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Griot : Revista de Filosofia, Amargosa - BA, v.20, n.1, p.

277-288, fevereiro, 2020 ISSN 2178-1036


https://doi.org/10.31977/grirfi.v20i1.1356
Recebido: 31/08/2019 | Aprovado: 25/11/2019
Received: 08/31/2019 | Approved: 11/25/2019

A REFLEXÃO EPISTEMOLÓGICA DE HABERMAS E A SUA


PROPOSTA DE RACIONALIDADE COMUNICATIVA
Paulo Vitorino Fontes1
Universidade de Minho
Universidade de Évora
https://orcid.org/0000-0002-1443-6820
E-mail: [email protected]

RESUMO:
Jürgen Habermas é um pensador moderno que nos apresenta uma racionalidade capaz de criar espaços de liberdade
que correspondem aos ideais de emancipação social que sempre cruzaram o horizonte da modernidade ocidental.
Através de vários estudos deste autor, incluindo contributos críticos à sua teoria, iremos desenvolver a sua reflexão
epistemológica e a sua relevante contribuição para a renovação da teoria crítica alemã. Começaremos por
apresentar a sua crítica ao positivismo, para depois convocar a disputa que protagonizou com Gadamer em torno
da hermenêutica. Habermas adota a hermenêutica, ainda que com algumas críticas, como facilitadora de
autorreflexão que permita revelar às ciências sociais os erros quer da ciência social objetivista, quer da análise
vulgar da linguagem. Segue-se a perspetiva deste pensador acerca dos interesses que orientam o conhecimento e,
por fim, empreenderemos uma abordagem à teoria da racionalidade comunicativa, que afirma o otimismo
universalista de Habermas, assente num saudável pluralismo que permite o consenso humano.

PALAVRAS-CHAVE: Habermas; Teoria crítica; Racionalidade comunicativa.

THE EPISTEMOLOGICAL REFLECTION OF HABERMAS AND


THEIR PROPOSAL OF COMUNICATIVE RACIONALITY
ABSTRACT:
Jürgen Habermas is a modern thinker who presents us with a rationality capable of creating spaces of freedom that
correspond to the ideals of social emancipation that have always crossed the horizon of Western modernity.
Through several studies by this author, including critical contributions to his theory, we will develop his
epistemological reflection and his relevant contribution to the renewal of German critical theory. We will begin by
presenting his critique on positivism, and then summoning the dispute with Gadamer about hermeneutics.
Habermas adopts hermeneutics, albeit with some criticism, as a facilitator of self-reflection that allows revealing to
social sciences the errors of both objectivist social science and vulgar analysis of language. We will follow this
thinker's perspective on the interests that guide knowledge and, finally, we will take into account his theory of
communicative rationality, which stresses Habermas's universalist optimism, based on a healthy pluralism that
allows human consensus.

KEYWORDS: Habermas; Critical theory; Comunicative rationality.

1 Doutor em Teoria Jurídico-Política e Relações Internacionais pela Universidade de Évora – Évora - Portugal. Membro
colaborador do Centro de Investigação em Ciência Política das Universidades do Minho e de Évora – Portugal.
FONTES, Paulo Vitorino. A reflexão epistemológica de Habermas e a sua proposta de racionalidade comunicativa. Griot :
Revista de Filosofia, Amargosa – BA, v.20, n.1, p.277-288, fevereiro, 2020.

Artigo publicado em acesso aberto sob a licença Creative Commons Attribution 4.0 International License.
Griot : Revista de Filosofia, Amargosa - BA, v.20, n.1, p.277-288, fevereiro, 2020 ISSN 2178-1036

Introdução

Jürgen Habermas, filósofo e sociólogo alemão contemporâneo, nascido em 1929, é


considerado por muitos como o principal herdeiro da Escola de Frankfurt. Tentou ultrapassar o
pessimismo dos seus antecessores quanto às possibilidades de realização do projecto de
modernidade, inspirado no Iluminismo. Com vasta obra publicada afirma-se como um dos mais
influentes pensadores da atualidade.
O presente trabalho tem por objetivo apresentar, através de pesquisa e análise
bibliográfica, uma abordagem à obra de Jürgen Habermas na sua contribuição epistemológica,
de grande importância nas ciências sociais em geral e na teoria crítica em particular. Baseado na
obra de Habermas e de seus estudiosos e estudiosas, pretende revelar aspetos mais significativos
da sua contribuição tanto para a teoria do conhecimento, mais concretamente para a
epistemologia, como para a renovação dos paradigmas críticos, na área da filosofia social e
política.
A abordagem aqui apresentada está estruturada em quatro partes: a primeira procura
apresentar a crítica de Habermas ao positivismo; a segunda apresenta alguns dos aspetos mais
significativos do debate entre Gadamer e Habermas em torno da hermenêutica; seguindo-se a
perspetiva deste pensador acerca dos interesses do conhecimento e, por fim, a quarta parte
empreende uma abordagem à teoria da racionalidade comunicativa, que contribui
significativamente para a renovação da teoria crítica da Escola de Frankfurt.

