B2 Iberic@l
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Resumo: Neste artigo, procuramos traçar uma dades modernistas como Brasília. Chegamos
cartografia dos grafites e pichações feministas à conclusão de que as reivindicações feminis-
realizados em Brasília, com intuito de desema- tas se organizam principalmente em três temas:
ranhar os dispositivos (Gilles Deleuze) que ar- corpo, sexualidade e violência.
ticulam as relações políticas, culturais, sociais
e de poder na cidade, procurando, ainda, iden- Palavras-chave: Mulheres, cidade, cartogra-
tificar as reinvindicações dessas mulheres por fia, intervenção urbana, Brasília.
meio de análises de texto e imagem a partir de
fotografias realizadas dessas intervenções urba- Résumé : Dans cet article, nous cherchons à
nas. Consideramos tais práticas como artísticas dresser une cartographie des graffitis (picha-
e de resistência tanto política quanto estética, ções) féministes réalisés à Brasilia, afin de dé-
como propõe Jacques Rancière, na busca por mêler les dispositifs (Gilles Deleuze) qui arti-
uma maior partilha do sensível. Tais interven- culent les relations politiques, culturelles, so-
ções no espaço urbano permitem a criação de ciales et de pouvoir dans la ville, tout en cher-
heterotopias (Michel Foucault) que subvertem chant également à identifier les revendications
as funções e sentidos pré-determinados para os de ces femmes à travers l’analyse de textes et
espaços públicos, principalmente no caso de ci- d’images à partir de photographies prises de ces
interventions urbaines. Nous considérons ces
pratiques comme artistiques et de résistance, à dans le cas des villes modernistes comme Brasí-
la fois politiques et esthétiques, comme le pro- lia. Nous sommes arrivés à la conclusion que les
pose Jacques Rancière, dans la recherche d’un revendications féministes sont principalement
plus grand partage du sensible. Ces interven- organisées en trois thèmes : le corps, la sexuali-
tions dans l’espace urbain permettent la créa- té et la violence.
tion d’hétérotopies (Michel Foucault) qui sub-
vertissent les fonctions et les significations pré- Mots-clés : Femmes, ville, cartographie, inter-
déterminées des espaces publics, en particulier ventions urbaines, Brasília.
1 - Introdução
Temos acompanhado recentemente um avançar, em todo o mundo, dos partidos de
extrema direita. Mesmo os que não venceram os últimos pleitos eleitorais em seus países vêm
mostrando um crescente apoio por parte da população e, com isso, voltam a assombrar ideologias
segregacionistas, xenófobas e excludentes. No Brasil não tem sido diferente. As últimas eleições
mostraram um país dividido não apenas politicamente, mas em termos de convicções e princípios
humanos, sociais e relacionados ao respeito à diversidade. Estão ameaçadas algumas conquistas de
minorias sociais, como de negros e negras, indígenas, população LGBTTQIA+ e mulheres.
Os movimentos feministas no Brasil vinham ganhando força nas últimas décadas. Nos
anos 1990, começaram a surgir organizações autônomas feministas que passaram a exercer pressão
junto ao Estado: trabalhadoras rurais, operárias, mulheres negras, entre outras, foram se identi-
ficando com a luta feminista e ampliando sua agenda política. Essa diversidade foi importante
para a intervenção do movimento na Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher, organizada em
Pequim, na China, em 1995, quando o movimento brasileiro também se integra mais ao feminismo
latino-americano.
Foi, no entanto, nos anos 2000 que o movimento se insere mais fortemente no campo
político elaborando, em 2002, a Plataforma Política Feminista que foi entregue a todos os candidatos
à presidência da República na época, aos governos dos estados, a dirigentes partidários, além de ser
amplamente divulgada na imprensa. Foram anos de luta enfrentando o autoritarismo da ditadura
civil-militar e o autoritarismo patriarcal, ainda presente na família e em muitas instituições brasi-
leiras.
