Tese Fred Aganju Corrigida. 27.10.2020
Tese Fred Aganju Corrigida. 27.10.2020
Tese Fred Aganju Corrigida. 27.10.2020
Salvador
2020
FRED AGANJU SANTIAGO FERREIRA
Salvador
2020
Dedico essa tese à memoria de Ubiraci dos
Santos (Birró), a Isís Yamasse minha primeira
filha, e a todos os meus alunos assassinados,
desaparecidos ou desovados em covas
clandestinas, ao longo dessa ultima década que
estou radicado e atuando como educador
comunitário nas ruas sangrentas de Cachoeira-
BA.
AGRADECIMENTOS
RESUMO
Tomando como pano de fundo as estatísticas criminais referentes à Segurança Pública no
Brasil, a presente tese tem como apresentar resultados de uma investigação multidisciplinar e
multifocalizada sobre os dispositivos necropolíticos (MBEMBE, 2018) na Segurança Pública
da Bahia, dentro do contexto de implementação e ramificação do Programa Pacto pela Vida.
Nossa ambição aqui é preencher as lacunas existentes nos estudos sobre Segurança Pública, e
da implantação-ramificação do Programa Pacto Pela Vida que tem mostrado uma tendência a
invisibilizar o caráter racialmente seletivo das políticas de segurança pública (ZAVERUCHA,
2005, SOUZA, 2014, MARTINS & Lourenço, 2014). A retomada da história institucional e
análise crítica da estrutura organizacional do Programa Pacto Pela Vida revelaram que os
altos investimentos em armamento, munições, policiamento ostensivo e repressão qualificada,
não freou a matança em andamento, pelo contrário, as técnicas foram aprimoradas e
intensificadas em sua letalidade. Mais que isso, argumentamos que os números assombrosos
de mortes violentas cometidas por arma de fogo nas ruas da Bahia, são fragmentos de uma
realidade nacional de Genocídio Anti-Negro (VARGAS, 20017), descrita pelo Estado como
“Guerra às drogas”, e por alguns pesquisadores como Estado de Sitio (AGAMBEM, 2004) ou
Guerra Civil de Novo Tipo (MIR, 2004). Ainda aqui, revelamos que o tipo peculiar de
situação de violência generalizada que caracteriza os padrões de mortandade na Bahia na
última década é melhor descrita a partir da noção de: Guerra Racial de Alta Intensidade.
Palavras chave: Guerra Racial de Alta Intensidade, Políticas de Morte, Genocídio Negro,
Programa Pacto Pela Vida.
FERREIRA, Fred Aganju Santiago. MAAFA: Death policies in the context of high-intensity
racial war in contemporary Bahia 348f. il. 2020. Thesis (Doctorate) - Faculty of Philosophy
and Human Sciences, Federal University of Bahia, Salvador, 2020.
RESUME
Taking as a backdrop the criminal statistics referring to Public Security in Brazil, this thesis
aims to carry out a multidisciplinary and multifocal investigation on necropolitical devices
(MBEMBE, 2018) in Public Security in Bahia, within the context of implementation and
branching of the Pact for Life Program. Our ambition here is to fill the gaps in the studies on
Public Security, and the implementation-branching of the Pacto Pela Vida Program, which
has shown a tendency to make the racially selective character of public security policies
invisible (ZAVERUCHA, 2005, SOUZA, 2014, MARTINS & Lourenço, 2014). The
resumption of the institutional history and critical analysis of the organizational structure of
the Pacto Pela Vida Program revealed that the high investments in armaments, ammunition,
ostensive policing and qualified repression, did not stop the killing in progress, on the
contrary, the techniques were improved and intensified in their Lethality. More than that, we
argue that the staggering numbers of violent deaths committed by firearms on the streets of
Bahia are fragments of a national reality of Anti-Black Genocide (VARGAS, 20017),
described by the State as “War on drugs”, and by some researchers such as Estado de Sitio
(AGAMBEM, 2004) or Civil War of New Type (MIR, 2004). Still here, we reveal that the
peculiar type of widespread violence that characterizes the patterns of death in Bahia in the
last decade are best described by the notion of: High Intensity Racial War.
Keywords: High Intensity Racial War, Death Policies, Black Genocide, Pact for Life
Program.
FERREIRA, Fred Aganju Santiago. MAAFA: Politiques de mort dans le contexte d'une
guerre raciale de haute intensité dans la Bahia contemporaine 348f. il. 2020. Thèse (Doctorat)
- Faculté de philosophie et des sciences humaines, Université fédérale de Bahia, Salvador,
2020.
RÉSUMÉ
Prenant en toile de fond les statistiques criminelles se référant à la sécurité publique au Brésil,
cette thèse vise à mener une enquête multidisciplinaire et multifocale sur les dispositifs
nécropolitiques (MBEMBE, 2018) en Sécurité publique à Bahia, dans le cadre de la mise en
œuvre et de la ramification du Programme Pacte pour la vie. Notre ambition ici est de
combler les lacunes des études sur la sécurité publique et la mise en œuvre-ramification du
programme Pacto Pela Vida, qui a montré une tendance à rendre invisible le caractère
racialement sélectif des politiques de sécurité publique (ZAVERUCHA, 2005, SOUZA, 2014,
MARTINS Et Lourenço, 2014). La reprise de l'histoire institutionnelle et l'analyse critique de
la structure organisationnelle du programme Pacto Pela Vida ont révélé que les
investissements importants dans les armements, les munitions, la police ostensive et la
répression qualifiée, n'ont pas arrêté les massacres en cours, au contraire, les techniques ont
été améliorées et intensifiées dans leur Létalité. Plus que cela, nous soutenons que le nombre
impressionnant de morts violentes commises par des armes à feu dans les rues de Bahia sont
des fragments d'une réalité nationale du génocide anti-Noir (VARGAS, 20017), décrit par
l'État comme «guerre contre la drogue», et par certains chercheurs comme Estado de Sitio
(AGAMBEM, 2004) ou Civil War of New Type (MIR, 2004). Toujours ici, nous révélons
que le type particulier de violence généralisée qui caractérise les schémas de mort à Bahia au
cours de la dernière décennie est mieux décrit à partir de la notion de: guerre raciale de haute
intensité.
Mots-clés: guerre raciale de haute intensité, politiques de mort, génocide des Noirs,
programme Pacte pour la vie.
Lista de Tabelas
Tabela 7 Execuções sumárias em Cachoeira e São Félix no ano de 2015. _____________ 134
Tabela 8 Execuções sumárias em Cachoeira e São Félix no ano de 2016. _____________ 135
Tabela 9 Execuções sumárias em Cachoeira e São Félix no ano de 2017. _____________ 138
Tabela 10 Execuções sumárias em Cachoeira e São Félix no ano de 2018. ____________ 140
Tabela 11 Corpos encontrados desovados em Cachoeira e São Félix em 2015. _________ 143
Tabela 12 Corpos encontrados desovados em Cachoeira e São Félix em 2016. _________ 143
Tabela 13 Corpos encontrados desovados em cachoeira e São Felix em 2017. __________ 145
Tabela 14 Corpos encontrados desovados em cachoeira e São Félix em 2018. __________ 146
Tabela 15 Óbitos decorrentes de intervenções políciais nas Unidades Federativas – 2016. 149
BA – Bahia
BR – Rodovia Federal
CA – Centro Acadêmico
CG – Corregedoria Geral
CO – Certidão de Óbito
COVID-19 – Coronavirus
DA – Diretório Acadêmico
DJ – Disc Jockey
DO – Declaração de Óbito
MC – Mestre de Cerimonia
MN – Movimento Negro
MP – Ministério Público
MP – Ministério Público
PM – Polícia Militar
TJ – Tribunal de Justiça
TV – Televisão
Introdução ........................................................................................................................................ 1
CAPÍTULO I - A Necropolítica racial no Padrão Organizacional da Segurança Pública na Bahia
(2011 – 2017) .................................................................................................................................. 11
1.1.Aspectos metodológicos ......................................................................................................... 11
1.2.Uma Crítica comunitária ao Programa Pacto Pela Vida: estrutura organizativa da Política de
Segurança Publica na Bahia.......................................................................................................... 13
1.3.“A cada três brasileiros, um tem parente ou amigo vítima de assassinato”: estatísticas de mortes
violentas na Bahia e no Brasil....................................................................................................... 22
1.4.Análises transnacionais e nativas da Necropolitica .................................................................. 26
1.5.Dispositivos de necropoder na Segurança Pública na Bahia: Cartilha da tatuagem e a Companhia
de Patrulhamento Tático Móvel. ................................................................................................... 31
CAPITULO II - Movimento Contra UPP: Sentidos e Significados de Uma Luta Comunitária
Contra Instalação de Uma Base Comunitária de Segurança no Bairro Da Engomadeira -
Salvador/BA - (2013-2015) ............................................................................................................. 49
2.1. Bases Comunitárias de Segurança na Bahia: uma análise crítica da implantação e estruturação
de um dispositivo necropolítico de segurança ............................................................................... 54
2.2. Memória política de uma luta comunitária contra instalação de uma Base Comunitária de
Segurança no bairro da Engomadeira (Salvador/BA) (2013-2015). ............................................... 64
2.3. Tradições radicais negras nas cidades transatlânticas............................................................. 80
2.4. A Influência organizativa da esquerda branca marxista na Política racial contemporânea no
Brasil. 89
2.5. Criminalização e risco de morte no contexto organizativo do Movimento Contra UPP ........... 95
CAPITULO III - Banho de sangue no Recôncavo Sul: execuções sumárias, corpos desovados e
homicídios em Cachoeira e São Félix (2015-2018) ...................................................................... 112
3.1 Introdução 112
3.2. Procedimentos metodológicos ............................................................................................. 115
3.3. A evolução histórica dos homicídios por arma de fogo no Brasil .......................................... 120
3.4. Estatísticas criminais sobre homicídios por arma de fogo em Cachoeira-BA e São Félix-BA.122
3.5. Dinâmicas e sinuosidades das Execuções sumárias em Cachoeira e São Félix (2015-2018) .. 128
3.6. Intervenções políciais letais em Cachoeira-BA e São Félix-BA (2015-2018). ....................... 148
3.7. Banhos de sangue no Recôncavo Sul: fragmentos de uma guerra racial de alta intensidade .. 163
CAPÍTULO IV- Sobreviventes na Zona Limítrofe: Percepções Subjetivas de Jovens Homens
Negros Acerca de Homicídios por Arma de Fogo no Recôncavo Sul da Bahia .......................... 180
4.1. Aspectos teóricos: Masculinidades negras e políticas de gênero em contextos de Morte social
183
4.2. Aspectos metodológicos: O trauma como arquivo de Guerra. .............................................. 191
4.3. Os interlocutores e o contexto político comunitário .............................................................. 197
4.4. Números de guerra: “perdi a conta de quantos parceru perdi nessa disgraça” ........................ 207
4.5. Marcas psicológicas da guerra: Desordem de Estresse Pós-Trauma (DEPT). ....................... 210
4.6. O Carro Prata: métodos subterrâneos de extrema violência .................................................. 218
4.7. Tecnologias de guerra: Veículo Aéreo Não Tripulado: “O Drone”. ...................................... 221
4.8. Laços fúnebres: “Bagaçaram meu parceru. Ele era tipo um irmão pra mim”. ........................ 226
ADIÇÕES – Política Racial Linha Auxiliar na Bahia Contemporânea: Uma Análise Crítica
Acerca da Implementação da Secretaria de Promoção da Igualdade ........................................ 233
5.1 – A sombra do Triunfo: Um Panorama histórico da política racial protagonizada pelo
Movimento social negro nas últimas quatro décadas no Brasil. ................................................... 237
5.2 – Uma análise crítica da implementação da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do
Estado da BAHIA (SEPROMI). ................................................................................................. 241
5.3. A política racial Linha Auxiliar da SEPROMI como contraponto às mobilizações comunitárias
pela justiça, memória e verdade da Chacina do Cabula. .............................................................. 252
Considerações Finais.................................................................................................................... 261
Referências ................................................................................................................................... 270
APÊNDICES ................................................................................................................................ 292
Roteiro de entrevista semiestruturada - Movimento Contra UPP na Uneb: História comunitária,
sentidos e significados de uma politica racial comunitária........................................................... 292
Roteiro de entrevista semiestruturado - ENTREVISTA COM PICHARDOR@S ........................ 296
Roteiro de entrevista semiestruturado – Percepções politico- subjetivas de jovens homens negros
acerca de morte por arma de fogo no recôncavo sul .................................................................... 297
ANEXOS ...................................................................................................................................... 300
Imagens 300
CONHEÇA O MOVIMENTO CONTRA A UPP ....................................................................... 311
Conheça nossas bandeiras de luta ............................................................................................... 313
CONVOCATÓRIA DO FÓRUM PARA A CONDUÇÃO DE CONTRAPROPOSTA DE
INSTALAÇÃO DA BASE COMUNITÁRIA DE SEGURANÇA (BCS, OU... UPP) -
ENGOMADEIRA, NO TERRENO DO CAMPUS I DA UNEB. ........................................... 315
“Não a U.P.P, eu quero educação, saúde, cultura pra sobreviver” ................................................ 317
CONHEÇA NOSSAS BANDEIRAS DE LUTAS: ..................................................................... 320
NOTA DO MOVIMENTO CONTRA UPP SOBRE A REJEIÇÃO DA COMUNIDADE
ACADÊMICA A CONSTRUÇÃO DA UPP: .......................................................................... 322
DOCUMENTO: Algumas Considerações sobre o Projeto de Segurança Pública do Governo do
Estado da Bahia em Parceria com Outros Poderes de Justiça- O Pacto Pela Vida. ....................... 324
GLOSSÁRIO ............................................................................................................................... 329
1
Introdução
Diante dessa conjuntura, nos últimos 30 anos, mais de um Milhão de pessoas foram
assassinadas no país, sendo a maioria esmagadora desses óbitos constituídos de negras/os
(MAPA DA VIOLENCIA, 2011). Números esses, que superam muitas guerras
contemporâneas realizadas no planeta Terra nos últimos 40 anos. De acordo com relatórios
publicados pelo próprio Estado, a morte prematura violenta é uma experiência social
compartilhada por negros/as em todo território nacional (MAPA DA VIOLENCIA, 2011;
2012; 2014; 2015).
Nesse mesmo período de tempo o Estado Brasileiro, seja em artigos de sua
Constituição Federal ou como país signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
tem se apresentado em fóruns internacionais como uma nação preocupada em construir
políticas públicas que previna os altos índices de homicídios contra a juventude negra.
Entretanto, entidades como a Convenção Internacional sobre Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação racial e a própria ONU delatam como essa “preocupação
institucional” é meramente demagógica, ao ponto em que tais organismos emitem
constantemente recomendações visando provocar o Estado brasileiro e denunciar à
comunidade internacional as séries de violências e arbitrariedades cometidas pelo aparato
policial no Brasil.
Nos últimos dez anos os homicídios têm sido a principal causa de morte de jovens
entre 15 e 29 anos, sobretudo de jovens homens negros moradores de periferias de grandes
centros urbanos e regiões metropolitanas. Os dados do Mapa da Violência (2012; 2014; 2015)
apontam que dos 56 mil mortos por homicídios em 2012 no país, 77% eram jovens negros e
93% do sexo masculino. Ainda segundo este Mapa, entre os anos de 2002 e 2012 há queda de
32,3% no número de homicídios de jovens brancos, enquanto o percentual de homicídios de
jovens negros cresceu na mesma proporção, com um aumento de 32,4%.
Diante dessa circunstância, a Bahia alçou o quarto lugar no ranking nacional de
homicídios por arma de fogo, registrando cerca de cinco mil no ano de 2012, sendo 1.499
apenas na capital baiana, dos quais, 1.020 eram jovens (MAPA DA VIOLÊNCIA, 2015).
Esses dados que dimensionam uma realidade nacional, quando focalizados na realidade da
Bahia, tornam-se mais alarmantes. Ainda segundo o mesmo documento, a Bahia tem o maior
número de homicídios do país e apenas em 2014 cerca de 5.450 baianos foram assassinados.
Uma hecatombe sem precedente nas democracias multirraciais contemporâneas (VARGAS,
2016).
Os dados estatísticos demonstram como a morte violenta, acentuadamente os
homicídios por arma de fogo, tem sido uma constante na experiência de vida dos jovens
3
1
Notadamente o conjunto de dados sintetizados no documento estatal; X Anuário Brasileiro de Segurança
Publica, publicado em 2016 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
4
aparato de terror policial. Tal conceito nos permite analisar como o alto índice de homicídios
por arma de fogo na Bahia, está inserido no contexto de legitimação de um modelo de Estado
que historicamente foi alicerçado no massacre generalizado de populações racializadas;
Genocídio.
É preciso frisar que são poucos, mas já há trabalhos acadêmicos empíricos norteados
pela perspectiva teórica da Necropolítica Racial (MBEMBE, 2018), que analisam a interface
entre segurança pública, racismo e extermínio sistemático de jovens negros/as (ALVES,
2011). Em suas pesquisas Jaime do Amparo Alves (2011) mostra como a ação letal da polícia
em São Paulo é operacionalizada através de uma concepção de segurança pública que dirige
uma gestão urbana do medo, fincada no massacre e na punição racialmente seletiva da
juventude negra. Ou mesmo, apontando como em diferentes capitais do Brasil (Salvador, Rio
de Janeiro e São Paulo) há concentração da violência e letalidade policial em determinados
bairros periféricos majoritariamente negros, constatando a Necropolítica Estatal no modelo
de segurança pública vigente, a partir do que o autor chama de padrão mórbido de
governança espacial (ALVES, 2016).
Especificamente no que tange a realidade da Bahia, Alves (2011) nos deixa indícios
que contribuem para nossa investigação. Em primeiro lugar o autor sinaliza que, sobre o
pretexto de “confrontos” com a polícia, os índices de letalidade policial na capital baiana
aumentam em escala sem precedentes no país, tendo como principais áreas de concentração o
cinturão periférico constituído pelos bairros de Beiru, Nordeste de Amaralina, Periperi, Pero
Vaz, Pau da Lima e no Subúrbio Ferroviário. Para além de esboçar de forma preliminar o
padrão mórbido de governança espacial em Salvador-BA, o autor indica que há uma
profusão de organizações de direitos humanos, do movimento negro e de familiares que
denunciam permanentemente as torturas, sequestros e chacinas promovidas pela polícia
baiana na periferia da cidade.
Além das referências acadêmicas supracitadas, acompanhamos o pensamento de
pesquisas transnacionais que têm demonstrado como militantes negros/as têm formulado,
teorias nativas sobre o Genocídio de Negros/as no contexto de Diáspora (VARGAS, 2008;
2010; 2016). No Brasil não é diferente, como nos elucida o pesquisador João Vargas (2010),
em diferentes contextos político-geográficos militantes negros/as tem erigido uma corrente de
pensamento teórico, que insere as condições transnacionais de subjugação racial de negros/as
ao conceito mais amplo de Genocídio,
...A percepção do genocídio é produtoo de iniciativas de ativistas do presente e do
passado. Os escritos de intelectuais ativistas, refletindo sobre teoria e ações
pragmáticas empregadas por sujeitos políticos, são fontes de perspectivas
5
Dentro dessa conjuntura, cabe acentuar que minha experiência como militante de
organizações negras comunitárias que fazem enfrentamento direto às políticas estatais de
aniquilação da comunidade negra na Bahia, bem como minha condição de professor-educador
e cine clubista, também são parte constituinte da pesquisa em curso.
A dialética entre antropologia e envolvimento engajado com organizações políticas
possibilita a construção de um conhecimento teórico-metodológico etnográfico distinto, que
questiona a dita neutralidade científica da pesquisa acadêmica (MARCUS, 2004). Ou seja, o
distanciamento ou neutralidade científica se configuram enquanto descuidos metodológicos,
que impossibilitariam o pesquisador de realizar o trabalho de campo etnográfico (FERREIRA,
2015).
Como tem apontado os antropólogos George Marcus (2004) e João Vargas (2008),
pesquisas conduzidas por intelectuais-militantes, ou como denomina Marcus: antropólogos
2
públicos tornaram-se uma condição sine qua non para um trabalho de campo
verdadeiramente crítico. Segundo esses autores o fazer antropológico público está
umbilicalmente ligado a emergência no cenário acadêmico contemporâneo, de antropólogos
que estão envolvidos direta ou indiretamente com movimentos sociais organizados, como é o
meu caso.
Nesse sentido, minha identidade étnico-racial de homem negro, narrativa pessoal e
experiência no movimento social negro organizado são caracteres constitutivos na abordagem
antropológica que pretendemos discorrer. Tal totalidade é levada em consideração não apenas
do ponto de vista do engajamento político, mas sobretudo, no contexto de coleta e análise dos
dados etnográficos, ou seja, na dimensão teórico-metodológica. Ou como afirma João Vargas
(2008), uma Participação Observante,
Enquanto a observação participante tradicionalmente coloca ênfase na observação,
a participação observante refere-se à participação ativa no grupo organizado, de
modo que a observação torna-se um apêndice da atividade principal. Na verdade, é
assim que os meus dias foram gastos: depois de horas de inúmeras atividades, á
noite, eu ia escrever notas sobre os acontecimentos do dia e refletir sobre como eles
2
Acompanhando o pensamento do antropólogo George Marcus (2005), entendemos que antropólogos públicos
teriam a competência de dirigir suas pesquisas para pressionar governos locais a atender as demandas históricas
do grupo marginalizado, além de divulgar a luta do grupo para outros fóruns de debate. Seria nesse cenário que
as pesquisas de caráter militante/ativista se consolidariam na contemporaneidade, sobretudo quando o
pesquisador/a estivesse envolvido/a de forma ativa no processo de luta organizada de sujeitos sociais submetidos
a opressões.
6
consolidação de uma agência governamental que desde seus primeiros mandatos tem se
afirmado como democrático-popular. Ou seja, temos um governo discursivamente alicerçado
em princípios democráticos e ancorado na escuta institucional das demandas históricas dos
movimentos sociais de base popular. No entanto, nesse mesmo período de tempo, ao contrario
do que apregoa os documentos organizacionais do Programa Pacto Pela Vida da Bahia, vemos
a ramificação – na capital e interior baiano – de um modelo de segurança publica belicista,
orientado por uma perspectiva de guerras moleculares (MIR, 2004) contra inimigos internos.
Nesse sentido a retomada da historia institucional e análise crítica da estrutura
organizacional do Programa Pacto Pela Vida, interrelacionada com os dados de estatísticas
criminais na Bahia, evidenciam que a estratégia adotada pelo Programa não diminuiu os altos
índices de violência letal que atinge de sobremaneira a juventude negra. O cruzamento de
dados qualitativos e quantitativos indica que os altos investimentos em armamento, munições,
policiamento ostensivo e repressão qualificada, não freou a matança em andamento, pelo
contrário, as técnicas foram aprimoradas e intensificadas em sua letalidade.
O Programa Pacto Pela Vida – ao contrário do que diz em sua narrativa institucional –
tem estruturado uma política de segurança Pública Militarizada e altamente letal. Nesse
contexto, na Tese em curso arrolamos os índices de homicídios referentes aos anos posteriores
ao lançamento do Programa, inserindo essas mortes no bojo do conceito de Necropolitica
(Mbembe, 2003).
No que concerne à estrutura da tese, está divida em quatro capítulos complementares.
No primeiro capitulo, “A necropolitica racial no Padrão Organizacional da Segurança
Pública na Bahia”, tomando como pano de fundo as estatísticas criminais referentes à
Segurança Pública no Brasil, o presente capítulo tem como objetivo realizar uma investigação
etnográfica organizacional do Programa Pacto Pela Vida analisando seu conjunto de
dispositivos de segurança, a partir da categoria conceitual de Necropolitica (MBEMBE,
2013).
No escopo de municiar nossa investigação utilizaremos uma interface entre métodos
quantitativos e qualitativos. Os conjuntos de documentos quantitativos serão; a X Edição do
Anuário Brasileiro de Segurança Publica (FBSP, 2016), além das últimas edições do Mapa
da Violência (MAPA DA VIOLENCIA, 2012; 2014; 2015) e do Atlas da Violência (2017).
No que concernem os métodos qualitativos, e também da participação observante (VARGAS,
2010), empreendemos um estudo crítico e sistemático de dois documentos; o Relatório Anual
8
de segurança Pública apresentado pelo Governo da Bahia no ano de 20113, como diretriz
estratégica para o Programa Pacto Pela Vida, além de examinarmos criticamente o
documento; “Algumas Considerações sobre o Projeto de Segurança Pública do Governo do
Estado da Bahia em Parceria com Outros Poderes de Justiça“ (REAJA, 2011) – apresentado
pela Campanha Reaja ou Será Mort@ 4 como contraponto aos dispositivos de segurança
defendidos pelo Programa 5 de segurança do Governo.
No segundo capítulo “Movimento Contra UPP: Sentidos e significados de uma luta
comunitária contra instalação de uma Base Comunitária de Segurança no bairro da
Engomadeira – Salvador-BA (2013 - 2015)”, tomando como pano de fundo a luta
comunitária organizacional do Movimento Contra a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), o
capítulo tem o objetivo de tracejar uma investigação crítica do processo de implantação de um
dos dispositivos de segurança estratégicos do Programa Pacto Pela Vida; as Bases
Comunitárias de Segurança. Nossa tentativa é preencher as enormes lacunas existentes nos
estudos sobre as Bases Comunitárias de Segurança na Bahia, que por um lado tem tido um
forte compromisso em invisibilizar o caráter racialmente seletivo desse dispositivo de
segurança e, por outro lado, tem silenciado ou negado a existência política de agências sociais
comunitárias que tem enfrentado as políticas de morte (MBEMBE, 2018) operadas pelos
dispositivos de segurança do Programa Pacto Pela Vida na Bahia (SILVA, 2014; MARTINS
& LOURENÇO, 2014; MARTINS, 2015; PEDREIRA, 2016).
No que concerne o conjunto de documentos e dados que municiam nosso argumento,
analisaremos criticamente a Portaria Nº059 - CG/15 6 que regulamenta as normas e
procedimentos necessários para implantação, estruturação e funcionamento das Bases
Comunitárias de Segurança no âmbito da Policia Militar da Bahia (BAHIA PM, 2015), assim
como nos debruçaremos sobre o texto da Lei nº 12.357 que estabelece o Sistema de Defesa
Social - o Programa Pacto pela Vida (BAHIA, 2011).
Tivemos também acesso a um conjunto de documentos5 produzidos pelo Movimento
Contra a UPP na UNEB/Engomadeira: panfletos, fotografias, bandeiras de luta, cartilhas
3
O documento em questão é “Garantir segurança e integridade ao cidadão,centrando ações na informação,
inteligência, na prevenção e no respeito aos direitos humanos” (GOVERNO DA BAHIA, 2011). O Documento
é a diretriz estratégica do Programa Pacto Pela Vida.
4
O documento em questão é “Algumas Considerações sobre o Projeto de Segurança Pública do Governo do
Estado da Bahia em Parceria com Outros Poderes de Justiça – O Pacto Pela Vida”, que foi apresentado por
militantes da Campanha Reaja ou será mort@ no dia do lançamento do Programa Pacto Pela Vida. Ver em:
https://blogbahianarede.wordpress.com/2011/06/19/reaja-reflete-e-critica-programa-pacto-pela-vida/
5
Quando utilizar a palavra Programa em com letra maiúscula, estaremos nos referindo ao Programa Pacto Pela
Vida.
5
Ver documento na integra nos anexos.
9
informativas e notas públicas redigidas pelo Movimento. Além de entrevistas gravadas com
7
militantes do Movimento , a partir de aplicação de questionário de perguntas
semiestruturadas. Recorreremos também a um conjunto de notícias de jornalismo on-line que
se debruçaram sobre o processo de implantação das BCS na Bahia.
Outra base documental que substancia o segundo capítulo são os testemunhos orais
colhidos de militantes do Movimento Contra UPP, seus apoiadores, e um grupo de pichadores
que participavam das ações do Movimento. Depoimentos esses que são articulados a um
conjunto de documentos organizacionais cedidos à mim pelo Movimento Contra UPP, a
exemplo de; as bandeiras de luta do Programa de Ação do Movimento Contra a UPP, Nota
contra a construção da Base Comunitária de Segurança, Nota do Movimento Contra a UPP
sobre a rejeição da Comunidade Acadêmica a construção da UPP, flyers de divulgação das
atividades do Movimento Contra a UPP – todos os documentos estão organizados
integralmente nos anexos da presente tese.
Em uma terceira sessão intitulada “Banho de sangue no Recôncavo Sul: execuções
sumárias, corpos desovados e homicídios decorrentes de intervenção policial em Cachoeira e
São Felix (2015-2018 )”, inventariamos, analisamos criticamente e montamos um banco de
dados inédito, referente aos índices de homicídios praticados por arma de fogo em Cachoeira-
BA e São Félix-BA no último triênio (2015 -2018), notadamente homicídios ocorridos em
circunstâncias de execuções sumárias e decorrentes de intervenção policial. Para os fins que
se pretende o capítulo, utilizamos um conjunto de dados oriundos de agências de
processamento de estatísticas criminais ligadas ao Estado, bem como construímos um banco
de dados inédito baseado na sistematização e análise de notícias de jornalismo on-line
referente ao assunto.
A fonte primordial para coleta de dados referentes a assassinados por arma de fogo em
Cachoeira-BA e São Félix-BA, é oriunda do Subsistema de Informação sobre Mortalidade do
Ministério da Saúde (SIM/MS), que tem divulgado anualmente dados referentes à morte por
causas externas desde o ano de 1979. Cabe ressaltar, que de acordo a legislação vigente no
Brasil; Lei nº 6.216, de 30/06/1975, todos os sepultamentos em território nacional devem
ocorrer com uma certidão de óbito (CO), além do registro feito na declaração de óbito (DO).
No quarto e, último capítulo, “Sobreviventes na Zona Limítrofe: percepções político-
subjetivas de jovens homens negros acerca de homicídios por arma de fogo no recôncavo
sul”, analisei os impactos psicossociais, as percepções subjetivas e aspectos psicossociais,
7
Nessa sessão quando utilizar a palavra Movimento em letra maiúscula estarei me referindo ao Movimento
Contra a UPP.
10
acerca das experiências traumáticas de jovens homens negros que perderam parentes, amigos
ou entes queridos em contextos de violência letal por arma de fogo.
Por fim, no ensaio teórico; Adições – Politica Racial Linha Auxiliar na Bahia
Contemporânea: Uma Análise Crítica acerca da implementação da Secretaria de Promoção
da Igualdade Racial, realizo um balanço crítico da política racial (HANCHARD, 2001)
protagonizada pela agência social coletiva do movimento negro de sentido estrito 8 (RUFINO
1985; PEREIRA, 2009) na Bahia contemporânea, tomando como pano de fundo o processo
de ramificação de um dos dispositivos do Programa de defesa social Pacto Pela Vida; A
Secretaria de Promoção da Igualdade Racial.
8
Joel Rufino dos Santos (1985) e Amauri Pereira (2019) compreendem que o Movimento negro de sentido
estrito, são o conjunto de entidades, seus respectivos militantes, bem como, instâncias governamentais sobre
influência/coordenação de militante negro-as, que têm protagonizado processos de luta organizada contra o
racismo estrutural da sociedade brasileira, em variados campos de atuação política nas últimas quatro décadas.
11
9
Notadamente o conjunto de dados sintetizados no documento estatal; X Anuário Brasileiro de Segurança
Publica, publicado em 2016 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
10
A exemplo de minha atuação como impulsionador/organizador das ações comunitárias do Cine do Povo e
Centro Comunitario de Audiovisual Luiz orlando, ambos baseados em Cachoeira-BA. Bem como meu itinerário
junto a Reaja Organização Política. Ver mais em; http://reajanasruas.blogspot.com.br/p/quem-somos.html
Acessado em 09/06/2017 as 00:17 min
11
De acordo com Vargas - Enquanto a observação participante tradicionalmente coloca ênfase na observação, a
participação observante refere-se à participação ativa no grupo organizado, de modo que a observação torna-se
um apêndice da atividade principal. Na verdade, é assim que os meus dias foram gastos: depois de horas de
inúmeras atividades, á noite, eu ia escrever notas sobre os acontecimentos do dia e refletir sobre como eles
12
afetaram e foram flexionados pelas estratégias que estávamos utilizando para combater a opressão ao povo negro
(VARGAS, 2008, p.175).
12
O documento em questão é “Garantir segurança e integridade ao cidadão, centrando ações na informação,
inteligência, na prevenção e no respeito aos direitos humanos” (GOVERNO DA BAHIA, 2011). O Documento
é a diretriz estratégica do Programa Pacto Pela Vida.
13
O documento em questão é “Algumas Considerações sobre o Projeto de Segurança Pública do Governo do
Estado da Bahia em Parceria com Outros Poderes de Justiça – O Pacto Pela Vida”, que foi apresentado por
militantes da Campanha Reaja ou será mort@ no dia do lançamento do Programa Pacto Pela Vida. Ver em:
https://blogbahianarede.wordpress.com/2011/06/19/reaja-reflete-e-critica-programa-pacto-pela-vida/
13
1.2. Uma Crítica comunitária ao Programa Pacto Pela Vida: estrutura organizativa
da Política de Segurança Publica na Bahia.
O programa Pacto Pela Vida (PPV) foi lançado no dia 06/06/2011 em uma solenidade
com a presença do o então governador Jacques Wagner, o ministro da justiça da época; José
Eduardo Cardoso, o Secretário de Segurança Pública, Mauricio Telles Barbosa, além de
representantes de movimentos sociais organizados, da defensoria pública, ministério público e
dos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo do Estado da Bahia 15.
O Programa inaugurara uma nova fase na estrutura de operacional da Secretaria de
Segurança Pública na Bahia, especialmente, no tocante ao combate ao crime organizado e em
uma política de redução de crimes contra vida e tráfico de entorpecentes (RELATÓRIO
ANUAL DE GOVERNO, 2011). De acordo com gestores do Governo o principal diferencial
do Programa seria seu caráter transversal e integrado, no sentido de articular operações de
repressão e ocupação militar em bairros com altos índices de criminalidade, com a atuação
coordenada de outros órgãos da administração pública Estadual; Secretarias de Saúde,
14
De acordo depoimento do Governador Rui Costa a PATAMO tem a “função de garantir o direito de ir e vir
dos baianos. Na prática, a unidade especializada atuará fazendo ocupações em localidades em que seja
percebida a necessidade de intervenção maior no estado” (INFORME BAIANO, 2007). Ver em:
http://informebaiano.com.br/40967/policia/pega-eles-patamo-nova-unidade-da-pm-vai-atuar-no-combate-ao-
crime-organizado acessado em;
15
Uma das muitas Matérias sobre lançamento do Programa Pacto Pela Vida;
http://www.vermelho.org.br/noticia/155882-1
14
Esporte, Cultura, de Promoção da Igualdade Racial, além do Ministério Público Estadual 16.
Nas palavras do então secretario de Segurança Pública Mauricio Barbosa,
O Pacto é uma nova visão de enfrentamento a questão da Segurança Publica, que
não só prevê ações de policia, muito pelo contrario. Temos ações sim, voltadas para
prevenção e repressão qualificada, como implantação das Bases Comunitárias, como
a criação do departamento de Homicídio, como a contratação de novos policiais e
novas viaturas. Mas queremos dar uma visão muito maior, muito mais ampla pras
causas que levam a prática desses crimes (Secretario de Segurança Pública Mauricio
Barbosa, entrevista SECOM–BA;
https://www.youtube.com/watch?v=pBdaa_zTKYs) (grifo nosso).
16
Ministério Público Estadual presente no lançamento do Programa Pacto Pela Vida;
https://www.mpba.mp.br/area/ceosp/noticias/26664
15
17
Ver matéria “Reaja crítica e reflete Pacto pela vida” https://blogbahianarede.wordpress.com/2011/06/19/reaja-
reflete-e-critica-programa-pacto-pela-vida/
18
Não estava presente nesse dia, nem mesmo era militante da organização, entretanto, em diversos momentos de
minha trajetória de militância na Campanha reaja ou será mort@, a história da “invasão” do lançamento do
Pacto Pela Vida já foi contada diversas vezes, de diferentes olhares, mas um fato político comum ; “ Invadimos o
bagui” como me disse um dos fundadores da Campanha Reaja.
16
19
O documento em questão é: Algumas Considerações sobre o Projeto de Segurança Pública do Governo do
Estado da Bahia em Parceria com Outros Poderes de Justiça. Disponível em;
http://quilombox.blogspot.com.br/2011/06/algumas-consideracoes-sobre-o-projeto.html
20
Quando utilizarmos a palavra Organização em letra maiúscula estaremos nos referirmos especificamente a
Campanha Reaja ou será mort@.
17
Por fim, o documento aponta como a idéia de Pacto Pela Vida, confirma o quão a Vida
– enquanto bem inviolável a ser protegida pelo Estado – tem sido violada constantemente no
Estado da Bahia, de maneira que, a constituição do Programa apenas confirmaria a tragédia
humana que estaria em curso. Tragédia essa, que atinge de sobremaneira a população negra,
de baixa escolaridade e moradora de periferias urbanas e rurais (MAPA DA VIOLÊNCIA,
2012; 2014). O documento também sinaliza que se o interesse do Estado é tratar de fato de
um Pacto Pela Vida, o Governo da Bahia deveria investir menos em dispositivos de controle
e punitivos de segurança – como as BCS – e apresentar “instrumentos em política cultural,
política de saúde, educação, saneamento, política pública ao invés de militarização do espaço
urbano” (Quilomboxis, 2011).
Diante desse quadro, a Campanha Reaja ou será Mort@ encerra o texto com
proposições – que segundo a Organização – seriam eixos centrais na montagem de um
verdadeiro e responsável Pacto Pela Vida,
criminalidade como modus operandi por excelência. O baralho do crime, por exemplo,
demonstra como dispositivos de segurança que reafirmam a noção de inimigo interno têm
sido utilizados para justificar o total desrespeito por parte do Estado, por direitos humanos
fundamentais como o princípio do contraditório, da ampla defesa e do processo legal.
Para além de uma projeção dos caminhos organizacionais do Pacto Pela Vida, a
Organização delineia uma crítica comunitária radical a estratégia de Segurança Pública
adotada pelo Governo 21 . Estratégia essa, que não é uma excepcionalidade da política de
Segurança Pública da Bahia, mas sim, a ramificação de um padrão mórbido de soberania
(Mbembe, 2003; 2014) que tem organizado os padrões de governança nas democracias
ocidentais contemporâneas (Mbembe, 2003; 2014).
Poucos meses após o lançamento do Programa Pacto Pela Vida – ainda em 2011 – o
Governo do Estado da Bahia lança o relatório “Garantir segurança e integridade ao cidadão,
centrando ações na informação, inteligência, na prevenção e no respeito aos direitos
humanos” (2011), onde apresenta as diretrizes estratégicas do Programa. Além de apresentar
de maneira sistematizada, estatísticas referentes a orçamentos na área Segurança Pública no
Estado (RELATORIO ANUAL DE GOVERNO, 2011).
O balanço organizacional dos primeiros seis meses do Programa Pacto Pela Vida, da
conta de demonstrar como as críticas da Campanha Reaja ou será mort@ ao Programa não só
faziam sentido, mas se concretizaram via de facto, diante de frondosos investimentos do
Governo da Bahia em tecnologias de repressão e monitoramento, construção de instituições
de sequestro, armamento exponencial da corporação policial, instituição do Baralho do Crime
e outros dispositivos de etiquetamento racial (RELATÓRIO ANUAL DE GOVERNO, 2011).
De acordo esse mesmo relatório, o Governo da Bahia em 2011 adquiriu 816 veículos,
um investimento de cerca de 16 milhões de reais, sendo que 604 desses veículos foram
direcionados para estruturação da frota da Polícia Militar. Ainda em 2011 foram investidos 11
milhões de reais para aquisição de material bélico, fardamento e equipamentos de combate;
120 escudos anti-tumulto, 930 coletes balísticos, 3659 armas de fogo e 11.110.450 cartuchos
com munição (RELATÓRIO ANUAL DE GOVERNO, 2011).
Além da montagem de uma nova engenharia logístico-policial, o Pacto Pela Vida
investiu em ações de inovação tática, como por exemplo, o estabelecimento de uma
tecnologia de segurança que passou a ser conhecida como; o baralho do crime. Mesmo diante
21
Quando usar a palavra Governo em letra maiúscula estaremos nos referindo ao Governo da Bahia no período
de tempo analisado; 2011-2018.
19
da denúncia realizada pela Campanha Reaja sobre a grave violação de direitos humanos
fundamentais que estrutura o Baralho do crime – como a transgressão do princípio do
contraditório, da ampla defesa e da negação do processo legal – a SSP-BA, adotou o Baralho
do Crime, como política de segurança legítima e amplamente divulgada como recurso de
interação entre polícia e comunidade,
Cento e vinte e três anos depois da proclamação do pacto abolicionista “fajuto” que
as elites fizeram entre si, nos tirando da condição legal de escravizados e nos
empurrando para a quase perpétua exclusão dos meios de produção, de participação
e do exercício de poder a que temos direito, o Estado, compreendido como os
poderes de justiça, o poder legislativo, executivo e agora a defensoria pública, nos
convoca a pactuarmos pela proteção da vida. Entendemos que esse pacto, pela vida,
já está expresso em nosso ordenamento jurídico e que o Constituinte Originário
imprimiu no artigo 5º e esparsamente em toda nossa carta mãe, os fundamentos de
um estado democrático de direito, sendo o direito à vida e à vida digna sua
expressão máxima. Portanto, segundo várias correntes doutrinárias e o próprio corpo
de juízes supremos - (STF) Guardiões da Constituição, excetuando “caso de Guerra
21
22
Fórum Brasileiro de Segurança Pública
23
Em números; 2.567.044.003,25
22
24
Título de pesquisa publicada na pagina do Fórum Brasileiro de Segurança Publica, ano de 2017. Ver mais em;
http://www.forumseguranca.org.br/a-cada-3-brasileiros-1-tem-parente-ou-amigo-vitima-de-assassinato/
25
ONU pede o fim da policia militar no Brasil: http://institutopaulofonteles.org.br/2016/09/24/conselho-da-onu-
recomenda-fim-da-policia-militar-no-brasil/
26
Ver em http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/10/1827079-nove-pessoas-sao-mortas-por-policiais-a-
cada-dia-no-pais.shtml . Acessado em 09/06/2017 . As 00:40 min
23
Para termos uma noção do trauma em curso, apenas entre os anos de 2011 e 2015, foram registradas
cerca de 278.839 mortes violentas intencionais27 no Brasil, sendo que no mesmo período de tempo a Síria –
em guerra civil declarada - registrou cerca de 256.124 mortes violentas (ATLAS DA VIOLÊNCIA,
2017), esse conflito alcançou proporções apocalípticas na Bahia, ao ponto que atualmente,
segundo o mesmo documento, 12 pessoas são assassinadas todos os dias por disparos de
armas de fogo. O país ocupa atualmente o ranking número um no quesito letalidade na ação policial,
superando inclusive, países como Honduras que é considerado por agências internacionais como o país mais
violento do mundo em termos proporcionais (ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2017).
Diante dessa conjuntura, recentemente uma pesquisa de alcance nacional produzida pelo Fórum
Brasileiro de Segurança Pública (FBSP/Data Folha 28) sob encomenda do Instituto Vida, divulgou resultados
alarmantes sobre a realidade de violência experienciada por brasileiros/as de maneira geral. De acordo a
pesquisa cerca de 56 milhões de brasileiros com mais de 16 anos possuem um amigo ou parente assassinado;
uma verdadeira hecatombe. Cabe esmiuçarmos alguns aspectos da pesquisa em questão, pois para além de
tentar quantificar os altos índices de mortes violentas no Brasil, a investigação deu conta de mensurar aspectos
da experiência e percepção social dos brasileiros em torno do alto índice de mortes violentas no Brasil.
De acordo o documento, 16 milhões de brasileiros já receberam ameaças de homicídio e 7,5 milhões
já sofreram algum ferimento por arma de fogo. Ainda segundo a mesma pesquisa, cerca de 20 milhões de
habitantes perderam um parente, amigo ou conhecido decorrente de incursões policiais letais e 17% da
população tem um parente, amigo ou conhecido desaparecido.
Em relação à percepção dos brasileiros referente à violência e segurança pública o estudo aponta que
94% da população acredita que no Brasil as taxas de homicídios são altíssimas. 64% da população reconhece
que as maiores vítimas da violência letal no Brasil são jovens, negros e do sexo masculino. A pesquisa
demonstra que 93% dos brasileiros defendem que a polícia deve defender a vida acima de tudo, entretanto,
56% acreditam que a polícia tem o direito de ocupar sem ordem judicial residências localizadas em favelas,
ocupações e comunidades, desde que, para enfrentar o que chamam de “criminalidade”.
Sobre as estatísticas criminais o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2016) nos revela
dados assombrosos no tocante à violência letal no Brasil. A cada nove minutos uma pessoa é assassinada no
Brasil, sendo que em 2015, 58 mil pessoas foram assassinadas; 54% jovens de 14 a 24 anos, 73% dos quais,
27
Por mortes violentas intencionais estamos tratando de; homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de
morte e mortes decorrentes de intervenção policial.
28
Pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Publica em parceria com o instituto Data Folha,
utilizou uma abordagem metodológica quantitativo-qualitativa e entrevistou brasileiros/as a partir dos 16 anos,
em 150 municípios de pequeno, médio e grande porte. Ver mais em;
http://www.forumseguranca.org.br/publicacoes/pesquisa-instinto-de-vida/ . Acessado em 09/06/2017 as 00:50
24
jovens homens negros (FBSP, 2016). O ABSP29 registra que no ano de 2015 cerca de 3.320 pessoas vieram a
óbito em operações policiais letais. Retomando uma série histórica, esse mesmo documento aponta que do ano
de 2009 a 2015, cerca de 17.688 pessoas foram assassinadas pela corporação policial no Brasil (FBSP, 2016).
