O Que Construímos Quando Construímos - Maria Clara Lima - Maria Eduarda Coutinho
O Que Construímos Quando Construímos - Maria Clara Lima - Maria Eduarda Coutinho
O Que Construímos Quando Construímos - Maria Clara Lima - Maria Eduarda Coutinho
RESUMO
O patrimônio cultural é parte da memória e identidade de uma sociedade, onde desempenha um
importante papel de representante histórico-cultural vivo, estando muitas vezes associado ao
campo material da monumentalidade. Diante do exposto, se faz necessária a elucidação de que
uma parcela significativa das produções culturais patrimoniais brasileiras esteve
sistematicamente vinculada a cultura colonialista do país na qual os cernes culturais das
minorias são apagados repetidamente ao longo de 5 centenários. Isto posto, o presente trabalho
tem como objetivo abordar a dualidade glorificação x denúncia no contexto das obras 'El
Matador', de Carlos Martins, e 'Liberdade', de Maku, localizadas em Teresina – PI, obras
alinhadas a duplicidade de abordagens relacionadas aos processos decoloniais que correm o
país como uma contradição do Brasil eurocêntrico e ao colonialismo cultural. Á luz dos
conceitos de memória sociocultural, monumento e noções sobre patrimônio cultural na
perspectiva decolonial pretende-se descrever os objetivos iniciais de construção desses
monumentos, relacioná-los as concepções anteriormente citadas e depois refletir acerca dos
ecos sociais gerados. A metodologia utilizada foi pautada no estudo exploratório, consulta a
artigos científicos, sites, livros e documentações desenvolvidos acerca dos assuntos em foco,
tendo como principais teóricos: Tolentino (2018), Choay (2006), Amaral (2015), Le Goff
(2003), Chauí (2005). A monumentalização e o culto aos mitos são dinâmicas que se resvalam
no apagamento das memórias dos oprimidos e, ao decidir revisitar essas lembranças através
desses artifícios, é necessário refletir sobre qual versão histórica deve-se apoiar.
Palavras-chave: Monumento. Memória. Decolonialidade. Patrimônio. Teresina.
*
Arquiteta e Urbanista. Pós-Graduanda em Patrimônio e Cidade. Faculdade Evangélica do Meio Norte
(FAEME). E-mail: [email protected]
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Arquiteta e Urbanista. Pós-Graduanda em Patrimônio e Cidade. Faculdade Evangélica do Meio Norte
(FAEME). E-mail: [email protected]
1 INTRODUÇÃO
2 DESENVOLVIMENTO
A cultura pode ser definida como um apanhado que engloba artes, crenças, tradições,
moral, costumes, conhecimentos e todos os hábitos obtidos pelo ser humano em sociedade,
estando diretamente ligada ao bem-estar. A cultura, de acordo com Bertagnolli (2015, p. 50):
Engloba tanto a linguagem, quanto a forma, suas crenças, seus saberes e fazeres;
é um processo de transmissão de valores que se criam ou que se recriam na busca de
soluções para problemas que cada sociedade enfrenta ao longo da existência.
Já a identidade, por sua vez, pode ser definida como a concepção que um indivíduo
tem de si mesmo e do seu pertencimento a determinados grupos ou sociedades (BRANDÃO,
2015). A identidade cultural está diretamente relacionada com a memória, que é principalmente
um instrumento social identitário, sendo a primeira chave para o reconhecimento histórico de
culturas. De acordo com o historiador francês Le Goff, a memória é uma manifestação grupal
espontânea de extrema importância para a salvaguarda do passado. Para ele, o estudo da
memória estava ligado ao reconhecimento de todos os grupos sociais pertencentes a
determinada sociedade. Por conseguinte, ele foi um dos responsáveis pela catalogação da
história dos grupos minoritários europeus, como as mulheres. Ou seja, em muitos de seus livros,
Le Goff tratou de memórias esquecidas ao longo dos séculos, propondo um revisionismo das
pesquisas históricas voltadas apenas aos grupos privilegiados do passado. Esta realidade é bem
presente no Brasil, onde a história na perspectiva do colonizador é a difundida, havendo
consequentemente memórias silenciadas de grupos que foram e ainda são oprimidos no
território nacional.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sendo assim, pela perspectiva decolonial, ainda que as duas obras tenham objetivos iniciais de
denúncia, apenas o painel ‘Liberdade’ contribui com este viés, posto que a escultura ‘El
Matador’ põe o opressor em uma posição de poder em comparação com a escala daqueles que
tiveram seus antepassados dizimados por ele, se firmando como um monumento intencional
cuja sua função original não se completa. A obra de Maku se consolida como um monumento
de reparação histórica a medida que põe nas vistas da população, e em contraponto da sua obra
mais famosa, o artesão invisibilizado em escala enorme.