Várias conquistas se mostram nas políticas públicas aprovadas nos últimos anos, com
maior representatividade da mulher na cena pública. Chegamos, inclusive, a ter um presidente
da República. No entanto, sua brusca retirada do poder revela, ainda, a fragilidade desses êxitos.
Nos últimos anos, os gritos feministas tomaram as ruas do Brasil, principalmente pelo direito ao
próprio corpo, livre para deambular pela cidade sem riscos e livre para decidir sobre o aborto,
por exemplo, ainda não legalizado no Brasil. É preciso manter a presença da mulher nos espaços
políticos, institucionais e urbanos.
Nesse sentido, busco, neste artigo, realizar uma cartografia 1 da presença feminista pelas
ruas do plano piloto, região central de Brasília, procurando as intervenções urbanas que manifestam
essa produção da subjetividade feminina. Acredito que a cartografia é um método interessante para
tal abordagem por possibilitar abarcar o fenômeno como processo, captando os discursos que bus-
cam dar visibilidade a essas subjetividades, por meio de cartazes, grafites, pichações, entre outros,
que tomam os muros da cidade, participam da formação de um imaginário urbano feminista em
Brasília e constituem as performances identitárias das mulheres brasilienses.
Segundo Rolnik 2 , a cartografia acompanha as transformações pelas quais passam os
diversos mundos, alterando os afetos contemporâneos. O cartógrafo, portanto, deve mergulhar
nas intensidades do seu tempo de forma antropofágica. Para a autora, as intensidades, apesar de
partirem das subjetividades, acabam levando a uma dessubjetivação, no sentido de que perpassam
o desejo a partir de um campo individual, mas numa relação de exterioridade ao campo social.
Trata-se sempre de uma relação de afeto entre os corpos: “quando surgem, inesperadas, são ver-
dadeiras correntes de desterritorialização atravessando de ponta a ponta a vida de uma sociedade,
desmapeando tudo 3 ”.
Ao deambular pela cidade, procurei traçar tal cartografia a partir de registros fotográfi-
cos dessas intervenções. Para Rolnik, “a prática de um cartógrafo diz respeito, fundamentalmente,
às estratégias das formações do desejo no campo social. […] O que importa é que ele esteja atento
às estratégias do desejo em qualquer fenômeno da existência humana que se propõe perscrutar 4 ”.
De forma que a autora destaca a busca do cartógrafo por uma geografia dos afetos em que não
se procura entender ou revelar, mas criar pontes, a partir da sua própria sensibilidade e do grau
de abertura para a vida naquele momento, criando possíveis devires entre si, o outro e o contexto
sócio-político histórico.
Foram escolhidas dezesseis imagens dentre as mais de trinta realizadas entre os meses
de janeiro e fevereiro de 2019 que repercutem temas importantes e recorrentes da agenda feminista
na contemporaneidade: a violência, a luta, o lesbianismo, a sororidade, a liberdade, a sexualidade.
Tais imagens contribuem para um registro da presença da mulher na cidade e seu posicionamento
social, político e histórico, mapeando a produção da realidade pelas mulheres brasilienses e con-
tribuindo para a compreensão da dimensão micropolítica 5 dos processos de subjetivação feminina
nesse espaço.
Joan Scott reflete sobre a importância de se pensar os contextos históricos, envolvendo
a participação da mulher por meio das análises de gênero. Precisamos reconhecer essa presença
e suas performances na construção das identidades plurais da mulher na contemporaneidade de
maneira dialógica, e não dicotômica.
1 . deleuze, Gilles; guattaRi, Félix, Mil Platôs, vol. 1, Rio de Janeiro, Editora 34, 1995.
2 . RolniK, Suely, Cartografia sentimental. Transformações contemporâneas do desejo, Porto Alegre, Editora
Sulina, 2011.
3 . Ibid., p. 57.
4 . Ibid., p. 65.
5 . RolniK, Suely, Cartografia sentimental. Transformações contemporâneas do desejo, op. cit.
