seu caráter “construído” ou “inventado”. Cada nação,
de “sacra”: objetos
materiais marcados
grupo, família, enfim cada instituição construiria no presente o seu pa-
pela ambigüidade e trimônio, com o propósito de articular e expressar sua identidade e sua
usados nos momen-
tos liminares dos ritos memória. Esse ponto tem estado e seguramente deve continuar presente
de passagem. Ver “Be-
twixt and between: nos debates sobre o patrimônio. Ele é decisivo para um entendimento
the liminal period in
Rites de passages”
sociológico dessa categoria. Um fato, no entanto, parece ficar numa área
(1967: 93-111).
de sombra dessa perspectiva analítica. Trata-se daquelas situações em
que determinados bens culturais, classificados por uma determinada
agência do Estado como patrimônio, não chegam a encontrar respaldo
ou reconhecimento junto a setores da população. O que essa experiência
de rejeição parece colocar em foco é menos a relatividade das concep-
ções de patrimônio nas sociedades modernas (aspecto já excessivamente
sublinhado), e mais o fato de que um patrimônio não depende apenas
da vontade e decisão políticas de uma agência de Estado. Nem depende
exclusivamente de uma atividade consciente e deliberada de indivíduos
mória e a história (tais como o patrimônio, as coleções, os museus, os literários, onde o autor
distingue o processo
monumentos, os arquivos), opera-se um trabalho cuidadoso de elimi- de ressonância de um
determinado te x to
nação das ambigüidades. Substituem-se categorias sensíveis, ambíguas em outro na forma
de “inspiração” ou de
e precárias (por exemplo, cheiro, paladar, tato, audição) por categorias “citação”, ver o artigo
abstratas e com fronteiras nitidamente delimitadas com a função de re- “Ressonâncias” de An-
tonio Candido (2004:
{josé reginaldo santos gonçalves} 215
insinua, à nossa inteira revelia, em nossas práticas e representações.
Desse modo, o trabalho de construção de identidades e memórias co-
letivas não está evidentemente condenado ao sucesso. Ele poderá, de
vários modos, não se realizar. Um texto de Marcel Proust pode talvez
iluminar esse ponto:
“É assim com nosso passado. Trabalho perdido procurar evocá-lo, todos os esforços
de nossa inteligência permanecem inúteis. Está ele oculto, fora de seu domínio e de
seu alcance, em algum objeto material (na sensação que nos daria esse objeto mate-
rial) que nós nem suspeitamos. Esse objeto, só do acaso depende que o encontremos
antes de morrer, ou que não o encontremos nunca.” (1998: 48)
III.
Materialidade
Outro ponto importante a ser considerado nessa discussão é o fato de
que o chamado patrimônio sempre foi e é “material”. Tanto é assim que
foi necessário, nos discursos contemporâneos, criar a categoria do “imate-
rial” ou do “intangível” para designar aquelas modalidades de patrimônio
que escapariam de uma definição convencional limitada a monumentos,
prédios, espaços urbanos, objetos, etc. É curioso, no entanto, o uso dessa
noção para classificar bens tão tangíveis e materiais quanto lugares, fes-
tas, espetáculos e alimentos.
{josé reginaldo santos gonçalves} 217
De certo modo, essa noção expressa a moderna concepção antropo-
lógica de cultura, na qual a ênfase está nas relações sociais, ou nas re-
lações simbólicas, mas não especificamente nos objetos materiais e nas
técnicas. A categoria “intangibilidade” talvez esteja relacionada a esse
caráter desmaterializado que assumiu a moderna noção antropológica
de “cultura”. Ou, mais precisamente, ao afastamento dessa disciplina, ao
longo do século XX, em relação ao estudo de objetos materiais e técnicas
(Schlanger 1998).
3 Para um uso analítico
Um dos possíveis corretivos proporcionados pelo uso analítico da ca-
inovador da catego- tegoria “patrimônio” em relação às teorias antropológicas seja talvez o
ria “materialidade” no
contexto da história colocar em primeiro plano a materialidade da cultura. Não há como falar
literária ver o impor-
tante artigo de Hans em patrimônio, sem falar de sua dimensão material.