Crítica ao Positivismo

A Associação de Sociologia Alemã promoveu um debate em 1961 acerca do positivismo


na sociologia e da dialética como modelos explicativos nas ciências sociais. Este debate entre
Karl Popper, influenciado pelos membros do Círculo de Viena e Theodor Adorno, representante
da Escola de Frankfurt, juntamente com Max Horkheimer, ambos formuladores da teoria
crítica, veio a tornar-se importante no percurso de Jürgen Habermas.
Em primeiro lugar impõem-se destacar a oposição radical da teoria crítica, associada à
Escola de Frankfurt, em relação à teoria tradicional. A sociologia positivista ao tratar a
realidade social como se fosse um dado natural, externo e autónomo em relação ao sujeito
cognoscente (SAMPAIO, 1998), aceita o existente como o possível, não criticando o mundo tal
como ele nos é apresentado. A racionalidade científica, pretendendo ser neutra em relação aos
valores, afastou da sua análise todas as questões tidas como subjetivas e irracionais, não pondo
em causa nem criticando os fins. Por sua vez, a teoria crítica tem o seu enfoque na “exploração
do mundo social para além das dimensões que são dadas como adquiridas” (CALHOUN, 1996,
p. 447), integrada na consciência contemporânea de uma qualquer época, a teoria crítica
“procura reflectir sobre os factores sociais que estão na génese da formação da teoria, bem como
sobre o papel da teoria ao nível da constituição da realidade social e na eleição dos fins
orientadores da sociedade” (SAMPAIO, 1998, p. 2). Torna-se evidente a contradição entre
positivismo e teoria crítica.
A Escola de Frankfurt com influências de Marx e Hegel, entre outros autores, tem como
ponto de partida o todo social como rede de contradições (SAMPAIO, 1998). Defende que a
sociologia deve valer-se da dialética e não apenas do método hipotético-dedutivo de natureza
empírica. Habermas fazendo parte da segunda geração daquela escola, substitui os conceitos
marxistas de forças e de relações de produção, conceitos chave da dialética social de Marx, pelos
de trabalho (envolvendo este da mesma maneira a ação instrumental e a escolha racional) e de
interação simbolicamente mediada ou ação comunicativa (THERBORN, 1996, p. 58). Ao

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distinguir diferentes tipos de ação e de interesses de conhecimento, como veremos mais à frente,
afirma a perspetiva de conflito entre o mundo do quotidiano e o sistema social.
Influenciado pela fenomenologia de Husserl, considera objetivista a atitude que
“relaciona ingenuamente os enunciados teóricos com os estados das coisas”. Tal atitude
considera as proposições teóricas como representantes das relações entre grandezas empíricas,
como algo existente em si mesmo e, analogamente,

suprime o enquadramento transcendental dentro do qual apenas se constitui o sentido


de tais proposições. Logo que se entende que as proposições são relativas ao sistema de
referência previamente nelas posto, a ilusão objectivista desfaz-se e liberta o olhar para
um interesse que dirige o conhecimento. (HABERMAS, 1968, p. 136)