As imagens trazidas neste artigo problematizam o espaço urbano como palco de per-
formances identitárias e dos jogos de poder aí desenhados. Quando se fala em direito à cidade 8 a
quem é dada a permissão de tomar a rua para si, para sua produção de subjetividade? Nas cida-
des brasileiras testemunhamos ainda mulheres com medo de sair à rua sozinhas, principalmente à
noite, recriminadas pela roupa que escolhem usar, entre outras recriminações. O direito ao espaço
urbano, assim como na tradição histórica, ainda é, muitas vezes, pensado sob uma lógica masculina.
É preciso traçar esta cartografia feminista na urbe para descobrir as reconfigurações heterotópicas 9
do espaço urbano. Para Foucault, a heterotopia é uma construção espacial na qual se consegue
sobrepor, num só espaço real, vários espaços, vários lugares que por si só seriam aparentemente
incompatíveis 10 .
As intervenções urbanas de mulheres no espaço da cidade ocupam o território e cons-
tituem uma força de resistência artística. Tal resistência se dá por sua força estética, sem deixar de
ser política, remetendo a um senso de coletividade e alteridade. Rancière 11 aborda esse fenômeno
a partir da criação de um sensível dissociado da sensibilidade ao compreender a estética não como
6 . scott, Joan, “Gênero: uma categoria útil para a análise histórica”, Educação & Realidade, vol. 20, no 2,
1995, p. 71-99.
7 . Ibid.
8 . lefebvRe, Henri, La Production de l’espace, Paris, Anthropos, 1986.
9 . foucault, Michel, Estética: literatura e pintura, música e cinema (Ditos e escritos III), 2a ed. Rio de Janeiro,
Forense Universitária, 2009.
10 . Ibid., p. 418.
11 . RanciÈRe, Jacques, Partilha do sensível, São Paulo, Editora 34, 2009.
uma teoria da arte em geral, mas como um regime estético das artes: “um modo de articulação
entre maneiras de fazer, formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e modos de pensabilidade
de suas relações, implicando uma determinada ideia da efetividade do pensamento 12 ”. Desenvolve,
assim, um pensamento da estética como prática artística que implica novas formas de ser e estar no
mundo — e, consequentemente, na cidade, contribuindo para a reorganização dos jogos de poder
político e estético na contemporaneidade.
2 - O grafite e a pichação
reconfiguram a cidade
Quando Lefebvre fala em direito à cidade, ele desloca para as pessoas o protagonismo
das mudanças no espaço urbano. Para o autor, a cidade muda quando muda a sociedade no seu
conjunto. Dentre as várias definições de cidade, e sua relação com o conceito de urbano, Lefebvre
admite que a construção subjetiva da cidade, segundo a psicologia, a observa como lugar do desejo,
e complementa que, na atualidade, também podemos conceber subjetivamente a cidade como o
lugar do medo, diante da crescente violência nas grandes metrópoles que afeta a coletividade e
ressignifica práticas cotidianas.
Neste sentido, podemos, ao traçar uma cartografia das pichações feministas em Bra-
sília, observar uma organização social que revela valores de um determinado grupo da sociedade
mostrando sua relação com o espaço urbano e contribuindo para a construção do imaginário que
se faz dessa cidade por seus próprios habitantes. Segundo Armando Silva:
Em uma cidade como Brasília, em que quase não há muros, é nas passagens subter-
râneas, abandonadas ao descaso do poder público que encontramos a maior quantidade dessas
manifestações feministas. Ali, a paisagem degradada ganha outra significação pela presença do
grafite, gerando espaços outros (ou heterotópicos, como proposto por Foucault) de reivindicação
e protesto. As manifestações gráficas ganham caráter de arte pública e constituem um espaço de
alteridade. A arte pública representa, nesse contexto, uma ameaça ao exercício do controle das
manifestações da diversidade. A arte urbana, por sua vez, pode ser considerada um tipo de arte
pública, tendo em vista que, na contemporaneidade, segundo Novais “se denomina arte pública as
criações artísticas de âmbito público que nos narram sobre a história do lugar ou sugerem algum
12 . Ibid., p. 13.