Nesse mesmo período de tempo – de 2009 a 2015 – 2543 policiais foram assassinados.
Na Bahia entre os anos de 2014-5 o estado alcançou a assombrosa cifra de 11.472 de vítimas de
homicídios (FBSP, 2016). Essas estatísticas macabras chamaram atenção da mídia corporativa, como por
exemplo, o portal Aratu on-line, ligado a rede de televisão SBT , que publicou em maio de 2015 a matéria
intitulada “Gestão do Atual secretário da SSP ultrapassa 25 mil homicídios: 15 baianos mortos por dia 30” ,
que faz um cruzamento de dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2014), mapa da violência
(2014) e DATASUS, apontando que de janeiro de 2011 a maio de 2015, mais de 25 mil baianos foram
assassinados. O marco temporal da matéria se refere à Gestão da pasta de segurança pública por Maurício
Barbosa, carioca, bacharel em direito, delegado da policia federal e desde 2011 – ano da implementação do
Pacto Pela Vida – Secretário de segurança Pública do Estado da Bahia. A matéria agrupa os dados estatísticos
referentes a homicídios dolosos de aproximadamente nove anos, tomando como marcos cronológicos os
consecutivos Secretários de Segurança Publica do Estado da Bahia, desde os anos de 2003,
O cruzamento de dados realizado também mostra como Chacinas tem tido uma recorrente incidência
nas estatísticas criminais na Bahia, de modo que nos 53 meses de gestão do secretário Maurício Barbosa, 17
chacinas foram contabilizadas,
29
Anuário Brasileiro de Segurança Publica
30
Ver matéria completa em: http://www.aratuonline.com.br/blogdepabloreis/?p=475v . Acessado em Junho de
2015
25
Os dados expostos aqui ilustram como a morte violenta tem sido uma constante na
experiência de vida dos jovens negros moradores de periferias urbanas no Brasil (FBSP,
2015; MAPA DA VIOLÊNCIA, 2016). Como aponta a literatura que relaciona violência
urbana, brutalidade policial e racismo, o Estado brasileiro, como o país que mais mata
negros/as no mundo, tem no aparato policial um dos principais dispositivos legitimadores de
uma política de segurança pública alicerçada no extermínio sistemático de jovens negros
(ALVES, 2010; 2011, VARGAS, 2010; FLAUZINO, 2008).
Ou mesmo, estes números evidenciam o caráter genocida do Estado Brasileiro, como
o movimento negro há mais de 30 anos tem afirmado e denunciado a órgãos internacionais
(NASCIMENTO, 1978; SANTOS, 2008; DOS SANTOS, 2014; NZUMBI, 2011). Nesse
sentido, aferir as mortes praticadas por agentes do Estado tem uma relevância peculiar por
delimitar os limites e possibilidades do Estado democrático de direito, além de expor as
fragilidades na manutenção de direitos humanos básicos no que tange as experiências de vida
e de morte de grupos populacionais historicamente racializados.
Os investimentos no arsenal demonstram o nível de comprometimento do Governo
baiano com a política de militarização da estrutura policial e, conseqüentemente, com os altos
índices de letalidade das estatísticas criminais do Estado. Em 2013 o então Governador da
Bahia, Jaques Wagner (PT), investiu cerca de 44 milhões na compra de 370 viaturas, 8.440
armas – entre pistolas e metralhadora – 17.900 coletes balísticos, além de uniformes e muita
munição de grosso calibre31. Dando continuidade a estratégia de militarização da Segurança
Pública, recentemente o Governador Rui Costa (PT) anunciou a compra de 1,4 mil veículos –
caminhonetes, minivans e motos – um investimento de aproximadamente 100 milhões de
reais.
31
Ver mais em http://www.policiaeviola.jornalfolhadoestado.com/noticias/985/governo-da-bahia-entrega-370-
viaturas-e-equipamentos-de-armamento-para-reforcar-a-seguranca-do-estado .Acessado no dia 09/06/2017 as
2:40 min
26
Números esses que não superam os 260 milhões investidos na construção do Centro
de Operações e Inteligência de Segurança Pública 2 de Julho32. Como o maior centro de
operações policiais da América do Sul, o COISP-2 de Julho, conta com cerca de 400
funcionários e uma mega unidade operacional que agrupa todas as forças de repressão do
Estado da Bahia, articulando o uso militar de tecnologias digitais, a vigilância disciplinar da
população, através do monitoramento de 1.000 câmeras integradas, que captam imagens do
metrô de Salvador, das BR-324/116, além de imagens de câmeras da iniciativa privada 33.
A estratégia de militarização da segurança pública tem tornado as forças de segurança
na Bahia verdadeiras máquinas de guerra (MBEMBE, 2003). Nesse contexto, as forças
Policiais Militares, que nas democracias modernas de massa teriam a função do policiamento
ostensivo e da manutenção da ordem pública, passam a exercer de sobremaneira uma função
que em tese só exerceriam em regimes de exceção.
Diante desse contexto, retomaremos criticamente parte da obra do filósofo Achille
Mbembe para dar conta de compreender como a violência estrutural e morte violenta tem sido
uma experiência recorrente para grupos racializados no interior de formações sociais com
raízes coloniais. E mais que isso, como a gestão estatal de dispositivos de segurança nas
democracias multirraciais contemporâneas, tem sido baseada em uma noção de soberania
pautada no poder de matar, mutilar, transmitir terror, vigiar e controlar grupos historicamente
marginalizados dentro de fronteiras nacionais (MBEMBE, 2003;2018;2019).
32
Ver mais em http://www.ssp.ba.gov.br/2016/07/1237/Centro-de-Operacoes-inicia-nova-fase-da-Seguranca-
Publica.html . Acessado no dia 09/06/2017 as 2:50 min
33
http://www.ssp.ba.gov.br/2016/07/1237/Centro-de-Operacoes-inicia-nova-fase-da-Seguranca-Publica.html.
Acessado no dia 09/06/2017 as 3:20 min
27
política e poder podem ser mais bem compreendidas através das noções de necropoder ou
necropolítica. Tendo em vista que a matança generalizada de grupos racializados tornou-se a
espinha dorsal para manutenção e legitimação dos padrões de governança nas democracias
ocidentais contemporâneas (Mbembe, 2003).
Nas várias formas que em nosso mundo contemporâneo, armas são empregadas no
interesse de destruição máxima de pessoas e a criação de mundos de morte, formas
novas e únicas de existência social nas quais vastas populações são sujeitas a
condições de vida que conferem a elas o status de morte em vida (MBEMBE, 2003,
p. 28).
Assim,
[...] O poder ainda depende do firme controle sobre os corpos (ou sobre concentrá-
los em campos), as novas tecnologias de destruição estão menos preocupadas em
conformar os corpos em aparatos disciplinares que, quando chegar a hora,
conformá-los á ordem da máxima economia representada pelo massacre
(MBEMBE, 2003, p.34).
Contudo, a forma contemporânea de gerência estatal da morte possui raízes históricas na formação do
Estado moderno e em sua relação intrínseca com territórios militarmente colonizados (Mbembe, 2003). As
fontes são múltiplas e qualquer consideração histórica sobre o caráter necropolítico da Modernidade Ocidental
deve tomar a escravidão racial moderna como interface de análise (MBEMBE, 2003; MOORE, 2012;
FANON, 2013).
A estrutura social do sistema de plantation configura-se como um verdadeiro Estado permanente de
exceção (Mbembe, 2003) onde a humanidade do escravizado é usurpada diante de uma tripla condição; “perda
de um lar, perda de direitos sobre seu corpo e perda de status político” (Mbembe, 2003, pag. 10). O escravizado
é coisificado pela estrutura jurídico-política da colônia, sendo um artigo necessitado, largamente utilizado e que
é mantido vivo em um estado de danos permanente (MBEMBE, 2003). Sujeitado cotidianamente a violência
estrutural, diante de uma estrutura social edificada em práticas de terror racial,
configura-se como um território de violência estrutural, um campo para testes de tecnologias de massacre e
burocratização da morte (Mbembe, 2003; FANON, 2005). As colônias enquanto formações sociais de terror
racial (MBEMBE, 2003) foram laboratórios de aplicação de níveis de violência anteriormente desconhecidos
pela Europa Ocidental. Tal violência estrutural, que durante séculos foi reservada aos povos colonizados, foi
entendida aos povos branco-ocidentais, tendo como expressão máxima a experiência de serialização e
industrialização da morte durante o período da Alemanha Nazista,
Tomando uma perspectiva histórica, um numero de analises afirmou que as premissas materiais do
extermínio Nazista são encontradas no colonialismo imperial por um lado e, por outro, na serialização
de mecanismos técnicos para levar pessoas a morte. Mecanismos desenvolvidos entre a revolução
industrial e a Primeira grande guerra (MBEMBE, 2003, p. 7).
A escravidão racial moderna, a empresa colonial moderna, a formação do Estado Moderno Europeu e
o imperialismo colonial, são as bases históricas da formação social de terror que Achille Mbembe (2003)
chama de Necropolítica ou necropoder. Ou seja, o conjunto de dispositivos operados pelo Estado na
“destruição material de corpos humanos e populações” (Mbembe, 2003, p. 3) é edificado durante o contexto
histórico da formação da Modernidade Ocidental, porém, de acordo o argumento do autor “Ao invés de
considerar a razão como a verdade do sujeito, nós podemos olhar outras categorias fundacionais que são
menos abstratas e mais tácteis, tais como vida e morte” (Mbembe, 2003, p. 3).
O autor argumenta que o processo de formação da modernidade ocidental tem sido conceituado em
uma perspectiva normativa, que tem tomado de maneira acrítica o conceito de razão como o elemento
fundacional do projeto de modernidade (MBEMBE, 2003). O autor demonstra que a violência estrutural foi a
principal tecnologia civilizacional empregada na expansão e consolidação de soberanias nacionais e
supranacionais da Modernidade Ocidental. A noção abstrata de razão, é nesse esquema explicativo deslocada e
as tecnologias de massacre e morte, passam a ocupar um papel nevrálgico no argumento e análise em curso,
A violência constituía a forma original do direito, e a exceção fornecia a estrutura de soberania. Cada
estágio de imperialismo também envolvia certas tecnologias chave; canhoneira, linhas de navio a vapor,
cabos telegráficos submarinos e estradas de ferro... A soberania significava ocupação, e a ocupação
significava relegar os colonizados a uma terceira zona entre o estado de sujeito e o estado de objeto
(MBEMBE, 2003, p. 14).
Formações sociais de terror baseadas na Necropolítica não são experiências históricas de um passado
distante ou específico da modernidade ocidental (MBEMBE, 2003). Contemporaneamente o Estado tem
utilizado táticas de ocupação colonial, dentro e fora de fronteiras nacionais, combinando uso militar de
tecnologias, táticas de cercos, sítios, expulsão e captura em massa de grupos populacionais racializados, como
recurso civilizacional de manutenção da soberania (MBEMBE, 2003). A militarização da vida cotidiana
através do que Mbembe (2003) chama de belicismo infraestrutural tem instituído em diferentes partes do
Globo, verdadeiros estados de sítio (MBEMBE, 2003). A política nesse contexto é implementada a partir de
29
uma noção de guerra a inimigos internos; que mesmo juridicamente sendo cidadãos permanecem em
permanente estado de sítio,
O estado de sitio é ele mesmo uma instituição militar. Ele permite uma modalidade de matança que não
distingue entre inimigo externo e o interno. Populações inteiras são alvos de soberania. As vilas e
cidades sitiadas são isoladas e cortadas fora do mundo. A vida cotidiana é militarizada. É dada aos
comandantes militares locais a liberdade de usar a discrição sobre quando e em quem atirar
(MBEMBE, 2003, p. 18).
34
De acordo depoimento do Governador Rui Costa a PATAMO tem a “função de garantir o direito de ir e vir
dos baianos. Na prática, a unidade especializada atuará fazendo ocupações em localidades em que seja
percebida a necessidade de intervenção maior no estado” (INFORME BAIANO,2007). Ver em:
http://informebaiano.com.br/40967/policia/pega-eles-patamo-nova-unidade-da-pm-vai-atuar-no-combate-ao-
crime-organizado
31
A formação social de terror (MBEMBE, 2003) específica que chamamos de necropolítica tem
mundializado tecnologias de controle, repressão e aniquilação em massa, que tem dividido grupos
populacionais, entre aqueles que devam viver e os que devem morrer (MBEMBE, 2003; ALVES; 2010;
2011). A Segurança Pública tem sido nesse contexto a pedra angular na gestão espacial do terror estatal nas
cidades neoliberais contemporâneas (VARGAS, 2005; ALVES, 2011).
Pesquisas recentes na área de segurança pública demonstram como em diferenciados contextos
histórico-geográficos, de maneira especial após os ataques ao império estadunidense em setembro de 2001, o
Estado neoliberal tem consolidado um modelo planetário de governança e controle territorial de áreas tidas
como perigosas, problemáticas ou com forte incidência da criminalidade (Mbembe, 2003; ALVES, 2010;
2011; 2016). Essas políticas de controle e etiquetamento de territórios, grupos populacionais ou tipos de
pessoas, tem sido largamente utilizada em contextos de conflitos armados declarados – como na palestina – ou
em democracias multirraciais (VARGAS, 2017) como na África do Sul Pós-Apartheid,
Analisando o caso da cidade de Cape Town, na África do Sul, Steve Robins (2002) observa que o
estado neoliberal sul-africano tem empregado novas formas de governança territorial para garantir o
controle de certas áreas da cidade tidas como “problemáticas”. As políticas de tolerância zero, as
estratégias de policiamento comunitário, os condomínios fechados e os novos designs arquitetônicos
são algumas das estratégias usadas na Cape Town Pós-apartheid (ALVES, 2011, p. 117).
O estado brasileiro tem incorporado em sua engenharia de segurança pública tecnologias de controle
territorial e da população, que dialogam organizacionalmente e ideologicamente com os modelos
necropolíticos vigentes na ordem global neoliberal (ALVES, 2016). Como podemos analisar nas
sessões anteriores, operações policiais em larga escala e hiper-militarizadas, tem deixado de
ser um cotidiano exclusivamente das favelas cariocas e passa a ser uma engenharia de
segurança pública presente em outros Estados da União; no caso em tela a Bahia.
Jaime Amparo Alves (2011; 2016) demonstra em suas pesquisas que as constantes
operações policiais em favelas e comunidades periféricas de todo o Brasil, devem ser
entendidas dentro de um contexto de produção racial do espaço urbano (ALVES, 2011) onde
imaginário racial, criminalização e produção espacial/racial do medo, compõem o que tem
chamado de governança Necropolitica (ALVES, 2013; 2016) ou estratégia territorial de
dominação racial (ALVES, 2011). Tais aspectos estão presentes na produção material e
simbólica da Segurança Pública no Brasil, notadamente, no tocante aos altos índices de
letalidade na ação policial, no superencarceramento em massa de negros/as e nos mais de 50
32
mil homicídios anuais no Brasil, que atinge de sobremaneira um grupo especifico; Jovens,
homens, negros, moradores de periferias urbanas,
Nesse sentido, as operações nas favelas realizadas pela polícia devem ser compreendias no contexto de
estratégias de criação de uma “imagem controladora” (COLLINS, 2005), de corpos e geografias vistos
como ameaça a ordem branca. Helicópteros, armas sofisticadas, policiais, câmeras, repórteres, são
dispositivos que produzem não apenas narrativas de soberania do Estado, mas também os corpos e
geografias puníveis. Como se evidencia nas disparidades raciais das taxas de encarceramento e
homicídios no Brasil, tais narrativas sustentam um padrão macabro de dominação racial ao qual tenho
chamado de governança Necropolitica (ALVES, 2016, p. 60).
A noção de governança Necropolítica (ALVES, 2013; 2016) nos fornece subsídios analíticos para
compreender como a Política de Segurança Pública na Bahia – tomando como marco o Programa Pacto Pela
Vida – tem sido operacionalizada em uma perspectiva militarizada e racialmente seletiva. Nesses termos, as
políticas criminais agenciadas pelo Programa, serão entendidas como um conjunto de dispositivos
Necropolítica/necropoder que dão sedimento organizacional a uma estratégia territorial de dominação racial
(ALVES, 2011).
A Cartilha de Orientação Policial – tatuagens: desvendando segredos35 (SILVA, 2012)
foi publicada pelo Governo do Estado da Bahia, em 2012. A cartilha é fruto do trabalho de
investigação criminal do capitão Alden José Lazaro da Silva (2012), instrutor da Academia de
Polícia Militar e especialista em Prevenção da violência, promoção da segurança e cidadania,
e traz cerca de 38 tipos de tatuagens que segundo o argumento do autor são associadas a tipos
criminais e comportamentos criminosos. O documento tem o objetivo de servir como
ferramenta policial de identificação de criminosos em potencial, sobretudo, em operações
ostensivas de patrulhamento nas ruas,
A cartilha tem formato de cátalogo ilustrado, onde uma série de tatuagens são apresentadas com foco
nas partes do corpo onde foi fixada. Além das fotografias o material de orientação policial possui descrições
sobre os significados de cada tatuagem e o “tipo criminoso” que as utiliza. O objetivo do material é municiar
os agentes de segurança no contexto de operações de patrulhamento, facilitando o reconhecimento visual de
suspeitos que possuem tatuagens que “invariavelmente são encontradas nos corpos de pessoas que cometem
delitos” (SILVA, 2012, p. 9).
35
A cartilha esta disponível online em: http://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/leia-cartilha-que-explica-
significado-das-tatuagens-no-mundo-do-crime/
33
36
Ofá é o arco portado pela divindade afrobrasileira Oxossi. Oxóssi (Òsóòsi) é o deus caçador, senhor da floresta
e de todos os seres que nela habitam, orixá da fartura e da riqueza. Oxóssi é o rei de Kêtu, segundo dizem, a
origem da dinastia. A Oxóssi são conferidos os títulos de Alakétu, Rei, Senhor de Kêtu, e Oníìlé, o dono da
Terra, pois na África cabia ao caçador descobrir o local ideal para instalar uma aldeia, tornando-se assim o
primeiro ocupante do lugar, com autoridade sobre os futuros habitantes. Okê Arô é sua saudação. Ver Figura 2
nos anexos
34
37
Para ver a versão online da cartilha acessar: https://www.youtube.com/watch?v=U-UTxJk5dHg
35
neolombrosiana 38 , onde além de nos separarem por tipos – tatuados e não tatuados – os
policiais fotografaram os rostos e tatuagens de pelo menos cinco dos jovens presentes.
Situação essa documentada pela Campanha Reaja ou será Mort@ na segunda edição de
Jornal Assata Shakur39, em um depoimento feito por um dos jovens que estava presente na
abordagem em questão e teve sua tatuagem de Taz Mania fotografada,
Ah véi, se eu falar tudo ‘cê ta ligado como é, ne? Muitas coisas a gente não fala. Até
as Tia tem medo de falar. Mas eu vejo bem como entra lá no gueto. Assim que elas
aparece abre logo a porta da viatura e bala pra cima de quem tiver na rua. Outra
coisa também que é algo subterrâneo que eles criaram ne? De ficar tirando foto das
pessoas. Tão pegando os preto, dando o “baculejo”, tirando foto e escondendo. Num
sei pra que essas foto, não sei pra que eles tão mapeando essas pessoas (JORNAL
ASSATA SHAKUR, 2016, p.5).
Na época conversando entre nós, tínhamos suspeitado que a abordagem tivesse sido
uma represália, frente uma série de atividades comunitárias realizadas pelo Cine do Povo e a
Campanha Reaja ou Será Mort@ no bairro do Viradouro (Cachoeira-BA) no ano de 2014.
Ações comunitárias que culminaram no evento arte na Comunidade: Consciência Negra
Contra Brutalidade Policial40.
Meses mais tarde, conversando com um militante mais velho da Campanha Reaja,
descobri a existência da cartilha da Tatuagem e pude ter acesso a sua versão impressa. Lendo
o material não pude deixar de lembrar do “incidente” em cachoeira, assim como não pude
deixar de notar que várias das tatuagens catalogadas em tipos criminais, estavam marcadas
nos corpos de muitos de meus amigos, alguns familiares, vizinhos, além de outras pessoas do
circuito social que transito, que possuem tatuagens como; Carpa, ferramentas de orixás, Vida
Loka, Negro Drama, Desenhos animados, personagens de filme de terror, teia de aranha,
dentre outras. Tal qual agora, quando li pela primeira vez a Cartilha de orientação policial:
Tatuagens, desvendando segredos (SILVA, 2012) vieram em minha mente à obra e doutrina
criminal de Cesare Lombroso (2013).
Cesare Lombroso, médico Italiano especialista em psiquiatria, nascido na cidade de
Verona, dedicou sua vida ao estudo da criminalidade humana, especialmente, na tentativa de
38
Sobre a doutrina criminal lombrosiana discorreremos nos próximos parágrafos.
39
O Jornal Assata Shakur é uma publicação da Campanha Reaja ou será mort@s. Com duas publicações de 3.000
tiragens o Jornal Leva o nome de Assata Shakur, uma histórica militante radical negra que esteve inserida no
final dos anos 60 e início dos 70 no Partido dos Panteras Negras e posteriormente, como menbro-fundadora do
Black Liberation Army . De acordo o editorial de sua primeira edição o Jornal se insere em um contexto de
reerguimento da “imprensa preta, comunitária, pan-africanista e de combate” (JORNAL ASSATA SHAKUR,
2016, pag2).
40
O evento Arte na Comunidade: Consciência Negra Contra Brutalidade Policial foi uma ação cultural e de
caráter de formação que buscou alertar a sociedade sobre a crescente onda de brutalidade policial nas periferias
de cachoeira-BA e, sobretudo, da necessidade da construção de estratégias comunitárias no enfrentamento a esse
aspecto especifico do Genocídio do Povo Negro. Ver mais em;
http://reajanasruas.blogspot.com.br/2014/12/nota-publica-de-enfrentamento.html
36
41
CPI aberta para tratar dos altos índices de violência letal contra jovens negros. Para saber mais ver em:
http://www.camara.leg.br/internet/sitaqweb/textoHTML.asp?etapa=11&nuSessao=0410/15&nuQuarto=0&nuOr
ador=0&nuInsercao=0&dtHorarioQuarto=14:30&sgFaseSessao=&Data=28/4/2015&txApelido=C%20PI%20-
%20VIOL%C3%8ANCIA%20CONTRA%20JOVENS%20NEGROS%20E%20POBRES&txFaseSessao=Reuni
%C3%A3o%20Deliberativa%20Ordin%C3%A1ria&txTipoSessao=&dtHoraQuarto=14:30&txEtapa=
38
pode ser morto ou pode ser preso, porque, segundo esse especialista de meia-pataca,
é o cobrador do tráfico de drogas (Hamilton Borges dos Santos Walê, representando
a Campanha Reaja ou será mort@ em depoimento à CPI - violência contra jovens
negros e pobre. CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2015).
42
Ver relatório completo do INFOPEN em; https://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-
infopen-nesta-tercafeira/relatorio-depen-versao-web.pdf
39
43
Lançamento da PATAMO: http://informebaiano.com.br/40967/policia/pega-eles-patamo-nova-unidade-da-pm-
vai-atuar-no-combate-ao-crime-organizado
41
É uma reposta à sociedade que terá um efeito placebo. Ou seja, não surtirá efeito
algum. Um tipo de polícia que emprega a punição coercitiva sempre será um
fracasso. O que existe é uma lógica de segurança pública baseada na morte, no
enfrentamento. Os próprios policiais deveriam ter consciência crítica (Hamilton
Borges dos Santos Walê. JORNAL CORREIO, 2017).
44
Comando de Policiamento Especializado
42
45
. Em três dias de operações cinco jovens foram mortos, que de acordo a mídia, “tinham
envolvimento com o tráfico de drogas, foram mortos em confronto com forças policiais”
(Jornal Correio, 2017).
Entretanto, ambas as versões, da mídia e da SSP-BA, foram contestadas por um grupo
de familiares e amigos dos jovens assassinados, que pararam um trecho da Avenida Juracy
Magalhães, ateando fogo em Pneus 46 . Os familiares denunciaram que os jovens foram
baleados por policias da PATAMO e, posteriormente levados com vida por esses mesmos
policiais. Horas depois os jovens “foram encontrados mortos no Hospital Geral do Estado
(HGE)” (Jornal Correio, 2017). Essa foi a quarta ocupação territorial militar realizada pelo
grupamento especial da PM 47, que mesmo revelando publicamente um padrão operacional
baseado no enfrentamento e na morte de um “inimigo”, não gerou nenhum tipo de
constrangimento, seja por parte da mídia corporativa que noticiou as operações como
positivas no tocante ao combate ao tráfico de drogas, ou por parte da cúpula de segurança
pública do Estado, como demonstra o depoimento abaixo, do coronel Francisco Kerjean
Sampaio Lopes, do Policiamento na Região Integrada de Segurança Pública (Risp) Atlântico,
Força máxima contra essas quadrilhas de tráfico de drogas. Na Bahia a polícia não
recua. As ações ostensivas reforçadas continuam sem hora para acabar. Estamos em
constante conversa com os rodoviários, mas o combate a grupos criminosos que
tentam ditar regras será prioridade (JORNAL CORREIO, 2017).
45
Ver noticia em; http://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/unidade-especial-da-pm-ja-fez-quatro-
ocupacoes-em-salvador-saiba-mais/
46
Ver “Protesto fecha Juracy Magalhães após mortes no Vale das Pedrinhas” em;
http://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/protesto-fecha-juracy-magalhaes-apos-mortes-no-vale-das-
pedrinhas/
47
A primeira ocupação da PATAMO aconteceu entre os dias 11 e 13 de agosto quando um efetivo de 60 policiais
militares ocuparam o Engenho Velho da Federação. Outra operação da unidade começou no dia 17 de agosto
quando o grupo atuou no bairro da Liberdade. A terceira ocupação aconteceu novamente no Engenho Velho da
Federação no início de setembro. Ver mais em; http://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/cinco-sao-
mortos-pela-policia-em-tres-dias-no-complexo-do-nordeste-de-amaralina/
43
A indústria cultural articula sua retórica racial não em termos de raça, mas em
termos de “pobreza”, “criminalidade”, “feiura”, tráfico, um discurso que convida a
todos a travar uma guerra contra o “criminoso”, “o “inimigo”. Quem é o inimigo
publico, por excelência, na “guerra” contra a violência urbana no Brasil? (ALVES,
2016, p.71).
48
Ver mais em: http://exame.abril.com.br/brasil/estes-sao-os-estados-onde-a-policia-mais-mata-no-brasil/
49
Ver mais em “Conselho da ONU recomenda fim da polícia militar do Brasil”;
http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/05/paises-da-onu-recomendam-fim-da-policia-militar-no-brasil.html
44
50
Audiência em questão tinha como tema o assassinato em larga escala de jovens negros no Brasil e foi
provocada por uma articulação comunitária transnacional encabeçada pela Campanha Reaja ou será morta\o. A
organização peticionaria defendeu a tese que as altas taxas de violência letal contra comunidade negra no Brasil
era uma das manifestações de um processo de Genocídio mais amplo. Ver mais em:
http://www.global.org.br/blog/brasil-reconhece-exterminio-da-juventude-negra-em-audiencia-na-oea/ .
Acessado em 09/06/2017 as 14:20 min.
51
Para saber mais sobre a Campanha Reaja ou será Morta\o acompanhe o Blog:
http://reajanasruas.blogspot.com.br/. Acessado em 09/06/2017 as 15h.
45
2003, p.109). Ainda ressalta que tais tecnologias de destruição máxima, são utilizadas em
diferentes contextos geográficos e políticos, como o caso da ocupação colonial
contemporânea da Palestina (MBEMBE, 2003).
A ocupação colonial contemporânea da Palestina combina um conjunto de
dispositivos necropolíticos – discursivos e militares – que maximiza as tecnologias de
destruição do inimigo, mesmo que interno, como é o caso da ocupação militar realizada pelo
Estado de Israel, na faixa de Gaza e Cisjordânia. A combinação nefasta entre discurso
nacional-teocrático, ocupação militar de territórios e investimento em alta tecnologia
armamentista para destruição máxima do inimigo, coloca a ocupação militar contemporânea
da palestina, como “a forma mais completa de necropoder” (MBEMBE, 2003, p. 15). A
tecnologia de massacre utilizada pelo Estado de Israel contra os palestinos são aspectos do
belicismo infra-estrutural (MBEMBE, 2003) presentes nas formações sociais de terror que o
autor chama de necropolítica,
Em outras palavras, belicismo infra-estrutural. Enquanto o canhão do helicóptero
Apache é usado para policiar o ar e para matar a partir de cima, o bulldozer blindado
é usado no solo como uma arma de guerra e intimidação. Em contraste a ocupação
colonial moderna, estas duas armas estabelecem a superioridade de ferramentas de
alta tecnologia do terror contemporâneo (MBEMBE, 2003, p.18).
52
De acordo o pesquisador Luis Antonio Francisco Souza a sanção dessa lei, permitiu que o exercito passasse a
ter atribuições policiais, como revistar pessoas, veículos e embarcações. Além de ser o marco legal que passa a
permitir as constantes ocupações do exercito em favelas, e da militarização do padrão operacional policial
(SOUZA, 2014).
47
Todavia, existem narrativas e experiências sociais que destoam e vão de encontro aos
discursos institucionais proferidos pelos dispositivos de segurança do Estado. Como
evidenciamos no capítulo anterior54, a estratégia adotada pelo Programa Pacto Pela Vida não
diminuiu os altos índices de violência letal que atinge de sobremaneira jovens homens negros
(MAPA DA VIOLÊNCIA, 2012; 2014; 2015). Pelo contrário, as técnicas de matança foram
aprimoradas, especialmente em um contexto de recrudescimento das “tecnologias
contemporâneas de subjugação da vida ao poder da morte” (MBEMBE, 2003, p.28).
É nessa conjuntura de estruturação e expansão dos dispositivos de segurança do
Programa Pacto Pela Vida, que surge no ano de 2013, em Salvador (BA), o Movimento
Contra a UPP na UNEB/Engomadeira. Um agrupamento comunitário de estudantes,
moradores do bairro da Engomadeira e de outras comunidades onde já haviam instalado as
BCS, que se reuniram com o objetivo de barrar a continuidade da construção de uma Base
Comunitária de Segurança em um terreno cedido pela Universidade Estadual da Bahia
(UNEB).
Através de uma metodologia política que articulava ações organizativas dentro e fora
da universidade, esse agrupamento comunitário denunciou o caráter racialmente seletivo das
53
Sobre a lei que rege o Programa de Defesa Social Pacto Pela Vida, ver em: http://governo-
ba.jusbrasil.com.br/legislacao/1029307/lei-12357-11
54
A necropolítica racial no padrão organizacional da Segurança Pública na Bahia (2011-2017).
50
55
Ver emhttp://www.uneb.br/sgc/2015/03/12/comunidade-unebiana-rejeita-construcao-de-bcs-dentro-do-
campus/
56
Sobre ações comunitárias que participo no interior da Bahia
ver:http://coletivoquilombo.blogspot.com/2015/07/cine-do-povo-trabalho-comunitario_11.htmle
http://oganpazan.com.br/dos-bueiros-do-reconcavo-para-o-mundo/
57
A organização em questão é a Campanha Reaja ou Será Morta/o, agrupamento político de negras/os que atuo
desde 2012. Para saber mais dessas experiências, ver textos meus em sites e blogs de mídia independente que
assino como Aganju Shakur.
58
Notícia sobre o tributo em questão, em: http://blogdosolar.wordpress.com/2014/03/20/tributo-a-negro-blul/
51
59
Para mais informações sobre as Marchas Internacionais Contra o Genocídio do Povo Negro, realizadas pela
Campanha Reaja ou Será Morta/o, ver matéria da site Vice: http://www.vice.com/pt_br/article/vv4ne8/o-
movimento-baiano-reaja-ou-sera-morto-esta-na-linha-de-frente-na-luta-contra-o-racismo
60
O Movimento Contra a UPP na UNEB/Engomadeira, ficou comumente conhecido na cidade pela alcunha de
“Movimento Contra a UPP”, assim como, uma nomenclatura adotada pelo conjunto das pessoas que compunham
a militância do Movimento. Desse modo a partir daqui, passo a me referir a esse agrupamento como Movimento
Contra a UPP, muito orientado também, pelas perspectivas das militantes que concederam entrevistas para
realização do presente capítulo.
52
como nos debruçaremos sobre o texto da Lei nº 12.357 que estabelece o Sistema de Defesa
Social – o Programa Pacto pela Vida (BAHIA, 2011).
Tivemos também acesso a um conjunto de documentos produzidos pelo Movimento
Contra a UPP na UNEB/Engomadeira: panfletos, fotografias, bandeiras de luta, cartilhas
informativas e notas públicas redigidas pelo Movimento. Além de entrevistas gravadas com
62
militantes do Movimento , a partir de aplicação de questionário de perguntas
semiestruturadas, que formam um importante bloco de testemunhos orais. Recorremos
também a um conjunto de notícias de jornalismo on-line que se debruçaram sobre o processo
de implantação das BCS na Bahia, formando uma articulação entre os depoimentos o
conjunto de documentos e notícias.
Além dos documentos supracitados, apreendemos estruturas de sentidos no contexto
de minha Participação Observante (VARGAS, 2010) junto ao Movimento. A noção de
participação observante (VARGAS, 2008) é um recurso metodológico fundamental para
confecção de nosso argumento e na apreensão e catalogação dos dados de maneira geral.
Como ressalta o pesquisador João Vargas (2008), e sigo seu pensamento, em estudos
antropológicos de organizações políticas comprometidas com a justiça social, uma prática
etnográfica politicamente engajada é um pressuposto metodológico essencial para efetivação
da pesquisa,
Enquanto a observação participante tradicionalmente coloca ênfase na observação, a
participação observante refere-se à participação ativa no grupo organizado, de modo
que a observação torna-se um apêndice da atividade principal. Na verdade, é assim
que os meus dias foram gastos: depois de horas de inúmeras atividades, á noite, eu ia
escrever notas sobre os acontecimentos do dia e refletir sobre como eles afetaram e
foram flexionados pelas estratégias que estávamos utilizando para combater a
opressão ao povo negro (VARGAS, 2008, p.175).
62
Nessa sessão quando utilizar a palavra Movimento em letra maiúscula estarei me referindo ao Movimento
Contra a UPP.
53
militantes do Movimento Contra a UPP como uma iniciativa inovadora, que vai relevar
aspectos da segurança pública na Bahia, negligenciados pelas universidades e programas de
governo,
— E a gente nessa busca de tentar entender, a gente começou a estudar mesmo sobre
segurança pública. A gente não tinha noção. E não é por que não tínhamos leituras
acadêmicas. Porque as leituras acadêmicas jamais iriam nos proporcionar a realidade
e vivencia do que era aquilo. A gente espera que com esse seu trabalho né Fred, uma
outra leitura, que a gente possa participar desse víeis aí. Porque a gente precisa de
substância para nos auxiliar. (MAGALI, militante do Movimento Contra a UPP na
UNEB/Engomadeira, 02/06/2018).
Perdi as contas das vezes que fui colocado nessa posição de atender a expectativas por
parte dos sujeitos sociais investigados. Minha lealdade é posta à prova todo momento. Mas
ora, em empreitadas etnográficas baseadas na Participação Observante (VARGAS, 2008;
FERREIRA, 2015), lealdade, confiança e compromisso com o grupo organizado estudado,
devem ser apreendidos pelos sujeitos pesquisados como incontestes, para a plena efetivação
da investigação.
A Participação Observante também me municiou metodologicamente na escolha das
militantes, apoiadores e pichadores que foram entrevistad@s. Bem como, foi no contexto da
participação observante (VARGAS, 2008; FERREIRA, 2015) que pude constatar que a
maioria esmagadora das militantes eram mulheres. Posteriormente observando com maior
cuidado, pude apreender que as mulheres não eram apenas a maioria das militantes, como
também a direção política da organização era coordenada exclusivamente por mulheres, uma
delas uma mãe, mulher negra, moradora da Engomadeira. Para aprender os sentidos e
significados dessas mulheres em relação à luta comunitária que protagonizaram, optamos pelo
procedimento de aplicação de um roteiro semiestruturado de perguntas.
Nesse contexto, a presente sessão será organizada em eixos argumentativos que se
complementam. Em um primeiro momento a partir do estudo crítico sistemático da Portaria nº
058-CG/1563 e da Lei nº 12.357 que institui o Sistema de Defesa Social – o Programa Pacto
pela Vida, percorreremos a história institucional de implantação, estruturação e
funcionamento das Bases Comunitárias de Segurança (BCS) na Bahia, demonstrando que, ao
contrário do que anuncia os documentos que regulamentam as BCS, o dispositivo de
segurança não tem contribuído para prevenção de crimes letais intencionais, longe disso, a
estratégia adotada tem contribuído para os altos índices de mortes violentas, notadamente de
jovens homens negros (FBSP& IPEA, 2018).
63
Essa portaria que dispõe sobre as normas e procedimentos necessários para implantação, estruturação e
funcionamento das Bases Comunitárias de Segurança – BCS no âmbito da PMBA.
54
64
Ver em: http://governo-ba.jusbrasil.com.br/legislacao/1029307/lei-12357-11
55
Diante das orientações regimentais do Programa Pacto Pela Vida e do Plano Estadual
de Segurança Pública, a SSP-BA institui um levantamento estatístico-criminal com o intuito
de mapear as regiões do Estado com maior índice de Crimes Letais Intencionais. O conjunto
desses dados fornece subsídios analíticos para SSP-BA definir as áreas territoriais que
abrigarão as BCS, como assinala a Portaria nº 058 –CG/15 que retifica as normas e
procedimentos necessários para implantação das Bases Comunitárias de Segurança: “para
criação e efetivação da BCS serão previamente estudados quanto aos índices de ocorrências
criminais e aos dados estatísticos sociais relativos à população.” (BAHIA, 2015, p.2). Feito o
mapeamento estatístico pelos órgãos de inteligência, a Secretaria de Segurança Pública
estabelece uma estratégia organizacional para implantação das BCS na Bahia, que tem na
incursão e ocupação policial de áreas com índice elevado de Crimes Letais Intencionais, uma
de suas principais estratégias para estruturação do dispositivo de segurança.
É nesse contexto, que ainda em abril de 2011, a Polícia Militar da Bahia deflagra a
primeira operação de ocupação de favelas em Salvador (BA), com o objetivo de instalar as
BCS65. A operação que abrangeu os bairros do Nordeste de Amaralina, Calabar e Alto das
Pombas, contou com cerca de 228 policiais militares e 122 policiais civis. Na época a mídia
local destacou comentários cedidos por membros do alto escalão da SSP-BA, como o
depoimento do Major Elsimar, comandante da 41ª CIPM, no Calabar, que confirmou o
objetivo estratégico da mega operação, além de afirmar que o modelo operacional adotado era
inspirado nas Unidades de Polícia Pacificadora do Rio de Janeiro, “[...] 288 policiais militares
e civis participaram da operação, que antecede a instalação da Base de Polícia Comunitária
no local, modelo inspirado nas Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) que ocupam favelas
66
no Rio de Janeiro” . No que complementou o então secretário de segurança pública
65
Ver a matéria em: http://www.acordacidade.com.br/noticias/73747/salvador-policia-comeca-operacao-de-
ocupacao-no-calabar-e-alto-das-pombas.html
66
Ver a matéria em: http://atarde.uol.com.br/bahia/salvador/noticias/1282371-secretario-diz-que-calabar-e-
laboratorio-para-ssp-avancar-em-outras-comunidades
56
Mauricio Barbosa: “O Calabar é um pequeno laboratório para avançarmos até outras áreas.
Vamos ocupando essas áreas, tirando traficantes, até que consigamos acuá-los” 67.
Contudo, mesmo diante de uma forte propaganda do governo baiano a favor das BCS,
ainda no início do processo de implementação o projeto sofre duras críticas, oriundas de
agentes da própria estrutura organizacional da SSP-BA. Como evidencia a matéria jornalística
on-line intitulada “Policiais baianos criticam UPP de Jacques Wagner”, publicada no Portal
Último Segundo da IG. De acordo com a matéria, policiais que atuaram na operação de
ocupação da favela do Calabar (Salvador/BA), denunciam que estavam “acampados” na
comunidade em um regime de trabalho sub-humano, sem alojamento e com alimentação
imprópria.
Além das condições logístico-sanitárias inapropriadas, os policiais afirmaram na
denúncia que o processo de ocupação da favela por parte das forças de segurança do Estado,
não cessou com o tráfico de entorpecentes na região, e mais que isso, que todo o projeto de
implantação de BCS na Bahia, estaria atendendo a interesses político-eleitorais e não
alinhados a princípios técnico-estratégicos da Segurança Pública. Afirma um dos policiais na
matéria,
É certeza: o tráfico continua acontecendo e ficamos engessados, porque é uma
operação totalmente política. Não querem que a gente vá atrás desses casos, porque
estão se vangloriando que a ocupação ocorreu sem um tiro. O almoço todos os dias
chega azedo, o pessoal do (turno) noturno não tem refeição a não ser as sobras
azedas do almoço, sem contar as péssimas instalações em que ficamos. Só tem
cadeiras de escola para sentarmos durante o descanso, o pessoal da noite dorme no
chão, em cima de papelão. [...] Lixo e entulho por todos os lados, poeira. Enquanto
isso o governador, secretário da SSP (Secretaria da Segurança Pública), Cmt.Geral
(Comandante Geral da PM) e Cmt. do Choque (Comandante do Batalhão de
Choque) só se promovendo, e a sociedade e a mídia sem conhecimento do absurdo
que está acontecendo conosco68 (IG, 2012).
Mesmo diante dessas críticas incisivas ao projeto de implantação das BCS, a SSP-BA
desconsiderou as reivindicações dos agentes de segurança denunciantes, e dias após a
primeira operação de ocupação militar de favelas o governo do Estado instala a primeira Base
Comunitária de Segurança, no bairro do Calabar em Salvador (BA). A unidade era
subordinada a 41º Companhia Independente da Polícia Militar e contava com um efetivo de
120 policiais, viaturas, motocicletas, além de uma instalação física que comportava salas para
cursos de inglês, pré-vestibular, sala de informática e um programa de alfabetização de jovens
e adultos (BAHIA, 2011).
67
Ver a matéria em: http://atarde.uol.com.br/bahia/salvador/noticias/1282371-secretario-diz-que-calabar-e-
laboratorio-para-ssp-avancar-em-outras-comunidades.
68
Ver a matéria em: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/ba/policiais-baianos-criticam-upp-de-jaques-
wagner/n1300083310112.html
57
Meses após a inauguração da BCS do Calabar, o governo da Bahia instala mais três
unidades dentro do território do Nordeste de Amaralina, que havia sido ocupado recentemente
pelas forças de segurança do Estado (BAHIA, 2011; PEDREIRA, 2016). As BCS do
complexo de comunidades do Nordeste de Amaralina atenderiam acerca de 120 mil
moradores da região, com um contingente de cerca de 360 policiais atuando nas três unidades
que foram instaladas especificamente no “Centro Social Urbano, no Beco da Cultura,
Nordeste de Amaralina; na rua Coréia do Sul, na Chapada do Rio Vermelho e na rua Nova
República, em Santa Cruz” (PEDREIRA, 2016, p.41).
Em janeiro de 2012 o Governo do Estado inaugura uma BCS na região do Subúrbio
Ferroviário de Salvador, com aproximadamente 120 policiais. A unidade é responsável pelo
patrulhamento de cerca de 30 mil pessoas que residem nos bairros de Fazenda Coutos,
Fazenda Coutos II e Fazenda Coutos III. (PEDREIRA, 2016)
Ao mesmo tempo em que as Bases Comunitárias são expandidas para outras regiões
da capital e interior do Estado, as operações de incursão e ocupação policial também
continuam como espinha dorsal da estratégia organizacional de implantação das BCS. É nesse
69
Ver a matéria em: http://www.bocaonews.com.br/noticias/principal/policia/9611,operacao-em-amaralina-e-
previa-para-instalacao-de-bases.html
58
contexto que no ano de 2012 a Polícia Militar ocupa os bairros de Itinga – Região
Metropolitana de Salvador – e posteriormente o Bairro da Paz. As operações contam com
centenas de policiais civis e militares, que realizam incursões nas comunidades para cumprir
mandados de prisão e ocupar o território pelo tempo que for necessário para estruturação das
BCS nos respectivos bairros70.
É preciso ressaltar que esse conjunto de operações policiais de repressão qualificada
que antecedem a instalação de BCS faz parte do procedimento operacional padrão adotado
pela SSP-BA, na estruturação e ramificação das unidades de segurança, como evidencia
trechos do Artigo 5º da portaria que regulariza o funcionamento das BCS,
entre o Governo do Estado e as empresas Veracel Celulose, JSL, BRA Logística, Andritz,
Expresso Brasileiro, Eka Bahia e a Associação Proden” (PEDREIRA, 2016, p.44). A segunda
BCS inaugurada no ano de 2013 foi no bairro de São Caetano em Salvador. Outra unidade foi
anunciada no ano de 2013 pelo Governo da Bahia, entretanto, como veremos posteriormente,
o projeto caiu por terra diante de forte mobilização social comunitária do Movimento Contra a
UPP na UNEB/Engomadeira.
