Marquard (Narrare Necesse Est)
Marquard (Narrare Necesse Est)
Marquard (Narrare Necesse Est)
Odo Marquard1
A narrativa tem futuro? Ou ela atrofia devido à crescente objetivização científica, técnica,
econômica e informacional do mundo moderno? Eu não acredito na tese de sua morte, mas sim: que
quanto mais moderno o mundo moderno, mais inevitável se torna o ato narrativo.
Narrare necesse est: nós, seres humanos, temos de narrar. Isso era assim e continua sendo
assim. Pois nós, seres humanos, somos nossas histórias, 2 e histórias precisam ser narradas. Todo ser
humano é aquele que...; e quem ele exatamente é, somente histórias o podem dizer: Colombo é
aquele que descobriu a América; Chapeuzinho Vermelho é aquela que foi devorada pelo lobo;
Ulisses é aquele que demorou vinte anos para regressar de Tróia à sua terra. Os seres humanos são
aqueles que...; e em cada um de nós há as histórias para nós mesmos, e que contamos por mais
curtas que sejam: a mais breve de nossas breves histórias é nossa carteira de identidade; mesmo um
número pessoal de identificação é uma narrativa em código. Quem abdica da narrativa abdica de
suas histórias, e quem abdica de suas histórias renuncia a si mesmo.
Histórias precisam ser narradas. Elas não são previsíveis como processos regidos por leis
naturais ou como ações planejadas (as quais se tornam em histórias somente quando algo imprevisto
acontece).3 Enquanto não acontece nada imprevisto elas são previsíveis, e narrá-las seria uma
bobagem: se Colombo tivesse chegado à Índia sem descobrir a América; se Chapeuzinho Vermelho
tivesse visitado a avó sem se encontrar com o lobo; se Ulisses tivesse regressado rapidamente à sua
casa sem quaisquer incidentes, estas não teriam se tornado histórias (pra valer). Antes delas deveria
haver - enquanto previsão ou planificação - o prognóstico; e, depois, apenas a constatação: deu
certo. Somente quando irrompe uma contrariedade inesperada num processo regulado por leis
1 Texto lido em 29 de junho de 1999 como introdução ao colóquio O futuro da narrativa, realizado por ocasião dos 80
anos da Bauhaus em Weimar. Traduzido de Odo Marquard. Filosofía de la compensación. Estudios de antropología
filosófica. Barcelona: Paidós, 2001, p. 63-67. Cotejou-se a versão espanhola com o original alemão ( Philosophie des
Stattdessen. Stuttgart: Reclam, 2000, p. 60-65). Tradução: Sérgio da Mata.
2 Wilhelm Schapp. Envolvido em histórias. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2007, p. 13 e 116: "Nós, seres
humanos, estamos sempre envolvidos em histórias", "a história representa o homem". Ver ainda Wilhelm Dilthey. Um
sonho. In: Jurandir Malerba (org.) Lições de história. Porto Alegre/Rio de Janeiro: Edpucrs/FGV, p. 128: "Só a história
pode dizer ao ser humano o que ele é"; e Hermann Lübbe. Geschichtsbegriff und Geschichtsinteresse. Basel/Stuttgart:
Schwabe, 1977, especialmente p. 145ss e 168ss. Ver ainda Odo Marquard. Elogío del politeísmo. Sobre monimiticidad
y polimiticidad. In: O. Marquard. Adiós a los principios. Estudios filosóficos. Valencia: El Magnànim, 2000, p. 99-123.
3 Cf. H. Lübbe, Geschichtsbegriff und Geschichtsinteresse, p. 54ss, e 269ss, assim como H. Lübbe, "Was heisst 'Das
kann man nur historisch erklären'". In: R. Koselleck e W. D. Stempel (orgs.) Geschichte-Ereignis und Erzählung.
München: Wilhelm Fink, 1973, p. 542-554, em especial p. 545: "'Histórias' só são 'histórias' quando contam histórias de
afirmação ou de transformação de um sujeito ou de um sistema sob condições de intervenção de eventos que, enquanto
tais e em sua sucessão, não obedecem à racionalidade do agir desse sujeito ou sistema"; ver ainda p. 551: "Histórias são
processos de individualização de sistemas como consequência de transformações funcionais de sistemas sob condições
que, por sua vez, não são dedutíveis do sistema". Ver ainda Rüdiger Bubner. Geschichtsprozesse und Handlungsnormen.
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1984.
naturais ou em meio a uma ação plenajada, somente então é que elas são narradas; somente então
elas podem ser narradas: histórias são uma mistura de processos e resultados, bem como de ações e
resultados. E isso vale: temos de narrar porque somos nossas histórias. Isso era assim e continua
sendo assim. Por isso não se narrava apenas no passado, mas também se narrará no futuro: a
narrativa tem futuro.
Mas não se pode duvidar: o mundo moderno começa ali onde os seres humanos - através de
uma racionalização científica, técnica, econômica, informacional - transformam, em grande estilo,
sua realidade em objetos de laboratório e em ações planificadas. Isso só é possível ali onde se torna
deliberadamente indiferente em que tradições e histórias (linguísticas, religiosas, culturais,
familiares) do mundo da vida figuram as pessoas que sabem ou que agem, o que se sabe ou o que se
faz: as racionalizações vivem das neutralizações intencionais das histórias do mundo da vida. Então
atrofiam as histórias na modernidade? Em absoluto. O que acontece é outra coisa: de um lado está a
neutralização das histórias; e de outro - o que frequentemente é ignorado ou esquecido - sua
compensação. Em meu campo - entre os filósofos - me acusam de ser um teórico da compensação:
alguém que em todas as situações possíveis e impossíveis aparece com o conceito de compensação.