Assim, prossegue o autor, “a repressão do interesse continua ainda a fazer parte desse
mesmo interesse”.
Como se verifica, a crítica de Habermas ao positivismo afirma a impossibilidade de
separação do sujeito do objeto nas ciências sociais, o que invalida o ideal de objetividade do
naturalismo e conflui numa análise dos interesses do conhecimento, o que será posteriormente
objeto de análise neste trabalho. A observação em ciências sociais nunca é uma observação pura,
pois o cientista observa com base em normas, valores, contextos e conceitos aprendidos. Esta
relação de circularidade entre o sujeito e o objeto do conhecimento vem abalar o ideal clássico de
objetividade (SAMPAIO, 1998) e justificar a teoria crítica: “As representações ou descrições
nunca são independentes de padrões. E a escolha de tais padrões baseia-se em atitudes que
necessitam de avaliação crítica mediante argumentos, porque não se podem nem derivar
logicamente nem comprovar de modo empírico” (HABERMAS, 1968, p. 141).
Outra lacuna do positivismo consiste em negligenciar a dimensão intencional da ação. A
sociologia positivista procura sobretudo regularidades empíricas comportamentais, com vista à
obtenção de generalizações, pretendendo um saber útil tecnicamente. Por sua vez, a teoria
dialética da sociedade deve analisar e compreender o sentido e consciência dos agentes sociais.
Habermas apoia-se na Hermenêutica ao valorizar o questionamento e a crítica com vista à
autocompreensão dos grupos sociais (SAMPAIO, 1998).
Uma terceira insuficiência do positivismo reside na relação entre factos e valores, um
tema clássico na sociologia. Para os positivistas não deve existir esta relação, pois são esferas
completamente distintas, visto que a ciência se limita a descrever a realidade e não deve emitir
prescrições ou juízos de valor. Reduzido à análise das regularidades empíricas subscreve uma
racionalidade instrumental (conceito weberiano) que ao racionalizar os meios não racionaliza os
fins, não põem em causa as normas e os valores. Esta racionalidade para Habermas pode ter
consequências perversas, em que o irracionalismo em relação aos valores pode conduzir a
situações extremas como foi o caso do nazismo alemão.
“Na perspectiva de Habermas, todo o conhecimento deveria ser interpretado tendo em
atenção os interesses que levaram os actores a produzi-lo” (CALHOUN, 1996, p. 473). Sempre
que um teórico analisasse uma teoria deveria localizar a relação entre os interesses formadores
do conhecimento que conduziram à produção teórica, bem como as condições históricas dentro
das quais a teoria fora produzida e o conteúdo epistémico dessa mesma teoria. Habermas, à
semelhança dos teóricos de Frankfurt que o precederam, apoiou-se em Marx e em Freud no
desenvolvimento de uma conceção de crítica capaz de estabelecer o modo como o conhecimento
objetivo se poderia relacionar com a intersubjetividade e com a capacidade para a ação
(Calhoun, 1996, p.461). Assim, como a psicanálise possibilita uma relação intersubjetiva, em que
o médico e o paciente anulam as barreiras à comunicação e tornam possíveis à compreensão e
controlo consciente das motivações previamente reprimidas. Da mesma forma, a teoria crítica

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constitui um empreendimento intersubjetivo e comunicativo, que deverá realizar esta tarefa


numa sociedade que esta, de forma análoga, incapaz de reconhecer as verdadeiras fontes da sua
história (Calhoun, 1996, p. 461).
A racionalidade habermasiana ultrapassa o limite da ciência empírica, expandindo-se a
todos os processos argumentativos e comunicativos dirigidos ao consenso intersubjetivo. A
comunicação assume o papel de especial relevo da racionalidade não só ao nível das escolhas e
práticas, mas também ao nível da ciência empírica, pois o sujeito parte sempre de pressupostos
na compreensão da realidade.
Habermas preocupado com a mudança estrutural da esfera pública, muito longe do
modelo de espaço público burguês do século XVIII, considera que esta tem decaído até aos
nossos dias. O discurso na esfera pública era baseado na argumentação racional-crítica, em que
independentemente da identidade dos seus proponentes ou oponentes, o melhor argumento era
decisivo (CALHOUN, 1996, p. 461). A esfera pública oferecia um modelo de comunicação
pública que poderia, em potência, realizar o ideal de orientação racional da sociedade.
A esfera pública do século XVIII era elitista e há medida que um maior número de
cidadãos foi incorporado nesta e na opinião pública, a par com a intervenção dos governos na
economia, com o protagonismo das multinacionais e com o surgimento dos Estados-providência,
as decisões políticas e sociais foram se afastando cada vez mais da esfera pública (CALHOUN,
1996, p. 462-463). Habermas, da mesma forma que os seus antecessores da Escola de Frankfurt,
nomeou o fenómeno da comunicação mediática na sociedade de massas, juntamente com a
quebra da diferenciação entre sociedade e Estado devido à “sociedade administrada”, como as
mais significativas transformações ocorridas nas estruturas da esfera pública.
Enquanto Horkheimer e Adorno deram ênfase às contradições e à negatividade da
modernidade, sem no entanto projetarem uma alternativa melhor, ainda que utópica
(THERBORN, 1996, p. 53), Habermas não se reteve no pessimismo dos seus predecessores,
tentou fundamentar a sua crítica não nos desenvolvimentos históricos e na alteridade de
contextos, mas na definição de condições universais da vida humana baseadas numa evolução
na comunicação. Com a pragmática universal fundamenta uma orientação otimista para a
teoria crítica (CALHOUN, 1996, p. 464). Habermas transpôs para o seu trabalho seguinte sobre
a ação comunicativa o potencial inacabado do projeto iluminista da modernidade.
Habermas adota a Hermenêutica, ainda que com algumas críticas, como facilitadora de
autorreflexão que permita revelar às ciências sociais os erros quer da ciência social objetivista,
quer da análise vulgar de linguagem (HEKMAN, 1986, p. 188). No entanto, Habermas não
deixa de afirmar que a perspetiva hermenêutica apresenta limitações para as ciências sociais,
como a seguir é posto em evidência.