Em 2014 quatro BCS são instaladas na Bahia. Duas delas nos bairros do Uruguai e
Águas Claras na capital baiana, que valeram um investimento de aproximadamente 1,3
milhões de reais, com efetivos de 60 policiais, cada unidade monitora um território com
aproximadamente 40 mil pessoas. As outras duas unidades de segurança contavam cada uma
com 60 policiais, foram instaladas em Camaçari, no bairro PHOC II (Projeto Habitacional
Organizado de Camaçari), e a outra na cidade de Feira de Santana no bairro Rua Nova
(PEDREIRA, 2016).
Tabela 1Histórico de implantação das Bases Comunitárias nos primeiros três anos de funcionamento do
Programa Pacto Pela Vida na Bahia Fonte: O Autor.
60
71
Ver em: http://governo-ba.jusbrasil.com.br/legislacao/1029307/lei-12357-11
72
Como apresentamos no histórico anterior foram instaladas nos respectivos territórios: Salvador/Bairro de
Fazenda Coutos; Lauro de Freitas/Bairro de Itinga; Salvador/Bairro da Paz; Feira de Santana/Bairro George
Américo; Itabuna/Bairro Monte Cristo; Vitoria da Conquista/Bairro Nova Cidade.
61
O levantamento leva em conta a taxa de homicídios por grupo de 100 mil habitantes
no ano passado. De acordo com a ONG, foram levantados dados disponibilizados
pelos governos em suas páginas na internet e consideradas só cidades com mais de
300 mil. Essa foi a quarta edição do ranking. Os 16 municípios do Brasil no ranking
das cidades mais violentas do mundo, seis vão receber jogos da Copa do Mundo:
Fortaleza, Natal, Salvador, Manaus, Recife e Belo Horizonte 73
(INTERIORDABAHIA, 2014).
A edição 2013 do Mapa da Violência demonstra o caráter central que cor/raça ocupa
no contexto dos homicídios violentos na Bahia e no Brasil de maneira geral. (Waiselfisz,
2013) De acordo com o cruzamento de dados do Mapa da Violência – Homicídios e
Juventude no Brasil (2013), na Bahia a taxa de homicídios entre os jovens negros e brancos
variam enormemente: 31,6 para juventude branca e 100,3 para juventude negra. (Waiselfisz,
2013). Pesquisadores que se debruçaram minuciosamente sobre os dados de homicídios em
Salvador (BA) no ano de 2012, constataram que,
A oitava edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2014) aponta que
a polícia baiana é a terceira mais letal do Brasil. De acordo o levantamento de dados
apresentado no documento supracitado, entre os anos de 2009 a 2012, a polícia baiana
assassinou cerca de 935 pessoas em operações da SSP-BA (FBSP, 2014). O mesmo
levantamento aponta que em 2013 foram 313 mortes decorrentes de intervenções policiais na
Bahia. Esse quadro macabro, fez com que a Bahia entrasse no ranking de terceiro Estado com
maior índice de intervenções policiais letais no Brasil, mesmo liderando também o ranking no
quesito falta de transparência na informação dos dados oficiais75 (FBSP, 2014).
Ainda em 2012 a polícia baiana deflagra uma greve, que começa no dia 01/02/2012
(quarta-feira), e se estende até 11/02/2012 (sábado). Os 11 dias de greve tornaram público um
panorama brutal da violência letal contra jovens negros no Estado, especialmente, no contexto
73
Ver a matéria em: http://www.interiordabahia.com.br/2014/03/28/brasil-tem-16-cidades-no-grupo-das-50-
mais-violentas-do-mundo-maceio-capital-de-alagoas-e-a-campea-negativa/
74
Ver a matéria em:https://www.geledes.org.br/o-fantasma-estado-genocidio-e-necropolitica/
75
Veja mais em: http://reportercoragem.com.br/policia/policia-baiana-uma-das-policias-que-mais-matam-no-
pais/
62
da atuação de grupos de extermínio 76. Durante os onze dias de greve aproximadamente 177
pessoas foram assassinadas apenas em Salvador (BA) e Região Metropolitana 77 . Desse
montante, cerca 30 foram mortas em contextos que apontam a atuação de grupos de
extermínio/esquadrões da morte, como admitiu o delegado Arthur Gallas, diretor do
departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), em entrevista ao jornal O GLOBO,
São crimes em que as vítimas foram algemadas ou amarradas, e atingidas na cabeça
por assassinos encapuzados, que chegaram ao local em carros com placas clonadas e
armados com munição de grosso calibre. O delegado suspeita de que “25 a 30”
destes casos tenham a participação de militares. São suposições, já que se eu tivesse
o número preciso das ocorrências os casos já estariam elucidados. É uma conjectura
com base na análise dos fatos e do modus operandi dos crimes - afirmou Gallas78 (O
GLOBO, 2012).
Diante dessas cifras calamitosas, no ano de 2012 o governador Jacques Wagner cria
um grupo de trabalho para apurar e investigar a atuação de grupos de extermínio e pontos de
desovas de cadáveres na Região Metropolitana de Salvador.
De acordo a matéria “Jovens Negros na Mira de Grupos de Extermínio na Bahia”79
de autoria da jornalista investigativa Lena Azevedo,o grupo de trabalho apresentou algumas
estatísticas, que revelaram que no ano de 2012, 77 das 184 pessoas assassinadas no município
de Simões Filho, foram encontrados em uma antiga região de desova de corpos na cidade,
conhecida como Estrada do CIA. De acordo com o delegado titular de Simões Filho, Adam
Filho 80, no ano de 2012 a 2013, em média quatro corpos eram encontrados toda semana nesse
conhecido campo de desova, totalizando assim no final de um ano, 192 pessoas assassinadas
por grupos de extermínio.
Nesse breve cenário estatístico criminal sobre os primeiros anos de implantação das
BCS na Bahia, podemos observar que, se o objetivo do dispositivo de segurança era reduzir
os crimes intencionais violentos, a meta não só não foi cumprida, como a Bahia alçou cifras
trágicas no quesito mortes violentas letais por arma de fogo (FBSP, 2014). Tal ineficiência do
76
Sobre histórico de grupos de extermínio na Bahia ver: Relatório final CPI do assassinato de jovens,
emhttps://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2016/06/08/veja-a-integra-do-relatorio-da-cpi-do-assassinato-
de-jovens
77
Veja a matéria: http://g1.globo.com/bahia/noticia/2012/02/bahia-teve-mais-de-cem-homicidios-durante-
greve-da-pm-diz-secretaria.html
78
Ver mais em: https://oglobo.globo.com/brasil/pms-sao-suspeitos-de-25-30-homicidios-durante-greve-na-
bahia-3966205#ixzz2XEMancrI
79
Ver matéria completa em: https://apublica.org/2013/07/jovens-negros-na-mira-de-grupos-de-exterminio-na-
bahia/ ou https://www.revistaforum.com.br/jovens-negros-na-mira-de-grupos-de-exterminio-na-bahia/
80
Um fato curioso e intrigante é que de acordo com Lena Azevedo, o mesmo delegado que estava chefiando o
grupo de trabalho que investigava grupos de extermínio e pontos de desova na região metropolitana de Salvador,
foi apontado pela CPI do extermínio do Nordeste (2005) como um integrante desses esquadrões da morte, sendo
atribuído ao mesmo cerca de mais de 30 mortes desse tipo ao delegado em questão. Ver mais em:
https://apublica.org/2013/07/jovens-negros-na-mira-de-grupos-de-exterminio-na-bahia/
63
dispositivo de segurança foi avaliada e criticada por diversas agencias comunitárias, como é o
caso da Associação de moradores do Nordeste do Amaralina, um dos primeiros bairros a
instalarem as Bases Comunitárias de Segurança.
Em um documento intitulado “Seis anos de Pacto Pela Vida no Nordeste de
81
Amaralina: E daí?” , divulgado on-line pelo portal da Associação de Moradores do
Nordeste de Amaralina, um dos moradores expõe de maneira sistemática a falência
organizacional das BCS.
De acordo um dos integrantes da Associação, a instalação das bases tinha o objetivo
de trazer melhorias na infraestrutura e de requalificação para comunidade; obras essas que
nunca foram realizadas. Na contramão do que o governo do estado propagandeava os
investimentos nas áreas comtempladas pelas BCS foram os mesmos de sempre; armamento,
viaturas, tecnologias de controle e repressão. Nas palavras de um dos moradores do Nordeste
de Amaralina,
Em minha opinião simplória, sem base alguma em dados estatísticos, mas se
valendo da vivência diária, enquanto morador nativo da região, o quadro da
violência pouco mudou desde a implantação das Bases. Se houve certa pacificação,
antes foi por conta de fatores estranhos à política de segurança pública do Governo
do Estado, que bem sabemos, nós, moradores. A polícia é, e sempre foi, um dos
principais fatores de violência na região, se não o maior. A aproximação da polícia e
a comunidade, com as bases, mostrou-se ineficaz, se resumindo a encontros
esporádicos e segmentados. Na verdade, só mostrou, em veias abertas, o quanto
estamos separados – nós e a polícia - por um histórico de violência em que nós,
moradores de periferia, sempre somos as maiores vítimas. (BLOG DA
ASSOCIAÇÃO DE MORADORES DO NORDESTE DE AMARALINA, 2017).
E conclui,
Anos de política de repressão policial não deu em nada, muito pelo contrário, é uma
política conhecidamente, pela prática, ineficiente e contraproducente. E as Bases
surgem neste contexto, como se percebeu ao longo desses cinco anos desde a
primeira instalação. A resolução do problema da violência está longe e se afasta
todos os dias, aos clarins da política demagógica do Governo de Estado, com
anúncios, na área de segurança pública, de aquisições de viaturas e de pessoal, com
o aumento do efetivo policial nas ruas, como se, num passe de mágica, fosse ser
resolvido o problema da violência 82 . (BLOG DA ASSOCIAÇÃO DE
MORADORES DO NORDESTE DE AMARALINA, 2017).
81
Ver documento integralmente em: http://amnaluta.blogspot.com/2017/09/seis-anos-de-pacto-pela-vida-
no.html
82
Ver em: http://amnaluta.blogspot.com/2017/09/seis-anos-de-pacto-pela-vida-no.html
64
(WAISELFISZ, 2012; 2013), que tem atingindo de sobremaneira jovens homens pretos.
(AMPARO, 2010, PINHO, 2016)
A centralidade estratégica em operações de repressão qualificada, a exemplo das
“megas operações” de ocupação territorial militar de comunidades negras por forças policiais
ostensivas, que ocorrem como pressuposto organizacional para implantação das bases
Comunitárias de Segurança demonstra quão comprometido com uma concepção militarizada
de segurança pública está o Dispositivo em questão. As BCS enquanto política de Segurança
pensada para o “fortalecimento da estratégia e filosofia de Polícia Comunitária em andamento
no Estado da Bahia, em especial a partir do Programa Pacto pela Vida” (BAHIA, 2015, p.1),
tem se mostrado ineficiente como dispositivo de segurança no combate aos crimes violentos
letais intencionais. Ao aferirmos criticamente a história de implantação das BCS na Bahia,
correlacionando com dados estatísticos criminais, podemos constatar o quão letal, sobretudo
para jovens homens negros, tem sido a implantação dessas bases de segurança em
comunidades negras da Bahia.
Durante o processo de implantação das BCS na Bahia, mesmo diante forte
investimento do Governo em propaganda, vozes destoantes construíram narrativas que vão de
encontro ao discurso oficial do governo. Na próxima sessão retomaremos a história e
memória de uma dessas agências, que não apenas formulou uma crítica radical ao projeto das
BCS na Bahia, mas também conseguiu impedir a implantação de uma dessas unidades: o
Movimento Contra a UPP na UNEB/Engomadeira.
2.2. Memória política de uma luta comunitária contra instalação de uma Base
Comunitária de Segurança no bairro da Engomadeira (Salvador/BA) (2013-2015).
O Movimento Contra a UPP surge em Salvador (BA), no ano de 2013, a partir de uma
articulação de um grupo de alunos/as da Universidade Estadual da Bahia (UNEB), todas/os
moradoras/es de diferentes periferias urbanas da cidade, que se reuniram para barrar a
instalação de uma BCS no bairro da Engomadeira, em um terreno cedido pela Universidade
Estadual da Bahia, em seu campus no bairro do Cabula em Salvador (BA).
A iniciativa surgiu depois que uma das fundadoras-militantes do Movimento e,
moradora da Engomadeira, viu uma enorme Placa do Governo do Estado fixada em uma
construção na entrada principal do bairro da Engomadeira 83 . A placa em questão tinha os
83
Ver imagem da placa em Anexos.
65
Ana, uma das fundadoras do Movimento Contra a UPP na UNEB e também moradora
do bairro da Engomadeira, nos contou que depois que ficou sabendo da construção da BCS, a
primeira coisa que fez foi repassar a informação no bairro onde morava, e descobriu, que
assim como ela, muitos moradores – se não a maioria – não sabia da instalação da unidade, e
nem mesmo a Associação de Moradores do Bairro tinha algum entendimento ou ciência de
como se deu o processo de construção do prédio da futura Base de Segurança.
Depois dessa primeira investigação no bairro que morava, Ana voltou seus esforços
para saber uma posição do conjunto de técnicos, professores e alunos da Universidade
Estadual da Bahia (UNEB), especialmente, tendo em vista que o terreno onde a placa estava
hasteada pertencia às dependências da universidade. Ana nos contou que após muito
“peregrinar” nos corredores da universidade à procura de uma notícia em relação à instalação
de uma BCS em seu bairro, não obteve nenhuma resposta concreta, apenas especulações e
opiniões das mais diversas sobre a instalação da BCS.
Mas esse quadro de desinformação mudaria, especialmente, diante do fato de que na
época a UNEB estava em processo de eleição para uma nova reitoria, e era prática comum
candidatos/as aparecerem nas salas de aula para apresentar suas propostas de campanha para
aluno/as. Uma dessas aparições foi justamente na sala de aula que Ana estava cursando uma
disciplina do seu curso. Diante da presença dos candidatos/as, um dos estudantes perguntou
aos candidatos qual era a opinião dos mesmos em relação à construção de uma Base
Comunitária de Segurança no campus da universidade.
De acordo Ana, a pergunta gerou um constrangimento geral nos candidatos/as, que
depois de muito tentarem se explicar, não estabeleceram propostas concretas em relação à
permanência ou não da BCS no terreno pertencente à UNEB. Esse constrangimento deveu-se
a um duplo fator. Por um lado, a universidade passava na época por graves problemas
referentes a espaço físico, especialmente no tocante a novas salas de aulas, construção de uma
farmácia que atendesse a comunidade do entorno, além de Restaurante Universitário e
66
residência universitária. O outro fator que gerou o constrangimento geral nos candidatos/as,
foi o fato de a universidade ser uma autarquia, como tal é gerida a partir de princípios
democráticos, que implicam em envolvimento de todas as categorias – professores, técnicos e
estudantes – em decisões de ordem estratégica; como a instalação de uma BCS em um terreno
cedido pela universidade.
O silêncio institucional da reitoria da UNEB em relação à instalação de uma BCS em
um de seus terrenos revelou a postura política dos grupos dirigentes da universidade, que não
só sabiam do projeto da Base de Segurança, como muitos professores, técnicos e a reitoria da
época, haviam participado de reuniões com o Governo do Estado, como relata Ana, todo
processo foi muito bem pensando, planejado e amplamente divulgado para um setor em
especifico da universidade,
— Por que é necessário que se diga, que a reitoria da UNEB já sabia do projeto,
antes da construção da base teve várias reuniões, com professores e diretores da
UNEB pra conceber esse espaço. Então não foi nada de uma hora pra outra, que o
governador tinha mandado um decreto, nada disso. O que aconteceu foi uma
construção de cima pra baixo, muita bem pensada, pensada pra ferrar com o bairro
da Engomadeira. (ANA, militante do Movimento Contra a UPP na
UNEB/Engomadeira, 02/06/2018).
84
Foto do cartaz na sessão Anexos.
67
Essa reunião foi à primeira de muitas que se arrastaram por alguns meses em
diferentes ambientes dentro da UNEB: salas de aula, CA’s, DA’s, auditório, anfiteatro e área
externa da biblioteca. As militantes do Movimento Contra a UPP contam que não se
conheciam e foi durante essas primeiras reuniões que uma tomou ciência uma da outra. Essas
reuniões foram importantes para disseminar o debate público em relação à construção da BCS
no bairro da Engomadeira.
De acordo Liane, outra militante do Movimento, foi em uma dessas reuniões que
tomou conhecimento do processo de construção de uma BCS na Engomadeira. A militante
relata que as reuniões eram cheias, o público era inconstante e diverso; foi nesse processo que
o Movimento foi tomando um formato organizacional, desenvolvendo suas pautas, nome
próprio e, organizou as primeiras ações,
— Não me lembro exatamente como fiquei sabendo do Movimento Contra a UPP,
sei que cheguei em uma reunião no prédio de Ciências Sociais, ai eu fiquei pam,
peguei as ideia e tipo assim, essas primeiras reuniões do Movimento Contra a UPP
elas eram relativamente cheias, as salas um bucado de gente. Conheci Ana nesse
corre. (LIANE, militante do Movimento Contra a UPP na UNEB/Engomadeira,
02/06/2018).
As três militantes entrevistadas concordam que essas primeiras reuniões tiveram uma
importância estratégica nos rumos organizacionais que o Movimento foi tomando. Com essa
série de reuniões o Movimento começou a ganhar destaque dentro da universidade,
disseminando o debate para outros setores da burocracia universitária. Foi nessas reuniões que
o Movimento começou a erigir as bases ideológicas de suas futuras bandeiras de luta, além de
começarem a construir o germe de uma estrutura organizacional e identidade política própria -
como por exemplo o nome do Movimento.
Assim como aproximou pessoas, a reuniões preliminares do Movimento afastaram um
número maior ainda, sobretudo de professores, técnicos e agrupamentos do movimento
estudantil. Esse afastamento ocorreu pelo fato de cada vez mais o Movimento alinhar seu
discurso no sentido de condenar a UNEB – e suas instancias representativas internas – por
recepcionarem sorrateiramente o projeto de BCS, além de denunciarem nas reuniões a
falência do dispositivo de segurança, tendo em vista a experiência das UPPs no Rio de Janeiro
e das próprias BCS já instaladas na Bahia, que já eram conhecidas por suas operações letais
de implementação.
Nesse sentido, as primeiras reuniões do Movimento Contra a UPP, serviram também
ao propósito de estabelecer a principal pauta do Movimento; o fim da instalação de uma Base
Comunitária de Segurança no bairro da Engomadeira, e esse ponto de pauta que era
inegociável, tornou-se um princípio organizativo. Essa posição política inegociável foi taxada
68
Depois de certo tempo, além das reuniões o Movimento começa a realizar suas
primeiras atividades de formação e propaganda política-comunitária. No dia 16/09/2013
realizaram um cineclube aberto a comunidade acadêmica e também para moradores do
entorno da universidade, com o objetivo de debater estratégias comunitárias para frear o
andamento da construção da BCS; o filme exibido foi “Elas da Favela” 85.
Meses depois, no dia 01/10/2013 o Movimento convoca um ato público, onde
ocuparam a entrada principal da UNEB, trancando o portão de acesso de carros e pedestres.
Além da interrupção da via de acesso, as/os militantes distribuíram panfletos que dizia
“UNEB apoia o Genocídio da Juventude Negra. Diga Não! Ato Contra a implantação da
UPP”86.
Foi nesse período que o Movimento Contra a UPP da UNEB/Engomadeira consolidou
sua identidade política dentro da universidade, passando a ser conhecido na universidade
85
Foto do cartaz nos anexos.
86
Ver fotos do cartaz e do ato nos anexos.
69
como um agrupamento radical, que não respeita divergências políticas, reconhecido por
“implodir reuniões”, por ser antidemocrático no que tange a condução das pautas e, ou até
mesmo, violento.
Uma das militantes do Movimento ressalta a importância dessas reuniões iniciais,
onde compartilharam experiências e impressões sobre o projeto de BCS. Puderam também
traçar as referências organizacionais do dispositivo de segurança, além de amadurecerem a
posição política do Movimento em relação à implantação desse modelo de segurança pública
na Bahia,
— A gente já tinha um exemplo do que tava acontecendo no Rio de Janeiro. Essa
mudança da nomenclatura também, na tentativa de maquiar é muito importante de
ser ressaltada, convenceu aqueles que quiserem se convencer. Por que a verdade é só
uma, a Base Comunitária é na verdade uma unidade de pacificação policial, que tava
vindo como um Projeto do Pacto Pela Vida. Quando projetamos a construção dessa
unidade, a gente parou e pensou “gente vai ser uma unidade de tortura legal dentro
da engomadeira”. Já tinha rolado Amarildo, Joel também em Amaralina, nós já
sabíamos do fracasso que estava sendo essas Bases Comunitárias. Nessa perspectiva
a gente sempre condenou, pelo menos sempre tivemos a certeza que não queríamos
uma UPP na engomadeira. (MAGALI, militante do Movimento Contra a UPP na
UNEB/Engomadeira, 02/06/2018).
A comparação feita pela militante do Movimento entre o padrão operacional das UPPs
do Rio de Janeiro e das BCS da Bahia não é leviana. O Rio de Janeiro tem sido uma
referência histórica nas principais mudanças tático-operacionais da segurança pública no
Brasil (FRANCO, 2014). E, no quesito “pacificação de favelas” a experiência Das UPPS no
Rio de Janeiro foi tomada como eixo estratégico para implantação do Programa Pacto Pela
Vida na Bahia,
Levando em conta tamanha empreitada a Secretária de Segurança Pública adotou
como principais referências para sua intervenção o programa Pacto Pela Vida de
Pernambuco, incrementado com o modelo das Unidades de Polícia Pacificadora do
Rio de Janeiro (PEDREIRA, 2016, p.38).
Depois da inauguração das primeiras unidades no Rio de Janeiro, o projeto das UPPs
ganha força a nível nacional, a partir de forte propaganda positiva da mídia corporativa, que
realiza um gradativo processo de convencimento da “opinião pública” e de setores da classe
70
média brasileira (FRANCO, 2018). De tal modo que, até 2014 eram aproximadamente 40
unidades que funcionavam em diferentes áreas da região centro-litorânea da cidade do Rio de
Janeiro; Zona Sul, Centro da cidade, Zona Norte e o chamado “Cinturão da Tijuca”
(FRANCO, 2014).
De acordo com Marielle Franco87 o projeto das UPPs tem na noção de “pacificação”
um suporte ideológico que organiza toda uma lógica de segurança pública militarizada
(FRANCO, 2014). A pesquisadora demonstra em seu estudo “ UPP – a redução da favela a
três letras: Uma análise da Política de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro”, que
a implantação das UPPs não tem o objetivo de trazer melhorias infra estruturais, ou da ordem
de acesso a saúde e educação para comunidades que historicamente não tiveram acesso aos
direitos fundamentais (FRANCO, 2014). Pelo contrário, o alto investimento em tecnologias
de controle, vigilância, repressão e alta tecnologia armamentista, demonstra que o
compromisso do projeto das UPP com uma concepção policialesca de Segurança Pública,
O que está em questão é que a polícia, com a abordagem que predominou, não se
firma apenas como uma das atividades do Estado, mas acaba por ganhar um local
estratégico nesse processo de ocupação territorial. O que ocorre é uma propaganda
geral pela paz, na qual a polícia, e não a política, ocupa lugar central. Esse é mais
um dos sintomas do predomínio de uma política de segurança sustentada na
militarização. É nesse sentido que se pode afirmar que há uma proposição
aparentemente utópica, que assume caráter profundamente ideológico. Não se trata
de algo que adota um rumo contrário à lógica e ao modelo imposto até o momento;
ainda que possua fissuras diferenciadas, não consegue romper com o modelo já em
curso. (FRANCO, 2014, p. 123)
87
Marielle Francisco da Silva, conhecida como Marielle Franco(Rio de Janeiro, 27 de julho de 1979 – Rio de
Janeiro, 14 de março de 2018) foi uma socióloga e militante negra, filiada ao Partido Socialismo e Liberdade
(PSOL), elegeu-se vereadora do Rio de Janeiro para a legislatura 2017-2020, durante a eleição municipal de
2016, com a quinta maior votação. Franco foi executada com três tiros na cabeça e um no pescoço, por volta das
21h30min de 14 de março de 2018, quando também foi assassinado Anderson Pedro Mathias Gomes, motorista
do veículo em que a vereadora se encontrava. Franco foi assassinada no contexto de graves denúncias que fazia
em relação a intervenção federal no Rio de Janeiro e das atrocidades cometidas pela nas favelas cariocas.
71
88
Amarildo Dias de Souza (Rio de Janeiro, 1965/1966 - Rio de Janeiro, 2013) foi homem negro, ajudante
de pedreiro que ficou conhecido internacionalmente por conta de seu desaparecimento forçado, após ter sido
detido por policiais militares lotados na UPP da rocinha, Rio de Janeiro. Após forte pressão comunitária de
familiares, amigos, parentes e organizações de familiares vítimas do Estado do Brasil e outras partes do mundo,
foi descoberto que Amarildo foi detido, torturado, morto e esquartejado por cerca de 25 policiais da UPP da
rocinha, que o confundiram com um traficante de entorpecentes. Até hoje nenhum dos 25 PMs indiciados foram
presos ou a julgamento. Ver mais em: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-44790123
72
Dois dias após a audiência pública o Movimento Contra a UPP – agora já sendo
conhecido e assumindo esse nome – realizou a última reunião do ano de 2013. Nessa reunião
o Movimento fez um balanço das ações durante o ano, uma avaliação política da audiência
pública, além de traçarem os rumos dos próximos passos a serem adotados. Uma das
militantes do Movimento nos conta que nesse momento, o número de pessoas que
participavam do agrupamento diminuiu em uma quantidade significativa por um duplo fator;
a metodologia de ação direta adotada pelo Movimento e a constante aproximação do
Movimento com comunidades e agrupamentos comunitários atingidos diretamente pelas
políticas de morte do Programa Pacto Pela Vida.
Nesse contexto, o Movimento passa a centralizar suas manobras político-comunitárias
em uma metodologia de ação direta, que tomou as pichações como linguagem política por
excelência nas ações de agitação, propaganda e na perpetuação da memória política do
Movimento Contra UPP na cidade. Ou seja, a pichação passou a compor o repertório de
tecnologias políticas do Movimento. De acordo com um dos pichadores que apoiavam o
Movimento Contra UPP, o interesse, motivações e aproximação de pichadores com o
Movimento, se deram por fatores ligados as dinâmicas internas da cultura organizativa da
pichação na cidade,
Uma das coisas que me chamou atenção do Movimento Contra UPP foi a
perspectiva de auto-organização. A pichação é organizada. Ela se difere justamente
por isso, pelo grau de coesão. É o que difere do grafite la fora se ligou. A
participação da pichação, por exemplo, não era nas reuniões, mas as pichações
estavam la nas ações de rua. Por que também já é orgânico na pichação participar de
acoes comunitárias ta ligado. A galera de 15 em 15 dias puxa um mutirão em
alguma comunidade e sempre rola uma comunicação e a galera faz as paradas. Além
73
A cultura da pichação tem uma larga tradição nas ruas de Salvador, que remonta as
próprias origens da Cultura Hip Hop na cidade, já que muitos dos primeiros grafiteiros eram
pichadores (MIRANDA, 2014). Desse modo, a estética do grafite e do pixo possuem
dinâmicas de interações que se cruzam em diversos contextos; comunitários, territoriais,
tecnológicos. Bem como, a cultura da pichação possui dinâmicas internas próprias, muita das
quais, atravessam as dinâmicas raciais excludentes da geografia espacial da morte na cidade
de Salvador,
74
Eu acredito que cada vez mais se criar essa possibilidade da gente se comunicar por
vias que sejam de fato marginais, marginalizadas. Quando eu entrei pra pichação eu
não imaginava esse potencial, quando comecei a comunicar eu não sabia. Como é
que um jovem, sei la, tala em São Cristóvão, vai conhecer outro jovem preto da
suburbana, com todas as limitações criadas na cidade pra você não se locomover na
cidade. Você não tem o dinheiro do transporte. Se você for pra outra área estranha
você pode ser encurralado por uma outra galera ali que vai estranhar sua presença.
Os policia ali também te caçando. Entao assim, a pichação acaba criando uma
dinâmica na cidade que atravessa isso tudo. (DEPOIMENTO PICHADOR B,
entrevista cedida15/08/ 2018).
Nesse contexto, o pesquisador e militante da cultura Hip Hop, Jorge Hilton Miranda,
aponta em suas pesquisas que a cultura do pixo é vivenciada por uma juventude negra
marginalizada, como forma de protesto político e como manifestação de sentimento de
insatisfação em relação a ordem vigente. (MIRANDA, 2014) A pichação é uma cultura
historicamente criminalizada pela corporação policial, pelo sistema de justiça e pelo
pensamento médio da população em geral. E essa criminalização manifesta-se de diferentes
maneiras, muitas das quais, em práticas de tortura perpetrada por policiais,
São infinitos casos de violência policial, incluindo agressão física e humilhação,
direcionadas aos pichadores, e quem demoniza pode achar que tudo isso justifica.
Segundo o ex-pichador Pinel, um colega que assinava KPTA foi pego pela PM, que
lhe obrigou a abrir a boca e então jogou tinta spray dentro e por todo seu rosto
(MIRANDA, 2014, p.53).
Além das práticas cotidianas de violência policial os/as pichadores enfrentam uma
forte campanha midiática de criminalização, além de ações oriundas de setores do legislativo
da cidade, como o projeto de lei tramitando na câmara de vereadores de Salvador, que prevê
multa de três mil reais pra quem pichar imóveis públicos ou privados na cidade 89. A pichação
é na narrativa do poder público municipal de Salvador e da SSP-BA, uma prática de
vandalismo ou mesmo banditismo, que deve ser combatida energicamente, inclusive com
operações policiais especificamente para o combate dessas práticas,
A Polícia Civil tenta identificar um grupo de pichadores que tem depredado prédios
públicos e privados no Centro de Salvador. Imagens recuperadas do circuito de
89
Ver sobre projeto de lei contra pichações aqui: http://atarde.uol.com.br/bahia/salvador/noticias/1872633-
prefeitura-avalia-lei-que-preve-multa-de-r-3-mil-para-pichadores
75
Quando surgiu o Movimento Contra UPP minha participação não era orgânica. Eu
tava em algumas ocasiões com o Movimento. Uma delas inclusive foi quando a
galera planejou botar a faixa no prédio. Por que tipo assim a gente pensa pichação e
associa ao spray, mas pichação é um giz na parede, um carvão, um extintor, um
extensor. É uma faixa. Por isso que falei da questão da faixa na parada da UPP. Por
que tipo assim foi uma faixa que é pichação também, por que em um grau é
comunicação e em outro grau é crime contra propriedade, já que tão invadindo
patrimônio publico. E assim, a medida que a repressão incide com mais força a
parada vai se radicalizando. Se criando outras tecnologias (DEPOIMENTO
PICHADOR A, entrevista cedida 10/08 2018).
Liane, uma das militantes-dirigentes do Movimento Contra UPP relata como foi esse
episódio que deu início a uma série de articulações do Movimento com agrupamentos
comunitários. No caso em questão, com um agrupamento de pichadores/as da cidade,
— A gente se preparou pra esse dia, chamamos uma galera de fora, teve a galera do
Movimento e uma galera de fora. Uma galera foi por dentro da UNEB, outros
pularam o muro, outros pegando a visão. Umas 8 pessoas na ação. Ai a gente botou
uma faixa em cima do prédio, tem fotos dessa faixa: NÃO A UPP, QUEREMOS
SAUDE, EDUCAÇÃO E LAZER. Essa frase acabou virando uma palavra de
ordem. E dentro colocamos NÃO A UPP! bagaçamo - pixaram - o lugar todo assim.
(LIANE, militante do Movimento Contra a UPP na UNEB/Engomadeira,
02/06/2018).
90
Ver matéria em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/policia-civil-tenta-identificar-pichadores-que-
estao-agindo-no-centro/
91
Fotos da Base Comunitária e do dia do ato estarão disponíveis no anexo.
76
mas estavam totalmente inteirados dos efeitos catastróficos das políticas de morte
(MBEMBE, 2018) do programa Pacto Pela Vida.
O Movimento realizou durante o ano de 2013 panfletagens na comunidade da
engomadeira, além de sessões de cine clube e ações culturais educativas com as crianças do
bairro. Correlacionada com essas ações dentro da comunidade que seria atingida diretamente
pela implantação da BCS, o Movimento articulou uma série de reuniões, audiências públicas
e trancamentos de portões, dentro da Universidade; somados a isso, pichações espalhadas por
toda UNEB, que denunciavam o caráter militarizado e racista das BCS.
Ao fim do ano de 2013, depois de um conjunto de ações dentro e fora da universidade,
o Movimento Contra UPP, já tinha delineado os princípios organizativos de suas ações fora e
dentro da universidade,
— Começamos com umas ações dentro da Universidade. Então a agente fazia vários
bang, pichava a UNEB toda. Colocávamos placas dentro da UNEB, a gente fazia
panfletagem, fizemos várias reuniões dentro da UNEB, conseguimos fazer duas
audiências com a presença da comunidade e com a presença da polícia também;
audiências muito tensas. Me lembro que teve uma panfletagem em um bairro que a
polícia chegou. A gente tava em uma área que a letalidade é bem alta, fazendo uma
panfletagem, debatendo com a comunidade como seria a construção dessas bases.
Quando a polícia chegou tivemos que sair correndo. Foi um processo muito tenso.
Comunidade tinha medo, mas conseguimos mobilizar muito a partir das atividades
comunitárias. (ANA, militante do Movimento Contra a UPP na
UNEB/Engomadeira, 02/06/2018).
Nos primeiros dias do ano de 2014 (07/01/2014), o Movimento Contra a UPP retoma
suas atividades, convocando uma reunião em frente à biblioteca da UNEB com a seguinte
pauta; Intervenções na Comunidade e Audiência Pública com representantes da Secretaria de
Segurança pública e Governo. Dias mais tarde – 21/01/2014 – o Movimento realiza mais uma
reunião com a pauta; Construção do Panfleto do Evento; Panfletagem na Engomadeira, dia
25/01/2014; Evento do dia 01/02/2014.
As militantes nos relatam que cada vez mais o Movimento foi assumindo um caráter
comunitário, no sentido de atuar politicamente, construir alianças tático-estratégicas e recrutar
novos militantes nas comunidades diretamente atingidas pelas políticas de segurança do
Programa Pacto Pela Vida.
Não que o Movimento tenha abandonado sua atuação na Universidade, na verdade, a
UNEB era peça fundamental no conjunto de táticas adotadas para barrar a instalação da BCS
da engomadeira, especialmente, no tocante a vocalização da pauta. Entretanto, o Movimento
Contra a UPP avaliou que a ação comunitária, era mais central no conjunto de táticas, diante
da constatação que a série de reuniões, audiências públicas e debates com a Reitoria e o
77
Governo, não levavam a ações concretas de paralização das obras de instalação da BCS na
engomadeira. Nas palavras de uma das militantes do Movimento,
— Tiveram essas ações comunitárias, que eram onde nós conseguíamos mobilizar.
Nós estávamos fazendo essas ações pra mostrar que o que resolvia não era a polícia,
eram outras coisas. A ideia era a gente organizar pra mostra que não dependemos da
polícia pra ter segurança. Aí fizemos atividades com as crianças, microfones
abertos. Quando fazíamos essas ações conseguíamos o contato de várias pessoas, a
galera da rua colava, a galera da rua que vinha de vários lugares da cidade. (LIANE,
militante do Movimento Contra a UPP na UNEB/Engomadeira, 02/06/2018).
92
Ver fotos da ação comunitária nos anexos.
78
A Campanha Reaja ou Será Mort@ surge em Salvador (BA) no ano de 2005, como
uma articulação de movimentos sociais negros e comunidades de negros e negras da capital e
interior do estado da Bahia, que se reuniram na época para construir e implementar estratégias
comunitárias de enfrentamento aos altos índices de violência letal contra a população negra.
O postulado político central da organização era que esses altos índices de violência
letal que atingem de sobremaneira a comunidade negra, são a manifestação mais latente do
Genocídio negro em curso no Brasil. Genocídio esse que tem os dispositivos de segurança do
Estado, um dos principais agencias de propagação da morte negra violenta. Atualmente a
organização atua em cidades do interior da Bahia, além de ter ramificações em outras
unidades federativas. As principais pautas da organizaçãoé o enfrentamento a brutalidade
policial, a causa anti-prisional e pela reparação aos familiares de vítimas do Estado
(execuções sumárias e extrajudiciais) e dos esquadrões da morte, milícias e grupos de
extermínio.
Como afirma uma das militantes do Movimento Contra UPP, o diálogo organizacional
com a Campanha Reaja ou Será Morta/o, foi importante para formação política e rumos que o
Movimento tomou posteriormente,
— A Campanha Reaja é uma campanha de peso; Contra o genocídio do Povo Preto.
E foi uma questão de sobrevivência, foi muito importante o que podemos dialogar,
as ações que fizemos em conjunto também muito importantes. Várias perspectivas
até de discurso, de fala, de exemplo, do que a gente queria e o que não queria, foi
um amadurecimento pra gente. A gente se olha agora e vemos o quanto essa relação
nos amadureceu. (MAGALI, militante do Movimento Contra a UPP na
UNEB/Engomadeira, 02/06/2018).
79
— A Reaja serviu pra nós como suporte, no sentido de encaminhar a gente pra ter
uma visão da importância da luta que nós fazíamos. Acho que serviu pra nos nortear
em relação a isso; a importância dessa luta comunitária. A reaja veio em um
momento muito importante e nos fez nos enxergar enquanto mobilizadoras de um
movimento muito perigoso estávamos com nossa vida em risco. A partir da reaja
tivemos contato com o pessoal do bairro da paz e outras comunidades. A partir dos
ensinamentos da reaja o Movimento Contra UPP se reinventou. (ANA, militante do
Movimento Contra a UPP na UNEB/Engomadeira, 02/06/2018).
O Movimento Contra a UPP se consolidou como uma agência social comunitária que
conseguiu colocar em xeque o projeto de implantação das BCS na Bahia. A intensificação das
táticas comunitárias foi articulada a ações de agitação e propaganda dentro da UNEB; Fóruns
de debate, panfletagem, trancamento dos portões e pichações. A reitoria da UNEB até
momento não havia se pronunciado concretamente. A construção do prédio que iria hospedar
a BCS da engomadeira havia sido interrompida, especialmente depois que o Movimento
pichou todo o local. Entretanto, mesmo com a interrupção da obra, o Movimento exigia uma
posição oficial da universidade.
1825 já possuía companhias de policia com 116 homens (MATTOS, 2008; MATTOSO,
1992). É nesse contexto que a polícia militar da Bahia surge historicamente, a partir de um
decreto imperial no ano 1825, que instituiu uma companhia militar que inicialmente tinha a
tarefa de combater uma coalização de escravos fugidos e libertos liderados por uma mulher
negra chamada Zeferina, uma das principais lideranças do quilombo do Urubu, localizado em
Salvador que era capital da província na época (REIS, 2003; MATTOS, 2008).
Ainda na primeira metade do século XIX Salvador é palco de um dos mais
importantes levantes negros da história da escravidão racial nas américas; a revolta dos
malês93. Nesse mesmo ano, um novo corpo de polícia é criado na capital baiana com o intuito
de fortalecer a “segurança” da cidade, especialmente, no tocante a constituição de um
aparelho policial que desse conta de reprimir com maior eficiência revoltas populares de
escravizados, libertos e africanos (REIS, 2003; MATTOS, 2008). Como aponta Mattos, o
recrudescimento dos dispositivos policiais, a partir do advento da Revolta dos Malês não foi
mera coincidência,
A coincidência da criação desses órgãos policiais com a Revolta dos Malês,
evidentemente, não foi casual, pois a eclosão da revolta, ponto culminante de um
ciclo de revoltas negras que marcou os primeiros anos do século XIX baiano, impôs
ao poder publico local, e mesmo imperial, a adoção de um conjunto de medidas
legais extremamente duras em relação as populações negras ... Um exemplo disso é
a lei imperial de 10 de junho de 1835 que estabelecia a pena de morte a escravos por
pratica de ofensa ou ferimento contra senhores, administradores, respectivas
mulheres e familiares ( MATTOS, 2008, p. 92).
93
Em 25 de janeiro de 1835, um domingo, aconteceu em Salvador uma revolta de escravos africanos de
proporções históricas, pelo nível de articulação e proposito politico. O movimento de 1835 é conhecido como
Revolta dos Malês, por serem assim chamados os negros muçulmanos que o organizaram. A expressão malê
vem de imalê, que na língua iorubá significa muçulmano. Para mais informações ler “Rebelião escrava no Brasil:
a história do levante dos malês em 1835”, do historiador Joao Jose Reis (2003 ).
83
94
Para o proposito do argumento do presente capitulo, iremos expor integralmente o documento “Programa de
acao do Movimento Contra UPP”. Ainda no presente capitulo.
84
como antítese político-ideológica da democracia racial, desferindo a partir dos anos de 1970
candentes golpes ao discurso oficial nacional.
Para os agrupamentos vinculados a cultura política do Movimento Negro
Contemporâneo, a democracia racial é um mito-ideologia do autoengano (MOORE, 2012),
construída pela supremacia branca para desmobilizar a organização política da comunidade
negra (MNU, 1988; 2001). Além do caráter escamoteador da realidade de opressão e
desigualdade racial da sociedade brasileira, segundo o Movimento Negro (MN), a democracia
racial opera um objetivo mais nefasto ainda, que seria o genocídio programado de negras e
negros, na medida em que o mito-ideologia favorece a negação identitária de negro/as e a
mistura racial com o grupo racial branco dominante (NASCIMENTO, 1978-1980; MORRE,
2012).
O movimento negro contemporâneo estabelece um ávido confronto dentro da esfera
pública (HANCHARD, 1994) brasileira como uma antítese político-discursiva a democracia
racial, desautorizando publicamente o mito e construindo uma contranarrativa que propõe a
refundação do Estado-Nação brasileiro rumo a uma verdadeira democracia racial. Nas
palavras do próprio Movimento negro,
Quem defende a existência da democracia racial, aponta como provas de falta de
preconceitos, os poetas, escritores e vultos históricos negros. Nos dias de hoje,
indicam como provas, nossos atletas, cantores, compositores, pintores, escultores,
atores e atrizes negros, além é claro, “mulatas exuberantes”, que seriam aceitos e
integrados na sociedade. Dizem até que negros bem de vida ou ricos, e alguns
parlamentares negros, confirmam a democracia racial. Os defensores de tal
democracia, principalmente quando brancos, trabalham com provas aparentes e,
através delas, lançam suspeitas, rejeição e respondem com indignação, contra os que
– como nós – negamos a democracia racial, com o objetivo de demonstrar sua
falsidade e trabalhar para que seja autentica verdadeira e humana (MNU, 1988,
p.20).
Na Bahia o MNU constituiu seu quadro inicial através das pessoas negras que
participavam do Grupo NEGO – Estudos sobre a Problemática do negro brasileiro
(CONCEIÇÃO, 1988). Jonatas Conceição (1988) conta em seu texto “história de lutas
negras: memórias do surgimento do movimento negro na Bahia”, que foi a partir do grupo
NEGO, que se formou o primeiro núcleo organizativo do MNU na Bahia, sobretudo, pelo fato
de pessoas desse agrupamento estar em constante contato com as mobilizações negras que
ocorriam no Rio de Janeiro e São Paulo. O grupo NEGO conseguiu enviar representantes ao
ato de fundação do MNU no dia 7 de julho de 1978, representantes esses, que foram
municiados de documentos e cartas públicas construídas no contexto das reuniões
organizativas do grupo NEGO. Os documentos programáticos foram lidos em praça pública
na frente ao teatro municipal de São Paulo, demarcando a presença da militância negra da
Bahia no ato de fundação do MNU.
86
O terceiro e último setor que se agrupava dentro do MNU, era constituído de pessoas
que acreditavam na noção de trabalho de base comunitária e, de acordo Jônatas conceição, foi
o setor que mais se espalhou pelo interior do movimento, sobretudo, por seu trabalho
comunitário permanente nas comunidades diretamente atingidas pelas políticas de morte
(MBEMBE, 2018) da cidade negra transatlântica de Salvador (CHALHOUB, 1990; FARIA et
al, 2006; AVELAR, 2016). Jonatas Conceição toma o depoimento de um dos militantes-
fundadores do MNU na Bahia, para melhor ilustrar amplitude de ação e alcance organizativo
desse terceiro setor no interior do MNU,
O resultado desse trabalho com as bases leva-o a concluir que, se hoje não temos,
ainda, um movimento de massa, temos em contrapartida um movimento com
resultado de massa. Isso significa que hoje, quando este setor do movimento propõe
o 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra, esta reivindicação é
referendada no Brasil inteiro e em todas instancias sociais e politicas. Para Luiz
Alberto, as atitudes assumidas, na conjuntura de 1978, por esse setor do MNU, ate
hoje estão sendo entendidas e incorporadas por segmentos democráticos do país
(CONCEICAO, p.15, 1988).