Gumbrecht “O campo
não-hermenêutico e Mas, o que é importante considerar é que se trata de uma catego-
a materialidade da
comunicação” (1998
ria ambígua e que na verdade transita entre o material e o imaterial,
[1992]: 137-151).
reunindo em si as duas dimensões. O material e o imaterial aparecem
de modo indistinto nos limites dessa categoria. A noção de patrimônio
cultural desse modo, enquanto categoria do entendimento humano, na
4 Vale sublinhar que verdade re-materializa a noção de “cultura” que, no século XX, em suas
a categoria da “ma-
terialidade”, con- formulações antropológicas, foi desmaterializada em favor de noções
cebida nos termos
da oposição entre mais abstratas, tais como estrutura, estrutura social, sistema simbó-
matéria e espírito
especialmente no
lico, etc.
contexto da cultura
popular, pode ser
Um autor brasileiro que elabora em sua obra uma concepção peculiar
entendida como
do patrimônio cultural assinala a importância do que ele chama “elemen-
uma dimensão
elementar, ligada tos humildes e de uso cotidiano”. Em seu livro Rede-de-Dormir: um estudo
não só aos objetos
materiais mas aos etnográfico, publicado na década de 50, Luis da Câmara Cascudo assinala
chamados fatos bá-
sicos da existência, a inexistência de estudos sobre esse objeto e comenta:
aos sentimentos, às
paixões e ao corpo
humano, sobretudo
“Certos temas dão prestígio ao pesquisador, e outros exigem uma prodigiosa re-
suas partes inferio- tórica para valorizá-los. Um livro sobre educação, finanças, economia, assistência
res (Bakhtin 1993).
social, higiene, nutricionismo, empresta ao autor um ar de competência severa,
de idealismo prático, de atenção aos ‘altos problemas’. Quem vai se convencer da
necessidade de uma pesquisa etnográfica sobre a rede-de-dormir, a rede que nunca
mônios”, na medida em que, pela sua ressonância junto a grande parte da alimentação, as rela-
ções de vizinhança,
população brasileira, realizam mediações importantes entre o passado expressões populares,
meios de trabalho e de
e o presente entre o imaterial e o material, entre a alma e o corpo, entre transporte como a jan-
gada, e outros.
outras.
Evidentemente as monografias clássicas da antropologia estão re-
pletas de dados sobre objetos materiais e seus usos. Seu entendimento
entretanto, a partir das categorias teóricas dessa disciplina, tende a ser
concebido a partir de suas funções sociais ou de suas funções simbólicas,
deixando em segundo plano a especificidade, a forma e a materialidade
desses objetos e de seus usos por meio de técnicas corporais. O fato im-
portante a considerar é que, se nos colocarmos do ponto de vista nativo, a
vida social não seria possível sem esses objetos materiais e sem as técnicas
corporais que eles supõem. O que seria o kula sem os colares, braceletes,
sem as canoas e todo o conjunto de técnicas necessárias à sua construção
e ao seu uso?
É possível que a categoria do patrimônio, tal como a estamos explo-
rando, sublinhe, entre outras, essa dimensão material da vida social e cul-
tural. E, ao lado dessa dimensão material, é preciso assinalar a dimensão
fisiológica, ou mais precisamente, o uso de técnicas corporais. Objetos
sempre implicam em usos determinados do corpo. Afinal, pergunta Mar-
cel Mauss: o que é um objeto se ele não é manuseado?. Objetos materiais 6 “Car ce qui est vrai
des fonctions spécia-
e técnicas corporais, por sua vez, não precisam ser necessariamente en- les des organes d´un
vivant est encore plus
tendidos como simples “suportes” da vida social e cultural (como tendem vrai, e t même vrai
d´une tout autre vérité
a ser concebidos em boa parte da produção antropológica). Mas podem des fonctions et fonc-
ser pensados, em sua forma e materialidade, como a própria substância tionnements d´une
société humaine. Tout
dessa vida social e cultural. Muitos estudos, enfatizam corretamente o en elle n´est que rela-
tions, même la nature
fato de que os objetos fazem parte de um sistema de pensamento, de um matérielle des chôses;
un outil n´est rien s´il
sistema simbólico, mas deixa em segundo plano o fato de que eles exis- n´est pas manié” (Mar-
tem na medida em que são usados por meio de determinadas “técnicas cel Mauss 1969 [1927]:
214).
{josé reginaldo santos gonçalves} 219
corporais” em situações sociais e existenciais (e não apenas em termos
conceituais e abstratos). Eles não são apenas “bons para pensar”, mas
igualmente fundamentais para se viver a vida cotidiana. Desse modo, é
necessário pesquisar como, por exemplo, as roupas são produzidas, como
são adquiridas, e sobretudo como são usadas, por meio de quais técnicas
corporais, como se desfazem das roupas, como elas deixam de ser usadas,
como saem de moda, sendo reclassificadas, etc. Mais especificamente: é
preciso descrever como cada um desses processos é mediado pelas “téc-
nicas corporais” (Mauss 2003: 401-408) que integram esses sistemas.