13 . silva, Armando, Atmosferas Urbanas, São Paulo, Edições Sesc, 2014, p. 2.
elemento destacado pertencente à experiência coletiva dos cidadãos que convivem nele, sobretudo
as criações com aportações sociais à consciência coletiva 14 ”.
Para Armando Silva, o que chamamos de espaço público seria, na verdade, o espaço
urbano. Seu caráter de público seria, segundo o autor, uma conquista mediante uma disputa política.
Nesse sentido, Silva acrescenta ainda que a arte pública não trata do artista, mas de seu sentido
cívico: “a arte pública não é arte em espaços públicos, isso seria “arte em espaço público”; a arte
pública é mediação. A mediação transforma o espaço em algo sociável, dando-lhe forma e atraindo
a atenção de seus cidadãos para o contexto mais amplo da vida, das pessoas, das ruas e da cidade 15 ”.
As manifestações do grafite geram essa cartografia que revela enunciações do desejo
num âmbito social e que promovem uma espécie de encontro, mesmo que não presencial, típica do
espaço público. A frase ou desenho ali deixado comunica-se com o outro que passará pelo local e
assim se produz uma troca em âmbito coletivo que contribui para a diversidade e para a democracia.
Esse sentimento gerado, próprio à coletividade de um lugar ao qual seus participantes pertencem,
vai, aos poucos, engendrando visibilidades de resistência. Cria-se, aí, segundo Rancière, o que ele
denomina de partilha do sensível, e que torna possível uma reconfiguração das definições prévias
estabelecidas pelas instituições e interesses políticos do poder de quem pode tomar parte no comum:
14 . novais, Nanci Santos, “Escultura e cidade: uma relação ampliada no âmbito da contemporaneidade”,
Cultura Visual, vol. 1, no 14, 2010, p. 41-52.
15 . silva, Armando, Atmosferas Urbanas, op. cit., p. 118.
16 . RanciÈRe, Jacques, Partilha do sensível, op. cit., p. 15.
17 . deleuze, Gille, Michel Foucault, filósofo, Barcelona, Editorial Gedisa, 1990.
apropriada, no caso abordado neste artigo, pela prática artística das mulheres em território urbano
— ou, mais especificamente, nas passagens subterrâneas, no caso de Brasília.
18 . Ibid., p. 155.
são bem características de pichações urbanas, geralmente sem um design mais elaborado. Quando
for o caso, destacaremos o uso de outras técnicas como lambe-lambes ou estêncil.
Num país com taxas de feminicício crescentes (e agravadas durante o período de iso-
lamento social devido à pandemia do covid-19 19 ) muita luta ainda deve ser travada para que as
mulheres tenham o mesmo direito de ocupar os espaços urbanos que os homens, livres do medo.
A insegurança as limita ao espaço confinado da casa, como esteve durante séculos. E aquelas que
se arriscam a saírem sozinhas enfrentam o temor principalmente do estupro, que sempre foi um
mecanismo de controle e poder exercido pelos homens sobre as mulheres.
Cabe salientar que as taxas de feminicídio e violência contra a mulher no Brasil estão
entre as mais altas do mundo 20 , problema que não encontra respaldo em um governo cujo presidente,
quando deputado federal da república, respondeu aos argumentos de uma colega parlamentar com a
seguinte frase: “Só não te estupro porque você não merece” 21 . Ou que ainda faz apologia à ditadura
militar, época em que várias mulheres foram torturadas por meio de estupros e outras práticas
degradantes com seus corpos, tendo, inclusive, questionado a veracidade da tortura sofrida pela
ex-presidente Dilma Roussef 22 . Podemos ver nas figuras 4 e 5 abaixo as frases: “Estamos com os
ovários cheios de violências” e outra manifestação “Contra a violência doméstica”, entre outras
intervenções encontradas que também tratam da questão da violência de gênero.