Procedo aqui da mesma forma e constato: o mundo moderno não é só, devido à racionalização, o
mundo das neutralizações das histórias do mundo da vida; mas também o mundo de suas
compensações, e que se dão através de órgãos para as histórias, ou seja, de órgãos de narração. Sem
pretensão de ser exaustivo, nomeio aqui três dessas compensações. Ao mundo especificamente
moderno pertence:
a) a formação do sentido histórico. Precisamente porque - como disse Joachim Ritter - o mundo
moderno, devido à racionalização, tende a tornar-se "a-histórico",4 justamente por isso o histórico se
torna nele, por compensação - como nunca o fora antes e em nenhum outro lugar - o grande tema
positivo. À moderna civilização do progresso e da inovação, que aposta na emancipação face às
tradições, inclinada a tudo jogar fora, até mesmo as histórias do mundo da vida, pertence - como
compensação -, de forma especificamente moderna, o desenvolvimento e o florescimento de uma
cultura da memória e da conservação, a aparição e a difusão dos museus, a preservação dos
monumentos, as medidas de conservação, a hermenêutica enquanto saneamento dos antigos
edifícios no reino do espírito, o sucesso de uma orientação histórica voltada tanto para frente como
para trás: ou seja, o senso histórico - cada vez mais necessário da modernidade. Ao mundo
especificamente moderno pertence:
b) a marcha triunfal da arte narrativa do romance. Não é apenas a história real que se espande, mas
também a narrativa ficcional: não só a history, mas também e sobretudo a story. Em seu belo ensaio
4 Cf. Joachim Ritter. La tarea de las ciencias del espíritu en la sociedad moderna. In: J. Ritter. Subjetividad. Barcelona:
Alfa, 1986, p. 93-123, em especial 117ss.
A arte do romance, Milan Kundera escreveu:5 à história de sucesso das "ciências europeias" exatas
pertence a história paralela do "romance europeu", "a mais europeia de todas as artes", e que
compensa o "espírito da teoria" com o "espírito do humor". A Galileu, Descartes, Newton, Kant,
Comte, Mach e Husserl pertencem Rabelais, Cervantes, Sterne, Goethe, Balzac, Dickens, Tolstoi,
Thomas Mann, Proust, Joyce e Kafka. Posto que o "mundo da vida" histórico é "colocado em
parêntesis" em nome do mundo dos objetos, então ele também deve ser salvaguardado - de forma
compensatória - justamente por meio do romance, que como arte narrativa moderna continuará
irrenunciável no futuro e cada vez mais irrenunciável. Ao mundo especificamente moderno pertence
enfim:
c) o surgimento e desenvolvimento das ciências humanas,6 ou seja, das ciências narrativas. O
período de estabelecimento das ciências exatas começa no século XVI, e o período de
estabelecimento das ciências humanas começa no século XVIII: as ciências humanas são mais
jovens que as ciências naturais exatas. Enquanto órgão para as histórias - precisamente como
ciências narrativas - elas respondem à a-historicidade do mundo moderno. Por isso as ciências
exatas não tornam supérfluas as ciências humanas, mas antes de tudo necessárias. Portanto, o êxito
das ciências exatas não eliminina e diminui, mas engendra e incrementa, a demanda por ciências
humanas: quanto mais moderno o mundo moderno, mais imprescindíveis se tornam as ciências
humanas, isto é - e como compensação pela neutralização das histórias do mundo da vida gerada
pela racionalização -, as ciências narrativas.
Esperar pelo fim da narrativa em nosso mundo presente e futuro é uma esperança vã. Existe
- Harald Weinrich fez essa distinção em seu belo livro Tempus - o "mundo comentado" e o "mundo
narrado".7 Nós vivemos, penso eu (provavelmente me distanciando um pouco da visão de
Weinrich), do mundo comentado e vivemos no mundo narrado. Quanto mais e com maior êxito o
mundo moderno de converte em mundo comentado, mais se deve preservar nele o mundo narrado;
para isso o mundo moderno desenvolve diversos gêneros de compensação: são, ao menos, o sentido
histórico, o romance e as ciências humanas. As racionalizações não tornam as narrativas obsoletas,
pelo contrário: exigem narrativas com novas formas de se narrar. Quanto mais racionalizamos, mais
temos de narrar. Quanto mais moderno é o mundo moderno, mais inevitável se torna a narrativa:
narrare necesse est.
5 Milan Kundera. A arte do romance. São Paulo: Cia das Letras, 2009. Ver também Richard Rorty. Heidegger, Kundera
e Dickens. In: R. Rorty. Ensaios sobre Heidegger e outros. Rio de Janeiro: Reluma Dumará, 1999.
6 Cf. J. Ritter. La tarea de las ciencias del espíritu en la sociedad moderna; e O. Marquard. Sobre la inevitabilidad de las
ciencias del espíritu. In: O. Marquard. Apología de lo contingente. Valencia: El Magnànim, 2000, p. 109-125.
7 Harald Weinrich. Tempus. Besprochene und erzählte Welt. Stuttgart: Kohlhammer, 1964 (trad. espanhola: H.
Weinrich. Estructura y función de los tiempos en el lenguage. Madrid: Gredos, 1968).