Suprev,+t02 4498 13178 1 PB
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DOI: https://doi.org/10.21728/logeion.2018v5n0.p27-36
IBICT
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Resumo
Neste ensaio abordam-se dois temas principais: de um lado, o papel eminentemente central e paradoxal do conceito
de mundo da vida na construção da teoria habermasiana centrada na atividade comunicativa; do outro, como esta
concepção de mundo da vida pretende lançar as bases para uma via de análise da sociedade em geral. Tenta-se
mostrar como o conceito de mundo da vida – que se estrutura e diferentes níveis - é fruto de um longo processo de
reconstrução e de apropriações críticas de princípios teóricos oriundos da filosofia e das ciências sociais,
especialmente da teoria de sistemas, de Niklas Luhmann.
ABSTRACT
This essay addresses two main themes: on the one hand, the eminently central and paradoxical role of the concept
of world of life in the construction of the Habermasian theory centered on communicative activity; on the other,
how this conception of the world of life intends to lay the foundations for an way of analysis of society in general.
It tries to show how the concept of the world of life - which is structured and different levels - is the product of a
long process of reconstruction and critical appropriations of theoretical principles from philosophy and social
sciences, especially Niklas systems theory Luhmann.
Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons Attribution 3.0.
LOGEION: Filosofia da informação, Rio de Janeiro, v. 5, 2018, Edição Especial, p.27-36
ARTIGO
pode ser detectado na Teoria do agir comunicativo (HABERMAS, 1981) na qual se consuma a
assunção definitiva do paradigma do entendimento intersubjetivo mediante linguagem, o qual
toma o lugar do paradigma das realizações transcendentais (apriori) da consciência de um
sujeito singular e observador.
O paradigma da comunicação ou do entendimento intersubjetivo substitui,
inclusive, os primeiros esboços de um “funcionalismo histórico-hermenêutico” projetado
anteriormente pelo próprio Habermas. Convém salientar, além disso, que nesse opus magnum
assumem um lugar central e sistemático tanto a temática complexa do mundo da vida, ou seja,
a ideia de um solo inconteste, auto evidente e não tematizável que acompanha inevitavelmente
nossos atos de conhecimento e de fala, como também a sua racionalização, propiciando
sustentação a uma pragmática formal que pretende levar a sério a precedência do mundo da
vida, a qual é, segundo ele, ôntica e ontológica (HABERMAS, 1991, p. 41).
28
O conceito de mundo da vida proposto por Habermas é fruto de longos processos
de argumentação, de reconstruções e apropriações críticas de princípios teóricos oriundos da
filosofia e das ciências sociais, especialmente da teoria de sistemas, de Niklas Luhmann. Ele
lança mão, além disso, de correntes da filosofia contemporânea, especialmente da
fenomenologia, da linguística e da hermenêutica.
No meu entender, é possível afirmar que a elaboração do conceito de mundo da
vida na teoria do agir comunicativo toma como ideia diretriz quatro princípios básicos: o
princípio fenomenológico, o sistêmico, o linguístico e o hermenêutico.
Vale a pena esmiuçar esses princípios:
deveria permitir, “em termos de uma pragmática formal, a descrição dos (elementos) universais
de uma atividade orientada pelo entendimento” (HABERMAS, 1982, p. 15-44 e 607).
A inspiração inicial veio do conceito de mundo da vida proposto por Husserl.
Habermas constatou que o fundador da fenomenologia, no momento em que tentava imprimir
uma nova orientação à teoria transcendental, de Kant, tinha colocado como base das questões
relativas ao conhecimento do mundo e da sociedade em geral uma esfera de sentido. Tal esfera
é caracterizada “como mundo da vida”. Ela é pré-cognitiva e pré-categorial, isto é, vem antes
de qualquer tipo de conhecimento objetivo. Ela pode ser caracterizada como um mundo, ou
melhor, como um “fundo olvidado capaz de proporcionar sentido às ciências”. Ou ainda como
um conjunto de sentido inquestionável portador “das evidências mais evidentes” (HUSSERL,
1969, p. 112).
Numa palavra, enquanto tal, o mundo da vida configura uma espécie de saber
holístico, o qual envolve uma totalidade de convicções, de certezas que não podem ser
demonstradas objetivamente e etc. Por esta razão ele é acessível apenas aqui e agora, a partir
de dentro, na perspectiva de um “ego centrado no meu corpo”.
