Josebvicente,+23 APR 1356
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RESUMO:
Jürgen Habermas é um pensador moderno que nos apresenta uma racionalidade capaz de criar espaços de liberdade
que correspondem aos ideais de emancipação social que sempre cruzaram o horizonte da modernidade ocidental.
Através de vários estudos deste autor, incluindo contributos críticos à sua teoria, iremos desenvolver a sua reflexão
epistemológica e a sua relevante contribuição para a renovação da teoria crítica alemã. Começaremos por
apresentar a sua crítica ao positivismo, para depois convocar a disputa que protagonizou com Gadamer em torno
da hermenêutica. Habermas adota a hermenêutica, ainda que com algumas críticas, como facilitadora de
autorreflexão que permita revelar às ciências sociais os erros quer da ciência social objetivista, quer da análise
vulgar da linguagem. Segue-se a perspetiva deste pensador acerca dos interesses que orientam o conhecimento e,
por fim, empreenderemos uma abordagem à teoria da racionalidade comunicativa, que afirma o otimismo
universalista de Habermas, assente num saudável pluralismo que permite o consenso humano.
1 Doutor em Teoria Jurídico-Política e Relações Internacionais pela Universidade de Évora – Évora - Portugal. Membro
colaborador do Centro de Investigação em Ciência Política das Universidades do Minho e de Évora – Portugal.
FONTES, Paulo Vitorino. A reflexão epistemológica de Habermas e a sua proposta de racionalidade comunicativa. Griot :
Revista de Filosofia, Amargosa – BA, v.20, n.1, p.277-288, fevereiro, 2020.
Artigo publicado em acesso aberto sob a licença Creative Commons Attribution 4.0 International License.
Griot : Revista de Filosofia, Amargosa - BA, v.20, n.1, p.277-288, fevereiro, 2020 ISSN 2178-1036
Introdução
Crítica ao Positivismo
FONTES, Paulo Vitorino. A reflexão epistemológica de Habermas e a sua proposta de racionalidade comunicativa. Griot :
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distinguir diferentes tipos de ação e de interesses de conhecimento, como veremos mais à frente,
afirma a perspetiva de conflito entre o mundo do quotidiano e o sistema social.
Influenciado pela fenomenologia de Husserl, considera objetivista a atitude que
“relaciona ingenuamente os enunciados teóricos com os estados das coisas”. Tal atitude
considera as proposições teóricas como representantes das relações entre grandezas empíricas,
como algo existente em si mesmo e, analogamente,
Assim, prossegue o autor, “a repressão do interesse continua ainda a fazer parte desse
mesmo interesse”.
Como se verifica, a crítica de Habermas ao positivismo afirma a impossibilidade de
separação do sujeito do objeto nas ciências sociais, o que invalida o ideal de objetividade do
naturalismo e conflui numa análise dos interesses do conhecimento, o que será posteriormente
objeto de análise neste trabalho. A observação em ciências sociais nunca é uma observação pura,
pois o cientista observa com base em normas, valores, contextos e conceitos aprendidos. Esta
relação de circularidade entre o sujeito e o objeto do conhecimento vem abalar o ideal clássico de
objetividade (SAMPAIO, 1998) e justificar a teoria crítica: “As representações ou descrições
nunca são independentes de padrões. E a escolha de tais padrões baseia-se em atitudes que
necessitam de avaliação crítica mediante argumentos, porque não se podem nem derivar
logicamente nem comprovar de modo empírico” (HABERMAS, 1968, p. 141).
Outra lacuna do positivismo consiste em negligenciar a dimensão intencional da ação. A
sociologia positivista procura sobretudo regularidades empíricas comportamentais, com vista à
obtenção de generalizações, pretendendo um saber útil tecnicamente. Por sua vez, a teoria
dialética da sociedade deve analisar e compreender o sentido e consciência dos agentes sociais.
Habermas apoia-se na Hermenêutica ao valorizar o questionamento e a crítica com vista à
autocompreensão dos grupos sociais (SAMPAIO, 1998).
Uma terceira insuficiência do positivismo reside na relação entre factos e valores, um
tema clássico na sociologia. Para os positivistas não deve existir esta relação, pois são esferas
completamente distintas, visto que a ciência se limita a descrever a realidade e não deve emitir
prescrições ou juízos de valor. Reduzido à análise das regularidades empíricas subscreve uma
racionalidade instrumental (conceito weberiano) que ao racionalizar os meios não racionaliza os
fins, não põem em causa as normas e os valores. Esta racionalidade para Habermas pode ter
consequências perversas, em que o irracionalismo em relação aos valores pode conduzir a
situações extremas como foi o caso do nazismo alemão.