95
Por pautas hegemônicas, estou me referindo ao contexto histórico da primeira década do século XXI, onde o
Movimento Negro brasileiro, a partir de uma política racial de conflito e de construção de oportunidades
institucionais (RODRIGUES, 2014) no Estado, vem consolidando cada vez mais uma agenda de políticas
públicas de caráter racial. É nessa conjuntura que se criam secretarias estatais para promoção da igualdade racial .
aprova-se na suprema corte a viabilidade jurídico-institucional das cotas raciais em universidades públicas;
estabelece-se o ensino de história afro-brasileira, africana e indígena em todos os níveis da educação básica;
aprova-se o Estatuto da Igualdade Racial e, recentemente, criam-se cotas raciais em concursos públicos a nível
federal (PEREIRA, 2005: 2009; RODRIGUES, 2014). Ou seja, nos últimos anos a mobilização política
agenciada pelo Movimento Negro atingiu não apenas as ruas e academia, mas também instâncias importantes do
Estado brasileiro e, consequentemente, capilarizou-se pela sociedade brasileira em outras esferas. Para saber
mais ver o quarto capitulo de minha dissertação.
88
2018) do programa Pacto Pela Vida, são herdeiros diretos ou indiretos, da cultura política
organizacional MNU96.
Em nossa participação observante (VARGAS, 2010), pudemos apreender, por
exemplo, em que medida o Movimento Contra UPP dispõe em sua retórica política, de
aspectos da cultura organizacional do MNU, sobretudo, no tocante a elaboração de
documentos programáticos. Nesse contexto, ao estudarmos sistematicamente e relacionarmos
discursos dos programas de ação do MNU e do Movimento Contra UPP, podemos observar
que apesar de terem sido redigidos em contextos político-raciais distintos, apresentam pontos
de conexão e narrativas que em muitos aspectos se complementam.
O programa de ação do Movimento Contra UPP 97 publicizado em 2014, foi
anteriormente citado 98. Já o programa de ação do MNU, foi construído na década de 1990, no
contexto dos debates políticos do IX Congresso nacional da organização. O programa de ação
do MNU tinha o objetivo de ser um “guia de atuação política do MNU, orientado para as
seguintes Lutas Prioritárias” (MNU, 1990, p. 1). As bandeiras de luta do programa de ação do
MNU99 eram: 1 - Por um movimento negro independente. 2 - Pelo fim da violência policial e
contra a “Indústria” da criminalidade. 3 - Pelo fim da discriminação racial no trabalho. 4 - Por
uma educação voltada para os interesses do povo negro e de todos os oprimidos. 5 - Pelo fim
da manipulação política da cultura negra. 6 - Contra a exploração sexual, social e econômica
da mulher negra. 7 - Pelo fim da violência racial nos meios de comunicação. 8 - Pela
solidariedade internacional à luta de todos os oprimidos (MNU, 1990).
Historicamente o termo “programa de ação” faz parte do léxico político e da
engenharia organizacional da esquerda marxista (BOGO, 2011; GROSFOGUEL, 2008; 2012;
FERREIRA, 2015). Programas de ação são documentos organizacionais que tem o objetivo
de definir o conjunto de lutas prioritárias de organizações políticas (BOGO, 2011). Nesses
termos, os conteúdos dos programas de ação são construídos com o intuito de sofisticar e
intensificar a engenharia organizacional de uma dada organização política, através da
96
Por herdeiros diretos da cultura politico-racial do MNU, me refiro ao conjunto de organizações de negr@s
que foram fundadas a partir de cisões, rachas ou dissidências do MNU. O que implicou na constituição de
agrupamentos de negr@s que mesmo desenvolvendo criticas ideológica ou de ordem de ingerências politica há
direção do MNU, ainda assim, mantiveram, recriaram ou reinventaram dispositivos organizativos-pautas do
MNU. Por herdeiros indiretos, me refiro aqui ao conjunto de organizações e agrupamentos de negr@s que tem
em sua cultura politica, estratégias de enfrentamento e conjunto de táticas, aspectos organizativos do MNU,
como pautas, documentos organizacionais, retorica politica ou estética e performance militante.
97
O programa de ação do Movimento Contra UPP será disponibilizado integralmente nos anexos do presente
capitulo.
98
Cabe relembrarmos suas bandeiras de luta: 1) Desmilitarização; 2) Contra o Genocídio do Povo Negro; 3)
Descriminalização e legalização das drogas; e 4) Extensão universitária efetiva (CONTRA A UPP NA UNEB,
2014).
99
O programa de ação do MNU está integralmente disponibilizado nos anexos do presente capitulo.
89
Tendo como marco fundacional os escritos de Marx e Engels, que durante na segunda
metade do século XIX, formularam um corpus teórico radical para compreensão das raízes
históricas do sistema capitalista, a intitulada esquerda marxista, se consolidou historicamente
como uma tradição política, teórica e ideológica que há aproximadamente dois séculos elegeu
a luta de classes como engrenagem motora da história da humanidade e a derrocada da
civilização capitalista como princípio básico para construção de uma sociedade comunista, em
que não existiriam quaisquer tipos de exploração do homem pelo homem.
No entanto, foi a partir da revolução russa de 1917 que a tecnologia política da
esquerda branca marxista se difundiu pelo mundo, alçando seu paradigma organizativo como
ideia motora de lutas políticas anti-imperialistas, anticoloniais, revolucionárias e na
constituição de movimentos sociais no campo e na cidade.
No Brasil, a esquerda marxista tem como marcos históricos a fundação do Partido
Comunista do Brasil (PCB) em 1922, com forte alinhamento Leninista-Stalinista e,
posteriormente, nos idos de 1970 acompanhando uma autocrítica internacional do campo de
esquerda, a constituição de movimentos sociais, partidos e frações de tendência marxista
leninista ou trotskista. Ironicamente, uma das importantes forças motoras desse processo foi
um setor de uma organização marxista trotskista clandestina chamada Convergência
Socialista. Como um campo estratégico de treinamento político para vários militantes do
Movimento Negro Unificado, a Convergência Socialista, através de seu Núcleo Negro
Socialista, foi protagonista de uma importante aliança entre o movimento negro e grupos
marxistas em torno da questão racial.
90
execuções sumárias, que caracterizam a prática por isso que o Movimento Contra UPP está
da Pena de Morte no Brasil organizado em luta (MOVIMENTO CONTRA UPP,
2014, pag 1).
Não resta dúvida que a chamada criminalidade
não apenas é produto da miséria a que muitos Descriminalização e legalização das drogas
negros estão submetidos. Também é incentivada
pelo Estado, através das instituições que o A população carcerária do Brasil vem aumentando
representam, especialmente a policial, onde a consideravelmente e seus prejuízos atingem o sistema
corrupção desempenha um importante na econômico do país, assim como a população pobre e
manutenção do próprio repressivo. Desse modo a negra. As maiorias dos casos são de pessoas
polícia vangloria-se de prender e eliminar envolvidas com tráfico de drogas ou pequenos furtos,
criminosos, a mesma que fornece armas aos demonstrando o caráter falho da proibição.
grupos que assaltam e traficam drogas. É a
Nem sempre as drogas foram proibidas, mas, no
mesma que finge não ver que as crianças e
século passado, essas medidas foram exportadas dos
adolescentes negros, que vivem nas ruas ou sob a
Estados Unidos para o resto do mundo, na tentativa
“guarda” do Estado, são, frequentemente,
de apontar um novo inimigo, esses são os
recrutados para a formação de “quadrilhas” que
marginalizados e excluídos do sistema capitalista.
atuam sob o comando de, até mesmo,
Não podemos negar que as abordagens aos usuários
funcionários públicos das áreas de justiça e
são variadas pelos critérios de cor e classe social,
segurança. Por outro lado, as próprias empresas
onde os presos e mortos são os varejistas, meninos
beneficiam-se deste processo, com o crescimento
que correm de chinelos entre os dedos nos locais
da produção de armas, equipamentos de
mais pobres da cidade.
segurança e a prestação de serviços de segurança
privada, caracterizando uma verdadeira Poucos são os casos de mortes pelo uso de droga,
“indústria do crime”. Sua matéria-prima é a enquanto o tráfico é a maior justificativa de
miséria, associada ao racismo, que identifica o assassinatos todos os dias. A proibição das drogas é
negro ao marginal; sua mão-de-obra é o imenso sustentada pelo negocio das armas e controle social
contingente de favelados negros que, do Estado. Defendemos a descriminalização e
contraditoriamente, é impelido ao mundo da legalização das drogas, levando em conta que a
criminalidade, ao mesmo tempo em que constitui verdadeira forma de lidar com essa questãoé por
a maioria entre os policiais civis e militares. meio de educação e saúde pública (MOVIMENTO
Neste sentido, a “indústria” da criminalidade é CONTRA UPP, 2014, p.02).
um poderoso instrumento na obtenção da
conivência da opinião pública, para qual até
mesmo crianças negras passaram a representar
um perigo. Por sua vez, os Meios de
Comunicação, especialmente o rádio, através do
bombardeio ideológico, veiculado em programas
de grande audiência no meio popular,
encarregam-se de assegurar o apoio da
sociedade aos grupos de extermínio, bem como
de estimulá-la a “fazer justiça com as próprias
mãos”, por meio de linchamentos. Finalmente, é
preciso relacionar a ampla difusão dessas
práticas de extermínio com a intensificação do
protesto negro na última década. Para o MNU
este é o modo mais eficaz de desnudar essa forma
extrema de Violência Racial. Porém, a
intervenção não pode limitar-se às denúncias.
Negro Contemporâneo. Agendas essas, que foram amadurecidas e sintetizadas pelo MNU em
variados documentos organizacionais, como é o caso do programa de ação (MNU, 2008).
O Movimento Contra UPP, como uma das organizações de negros/as que enfrentaram
as políticas de morte (MBEMBE, 2018) na cidade negra de Salvador-BA, é herdeiro, mesmo
que indireto, dessa tradição organizativa. Digo indireto, pois em minha participação
observante (VARGAS, 2010; FERREIRA, 2015) pude perceber em que medida a cultura
política do MNU esteve presente nas dinâmicas organizativas do Movimento Contra UPP.
Cabe ressaltar, que para além de similitudes de ordem documental, também pude apreender
que em diferentes momentos de sua história política comunitária, o Movimento Contra UPP
dialogou politicamente com militantes ou organizações formadas por dissidências do MNU.
Como por exemplo, a forte influência organizativa que a Campanha Reaja ou será mort@100
exerceu sobre o Movimento Contra UPP. Influência essa, já debatida em páginas anteriores e
que como ressaltou as próprias militantes do Movimento Contra UPP, a relação com a
Campanha Reaja foi um dos principais fatores de amadurecimento político do Movimento,
bem como, um “campo de treinamento” que municiou o Movimento a construir estruturas
organizacionais sólidas baseadas em documentos programáticos; como é o caso do Programa
de ação.
Foi dentro desse contexto, que no segundo semestre de 2014, o Movimento Contra
UPP consolida seu programa de ação, assim como, uma intrincada teia de alianças
comunitárias espalhadas por toda cidade negra transatlântica de Salvador (CHALHOUB,
1990; FARIA et al, 2006; AVELAR, 2016).
100
Em páginas anteriores fiz um histórico sobre a Campanha reja ou seramort@, mas cabe ressaltar, que essa
organização que surgiu em 2005, foi fundada por dissidentes do MNU-BA, que não concordavam com os rumos
que o MNU estava tomando na época, sobretudo, no tocante a relação do Movimento com o Estado, partidos
políticos e governo.
96
ideológico do tráfico. Até por que, nós tínhamos um discurso bem seguro sobre o
uso da maconha. Então vamos debater quem são as pessoas que estão presas por
causa de um baseado? Enquanto isso tem um helicóptero com pasta de cocaína
caindo do céu e você que falar isso comigo? Que mundo de Alice é esse que a
sociedade vive? Então certas coisas que não tem cabimento, uns contra-argumentos
assim. Então recaia muito sobre nós mulheres, ainda mais que temos mulheres
usuárias e as não usuárias colam na roda [risadas]. (MAGALI, militante do
Movimento Contra a UPP na UNEB/Engomadeira, 02/06/2018).
101
Tenho conhecimento dessa informação a aproximadamente 5 anos, tempo que tenho colaborado como
militante da organização.
102
Negro Blul
98
estudantes, vários cursos, professor de direito e as porra cêru. A gente tava sempre
rodeado daquilo que era o inimigo mesmo. (MAGALI, militante do Movimento
Contra UPP na Engomadeira, 02/06/2018).
Por “as coisas foram se acirrando”, entenda-se risco permanente de morte violenta. A
militância do Movimento Contra UPP nos contou em seus depoimentos que tinham plena
consciência do perigo de vida que corriam na luta organizacional comunitária que
impulsionavam. Sabiam também, que a campanha racista-sexista de criminalização contra o
Movimento, vocalizada dentro e fora da universidade, tinham através das imagens
controladoras (COLLINS, 1990; 2004; PERRY, 2008) de “mulher de ladrão”, “usuárias de
drogas” e “braço ideológico do tráfico”, eram dispositivos discursivos que legitimavam a ação
letal por parte de agentes do estado ou grupos de extermínio.
Em um contexto de avanço dos processos de criminalização contra defensores
humanos no Brasil na última década (JUSTIÇA GLOBAL, 2013), não era por menos os
receios da militância do Movimento Contra UPP em relação ao risco permanente de morte
que estavam sujeitad@s. Como aponta o relatório, Na linha de frente – defensores de direitos
humanos no Brasil (2013), o Estado brasileiro historicamente tem constituído diferenciados
dispositivos para criminalização e eliminação física de defensores dos direitos humanos,
dispositivos esses, que são reformulados dinamicamente, tal qual o próprio conceito-categoria
de defensores dos direitos humanos. Como sinaliza o relatório,
São considerados defensores/as dos direitos humanos todos os indivíduos, grupos,
organizações, povos e movimentos sociais, que atuam na luta pela eliminação
efetiva de todas as violações de direitos e liberdades fundamentais dos povos e
indivíduos. Incluindo os que buscam a conquista novos direitos individuais,
políticos, sociais, econômicos, culturais e ambientais que ainda não assumiram
forma jurídica ou definição conceitual especifica (Dias & CARVALHO &
MANSUR, 2013, p.20).
O medo de uma ação letal por parte da corporação policial era fundamentado na
própria experiência de vida das militantes do Movimento Contra UPP, em suas comunidades
de origem nas periferias da cidade de Salvador. Mas o medo era também um recurso tático
diante do tipo de dispositivo organizacional que o Movimento edificou; comunitário, baseado
em ações diretas, liderado/coordenado por mulheres negras e de periferias urbanas da cidade.
Todo cuidado era pouco,
— No trajeto pra casa estávamos muito vulneráveis. Tipo pegar dois ônibus pra
voltar pra casa, descer no ponto, aquele medo clássico de ser um alvo. Eram esses
medos cotidianos, também a gente se expunha em estar em outros bairros discutindo
essas questões, isso gerava constante tensões dentro dessa militância. E fazendo uma
o suporte da outra, por que a gente tinha essa confiança, por isso que o movimento
foi se estreitando, se tornando um núcleo de ação onde tínhamos total confiança na
outra. O medo da morte nos fez mudar muitas posturas, sobretudo de ter estratégia
em nossas ações. (LIANE, militante do Movimento Contra a UPP na
UNE/Engomadeira, 02/06/2018).
100
Nesse sentido, como demonstra Vargas, a violência estrutural contra pessoas negras
está inserida dentro de uma estrutura transnacional de continuum genocida (VARGAS,
2010).Vargas nos traz um instrumental teórico importante para entendermos que, mesmo
cientes das especificidades históricas dos territórios nacionais na diáspora negra, não podemos
perder de vista a existência de uma Diáspora supranacional, que se mantêm em constante
fluxos e interfaces relacionais, baseadas nas experiências de terror racial compartilhadas por
comunidades negras nas mais variadas regiões do mundo. É nesse contexto que ao reler a obra
de William Patterson103, o autor cunha o conceito de Continuum Genocida104, para dar conta
103
A obra analisada por Joao Vargas é We Charge Genocide: The Historic Petition to the United Nation for
Relief a Crime Of The United Staes Government Against The Negro People (1951).
104
Por Continuum Genocida antinegro Vargas está falando do conjunto de experiências de subjugação racial e
genocídio vivenciadas por negros/as em diferenciados contextos culturais-geográficos. Experiências essas como;
101
aprisionamento maciço, brutalidade policial, mortalidade infantil elevada, morte prematura, falta de assistência
medica digna, educação formal sucateada, além de outros aspectos da violência endêmica em medias e grandes
cidades.
102
Tal qual o CAPA no EUA, o Movimento Contra UPP, tomou o enfrentamento aos
dispositivos de segurança como ponto nevrálgico na luta por justiça social e direito a vida de
pessoas pretas na Bahia. Como aponta o programa de ação do Movimento à violência racial
praticada pelas forças de repressão do Estado não é dissociada das desigualdades estruturais e
históricas que a comunidade negra está sujeitada. A corporação policial executa, aterroriza e
brutaliza corpos negros, militariza comunidades e destrói focos de resistência negra. Ou seja,
garantem que o status quo racial da supremacia branca permaneça inconteste e em constante
expansão pelos territórios negros.
Diante desse quadro analítico, “a diferença entre a experiência negra da violência e a
experiência não negra da violência é que a primeira não produz escândalo”. (VARGAS, 2016,
p. 20). Ou seja, a experiência negra é uma forma de morte social (PATTERSON, 2008;
PINHO, 2018).
De acordo a Orlando Patterson (2008), a escravidão é definida historicamente pela
supressão total de autonomia, dignidade e direitos sociais básicos de determinado sujeito,
dentro de uma estrutura político-social, em que a violência contra os corpos dos escravizados,
é peça fundante e constituinte de uma ordem social alicerçada no terror. O escravizado seria
então uma não-pessoa, desenraizado de vínculos familiares, violentado estruturalmente,
alienado radicalmente de si, ao ponto de ser totalmente subtraído do universo das relações
sociais que o distingue como ser humano. Nas palavras de Osmundo Pinho, ao revisar a obra
de Patterson,
Tal desvinculação esvazia o escravo de qualquer possibilidade de reivindicação de
honra ou dignidade pessoais, seria assim, por definição, desonrado em termos gerais,
sendo ademais tal desonra de caráter hereditário, seguindo usualmente a
descendência materna: partus sequitur ventrem. O que Patterson diz, buscando
caracterizar a escravidão de um modo em geral, em um esforço de conceituação
histórico-sociológico, é valido para escravidão moderna dos africanos nas Américas
(PINHO, 2018, p.5).
Trata-se de uma violência estrutural, por que de acordo com a perspectiva de Fanon,
a pessoa negra está posicionada fora dos âmbitos da sociedade civil e da
humanidade. E a violência anti-negra é gratuita por que, ao contrario do que o não-
negro vivência, a violência não depende de a pessoa negra transgredir a hegemonia
da sociedade civil (VARGAS, 2017, p. 93).
Não é por menos que manifestações negras comunitárias, contra brutalidade policial,
ou de familiares de vítimas do Estado, são caracterizadas cotidianamente como “articuladas
pelo tráfico de drogas” e são duramente reprimidas pelo aparato policial muitas vezes, se não
a maioria, empregando armamento letal contra os manifestantes. Para Vargas isso nos mostra
como,
Os manifestantes não negros se deparam com violência contingente: um tipo de
violência que resultou de seu posicionamento contra hegemônico em relação ao
gerenciamento do bem público ou privado e da máquina estatal. Para as pessoas
negras, no entanto, a violência é de uma natureza distinta pois ela não depende de
circunstâncias... Pessoas negras vivenciam a violência do estado como terror sempre
presente, como um fato da vida... O aumento de homicídios de pessoas negras
cometidas por agentes do estado, no momento exato quando homicídios de pessoas
não negras diminui da substancia a essas proposições. (VARGAS, 2016, p. 21)
hegemônica, que tem construído organizações comunitárias que tem enfrentado e revelado as
minucias dos dispositivos de necropoder (MBEMBE, 2018) da supremacia branca,
[...] mulheres negras que vêm desafiando e transformando o que a socióloga negra
americana France WinddanceTwine (1998) identificou, quase uma década atrás,
como “o senso comum racista” sobre os negros. No caso das mulheres, pode-se
apontar a existência de um “senso comum racista e sexista” acerca das mulheres
negras no Brasil. Também a feminista afro-americana Patricia Hill Collins (1990)
identificou este senso comum nas representações naturalizadas de mulheres negras
como “imagens controladoras (controllingimages)”, imagens estas “utilizadas para
fazer com que o racismo, o sexismo e a pobreza pareçam realidades naturais e
normais, e ainda circunstâncias inevitáveis da vida cotidiana” (p. 68, tradução
nossa). Desta perspectiva, a liderança das mulheres negras e sua atuação na luta
pelos direitos à terra na Gamboa de Baixo têm sido necessariamente ligadas às lutas
para contrapor as “imagens controladoras” que estereotipam as mulheres negras,
sobretudo, aquelas moradoras de bairros populares na sociedade baiana (PERRY,
2008, p.136).
Para além de uma presença física, as mulheres negras do Movimento Contra a UPP
formularam o conjunto de táticas e estratégias comunitárias adotadas gradativamente pelo
Movimento. A luta comunitária contra instalação de uma Base Comunitária de Segurança no
Bairro da engomadeira, impulsionada majoritariamente por mulheres negras, muitas delas
mães, teve um forte papel na construção de uma cultura política racial comunitária, que
desmistificou gradativamente um conjunto de imagens controladoras (COLLINS, 1990;
PERRY, 2008) atribuídas negativamente a essas militantes e ao Movimento de maneira geral.
Pesquisas acadêmicas realizadas por militantes negros/as, tem demonstrado como
historicamente na formação social do Brasil, as mulheres negras tiveram um papel estratégico
na construção, consolidação e disseminação de dispositivos sociais de enfrentamento a
violência racial (NZUMBI, 2010; 2017, ROCHA, 2016). O papel de liderança ocupado por
mulheres negras em movimentos comunitários tem sido uma constante estratégica no
enfrentamento a violência racial protagonizado por agrupamento de negros/as. Como afirma a
pesquisadora e militante negra Luciane de Oliveira Rocha,
A experiência da Diáspora Africana é intrinsecamente relacionada com a morte.
Como os trabalhos de muitos autores mostram, a antinegritude e genocídio da
população negra são as principais características da vida coletiva de negros e negras,
sendo a morte masculina o efeito mais visível. No entanto, é impossível pensar na
resistência a esta violência que é continua, estrutural e gratuita, sem levar em
consideração a contribuição social, cultural e emocional das mulheres negras. Acima
de tudo, é impossível negar a importância de nossos pensamentos e de nossa
participação nas estratégias políticas para transcender o genocídio (ROCHA, 2016,
p. 177).
Genocídio esse expresso nas altas taxas de mortandade violenta que atinge de
sobremaneira jovens homens negros (MAPA DA VIOLÊNCIA, 2012; 2014; 2015).
Entretanto, a morte violenta desses jovens negros impacta em outros aspectos psicossociais da
105
significados das mulheres negras, de tal modo que o fato de muitas militantes ainda não serem
mães, ou não terem filhos vitimados pela violência estrutural letal, não impediu que se
organizassem contra um dispositivo de segurança baseado em políticas de morte (MBEMBE,
2018).
Notem que a oposição por parte da universidade em relação à instalação de uma Base
Comunitária de Segurança no bairro da Engomadeira, não é necessariamente uma
discordância com a política de segurança pública em andamento na Bahia. Pelo contrário, a
universidade reconhece a importância e operacionalidade dos dispositivos de segurança
105
Ver matéria em: http://www.uneb.br/sgc/2015/03/12/comunidade-unebiana-rejeita-construcao-de-bcs-dentro-
do-campus/
106
Ver em: http://www.uneb.br/sgc/2015/03/12/comunidade-unebiana-rejeita-construcao-de-bcs-dentro-do-
campus/
107
conduzidos pelo Programa Pacto Pela Vida. De acordo a instância deliberativa máxima da
UNEB, o grande entrave para doação de um terreno que serviria para implantação de uma
Base Comunitária de Segurança no bairro da Engomadeira, seria o caráter antidemocrático e
autoritário da decisão, que foi tomada pela administração anterior, sem um debate público
com as categorias representativas da universidade: professores, técnicos e estudantes.
Nesse contexto, poucos dias após a decisão do CONSU, o Movimento Contra UPP,
que continuava suas atividades político-comunitárias para barrar a instalação de uma BCS na
engomadeira, emitiu uma nota pública 107 , dando seu parecer em relação à decisão da
instancia deliberativa máxima da Universidade,
O Movimento Contra UPP, organizado antes mesmo da posse da atual gestão de
reitoria da UNEB, não pode deixar passar um momento tão importante para nossa
luta: no dia 6 de março, o Conselho Universitário da UNEB aprovou parecer que
recomenda a não doação do terreno da Universidade para projeto de construção de
Base Comunitária de Segurança de autoria da SSP-BA, articulado junto à Secretaria
Estadual de Educação (SEC). (MOVIMENTO CONTRA A UPP, 2015, p.1).
Outra motivação que fez com que o Movimento redigisse uma nota em relação à
decisão da UNEB – em não ceder parte de seu terreno para construção de uma BCS – foi de
revelar publicamente, que ao contrário da narrativa vocalizada pela institucionalidade, a
universidade sempre se mostrou acolhedora com as políticas de segurança pública do
Programa Pacto Pela Vida. Na verdade a UNEB desde seu surgimento, tem estreitas relações
com as corporações policiais que compõem a segurança pública na Bahia, inclusive, firmando
convênios com a SSP-BA no tocante a pesquisas acadêmicas que municiem a ação policial,
além de ser a universidade responsável pela elaboração do curso de oficiais da polícia
107
O documento em questão tinha como título “Nota do Movimento Contra UPP sobre a rejeição da comunidade
acadêmica a construção da UPP”. A nota estará integralmente disponibilizada nos anexos do presente capítulo.
108
militar108. De acordo o Movimento Contra UPP, essa relação intestinal da universidade com a
corporação policial, era inaceitável, execrável, diante de um contexto de uma universidade
que se dizia inclusiva, a primeira a dotar políticas de cotas raciais na Bahia,
Nesses termos, a nota pública do Movimento Contra a UPP, além de revelar a estreita
relação da universidade com uma das corporações policiais mais violentas do mundo, também
demarcou o posicionamento político-ideológico do Movimento, que mesmo conquistando sua
principal pauta – barrar a instalação de uma BCS no bairro da Engomadeira – já sinalizava
que a luta comunitária era contra o conjunto dos dispositivos de segurança do programa Pacto
Pela vida, que ao contrário do discurso do governo, não reduziram as taxas de mortes
violentas letais,
Diferente da posição de concordância perante as políticas de segurança pública
expressada na nota, nós somos contra a instauração de qualquer unidade desse
caráter na Engomadeira ou qualquer comunidade periférica. Reconhecemos que as
medidas de segurança defendidas pelo Estado são motivadoras do genocídio da
população negra e pobre e não poderíamos legitimar tal execução em massa de
nenhuma forma, em nenhum lugar (MOVIMENTO CONTRA A UPP, 2015, p.2).
Por fim, o Movimento Contra a UPP termina sua nota pública provocando a
universidade a se manifestar sobre uma operação da polícia militar que ocorreu no dia 6 de
fevereiro de 2015, no bairro do Cabula em Salvador (BA), que resultou na morte de 12 jovens
homens negros, no episódio que ficou internacionalmente conhecido como Chacina do
Cabula109,
Aproveitamos para expressar repúdio a qualquer tentativa de utilização da área da
Universidade em ações de qualquer natureza perpetradas pelas forças armadas, e
para cobrar novamente um posicionamento da Universidade do Estado da Bahia
acerca da ação policial do dia 6 de fevereiro de 2015 que deixou 13 homens mortos
na região do Cabula, entendendo a Universidade enquanto importante sujeito
político que deve estar comprometido com o acontece em seu entorno
(MOVIMENTO CONTRA A UPP, 2015, p.2).
108
Para mais informações ver o portal da UNEB sobre o vestibular para oficiais da Polícia Militar e Corpo de
Bombeiros: https://portal.uneb.br/noticias/2017/06/12/uneb-realiza-concurso-para-oficiais-da-policia-militar-e-
do-corpo-de-bombeiros/
109
Sobre a Chacina do Cabula ver mais em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/chacina-com-12-
mortos-no-cabula-foi-planejada-por-pms-como-vinganca/ e http://www.reajaouseramortx.com/2015/02/pai-faz-
mae-cria-e-rondesp-da-sumico.html
109
território dos quilombolas do Quilombo Rio dos Macacos110, da luta por moradia e direitos
básicos da Ocupação Quilombo Lucas da Feira 111 e da luta por justiça e verdade da Chacina
do Cabula, protagonizada por mães, país, familiares, e amigos das vítimas, bem como por
militantes da Campanha Reaja ou Será Morta@112. Lutas sociais essas que pude participar
como apoiador, militante ou aliado, em diferentes contextos.
O Movimento Contra UPP foi impactante no cenário político-racial da Bahia na última
década: no método, na pauta, na política de alianças e linguagem política adotada em sua
agenda de enfrentamento. Como bem disse uma de suas militantes, o Movimento tensionou
no limite a pauta da “segurança pública” na Bahia,
—Então é aquela coisa, o nome do Movimento já trazia um destaque muito grande.
Movimento Contra a UPP, porra! Vai colocar isso numa cidade que tem um projeto
como o Pacto Pela Vida, que está investindo milhões em segurança pública. Maiores
onda, cêru. (MAGALI, militante do Movimento Contra a UPP na
UNEB/Engomadeira, 02/06/2018).
Além de ser um ator social estratégico no processo que culminou na não instalação de
uma Base Comunitária de Segurança no Bairro da Engomadeira, analiso que outra vitória
organizativado Movimento Contra UPP, foi desmontar o argumento defendido pelo Governo,
de que os dispositivos de segurança do Programa Pacto Pela Vida reduziriam os índices de
mortes violentas letais intencionais no Estado. Ou mesmo, que esses dispositivos fossem
plenamente aceitos pelo conjunto da população, notadamente, aquela parcela da população
que é diretamente atingida por esses dispositivos de segurança: pessoas negras.
Como pudemos evidenciar a partir de uma análise crítica do processo de implantação
das Bases Comunitárias de Segurança na Bahia, os índices de violência letal não diminuíram,
110
O quilombo Rio dos Macacos está localizado dentro da Vila Naval de Aratu, em Simões Filho, região
metropolitana de Salvador, Bahia. Secularmente o local chamava-se Fazenda dos Macacos e pertencia à família
Martins, que abdicou do terreno devido ao declínio da produção da cana de açúcar. Os remanescentes de
quilombolas permaneceram no local vivendo tradicionalmente por aproximadamente 150 anos. No início da
década de 1960, parte das terras foi tomada para a construção de uma barragem. Posteriormente, em 1972, a
situação foi agravada pelo início das obras da vila naval, sendo 57 famílias expulsas e sua estrada tradicional
destruída pela marinha. Em meados de 2010 novamente amarinha de guerra do Brasil investe contra a
comunidade quilombola, com tentativas de reintegração de posse, guerra psicológica, tentativa e assassinatos
políticos de lideranças, além de constantes cercos militares contra os quilombolas. Ver mais em -
https://anovademocracia.com.br/no-127/5263-os-valentes-quilombolas-de-rio-dos-macacos
111
A Ocupação Quilombo Lucas da Feira é um aglomerado de dezenas de moradias precárias numa antiga
fábrica de beneficiamento de leite às margens da BR 116 Norte. Autointitulada como quilombo – em referência à
forma comunitária com que os quilombos se organizavam – a ocupação surgiu em 2011 através de uma
mobilização tocada pelo MSTB (Movimento Sem Teto da Bahia). Em torno de 45 famílias aguardam ali pela
desapropriação da área para que a mesma seja regularizada.. Ver mais em - https://feirenses.com/ocupacao-
lucas-da-feira/
112
A Chacina do Cabula foi um intervenção policial ilegal realizada pela RONDESP (Rondas especiais) em
Salvador-BA resultou na morte de 12 jovens e em um processo de luta organizada de Familiares pela justiça,
verdade , memoria e reparação . Ver mais em - https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2019/02/06/chacina-do-
cabula-acao-da-pm-que-deixou-12-mortos-na-ba-segue-sem-solucao-apos-4-anos.ghtml
111
113
Inaugurada simbolicamente nos dias 28 e 29 de novembro de 2015, a Biblioteca Comunitária Zeferina-Beiru
já se encontrava em construção desde meados de 2013, quando foram iniciadas as reformas do prédio e a
arrecadação de livros para compor o nosso acervo. O prédio que hoje abriga a Biblioteca, o Centro Comunitário
do Arenoso, teria sido construído no final da década de 80 para abrigar um cinema comunitário. Passado o
período de funcionamento do cinema, o prédio abrigou outras iniciativas dos próprios moradores: uma
associação desportiva e uma escola infantil (onde alguns membros atuais da Biblioteca chegaram a estudar). Para
saber mais ver em: http://www.facebook.com/ZeferinaBeiru/
112
3.1 Introdução
114
Cabe retomarmos que moderna definição de Genocídio foi publicada em 1944 no Axis Rule in Occupied
Europe, pelo polonês radicado nos Estados unidos Rafhael Lemkin. Esta definição foi baseada em sua
observação e experiência como judeu na Alemanha Nazista, e partir do princípio de que quaisquer ações por
parte de um Estado que afligissem a liberdade, a dignidade humana e a segurança física de um grupo, seriam
fenômenos sociais caracterizados como Genocídio.
113
Esta CPI, em consonância com os anseios do Movimento Negro, bem como com as
conclusões de estudiosos e especialistas do tema, assume aqui a expressão
GENOCÍDIO DA POPULAÇÃO NEGRA como a que melhor se adequa à
descrição da atual realidade em nosso país com relação ao assassinato dos jovens
negros. O Brasil não pode conviver com um cotidiano tão perverso e ignominioso.
Anualmente, milhares de vidas são ceifadas, milhares de família são desintegradas,
milhares de mães perdem sua razão de viver. A hora é de repensarmos a ação do
Estado, mais particularmente do aparato policial e jurídico, como forma de enfrentar
essa questão. Para que em um futuro próximo tenhamos uma nação mais justa e
igualitária onde as famílias, as mães e irmãos não tenham mais que chorar pela
morte desses jovens (FARIAS, 2015, p. 33-24).
Essa realidade de violência letal contra jovens homens negros, não está reservada
apenas aos grandes centros urbanos do Brasil. Na Bahia, por exemplo, como indica as
compilações dos anais documentais da SSP-BA 116 (2014), variados municípios, com
diferentes contextos sociodemográficos, estão imersos dentro de uma realidade patente de
violência letal, notadamente por arma de fogo (SSP-BA, 2014; 2015).
116
Para acessar as informações ver em:
http://www.ssp.ba.gov.br/arquivos/File/Estatistica2014/01ESTADOMUNICIPIO2014.pdf. Acesso em:
09/06/2017 às 19h e 40 min.
115
Outro aspecto enfatizado por Luis Mir, sobre o que diz respeito à subnotificação do
SIM, é referente o próprio contexto geral de violência letal no Brasil, onde anualmente
centenas de milhares de pessoas são enterradas ilegalmente em cemitérios clandestinos,
campos de desova ou mesmo locais inacessíveis (MIR, 2004). O autor ressalta que outro fator
preponderante no contexto de subnotificação de dados criminais no Brasil, é a própria cultura
organizacional das instituições de saúde e políciais responsáveis pela reunião e sistematização
dos dados criminais, que tem sérias dificuldades de comunicação entre si, bem como, muitas
dessas instituições são extremamente corporativistas e não vêm com bons olhos a perspectiva
de compartilhamento e publicização de dados (MIR, 2004).
Diante desse quadro, seria leviano de nossa parte tomar os dados do SIM como banco
de dados absoluto em nossa empreitada investigativa. Sobretudo, tendo em vista que a
mensuração de dados referentes a intervenções políciais letais são extremamente
subnotificados, como aponta o Atlas da Violência (2018), “Nesse sentido, a análise dos dados
de mortes decorrentes de intervenções políciais apenas a partir dos registros do SIM pode
levar a grandes equívocos ou distorções, já que a diferença entre as duas fontes supera 67,5%”
(IPEA, 2018, p. 28).
Em nossa investigação o Subsistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério
da Saúde (SIM) se insere como uma fonte metodologicamente questionada-questionável.
Com isso quero dizer que os índices de subnotificações no SIM, nos incitou a construir um
banco de dados autônomo e inédito, que será relacionado criticamente aos dados provenientes
da plataforma TabNet.
Nossa ambição é montar tabelas quantitativo-qualitativas referentes aos contextos e
circunstâncias de homicídios por arma de fogo em Cachoeira-BA e São Félix-BA, a partir da
catalogação de informações criminais no período de três anos. Nesses termos, inventariamos,
organizamos e analisamos um conjunto de notícias de jornalismo on-line criminal da região
do recôncavo sul, sobretudo notícias que tenham como conteúdo execuções sumárias e
intervenções políciais letais em Cachoeira-BA e São Félix-BA.
O Clipping117 de notícias on-line criminais foi realizado a partir da triagem de matérias
on-line dos últimos três anos do site “Forte do recôncavo: o verdadeiro lado da notícia está
aqui”, fundado no ano de 2011, na cidade de Cruz das Almas-BA. O site atua na região do
recôncavo sul da Bahia produzindo conteúdo jornalístico – a grande maioria sobre crimes – de
117
Clipping é uma expressão da língua inglesa, uma "gíria" da cultura e processo de trabalho jornalístico que
define o processo de selecionar, inventariar e organizar notícias referentes a um tema específico contido nas
matérias de jornais, revistas, sites e outros meios de comunicação.
118
cidades como Amargosa, São Felipe, Cruz das Almas, Muritiba e evidentemente de Cachoeira
e São Félix.
É preciso ser dito que a mídia de massa é um dispositivo estratégico na constituição do
discurso hegemônico sobre o arquétipo criminal-racial; jovem homem preto (AMPARO
ALVES, 2016). Discurso esse responsável pela produção simbólica sobre a violência letal
contra jovens homens negros, bem como pela legitimação de uma concepção abjeta do corpo
negro, narrado na TV, jornal, revistas e sites de jornalismo on-line, como um corpo perigoso,
sujo, inalienavelmente criminoso, passível de ser exposto não somente a violência letal, pois
mesmo morto, o corpo negro tem sua dignidade humana negada, quando exposto mutilado
nos dispositivos de comunicação da Mass Mídia sensacionalista. Como relata Jaime Amparo
Alves,
Aqui a mídia ocupa papel de destaque. Ela ajuda a consolidar/legitimar estratégias
de dominação por meio do que Patrícia Hill Collins (2005) tem chamado de
“controle de imagem”. Neste sentido, a narrativa da violência na mídia brasileira
produz um conjunto de significados sobre o corpo negro que o marca como o
“outro”, mas também o “eu”. Elas produzem a cidade branca e a favela negra, o
criminoso negro e a vítima branca (AMPARO ALVES, 2016, p.71).
Diante desse contexto, por que montar um banco de dados com uma fonte eticamente
questionável? De fato como indicam pesquisas, a mídia tem sido um local de excelência na
construção e proliferação de um imaginário social patológico-criminal em relação às
masculinidades negras (AMPARO ALVES, 2016). A mídia sensacionalista nesse sentido tem
se especializado em encontrar, noticiar e publicizar repetidamente, notícias que tenham como
principal foco o corpo negro mutilado, alvejado por tiros, esquartejado ou mesmo decapitado.
119
Essa ânsia por corpos negros mortos, mutilados ou gravemente feridos por parte da Mass
Mídia, não é eticamente aceitável, mas nos permite triangular criticamente outros ângulos da
violência letal contra jovens homens negros.
Nesse sentido, as notícias de jornalismo on-line são inseridas no presente estudo como
uma fonte metodologicamente provocada. Com isso quero dizer que o arrolamento de notícias
referentes a execuções sumárias e intervenções políciais letais em Cachoeira-BA e São Félix-
BA no período de três anos (2015-2018), nos permitiu inventariar dados que estão além dos
números de corpos vítimados pela violência letal. Revelou-nos aspectos negligenciados pelas
agências formais de tabulações de dados estatístico-criminais. Aspectos como:
Os homicídios por arma de fogo (HAF) têm crescido enormemente no Brasil nas
últimas três décadas, de maneira que entre os anos de 1980 a 2014, aproximadamente um
milhão de pessoas morreram vítimadas por disparos de arma de fogo (WAISELFIZ, 2016).
Diante desse quadro geral de violência letal por arma de fogo no Brasil, no período de
2004 a 2014 a região nordeste apresentou as maiores taxas de homicídios por arma de fogo do
Brasil, com uma taxa média de 32, 8 HAF por 100 mil habitantes em 2014 (WAISELFIZ,
2016). De acordo o Mapa da violência – Homicídios por arma de fogo no Brasil (2016), a
posição dianteira do nordeste no quesito homicídios por arma de fogo na primeira década do
século XXI, foi alavancada dentro de uma conjuntura de esgotamento econômico de grandes
metrópoles brasileiras, e do redirecionamento dos fluxos de capitais e mão de obra pra regiões
interioranas das unidades federativas nordestinas, inclusive para cidades de pequeno porte
com menos de 100 mil habitantes. Como aponta o Mapa da violência,
Vários fenômenos concomitantes parecem ter acontecido no final do século,
impactando fortemente a geografia dos homicídios no país. Por um lado, o
esgotamento do modelo desenvolvimento econômico vigente, concentrado em
poucas grandes metrópoles. Custos de implantação, carga impositiva, organização
sindical, etc. Reorientaram o fluxo de capitais e de mão de obra para locais até então
virgens de desenvolvimento... Esses novos polos atraíram investimentos e fluxos
populacionais, mas também criminalidade e violência, diante da virtual ausência as
instituições do Estado, Fundamentalmente as de Segurança (WAISELFIZ, 2016, p.
25-26).
Ainda segundo o Mapa da violência – Homicídios por arma de fogo no Brasil (2016)
é possível identificar quatro períodos históricos na evolução dos índices de homicídios por
arma de fogo no Brasil nas últimas três décadas. O primeiro período seria de 1980 a 1994,
121
118
Para acessar as informações ver em:
http://www.ssp.ba.gov.br/arquivos/File/Estatistica2014/01ESTADOMUNICIPIO2014.pdf. Acesso em
09/06/2017, às 19h e 40 min.
122
A Bahia alçou em 2015, o quarto lugar no ranking nacional de homicídios por arma de
fogo (WAISELFIZ, 2015; 2016). O Mapa da Violência – Homicídios por armas de fogo no
Brasil (2016) aponta que das 4.441 pessoas assassinadas por arma de fogo na Bahia em 2014,
75% estão na faixa etária de 15 a 29 anos, sendo 4228 homens. Cabe ressaltar que dos 5450
baianos assassinados em 2014, aproximadamente 3.999 eram pessoas negras (WAISELFIZ,
2016).
A Bahia nesse sentido, é o fragmento de uma realidade nacional onde as taxas de
vitimização de pessoas negras aumentam a cada ano, enquanto o mesmo fenômeno em
relação a população branca tem diminuído drasticamente. O Mapa da Violência (2016)
aponta que se no ano de 2003 13.224 pessoas brancas foram assassinadas por arma de fogo,
em 2014 esse número diminui para 9.766, o que consiste em uma queda de aproximadamente
26,1%. Por outro lado, no mesmo período de tempo, a vitimização de pessoas negras passa de
20.291 para 29.813, um aumento de 46, 9%.
3.4. Estatísticas criminais sobre homicídios por arma de fogo em Cachoeira-BA e São
Félix-BA.
Tiago do Iguape, São Gonçalo dos Campos, Nossa Senhora do Desterro de Outeiro Redondo,
Santo Estevão do Jacuípe, São Félix, e até mesmo Feira de Santana (NASCIMENTO, 2010).
De tal modo que, apenas no período republicano São Félix foi emancipada e desmembrada de
Cachoeira, a partir da assinatura do Ato número 4, de 20 de dezembro de 1889, pelo então
governador Manoel Vitorino Pereira, transformando o então distrito de São Félix, em uma
vila-município independente 119.
Contemporaneamente, Cachoeira possui cerca de 35 mil habitantes, enquanto São
Félix possui aproximadamente 16 mil. Em ambas cidades uma parte substancial da população
reside na zona rural – dois terços da população de Cachoeira por exemplo. Ambas as cidades
também se destacam por uma arquitetura paisagística urbana Barroca colonial, conjunto
arquitetônico esse, que foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN) em meados de 1971 (NASCIMENTO, 2010). Incluindo uma ponte
bicentenaria doada por Dom Pedro II que atravessa/unem os dois municípios.
Além de edificações tombadas, as duas cidades possuem destaque nacional por sua
história e cultura afrobrasileira, sobretudo no que diz respeito à presença substancial de
instituições religiosas seculares de matriz Africana, comunidades remanescentes de
quilombos, e toda extensa rede histórica de manifestações culturais afrobrasileiras, como o
samba de roda, irmandades religiosas afrobrasileiras, etc. (NASCIMENTO, 2010).
Entretanto, além de compartilharem questões demográficas, religiosas, históricas e
culturais, as duas cidades também compartilham índices endêmicos de pobreza, concentração
de renda, desemprego generalizado e índices de violência letal altíssimos.
De acordo o IBGE, 55% da população de Cachoeira-BA e São Félix- BA tem renda
per capita de zero a meio salário mínimo, e 38% das famílias entre meio e dois salários
mínimos. Dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e do Atlas
do desenvolvimento humano (2003) demonstram que o Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH) de Cachoeira é de aproximadamente 0,681, fazendo com que a cidade fique na 42º
posição no ranking do Estado.
Cachoeira também possui um índice altíssimo de desemprego, de acordo com o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2016 apenas 3.600 pessoas
ocupavam postos formais de trabalho. Ou seja, 10,3% da população ativa do município. Em
119
Quando mencionar a cidade de Cachoeira ate o período do final do século XIX, estarei me referindo também a
São Félix, que na época fazia parte das freguesias de Cachoeira.