19 . ONU WOMEN, “Infographic: The Shadow Pandemic - Violence Against Women and
Girls and COVID-19”, 06 de abril de 2020. 10 de maio de 2020 unwomen.org/en/digital-
library/multimedia/2020/4/infographic-covid19-violence-against-women-and-girls.
20 . A América Latina é a região onde as taxas de feminicídio são as mais altas do mundo. No Brasil, o
número de casos absolutos de feminicídio é o maior da América Latina, apesar da taxa per capita não
estar entre as mais altas. Para acessar mais dados sobre este cenário, verificar dados de 2019 levantados
pelo Observatório de Equidade de Gênero da América Latina: Feminicídio ou femicídio, Observatório de
Igualdade de Gênero da América Latina e do Caribe, Nações Unidas — CEPAL. 10 de fevereiro de 2021
oig.cepal.org/en/indicators/femicide-or-feminicide.
21 . Ver notícia completa em: moReiRa, João Almeida, “Bolsonaro e as mulheres: «Não estupro porque é
feia», «deviam ganhar menos», «queria dar o furo»”, Diário de Notícias, 19 de fevereiro de 2020. 15
de fevereiro de 2021 www.dn.pt/mundo/bolsonaro-e-as-mulheres-nao-estupro-porque-e-feia-deviam-
ganhar-menos-queria-dar-um-furo-11838495.html.
22 . Ver notícia completa em: ventuRini, Lilian, “Bolsonaro debocha de tortura sofrida por Dilma,
que responde: ‘Sociopata’”, Valor Econômico, 28 de dezembro de 2020. 15 de fevereiro de
3 - Mulheres brasilienses:
plurais, donas da cidade e do próprio corpo
Uma das constatações a que também cheguei pela análise das pichações observadas é
que as mulheres também reivindicam a posse do próprio corpo. Sentir-se segura ao deambular pela
cidade também implica que elas possam escolher a roupa que querem usar sem o receio de serem
julgadas e, pior, agredidas. Crescem os gritos feministas não apenas nos grafites que encontramos
nas ruas, mas nos gritos dos protestos, nas letras de músicas de várias artistas contemporâneas
e em tantas outras manifestações culturais. Pelas ruas de Brasília, encontramos os dizeres que
também sempre estão presentes nas passeatas: “Meu corpo, minhas regras”, como na figura 6. Tal
interferência se constitui como um lambe-lambe (espécie de cartaz colado) contendo a frase com
tipografia aparentemente escrita à mão, sobre outra arte urbana provavelmente anterior, um grafite.
Em todas as técnicas que encontramos de manifestações textuais feministas, observamos que esse
caráter de protesto é o maior objetivo da ação, mais que o esmero estético, como encontramos em
outros tipos de grafite e intervenções urbanas pela cidade.
A mulher quer mostrar sua força e sentir-se livre para viver sua sexualidade como bem
entender. Encontramos pichações que dizem: “Sexo frágil é o caralho” (figura 7), “Lute como uma
garota” (figura 8) ou ainda: “Mulher bonita é a que luta” (figura 9), contrapondo-se ao ideal da
mulher considerada bonita apenas por sua aparência física, como especulado insistentemente pela
mídia tradicional. No caso da figura 5 e da figura 7, encontramos o mesmo desenho de um per-
sonagem, realizado em lugares diferentes, acompanhando frases distintas com estilos de pichação
também distintos, o que reforça nossa pressuposição de que as pichações textuais nem sempre têm
relações diretas com os desenhos que estão próximos.
Em outra pichação, na figura 10, encontramos os seguintes dizeres: “Bêba (sic), deco-
tada e do bar”, em alusão à reportagem realizada pela revista Veja 23 em 2016 sobre a então primeira-
2021 valor.globo.com/politica/noticia/2020/12/28/bolsonaro-debocha-de-tortura-sofrida-por-dilma-que-
responde-sociopata.ghtml.