Estas ideias encontraram guarida na sociologia fenomenológica de Alfred Schütz 29
que complementa o mundo da vida husserliano lançando mão de conceitos tais como “saber do
dia-a-dia”, “estoque de conhecimentos que a tradição nos coloca nas mãos”, “mundo do dia -a-
dia”, ou ainda “conhecimento do common sense” (HABERMAS, 1982, p. 228).
Habermas tenta, a partir dessas ideias, configurar uma teoria crítica da sociedade
adequada a sociedades pós-tradicionais complexas. Esta teoria é caracterizada inicialmente
como “funcionalismo histórico-hermenêutico”. Ele trabalha, neste momento, com dois
conceitos fundamentais, a saber: o de mundo da vida com viés fenomenológico, e o de sistema
funcional.
O resultado desse primeiro lance teórico integrador pode ser observado no texto
intitulado “Problemas de legitimação do capitalismo tardio”, de 1973, onde ele coloca lado a
lado, numa relação de simples adição, o “mundo da vida” fenomenológico-hermenêutico, de
Husserl e Schütz, e o conceito de “sistema”, de Niklas Luhmann, a fim de caracterizar o
desenvolvimento contraditório e repleto de crises da sociedade capitalista.
Apoiado nestes dois princípios ele afirma que nesta sociedade existe um duplo
caminho de integração, a saber: o social, que se desenrola através de um mundo da vida
estruturado simbolicamente. E o sistêmico, o qual permite aos sistemas sociais manterem seus
limites mediante controle da complexidade que deriva do entorno instável.
É interessante observar que neste momento Habermas tenta trabalhar com os dois
princípios ao mesmo tempo, porém, ainda não se sente seguro, isto é, não possui argumentos
decisivos para fundamentar esse casamento. Decide então dirigir-se a determinadas teorias da
linguagem e da comunicação na expectativa de que estas lhe forneçam mais elementos capazes
de superar, não somente a evidente estreiteza do princípio fenomenológico que fica preso nas
malhas de uma análise da consciência do sujeito e que define a sociedade apenas como mundo
da vida, mas também os limites do princípio sistêmico, o qual prescinde simplesmente da noção
de sujeito.
A filosofia da linguagem wittgensteiniana surge neste momento como candidata
apta a superar o duplo impasse.
1
É interessante notar que a interpretação de Wittgenstein, utilizada por Habermas, segue de perto pegadas de
Karl-Otto Apel (Cf. Habermas, 1982, p. 243, nota 174).
maior, à medida que pode ser satisfeita por intermédio de uma análise linguística na qual são
reconstruídas as regras subjacentes a formas de vida do cotidiano.
Em que pese isso, o pós-kantiano Habermas, mesmo admitindo a possibilidade de
se manter a unidade da razão no pluralismo dos jogos de linguagem wittgensteinianos, não pode
acampar definitivamente nesse terreno dado o fato de que, em Wittgenstein, o potencial de
racionalidade dos jogos de linguagem se limita às particularidades de uma determinada
gramática. É necessário, segundo Habermas, ir em busca de algo mais consistente do ponto de
vista racional capaz de conectar entre si a unidade da razão e a pluralidade dos jogos de
linguagem.
Levado por essa necessidade e pelo interesse acima mencionado de encontrar um
elo mais amplo capaz de ligar entre si o paradigma do mundo da vida e o do sistema, que foi o
estopim inicial na abordagem do conceito de mundo da vida, Habermas submete a teoria dos
jogos de linguagem, de Wittgenstein, a um teste lançando mão do conceito de “experiência
hermenêutica” que constitui a base da obra de Hans Georg Gadamer.
Este conceito permite pensar tanto a unidade da razão quanto a sua pluralidade, uma
vez que torna possível vislumbrar no interior da própria prática linguística uma tendência à 31
autotranscedência. Convém explicitar esse aspecto do princípio hermenêutico.
decisão esteve ancorada inicialmente numa intuição estimulada por uma leitura de Humboldt
esclarecida pela filosofia analítica, e que ele formula da seguinte maneira em uma entrevista:
“na comunicação linguística está embutido o telos de um entendimento intersubjetivo”
(HABERMAS, 1985, p. 173). É necessário observar que nesta citação Habermas não está se
referindo à linguagem enquanto tal, apenas a atos linguísticos ou ações de fala.