“Na perspectiva de Habermas, todo o conhecimento deveria ser interpretado tendo em
atenção os interesses que levaram os actores a produzi-lo” (CALHOUN, 1996, p. 473). Sempre
que um teórico analisasse uma teoria deveria localizar a relação entre os interesses formadores
do conhecimento que conduziram à produção teórica, bem como as condições históricas dentro
das quais a teoria fora produzida e o conteúdo epistémico dessa mesma teoria. Habermas, à
semelhança dos teóricos de Frankfurt que o precederam, apoiou-se em Marx e em Freud no
desenvolvimento de uma conceção de crítica capaz de estabelecer o modo como o conhecimento
objetivo se poderia relacionar com a intersubjetividade e com a capacidade para a ação
(Calhoun, 1996, p.461). Assim, como a psicanálise possibilita uma relação intersubjetiva, em que
o médico e o paciente anulam as barreiras à comunicação e tornam possíveis à compreensão e
controlo consciente das motivações previamente reprimidas. Da mesma forma, a teoria crítica
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Crítica à Hermenêutica
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Os interesses do conhecimento
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Racionalidade comunicativa
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reúne as referências das descrições, das prescrições, das experiências vividas, numa
dimensão de existência verdadeira, na pluralidade do eu que é um nós, é a reflexividade
que acompanha a arquitetura e a gramática do verbo, é uma polivalência discursiva que
não pode ser contemplada pelo discurso organizado da ciência, da ética e até da estética.
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Escola de Frankfurt, com base nas realizações da pesquisa sociológica. É a partir destes
desenvolvimentos operados com base no saber sociológico que vai esboçar os traços de um
projeto, embora primariamente filosófico, de reformulação de uma teoria social que se distancia
de alguns pontos essenciais do modelo habermasiano, tais como a separação radical entre o
mundo da vida e o sistema e a insuficiente tematização do conflito. Estes desenvolvimentos
ultrapassam a exígua economia deste trabalho, pelo que serão apresentados noutro projeto de
investigação.
Aqui, importa salientar, seguindo o raciocínio de Rocha-Cunha (2015, p. 208) esse grande
rasgo de Habermas, a clara distinção entre o mundo sistémico, que surge como entidade
abstrata que emite normativos imperativos independentes, que possibilitam a sua estabilização
contínua, e o mundo social da vida dos humanos e humanas, que implica interpretações e
justificações. Daqui resulta a tese habermasiana de que existe uma relação interna entre sentido
e validade, tese que possui uma evidente importância política, uma vez que o consenso
estabelecido pelas pessoas tem sempre na sua base, não um simples acordo empírico e
circunstancial – como aconteceria se a ação humana fosse apenas orientada por interesses
instrumentais –, mas um acordo esclarecido pela razão, onde “são os próprios atores que buscam
o consenso e o submetem aos critérios da verdade, da justeza e da veracidade” (HABERMAS,
[1981] 1999, p. 144), numa relação em que importa o mundo objetivo, o mundo subjetivo e o
mundo social. E se é certo que quotidiano está cheio de comunicação confusa, a verdade é que,
sublinha Habermas, encontra-se sempre presente a estrutura teleológica da ação, na medida em
que os atores têm de possuir capacidade de projetar fins e de agir em função de objetivos. Ora,
acrescenta Habermas ([1981] 1999, p. 146), “só o modelo estratégico de ação se contenta com
uma explicação dos traços caraterísticos da ação imediatamente orientada para o sucesso”, pois
os outros modelos especificam “as condições sob as quais o ator persegue os seus objetivos –
condições de legitimidade, da auto-apresentação, ou ainda do acordo obtido na comunicação”.
Encontramo-nos assim, como sublinha Rocha-Cunha (2015, p, 208), perante “o ideal regulador
que é a situação linguística ideal, na qual os atores procedem como se todos se encontrassem em
cisrcunstâncias que permitem um diálogo livre e crítico, e que consente igualmente medir e
comparar os factos com o dever ser”.
Habermas ao invés de potenciar a dimensão crítica pela comparação de constituições
sociais histórica e culturalmente específicas, propôs, como vimos, um conjunto de condições
universais da vida humana, com base numa ideia lata de progresso evolutivo na comunicação.
Habermas afastou-se da história de modo a recuperar a base para o otimismo (CALHOUN,
1996, pp. 463-464). Com a pragmática universal fundamenta uma orientação otimista para a
teoria crítica. Habermas transpôs para o seu trabalho seguinte sobre a ação comunicativa o
potencial inacabado do projeto iluminista. Ensaiar a resposta àquele ceticismo, “mediante a
reconciliação entre a consciência individual capaz de pensar a monstruosidade e a consciência
social que, a segrega e renova pela aparência, tem sido a tarefa habermasiana” (ROCHA-
CUNHA, 2008, p. 239). Habermas acredita que as perspetivas sociológica, psicológica e
filosófica podem unir-se através da linguagem, se esta for considerada como sistema autónomo,
uma vez que a racionalidade comunicacional não isenta nenhum requisito de validade de
possível exame crítico, dado que só na comunicação humana se podem cumprir requisitos de
validade.
Considerações finais
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Autor(a) para correspondência: Paulo Vitorino Fontes, Vereda de Baixo, 59, Fenais da Luz, 9545-261 Ponta
Delgada, Açores, Portugal. [email protected]
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