124
São Félix não é tão diferente, aproximadamente 1.500 pessoas ocupam postos de trabalho
formal, totalizando 9,9 % dos habitantes que estão empregados.
O Censo demográfico de 2010 também indica que dos aproximadamente 35 mil
habitantes de Cachoeira-Ba, 13 mil são da cor preta, 3 mil da cor branca, 650 da cor amarela e
14 mil da cor parda. De modo que somando as categorias preta e parda, podemos aferir que
mais de 80% da população se autodeclara negra, tornando a região uma das mais negras do
Brasil.
Outro aspecto a ser ressaltado sobre as duas cidades, são os altíssimos índices de
violência letal que tem aumentado exponencialmente a cada ano, notadamente mortes
violentas decorrentes do manuseio de arma de fogo. De acordo o portal on-line de
processamento de dados Deepask120, tanto Cachoeira quanto São Félix têm apresentado um
aumento alarmante de mortes violentas intencionais, inclusive superando porporcionalmente
as taxas e médias de homicídio a nível nacional.
O portal Deepask organiza em uma plataforma on-line dados provenientes do Sistema
de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, do período de 2001 a 2013.
O levantamento estatístico do Deepask demonstra que São Félix, por exemplo, desde 2001
vem aumentando sua média de homicídios, de modo que, em 2013 atinge a taxa de homicídio
33, 32 óbitos/100 mil habitantes, superando a média nacional na época que era de 26, 99
óbitos/100 mil habitantes. Nesse mesmo ano, São Félix passa ocupar a 125º posição no
ranking estadual de homicídios em números absolutos e a 85º posição no quesito taxa de
homicídios no Estado.
De acordo o mesmo portal de tabelamento estatístico – o Deepask – Cachoeira
também teve aumentos substânciais na ordem de mortes violentas intencionais, de modo que,
se em 2001 uma pessoa foi assassinada anualmente na cidade, anos depois em 2013, esse
número aumentou radicalmente atingindo a cifra de 13 pessoas assassinadas em um ano,
fazendo com que a cidade tivesse uma taxa de homicídio de cerca de 27, 96 óbitos por 100
mil habitantes, superando a média nacional que era na época 26, 99 óbitos/100 mil habitantes.
Nesse contexto, no ano de 2013 Cachoeira ocupa a 57º posição no ranking estadual de
homicídios e 77º no quesito taxa de homicídios no Estado da Bahia. Vejamos o quadro abaixo
que triangula a evolução dos homicídios em ambos municípios,
120
O portal online deepAsk reúne e centraliza os dados abertos da internet e torna-os mundialmente acessíveis
para pesquisa e análise. Ver mais em: http://www.deepask.com/goes?page=cachoeira/BA-Confira-a-taxa-de-
homicidios-no-seu-municipio
125
2013 13 óbitos
2012 13 óbitos
2011 4 óbitos
2010 4 óbitos
2013 5 óbitos
2012 4 óbitos
2011 2 óbitos
Ainda segundo o portal Deepask, no ano de 2013, 11 pessoas foram assassinadas por
arma de fogo em Cachoeira-Ba, ou seja, 84,62% dos assassinatos da cidade foram cometidos
por disparos de armas de fogo, fazendo com que a cidade alçasse a cifra de 32, 12 óbitos por
arma de fogo a cada 100 mil habitantes. Nesse mesmo período São Félix-BA teve dois óbitos
por arma de fogo no ano de 2013, de maneira que 40% dos homicídios da cidade eram
cometidos por arma de fogo.
Os quadros abaixo, retiradas do portal online Deepask, demonstram a partir de séries
históricas, em que médida as taxas de homicídios por arma de fogo têm oscilado na última
década nas duas cidades.
Quadro 4 - Taxa de Homicídio por arma de fogo São Félix –BA (2010 a2013)
ANO SÃO FÉLIX-BA MÉDIA NACIONAL
A partir do ano de 2014 coletamos dados sobre vitimização por arma de fogo
diretamente do Sistema de Informações sobre Mortandade (SIM). O Subsistema de
Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM/MS) tem divulgado anualmente
dados referentes à morte por causas externas desde o ano de 1979, com sua última atualização
no ano de 2017.
Para termos acesso aos dados do SIM referente às mortes por arma de fogo em
Cachoeira-BA e São Félix-BA, utilizamos o programa/portal TabNet, hospedado dentro do
Departamento de informática do SUS (DATASUS) que foi elaborado com a finalidade de
organizar e publicizar digitalmente informações estatísticas do Sistema Único de Saúde,
dentre essas informações estão circunstâncias e contextos de mortes naturais ou homicídios.
127
Diante desse contexto, agrupamos no quadro abaixo os óbitos por causas externas
advindo de disparos de arma de fogo, em Cachoeira-BA e São Félix-BA, no período de 2014
a 2017.
Quadro - 5 Óbitos por causas externas Cachoeira-Ba e São Félix-BA – tiros de arma de
fogo. CID10: X95
2014 11 8
2015 15 5
2016 20 5
2017 13 8
Bem, até aqui pudemos acompanhar a evolução histórica de homicídios nas cidades de
Cachoeira-BA e São Félix-BA, notadamente óbitos cometidos por armas de fogo. Seja através
dos dados provenientes do portal de processamento de dados Deepask, ou nas informações
cedidas por consultas ao Subsistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da
Saúde (SIM/MS), pudemos examinar os padrões de mortandade em duas cidades do interior
baiano.
Contudo, como alertamos em páginas anteriores, o conjunto de dados disponibilizados
por agências de catalogação de dados do Estado, como o SIM, por exemplo, são em vários
aspectos subnotificados, seja nos aspectos quantitativos das informações disponibilizadas, aos
aspectos qualitativos referentes aos contextos e circunstâncias da violência letal por arma de
fogo no Brasil.
Diante desse entrave, com o intuito de realizar uma análise pormenorizada dos
padrões de violência letal por arma de fogo nas cidades do interior baiano, construímos um
banco de dados inédito, baseado em informações quantitativas-qualitativas extraídas de
clipping realizado no triênio de 2015 a 2018 na mídia virtual local – Portal Forte do
Recôncavo – onde inventariamos os homicídios por arma de fogo nas cidades de Cachoeira-
BA e São Félix-BA, especialmente, óbitos decorrentes de contextos de execuções sumárias e
intervenções políciais letais.
128
3.5. Dinâmicas e sinuosidades das Execuções sumárias em Cachoeira e São Félix (2015-
2018)
Há mais 10 anos estou radicado em Cachoeira-BA, onde resido desde o ano de 2008.
Nesse contexto, desde o ano de 2011 tenho contribuído na articulação de Cineclubes
comunitários e na disseminação da Cultura Hip Hop121 nas periferias urbanas de Cachoeira-
BA, sobretudo, através de minha participação como co-fundador e educador comunitário no
Cine do Povo122.
Coadunado a minha atuação como militante comunitário, também me formei em uma
universidade pública como professor de história, e mais que isso, exerci em diferenciados
contextos o ofício de professor – educador de nível básico, bem como em cursos de
capacitação de professores da rede municipal e estadual de ensino.
Essa breve contextualização sobre minha trajetória e inserção dentro das cidades de
Cachoeira-Ba e São Félix-Ba, é de salutar importância, pois foi dentro dos interstícios de
minha atuação comunitária e ofício como professor, que percebi o aumento exorbitante dos
números de jovens homens negros assassinados por disparos de arma de fogo em ambas
cidades.
Essa percepção não se deu através de leituras sistemáticas dos relatórios que ano após
an, são emitidos por agências de tabulação de dados do Estado (WAISELFISZ, 2005; 2012;
2013; 2014; 2015; 2016). Percebi o aumento dos índices de homicídios cometidos por arma
de fogo contra jovens negros em Cachoeira-BA e São Félix-BA, ao receber as corriqueiras
notícias de alunos assassinados. Quando não eram meus alunos assassinados, eram histórias
de seus vizinhos, parentes, conhecidos ou cônjuges que eram diretamente atingidos pela
violência letal. Foi no meu trânsito nos meandros do cotidiano violento das duas cidades que
comecei a erigir o banco de dados que detalharemos na pressente sessão.
Além das informações “coletadas” por mim em meu perímetro de atuação como
professor-educador, meu trânsito pelos rincões periféricos das duas cidades, através do
exercício permanente de cine clubismo comunitário, possibilitou-me conhecer as dinâmicas
121
Para saber mais veja https://oganpazan.com.br/dos-bueiros-do-reconcavo-para-o-mundo/.
122
O Cineclube Comunitário do Povo é uma organização comunitária que tem atuado permanentemente nos
ultimos 8 anos que nas periferias urbanas de Cachoeira- Ba com a realização de ações permanentes de trabalho
de base centradas em uma política cultural comunitária, abrangendo instrumentos como o cinema, educação
popular, Cultura Hip Hop, entre outros elementos da cultura da juventude negra periférica. Ver mais sobre o
Cine do Povo em: http://coletivoquilombo.blogspot.com/2015/07/cine-do-povo-trabalho-comunitario_11.html e
https://pt-br.facebook.com/cinedopovonoviradouro/ ou assistir ao filme “Cine do Povo uma história de Luta”:
https://www.youtube.com/watch?v=z_327LNTYK0.
129
Essas e outras informações estão diluídas textualmente nas notícias de jornalismo on-
line coletadas por nós no ultimo triênio, especificamente do portal on-line Forte do
Recôncavo, foram transformadas em um conjunto de dados que foi sintetizado por nós em três
quadros: 1- Execuções sumárias em Cachoeira-BA e São Félix-BA (2015-2018), 2-
Intervenções Políciais Letais em Cachoeira-Ba e São Félix-BA (2015-2018) e Corpos
desovados em Cachoeira-BA e São Félix-BA (2015-2018).
O primeiro quadro erigido por nós foi: Execuções sumárias em Cachoeira-Ba e São
Félix-Ba (2015-2018). Esse quadro inicialmente não estava no planejamento do capítulo em
curso, no entanto, à medida que me debruçava na leitura sistemática e crítica das notícias de
jornalismo on-line do portal Forte do Recôncavo, pude perceber como o método da execução
sumária era largamente empregado na maioria dos homicídios por arma de fogo nas duas
cidades.
A execução sumária, enquanto modus operandi padrão nos assassinatos cometidos por
manuseio de arma de fogo em Cachoeira-BA e São Félix-BA, são registrados no conjunto de
notícias de jornalismos on-line que inventariamos. As notícias relatam as circunstâncias e
métodos dos matadores; tiros concentrados no crânio ou região torácica, precisão em cada
assassinato, utilização de tocas ninjas pelos matadores, utilização de pistolas automáticas,
matadores motorizados em carros ou motos, muitas das vítimas mortas dentro de duas casas,
muitas das quais ainda dormindo.
Contudo, como demonstra o Relatório Final da CPI do Extermínio no Nordeste
(2005), a prática da execução sumária não é uma variante nova nos padrões de morbidade por
arma de fogo no interior baiano. Cabe realizarmos uma breve digressão histórica.
A Comissão Parlamentar de Inquérito “Ações criminosas das milícias privadas e dos
grupos de extermínio em toda região Nordeste”, foi criada no ano de 2003, através do
requerimento 019/2003. A CPI do Extermínio no Nordeste foi construída a partir de um
esforço coletivo de parlamentares, movimentos sociais, defensores dos direitos humanos e
familiars vítimas do Estado, para investigarem a atuação de grupos de extermínio, esquadrões
da morte e bandos de matadores no Nordeste brasileiro. Nesse contexto, a Bahia notadamente
os municipios do interior baiano foram uma das regiões investigadas pelos parlamentares e a
rede de apoio que compunha a Comissão Parlamentar de Inquérito.
Municípios como Cruz das Almas, Amargoa, Santo Antônio de Jesus, Cachoeira,
Maragojipe, Santo Amaro, dentre outras localidades do Recôncavo Sul, fizeram parte do
roteiro das diligências investigativas realizadas pelos parlamentares e apoiadores dos
movimentos sociais.
131
Número
Ano - 2015 Cidade Bairro de Circunstância Site-Fonte
mortos
http://www.fortenoreconc
Homem avo.com.br/2015/03/leo-
Cachoeira - executado a tiros cu-duro-e-executado-
Marco Cucuí 1
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Homens armados
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BA executam jovem a
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Totais
execuções
sumárias
em 2015
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Cachoeira
e São Félix
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Número
2016 Cidade Bairro de Circunstância Site -fonte
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Outubro Rosarinho 2 sumariamente choeira-duplo-
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vitimas, sem homicidio-de-
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defesa.
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executam casal
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sumárias no
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Cachoeira-
Ba e São
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Ano - 2017 Cidade Bairro de Circunstância Site-fonte
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Cachoeira- executado em vítima-de-homicidio-
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Jovem concavo.com.br/2017
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Dois Homens concavo.com.br/2017
armados /06/cachoeira-diabo-
Cachoeira - Rua da Feira aproximam-se a e-morto-tiros-na-rua-
Junho 1
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executam 13-03-2019
sumáriamente.
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Homens
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armados, dentro
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Cachoeira- Centro-Rua prata, executam
Agosto 1 assassinado-
BA do Brega liderança
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LGBTQIA+ no
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porto de
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Cachoeira.
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Homens concavo.com.br/2017
armados , /09/sao-felix-diego-
São Félix - Alto do pilotando uma e-morto-tiros-em-
Setembro 1
BA cemitério moto, executam plena.html. acesso
jovem perto de em: 13-03-2019
hospital
http://www.fortenore
Dono de
concavo.com.br/2017
quiosque é
São Félix - /09/forlan-e-mais-
Setembro Rodoviária 1 executado a
BA uma-vítima-fatal-
tiros por homens
da.html . Acesso em:
em moto.
13-03-2019.
Total de
execuções
sumárias
no em
Cachoeira 16
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Félix-Ba
no ano de
2016
Tabela 10 Execuções sumárias em Cachoeira e São Félix no ano de 2017. Fonte: O Autor.
Número
Ano -2018 Cidade Bairro de Circunstância Site –fonte
mortos
Mulher http://www.fortenore
encurralada por concavo.com.br/2018
São Félix- Alto do
Janeiro 1 homens armados /01/sao-felix-mulher-
BA Cemitério
e executada sem e-morta-tiros-apos-
chance para ser.html acesso em:
139
defesa.
http://www.fortenore
Homem é
concavo.com.br/2018
encurralado na
/04/cachoeira-
Cachoeira- hora de ir para o
Abril Pitanga 1 homicidio-ceifa-
BA trabalho e
vida-de.html .
executado na
Acesso em: dia 13-
frente da esposa
03-2019.
Homens http://www.fortenore
armados concavo.com.br/2018
Cachoeira -
Maio Zona rural 2 invadem casa e /05/cachoeira.html.
BA
executam jovens Acesso em: 13-03-
a tiro 2019.
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Jovem
concavo.com.br/2018
éperseguido e
Cachoeira- Centro-Tiro /05/cachoeira-jovem-
Maio 1 executado por
BA de Guerra e-assassinado-e-
homens armados
outro-e.html . Acesso
em um carro.
em: 13-03-2019.
Homens http://www.fortenore
armados concavo.com.br/2018
Cachoeira- invadem casa e /08/cachoeira-
Agosto Pitanga 1
BA executam jovem mototaxista-e-
em sua própria morto.html. Acesso
casa. em: 13-03-2019.
http://www.fortenore
Jovem é concavo.com.br/2018
Cachoeira- executado por /09/cachoeira-
Setembro Zona Rural 1
BA homens armados mototaxista-e-morto-
em um bar. tiros-na.html. Acesso
em: 13-03-2019.
http://www.fortenore
Jovem concavo.com.br/2018
Cachoeira- executado com /09/Cachoeira-
Setembro Morumbi 1
BA 16 tiros na porta Batata-e-morto-tiros-
de casa. no.html . Acesso em:
13-03-2019.
em:
http://www.fortenore
Homens concavo.com.br/2018
armados /12/sao-felix-
São Félix – Varre
Dezembro 1 invadem casa e homem-e-retirado-
BA Estrada
executam vítima forca-de.html.
a tiros. Acesso em: 19-03-
2019
Total de
execuções
sumárias no
em
Cachoeira- 10
Ba e São
Félix no ano
de 2018
Tabela 11 Execuções sumárias em Cachoeira e São Félix no ano de 2018. Fonte: O Autor
vezes encapuzados com armas de grosso calibre, como escopetas de repetição. Nesses casos,
os matadores arrastam a vítima para fora de sua residência e a executam, quando não as
matam na frente de familiares, cônjuges ou filhos. Muitas das vítimas estavam dormindo no
momento que foram executadas. No triênio analisado, cerca de doze invasões de casas com
fins de execuções sumárias foram realizadas nos municípios de Cachoeira-BA e São Félix-
BA.
Outra circunstância intensamente presente nas dinâmicas de homicídios por arma de
fogo nas duas cidades são execuções sumárias perpetradas por homens pilotando automóvel,
a grande maioria das vezes, um carro prata ou branco, com vidros fumê e placa adulterada-
clonada. No triênio de 2015 a 2018 foram inventariadas oito ações de execução sumária que
tiveram como agentes grupos de homens armados dentro de um carro, a maioria das vezes
encapuzados, bem como muitas das vezes realizando chacinas.
Tanto Cachoeira-BA, quanto São Félix-BA tem forte incidência de casos como esses,
que além de semelhanças nos aspectos logísticos – no caso a utilização de automóvel – possui
similitudes no modus operandi; tiros concentrados no crânio, precisão em cada assassinato,
utilização de tocas ninjas por parte dos matadores e nenhum tipo de chance para as vítimas
revidarem.
Em Cachoeira-BA, por exemplo, durante o ano de 2016/2017, pelo menos cinco
jovens negros foram assassinados em circunstâncias em que os matadores estavam em um
carro prateado. Ainda no início do ano de 2017, um jovem negro foi assassinado a tiros
concentrados na cabeça, na comunidade de Capoeiruçú 123. De acordo com a população local,
homens encapuzados em um Gol prateado, realizaram o crime. No ano anterior, dois jovens
da comunidade do Rosarinho, também na cidade “heróica”, foram alvejados e mortos a tiros,
por homens encapuzados em um Gol prata 124 . Em agosto de 2017, a travesti e militante
LGBTQIA+ do município de Cachoeira, conhecida como Lili, foi morta à tiros, surpreendida
por três homens armados que chegaram ao local em um carro prateado125.
Há outras circunstâncias de execuções sumárias em Cachoeira-BA e São Félix-BA,
que não se repetem tão exaustivamente quanto os contextos de casas invadidas por bandos
armados ou a ação do “carro prata” supracitado anteriormente. A exemplo de: 1- execuções
sumárias efetuadas por homens pilotando moto, 2- execuções sumárias que ocorreram em
porta de bares, 3- execuções sumárias que ocorreram na porta da casa da vítima ao sair para
123
Fonte em: http://www.fortenoreconcavo.com.br/2017/01/cachoeira-violencia-desabida-ceifa-vida.html
124
Ver fonte: http://www.vozdabahia.com.br/index/blog/id-245600/dois_jovens_sao_assassinados_em_cachoeira
125
Ver fonte: https://folhadecondeuba.com.br/travesti-e-morta-a-tiros-no-reconcavo-baiano/
142
http://www.fortenor
Adolescente
econcavo.com.br/2
desaparecida a
015/01/restos-
Cachoeira mais de um ano é
Janeiro Morumbi 1 mortais-de-garota-
-BA encontrada
desaparecida.html
enterrada em
Acesso em: 22-03-
terreno baldio.
2019.
http://www.fortenor
Corpo com
econcavo.com.br/2
marcas de bala e
015/06/corpo-de-
Cachoeira Rio em estado de
Junho 1 desconhecido-foi-
- BA Paraguassú putrefação
encontrado-as.html
encontrado
.Acesso em: 22-03-
submerso no rio.
2019.
http://www.fortenor
Corpo com econcavo.com.br/2
Cachoeira Rio marcas de bala 015/06/mais-um-
Junho 1
- BA Paraguassú encontrado corpo-e-
submerso no rio. encontrado-no-
rio.html. Acesso
143
em: 22-03-2019.
Total de
corpos
encontrad
4
os
desovados
em 2015
Tabela 12 Corpos encontrados desovados em Cachoeira e São Félix em 2015. Fonte: O Autor.
Corpo http://www.fortenorec
encontrado oncavo.com.br/2016/0
enterrado em 1/sao-felix-jovem-
São
Ladeira da cova rasa, com desaparecido-e.html.
Janeiro Félix- 1
Misericórdia marcas de Acesso em: 22-03-
BA
queimadura e 2019.
cápsulas de bala
alojadas.
Total de
corpos
encontrad
1
os
desovados
em 2016
Tabela 13 Corpos encontrados desovados em Cachoeira e São Félix em 2016. Fonte: O Autor.
Localidade
Quantidade Condição que o
onde corpo
2017 Cidade de corpos corpo foi Site-Fonte
foi
encontrados encontrado
desovado
144
2 corpos
encontrados http://www.fortenor
dentro de um econcavo.com.br/2
Estrada das carro 017/01/dois-
Cachoeira-
Janeiro Águas – 2 abandonado em corpos-sao-
BA
Zona Rural estrada vicinal, encontrados-em-
ambos os corpos carro.html.acessoe
com marcas de m: 22-03-2019.
tiro.
Corpo
encontrado em http://www.fortenor
terreno próximo econcavo.com.br/2
a cemitério com 017/02/sao-felix-
São Félix- Alto do
Fevereiro 1 marcas de tadinha-e-morto-
BA cemitério
perfuração de tiros-sao.html .
arma de fogo. Acesso em: 22-03-
2019.
Corpo
http://www.fortenor
encontrado em
econcavo.com.br/2
estado de
Engenho da 017/03/corpo-de-
Cachoeira- putrefação em
Marco Vitória - 1 um-homem-em-
BA estrada vicinal
Zona Rural putrfacao-e.html .
com marcas de
Acesso em: 22-03-
perfuração de
2019.
arma de fogo.
Corpo
http://www.fortenor
encontrado com
econcavo.com.br/2
marcas de
017/05/cachoeira-
Cachoeira- Rio perfuração de
Maio 1 corpo-de-homem-
BA Paraguassú arma de fogo em
vítima-de.html.
estado de
Acesso em: 22-03-
putrefação
2019
boiando no rio.
http://www.fortenor
Corpo econcavo.com.br/2
encontrado 017/07/cachoeira-
Cachoeira-
Julho Viradouro 1 esquartejado em moradores-do-
BA
campo de viradouro.html.
futebol. Acesso em: 22-03-
2019.
corpo http://www.fortenor
encontrado
Tabela 14 Corpos encontrados desovados em cachoeira e São comFonte:
Felix em 2017. econcavo.com.br/2
O Autor
perfurações de 017/11/sao-felix-
São Félix- Rio
Novembro 1 arma de fogo corpo-e-
BA Paraguassú
boiando nas encontrado-boiano-
margens do Rio no.html. Acesso
Paraguassú. em: 22-03-2019.
Total de
corpos
encontrados 8
desovados
em 2017
Localidade
Quantidade Condição que
onde corpo
2018 Cidade de corpos o corpo foi Site-Fonte
foi
encontrados encontrado
desovado
Corpo
http://www.fortenor
encontrado em
econcavo.com.br/2
estado de
Oiteiro 018/04/jovem-de-
São Félix- putrefação com
Abril Redondo - 1 muritiba-e-
BA perfurações de
Zona Rural encontrado-morto-
arma de fogo
na.html. Acesso
em estrada
em: 22-03-2019.
vicinal.
http://www.fortenor
Corpo econcavo.com.br/2
encontrado 018/12/homossexua
Cachoeira- Rio esquartejado l-de-27-anos-e-
Dezembro Paraguassú 1 no rio esquartejado.html.
BA
-Santiago Paraguassú. Acesso em: 22-03-
do Iguape 2019.
146
Total de
corpos
encontrados 2
desovados em
2017
Tabela 15 Corpos encontrados desovados em cachoeira e São Félix em 2018. Fonte: O Autor.
As pessoas que narram as torturas sofridas não se conheciam entre si, foram presas
em épocas totalmente diferentes umas das outras e narravam o mesmo modus
operandi: pá, picareta, corda, câmara de pneu (câmara de ar), a ordem para que,
147
quando tivessem “algo a dar” (para falar), batessem 3 vezes com o pé no chão, todas
narrando o mesmo fato, a mesma forma de ação, os mesmo carros: um Gol branco,
um Uno verde e uma Parati cinza rondando cada um deles antes de sofrerem coisas
dentro desses carros ou de um ou outro carro. Quer dizer, foi um modus. Eu pude
vislumbrar o modus operandi (COUTO, 2005, p. 319)
intervenção policial letal. No ano de 2016, 457 pessoas foram vitimadas em operações
políciais letais126.
No entanto, mesmo com números exorbitantes no quesito intervenções políciais letais,
a subnotificação dos registros de ocorrências políciais e a falta de transparência nos dados
produzidos pelas Secretarias de Segurança pública, tornam difíceis uma mensuração exata ou
aproximada da quantidade de pessoas assassinadas em contextos de operações policiais
(IPEA, 2018).
O atlas da violência (2018), afirma que os dados registrados nas categorias
intervenções legais e operações de guerra do Sistema de Informação sobre Mortandade (SIM)
são extremamente subnotificados, chegando a uma diferença de 67% se comparados aos
registros das Secretarias de Segurança Pública. Em 2016 por exemplo, o SIM registrou 1.374
ocorrências de operações políciais letais. Por outro lado, estatísticas publicadas no Anuário
Brasileiro de Segurança Pública, aponta que foram 4.222 pessoas vitimadas em contextos de
intervenções políciais letais no mesmo ano em todo território nacional (IPEA, 2018).
Vejamos o quadro abaixo, que sistematiza as diferenças na tabulação de intervenções
policiais letais em alguns estados brasileiros a partir do cruzamento de dados do FBSP e do
SIM,
Ceará 109 5
Pará 282 3
Tabela 16 Óbitos decorrentes de intervenções políciais nas Unidades Federativas – 2016. Fonte: Atlas da
Violência 2018
abaixo que construímos a partir de dados retirados do SIM, referentes a intervenções políciais
letais em Cachoeira-BA e São-Félix-BA no período de 2015 a 2017,
2015 0 0
2016 0 0
2017 1 0
Tabela 17 Óbitos p/Ocorrência em Cachoeira-BA por Grupo CID10 segundo Município Fonte:
Subsistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM/MS)
Pelotão
Número
operacional
Ano-2015 Cidade Bairro de Site-Fonte
envolvido na
Mortos
ação letal
http://www.fortenorecon
Pelotão
cavo.com.br/2015/01/ca
Cachoeira- Ladeira da Tático
Janeiro 1 choeira-pite-morre-
BA Cadeia Operacional
durante-confronto.html.
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Acesso em: 19-03-2019.
http://www.fortenorecon
Pelotão
cavo.com.br/2015/02/ca
Cachoeira- Tático
Fevereiro Viradouro 1 choeira-jovem-tomba-
BA Operacional
durante-confronto.html.
- PETO
Acesso em: 19.03.2019.
– PETO troca-de-tiros-com.html.
Acesso em: 19-03-2019.
Total de
vítimas em
operações
políciais letais
3
no ano de
2015 em
Cachoeira e
São Félix
Tabela 18 Homicídios decorrentes de intervenções políciais em cachoeira e São Félix – 2015. Fonte: O Autor.
Pelotão
Número
Operacional
2017 Cidade Bairro de Site-Fonte
envolvido na
Mortos
ação letal
http://www.fortenorecon
cavo.com.br/2017/07/ca
PETO &
choeira-rambo-e-
Cachoeira- Ladeira da CIPE Litoral
Julho 2 comparsa-sao-
BA Cadeia Norte
(Caatinga) mortos.html. Acesso
em: 19-03-2019
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oncavo.com.br/2017/0
Cachoeira- 8/cachoeira-trio-
Agosto de Morumbi 3 PETO
BA acusado-de-trafico-
de.html. Acesso em:
19-03-2019
http://www.fortenorec
oncavo.com.br/2017/0
8/sao-felix-
São Félix- PETO &
Agosto Zona rural 1 suspeito-morre-
BA Polícia Civil
decorrente-de.html.
Acesso em: 19-03-
2019
http://www.fortenorec
oncavo.com.br/2017/1
Cachoeira- 1/cachoeira-dois-
Novembro Morumbi 2 PETO
BA suspeitos-morrem-
durante.html. Acesso
em: 19-03-2019
152
http://www.fortenorec
PETO & oncavo.com.br/2017/1
Centro –
Cachoeira- CIPE Litoral 1/cachoeira-nani-
Novembro Próximo a 3
BA Norte morre-com-quatro-
UFRB
(CAATINGA tiros.html. Acesso em:
19-03-2019
http://www.fortenorec
oncavo.com.br/2017/1
Cachoeira- 2/cachoeira-suspeito-
Dezembro Caquende 1 PETO
BA de-cometer-
assaltos.html. Acesso
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http://www.fortenorec
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São Félix- Alto do PETO & 2/sao-felix-confronto-
Dezembro 2
BA Cemitério Pelotão Local entre-suspeitos-e.html.
Acesso em: 19-03-
2019
Total de
vítimas em
operações
políciais
letais no 14
ano de
2017 em
Cachoeira
e São Félix
Tabela 19 Homicídios decorrentes de intervenções políciais em cachoeira e São Félix -2017. Fonte: O Autor.
Pelotão
Número operacional
2018 Cidade Bairro de envolvido Site –Fonte
mortos em ação
letal
http://www.fortenoreconca
Alto do vo.com.br/2018/01/cachoei
Cachoeira
Janeiro jenipapeir 1 PETO ra-jovem-de-22-anos-
-BA
o morre.html. Acesso em: 19-
03-2019
19-03-2019
http://www.fortenoreconca
vo.com.br/2018/04/jovem-
São Félix- Bairro PETO &
Abril 1 morre-durante-troca-de-
BA 135 Pelotão local
tiros-com.html. Acesso em:
19-03-2019
http://www.fortenoreconca
CIPE litoral
vo.com.br/2018/05/sao-
São Félix- Bairro Norte
Maio 1 felix-zoi-morre-durante-
BA 135 (Caatinga) &
confronto.html. Acesso em:
PETO
19-03-2019
http://www.fortenoreconca
CIPE litoral vo.com.br/2018/05/cachoei
Cachoeira Ladeira norte ra-operacao-conjunta-entre-
Maio 3 cipe.html. Acesso em: 19-
-BA da Cadeia (Caatinga) &
PETO 03-2019
http://www.fortenoreconca
CIPE litoral
Caquende vo.com.br/2018/12/cachoei
Cachoeira Norte
Dezembro -Alto da 1 ra-broa-e-morto-durante-
-BA (Caatinga) &
Levada operacao.html. Acesso em:
PETO
19-03-2019
Total de
vítimas em
operações
políciais letais
8
no ano de
2018 em
Cachoeira e
São Félix
Tabela 20 Homicídios decorrentes de intervenções políciais em cachoeira e São Félix -2018. Fonte: O Autor
(25) foram assassinadas em contextos de operações políciais letais no período de 2015 a 2018
nas duas cidades.
No ano de 2015, duas pessoas vieram a óbito decorrente de intervenção policial letal
em Cachoeira-BA e, uma em São Félix-BA. Em todos os casos, o Pelotão Tático Operacional
(PETO) foi o grupamento que protagonizou a ação letal. Surpreendentemente em 2016, tal
quais os dados disponibilizados pelo SIM, não foi registrado nenhuma ocorrência de
intervenção policial letal em Cachoeira-BA ou São Félix-BA. No entanto, o ano de 2017 um
verdadeiro banho de sangue foi protagonizado pela corporação policial nas ruas das duas
cidades. Foram quatorze vítimas em intervenções políciais letais. Treze das vítimas em
Cachoeira-BA e uma em São Félix-BA.
Além dos números exorbitantes, em média uma pessoa assassinada por mês em ações
políciais no ano de 2017, não podemos deixar de notar a quantidade preocupante de operações
políciais que culminaram em chacinas. Foram cinco chacinas no período de 2017, duas no
bairro do Morumbi, uma no Centro da cidade, outra na Ladeira da Cadeia, e uma chacina em
São Félix-Ba no Alto do Cemitério. Tais operações foram protagonizadas por duas
Companhias Especiais Independentes da Polícia Militar da Bahia: CIPE Litoral Norte e o
PETO. Apenas uma das operações políciais letais foi protagonizada pelo pelotão local da
polícia militar.
Em 2018, os números de homicídios cometidos em contextos de operações políciais
reduziu-se em relação ao ano anterior. No entanto, ainda assim, as duas cidades continuam a
apresentar cifras macabras, oito homicídios praticados por grupamentos políciais. Duas
vítimas em São Félix-BA e seis vítimas em Cachoeira-BA. Em todos os casos foram unidades
especiais da polícia militar que protagonizaram as ações, CIPE Litoral Norte e PETO.
A partir do monitoramento das intervenções policiais letais no período de 2015 a
2018, observamos que nos últimos anos a região do Recôncavo Sul – onde se localiza
Cachoeira-BA e São Félix-BA – tem sido foco de políticas de militarização da corporação
policial, notadamente, na ramificação das chamadas Companhias Independentes/Políciais
Especiais por variadas cidades do interior baiano.
As Companhias Independentes Especializadas, são caracterizadas por serem
batalhões que possuem sede própria, carga de armamento bélico particular, viaturas e
uniformes padronizados e treinamento especializado em combate urbano e rural. São
Companhias Independentes na Bahia os batalhões especiais da Caatinga, Litoral Norte,
Cerrado, Peto, Rondesp, dentre outros. Dentro desse contexto, as Companhias Independentes
Especializadas são os grupamentos da corporação policial que,
155
CIPE/CAATINGA 18/04/2001
CIPE/CERRADO 09/05/2003
CIPRv/ITABUNA 09/07/2003
CIPE/SEMIÁRIDO 29/01/2004
CIPE/SUDOESTE 29/01/2004
CIPE/CACAUEIRA 29/12/2005
CIPPA/LENÇÓIS 06/01/2009
CIPRv/BARREIRAS 06/01/2009
CIPRv/BRUMADO 06/01/2009
OPERAÇÃO GEMEOS
156
Lei 13.201, de
BEPE 09dez2016
Lei 13.201, de
BOPE 09dez2016
Lei 13.201, de
CIPE/CENTRAL
09dez2016
O quadro anterior nos releva a quão comprometida a SSP-BA está com ramificação de
unidades operacionais especializadas. Além das Companhias independentes especializadas
instituídas a partir de leis orgânicas, existem outras unidades operacionais que estão em
atuação. Entretanto, ainda não foram formalizadas na estrutura organizacional da Polícia
Militar. A exemplo do Pelotão de Emprego Tático Operacional (PETO), que tem atuado
largamente em várias cidades do interior baiano e capital.
É dentro desse contexto de proliferação das Companhias Independentes que
Cachoeira-BA e São Félix-BA, passam a ser territórios de atuação de unidades operacionais
especializadas como a CIPE Litoral Norte, PETO e RONDESP, ou seja, há um gradativo
processo de militarização organizacional da corporação policial nas duas cidades e região do
Recôncavo Sul de maneira geral.
157
Cabe acentuar que esse processo de militarização da segurança pública nas cidades de
Cachoeira-BA e São Félix-BA tem uma gradativa intensificação a partir do ano de 2015, e
tem como um de seu marcos a solicitação pública do então prefeito da época – Carlos Pereira
– ao requerer do Governo da Bahia a instalação de uma Companhia Independente da Polícia
Militar na cidade de Cachoeira-Ba,
Em entrevista ao jornal A Tarde, o prefeito de Cachoeira, Carlos Pereira ( PP),
relatou que, nos últimos quatro anos , Cachoeira passa por uma “ Crise na
segurança , com o aumento do trafico de drogas e do número de homicidos”...O
prefeito reivindica a instalação de uma Companhia Independente da Polícia Militar
na Cidade (Jornal Forte no Recôncavo, 2015).
Um ano depois – em 2016 – mais uma vez Cachoeira é acometida por uma “crise de
segurança”, diante de um contexto de aumento crescente dos índices de assassinatos
cometidos por arma de fogo. Para combater essa arrancada da violência na cidade foi montada
pela SSP-BA uma força tarefa operacional composta por grupamentos especiais da Caatinga,
RONDESP, PETO, dentre outras unidades especiais 127.
Em 2017 mais uma ação estratégica é tomada pela SSP-BA no sentido de enraizar
Companhias Independentes Especializadas em Cachoeira-BA e cidades circunvizinhas: a
instalação de uma base da divisão especial da Polícia Militar CIPE Litoral Norte,
popularmente conhecida como Caatinga,
Cachoeira localizada no recôncavo, é um município tombado pelo Patrimônio
Histórico e Cultural, conhecida como pelourinho do interior. O governo do Estado,
após varia instituições clamarem a medida, implantou uma base da divisão especial
da polícia militar. A Caatinga irá atuar principalmente nessas áreas distantes do
centro urbano, mas de grande movimento turístico como São Francisco do
Paraguaçu, localidade rural de Cachoeira com enorme acervo histórico e fluxo de
turista. As guarnições estão provisoriamente instaladas no distrito de capueruçu.
Municipios vizihos também terão rondas e a presença da divisão da PM instalada em
Cachoeira-Ba (Jornal Forte no Recôncavo, 2017).
127
Ver mais em http://www.fortenoreconcavo.com.br/2016/06/polícia-monta-forca-tarefa-para.html
158
PM irá liberar uma embarcação para o patrulhamento fluvial no Rio Paraguaçu que
banha a cidade e cidades do Recôncavo. (Jornal Mídia Recôncavo, 2017).
Unidade Operacional
Cidade Ano de instalação
Especializada
O pesquisador e militar André Vinício Sales Dos Santos (2016) aponta em sua
investigação como os policiais lotados em unidades operacionais especializadas carregam um
sentimento e estigma de “distinção” em relação ao restante da tropa, bem como, um senso de
lealdade extremado com a unidade especial que faz parte (DOS SANTOS, 2016).
que tais unidades são o ponto nevrálgico das políticas públicas de combate à criminalidade
baseadas em confrontos letais e cercos militares a territórios tidos como “habitat” do inimigo
(MIR, 2004; ANISTIAINTERNACIONAL, 2015). Nesses termos, a noção que o assassinato
de “bandidos” é um ato nobre, heróico, ou mesmo uma benfeitoria para sociedade como um
todo, é um aspecto cultural-organizativo presente nos sentidos e estruturas narrativas dos
policiais lotados nessas unidades (ANISTIAINTERNACIONAL, 2015; COUTINHO
JÚNIOR, 2014).
3.7. Banhos de sangue no Recôncavo Sul: fragmentos de uma guerra racial de alta
intensidade
128
Clipping é uma expressão da língua inglesa, uma "gíria" da cultura e processo de trabalho jornalístico, que
define o processo de selecionar, inventariar e organizar notícias referentes a um tema específico contido nas
matérias de jornais, revistas, sites e outros meios de comunicação, geralmente impressos, para
164
Tomando como base o banco de dados inédito que erigimos no período de 2015 a
2018, cerca de oitenta e oito pessoas (88) foram assassinadas decorrentes de manuseio de
armas de fogo em Cachoeira-BA e São Félix-BA. São em media duas pessoas vitimadas por
arma de fogo a cada mês. Desse montante, quarenta e oito pessoas (48) foram executadas
sumariamente, vinte e cinco pessoas (25) vitimadas em contextos de operações policiais
letais, e quinze pessoas executadas (15), e posteriormente desovadas em estradas vicinais,
terrenos baldios, matas ou as margens do rio Paraguaçu.
Além dos números de corpos, também triangulamos os contextos, circunstâncias e
nuances dos padrões de morbidade por arma de fogo. Como por exemplo: mapeamos a
incidência de chacinas, seja em contextos de execução sumária ou em operações policiais
letais. Assim como demonstramos em que medida a prática de execuções sumárias tem uma
larga tradição no Recôncavo Sul, notadamente, a partir da histórica ação de grupos de
extermínio, esquadrões da morte e grupos de matadores na região (COUTO, 2005; FARIAS,
2015).
Constatamos que contemporâneamente o método da execução sumária é largamente
empregado em diferenciadas circunstâncias em ambas as cidades; O exemplo de; 1-
execuções sumárias efetuadas por Homens pilotando moto, 2- Execuções sumárias que
ocorreram em porta de bares, 3- execuções sumárias que ocorreram na porta da casa da vítima
ao sair para o trabalho, 5- Tocaias, quando a vítima é interceptada e encurralada durante um
trajeto cotidiano, como ir à escola, trabalho ou visitar parentes ou amigos. Além das
circunstâncias supracitadas, dois outros contextos são reentrantes nos padrões operacionais
das execuções sumárias em Cachoeira-BA e São Félix-BA, grupo de matadores em carro
prata-branco e, invasões de casas por homens armados com fins de execução sumária.
Além de aspectos circunstâncias, triangulamos aspectos táticos das práticas de
execuções sumárias, que apresentam padrões no que diz respeito o modus operandi dos
assassinatos, tiros concentrados no crânio e caixa torácica, e nenhum tipo de chance para as
vítimas revidarem.
Cabe acentuar que os dados inéditos inventariados por nós, confirmam as afirmações
de agências de pesquisas ligadas ao Estado, que tem admitido publicamente em seus
incontáveis relatórios que há um alto grau de subnotificação nas estatísticas criminais
disponibilizadas pelo Subsistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde–
SIM – (WAISELFIZ, 2016; IPEA, 2018; IPEA & FBSP 2019). Essa subnotificação ficou
evidente à medida que pudemos contrastar os dados do SIM, com os quadros que erigimos a
165
causa morte de jovens negros na faixa etária de 15 a 29 anos (IPEA & FBSP, 2019). São 65
mil assassinatos em 2017, dos quais aproximadamente 40 mil eram pessoas negras, e 35 mil
desse montante eram jovens, uma taxa recorde nos últimos 10 anos de 69,9 homicídios a cada
100 mil habitantes (IPEA & FBSP, 2019).
Esse recorde nos índices de violência letal contra jovens negros no Brasil, acontece no
mesmo período que o país passa pela maior transição demográfica de sua história, com uma
parte substancial da população envelhecendo, enquanto a juventude é assassinada ano, após
ano em progressão apocalíptica. Além de uma tragédia humanitária, esses índices
elevadíssimos de violência tem um custo econômico de 1,5% do PIB nacional (IPEA &FBSP,
2019).
As dinâmicas de violência letal no Brasil são marcadas por profundas desigualdades
raciais (IPEA &FBSP, 2019). O Atlas da Violência (2019) demonstra que 75% das vítimas de
homicídios no Brasil são pessoas negras. No período de 2007 a 2017 a taxa de homicídios de
pessoas negras cresceu 33% a nível nacional, ao passo que a taxa de homicídios de não
negros, cresceu timidamente 3%. No estado da Bahia as cifras são ainda mais sangrentas, e o
ano de 2017 foram 7.487 homicídios, sendo 6.798 das vítimas pessoas negras, 4.522 desse
montante eram jovens e, 5.427 mortas por arma de fogo (IPEA & FBSP, 2019).
Esses números perturbadores, em média 140 vítimas de arma de fogo por dia, cinco
óbitos a cada hora, faz com que o Brasil acumule anualmente mais óbitos do que territórios
que estão em conflitos armados declarados nos últimos vinte anos (WAISELFISZ, 2016).
Como aponta o Mapa da violência (2016),
O Brasil consegue a façanha de vitimar, por arma de fogo, mais cidadãos do que
muitos conflitos armados contemporâneos, como guerra da Chechênia, a do golfo,
as várias intifadas, as guerrilhas colombianas ou a guerra de libertação de Angola e
Moçambique, ou, ainda, uma longa serie de conflitos armados acontecidos já no
presente século... Ainda no contexto internacional, analisando os dados
correspondentes a 100 países para os quais contamos com informações fidedignas, o
Brasil, com uma taxa de 20, 7obitos por armas de fogo por 100 mil habitantes,
ocupa o décimo lugar, atrás de países como Honduras, El salvador, Venezuela,
Guatemala e Colômbia , com enorme carga de violência (WAISELFIZ, 2016, p.70).
Dentro desse contexto, apesar do Estado negar veementemente que não existe uma
guerra contra seus cidadãos – mas sim contra a macro criminalidade – nas últimas duas
décadas pesquisadores tem demonstrado como nas democracias multirraciais contemporâneas
o Estado tem construído dispositivos de segurança com fins de dar impulso a guerras de
baixa escala contra grupos específicos de suas populações (AGAMBEM, 2004; MBEMBE,
2014; 2018). De tal modo, que nos últimos vinte anos tem se ramificado globalmente
tecnologias/sistemas de segurança pública baseadas na noção de “Estado de Sitio”,
167
Nesse sentido, as guerras civis de novo tipo (MIR, 2004) nas democracias
multirraciais ocidentais de massa contemporâneas, seriam as expressões de um Estado
Permanente de Sitio (AGAMBEM, 2004), onde os dispositivos de segurança do Estado são
utilizados na eliminação física de populações inteiras (AGAMBEM, 2004; MBEMBE, 2018).
O pesquisador Giorgio Agambem (2004), por exemplo, argumenta que o Estado de
Exceção e as guerras civis de novo tipo (MIR, 2004) estão se tornando cada vez mais o
paradigma hegemônico das tecnologias de governo das democracias de massa ocidentais
(AGAMBEM, 2004).
No entanto, essa Re-balcanização do mundo ocidental contemporâneo, é precedida
historicamente de uma série de processos de balcanização-militarização dos dispositivos de
segurança das democracias de massa ocidentais (MIR, 2004; HOBSBAWM, 2007). Como por
exemplo, a ramificação na América Latina da Doutrina de Segurança Nacional, e anos
depois, sua reelaboração a partir a política-filosofia da Tolerância Zero nos EUA, que veio a
se tornar o sedimento doutrinal-operacional da chamada “Guerra as drogas”.