A fim de tornar esse ponto mais preciso, talvez seja útil trazer aqui a
análise que Luis da Câmara Cascudo desenvolve sobre o objeto desse seu já
citado estudo etnográfico: a “rede-de-dormir”. Enquanto um objeto material,
a rede é indissociável de relações sociais, morais, mágico-religiosas, existindo
portanto enquanto parte indissociável de totalidades cósmicas e sociais. Mais
precisamente ela desempenha um papel fundamental no processo de media-
ção sensível entre as diversas oposições que compõem essas totalidades.
Em seu livro, Cascudo afirma que, adotada no século XVI pelos coloni-
zadores europeus, a rede-de-dormir passa a integrar a vida cotidiana da
colônia, de forma bastante extensiva, até meados do século XIX, quando
vem a ser progressivamente substituída pela “cama” (considerada então
como um objeto “civilizado”, por oposição à rede, que será associada à
“barbárie”, ao “atraso”).
No período colonial, no entanto, afirma esse autor:
“Dentro e fora do âmbito das vilas e povoações, engenhos de açúcar e primeiros cur-
rais de gado, a rede foi uma constante. Adotaram-na como solução prática e natural.
Evitava-se o transporte dos pesados leitos de madeira que vinham de Portugal e só
posteriormente começaram a ser carpinteirados no Brasil” (1983: 23).
“Quando as redes eram feitas, unidade por unidade, e não em séries, mecanicamente, es-
tavam todas dentro de moldes fiéis às conveniências tradicionais. Os tipos tinham seus
destinos, previstos, antecipados, sabidos. Eram quase sempre “...redes de encomenda” e
obedeciam aos modelos inalteráveis nas dimensões e cores. Azul, encarnado, amarelo,
verde, eram as tonalidades preferidas, evitando-se as que sugerissem tristeza, viuvez,
luto, morte, o lilás, o roxo, o negro, para os lavores e bordados ornamentais.
“As redes de cor não eram as mais caras e nem as melhores, prendas de coronéis
e fazendeiros, senhores de engenho e vigários colados da freguesia, ou qualquer
autoridade mandona. Ficavam nas residências medíocres e menos prestigiosas.
{josé reginaldo santos gonçalves} 221
O estilo era uma só cor, com nuanças e gradações. Redes com enfeites de mais
de uma cor, apapagaiada, não merecia aceitamento de gente ilustre. As redes
brancas eram as tradicionais da aristocracia rural, com varandas, varrendo o
chão. (...)” (1983: 119).
“O tamanho das varandas, com as fímbrias orladas de bolinhas, (...), figurava como
honraria. As redes de escravos, as redes pobres, não tinham varandas. As redes co-
muns, compradas nas feiras, fabricadas comumente, tinham varandas curtas. Uma
alta distinção, sinal de poderio, era ver-se alguém em rede branca, com as varandas
quase arrastando no solo. Como as redes eram feitas sob encomenda unicamente
para as pessoas graduadas vinham varandas compridas” (1983: 122).
E continua:
“O leito obriga-nos a tomar seu costume, ajeitando-nos nele, numa sucessão de 7 Aqui acompanho
uma sugestão pre -
posições. A rede toma o nosso feitio, contamina-se com os nossos hábitos, repete, sente no pensamento
de Mauss, para o qual
dócil e macia, a forma de nosso corpo. A cama é hirta, parada, definitiva. A rede é o fluxo da vida social
seria impensável sem
acolhedora, compreensiva, coleante, acompanhando tépida e brandamente, todos os objetos materiais
e sem o corpo huma-
os caprichos de nossa fadiga. Desloca-se, incessantemente renovada, à solicitação
no, ou seja, sem os
física do cansaço. Entre ela e a cama há a distância da solidariedade à resignação” “efeitos fisiológicos”
das diversas catego-
(1983: 13). rias coletivas: “Não
podemos descrever
o estado de um in-
É possível surpreender nessa descrição simultaneamente o objeto em divíduo “obrigado”,
sua materialidade, sua forma e em seus usos sociais e simbólicos. Mais ou seja, moralmente
preso, alucinado por
que a expressão emblemática de uma sociedade ou uma camada social suas obrigações, por
exemplo uma questão
determinada, esse objeto e seus usos parecem na verdade colocar essa de honra, a não ser
que saibamos qual é
sociedade em movimento. E mais precisamente, no caso específico da o efeito fisiológico e
rede de dormir, num movimento pendular, definido pela adaptabilidade não apenas psicológi-
co dessa obrigação”
ao cosmos. A rede faz mediações sensíveis entre várias oposições, entre a (Mauss 2003 [1950]
319-348).