23 . Veja notícia completa em: linhaRes, Juliana, “Marcela Temer: Bela, recatada e ‘do lar’”, Veja. 18 de abril
de 2016. 10 de fevereiro de 2020 veja.abril.com.br/brasil/marcela-temer-bela-recatada-e-do-lar.
dama do Brasil, Marcela Temer, esposa do ex-presidente Michel Temer, cujo título era: “Bela, re-
catada e do lar”. A reportagem gerou grande polêmica em todo o país, principalmente nas mídias
sociais, com ironias e memes. Acabou também ganhando as ruas em conotação jocosa. Também
neste caso, a pichação parece ter sido feita já como outra camada na paisagem urbana, sobre uma
intervenção anterior. Destaca-se, aí, uma vontade de liberdade de uma mulher contemporânea que
não quer se restringir a ser valorizada por sua beleza ou permanecer restrita ao ambiente domés-
tico. Mais uma vez encontramos referência ao estilo de roupa que a mulher reivindica poder usar
— “decotada”.
No campus da Universidade de Brasília, lugar característico da cidade por sua diversi-
dade, encontramos o seguinte dizer de cunho mais explícito, acompanhado de um desenho: “Der-
rube o patriarcado. Siririqueira 24 , se toque” (figura 11). Uma clara alusão à reivindicação feminina
de explorar o corpo para o próprio prazer e não apenas para fins reprodutivos — concepção baseada
num binarismo biológico que reforça a normatividade heterossexual, como ressalta Butler 25 . Uma
clara reivindicação à possibilidade de viver a própria sexualidade sem repressões morais.
Também encontramos pichações ligadas às mulheres lésbicas: “Orgulho lésbico femi-
nista” (figura 12) ou desenhos de dois pictogramas que representam duas mulheres de mãos dadas
Figura 10. — Fotografia de Gabriela de Freitas. Figura 11. — Fotografia de Gabriela de Freitas.
(figura 13). Ressaltamos que não encontramos pichações referentes às mulheres transgênero ou
travestis, que travam uma luta ainda mais difícil na sociedade, diante do preconceito que sofrem
muitas vezes das próprias mulheres. Nos chama a atenção o fato de também não termos encontrado
pichações relacionadas ao movimento feminista negro, muito forte no Brasil. Tal constatação pode
ser indício do caráter excludente da cidade de Brasília que, em seu centro, o plano piloto, é habitada
por uma maioria branca que possui a maior renda per capita do país e usufrui de infraestrutura que
atribui alto índice de IDH à cidade 26 .
Figura 12. — Fotografia de Gabriela de Freitas. Figura 13. — Fotografia de Gabriela de Freitas.
A história de Brasília é marcada pela exclusão. Construída por pessoas vindas de todos
os cantos do país, chamados de candangos, a cidade expulsa essas mesmas pessoas para assenta-
mentos urbanos realizados entre 20 e 40 quilômetros de distância do centro. Na época da inaugu-
ração de Brasília, em 1960, foi criada uma comissão para tanto, chamada Comissão de Erradicação
de Invasões (CEI). Tal nome deu origem a uma das cidades satélites de Brasília, situada a 35 Km
do plano piloto, chamada Ceilândia. Os efeitos dessa política permanecem até os dias atuais. As
cidades satélites até hoje recebem menos recursos do governo distrital e sofrem com problemas
relacionados a transporte, educação, saúde e segurança. Faz-se necessário, portanto, estender a
investigação dessas pichações feministas na periferia para encontrar outras reivindicações ainda
mais plurais.
Mesmo com a ausência das pichações relacionadas a reivindicações de mulheres trans-
gênero, travestis e negras, podemos perceber, como a subjetividade da mulher brasiliense, na con-
temporaneidade, se constrói de forma plural. Judith Butler chama a atenção para o fato de que
o feminino já não se configura mais como uma categoria estável, assim também como o conceito
de mulher. Para a autora, “o gênero estabelece interseções com modalidades raciais, classistas,
étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas 27 ”. Assim, o movimento
feminista não deve tomar a mulher por uma categoria única. A construção do gênero é cultural
e performativa e não condiz mais com o discurso baseado em estruturas binárias de sexo em que
se criam duas categorias unitárias e dicotômicas: o feminino e o masculino. Diante das diversas
possiblidades de manifestação de gênero, Butler recomenda o caminho do diálogo:
muitas vezes representadas nas escolhas das ementas por parte de professores e até mesmo pro-
fessoras. Nesse sentido, encontramos pelo campus da universidade um cartaz tipo lambe-lambe
com os seguintes dizeres: “Se tem mulher na universidade, por que não tem mulher na ementa?”