Desde a década de 1950, que diversos países da América Latina passaram por
sucessivos regimes totalitários militares (HOBSBAWN, 1995; 2007). Foi dentro dessa
conjuntura que a chamada Doutrina da Segurança Nacional foi semeada, ramificada e
reproduzida em diferenciados contextos políticos, sobretudo, a partir da influência política
dos EUA no treinamento político-ideológico das academias militares na América Latina
(HOBSBAWN, 1995; 2007; MIR, 2004).
A Doutrina da Segurança Nacional espalhou-se por toda América latina no contexto
da instauração de ditaduras civil-militares a partir da década de 1960. Tal doutrina
institucionalizou nos termos da lei a repressão a grandes multidões, torturas, execuções
sumárias extrajudiciais e desaparecimentos forçados como modus operandi na ação policial-
militar. Nesse contexto, práticas policialescas seculares na América Latina, foram reeditadas e
qualificadas, dando novos contornos às práticas de Terrorismo Estatal,
Existe poucas definições de terrorismo de Estado entre nós. Como é certo que o
terror empregado pelo Estado não é algo novo na história brasileira e foi sobreposto
nas origens de sua construção. Mas a ideologia da Doutrina de Segurança Nacional
168
129
Rudolph William Louis Giuliani foi um prefeito de Nova York de 1994 a 2002 e ficou mundialmente
conhecido por aplicar a noção de “tolerância zero” na segurança pública, encarcerando em um ano mais de 2
milhões de pessoas, sua grande maioria constituído das minorias raciais dos EUA.
169
A noção de guerra civil tem sido usada corriqueiramente para definir qualquer conflito
armado entre um determinado Estado-Nação, e parte da população (MIR, 2004). No entanto,
a doutrina militar já definia três estágios para constituição de um contexto de guerra civil;
rebelião, insurgência e beligerância (MIR, 2004).
170
A rebelião seria o primeiro estágio que antecederia uma guerra civil, onde ocorreria
uma série de protestos públicos violentos, com enfrentamentos esporádicos entre os
dispositivos de seguranças do Estado e bandos da população – que podem estar armados ou
não (MIR, 2004). O segundo estágio para classificação de uma guerra civil seria um período
intermediário, é descrito pelo autor como insurgência. Ou seja, o período em que as
manifestações públicas violentas, ou enfrentamentos entre o Estado e bandos tomam
proporções nacionais, ao ponto do Estado não conseguir assumir o controle desses distúrbios,
mesmo com o emprego de repressão qualificada letal (MIR, 2004). A terceira e última etapa
para se classificar um conflito nacional como guerra civil, seria o período de beligerância,
quando o Estado reconhece o bando “Insatisfeito” como inimigos formais do Estado-Nação.
O estágio de beligerância seria o “tipo ideal” de guerra civil (MIR, 2004).
O autor ainda elucida que na teoria militar contemporânea, o conceito de guerra civil
foi largueado para incorporar os rearranjos do Estado-Nação – contemporâneo pós 11 de
setembro nos EUA (MIR, 2004). Rearranjos esses, nas próprias práticas operacionais de
guerra civis, que passam a se manifestar nas democracias ocidentais contemporâneas não
tanto pelo caráter de conflito armado declarado entre população insurgente e Estado, mas sim
por um conjunto de dispositivos necropolíticos (MBEMBE, 2019), que travestidos de
políticas de Segurança Pública, operacionalizam táticas de guerra de baixa escala contra
grupos específicos da população (MIR, 2004; MBEMBE, 2019). Conforme Mir (2004),
A nova Guerra civil toma emprestada da contrarrevolução técnicas de
desestabilização dirigidas a semear o medo e o ódio... O objetivo estratégico destas
guerras é aterrorizar a população mediante diversos métodos, com as chacinas, a
criação de áreas urbanas sem lei, a partir de técnicas psicológicas e econômicas de
intimidação (MIR, 2004, p.159).
Faz muito tempo que a guerra civil se instalou nas metrópoles, sob a forma de
guerras moleculares, no seio das sociedades industrializadas. Sempre começam com
uma minoria e sua escala e tempo tomam proporções epidêmicas. A guerra civil
contemporânea é decorrente, fundamentalmente, da violência do Estado e da
criminalidade (MIR, 2004, p. 157).
E continua o argumento,
A guerra civil tomou uma exterioridade, uma visibilidade na história social do país
que a podemos subestimar, mas não suprimir. Cada vez mais universalizada
socialmente, o Estado a rotula como o seu conflito com as populações segregadas e
os seus enfrentamentos ocasionais com a macro criminalidade como desordem
provocada. Rejeita a categorização guerra civil como incorrera e políticamente
171
No entanto, mesmo com sólidos argumentos, a tese defendida por Luís Mir (2004) não
define que tipo particular de guerra civil de novo tipo (MIR, 2004) seria essa a brasileira,
172
A raça nesses termos ocupa um papel crucial nas dinâmicas das novas tecnologias de
governo, que regulam, disciplinam e destroem corpos racializados em uma economia política
173
130
Audiência em questão tinha como tema o assassinato em larga escala de jovens negros no Brasil e foi
provocada por uma articulação comunitária transnacional encabeçada pela Campanha Reaja ou será morta\o. A
organização peticionária defendeu a tese que as altas taxas de violência letal contra comunidade negra no Brasil
174
era uma das manifestações de um processo de Genocídio mais amplo. Ver mais em:
http://www.global.org.br/blog/brasil-reconhece-exterminio-da-juventude-negra-em-audiencia-na-oea/ .
131
Ver fonte em: https://www12.senado.leg.br/notícias/materias/2016/06/08/em-relatorio-cpi-apresenta-
sugestoes-para-acabar-com-genocidio-da-juventude-negra
132
Sobre o Portal A Ponte: https://ponte.org/contact/autores/
133
Durante o ano de 2014 a 2018, redigi um conjunto de ensaios políticos sobre a situação da segurança pública e
política racial na Bahia, onde assinei com o pseusonimo de Aganju Shakur. Os textos estão inseridos dentro do
contexto de minha participação-colaboração junto a movimentos comunitários e agrupamentos de pessoas pretas
que enfrentam as políticas de morte do Programa Pacto Pela Vida da Bahia. Alguns textos que assino como
Aganju Shakur:
https://ponte.org/chacinas-massacres-e-terrorismo-racial-na-bahia/
https://jornalapatria.wordpress.com/category/opiniao/outros/aganju-shakur/
https://daslutas.wordpress.com/2016/03/23/a-ultima-linha-de-auto-defesa/
https://reajanasruas.blogspot.com/2015/02/pai-faz-mae-cria-e-rondesp-da-sumico.html?view=mosaic
175
134
Originalmente publicado no Le Monde Diplomatique, o ensaio foi replicado em diversos portais online no
Brasil: https://www.geledes.org.br/guerra-racial-de-alta-letalidade/
176
O autor também aponta que do período de 2004 a 2017, o Estado brasileiro mobilizou
as forças armadas em diferentes contextos, locais ou internacionais. Em todas as
circunstâncias há graves denúncias de violações dos direitos humanos e de colaboração
operacional das forças armadas, e corporações policiais nas ações de ocupação militar a nível
doméstico. Nesse contexto, do período de 2004 a 2017, as forças armadas brasileiras foram
utilizadas a nível domestico e internacional em,
Por fim, Santos (2017), apresenta dados sobre o investimento do Estado brasileiro em
estrutura bélica, logística e tecnológica no quesito segurança interna, notadamente no combate
ao tráfico de drogas,
Em 2014, o país ocupou a 11ª posição no ranking do Internacional Institute for
Strategic Studies para investimento em estrutura bélica, com cerca de U$$ 23,2
bilhões. Na época, o governo federal informou que foram gastos R$ 74,4 bilhões,
metade do valor destinado ao Exército (R$ 34.334.064.729,38), seguido por
Marinha (R$ 19.436.300.788,32), Aeronáutica (R$ 18.188.235.556,17) e Ministério
da Defesa (R$ 469.114.890,37). Mesmo em 2016, com US$ 24,6 bilhões, continua
entre os primeiros. A prioridade dos investimentos, conforme a Internacional
177
Como tem demonstrado as novas agendas negras radicais de pesquisa sobre violência
letal Estatal contra a população negra no Brasil, a diáspora negra é uma experiência histórica
marcada por uma miríade de dispositivos estatais e paraestatais de manutenção e ramificação
de práticas de Genocídio Negro (FLAUZINA, 2008; AMPARO, 2010; 2011; 2016;
VARGAS, 2005; 2008; 2010; 2012; 2016; 2017; PINHO, 2016; ROCHA, 2016; FERREIRA,
2015; 2016; 2017).
É dentro desse contexto que pesquisador João Costa Vargas135 tem empreendido um
largo trabalho político-intelectual, encabeçando pesquisas acadêmicas de ordem
transnacional, que dêem conta de analisar as multifacetadas características do processo de
Genocídio que tem atingido a população negra na diáspora. Por um lado, o autor nos mostra
como o genocídio negro é uma realidade supranacional experienciada por pessoas negras nas
mais variadas partes do mundo. Genocídio esse que não é restrito apenas a manifestações
diretas como quadro internacional de superencarceramento e extermínio sistemático de
negros/as, mas que diz respeito também as experiências comuns de subjugação racial de
negras/os em diferenciados contextos; morte prematura, mortes violentas, doenças facilmente
preveníveis, pobreza endêmica, mortes por negligencia hospitalar, entre outros (VARGAS,
2005; 2008; 2010; 2012; 2016; 2017).
Nesses termos, as várias geografias dos Estados Nacionais, se relacionariam entre si a
partir de uma permanente geografia supranacional da morte negra (VARGAS, 2008; 2010;
ALVES, 2010; 2011). Ou seja, fenômenos locais como marginalização social, terrorismo
racial, altos índices de mortes violentas e facilmente preveniveis, além do encarceramento em
massa, seriam fenômenos sociais compartilhados pela experiência negra no contexto de
diáspora. Diante desse contexto, o Genocídio Negro é um fenômeno sócio-racial que deve ser
analisado a partir de instrumentais teóricos que dêem conta de compreender o caráter
relacional e especificidades dessas realidades supranacionais.
135
Professor associado do Centro de Estudos Africanos e Afro-americanos, do departamento de Antropologia da
Universidade do Texas em Austim. Além de professor, João Vargas tem colaborado ativamente com
organizações negras que enfrentam o genocídio negro em diferentes contextos e territórios da Diáspora Negra.
179
Diante desse quadro, nos últimos sete anos tenho me inserido no bojo dessa geração de
Militantes-intelectuais negros/as que não querem ser apenas destacados e ordeiros
buscadores da veracidade (DUBOIS, 1999). Sobretudo, a partir do contato com a literatura,
teoria, princípios metodológicos e aproximação com professores/as e alunos/as de pós-
graduação da autointitulada Escola de Estudos da Diáspora Negra de Austin-EUA136.
Dentro do largo lastro de intelectuais negros/as formados/as na Escola de Austin, ou
influenciados/as por seu corpus teórico-metodológico, estabeleci um diálogo teórico com três
de seus autores: professor João Vargas, professora Luciane Rocha e professor Jaime Amparo
Alves. Todos tiveram suas obras revisitadas por mim durante a confecção da presente tese
(AMPARO, 2010; 2011; 2016; VARGAS, 2005; 2008; 2010; 2012; 2016; 2017; ROCHA,
2016).
Os autores/as supracitados trazem relevantes contribuições teórico-metodológicas no
que diz respeito à abjeção e sujeição de pessoas pretas em contextos de racismo anti-negro,
bem como analisam os encontros mortais de jovens negros com os dispositivos
necropolíticos, e demonstram em que medida mães negras que tiveram filhos assassinados por
agentes do Estado, protagonizam e formulam estratégias comunitárias de enfrentamento e
prevenção ao genocídio negro (AMPARO, 2010; 2011; 2016; VARGAS, 2005; 2008; 2010;
2012; 2016; 2017 ROCHA, 2016).
Há um pano de fundo geral, que sedimenta e relaciona as pesquisas dessa nova
geração de intelectuais negros/as, que tem se dedicado a desvendar/revelar as práticas e
estruturas do racismo anti-negro no Brasil. Esse pano de fundo são os indicadores
econômicos, sociais e raciais que, por exemplo, demonstram que pessoas negras vivem em
um mundo totalmente diferente das pessoas não negras, no caso em questão, o mundo não
negro é caracterizado por condições plenas e dignas de vida. O mundo negro por outro lado é
uma Zona Limítrofe de sobrevivência e perigo de morte constante, onde pessoas negras são
de sobremaneira sujeitadas a mortes violentas, condições de pobreza crônica, encarceramento
em massa, desemprego desproporcional, mortes prematuras, doenças facilmente previsíveis e
um conjunto vasto desigualdades no acesso à educação, saúde, lazer e condições básicas de
sobrevivência.
136
Para saber mais sobre a Escola de Estudos da Diáspora Negra de Austin-EUA, leia; FERREIRA, Fred Igor
Santiago. Sou Sem Terra Sou Negão: raça, racismo e política racial no Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra. Ano de Obtenção: 2015. Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Mestrado em Ciências
Sociais: Cultura, Desigualdades e Desenvolvimento. 2013 – 2015.
182
137
Em sua pesquisa a professora Luciane Rocha (2016) tem demonstrado como historicamente na formação
social do Brasil, as mulheres negras tiveram um papel estratégico na construção, consolidação e disseminação de
dispositivos sociais de enfrentamento a violência racial. O papel de liderança ocupado por mulheres negras em
movimentos comunitários tem sido uma constante estratégica no enfrentamento a violência racial protagonizado
por agrupamento de negros/as. Nos casos analisados pela autora, todas as mães estão em luta pela memoria de
seus filhos assassinados; Jovens-homens-negros.
183
opressões de classe (HUDSON WEEMS, 2018; 2019). Cleonora Hudson-Weens fez forte
oposição à política e teoria de gênero do feminismo, que, de acordo a autora, é uma teoria
filosófico-política supremacista branca (HUDSON WEEMS, 2018; 2019). A autora também
tem se destacado nos fóruns internacionais de política racial e de gênero por denunciar o
eurocentrismo presente nas epistemologias acadêmicas ocidentais, bem como, tem
evidenciado em que medida a supremacia branca tem alastrado sua influência ideológica em
movimentos sociais de minorias, como no contexto da luta antirracista e contra o patriarcado.
A partir da década de 1990, o Mulherismo Africano passa a ter uma ressonância
internacional, sobretudo depois da participação da professora Cleonora Hudson-Weems na I
Conferência Internacional de Mulheres da África e da Diáspora Africana, na Universidade
da Nigéria, Nsukka, em 1992 (HUDSON WEEMS, 2018; 2019), onde apresentou as bases
epistemológicas do Mulherismo Africana,
Nem uma consequência, nem um suplemento ao feminismo, Mulherismo africana
não é feminismo preto, feminismo africano ou o Mulherismo de Alice Walker, que
algumas mulheres africanas chegaram a abraçar. Mulherismo africana é uma
ideologia criada e projetada para todas as mulheres de ascendência africana. Baseia-
se na cultura africana, e, portanto, necessariamente incide sobre as experiências
singulares, lutas, necessidades e desejos das mulheres africanas. Tece uma crítica
endereçada a dinâmica de conflito entre: as feministas tradicionais, as feministas
pretas, as feministas africanas, as mulheristas africanas. A conclusão é que
Mulherismo africana e sua agenda são únicas e separadas do feminismo branco e do
feminismo preto, e, além disso, a extensão da nomeação em particular, Mulherismo
africana difere do feminismo africano. (HUDSON-WEEMS, 2019, p.164)
bell hooks é outra intelectual negra que tem se destacado em sua larga produção
teórica sobre políticas de gênero e masculinidades negras. A autora faz uma crítica tenaz à
hegemonia racial das feministas brancas em torno do debate e política de gênero no mundo
contemporâneo (hooks, 1984, 1998; 2000; 2019).
Em seu ensaio: Feminist Theory: from margin to center (1984), bell hooks argumenta
que o feminismo radical branco estadunidense constrói uma narrativa política que revela os
187
certamente ela é normativa. Ela incorpora a forma mais honrada de ser um homem,
ela exige que todos os outros homens se posicionem em relação a ela e legitima
ideologicamente a subordinação global das mulheres aos homens. (CONNEL E
MESSERSCHMIDT, 2013, p. 245).
O pesquisador e professor Daniel dos Santos aponta em seu livro: Como fabricar um
Gangsta (2019) como, em contextos históricos de formações sociais coloniais, a supremacia
branca erigiu um poderoso sistema iconográfico de representações raciais sobre as
masculinidades dos homens negros, com o objetivo de estereotipar, mitificar e normatizar o
corpo e a própria psique mutilada dos homens negros (DOS SANTOS, 2019).
Nesse contexto, se os homens brancos exercem todos os privilégios e benesses de
uma masculinidade hegemônica, os homens negros, por outro lado, estão alocados dentro de
um prisma de masculinidades subalternas, ou contra-hegemônicas, como define Santos,
As masculinidades contra-hegemônicas emergem em situações de marginalização e
subalternização e em oposição reativa as masculinidades hegemônicas, estabelecidas
através das relações de força e estruturadas pelas hierarquias sociais. São espécies de
masculinidades que subvertem e transgridem os padrões imperantes, que são
variáveis entre as sociedades e podem ser compreendidas a partir de perspectivas
relacionais. Assim, podemos perceber que o signo da raça é o que legitima a
superioridade do homem branco em relação ao homem negro (SANTOS, 2019,
p.73).
Nosso estudo se insere no esteio dessas novas agendas radicais de pesquisa em torno
das masculinidades negras (ALVES, 2016; OLIVEIRA, 2016; ARAUJO, 2019; SANTOS,
2019). Masculinidades negras entendidas em suas multiplicidades, diferente dos padrões
normativos e estáticos, defendidos durante décadas por uma teoria de gênero supremacista
branca, que universalizou o padrão hegemônico de masculinidade – homem, branco,
heterossexual, classe média, cristão e urbanoide – como norma para todos os homens do
planeta.
Nesse sentido, minha intenção no presente estudo é dinamizar as análises até então
realizadas sobre as dinâmicas e sinuosidades de existências expecíficas de masculinidades
negras na diáspora (GORDON, 1997). Pretendo expor os dilemas subjetivos da experiência
masculina negra, em territórios necropolíticos, zonas limítrofes, a sombra da morte
(AMPARO, 2010). Nossa ênfase será nas percepções subjetivas e político-comunitárias, de
jovens homens negros, tomando como arquivo analítico experiências traumáticas em
contextos de violência letal.
Desse modo, muito inspirado nos escritos de Edmund T. Gordon, compreendo que é
necessária uma análise política comunitária das masculinidades negras, sobretudo em um
contexto de ramificação das políticas de morte e racismo Antinegro,
É minha ênfase na política da prática masculina negra. Homens Negros não estão
passivamente em conformidade com os padrões específicos de comportamento
tradicionalmente estabelecidos nem complacentes para adotar o caminho de menor
resistência ou de outras formas de adaptação mecânica para estruturas de opressão.
Eu tenho tentado chegar a uma interpretação alternativa da prática masculina negra
como sendo uma política ativa de acomodação e resistência. Assim, em vez de falar
da "Crise" de homens negros como meramente uma crise social, é útil considerar o
crescimento da proliferação das práticas "reputação" como uma crise política
também. O "problema" de homens negros, geralmente redigidos em termos
psicológicos e sociológicos (por exemplo, "hipermasculinidade”, "desvio",
“imoralidade”, delinquência, e criminalidade), deve ser pensado em termos políticos
(GORDON, 1997, p. 47).
que é dentro dos interstícios, ou melhor, dentro dessa Zona Limítrofe, entre a vida e a morte,
que as masculinidades negras são construídas e dinamizadas.
Franz Fanon (2008), em sua obra Pele Negra, Máscaras Brancas, traz relevantes
contribuições para decifrarmos a relação estrutural entre a experiência negra na diáspora e a
morte. Fanon defende que pessoas negras, são negras exclusivamente em relação às pessoas
brancas, de tal modo que a antologia negra é dependente umbilicalmente da ontologia branca.
No entanto, a ontologia branca, não depende da presença negra ontológica.
O pesquisador João Vargas, ao resenhar a obra de Fanon, revela as minúcias do
argumento da não presença negra,
No campo semântico planetário as pessoas negras ocupam uma posição única e
incomunicável porque a escravidão póstuma faz com que elas convivam com a
violência estrutural e gratuita continuamente. Trata-se de uma violência estrutural
porque, de acordo a perspectiva de Fanon, a pessoa negra está posicionada fora dos
âmbitos da sociedade civil e da humanidade. A violência gratuita equivale a um
estado de terror que é independente de leis, direitos e cidadania (VARGAS, 2017, p.
93).
por Armas de Fogo (JAMA, 2018), publicada pelo instituto de métricas e avaliação em saúde.
Dentro desse contexto, nos últimos 30 anos, ocorreu no Brasil a proliferação de um contexto
específico de violência armada generalizada (HOBSBAWN, 2007; MOURA, 2008) que tem
se concentrado em periferias urbanas, onde as vítimas matadas são majoritariamente jovens
homens negros.
A Bahia é, nesse sentido, um fragmento de uma realidade nacional, ainda que com
suas peculiaridades conjunturais. Como demonstra o Atlas da Violência (2018; 2019), em dez
anos foi registrado um aumento de 126,9% no número de mortes ocasionadas por manuseio
de arma de fogo na Bahia e no mesmo período, a taxa de homicídio cometido com arma de
fogo teve aumento de 107,2%, saltando de 17,2% para 35,7%.
Ainda no quesito morte por arma de fogo, a Bahia tem se destacado por ser o estado
que mais vitimiza pessoas negras, notadamente jovens homens negros, como apontou o Mapa
da Violência (2016), que revelou que no ano de 2014, por exemplo, 3.999 pessoas Negras
foram vitimadas por armas de fogo e, 289 brancas, de tal modo que, para cada pessoa branca
morta por arma de fogo, outras 14 pessoas negras foram vitimadas.
Apesar de números alarmantes que refletem uma política de segurança pública
calamitosa, no que diz respeito a preservação da vida, o governo da Bahia, através da
Secretaria de Segurança Pública, tem rebatido os números apresentados pelos relatórios
supracitados. Como aponta matéria do portal G1,
A Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) rebate os dados do Atlas da
Violência e critica a metodologia empregada. Conforme apontou a pasta, a Bahia
registra progressiva diminuição dos índices de mortes violentas. Afirma que, nos
cinco primeiros meses deste ano, o índice recuou 12,6%, no estado, em relação ao
mesmo período de 2017, o que, conforme o órgão, demonstra o resultado do
trabalho integrado das polícias Militar, Civil e Técnica. Ainda segundo a SSP, com
os investimentos feitos na contratação de novos policiais, entregas de novas
estruturas, uma delas o Centro de Operações e Inteligência, no ano de 2017,
comparando com 2016, a Bahia alcançou a redução de 5,2% nas mortes violentas.
De 2015 para 2016, em Salvador, os crimes contra a vida caíram 3,1% e, no estado,
houve um aumento de 12,4%, aponta a SSP. O secretário Maurício Barbosa
lamentou a divulgação do ranking de mortes violentas no Brasil, que, segundo ele,
não leva em consideração que os estados nordestinos figuram sempre como mais
violentos, pois contam as ocorrências usando uma metodologia mais fiel à realidade.
O secretário disse, ainda, que a pesquisa, quando fala em mortes violentas, coloca no
mesmo patamar o assassinato praticado por um criminoso e os casos em que
policiais, quando atacados, reagem proporcionalmente em legítima defesa dele e da
sociedade (Portal G1 BA, 2018).
Dentro dessa conjuntura global, armas de fogo portáteis são responsáveis por 70% dos
homicídios no Brasil, bem como o país alçou a quarta posição no ranking mundial de países
exportadores de arma de fogo, de acordo com o relatório Small Arms Survey (2015). Ao
mesmo tempo, durante o período de 1980 a 2014, foram assassinadas por arma de fogo no
Brasil 967.851 mil pessoas, sendo que 80% desse montante foram resultantes de agressões
com intencionalidades homicidas (WAISELFISZ, 2016).
O século XXI é o período de consolidação de um novo modelo operacional de guerra,
através da disseminação de práticas de conflitualidade e violência armada, onde formações
sociais, que não estão em processos de guerra declarada, convivem em seu interior com níveis
de violência letal, que superam em muito os números de mortos em territórios que estão
formalmente em guerra. Como propõem alguns autores-as,
Trata-se da disseminação da violência armada a uma escala cada vez mais micro,
que tem como cenários privilegiados as periferias de grandes centros urbanos
situados em países em paz formal, e que tem como atores (vítimas diretas quer
agentes da violência) jovens do sexo masculino, a maioria pertencente a classes
sociais marginalizadas. Apesar de sua manifestação de uma escala micro ou local,
estas guerras são um fenômeno mundial. A América Latina constitui um dos
194
exemplos mais expressivos deste fenômeno, onde a paz formal e institucional não
significou uma diminuição da violência, mas, antes, uma democratização da
violência (MOURA, 2008, p. 230).
contextos que vivem um conflito armado declarado ou reconhecido como tal, e que
podem ser encontradas em contextos de indefinição, que vivem uma aparente
situação de paz formal (MOURA, 2008, p. 228).
Achile Mbembe (2018) ao destrinchar a obra de Fanon, conclui que para o autor, a
violência estrutural contra o colonizado é um processo fundamentalmente necropolítico e,
como tal, invariavelmente genocida (MBEMBE, 2018; 2019). O trauma nesse contexto é um
arquivo que pode ser acessado através das percepções subjetivas dos sobreviventes,
notadamente, a partir da apreensão de uma faculdade inerente aos seres humanos: a
linguagem. Como nos instrui Mbembe (2018) ao resenhar a obra de Fanon,
Meu intento é retomar o método utilizado por Franz Fanon no capítulo “Guerra
Colonial e distúrbios mentais” (FANON, 2013), de sua obra Os Condenados da Terra (2013),
onde o autor faz uma análise minuciosa dos efeitos psicossociais da violência estrutural contra
o colonizado, sobretudo naqueles que sobreviveram, ou tiveram amigos/parentes mortos
violentamente no contexto da guerra de libertação da Argélia,
Abordamos aqui o problema dos distúrbios mentais originados na guerra de
196
Nossos interlocutores 138 são sete jovens homens negros, moradores de periferias
urbanas de três cidades do recôncavo sul baiano: Cachoeira-BA, São Félix-BA e Santo
Antônio de Jesus-BA. A escolha dos interlocutores foi fundamentada em um contexto cultural
comunitário comum a todos, inclusive a mim, que é o fato de serem colaboradores eventuais,
ou impulsionadores139 atuantes no Cine Clube Comunitário do Povo, ou como é popularmente
conhecido em Cachoeira-BA e cidades circunvizinhas, Cine do Povo140.
Desde o ano de 2011, tenho contribuído na articulação de Cineclubes e disseminação
da Cultura Hip Hop nas periferias urbanas de Cachoeira-BA, através de minha participação
como co-fundador e educador comunitário no Cine do Povo. Dentro desse contexto
comunitário, tenho contribuído notadamente: 1-Na articulação e execução de políticas
culturais comunitárias dentro de comunidades urbanas diretamente atingidas pelas políticas de
morte; 2- na consolidação de espaços seguros de criação artística e formação política
comunitária para jovens negros-as.
O Cine Comunitário do Povo surgiu em 2011 e inicialmente chamava-se “Cine do
Povo no Viradouro”, uma ação permanente de exibições de cinema em comunidades
periféricas criminalizadas da cidade de Cachoeira-BA. Na época a ação era impulsionada por
militantes do Núcleo de Negras e Negros Estudantes da Universidade Federal do Recôncavo
da Bahia/Núcleo Akofena. Para além de exibir filmes, o objetivo foi construir um processo de
trabalho comunitário que instrumentalizasse a comunidade no enfrentamento à brutalidade
policial.
138
Cabe ressaltar que por questões de segurança os nomes dos interlocutors são todos fictícios.
139
Os termos apoiadores e impulssionadores fazem parte do lexico politico organizativo do Cine do Povo. Por
apoaidores enten-de pessoas que executam atividades esporadicas dentro do conjunto de açoes comunitarias do
cine clube, que pode ser desde a disponinbilização gratuita de serviços, doações em dinheiro ou material.
Impulssionadores são as pessoas que formulam, planejam e executam as atividades comunitarias do cine clube.
Cabe ressaltar, que devido a propria dinamica do Cine do Povo, muitos apoiadores tornan-se impulssionadoes e,
muitas vezes, impulssionadores, com o decorrer do tempo, tornan-se apoiadores.
140
O Cineclube Comunitário do Povo é uma ação comunitariia que tem atuado permanentemente nos ultimos 9
anos nas periferias urbanas de Cachoeira- BA com a realização de ações permanentes de trabalho de base
centradas em uma política cultural comnitária, abrangendo instrumentos como o cinema, educação popular,
Cultuta Hip Hop, entre outros elementos da cultura da juventude negra periférica. Ver mais sobre o Cine do
Povo em :
http://coletivoquilombo.blogspot.com/2015/07/cine-do-povo-trabalho-comunitario_11.html e https://pt-
br.facebook.com/cinedopovonoviradouro/ ou assistir ao filme “ Cine do Povo uma história de Luta”:
https://www.youtube.com/watch?v=z_327LNTYK0 .
198
- O Cine do Povo passou a se chamar “Cine Comunitário do Povo”, também conhecido como
“Cine do Povo”, desligando-se assim da antiga alcunha de “Cine do Povo no Viradouro”. A
inclusão do termo “COMUNITÁRIO” tinha também a intenção de, a médio prazo, o Cine do
Povo estender-se para outras comunidades de Cachoeira-BA;
da década de 1970 nos EUA, mais especificamente, no bairro do Bronx, na cidade de Nova
York, a partir da hibridação da cultura sound system jamaicana e inovações tecnológicas no
âmbito da música digital estadunidense (NETO, 2019; Conceição, 2019; D Santos, 2019).
Inicialmente, o Hip Hop foi caracterizado por quatro elementos político-sensoriais-
estéticos: o Disc Jockey (DJ), Mestre de Cerimônia (MC), dança de rua (break dance) e o
Graffiti. No entanto, com o decorrer do desenvolvimento e ampliação da Cultura Hip Hop a
nível mundial, contemporaneamente pensadores do próprio Movimento-Cultural Hip Hop
desenvolveram teorias nativas, que alargam as definições primordiais. Como nos revela o
pesquisador negro Daniel dos Santos (2019), ao expor o pensamento teórico de um dos
protagonistas históricos do Hip Hop,
A clássica organização da cultura Hip Hop em basicamente quatro elementos, o
graffiti (manifestação plástica e visual), o breakdance (manifestação performática e
corporal), o disc jockey- Dj (manifestação musical) e o rap - rhythm and poetry
(ritmo e poesia ; manifestação poética e verbal), é reconfigurada pela perspectiva do
Mc e ativista KRS-ONE e adotada aqui enquanto uma nova teoria sobre a cultura
Hip Hop. KRS-ONE redefiniu as manifestações, termos e códigos, que constituem a
cultura Hip Hop, em nove amplos elementos, que podem ser variáveis entre as
organizações e coletivos que praticam, protegem e preservam a cultura:
- Breaking (estudo e aplicação das formas de dança de rua);
- Mcing (estudo e aplicação da fala rítmica, poesia e/ou discurso);
- Graffit Art (estudo e aplicação da caligrafia de rua, arte e escrita á mão);
- Djing (estudo e aplicação da produção da música rape difusão por rádio);
- Beatboxing (estudo e aplicação da música corporal – bodymusic);
- Conhecimento de Rua (estudo e aplicação da sabedoria ancestrak; historia e cultura
negra);
- Linguagem de rua (estudo e aplicação da comunicação de rua);
- Moda de rua (estudo e aplicação de tendências e estilos urbanos 0 Street Fashion);
- Empreendorismo de rua (estudo e aplicação do mercado justo – fair trade – e do
gerenciamento dos negócios do Hip Hop) - (SANTOS, 2019, p.32).
Essa investigação compreende a Cultura e Movimento Hip Hop através dessa ampla
redefinição teorizada pelo Mc, escritor e militante KRS-ONE, sobretudo, tendo em vista a
configuração diversa que o Hip Hop e seus múltiplos códigos se expressam historicamente no
recôncavo sul da Bahia.
Como demonstra o pesquisador Manoel Alves Araújo Neto (2019), em sua dissertação
de mestrado “Experiências e Educação: percepções acerca da formação intelectual de MC’S
negros/as do recôncavo da Bahia”, o Hip Hop penetra nas periferias da Bahia em meados da
década de 90 do século XX, notadamente na cidade de Salvador (NETO, 2019). No
recôncavo sul, o Movimento sócio cultural emerge também no mesmo período e tem como
um de seus marcos fundacionais o surgimento do grupo de rap: Pretos Conscientes Atuais –
PCA, baseados na cidade de Cachoeira-BA (NETO, 2019).
Contemporaneamente o Hip Hop espalhou-se pelas cidades do recôncavo sul, dentro
de um contexto geral de vocalização dada pela indústria cultural mundial, mas, sobretudo,
200
pelo protagonismo de jovens negr@s que impulsionam e propagam seus múltiplos elementos,
notadamente, através de produções musicais-audiovisuais independentes disponibilizadas a
nível planetário em plataformas de Streamings 141 . Bem como em conjunturas específicas,
como é o caso da cidade de Cachoeira-BA, que tem se destacado por ser um polo difusor de
trabalhos comunitários impulsionado por Mcs, Break Dancers, DJs, grafiteiros e cine
clubistas, que como apontam pesquisas recentes, estão construindo estratégias comunitárias
de enfrentamento ao Genocídio negro nas ruas do recôncavo sul da Bahia. Como têm alertado
pesquisas recentes,
Nesse sentido as ações do movimento Hip Hop em Cachoeira como o Baile Pelo
Certo, o Arte na Comunidade, e o Mutirão de Graffite desdobradas pelo Cine do
Povo e pelo Centro Comunitário de Audiovisual Luiz Orlando compostas pelos mais
diversos grupos de rap, equipes de break, Dj’s, grafiteiros, e colaboradores da região
do Recôncavo tem apresentado características que tomam forma de uma expressão
político-cultural estratégica de denúncia e manifestação relevante no contexto da
presente investigação e diante o silenciamento e extermínio dessas juventudes.
Ações essas que, buscam através da criação de espaços político-culturais autônomos
denunciar e vocalizar as ações violentas e de extermínio cometidos pelo Estado,
além de reverter fundos para viabilizar atividades que englobam o cine clubismo
comunitário e a cultura Hip Hop nas comunidades periféricas de Cachoeira. Nesse
sentido, as atividades protagonizadas pelo Cine do Povo tem fomentado estratégias
incisivas na luta contra a antinegritude e o racismo por intermédio da arte seja pela
música, poesia, dança ou artes visuais e ganhará papel central nas discussões do
presente trabalho, no momento em que enquanto ação organizativa e comunitária
cria organicamente espaços onde a juventude negra tem encontrado a possibilidade
de reinterpretar e reconstruir a realidade a qual estão inseridos. (CONCEICAO,
2019, p.6).
E reitera,
Nesse sentido, ao longo desses mais de sete anos de estabelecimento do movimento
Hip Hop nesses bairros marginalizados em Cachoeira, o Cine do Povo cumpriu e
cumpre o papel crucial de protagonizar as atividades comunitárias que inseriram e
tem inserido o Hip Hop no cenário cultural e político da cidade, através de oficinas,
mutirões culturais, atividades pedagógicas e apresentações artísticas dos mais
diversos artistas que tem envolvimento ou não com a cultura Hip Hop nesses
bairros. Nesse sentido, com esse acúmulo de atividades o Cine do Povo
gradativamente tem atraindo mais colaboradores e conquistando cada vez mais
espaço e respeito dentro dessas comunidades que atua, e que se encontram em
estado de marginalização histórica. A relação com os moradores desses bairros foi
se estreitando e se tornando mais orgânica, facilitando o contato e a identificação
entre colaboradores e moradores (CONCEIÇÃO, 2019, p. 51).
141
Para saber mais sobre as ações comunitarias e, produções fonograficas do Movimento Hip Hop no reconcavo
sul ver a material; https://oganpazan.com.br/dos-bueiros-do-reconcavo-para-o-mundo/
.
201
Miguel / Colaborador
Vidal/ Impulsionador
Vidal conheceu o Cine do Povo quando o cine
Conheceu o Cine do Povo em 2011 clube começou suas atividades operacionais no
bairro do Viradouro, no ano de 2011; Na época
Vidal tinha 14 anos de idade. Em 2014 Vidal é
um dos jovens negros escolhidos pelo pela
comunidade do Viradouro para coordenar as
atividades comunitárias do Cine do Povo.
Desde então tem atuado no cine clube como
articulador comunitário e impulsionador de
ações culturais comunitárias nas periferias
urbanas de Cachoeira-BA.
Vidal
Autodeclarado Negro Vidal, 20 anos, autodeclarado negro, morador
da cidade de Cachoeira-BA. Durante maior
20 anos parte de sua vida morou no bairro do Viradouro
e, nos últimos 3 anos, tem morado na
comunidade da Linha Velha.
Ensino médio incompleto Estudou até o primeiro ano do ensino médio e
atualmente faz alguns “bicos”, além de
trabalhar com projetos culturais. Vidal é Mc,
arte educador e um dos membros
fundadores/coordenadores do Cine Comunitário
do Povo, desde o ano de 2013.
4.4. Números de guerra: “perdi a conta de quantos parceru perdi nessa disgraça”
Porra desde ontem fiquei castelando pra lembrar. Próximo, entre amigos ou vizinhos
que foram alvejados, eu contei uns 12 e que faleceram foi uns 8. Porra perai, ainda
tem dois pivete que morreram hoje, foram executados pelo carro prata, maiores
onda. Pô quanto mais a gente vai falando dessa parada vai lembrando as onda, tem
também 3 pivete tudo de menor que foi executado, nois conheceu eles na rua, na
onda do rap, eram ate mais próximos de jhon, que estudava com eles. E foi as Puta
que lombrou, foi uma onda de reação a morte de um policial. Me passei de não
lembrar dos pivete também. Porra mano tem mais ta ligado, mas não vou lembrar
não, se lembrar nos próximo dia vou te falando (VANILSON, Morador de Santo
Antônio de Jesus-BA, entrevista cedida em : 20/10/2019)
208
Dificil vú. Foram tantos. Nos últimos três anos? Pivete mais de 10. E próximo de
mim era umas sete cabeça, sete parceru assim de verdade mermu ta ligado (CAIO,
Morador de São Felix-BA, entrevista cedida em : 06/12/2019 )
Porra mano você me pegou grandão ai. Mas ai deve ser na faixa de uns 30. Deixa
eu lembrar alguns; Finado Well, finado Pantera, Finado Junior macumba, finado
Rafael, teve Pedro, teve lulinha, teve Broa, e... porra, vários manos, sem contar
outros e outros que não lembro. Perai que tem mais, tem vários mano. Teve Preto,
teve Bibito... Porra, Deus é mais! é tanta morte que o cara vai lembrando com o
tempo, bagui doido (DANILO, morador de Cachoeira-BA, Entrevista cedida em:
11/11/2019 )
142
O título do capitulo é; Banho de sangue no recôncavo sul: execuções sumárias, corpos desovados e homicídios
decorrentes de intervenção policial em Cachoeira e São Felix (2015-2018).
209
Outro aspecto relevante apontado por nossos interlocutores foi referente às pessoas
desaparecidas. Notadamente quando perguntamos se “Teve algum parente, amigo ou
conhecido que desapareceu ou foi sequestrado e nunca mais voltou? Comente sobre o
episódio, ressaltando em que medida afetou e afeta psicologicamente sua trajetória de vida.”,
Tipo assim parceru, nois fala desaparecido (faz sinal de aspas com as mãos), mas os
pivete foram cortado. Mas peguei a visão no que você quis dizer, por que pra família
é pior ainda por que não enterra o morto. Tipo assim, tenho uns três parceru que
sumiram (novamente sinal de aspas com as mãos), só que na rua todo mundo sabe
da colé, por que os cara são sequestrado na cara dura, até a luz do dia, chega os cara
no carro de vidro fumê, tudo encapuzado e impeçado, joga os pivete no porta mala
e não se vê mais. Mas geral sabe que foram cortado e, com certeza torturado. Mas
vai dizer prus parente que tão morto, é barril, por que pra família sempre há
esperança do desaparecido (sinal de aspas com as mãos), aparecer do nada, mesmo
depois de anos. (VIDAL, morador de Cachoeira-BA, entrevista cedida em:
17/11/2019).
Gláucio Ary Dillon Soares, Doriam Borges e Dayse Miranda Doriam Borges (2006),
demonstraram em seu estudo: As vítimas Ocultas da Violência Urbana no Rio de Janeiro, que
pessoas que tiveram parentes ou amigos mortos violentamente desenvolvem em variados
graus uma Desordem de Estresse Pós-Trauma (DEPT). Em sua pesquisa, o autor e autora
evidenciam a gravidade dos efeitos psicossociais da violência letal na cidade do Rio de
Janeiro, que no ano de 1979 a 2011, teve cerca de 110 mil mortes violentas, gerando dessa
forma, de acordo os cálculos dos autores, cerca de 300 a 600 mil vítimas ocultas, que são
profundamente marcadas psicologicamente.
O livro é uma de nossas referências metodológicas, ao analisarmos as percepções
subjetivas de jovens homens negros que tiveram amigos ou parentes assassinados por arma de
fogo. Sobretudo, ao nos municiar instrumentalmente para triangularmos aspectos
multifacetados dos efeitos da violência letal no cotidiano de jovens negros, como por
exemplo, a presença de sintomas de Desordem de Estresse Pós-Trauma (DEPT).
Historicamente, a Desordem de Estresse Pós-Trauma (DEPT) foi estudada por
psicólogos, psiquiatras e antropólogos de guerra, a partir da observação da trajetória de vida
de pessoas que viveram diretamente situações de extrema violência e sobreviveram: soldados
em guerras, vítimas de estupro, policiais; ou mesmo, grupos de pessoas que passaram por
experiências de catástrofes naturais, como furacões, terremotos ou erupções vulcânicas
(SOARES & MIRANDA & BORGES, 2006).
No entanto, o conceito foi sendo reelaborado e, sobretudo, disseminado para outras
212
áreas das ciências humanas, dentro de um contexto de mudança das dinâmicas de violência
letal a nível planetário, de tal modo que, o conceito de DEPT é contemporaneamente utilizado
na análise de experiências traumáticas no contexto das guerras de novo tipo (SOARES &
MIRANDA & BORGES, 2006; MOURA, 2008).
Gláucio Ary Dillon Soares e Dayse Miranda Doriam Borges (2006) assinalam que a
maioria das pessoas que vivem um evento traumático letal, são seriamente afetada, na
maneira de pensar, sentir e agir, podendo, em casos extremos, interromper a vida profissional
e pessoal. Nesse contexto, a DEPT atinge cada um-a de uma maneira particular, no entanto,
os sintomas mais evidenciados são:
1. Memórias recorrentes, intrusivas e debilitantes do acontecimento; inclusive
imagens, pensamentos ou percepções;
2. Sonhar e ter pesadelos repetidos com o acontecimento;
3. Intenso mal-estar psicológico ao ser exposto a indicadores do leque de
lembranças, internos ou externos, que simbolizam ou parecem com um aspecto do
evento traumático;
4. Esforço para evitar pensamentos, sentimentos, sensações e conversas associadas
ao trauma;
5. Esforço para evitar atividades, lugares ou pessoas que provocam lembranças deste
trauma;
6. Incapacidade em lembrar um ou mais aspectos importantes do trauma;
7. Sensação de isolamento e de afastamento dos demais;
8. Limitação na capacidade afetiva, inclusive com impossibilidade de amar;
9. “encurtamento” do futuro, não sonha, pensa, nem planeja uma carreira,
casamento, família, filhos ou uma duração normal da vida.
10. Dificuldades em dormir ou em continuar dormindo;
11. Irritabilidade e explosões de mau humor;
12. Dificuldades na concentração;
13. Hipervigilância (SOARES & MIRANDA & BORGES, 2006, p.13-14).
Uma das perguntas do questionário que mais fez emergir discursivamente os efeitos
psicossociais da violência letal nos interlocutores, notadamente, sintomas de DEPT foi a
questão: “Comente em que medida o assassinato de amigos, vizinhos, familiares ou
conhecidos, tem afetado sua trajetória de vida, do ponto de vista psicológico, afetivo e de
suas projeções de vida para o futuro”. Novamente, foi uma constante os interlocutores
acentuarem que nunca haviam conversado de tal tema com alguém, apesar de muitos
afirmarem que subjetivamente sempre pensavam consigo mesmo sobre o assunto.