{josé reginaldo santos gonçalves} 223
fixidez e o deslocamento, entre o interior e exterior, o privado e o público,
entre o céu e a terra, entre o self e o mundo. O uso desse objeto articula
material e simbolicamente uma forte valorização de uma subjetividade
que se define precisamente não pela ação disciplinada e voluntariosa por
meio da qual se impõe sobre o mundo, o que caracterizaria a chamada
moderna subjetividade ocidental, mas, ao invés, pela sua plasticidade e
8 Para uma discussão adaptação a esse mundo.
bastante rica da cate-
goria “subjetividade”
e como ela se confi- IV.
gura no ocidente mo-
derno em comparação
com outros contextos
Subjetividade
culturais ver Goldman
(1988). Para a noção O que pretendi ressaltar nessa exposição foi a possível utilidade ana-
de “adaptabilidade”
na concepção de
lítica da noção de “patrimônio” para iluminar determinados aspectos da
subjetividade, ver o
vida social e cultural, especificamente sua “ressonância”, sua “materia-
clás s ico de We b e r
sobre a religião na lidade” e, concomitantemente, a presença incontornável do corpo e suas
China antiga (1951).
Devo essas sugestões técnicas. Volto-me agora para o papel fundamental que desempenha a
a Ricardo Benzaquen
Araújo, em comunica- categoria do patrimônio no processo de formação de subjetividades indi-
ção pessoal.
viduais e coletivas. Em outras palavras, não há patrimônio que não seja
ao mesmo tempo condição e efeito de determinadas modalidades de au-
toconsciência individual ou coletiva. Quero dizer que entre o patrimônio
9 Alguns autores já e essas formas de autoconsciência existe uma relação orgânica e interna
chamaram a atenção
p ara e s s e asp e c to e não apenas uma relação externa e emblemática. Em outras palavras,
não há subjetividade sem alguma forma de patrimônio.
no contexto da mo-
dernidade ocidental,
assinalando, em Lo-
cke, a relação entre
A fim de desenvolver nosso raciocínio, cabe distinguir inicialmente
a moderna noção de dois significados que assumiram historicamente as concepções de cul-
indivíduo e a noção de
propriedade, expressa tura. De um lado uma concepção clássica, na qual a cultura é pensada
na categoria do “indi-
vidualismo possessi- como processo de auto-aperfeiçoamento humano. De outro, uma con-
vo” (Handler 1985);
ver também uma
cepção moderna vigente sobretudo a partir do século XVIII, fundada no
inspiradora reflexão pensamento do filósofo alemão Johann Gottfried Herder (1744 -1803) e
sobre a relação entre
as práticas de colecio- segundo a qual as culturas seriam expressões orgânicas da identidade
namento e formação
da subjetividade em das diversos grupamentos humanos. No primeiro caso, a noção de cul-
tura está associada à idéia de trabalho, de esforço constante e consciente
James Clifford (1985;
2002).
Ela talvez permita surpreender de modo tenso e simultâneo aspectos tan indemostrable
científicamente, con
da cultura que são apenas parcimoniosamente iluminados por teorias los recursos de las
disciplinas empíricas,
classificadas como universalistas (das quais seria um exemplo notável a como las valoraciones
‘más extremas’”.
obra de Claude Lévi-Strauss); ou por teorias classificadas como relativis- (Weber 1973 [1917]:
231).
{josé reginaldo santos gonçalves} 225
tas (entre as quais merece destaque a obra de Clifford Geertz). Afinal, os
patrimônios são sempre concretos e específicos, embora não irredutivel-
mente singulares; e universais, embora essa universalidade seja sempre
de natureza concreta e contingente.
É possível que aí possamos reconhecer a presença do que Marcel Mauss
chamou de “arbitrário cultural”:
“Todo fenômeno social possui efetivamente um atributo essencial: seja ele um sím-
bolo, uma palavra, um instrumento, uma instituição, seja ele a língua ou a ciência
mais bem feita, seja ele o instrumento que melhor se adapte aos melhores e mais
numerosos fins, seja ele o mais racional possível, o mais humano, ainda assim ele é
arbitrário.” (1979[1929]: 192-193).
“cultura espúria” ou “enlatada”) tal como formulada num artigo clássico ver Geertz (1978: 30).