(figura 15).
Figura 14. — Fotografia de Gabriela de Freitas. Figura 15. — Fotografia de Gabriela de Freitas.
4 - Considerações Finais
O método cartográfico serve, nas ciências humanas, para a realização de um mapa não
de um território, atrelado aos aspectos físicos de uma determinada região, mas, principalmente, ao
desenho de relações, jogos de poder, discursos, movimentos, modos de subjetivação e resistência,
dentre outros. Após os trajetos percorridos pelo plano piloto, região central de Brasília, pude verifi-
car a pluralidade das reivindicações feministas que centram seus temas principalmente na questão
do corpo, da sexualidade e da violência. Três categorias que impactam nas estruturas do medo e na
maior ou menor presença de mulheres ocupando as ruas das mais variadas formas.
Nesses rizomas traçados na cartografia da presença da mulher no Distrito Federal nos
saltou aos olhos os problemas impostos pela urbanidade modernista e segregacionista que impacta,
até os dias de hoje na formação da população que habita o centro da cidade de Brasília e reforça
como as questões de gênero não podem ser discutidas sem o diálogo com uma abordagem de classe
e raça. Não encontramos manifestações do movimento feminista negro, apesar de sua força no
Brasil. Tampouco encontramos manifestações de travestis ou transgêneros.
As mulheres vêm buscando fortalecimento e união no Distrito Federal para além da
área restrita ao centro, ou seja, o plano piloto. Alguns coletivos realizam oficinas de grafite ou de
muralismo, por exemplo, e ocupam as ruas com sua arte como forma de resistência, tais como os
coletivos Casa Frida (figura 17), situado na cidade satélite de São Sebastião, e Risofloras (figura 18).
A arte surge num espaço urbano desigual e cheio de conflitos. No caso das manifestações desses
coletivos, sempre com autoria explícita na assinatura, percebemos uma maior preocupação estético-
visual nas intervenções, diferente das pichações, lambe-lambes e estêncil que analisamos ao longo
do artigo. Por sua força estética e política, tais ações agregam um senso de coletividade realizando
uma prática artística que constitui o que Rancière chama de partilha do sensível, como abordamos
anteriormente. Dessa forma, as mulheres conseguem se articular para ocupar e vivenciar a cidade,
subvertendo as imposições restritivas do espaço físico. Essas intervenções urbanas criam novas
relações com a paisagem e reforçam que “o local de transformações políticas é também o local de
transformações artísticas 31 ”.
Além disso, o movimento feminista brasileiro se integra cada vez mais ao movimento
feminista de toda a América Latina: “Se cuida, se cuida, se cuida seu machista! A América Latina
vai ser toda feminista”, é também um dos gritos ouvidos nas passeatas. O grafite e outras formas de
intervenção urbana e ocupação das ruas, portanto, resistem e devem continuar resistindo enquanto
práticas artísticas que, além de formarem um imaginário das cidades pelas mulheres, coloca suas
reivindicações na pauta das discussões da sociedade, ocupando o espaço público.
31 . peixoto, Nelson Brissac, “Intervenções Urbanas”, Rua, Campinas, Número Especial, 1999, p. 81-88.
204
Numéro 18 – Automne 2020
Figura 17. — Intervenção realizada pelo coletivo Casa Frida em São Sebastião, Distrito Federal.
Crédito da imagem: Instagram @casafridadf
Figura 18. — Intervenção realizada pelo coletivo Risofloras na Asa Norte, Brasília.
Crédito da imagem: Instagram @risofloras.