Decerto, os bens artísticos de importância cultural que correm o território brasileiro estão em
sua grande maioria correlacionados com a herança hegemônica nacional, sejam eles
institucionalizados ou não, onde facilmente é possível o enquadramento sociocultural de obras
feitas a base da história dominante, como o monumento El Matador, que mesmo sendo de
importância física descartável para aqueles que questionam a sua concepção, ainda se perpetua
como um patrimônio cultural de representatividade histórica não documentado para a cidade de
Teresina-PI. Já a obra Liberdade, relacionada a práticas herdadas das populações oprimidas e
constituinte de uma história local contada e lembrada na perspectiva dos povos dominados e
comunidades tradicionais, sobrevive na capital através da concepção histórica da sociedade
teresinense, que é dotada de uma visão ética eurocêntrica que não reconhece as pinturas de uma
história verídica como uma manifestação artística válida que representa a cultura de Teresina,
tampouco, seu patrimônio cultural que há séculos representa somente a elite branca cristã.
Cabe aos órgãos de defesa do patrimônio cultural, institucionalizados pela norma constitucional
vigente, rever ou até mesmo intervir no papel social do monumento ‘El Matador’ respaldados
pela sua função conferida de defensores dos direitos da sociedade. De posse dos instrumentos
necessários para a defesa dos interesses da coletividade, o Ministério Público, por exemplo,
pode e deve atuar como fator de equilíbrio nas relações entre a Administração Pública e aquilo
que se é administrado, assegurando a salvaguarda dos direitos dos últimos (MIRANDA, 2012).
Intervenções em monumentos com sentido de reparação já vem sendo executadas no Brasil: um
exemplo relevante a ser citado é a placa instalada pelo Serviço Funerário Municipal de São
Paulo (SFMSP) no túmulo da travesti paulistana Andréa de Mayo que, ainda que se
identificasse como mulher, foi enterrada com seu nome biológico. Um ato simples como a
adição do nome real e descrição do legado de Andréa em seu túmulo consagrou-se como o
primeiro marco de reparação e de direito à memória no Brasil, representando um relevante
passo do poder público no reconhecimento de direitos sociais (CYMBALISTA, 2017).
No que tange ao monumento ‘El Matador’ faz sentido repensar sua função social e
intervir nele de modo a reparar o trauma revivido pela representação do opressor em ato violento
contra o oprimido. Diferenciando-se do painel ‘Liberdade’, que se apresenta como um
monumento de reparação em si, sem a necessidade de explicações adicionais, a obra de Carlos
Martins precisa de um adendo que pode ir muito além do descarte da sua materialidade, mas
sim que represente a reivindicação social popular por ele motivada, atribuindo ao seu
significado um largo sentido de reparação aos povos que são reverberados através dele como
colonizados ou descartáveis. A garantia de direitos no presente, de fato, começa no momento
em que escolhemos quais histórias e como vamos contá-las. Nesse caso, optar por alterar o
monumento no viés anticolonial seria uma maneira de assegurar que o protagonismo fosse,
ainda e por que constantemente não é, do oprimido.
REFERÊNCIAS
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MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Atuação do Ministério Público na defesa do
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TOLENTINO, Átila Bezerra. Educação Patrimonial Decolonial: Perspectivas e Entraves
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