{josé reginaldo santos gonçalves} 227
cultural” (1985: 321-322). Para ele, o indivíduo não pré-existe às formas
culturais, mas é, até certo ponto, um efeito dessas formas culturais. No
entanto, e aí está a diferença, para Sapir essas formas não são entidades
objetificadas esperando para serem descritas e analisadas. Quando são
autênticas, essas formas não se dissociam dos indivíduos, e estes as sentem
como parte deles, como sua criação e não com algo estranho. A cultura,
segundo Sapir, quando autêntica, é vivida pelos indivíduos como uma
experiência de criação, de transformação. Nela o indivíduo é pensado
“...como um núcleo de valores cultuais vivos” (1985: 318). Em resumo, a
cultura, quando autêntica, não se impõe de fora sobre os indivíduos, mas
de dentro para fora, sendo uma expressão da criatividade destes.
Outro aspecto igualmente importante na sua compreensão das “cultu-
ras autênticas” é “...a atitude adotada em relação ao passado, suas institui-
ções, seus tesouros de arte e pensamento” (1985: 325). Esse passado, no con-
texto dessas culturas, não existem na forma como determinados objetos
são apreciados através das vitrines dos museus. Na verdade, afirma Sapir,
“...o passado é de interesse cultural apenas quanto ele está ainda presente
e pode tornar-se o futuro” (1985: 325). Esse aspecto, cabe sublinhar, man-
tém uma ostensiva afinidade com a categoria “patrimônio”, tal como a
estamos explorando nestas reflexões. Ele articula-se intimamente com a
dimensão da subjetividade, uma vez que esta pressupõe sempre alguma
forma específica de continuidade entre passado, presente e futuro.
O que desejo ressaltar ao trazer essa concepção de “cultura autên-
tica”, tal como é formulada por Sapir, não é evidentemente legitimar as
estratégias intelectuais correntes que condenam certas formas culturais
à “inautenticidade” enquanto congelam outras na condição de “autênti-
cas”. Nem era tampouco o objetivo daquele autor, embora estivesse então
motivado por uma atitude de crítica da cultura moderna, e particular-
mente da cultura norte-americana. Já tive oportunidade de num artigo
chamar a atenção para a necessária discussão da autenticidade enquanto
categoria de pensamento e sua relevância nos debates culturais (Ver Ca-
pítulo VI deste livro). O que sublinho é a utilidade dessa noção de “cultura
V.
Num ensaio de 1933, Experiência e pobreza, Walter Benjamin pergunta-
va: “...qual o valor de todo nosso patrimônio cultural, se a experiência não
mais o vincula a nós?” (1986 [1933]). Numa perspectiva identificada como
“crítica da cultura”, o autor apontava a “perda da experiência” como uma
característica da modernidade. No entanto, é possível que, se concebemos
os patrimônios do ponto de vista etnográfico, se abrimos essa categoria e
exploramos suas outras dimensões, possamos encontrar formas de patri-
mônio cultural no mundo contemporâneo que estejam fortemente ligadas
à experiência. Assim, as festas religiosas populares, quando consideradas
do ponto de vista dos devotos e suas relações de troca com determinadas
divindades (ver Capítulos VI e XI deste livro). Essa dimensão existe numa
permanente tensão com aquela outra, na qual as festas são classificadas
do ponto de vista de agências do Estado (e parcialmente assumida pelos
próprios devotos) como formas de “patrimônio cultural”, “patrimônio
imaterial”, etc.
As variações de significado nas representações sobre a categoria “pa-
trimônio” oscilam possivelmente entre um patrimônio entendido como
parte e extensão da experiência e portanto do corpo; e um patrimônio
entendido de modo objetificado, como coisa separada do corpo, como
objetos a serem identificados, classificados, preservados, etc. Por um lado,
um patrimônio inseparável do corpo e suas técnicas – o corpo, que é,
{josé reginaldo santos gonçalves} 229
em si, um instrumento e um mediador social e simbólico entre o self e
o mundo (Mauss 2003 [1950]: 401-424); e por outro lado um patrimônio
individualizado e autonomizado, com a função de assumir o papel de
“representação” ou de “expressão” emblemática de categorias que são
transformadas em alguma forma de entidade, seja a nação, o grupo étnico,
a região, a natureza, entre outras.
Penso que, uma vez submetidos a esse prisma analítico, os atuais dis-
cursos (e políticas) de patrimônio cultural talvez possam assumir formas
menos onipotentes. Na medida em que esses discursos sejam expostos
ao reconhecimento da natureza ambígua e precária dos objetos que eles,
simultaneamente, representam e constituem, interrompe-se o esforço
obsessivo de objetificação dos patrimônios. Para o autor destas reflexões,
esta seria evidentemente uma expectativa ambiciosa.
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