A partir desse ponto, Habermas dá dois passos importantes: Num primeiro
momento, ele tenta, com os meios de uma análise pragmática das características gerais do agir
comunicativo, o qual, de si mesmo, está orientado pelo entendimento, certificar-se de um
conceito amplo de razão comunicativa inserida em nossas ações cotidianas (HABERMAS,
1985, p. 137). E num segundo momento ele configura esse conceito de razão comunicativa de
tal modo que ele consiga fazer jus a condições gerais da sociedade (Habermas, 1985, p. 177).
Por conseguinte, ao contrário dos frankfurtianos Horkheimer, Adorno ou Pollock,
que não conseguiram detectar vestígios de razão na prática cotidiana nem nas instituições
sociais ou políticas modernas, Habermas vê a razão inserida, não somente nas pretensões de
validade que acompanham inevitavelmente a prática comunicativa cotidiana, mas também em
mundos da vida e modos de viver tanto tradicionais como modernos. 33
Segundo ele, o mundo da vida nos é dado de forma pré-reflexiva em comunicações,
em processos de conhecimento, etc. Os participantes de uma comunicação o têm sempre, por
assim dizer, às suas costas como estoque de habilidades, de assunções de ideias ou de relações
que funcionam como plano de fundo. Recorrem a ele sempre que há necessidade de resolver
problemas de entendimento.
O mundo da vida não deixa de ser, mesmo assim, algo estranho, no entender de
Habermas, porquanto se decompõe ante nossos olhos e desaparece tão logo pretendemos
agarrá-lo e representá-lo mediante conceitos ou decompô-lo em partes (HABERMAS, 1985, p.
185-186).
indiscutível da atividade comunicativa cotidiana: é o chão que está sempre debaixo de nossos
pés (HABERMAS, 1988, p. 92).
Já ao nível de um segundo plano, ele pode ser detectado numa dupla perspectiva, a
saber: a) Na perspectiva de participantes ele surge como horizonte difuso, pré-comunicativo e
não questionável, que acompanha nossos atos cognitivos, linguísticos e comunicativos
desfazendo-se no exato momento em que tentamos transformá-lo em tema ou colocá-lo em
discussão. (HABERMAS, 1985, p. 186). b) Na perspectiva de um observador imparcial o
mundo da vida pode ser tematizado na forma de um estoque de saber, como uma reserva ou
retaguarda de sentido que flui para atividades comunicativas concretas do dia-a-dia, as quais
constituem um “mundo da vida em primeiro plano”.
A transição se dá através das eclusas da tematização e da problematização de
pretensões de validade armazenadas nas represas do mundo da vida, as quais são contestáveis
e se manifestam inevitavelmente em qualquer atividade linguística voltada ao entendimento
entre sujeitos, especialmente em discussões de argumentos.
É importante notar que o mundo da vida tematizado por essa via constitui um
mundo simbólico compartilhado intersubjetivamente, cujos componentes constituem padrões 34
culturais, instituições e ordens sociais legítimas, estruturas de personalidade, etc., que se
entrelaçam entre si como partes originárias de um todo.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A tese da terceira via - acima apresentada - que se inspira na tensão dialética entre
o mundo da vida e o sistema leva Habermas a propor não somente um dualismo metódico
derivado da complementaridade entre a perspectiva de um participante e a perspectiva de um
observador, mas também a tentar uma integração entre os princípios da fenomenologia, da
hermenêutica, da filosofia analítica e da teoria de sistemas.
Sua argumentação em prol desta proposta pode ser sintetizada em dois pontos: Em
primeiro lugar, o mundo da vida é pluridimensional porquanto pode ser racionalizado ou
reproduzido simbolicamente mediante agir comunicativo, o qual é multifuncional e se orienta
por um espectro de pretensões de validade que podem ser justificadas ou contestadas em
processos argumentativos. Em segundo lugar, os conceitos de mundo da vida – tanto os da
pragmática formal como os da fenomenologia – não conseguem cobrir por si sós todos os
aspectos das atuais sociedades multiculturais e complexas. Por conseguinte, é razoável buscar
inspiração no conceito de sistema.
REFERÊNCIAS