De maneira geral, os interlocutores avaliam que as constantes mortes violentas de
amigos, parentes ou vizinhos, têm afetado diretamente suas trajetórias de vida e, sobretudo,
projeções para o futuro. Como podemos observar nos depoimentos a seguir,
Pivete esse bagui me afeta de uma forma tão grande tá ligado. Por eu ser próximo de
muitas pessoas que já foram mortas a tiros tá ligado. Geralmente mortas pelas
polícia ou por treta assim tá ligado. Eu sinto muito medo, medo de me relacionar
com as pessoas e rolar uma onda comigo. Você tá ligado que quando nois sai na rua,
já sai com medo, aparece um carro lá pam, o cara já fica vendo bicho. Meu medo é
de eu sair e acontecer uma onda por besteira, por ser confundido, ou por estar
213
próximo a pessoas que tiveram esse fim e eles querer me arrastar também (CAIO,
Morador de São Felix-BA, entrevista cedida em: 06/12/2019)
Porra pode crer pivete. Afeta todo contexto, por que na verdade a gente se guia
através disso né pivete. Pensando que a gente vive em um contexto violento e a
qualquer segundo, por exemplo, você pode ser vítima dessa violência tá ligado. A
gente projeta tudo a partir disso, desse contexto violento. Porra é onda pivete. Se
fosse falar em poucas palavras, é tipo assim, me sinto em uma corda bamba. Eu me
sinto basicamente assim tá ligado, caminhando em um desfiladeiro, a qualquer hora,
se não tiver visão posso cair. (FRANCISCO, morador de Cachoeira-BA, entrevista
cedida em: 05/12/2019).
Da onde eu venho se você for branquinho, morar em um bairro mais pam, ou filho
214
de uma pessoa mais pam, você pode dar um rolé de moto, carro ou a pé a qualquer
hora. Ninguém vai lhe parar. Agora se eu for dar um rolé fora do meu bairro eu vou
ser parado, pelo meu jeito de andar, meu jeito de me vestir, de como eu falo, por
causa de minha cor. Quem ta tomando enquadro ou morrendo é os pivete igual a
mim tá ligado. Sou do bairro da cidade taxado de perigoso, onde rola crime, rola
droga, rola isso aquilo, o pior lugar. Então é sempre isso, por você ser de um lugar
pobre, ter uma pele mais escura, você tá com um alvo nas costas tá ligado. As puta
mata sorrindo e com requinte de crueldade. Sem amor (CAIO, Morador de São
Felix-BA, entrevista cedida em: 06/12/2019).
E concluem o argumento,
atualmente, sentir medo e mudar hábitos são comuns entre os cidadãos brasileiros; e
muitas pessoas vitimadas pelo sentimento do medo sofrem de desordem de estresse
pós-trauma (DEPT). O medo e os problemas psicológicos causados pela violência se
transformaram em problemas de saúde pública e o poder público, em todos os níveis
– federal, estadual e municipal – deve se posicionar face aos determinantes desse
estresse e trauma (SOARES & MIRANDA & BORGES 2006, p.13-14).
Se projetar o futuro é uma tarefa difícil diante do contexto de alta letalidade contra
jovens homens negros, cogitar a possibilidade de morrer violentamente, por outro lado, é um
pensamento permanente nos itinerários de nossos interlocutores. Quando perguntei: “O que
aconteceria com sua família se você morresse violentamente por arma de fogo“, fui
surpreendido com respostas convictas, projeções minuciosas sobre um cenário em que fossem
mortos violentamente, como se já tivessem refletido diversas vezes sobre o assunto,
Porra ia ser onda doida pivete. Primeiro emocionalmente, psicologicamente e
financeiramente também. Por que tipo assim a família tem que ter uma tinta pra
fazer o velório, aí já ia dar esse preju, além do preju da perda. Meus pais iam ficar
naquela onda, minha mãe já ia entrar em uma depressão tá ligado, ia ser maior onda.
Essa parada ai afeta de todos os lados a família. É que nem quando o cara tá
cumprindo a pena, a família tipo tá lá cumprindo a pena com o cara. Então quando o
cara é assassinado tragicamente de forma violenta uma parte da família é
assassinada também. Maiores onda (FRANCISCO, morador de Cachoeira-BA,
entrevista cedida em: 05/12/2019).
Porra pivete seria devastador, que nem foi com meus primos pra nois. Pelas relações
dentro de casa, tem uma onda de esperança, eu medeio as ideia tá ligado? busquei
conversar, falar com a galera, sou uma peça chave na família em vários sentido.
Então seria destruidor pros meus pais, pra nossa família de forma geral.
E também pro corre que nois faz, você ta ligado. As parada que protagonizo, tou ali
fazendo conexões, puxando um bonde na maioria das vezes na linha de frente com
outras pessoas, fazendo as parada acontecer.
É até uma reflexão que tenho que fazer, deixar as paradas mais explicita, por que se
rolar uma dessa, uma onda dessa, nois num ta livre, você ta ligado? Tamo na pista
mesmo, então temos que pensar, pras paradas ter continuidade. Seria frustrante não
só pra minha família, mas pra um bonde que cola com nois nas ações. Seria
destruidor mano, ia travar várias possibilidade da produção da minha vida, talvez no
momento mais produtivo de minha vida (VANILSON, Morador de Santo Antônio
de Jesus-BA, entrevista cedida em: 20/10/2019).
Nossa é foda pensar nisso, dá até medo. Uma pergunta dessa eu lembro de uma
situação, a muitos anos atrás, eu tava doente e era bem novo, lembro que já tava uns
dois a três dias de cama e um dia vi minha mãe desesperada chorando. Cheguei nela
pra perguntar o que era e ela disse que tinha medo que eu morresse, além disso me
disse uma frase que já é clássica entre as mães “o filho tá preparado pra perder a
mãe, mas a mãe nunca tá preparada pra perder o filho”. Então lembrando disso, eu
penso que se fosse assassinado o psicológico de minha mãe ficaria destroçado.
Acredito também que meus amigos próximos iam ficar abaladíssimos, além da
galera que cola comigo nos projetos que construo. E isso também afetaria
materialmente minha família, por que estou trabalhando pra dar uma melhora pra
meus familiares (MIGUEL, Morador de Cachoeira-BA, entrevista cedida em:
27/10/2019)
Outro ponto a se destacar na narrativa dos interlocutores é o fato de intuírem que suas
mortes prematuras também afetariam enormemente a saúde mental de seu núcleo familiar,
sobretudo, na figura de seus pais, avós e parentes de primeiro grau. Como narra Vanilson, a
nos contar sobre processos de adoecimento mental crônico de seus familiares, dentro de um
contexto de mortes violentas prematuras de parentes,
Depois de Rick teve outro primo meu que não se entrava em nada, tava em uma
situação na feira, foi apaziguar uma briga e foi alvejado. E foi foda, o pivete tinha
acabado de ter um filho, nem chegou a ver o filho grande. E porra, a morte dele
ocasionou uma doença sinistra em minha tia, depressão mesmo né veio, melancolia,
várias disgraça. Depois de alguns anos ela faleceu de tanto sofrer, não tava bem nem
pra trocar ideia. E tia Isabel era uma pessoa forte e de correria, com a morte do filho,
ficando nessa condição, afetou geral, por que ela era tipo um exemplo de guerreira
pra todo mundo. Muito triste essa porra (VANILSON, Morador de Santo Antônio de
Jesus-BA, entrevista cedida em: 20/10/2019).
Também procurei saber pormenores dos efeitos sensoriais da violência letal em meus
interlocutores, instigando-os através da pergunta: “Você sonha ou tem pesadelos com
regularidade com algum amigo, ente querido ou cônjuge, que foi assassinado-a por arma de
fogo? Conte em detalhes o sonho mais marcante ou que se repita com regularidade”. Dos
sete jovens entrevistados, apenas um declarou que não tinha pesadelos recorrentes que
envolvam violência letal. Os que afirmaram sonhar, narraram pesadelos que pedagogicamente
vamos dividir em quatro eixos narrativos:
Porra toda vez é assim; os cara chega de brucutu na cara, em um carro preto, e me
bagaçam todo. Bagui feião, vários tiro na disgraça da cara. Mas já tou acostumado,
que quando acordo já não fico em pânico (VIDAL, morador de Cachoeira-BA,
entrevista cedida em: 17/11/2019).
É tipo uma disgraça que vem atrás de mim. Num sei o que é, nem quem é, só saio
correndo tipo vendo bicho, por que se a disgraça me pega vai me matar. Porra maior
onda, num sei se deu pra entender (DANILO, Morador de Cachoeira-BA, entrevista
cedida em: 11/11/2019).
Nois ta de quebrada trocando ideia. Aí no sonho percebo que ele já morreu. Da uma
vontade de ficar no sonho, como se meu parceiro tivesse vivo. Mas aí eu acordo. Pra
mim isso é pesadelo, por que bate uma tristeza da porra quando acordo e percebo
que meu parceiro ta é morto (CAIO, Morador de São Felix-BA, entrevista cedida
em: 06/12/2019).
Tenho pesadelos com amigos e familiares que foram mortos. Tipo vejo eles sendo
morto, como se eu tivesse vendo a fita toda, mas não posso fazer nada. E tenho
sonhos comigo também sendo morto a tiros; esses são os piores. Isso praticamente
chega a ser de duas a três vezes na semana. E isso não me deixa bem. Fico com dor
de cabeça, irritado, depois que acordo desses pesadelos não consigo dormir direito.
Mas ai amanhece né cero? E o cara tem que ir pra pista ganhar o ganha o pão. Acho
que esse sono que perco me mata aos poucos. Sei lá, maiores onda (RUBEN,
morador de São Felix-BA, entrevista cedida em: 30/09/2019).
Nesse sentido, pudemos apurar em que medida os jovens homens negros, que tiveram
amigos ou parentes assassinados por arma de fogo, apresentam em diferentes níveis sintomas
de DEPT, muitas das vezes, afetando diferentes dimensões da trajetória de vida desses jovens.
O “Carro Prata”, ou “carro do corte” e até mesmo, “carro do suco”, são gírias
cotidianamente utilizadas por jovens homens negros das periferias urbanas da Bahia, para
classificar um dos métodos de violência extrema (FERREIRA, 2019) utilizados por grupos de
extermínio na prática da execução sumária.
Apesar de variadas denominações, como vigilantes, grupos de extermínio, esquadrões
da morte, agrupamento de matadores ou justiceiros, na América Latina como um todo, existe
uma gama diversa de agrupamentos de cidadãos que utilizam o manuseio de armas de fogo
para infringir a violência letal não-autorizada contra grupos específicos da população.
(MANITZAS, 1991; CHEVIGNY, 1991; MINAYO, 1994; CAMPBELL, 2000; HUGGINS,
2006; TEIXEIRA BAHIA, 2015; FLORES, 2017; FERREIRA, 2019).
Na última década, os estudos sobre as dinâmicas de atuação de grupos de extermínio
219
no Brasil têm desenvolvido extenso conteúdo teórico, que tem se debruçado sobre os
impactos psicossociais provocados pelos homicídios nas comunidades diretamente atingidas
pelas operações dos agrupamentos de matadores (TEIXEIRA BAHIA, 2015; FLORES, 2017;
FERREIRA, 2019). Bem como, análises que buscam compreender a dinamização da
cultura/indústria da morte e suas imbricações com a omissão ou ação direta de agentes do
Estado, no contexto de execuções sumárias, como aponta Teixeira Bahia,
Dentro desse contexto, Teixeira Bahia (2015), através de sua leitura-análise minuciosa
do documento final da CPI do extermínio no Nordeste, nos traz importantes contribuições
para compreendermos historicamente as dinâmicas e métodos empregados nas práticas de
execuções sumárias protagonizadas por grupos de extermínio nas cidades do recôncavo sul
baiano,
Já rolou várias vezes. Um carro preto, um corsa e um gol. E quando rolou a última
vez o bonde tava de treta, ai as puta aproveita pra fazer bagaço. Quando a pista ta
assim nois fica encurralado, por que nois ta num bagui que querendo ou não a gente
é um alvo. E tipo assim, nois perde a pouca liberdade que nois tem, nois fica em
pânico, sempre passando a visão prus parceiro“porra ta rolando um carro ai pam,
num fica boiando não parceru”. Até a família do cara chega no cara e dá várias ideia
pro cara nao ficar saindo. É muita onda pivete, isso aí deixa a gente com muito
medo e mais encurralado do que é. Por que tipo assim, em uma cidade pequena, tem
um carro que executa pessoas e você sabe que são as pessoas do seu bairro que tão
morrendo nessas execuções. Isso afeta você totalmente porque são seus parcerus que
tão morrendo e você pode ser o próximo (CAIO, morador de São Félix-BA,
Entrevista cedida em: 06/12/2019).
Você tá ligado que aqui já rolou varias braba de onda de grupo de extermínio, os
cara é grandão, tem dinheiro, é candidato a vereador, tem mandato de deputado e as
porra. E nois cresceu nessas ideia ai, de parar um carro, sair uns maluco armado de
brucuto e sumir com os pivete, aí depois de meses aparece o corpo no rio, com os
pés amarrado em pneu ou em jante de carro, maiores onda. Mas aqui é um método
que rola. A cor do carro varia, mas o método é o mermo. Agora mermo tem um
carro vinho e um Ford Car Ka? , que geral fica na onda. Se brotar na rua, a maloca
pinota logo. Quem vai ficar pra saber da colé? Vários bagaçados porque boiaram
(VANILSON, Morador de Santo Antônio de Jesus-BA, entrevista cedida em:
20/10/2019).
Os relatos supracitados revelam em que medida a execução sumária tem sido um dos
métodos de violência extrema (FERREIRA, 2019), utilizadas no assassinato de jovens no
interior baiano, de maneira que, os grupos de extermínio e esquadrões da morte agem
livremente, sem nenhum tipo de constrangimento ou sanção por parte do Estado. E mais que
143
Como demonstrei no artigo; Matança de Jovens Homens Negros no Recôncavo Sul da Bahia (2019),
221
O Veículo Aéreo Não tripulado é um termo que abrange uma variedade de aeronaves
de diversos tamanhos e formas, que possam ser controladas remotamente, ou voar a partir de
direcionamentos pré-programados (CHAMAYOU, 2015). No entanto, o dispositivo ficou
mundialmente conhecido pela denominação “Drone”.
O termo Drone em sua origem significa zangão, no entanto no começo da segunda
Guerra Mundial, os pilotos estadunidenses empregavam a expressão “Drones Alvos”, para
descrever os minis-aviões comandados por rádio, que utilizavam como alvos em seus
treinamentos militares (CHAMAYOU, 2015). A metáfora era uma alusão ao pequeno porte
dos aviões alvo, bem como, o zumbido que faziam que lembrava o zumbido de um zangão.
Décadas se passaram para os Drones planarem nos campos de batalhas como armas
teleguiadas. Foi durante a guerra do Vietnã, que a força aérea estadunidense investiu em um
programa de reconhecimento aéreo não tripulado, para dar conta de responder aos mísseis
terra-ar soviéticos.
Com o fim da guerra do Vietnã, os programas militares dos Estados Unidos para
construção de Drones foram praticamente encerrados, no entanto, um aliado estratégico na
política imperialista dos EUA, o Estado de Israel, deu continuidade às pesquisas operacionais
de Aeronaves Não Tripuladas, de modo que, durante as décadas de 70 e 80 do século XX, o
Israel utilizou Drones em diversos cenários operacionais em sua guerra sionista-expansionista
no oriente médio,
Em 1973, o Tsahal, o exército israelense, enfrentou por sua vez, diante do Egito, o
problema tático dos mísseis terra-ar. Depois de perder cerca de trinta aparelhos
durante as primeiras horas de Guerra do Yom Kippur, a aviação do Estado hebreu
mudou de tática. Decidiu-se enviar uma onda de Drones para enganar as defesas
adversárias: “Depois que os egípcios atiraram sua primeira salva contra os Drones,
os aviões de combate puderam passar ao ataque enquanto o inimigo se
recarregava”. O ardil permitiu a Israel garantir o controle aéreo. O mesmo tipo de
tática foi reciclado contra os sírios, em 1982, na planície do Bekaa. Tendo
previamente lançado sua frota de Drones Mastiff e Scouts, os israelenses enviaram
em seguida aviões-chamarizes na direção dos radares inimigos, que ativaram seus
mísseis terra-ar em puro desperdício. Os Drones, que do céu, observavam a cena,
puderam facilmente determinar a localização das baterias antiaéreas e indicá-las aos
aviões de combate, que as aniquilaram em sequência (CHAMAYOU, 2015, p. 36).
222
E reitera o argumento,
Depois do 11 de Setembro, o mundo entrou num momento muito específico, que
pode ser chamado de “estado de sítio”: uma série de garantias jurídicas funda-
mentais que permitiam assegurar a nossa segurança e a nossa liberdade foi posta em
causa, de forma explícita ou indirecta. A excepção tornou-se norma. A detenção de
pessoas que supõem tratar-se de inimigos vulgarizou-se, as prisões sem julgamento
também, a tortura com o objectivo de extrair à força informações, assassinatos
extrajudiciais e a submissão das populações de todo o mundo a sistemas de
vigilância sem contrapontos legais tornaram-se comuns. A consequência de tudo isto
resulta numa rebalcanização do mundo… (MBEMBE, 2014, p.3).
Pivete esse bagui de drone é na Bahia inteira. E é aquilo que já falei, é incurralação
total, a gente fica na onda. É aquela tensão estar sendo monitorado o tempo todo.
Monitorado pra Tático fazer bagaça. Então é aquele bagui, cada vez mais incurraldo,
é as viatura na terra, junto com o carro preto e o drone no céu, tudo isso ai te
caçando, monitorando sua vida toda pra te matar na covardia (CAIO, morador de
São Felix-BA, entrevista cedida em: 06/12/2019 )
Eles querem monitorar tudo e causar medo. Já causa um medo, imagina quando usar
os drones armados. E vão usar, a demora é só ter autorização, ou eles forjar que é
necessário, ai vão botar na pista (FRANCISCO, morador de Cachoeira-BA,
entrevista cedida em: 05/12/2019)
144
Drones passa a integrar operações da PM : https://www.pilotopolicial.com.br/graer-da-pm-da-bahia-passa-a-
integrar-drones-em-suas-operacoes-aereas/
225
Oia pivete pique ataque cibernético. Ficção científica. Daqui uns dia o bagui vai ta
atirando, jogando rede e taiser de choque. O drone aqui nas área já é ate comum.
Geral nas quebrada fica na atividade, quem ta no varejo pega a visão logo e se
maloca. No dia que nois tava pintando a comunidade que o pivete que morreu hoje
morava, foi até perto da casa dele, o drone tava lá monitorando toda ação.
(VANILSON, morador de Santo Antônio de Jesus-BA, entrevista cedida em
20/10/2019).
Na última década, houve uma política planetária – impulsionada pelos EUA e Israel –
de ramificação do uso de aeronaves não tripuladas equipadas com dispositivos de vigilância,
bem como com armamento bélico, com o objetivo de auxiliar tropas policiais. Essa
banalização da utilização dos Drones Tem implicado em rearranjos na própria dinâmica de
interação entre cidadãos e Estado,
Essa lembrança se estende com uma lição mais geral para o presente: não esquecer
que uma nova arma, quando equipa as forças não só militares, mas também policiais
do Estado, também “nos” transforma, por sua vez, em alvos potenciais....Uma das
questões é saber se sociedades ou “opiniões públicas”, que fracassaram em conter o
226
uso desse tipo de tecnologia para “guerras” conduzidas no outro extremo do mundo,
conseguirão, talvez num sobressalto, quando perceberem que também elas podem
acabar sendo alvo desses procedimentos, mobilizar-se para barrar a generalização de
Drones policiais. Pois é preciso ter consciência de que é esse futuro que nos é
prometido se não impedirmos: dispositivos de videovigilancia moveis e armados
como polícia aérea de proximidade. (CHAMAYOU, 2015, p. 224-225)
Dentro desse contexto, é cada vez mais efervescente, dentro dos fóruns nacionais de
segurança pública, o debate sobre a utilização de Drones armados no “combate a
criminalidade” no Brasil. Em novembro de 2018, o Governador do Rio de Janeiro, Wilson
Witzel (PSC), juntamente com o senador Flavio Bolsonaro (PSL), foram juntos a Israel para
conhecer de perto o programa de Drones armados, utilizados em ações tático-operacionais do
exército israelense nos territórios palestinos 145.
Tempos depois, o presidente Jair Bolsonaro deu declarações públicas sobre seu desejo
de utilizar Drones armados nas operações de segurança pública: “Quero botar no projeto
também que, para cumprimento da missão, todas as possibilidades para cumprir a missão
podem ser empegadas, até mesmo um pelotão de Drones” (Jornal Folha UOL, 2019).
Nesse sentido, como intuem nossos interlocutores, de fato há um gradual processo de
dronização da segurança pública, que tem como horizonte operacional a integração dos
recursos de monitoramento do Drone a um sistema de armas letais ou incapacitantes
(CHAMAYOU, 2015).
4.8. Laços fúnebres: “Bagaçaram meu parceru. Ele era tipo um irmão pra mim”.
145
Drones armados; https://extra.globo.com/noticias/extra-extra/witzel-flavio-bolsonaro-vao-israel-comprar-
drone-que-faz-disparos-23206958.html
227
ligado. Mas era um cara respeitado, sabia respeitar todo mundo, não tinha inimigo,
todo mundo era brother do cara, se pudesse ajudar um morador fortalecia grandão.
Porra! Era um cara que não tinha o que falar, não tinha o que reclamar daquele
pivete.
E porra pivete a forma que ele morreu me afeta até hoje. Eu vejo foto, tenho as foto
dele aqui no celular, a notícia também ta na net, quer dizer, a notícia que essas
disgraça de site forjaram. E tipo assim, no contexto que ele morreu foi foda, porque
levaram o irmão dele também tá ligado e o irmão dele não se entrava em nada, era
Tiago, que também era próximo de mim, desde pequeno.
A fita foi assim, Felipe tinha uma paixão tá ligado, ele criava galo, galo de briga pra
rinha. Ai no dia ele foi buscar um galo de moto em outra cidade, só que não tinha
ninguém pra ir com ele, ai o irmão (Tiago) deu ideia “bó vei que eu vou com tu”,
desceram os dois de moto e no meio do caminho as puta enquadrou eles. Ai
executaram os dois, sem ideia, com vários tiro. E nesse bagui ai mataram os pivete,
ai o cara fica cheio de ódio, porque era como se nois fosse irmão, via o cara todo
dia, varias ideia todo dia. Felipe com quatro filho e Tiago com uma filha também.
Eu fico castelando, o cara novo só queria dar uma melhora pra família dele, ai fico
pensando em mim, por que nois tinha quase a mesma idade, eu não tenho filho mas
o que pode acontecer comigo? O irmão de felipe não entrava em nada e lombraram
o cara. Fico na onda com essas parada, direto eu lembro e da vontade de chorar e as
porra, sem ideia parceru (CAIO, morador de São Felix-BA, entrevista cedida em:
06/12/2019).
mortos em contextos de operações policiais da Tático Móvel, assim como em todos os relatos,
fica evidente que as vítimas foram executadas sumariamente, tendo em vista que se renderam
ou foram emboscadas por tropas policiais. Há uma ênfase também na quantidade de tiros e
local onde os parcerus foram alvejados, bem como, na denúncia de que foram torturados
antes de serem executados sumariamente. Nesse sentido, fica latente nas narrativas dos
interlocutores que a maneira brutal que seus parcerus foram mortos potencializou ainda mais
o trauma pela perda prematura de um ente querido.
Uma questão inusitada durante a aplicação das entrevistas foi a de que, alguns dos
interlocutores, espontaneamente me mostraram as notícias de jornalismo online, sobre a morte
de seus parcerus. A intenção dos interlocutores era denunciar em que medida a mídia online
local construiu uma narrativa em que os jovens negros assassinados estavam diretamente
envolvidos na operação varejista de drogas ilegais e que teriam trocado tiros com a polícia.
No entanto, os interlocutores negam veementemente a versão estampada nos sites de
jornalismo online do recôncavo sul,
Quando foi de noite já rolou uma matéria dizendo que a polícia tinha matado dois
“traficantes” em confronto, que os menino tava armado e com meio quilo de droga.
E várias ideia de merda sobre os cara. Só que os cara não tava com nada, só com o
galo ta ligado. Pilantragem da disgraça. (CAIO, morador de São Felix-BA,
entrevista cedida em:06/12/2019 ).
Pivete fiquei cheio de ódio. Colocaram a foto do meu parceru todo brocado de bala e
uma foto de uma mesa com vários pino, dola de chá, umas brita e um 38 veio da
disgraça. A mãe do cara ficou na onda quando viu o bagui no grupo de wat zap, foi
ate pra UPA. Por que tipo assim, meu parceru num fumava nem maconha, a onda do
pivete era pegar ponga no trem e tomar banho de rio. Pivete era pureza e foi
covardiado duas vezes; pelas puta que lombrou e por essa disgraça de site que forjou
ele como se fosse do bonde. (VIDAL, morador de Cachoeira-BA, entrevista cedida
em: 17/11/2019).
Por fim, concluo a presente sessão com depoimentos da pergunta: “Vamos fazer um
exercício ficcional. Se você pudesse enviar uma mensagem de whatsapp (um áudio de 2
minutos), 27 minutos antes de um ente querido, amigo ou conhecido ser assassinado por
arma de fogo, qual seria o conteúdo?”. Minha intenção foi dimensionar em que medida o
trauma da perda prematura de amigos, ou familiares, afetava as emoções dos interlocutores. O
questionamento surtiu um efeito bem além do esperado, pois pude presenciar reações
emocionais como soluços, olhos marejados e choro descontrolado. Bem como, pude perceber
em que medida o sentimento de luto ainda é vividamente presente nas subjetividades dos
interlocutores,
Qual é rick e ai pivete ta de quebrada? Col foi vai fazer o que mais tarde? Chega
aqui em casa pra nois trocar aquelas ideia de ontem, vê a onda da baia ta ligado, pra
nois fazer aqui. E a construção lá terminou a parada da casa que você tava
230
Ah mano, não consigo nem falar mais pivete, mó onda. Porra bagui doido, parece
que tava falando com ele (VANILSON, Morador de Santo Antônio de Jesus-BA,
entrevista cedida em 20/10/2019, Grifos meu).
Salve parceiro, que nosso dia seja maravilhoso, que Deus esteja na frente e que
venha ser quebrado toda força do Mal que quer nos arrastar. Porra parceiro,
independente de qualquer situação mantenha a cabeça erguida, sempre sorrindo e
mantenha sempre essa humildade - Olhos marejados e fala interrompida por
soluços -. E aquela onda, se acontecer qualquer coisa você nunca vai ser esquecido,
não só por mim, mas pela comunidade que te abraça grandão. Eh nois bandido! -
Áudio é interrompido abruptamente - (DANILO, morador de Cachoeira-BA,
entrevista cedida em 11/11/2019: Grifos meu).
O lacônico exercício permitiu que adentrássemos nos meandros das emoções mais
íntimas de nossos interlocutores em relação a morte prematura e violenta de seus parcerus.
Vanilson, por exemplo, no exercício ficcional, tenta orientar seu parceru Rick sobre como
proceder durante o contexto de uma fuga da polícia. No entanto, parece que no transcorrer da
orientação, Vanilson relembra que seu parceru está morto e, mais que isso, recorda da
maneira brutal que foi executado. Essa imbricação cognitiva de projeções ficcionais e da
memória dos acontecimentos fez emergir em Vanilson fortes emoções, ao ponto de romper
em lágrimas até não conseguir mais falar.
Danilo adota uma abordagem diferente no exercício psicanalítico-ficcional e, no áudio
enviado para o seu parceru, em vez de avisar sobre o perigo letal inevitável, decide entoar
quase uma oração de proteção, bem como, ressalta que a possível morte do parceru jamais
será esquecida por toda comunidade.
No entanto, apesar de percorrer uma estratégia narrativa diferente, tal qual Vanilson,
Danilo também expressa fisicamente suas emoções, através dos olhos marejados prestes a
lacrimejar e os soluços entrecortados em suas falas. Em determinado momento, interrompe o
áudio e, minutos depois, envia um segundo áudio, onde traz reveladoras intuições sobre a sua
experiência e de seus parcerus com o luto,
Porra pivete maior onda quase que chorei. Acho que é a primeira vez que me
emociono assim, sem ter dado um raio, ou tomado umas breja. Tipo assim, quando
lombraram o pivete, depois do enterro foi aquele modelo, eu e os parceru
embrazamo vários dia, todo mundo ativado ta ligado! Ai depois, sei lá, ninguém
mais falou nada, eu também não. Só quando chega aniversário do parceru, ou
aniversário da morte dele, que ai fico na onda, dou umas ativada e desastro a falar
do parceru... Oia que viajem da porra ja tou falando demais né? Parece até que dei
uns pega na massa. Nada a ver essas ideia. Mas é nois (DANILO, morador de
231
Dentro desse contexto, pude notar que o luto dos interlocutores é estendido e
revisitado em diferenciados contextos cotidianos, como por exemplo, nos aniversários de vida
e morte dos entes queridos. Esse luto estendido é, muitas das vezes, exercido sobre o consumo
conspícuo de substâncias psicotrópicas.
São múltiplos os impactos psicossociais que afetam os cotidianos das chamadas
vítimas ocultas (SOARES & MIRANDA & BORGES, 2006; MOURA, 2008). Vão desde
impactos físico-emocionais, como por exemplo, variados sintomas de Desordem de Estresse
Pós-Trauma (DEPT); insônias, pesadelos, ansiedades, medo constante de morrer
violentamente, isolamento afetivo-social, sentimento de ódio e uma sensação de luto
estendido.
No entanto, há também impactos socioeconômicos, que podem ser dimensionados no
próprio caráter oneroso de um velório inesperado, bem como, o papel econômico de liderança
que muitas das vítimas matadas ocupavam em suas famílias. Mas também, se expressa na
dificuldade de se projetar e planejar o futuro, dentro de uma realidade social altamente letal.
Dentro desse contexto, no presente capítulo, analisei percepções subjetivas e aspectos
psicossociais acerca das experiências traumáticas de jovens homens negros que perderam
232
parentes, amigos ou entes queridos, em contextos de violência letal por arma de fogo. Dentro
desse contexto, foi demonstrado de que maneira mortes violentas de entes queridos têm
afetado estruturas cognoscíveis-afetivas e itinerários/trajetórias de vida de jovens homens
negros no recôncavo sul baiano.
A imersão etnográfica no conjunto de percepções subjetivo-afetivas e políticas de
jovens homens negros, acerca de homicídios por arma de fogo cometidos contra seus
parentes, amigos, ou conhecidos, nos permitiu adentrar nos interstícios da experiência
socialmente morta de jovens homens negros em territórios eminentemente necropolíticos.
Nossa investigação demonstrou, em nível microscópico, como a violência estrutural
gratuita contra pessoas negras, notadamente, jovens homens negros, tem feito da noção de
escravidão póstuma (HARTMAN, 19987; WILDERSON, 2005) uma condição do tempo
presente na experiência e itinerário masculino negro.
233
O conceito de política racial pressupõe que há uma dinâmica latente entre os grupos
raciais e, mais que isso, parte do princípio de que quase toda política de uma determinada
formação social multirracial parte, mesmo que tacitamente, do conjunto de sentidos e
significados acerca da raça,
O termo política racial dá um sentido maior da dinâmica das interações sociais entre
grupos racialmente distintos. Em vez de compartimentalizar as práticas de um grupo
racial, como se ele representasse uma espécie política à parte, o termo política racial
fornece um sentido da dinâmica do poder, da identidade e da mobilização nos e
entre os grupos raciais. A perspectiva da política racial, portanto, implica mais do
que uma simples mudança terminológica. Acarreta também uma abordagem que
estabelece que, nas sociedades multirraciais, quase toda política envolve diferenças,
antagonismos e desigualdades raciais. Isso não quer dizer que toda política dessas
sociedades possa ser definida em termos de raça, mas que quase todas as dimensões
da vida política – No nível do Estado, da sociedade civil e das formações culturais e
materiais – repercutem nas relações de poder entre e dentro dos grupos racialmente
definidos [...] (HANCHARD, 2001 p. 32).
De fato, preenchemos uma enorme lacuna existente nos estudos sobre a implantação-
ramificação do Programa Pacto Pela Vida da Bahia, que tem tido uma forte tendência de
invisibilizar, ou mesmo negar, o caráter racista dos dispositivos de segurança pública na
234
Bahia (ZAVERUCHA, 2005, SOUZA, 2014, MARTINS & Lourenço, 2014). Desse modo,
reinserimos uma abordagem político racial sobre a segurança pública na Bahia.
Ainda de acordo o autor, “Já não há meio possível de velar a face genocida da atual
política de segurança pública na Bahia” (NZUMBI, 2011, p.102). Face genocida essa que é
evidenciada publicamente pelos altos índices de violência letal contra jovens homens negros e
pelo encarceramento em massa de negros/as nas penitenciárias. Esses dados, para além de
tabulações e curvas de níveis, demonstram como o aparato de controle penal e a corporação
policial tem empreendido uma constante política organizacional de criminalização e
eliminação sistemática do grupo populacional que historicamente foi considerado pelo
sistema penal como “inimigos internos”: pessoas negras (NZUMBI, 2011).
Nzumbi adverte que, a partir dos anos 2000 a política de segurança pública da Bahia
passa a estar alinhada a um contexto internacional de proliferação liberal da “política de
tolerância zero”, “guerra às drogas” e “guerra ao terror”. É nesse ínterim que o treinamento
para guerra é disseminado como padrão organizacional na Estratégia Nacional de Segurança
Pública no Brasil. Inclusive na Bahia, governada por um partido de esquerda que
historicamente havia defendido um modelo policial responsivo e desmilitarizado, mas que, na
prática, tem atendido aos interesses da Ordem capitalista Mundial, que tem lucrado frondosos
recursos com a matança em curso,
lucra com a morte do favelado e não são apenas corporações empresariais, imprensa
policial, indústria armamentista, empresas de gestão penitenciária, milícias armadas
e elites políticas... (NZUMBI, 2011, p. 107).
última década são melhores descritos, a partir da noção de: Guerra Racial de Alta
Intensidade.
Nesse sentido, na presente sessão, – que tem um caráter de adições – busco apontar
outro aspecto político racial, até então negligenciado nos estudos sobre segurança pública na
Bahia, que é a extrema necessidade de pesquisadores se debruçarem sobre o fato
“constrangedor” de mesmo no contexto político de quinze anos, de ganhos sociais e
econômicos sem precedentes na história do Brasil, dentro do contexto político do Partido dos
Trabalhadores (PT), a população negra continua sujeita às práticas de violência estrutural,
perpetradas por dispositivos de segurança do Estado (VARGAS, 2010; 2016). Como têm
sinalizado, timidamente, alguns pesquisadores,
Diante dessa conjuntura, minha ambição é realizar um balanço crítico da política racial
(HANCHARD, 2001) protagonizada pela agência social coletiva do movimento negro de
sentido estrito146 (RUFINO 1985; PEREIRA, 2009) na Bahia contemporânea, tomando como
pano de fundo o processo de ramificação de um dos dispositivos do Programa de defesa social
Pacto Pela Vida; A Secretaria de Promoção da Igualdade Racial.
transnacionais, sobre o que diz respeito à política racial em contextos de subjugação racial e
Genocídio anti-negro,
Dentro dessa conjuntura, minha colaboração com organizações comunitárias, que tem
erigido dispositivos comunitários subterrâneos de enfrentamento e prevenção ao o genocídio
de pessoas pretas na Bahia 149 , me possibilitou a construção de um conhecimento teórico
metodológico distinto.
De acordo com Cristiano dos Santos Rodrigues (2014), em sua tese de doutorado,
“Movimentos Negros, Estado e participação institucional no Brasil e na Colômbia em
149
Desde o ano de 2011, tenho contribuído na articulação de Cineclubes, programas comunitários de manuseio
de tecnologias de mídia independente e disseminação da contracultura de softwares livres nas periferias urbanas
de Cachoeira –BA, através de minha participação como co-fundador e educador comunitário no Cine do Povo.
Dentro desse contexto comunitário, em 2012 passo a atuar na Campanha Reaja ou Será mort@., onde tenho
contribuído notadamente ; 1-Na articulação e execução de políticas culturais comunitárias dentro de
comunidades urbanas diretamente atingidas pelas políticas de morte do Programa Pacto Pela Vida ; 2- Na
articulação de protestos de rua , juntamente com Mães e Familiares de Vítimas do Estado Racista Brasileiro,
contra a atuação letal da policia e ação de grupos de extermínio na Bahia ; 3- No planejamento, articulação e
execução de quatro edições da Marcha Internacional Contra o Genocídio do povo Negro, Organizada pela
Campanha Reaja em Salvador –BA desde o ano de 2013.
238
Há também, nesse período entre os anos de 1980 até o final da década de 1990, um
gradual processo de institucionalização de agências políticas do Movimento Negro ou, como
teorizam alguns autores-as, um processo de Onguização da militância negra,
150
Segundo a bibliografia sobre o tema é consensualmente aceito que o termo contemporâneo se refere aos
movimentos sociais negros pós-MNU, organização política negra, que refundou os pressupostos teórico-políticos
da militância negra no Brasil (PEREIRA, 2005).
239
151
Conferência realizada na cidade de Durban na África do Sul entre os dias 31 de agosto e 08 de setembro de
2001. Reuniu 2500 representantes de mais de 170 países e foi um marco na constituição de políticas públicas de
caráter reparatório em todo o mundo.
240
militantes do Brasil, aqueles que na época há muito lutavam para que descendentes
de escravizados fossem reparados pelo Estado brasileiro. Assim, nos poucos
momentos em que as ONGS negras se dispuseram a debater a questão, a reparação
era apresentada como “ação afirmativa” e não raras foram as vezes em que
reparação e cotas acabaram sendo discutidas como um mesmo assunto.
(FERREIRA, 2010, p. 27-28).
Depois da Conferência de Durban esses mesmos negros e também negras que antes
nenhuma importância davam a reparação, de repente passaram a demonstrar grande
interesse pela questão, inclusive abordando o tema reparação em palestras. Mas,
como não poderia esperar que fosse de outra maneira, falam como se a reparação
fosse uma questão nova e que antes de Durban, ninguém no Brasil ou mesmo no
exterior estivesse envolvido com este assunto. O que se observa nesta adoção tardia
da reparação por esses negros é a sua insistência, com seus equívocos que não são
poucos, acabam confundindo todos os que se interessam pela questão e não tem
ainda um pensamento formado a respeito (FERREIRA, 2010, p. 29).
Diante dessa conjuntura, é notório que nos últimos 20 anos, a partir da política racial
protagonizada por setores múltiplos do movimento negro, há uma mudança por parte do
Estado, no que consiste a adoção de instrumentos institucionais para enfrentar as
desigualdades raciais no Brasil. Ou seja, a própria cultura política racial brasileira passa por
mudanças, tensões, cisões, disputas e (des)construções latentes. Sendo assim, o impacto
político institucional da mobilização do movimento negro não pode ser avaliado apenas no
plano de alterações na estrutura burocrática do Estado, mas também, a partir de análises
críticas sobre a implementação dessas políticas afirmativas.
Sendo assim, nesse mesmo período, a agência política encabeçada pelo movimento
negro, atinge também esferas importantes da sociedade civil, como é o caso dos movimentos
sociais e partidos políticos (FERREIRA, 2015; 2018). Uma amostra desse contexto é que, a
partir da década 90, variados movimentos sociais, centrais sindicais, pastorais da igreja
católica e partidos políticos, passaram a construir, mesmo que tardiamente, estruturas
organizativas internas específicas para tratar das questões referentes à raça.
241
O PT e a CUT, nesse sentido, se destacam por uma histórica ingerência sobre questões
políticas raciais, em determinado período negando e, em outro momento, incorporando
timidamente a questão racial em seus programas políticos,
152
Lei 12.357/11, de 26 de setembro de 2011: https://governo-ba.jusbrasil.com.br/legislacao/1029307/lei-12357-
11
243
Jonatas Conceição (1988) aponta que essa diversidade cultural e política dos sujeitos
sociais que erigiram e impulsionaram o MNU, na sua primeira década de atuação na Bahia, se
manifestou na constituição de três setores organizativos que atuavam na época, muitos dos
quais em constante conflito político-ideológico e que, em momentos distintos da história
organizativa do MNU, hegemonizaram a liderança política de atuação do movimento nas
comunidades.
O primeiro setor identificado por Jonatas Conceição (1988) era o agrupamento que
defendia que a política de protesto do Movimento Negro Unificado deveria estar alinhada a
uma perspectiva de ascensão social dentro da ordem racial dominante (CONCEIÇÃO, 1988).
O segundo setor do MNU era constituído de negro/as que tinham uma perspectiva política
ideológica marxista-leninista, alicerçando seu protagonismo racial a partir de uma noção de
“vanguarda revolucionária”. O terceiro e último setor que se agrupava dentro do MNU era
constituído de pessoas que acreditavam na noção de trabalho de base comunitário e, de acordo
Jônatas Conceição, foi o setor que mais se espalhou pelo interior do movimento, sobretudo,
por seu trabalho comunitário permanente nas comunidades diretamente atingidas pelas
políticas de morte (MBEMBE, 2018).
que acometem de sobremaneira os jovens homens negros no Estado. Há, nesse sentido, por
parte da SEPROMI e seus prepostos, um comportamento político institucional que
conceituarei na presente tese como: política racial Linha Auxiliar.
Kwame Nkrumah, em seu livro Luta de classes em África (2017), dedica um capítulo
específico ao estudo do comportamento político da elite negra que hegemonizou dispositivos
do Estado no contexto do processo de consolidação das lutas políticas anticoloniais em
África. Nkrumah argumenta que o elitismo, enquanto ideologia e teoria política surge no
contexto da segunda metade do século XIX, notadamente, nas obras dos sociólogos italianos
Vilfred Pareto e Gaetano Mosca, que afirmavam que nas sociedades burguesas industriais de
massa, mesmo aquelas pautadas por princípios democráticos, uma minoria política deteria o
poder de gerir instituições jurídicas e políticas,
Um dos princípios fundamentais da teoria elitista pretende que o poder gera o poder
e que, no que diz respeito a política, as massas são apáticas, submissas e
indiferentes. A democracia foi definida como um conflito de oligarquias rivais... Os
primeiros elitistas não escondiam sua intenção de demolir o mito da “democracia”.
Pretendiam comprovar que, nas pretensas democracias, o povo ou a maioria do povo
não governa e que, pelo contrário, isto é trabalho de uma elite (NKRUMAH, 2017,
p. 30).
153
Quem tiver mais interesse em compreender o papel de linha auxiliar das Elites Negras ler em: Declaramos
Guerra ao Inimigo interno, de Samora Machel; O poder Negro de E.U. Essien-Udon; Uma questão de
raça de Cornel West; A África deve Unir-se de Kwame Nkrumah e Mensagem ao Movimento Negro de
Assata Shakur.
248
possui uma série de contradições, cisões e disputas internas, que são características comuns
no âmbito da própria cultura política dos Movimentos Sociais.
De acordo com Fernando Conceição (2005), no Brasil, de maneira geral (na Bahia não
era diferente), um setor político racial denominado pelo autor como “Movimento Negro de
resultados”, estava gradativamente hegemonizando os canais de diálogo institucional entre a
comunidade negra e o Estado, sobretudo, orientado por interesses partidários, ou de ascensão
social econômica, através da ocupação de cargos políticos na máquina estatal. De acordo com
Conceição,
Lélia Gonzalez (2018) foi uma das intelectuais e militantes negras que se dedicou
enormemente na formulação de uma teoria organizativa em torno das práticas, táticas e
estratégias utilizadas pelo movimento negro contemporâneo, sobretudo, no que tange a
alocação de militantes negros-as na estrutura do Estado (GONZALEZ, 2018). A cooptação de
elites políticas negras foi um tema assiduamente discutido pela autora,
A narrativa de Lélia Gonzalez é baseada em sua experiência como uma das principais
lideranças responsáveis pelo surgimento e ramificação nacional, no final da década de 1970,
250
de um novo tipo de organização política de luta contra o racismo, que tinha a pretensão de
construir um novo marco organizacional, que aglutinasse a estrutura de um partido político
nacional, mas com a capilaridade e autonomia de um movimento social (HANCHARD,
2001), e também participa do Partido dos Trabalhadores. É nesse bojo que emerge o
Movimento Unificado Contra Discriminação Racial (MUCDR), que posteriormente tornou-se
o Movimento Negro Unificado (MNU).
Lélia Gonzalez (2018) ressalta que, a experiência histórica de formação do MNU, com
embates teórico-ideológicos dentro e fora da esquerda branca, foi crucial para, anos mais
tarde, setores do movimento negro centrassem fogo na estratégia política racial de criação de
núcleos, secretarias e setores específicos para negros dentro das estruturas organizacionais de
partidos, movimentos sociais e entidades de classe.
invariavelmente estavam sobre tutela da esquerda branca. Seu depoimento sobre sua
participação no conselho da mulher é bem conclusivo nesse sentido,
Olha, com relação aos conselhos, nem tanto. É uma faca de dois gumes. Minha
experiência é como Conselho dos direitos da mulher, onde fomos parar em um beco
sem saída, porque o conselho engoliu a gente. Mil propostas, todo mundo querendo
trabalhar, fazer e acontecer, o maior entusiasmo. E, no entanto, bastou uma penada
de um ministro da justiça desses aí e acabou tudo. É isso que nós não podemos
perder de vista. É claro que devemos ter frentes de trabalho e eu vejo o Conselho
como uma frente de trabalho. Como tal, ela é provisória, absolutamente provisória e
você não pode esperar grandes resultados dela... E eu fico preocupada é com a
disputa que se trava para participar dessas frentes. Ai neguinho mata a mãe do outro
e, de repente, acabou-se a visão de comunidade, entra a visão individualista típica da
cultura ocidental. Neguinho cai nas armadilhas do individualismo, briga com outro,
sacaneia, entrega o nome na praça para conseguir um carguinho idiota onde ele não
tem possibilidade de fazer grandes coisas. (GONZALEZ, 2018, p. 386)
“É como um artilheiro em frente a um gol, que tem que decidir em alguns segundos
como é para colocar a bola para fazer um gol. Depois que a jogada termina, todos os
torcedores da arquibancada, se foi feito o gol vai dizer que fez um golaço e vai
repetir várias vezes na televisão. Se o gol foi perdido, o artilheiro vai ser condenado,
se tivesse chutasse desse ou daquele jeito teria entrada”, afirmou o governador.
Segundo ele, no entanto, a polícia deve agir como determina a legislação. “A
polícia, assim como manda a constituição e a lei, tem que definir a cada momento, e
nem sempre é fácil fazer isso. Qual o limite de energia e de força? Tem que ter a
frieza necessária e a calma necessária e a escolha muitas vezes não resta muito
154
Os jovens negros assassinados foram; Jefferson Pereira dos Santos (22 anos), Adriano Souza Guimarães (21
anos) , Rodrigo Martins de Oliveira (17 anos), Ricardo Vilas Boas Silva (27 anos), Agenor Vitalino dos Santos
Neto (19 anos), João luis Pereira Rodrigues (21 anos), Natanael de Jesus Costya (17 anos), Caíque Bastos dos
Santos (16 anos), Evson Pereira dos Santos (27 anos), Bruno Pires do Nascimento (19 anos), Vitor Amorim de
Araújo (19 anos) e Tiago Gomes das Virgens (18 anos).
253
tempo. São alguns segundos que nós temos para decisão” (Jornal Bahia Notícias,
2015).
No mesmo período a Organização Reaja enviou para o governador Rui Costa, para
Lúcia Barbosa (Secretária de Promoção da Igualdade do Estado da Bahia) e para
Geraldo Reis (Secretário de Direitos Humanos e desenvolvimento social do Estado
da Bahia) uma carta de repúdio a postura do governo do Estado. A Justiça global
que também acompanhou e denunciou o caso para a Organização das Nações
Unidas (ONU) em agosto de 2015, alega que, houve corporativismo da polícia civil
baiana que apresentou um inquérito ignorando laudos necroscópicos, entre outros
procedimentos considerados importantes para a elucidação do crime (SANTOS,
2018, p. 41-42).
155
Sobre a Campanha Reaja ver: https://reajanasruas.blogspot.com/p/quem-somos.html
156
Um processo de luta organizativa comunitária que pude participar ativamente como militante da Campanha
Reaja ou Será mort@, notadamente; -Na articulação e execução de políticas culturais comunitárias dentro de
comunidades urbanas diretamente atingidas pelas políticas de morte do Programa Pacto Pela Vida ; 2- Na
articulação de protestos de rua, juntamente com Mães e Familiares de Vítimas do Estado Racista Brasileiro,
contra a atuação letal da polícia e ação de grupos de extermínio na Bahia ; 3- No planejamento, articulação e
254
Dentro dessa conjuntura de luta organizativa comunitária, pude estar em contato direto
ou indireto, com prepostos da SEPROMI, sobretudo, em audiências públicas, na entrega de
petições reivindicativas junto a Secretaria, em protestos de rua e em reuniões da secretaria
com o Núcleo de Mães, Familiares e Vítimas do Estado Racista Brasileiro. Em todos esses
episódios, ficou evidente nas proposições e manobras políticas dos prepostos da SEPROMI,
uma forte tendência de desautorizar publicamente as graves denúncias realizadas pela
Campanha Reaja e pelo Núcleo de Mães, Familiares e Vítimas do Estado Racista Brasileiro,
bem como, uma postura de mediação e de “relações públicas” junto à corporação policial.
Ainda no mesmo mês, também no contexto da luta comunitária por justiça e reparação
de mães, pais e familiares das vítimas da Chacina do Cabula, aconteceu uma reunião,
amplamente divulgada pela mídia, entre a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do
Bahia (SEPROMI) e o baixo-oficialato da Polícia Militar, especialmente, com representantes
das tropas especializadas, como RONDESP, Caatinga, Peto, entre outras unidades policiais
157
Ver em: http://reajanasruas.blogspot.com.br/2015/03/oea-cobra-acoes-para-enfrentar.html
255
Segundo a titular da Sepromi, Vera Lúcia Barbosa, a relação entre as secretarias vai
contribuir não apenas para formação da corporação na promoção da igualdade racial,
mas para a aproximação com a população baiana. “Essa união é mais uma medida
em prol da comunidade negra, visando a garantia dos seus direitos e ampliação do
acesso às políticas públicas”, afirmou a gestora. “É imprescindível essa parceria até
porque nossos policiais são parte da sociedade. Já incluímos em nossos cursos
diversas orientações que capacitam os policiais a multiplicarem o respeito a todos os
gêneros e culturas”, disse o comandante-geral da PM, coronel Anselmo Brandão
(BAHIA, 2015.).
Na época, avaliamos que essa reunião teve um triplo objetivo tático no contexto das
lutas políticas raciais em torno da Chacina do Cabula: 1- formalizar uma parceria
interinstitucional entre uma secretaria de promoção da igualdade e a SSP-BA; 2- selar uma
aliança operacional entre uma elite negra burocrata e uma elite negra militar; 3- a reunião
cumpriu o papel de tentar salvar a imagem pública do governo de Rui Costa, que havia sido
abalada politicamente no cenário internacional, diante nossa fala na audiência da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, na OEA.
A reunião causou grande “furor” nos fóruns de debates da política racial na Bahia,
sobretudo, diante de um contexto em que a imagem da corporação policial estava
extremamente desgastada, não se esperava uma posição conciliatória, sobretudo, por parte de
uma Secretaria de governo, que em tese, deveria preservar os direitos da população negra e,
no entanto, formava uma aliança pública com um dos setores mais belicistas da corporação
policial; As Companhias Independentes de Policiamento Tático.
Do ponto de vista da luta política racial comunitária que eu estava inserido, a reunião
158
Ver em: http://www.secom.ba.gov.br/2015/03/124551/Sepromi-e-PM-formam-grupo-de-trabalho-para-
realizar-acoes-ligadas-as-questoes-raciais.html
256
Ainda em 2015, com nossa entrada na luta por justiça e verdade da Chacina do
Cabula159, fomos publicamente ameaçados por policiais em uma audiência pública na sede da
OAB, além de termos nossa logomarca política editada por policiais da Rondesp, que
passaram a circulá-la em grupos de Whatsapp com os dizeres; “Reaja e Morra.
No dia 16/04/2015, ocorreria na Vila Moisés, no bairro do Cabula, uma ação cultural
comunitária planejada e articulada pelo Núcleo de Mães e Familiares de Vítimas do Estado
Racista Brasileiro, no entanto, dois dias antes da ação comunitária, que havia sido
amplamente divulgada, inclusive pela mídia corporativa.
No entanto, a atividade foi adiada diante de uma mega operação realizada pela
Secretaria de Segurança Pública da Bahia, com cerca de 180 policiais, com apoio aéreo e a
presença de unidades policiais especiais. Nessa operação, para além de prender varejistas de
drogas, os mais de 180 policiais envolvidos na ação, arrombaram casas, torturaram jovens,
159
Na madrugada de 06/02/2015 18 jovens negros foram executados sumariamente em uma operação policial
liderada pela RONDESP.
258
160
Para mais detalhes sobre esse episodio ver em: https://reajanasruas.blogspot.com/2015/04/nao-precisamos-
ouvir-que-somos-fortes.html
161
Acompanhando o pensamento-político de Assata Shakur, Steve Biko e Al Hajj Malik Al-Shabazz,
entendemos por esquerda branca o largo campo de agrupamentos políticos signatários de doutrinas e paradigmas
259
ocidentais Marxista, socialdemocratas ou anarquistas. Desse modo nossa referencia não é apenas a cor da pele,
pois muitos desses movimentos são de maioria não-branca, mas que inevitavelmente tem em sua direção e
comando pessoas brancas, ou quando não, pessoas negras assimiladas ideologicamente por epistemologias
políticas branco-ocidentais. Para um debate mais aprofundado, além dos autores já citados ler também Ramon
Grosfoguel e o texto “Biko e a problemática da ausência” de Frank B. Wilderson III.
260
Diante desse quadro, pudemos aferir em que medida a política racial linha auxiliar,
protagonizada por determinado setor/fração do movimento negro baiano, tem ocupado um
papel estratégico na construção de oportunidades institucionais (RODRIGUES, 2014) junto
ao Estado, por exemplo, com a estruturação da SEPROMI. No entanto, também
demonstramos em que medida essa política racial linha auxiliar tem servido a interesses
políticos da supremacia branca que dirige o Partido dos Trabalhadores, como no
silenciamento institucional da SEPROMI em relação à política de Segurança Pública do
Programa Pacto Pela Vida, que tem sido um dos dispositivos necropoliticos centrais na
situação de violência generalizada, que caracteriza os padrões de mortandade na Bahia na
última década e que, como já discorremos na presente tese, são melhores descritos como uma
Guerra Racial de Alta Intensidade.
162
Joel Rufino dos Santos (1985) e Amauri Pereira (2019) compreendem que o Movimento negro de sentido
estrito, são o conjunto de entidades, seus respectivos militantes, bem como, instancias governamentais sobre
influencia/coordenação de militante negro-as, que tem protagonizado processos de luta organizada contra o
racismo estrutural da sociedade brasileira, em variados campos de atuação politica.
261
Considerações Finais
Dentro dessa conjuntura, a população negra tem sido enormemente atingida pelos
efeitos virais e, econômicos sociais do COVID-19. Sobretudo, por estar inserida dentro do
contexto do chamado grupo de risco, por acumular historicamente uma serie de comorbidades
que atingem de sobremaneira pessoas negras, tais como; Hipertensão, diabetes, anemia
falciforme e uma variedade doenças cardíacas.
Cabe destacar que somados aos fatores sócio-raciais elencados anteriormente, durante
o período da pandemia do COVID-19 a letalidade na ação policial aumentou alarmantemente
em todo território nacional. Um levantamento estatístico feito pelo jornal O Globo junto às
secretarias de segurança públicas, revelou que entre os meses de março e abril, a letalidade
policial no Brasil teve índices elevadíssimos. Foram 1.198 mortes em decorrência de
intervenções policiais no bimestre, 26% superior ao mesmo período do ano de 2019.
263
165
Notadamente o conjunto de dados sintetizados no documento estatal; X Anuário Brasileiro de Segurança
Publica, publicado em 2016 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
265
166
De acordo depoimento do Governador Rui Costa a PATAMO tem a “função de garantir o direito de ir e vir
dos baianos. Na prática, a unidade especializada atuará fazendo ocupações em localidades em que seja
percebida a necessidade de intervenção maior no estado” (INFORMEBAIANO, 2007). Ver em:
http://informebaiano.com.br/40967/policia/pega-eles-patamo-nova-unidade-da-pm-vai-atuar-no-combate-ao-
crime-organizado acessado em;
167
A noção de governança Necropolitica (ALVES, 2013; 2016) nos fornece subsídios analíticos para compreender como a Política de
Segurança Publica na Bahia - tomando como marco o Programa Pacto Pela Vida – tem sido operacionalizada em uma perspectiva
militarizada e racialmente seletiva . Nesses termos, o conjunto de políticas criminais agenciadas pelo Programa, serão entendidas como
um conjunto de dispositivos necropoliticos/necropoder que dão sedimento organizacional a uma estratégia territorial de dominação
racial ( ALVES, 2011).
266
168
Respectivamente os seguintes agrupamentos policiais especializados: Rondas especiais (RONDESP), Pelotão
de Emprego Tático Operacional (PETO), Batalhão de Operações Especiais (BOPE) e a Companhia de
Patrulhamento Tático Móvel (PATAMO).
169
Essa portaria que dispõe sobre as normas e procedimentos necessários para implantação, estruturação e
funcionamento das Bases Comunitárias de Segurança – BCS no âmbito da PMBA.
267
acerca das experiências traumáticas de jovens homens negros que perderam parentes, amigos
ou entes queridos, em contextos de violência letal por arma de fogo.
Por fim, no ensaio teórico; “Adições – Politica Racial Linha Auxiliar na Bahia
Contemporânea : Uma Analise Crítica acerca da implementação da Secretaria de Promoção
da Igualdade Racial”, realizo um balanço crítico da política racial (HANCHARD, 2001)
protagonizada pela agência social coletiva do movimento negro de sentido estrito 170
(RUFINO 1985; PEREIRA, 2009) na Bahia contemporânea, tomando como pano de fundo o
processo de ramificação de um dos dispositivos do Programa de defesa social Pacto Pela
Vida; A Secretaria de Promoção da Igualdade Racial.
170
Joel Rufino dos Santos (1985) e Amauri Pereira (2019) compreendem que o Movimento negro de sentido
estrito, são o conjunto de entidades, seus respectivos militantes, bem como, instâncias governamentais sobre
influência/coordenação de militante negro-as , que têm protagonizado processos de luta organizada contra o
racismo estrutural da sociedade brasileira, em variados campos de atuação política nas últimas quatro décadas.
269
171
Segundo a bibliografia sobre o tema é consensualmente aceito que o termo contemporâneo se refere aos
movimentos sociais negros pós-MNU, organização política negra, que refundou os pressupostos teóricos-
políticos da militância negra no Brasil (PEREIRA,2005).
172
De acordo Sader “Quando uso a noção de sujeito coletivo é no sentido de uma coletividade onde se elabora
uma identidade e se organizam práticas, através das quais seus membros pretendem defender seus interesses e
expressar suas vontades, constituindo-se nessas lutas (SADER, 1995, pag 55).
270
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policiais-e-bandidos-terao-monitoramento-diferenciado/. Acesso em: 05/08/2020 22h37minh.
292
APÊNDICES
1- Nome:
2- Idade atual: Idade durante atuação no Movimento Contra UPP na UNEB:
3- Cor/raça (autodeclarada):
4- Identidade de gênero:
5- Sexo:
6- Escolaridade:
7- Escolaridade na época que atuava no Movimento Contra UPP na Uneb:
8- Bairro que mora:
9- Bairro que Morava quando atuava no Movimento Contra UPP na Uneb
3- De que parte da cidade é cada uma de vocês? Falem um pouco do cotidiano de suas
comunidades de origem em salvador.
2- Lembro-me que a primeira vez que ouvi falar do Movimento Contra UPP na
UNEB, me disseram “é um grupo de mulheres que tem batido de frente com a
construção de uma UPP na engomadeira”. Tempos depois quando nos
conhecemos em ações comunitárias, confirmei que cerca de 90% das pessoas que
participavam do Movimento eram mulheres. Ao que se deve esse contingente
majoritário de mulheres no Movimento? foi uma medida organizativa proposital?
Como refletem essa questão de gênero na luta que estavam impulsionando?
5- Como era o modo de organização do Movimento Contra UPP na Uneb? com isso
quero dizer ; onde e com que periodicidade se reuniam? Quais as pautas do
Movimento? Quais as principais táticas e estratégias adotadas para impulsionar as
pautas? Qual era o critério de filiação ou recrutamento do Movimento? Quais as
principais ações impulsionadas por vocês dentro e fora da universidade , que
contribuíram significativamente pro andamento da luta contra a Base Comunitária
de Segurança da Engomadeira?
294
10- Nome:
11- Cor/raça (autodeclarada):
12- Identidade de gênero:
13- Sexo:
14- Escolaridade:
15- Escolaridade na época que atuava-conheceu o Movimento Contra UPP na Uneb:
16- Bairro que mora:
17- Bairro que Morava quando atuava no Movimento Contra UPP na Uneb
8- Quando e em que contexto começou seu envolvimento com a cultura de arte de rua,
sobretudo, a pichação?
10- Fale um pouco dos perigos – inclusive de morte – do exercício da cultura da pichação
na cidade de SALVADOR
11- Quando e como conheceu a atuação do Movimento Contra UPP? Quais eram suas
principais impressões sobre o Movimento?
13- Em minha participação nas ações impulsionadas pelo Movimento Contra UPP, sempre
me chamou atenção a presença massiva de pichadores-grafiteiros nas ações
comunitárias do Movimento, seja em praticas subterrâneas , como pichar o prédio que
seria a BCS, assim como, em ações publicas, como o I microfone aberto no final de
linha da engomadeira. A seu ver, o que motivou aproximação dos pichadores do
Movimento?
14- Uma das grandes contribuições que os pichadores deram ao Movimento Contra UPP,
foi a perpetuação de uma memoria politica subterrânea do Movimento, a medida que
as pichações que denunciavam a UPP se espalhavam pela UNEB e cidade de maneira
297
18- Nome:
19- Cor/raça (autodeclarada):
20- Identidade de gênero:
21- Sexo:
22- Idade:
23- Trabalha- estuda:
24- Fale sobre sua rotina diária:
16- Quantos amigos, vizinhos, familiares ou conhecidos, foram assassinados por arma de fogo
nos últimos 10-3 anos?
17- Qual a cor dos amigos, vizinhos, familiares ou conhecidos, que foram assassinados por
arma de fogo nos últimos 10-3 anos?
18- Dos amigos, vizinhos, familiares ou conhecidos, que foram assassinados por arma de fogo
nos últimos 10-3 anos, quantos foram em contexto de execuções sumarias e quantos em
operações policiais letais?
19- Dos amigos, vizinhos, familiares ou conhecidos, que foram assassinados por arma de fogo
nos últimos 10-3 anos, quantos foram em contexto de Chacinas?
298
20- Teve algum parente, amigo ou conhecido que desapareceu, ou foi sequestrado e nunca
mais voltou? Comente sobre o episodio, ressaltando em que medida afetou e afeta
psicologicamente sua trajetória de vida.
21- Comente em que medida o assassinato de amigos, vizinhos, familiares ou conhecidos, tem
afetado sua trajetória de vida, do ponto de vista psicológico, afetivo e de suas projeções de
vida para o futuro.
22- Dos amigos, vizinhos, familiares ou conhecidos, que foram assassinados por arma de
fogo nos últimos 10-3 anos, qual pessoa era mais próxima a você. Conte-me como esse
episódio marcou psicologicamente sua trajetória de vida, suas projeções para o futuro. E,
se possível, descreva a circunstancia de como essa pessoa (ou grupo de pessoas) foi
assassinada? (pedir ao entrevistad@ pra localizar a noticia online da morte, se
houver.).
23- Você sonha ou tem pesadelos com regularidade com algum amigo, ente querido ou
conjugue, que foi assassinado-a por arma de fogo? Conte em detalhes o sonho mais
marcante ou, que se repita com regularidade.
24- Vamos fazer um exercício ficcional. Se você pudesse enviar um bilhete de sete linhas, ou
uma mensagem de whatsapp (um áudio de 2 minutos), 27 minutos antes de um ente
querido, amigo ou conhecido ser assassinado por arma de fogo, qual seria o conteúdo? Por
favor, escreva nessa folha de papel (entregar na hora uma folha de papel e caneta, ou
pedir pra pessoa enviar um áudio).
25- Comente as frases em destaque, destacando por que, em sua opinião, os índices de
violência letal atingirem mais intensamente uma categoria especifica da população:
26- Marcados: vítimas de homicídios na Bahia são homens, negros e jovens.
Mortes de jovens homens negros correspondem a 90,77% do total na Bahia, revela Atlas
da Violência
27- Fale-me como se sente em relação às estatísticas apresentadas na pergunta anterior, já que
eh um jovem homem negro e pode estar compondo essas estatísticas a cada 27 minutos.
28- Vamos fazer mais um exercício, mas agora de projeção. Vamos supor que você fosse
assassinado por arma de fogo daqui a cinco dias, como sua morte prematura repercutiria
na sua família, comunidade e rede de amigos-as, sobretudo, do ponto de vista psicológico,
afetivo e materialmente falando.
299
29- Você já passou por um episodio de quase-morte, ou sofreu métodos de extrema violência
? Ou seja, já foi alvejado a tiros e sobreviveu, ou mesmo tiros foram deflagrados em sua
direção e você conseguiu fugir? Já foi torturado, esfaqueado ou linchado? Conte-me em
que medida experiências de quase-morte afetaram você afetivo-psicologicamente.
30- Durante toda nossa pesquisa, ouvimos relatos de um certo carro prata-gol branco, como
um veiculo comumente utilizado em inúmeros casos de sequestro, seguido de morte, ou
de morte em contextos de execuções sumarias. O bairro que mora, por exemplo, esta no
raio de atuação desses veículos de morte. De acordo seu cotidiano e vivencia, o que nos
poderia dizer sobre esse contexto.
31- Durante toda nossa pesquisa, um bordão também foi muito repetido, em diversos
contextos - Pai faz, mãe cria e a PETO da sumiço – já ouviu essa frase alguma vez?
Faca um comentário sobre a frase, fale sua opinião sobre o modo de atuação da
corporação policial em sua comunidade.
32- Em sua cidade-Bairro a corporação policial utiliza drones? Qual sua opinião a respeito da
utilização desse um artefato em operações policiais? Conte-me relatos ou uma experiência
sua com esse artefato.
33- Nos últimos anos as policias tem se militarizado cada vez mais, adotando um modelo de
operação de combate em baixa escala. Em sua opinião o treinamento ostensivo de
policiais para campanhas de combate urbano, tem que impacto na sua comunidade?
34- Tomando como base os dados estatísticos que já expomos, em sua opinião, o fato de
morrer diametralmente mais pessoas negras, sobretudo homes-jovens, em relação a
população branca, impacta de que forma nos dois segmentos– psicológico-afetivo e
economicamente.
36- Em sua opinião, por que tantos jovens negros são assassinados por arma de fogo todos os
meses em sua cidade, muitos em contextos de execuções sumarias, ou chacinas, mas ainda
assim, há pouca ou nenhuma repercussão, ou mesmo, investigação dos assassinatos.
300
ANEXOS
Imagens
Figura 1: Logo Marca do Movimento Contra UPP
Fonte: Foto da logo marca cedida por militantes do Movimento Contra UPP
Figura 2: Placa hasteada no terreno que iria ser construída a Base Comunitária de
Segurança da Engomadeira Salvador-BA
Figura 11: Microfone aberto da Engomadeira organizado pelo Movimento Contra UPP
e sua rede de alianças comunitárias
Figura 12: Pichadores fazendo um BOMB durante ação comunitária impulsionada pelo
Movimento Contra UPP
Figura 13: BOMBs feitos por pichadores durante ação comunitária do Movimento
Contra UPP
Figura 20: Cartaz de Ato publico impulsionado pelo Movimento Contra UPP
De outubro pra cá, o movimento realizou várias atividades, entre elas: reuniões abertas,
formações, cinedebates, audiência pública, fórum de contrapropostas, microfone aberto, e
atos. É evidente que todas as atividades que fizemos não deram caldo pra que nosso
movimento fosse forte o suficiente pra se mostrar como deveria, e é por isso que este informe
traz um convite pra que você construa conosco o movimento. Para nós, não é a polícia que
deve resolver os problemas sociais, a existência dela é a síntese da desigualdade que ecoa aos
quatro ventos. Sabemos que a polícia é apenas o braço repressor do Estado e está aí pra
garantir a segurança de poucos e o medo de muitos, e a universidade não pode fechar os olhos
diante disto. Não adianta ser uma universidade referência nos debates sobre negros, ser a
pioneira em implantação de cotas raciais ou ter uma pró-reitoria de ações afirmativas quando
se retira de um debate que sempre foi tão caro para o movimento negro: o genocídio da
população negra.
O movimento tem sofrido alguns ataques por parte de alguns alunos da UNEB, dos mais
conservadores possíveis: de que estamos fechando os olhos pra supostos assaltos e estupros
na universidade, que estamos defendendo o tráfico de drogas no campus etc. Não cabe aqui a
discussão do pra nós é o tráfico de drogas ou a quem achamos que ele realmente interessa ou
sobre nossa defesa sobre a legalização das drogas, mas é necessário deixar muito claro que
nosso posicionamento em relação ao policiamento dentro do campus é: 1) a polícia não nos
traz segurança; 2) isso nos tira a autonomia e 3) não há históricos de assaltos e/ou estupros
312
dentro do campus( mesmo que tivesse, não achamos que essa seria a solução). Enfim,
pedimos respeito dos colegas com movimento e dizemos que estamos abertos ao diálogo, pra
mostrar nossos posicionamentos diante das várias coisas que já foram colocadas sobre nós.
Reiteramos o convite á construção do movimento junto conosco. Vamos resistir juntos contra
a perda da autonomia universitária e contra a repressão policial dentro das comunidades. A
Engomadeira precisa de educação, saúde, moradia digna, lazer etc, não da polícia. E que
nosso movimento sirva de centelha pra resistências em outros bairros e para a compreensão da
comunidade acadêmica sobre o seu verdadeiro papel que a nossa universidade deve cumprir
nas comunidades do entorno.
Att,
A Policia no Brasil é criada nos anos oitocentos, para combater o quilombo do Urubu que
representava a resistência do povo negro em busca de sua liberdade. Enquanto braço armado
do Estado, foi executora de desocupações das comunidades negras no período pós-
abolicionista e no combate a religiões e manifestações culturais de origens africanas.
Esse modelo da PM atual tem sua origem no período da ditadura militar, servindo para
“manter a ordem”, agredindo, torturando e matando aqueles que protestavam contra o sistema
ditatorial. A formação militar é utilizada para combater inimigos externos, mas, no caso do
Brasil, esses inimigos são os marginalizados por um sistema desigual e opressor – são os
negros, pobres, moradores de periferias. Os capitães do mato da atualidade possuem
abordagens racistas e preconceituosas, como o baralho do crime e a produção de cartilhas de
tatuagens.
Pedir desmilitarização da Policia Militar é reivindicar o seu próprio fim, mas não significa a
extinção das políticas de seguranças públicas. Em 2012, até mesmo a ONU pediu o fim da
PM brasileira, constatando seus atos de extermínio e brutalidade. É pelo entendimento de sua
história e do seu papel social que defendemos a desmilitarização já!
A PM brasileira mata em média cinco pessoas por dia, além de ser uma das mais letais do
mundo. Essas mortes engordam as estatísticas do Estado, mas para nos são muito mais do que
isso, elas possuem cor e classe social. É a população jovem e negra que é criminalizada e
morta nas mãos da polícia.
Casos ganham a mídia todos os dias, como o do Geovane e Davi Fiuza, pessoas inocentes que
são confundidas e assassinadas. Sabemos da atuação dessas bases policiais em todo país e
podemos nos calar frente a esse genocídio. Quem não lembra o caso Amarildo? Pedreiro
sequestrado e morto foi torturado por policiais dentro de uma UPP no Rio de Janeiro. Não
podemos naturalizar essas posturas e é por isso que o Movimento Contra UPP está organizado
em luta.
Nem sempre as drogas foram proibidas, mas, no século passado, essas medidas foram
exportadas dos Estados Unidos para o resto do mundo, na tentativa de apontar um novo
inimigo, esses são os marginalizados e excluídos do sistema capitalista. Não podemos negar
que as abordagens aos usuários são variadas pelos critérios de cor e classe social, onde os
presos e mortos são os varejistas, meninos que correm de chinelos entre os dedos nos locais
mais pobres da cidade.
Poucos são os casos de mortes pelo uso de droga, enquanto o tráfico é a maior justificativa de
assassinatos todos os dias. A proibição das drogas é sustentada pelo negocio das armas e
controle social do Estado. Defendemos a descriminalização e legalização das drogas, levando
em conta que a verdadeira forma de lidar com essa questãoé por meio de educação e saúde
pública.
A UNEB está rodeada por várias comunidades periféricas, dentre elas, a Engomadeira. Mas,
além da falta de investimento do Estado, a universidade não oferece seu principio de
extensão, no qual deveria desenvolver projetos de assistência para a sociedade.
Maio de 2014
Acreditamos que a polícia não deve ser usada como a única resposta para os problemas
sociais. Em que pese que, se a Comunidade da Engomadeira é considerada pelo
governo como uma área hostil com altos índices de criminalidade em detrimento de um
mal policiamento, essa realidade é também concebida em virtude da ausência de
investimento em políticas sociais (como saúde, educação, cultura, esporte e lazer) que
são, sumariamente, negadas à comunidade.
Frente a Reitoria, queremos uma Universidade autônoma que goze do seu papel social
e científico indiscriminadamente.
Frente a UPP, exigimos que a Universidade não faça uso de um projeto falho e
violento como resposta aos problemas sociais da Engomadeira. Entre a Uneb e a
Engomadeira não deve existir polícia, entra a UNEB e a Engomadeira deve existir
atividade de extensão!
Frente aos demais setores da Universidade (Cas, DAs, Colegiados, Técnicos e Corpo
Docente), convidamos os companheiros para a construção de uma proposta de
Extensão para a Comunidade da Engomadeira no local em que está sendo construído a
UPP. O diálogo com as novas propostas dar-se-á em meio a reuniões que ocorrerão no
mês de fevereiro ou por e-mail:
Saudações de luta!
“pacificação”, ainda são os bairros periféricos os alvos de batidas policiais, toques de recolher
e que enchem as estatísticas de mortes por violência. Não nos enganemos, os alvos do
genocídio promovido pelo Estado tem classe e cor.
várias atividades, entre elas: reuniões abertas, formações, cine-debates, atos etc. Todos esses
espaços foram construídos com luta e dedicação buscando sempre o apoio de outras frentes de
lutas como a campanha Reaja ou será morta Reaja ou será morto e a FFAD (Frente Feminista
para ação Direta).
O movimento contra UPP tenta de todas as formas estabelecer um diálogo com a comunidade
da Engomadeira, pois entende que são as vidas desses moradores que estão em jogo, contudo
a conjuntura de terror impõe muitas vezes um silêncio, marca do medo de quem tem suas
vidas constantemente nas miras de um estado racista e genocida. Assim é que buscamos
através de uma resistência organizada estabelecer pontes para que o enfrentamento a esse
projeto de instalação da base comunitária de segurança seja feita em conjunto. Nos colocamos
sempre como apoio nessa luta e deixamos sempre claro que somos contra a construção da
Base Comunitária de Segurança Pública no terreno da UNEB ou em qualquer outro espaço.
Não aceitamos um projeto de pacificação que derrame o sangue dos nossos jovens, não
aceitamos a paz da bala, do tapa na cara, da revista vexatória. A comunidade é desassistida
em diversos serviços que se fazem mais urgente que a presença da policia neste bairro.
Acreditamos que é por meio da educação e da assistência aos direitos básicos do ser humano
que se constrói uma comunidade melhor pra se viver. Entendemos também o papel importante
que os espaços de esporte e cultura desempenham na transformação das realidades sociais.
Assim a polícia não contribuirá para a melhoria do bairro, a polícia na comunidade só reforça
a violência, o medo, o silêncio. Portanto não nos cansamos de repetir o coro que surgiu no
319
microfone aberto realizado na comunidade: Não a UPP, queremos educação, saúde, cultura
pra sobreviver!
Ao longo desses meses de intensos debates, o movimento sofreu diversos ataques por parte de
alunos e professores da UNEB , dos mais conservadores possíveis: de que estamos fechando
os olhos pra supostos assaltos e estupros na universidade, que estamos defendendo o tráfico
de drogas no campus, que somos usuários de drogas inconformados com os possíveis
“baculejos”, que somos mulheres de traficantes( acusação com teor extremamente machista,
considerando que nosso movimento é construído em sua maioria por mulheres) etc. É
necessário deixar muito claro que nosso posicionamento em relação ao policiamento dentro
do campus é: 1) a polícia não nos traz segurança, muito pelo contrário; 2) isso nos tira a
autonomia que tanto reivindicamos e 3) não há históricos de estupros dentro do campus. Em
vista a todo nosso histórico de luta é que exigimos respeito a esse movimento que tem sido
construído com muita abdicação e luta.
Reiteramos o convite á construção do movimento junto conosco. Vamos resistir juntos contra
a perda da autonomia universitária e contra a repressão policial dentro das comunidades.
Engomadeira precisa de educação, saúde, moradia digna, lazer e não da polícia. E que nosso
movimento sirva de centelha pra resistências em outros bairros e para a compreensão da
comunidade acadêmica sobre o papel que nossa universidade deve cumprir nas comunidades
do entorno.
320
1- Desmilitarização:
A Policia no Brasil é criada nos anos oitocentos, para combater o quilombo do Urubu que
representava a resistência do povo negro em busca de sua liberdade. Enquanto braço armado
do Estado, foi executora de desocupações das comunidades negras no período pós-
abolicionista e no combate a religiões e manifestações culturais de origens africanas.
Esse modelo da PM atual tem sua origem no período da ditadura militar, servindo para
“manter a ordem”, agredindo, torturando e matando aqueles que protestavam contra o sistema
ditatorial. A formação militar é utilizada para combater inimigos externos, mas, no caso do
Brasil, esses inimigos são os marginalizados por um sistema desigual e opressor – são os
negros, pobres, moradores de periferias. Os capitães do mato da atualidade possuem
abordagens racistas e preconceituosas, como o baralho do crime e a produção de cartilhas de
tatuagens.
Pedir desmilitarização da Policia Militar é reivindicar o seu próprio fim, mas não significa
a extinção das políticas de seguranças públicas. Em 2012, até mesmo a ONU pediu o fim da
PM brasileira, constatando seus atos de extermínio e brutalidade. É pelo entendimento de sua
história e do seu papel social que defendemos a desmilitarização já!
A PM brasileira mata em média cinco pessoas por dia, além de ser uma das mais letais do
mundo. Essas mortes engordam as estatísticas do Estado, mas para nos são muito mais do que
isso, elas possuem cor e classe social. É a população jovem e negra que é criminalizada e
morta nas mãos da polícia.
Casos ganham a mídia todos os dias, como o do Geovane e Davi Fiuza, pessoas inocentes que
são confundidas e assassinadas. Sabemos da atuação dessas bases policiais em todo país e
podemos nos calar frente a esse genocídio. Quem não lembra o caso Amarildo? Pedreiro
sequestrado e morto que foi torturado por policiais dentro de uma UPP no Rio de Janeiro. Não
podemos naturalizar essas posturas e é por isso que o Movimento Contra UPP está organizado
em luta.
Nem sempre as drogas foram proibidas, mas, no século passado, essas medidas foram
exportadas dos Estados Unidos para o resto do mundo, na tentativa de apontar um novo
inimigo, esses são os marginalizados e excluídos do sistema capitalista. Não podemos negar
que as abordagens aos usuários são variadas pelos critérios de cor e classe social, onde os
presos e mortos são os varejistas,
meninos que correm de chinelos entre os dedos nos locais mais pobres da cidade.
Poucos são os casos de mortes pelo uso de droga, enquanto o tráfico é a maior justificativa
de assassinatos todos os dias. A proibição das drogas é sustentada pelo negocio das armas e
controle social do Estado. Defendemos a descriminalização e legalização das drogas, levando
em conta que a verdadeira forma de lidar com essa questão é por meio de educação e saúde
pública.
A UNEB está rodeada por várias comunidades periféricas, dentre elas, a Engomadeira.
Mas, além da falta de investimento do Estado, a universidade não oferece seu principio de
extensão, no qual deveria desenvolver projetos de assistência para a sociedade.
O Movimento Contra UPP, organizado antes mesmo da posse da atual gestão de reitoria da
UNEB, não pode deixar passar um momento tão importante para nossa luta: no dia 6 de
março, o Conselho Universitário da UNEB aprovou parecer que recomenda a não doação do
terreno da Universidade para projeto de construção de Base Comunitária de Segurança de
autoria da SSP-BA, articulado junto à Secretaria Estadual de Educação (SEC).
A negociação entre SSP-BA, SEC e UNEB se deu da forma mais obscura e deslegitima
possível, de modo a impossibilitar a participação do corpo acadêmico nas decisões que
resultaram nas obras de construção da Base Comunitária dentro do Campus I da
Universidade. E mesmo assim, sem aprovação ou mesmo discussão do projeto junto à
comunidade acadêmica, parte do terreno da UNEB - que, diga-se de passagem, passa por
sérios problemas devido à falta de estruturas básicas como laboratórios, restaurante
universitário, creche, e mesmo salas de aula - foi entregue à realização de tal projeto.
O movimento contra UPP sempre optou por sua autonomia, talvez por isso não tenha sido
sequer citado na nota, enquanto a entidade estudantil que não nos representa, seja concedida a
fala sobre os diversos “segmento estudantil vem protestando nos 24 campi”. Frente à nota
publicada pela UNEB, vale pontuar que a discussão dessa pauta pelo CONSU, divulgada
como sendo um êxito trazido pela atual gestão da universidade, foi provocada pelos
estudantes e moradores da engomadeira organizados em torno da pauta da implementação da
BCS.
323
Desde as eleições para reitoria o movimento vem cobrando posicionamentos sobre o espaço e
a presença da polícia na universidade. Dizer que essa posição foi tomada de livre e espontânea
vontade é omitir os avanços alcançados por estudantes e comunidade organizados de forma
autônoma. Dizer que essa posição foi tomada de livre e espontânea vontade é a mesma coisa
de conceder os créditos à princesa Izabel pela lei Áurea, é o mesmo que afirmar que
benefícios e conquistas adquiridos pelo povo sempre partem de cima para baixo, quando é na
verdade através dos grupos de pressões e reivindicações que essas medidas são realmente
tomadas. Por isso repudiamos a postura assumida pela atual gestão em nota divulgada no site
da UNEB
Só a luta muda à vida! O movimento contra UPP não apresenta essa nota declarando seu
término, mas firmando compromisso com a comunidade na continuidade de suas ações,
lutando pela abertura da farmácia, pressionando a burocracia institucional a tomar
providencias sobre o espaço que seria instalado a base, além de todas as bandeiras que
levantamos em prol de uma extensão universitária eficaz.
A UNEB, literalmente, está de costas para a comunidade da Engomadeira, e é por isso que
continuaremos incansáveis, até que não haja muros separando os privilégios acadêmicos, até
que a comunidade tenha de fato visibilidade perante a universidade e a UNEB cumpra seu
papel, seu dever, enquanto instituição pública.
Junho de 2011
Apresentação
No ano de 2005, num contexto de governo ligado a um grupo político que há décadas
dominava os recursos financeiros, os meios de produção, o sistema de justiça e comunicação e
que tinha no estado penal e no racismo fundamentos para uma política de genocídio, nos
insurgimos contra as mortes de milhares de jovens negros desovados como animais às
margens de Salvador e Região Metropolitana.
Sendo assim, vimos através desse documento declarar nossa posição sobre a política de
segurança pública em curso e fazer uma análise embrionária sobre o programa Pacto Pela
Vida, lançado no dia 06/06/2011 pelo governo do Estado da Bahia.
Documento esse que deve ser encarado como um instrumento de diálogo que buscamos
estabelecer com o governo e os demais poderes de justiça articuladores desse programa, bem
como as organizações da sociedade civil, o parlamento, e a sociedade de um modo geral.
Lembramos que em todas as oportunidades que tivemos para falar com Excelentíssimo
Senhor Governador Jaques Wagner apelamos para o fato de que só um diálogo com toda
sociedade poderia ajudar a construir um outro modelo de segurança pública. Por tanto nossa
exigência feita no calor de nossa ira frente aos corpos de vários jovens que tombaram durante
as operações Saneamento I e II, na Chacina de Pero Vaz, na Chacina de Vitória da Conquista,
na Chacina (vingança Estatal) de Cana Brava, nasmortes de Edvandro, de Djair, e Clodoaldo
Souza o Negro Blul, entre outras, nos obriga a participar dessa construção de forma crítica,
não tutelada, propositiva.
Apresentamos a essa plenária alguma considerações sobre segurança pública, relações raciais,
sistema de justiça na sua interação com pressupostos racistas, homofóbicos e sexistas que
impedem a concretização dos princípios republicanos e democráticos, tão repetidos por Sua
Excelência, o Governador do Estado da Bahia Jaques Wagner, listando algumas questões de
extrema importância a serem consideradas pelo governo como espinha dorsal na concepção
de um possível Pacto Pela Vida
Cento e vinte e três anos depois da proclamação do pacto abolicionista “fajuto” que as elites
fizeram entre si, nos tirando da condição legal de escravizados e nos empurrando para a quase
perpétua exclusão dos meios de produção, de participação e do exercício de poder a que
temos direito, o Estado, compreendido como os poderes de justiça, o poder legislativo,
executivo e agora a defensoria pública, nos convoca a pactuarmos pela proteção da vida.
326
“Art.5° todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade, nos termos seguintes:” (CEFB/88)
Entendemos que esse pacto, pela vida, já está expresso em nosso ordenamento jurídico e que
o Constituinte Originário imprimiu no artigo 5º e esparsamente em toda nossa carta mãe, os
fundamentos de um estado democrático de direito, sendo o direito à vida e à vida digna sua
expressão máxima. Portanto, segundo várias correntes doutrinárias e o próprio corpo de juízes
supremos - (STF) Guardiões da Constituição, excetuando “caso de Guerra
declarada”(I,XLVII “a” Art.5º) - o valor da vida é um valor absoluto.
Porque o governo do Estado da Bahia nos convoca para um pacto pela vida? E porque as
ações anunciadas pelo pacto concentram-se apenas numa suposta guerra contra o crime?
Porque um governo democrático participativo e popular opera com uma lógica de lei e
ordem tendo como fim a criação de um Sistema de Defesa Social?A ideologia de defesa
social tem como um de seus princípios norteadores essa dicotomia
entre bem (cidadão/sociedade) e mal (bandido/ criminoso/excluído). Essa dicotomia foi
apresentada por um funcionário do governo quando apresentava o pacto a militantes do
Movimento Negro, numa reunião chamada pela Sepromi –Secretaria de Promoção da
Igualdade. Essa mesma ideologia é expressa pelo mandatário máximo do Governo da Bahia,
quando apela em seu discurso para o combate do bem contra o mal.
No programa Balanço Geral, exibido pela rede Record de televisão em 08/06/2011, conduzido
pelo apresentador Raimundo Varela, o governador falava na “defesa do bem contra o mal”. A
julgar pelos corpos exibidos, pelos presos com suas imagens violadas nessa mesma emissora,
o bem a que parece se referir o Governador tem origem racial, origem de classe e poder de
contratar bons defensores e terem sua imagem e liberdade preservadas. E o mal? Bem, o mal
somos nós, negros e negras, a maioria da população. Não um corte ou um grupo de trabalho
em eventos promovidos pelo governo, mas a totalidade dos interessados em um novo modelo
de segurança.
Segundo Alexandre Barata:
327
1. O ordenamento jurídico já consagra a vida como um bem jurídico a ser protegido. O Pacto
Pela Vida confirma o fracasso do Estado Brasileiro em garantir nossa segurança. O governo
nos convoca por que não pode esconder a tragédia humana em suas mãos. A tragédia de uma
guerra cruel, cujas vítimas são negros de baixa escolaridade residindo em lugares precários.
2. O Pacto Pela Vida não pode concentrar-se numa suposta guerra contra o crime apoiada na
ideologia da defesa social e da teoria do direito penal do inimigo. Essa lógica do bem e do
mal, é reducionista e espalha o medo, sem promover o verdadeiro diálogo. Esse é um modelo
ideológico amparado na criminalização, no etiquetamento de pobres, negros e mulheres -
estigmatizadas por sua relação afetiva com homens ( jovens negros) que são o principal alvo
do atual sistema de segurança pública exilados nas instituições de seqüestros ( Casas de
Detenção, cadeia, delegacias e etc).
3. Nós negras e Negros do Estado da Bahia somos os principais interessados em um novo
modelo de segurança que não seja racista, machista, homofóbico e sexista. Não somos um
corte um grupo de trabalho.
4. Se a proposta é de um provável Pacto pela Vida, é necessário que se reflita sobre uma prática
em curso de limpeza étnica, exemplificada pelos títulos das operações Saneamento I e II que
levou a óbito mais de 3.000 pessoas entre 2007 e 2010, pela ação estatal da Rondesp, Choque,
Caatinga, Guarnições e policias quer pela ação dos grupos de extermínio, esquadrão da morte
ou pela omissão do estado.
5. O atual Secretário de Segurança Publica Mauricio Barbosa, surpreendeu a sociedade com o
“Baralho” símbolo da indignidade e da ofensa aos direitos fundamentais. Os supostos
328
criminosos exibidos no jogo de carta virtual são violados em seu direito ao principio
contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal. São pessoas exibidas como culpados
antes de serem processados, antes do trânsito em julgado.Este baralho é um ultraje a
dignidade humana, uma repaginação dos institutos racistas de busca de africanos foragidos. O
baralho deve ser retirado do sistema da SSP.
6. Como tratar de um Pacto Pela Vida, quando temos diante de nós uma demonstração de
desrespeito ao meio ambiente e a vida: O Presídio de Simões Filho, construído em área de
proteção ambiental (APA), território quilombola amparado pelo decreto 4887. Situação que,
sabidamente ameaça a vida de funcionários, presos e suas famílias, pela existência de ductos
de gases tóxicos que passam por baixo da construção.
7. Para tratarmos de um provável Pacto Pela Vida, é necessário sairmos da lógica punitiva e
apresentar números de instrumentos em política cultural, política de saúde, educação,
saneamento, política publica ao invés de militarização do espaço urbano. Urge investir em
reparação pecuniária, humanitária aos familiares das vítimas dos grupos de extermínio,
esquadrão da morte e oficiais do governo.
8. Pactuar pela Vida significa o respeitar a dignidade humana, impedindo a exposição ilegal de
presos em delegacias, responsabilizando delegados, agentes policias, e polícias militares que
expõem a constrangimento ilegal pessoas custodiadas pelo Estado.
Assim, instamos o governo a promover um diálogo permanente que envolva as universidades,
o parlamento, o judiciário, os partidos políticos, os meios de comunicação, mas sobretudo as
comunidades atingidas e o movimento social para que apontem caminhos não-punitivos de
promoção das potencialidades, tendo a liberdade como regra, como consagrado pelo
ordenamento jurídico. Um diálogo que resulte numa verdadeira democracia, como queriam os
mártires da Revolta dos Búzios.
GLOSSÁRIO
A pista: A rua
As puta: Polícia
Tá ligado: Entendeu?