Crítica à Hermenêutica

Para além do já apresentado debate em torno do positivismo, outro não menos


importante para a epistemologia e para o estudo das ciências sociais, constituiu uma
centralidade na vida académica alemã durante uma década: o debate entre Gadamer e
Habermas em torno da Hermenêutica. Convém referir que são mais os pontos que unem do que
aqueles que separam os dois autores, ambos partilham uma orientação fundamental: a crítica da
razão instrumental. Habermas considera a perspetiva hermenêutica superior à análise
witgensteiniana da linguagem e à fenomenologia (HEKMAN, 1986, p. 187). A hermenêutica
introduz uma dimensão de análise que faltava: a historicidade e a autorreflexividade, útil para
as ciências sociais porque revela os erros da ciência objetivista e da análise comum da
linguagem.

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Habermas realça, no entanto, importantes limitações na aplicação da perspetiva


hermenêutica às ciências sociais. Esta permanece incompleta ao não incluir a reflexão sobre os
limites da própria compreensão hermenêutica (HEKMAN, 1986, p. 188-189). Habermas recusa
a pretensão de Gadamer de universalidade da compreensão hermenêutica, afirmando que existe
algo para além do “diálogo que nós somos”. Enquanto Gadamer reafirma que esse diálogo
estabelece o limite da nossa compreensão. Para Habermas a compreensão hermenêutica deverá
ser o primeiro passo na compreensão, mas não o último. Para Gadamer, na esteira de
Wittgenstein, a linguagem não é só nem acima de tudo um sistema de signos ou representações
que de alguma forma representa objetos, mas uma expressão do modo humano de “estar no
mundo” (GIDDENS, 1996, p. 74).
Gadamer afirma e define o preconceito como um elemento universal de compreensão e,
que mesmo depois da análise hermenêutica, os preconceitos permanecem preconceitos.
Habermas opõe-se na medida em que uma vez que o preconceito se torna transparente, este não
necessita de continuar a ser considerado como preconceito. Os preconceitos, para Gadamer, são
pressupostos do conhecimento, tornando-o possível, mediante o recurso ao modelo da fusão de
horizontes. Porque sempre que o sujeito cognoscente se abre ao objeto, mesmo sendo o objeto
um outro sujeito, na fusão de dois horizontes diferentes, os preconceitos de cada sujeito são
postos à prova, podendo ser corrigidos e até abandonados no decurso da abertura ao outro. De
acordo com Sampaio (1998), a noção de fusão de horizontes é no mínimo interessante, encerra
em si mesmo uma teoria consensual de verdade, ao mesmo tempo que rejeita o objetivismo e
constitui uma alternativa ao relativismo radical.
Seguindo a análise de Hekman (1986, p. 189-194), a objeção de Habermas à construção
teórica sobre o preconceito ultrapassa a perspetiva metodológica, focalizando o âmago da
abordagem de Gadamer: a sua avaliação do pensamento iluminista. A falha de Gadamer é não
admitir a tradição de modernidade que começou com o iluminismo. Mais concretamente,
Gadamer recusa o elemento do iluminismo mais significativo para Habermas: “a pretensão de
que a razão pode emancipar os seres humanos tanto do preconceito como das forças de
dominação”. Gadamer apresenta a universalidade da hermenêutica contra a pretensão de
Habermas ao apresentar a possibilidade de transcender os preconceitos que pré-formam a nossa
consciência.
Noutros níveis do debate em torno da Hermenêutica, a objeção básica de Habermas à
posição de Gadamer é que ela impossibilita a crítica. Este último recusa completamente tal
objeção, afirmando o trabalho principal da Hermenêutica como a separação dos preconceitos
verdadeiros e falsos. Entende-se que mais do que uma discussão sobre a existência da razão
crítica, o que está em causa é a sua definição e os seus limites (HEKMAN, 1986, p. 195).
Gadamer focaliza a nossa capacidade crítica no seio da história, em que a historicidade torna
possível e expande a nossa compreensão. Por sua vez Habermas vê a historicidade como
limitadora da nossa compreensão e tenta remover da história o interesse emancipatório.
Gadamer situa a reflexão crítica hermenêutica como a análise da linguagem vulgar, não
compreendendo Habermas quando este afirma a possibilidade de comunicação fora da
linguagem vulgar. Outra crítica relacionada à teoria de Habermas põe em causa o paralelo entre
a teoria social e a psicanálise. Para Gadamer, ao contrário do psicanalista, o teórico social não
deixa de fazer parte da sociedade e, por conseguinte, não pode ver de fora como o psicanalista
faz com o seu paciente.
Habermas considera a hermenêutica como um primeiro momento imprescindível no
método de compreensão das ciências sociais, ao contrário da posição de Gadamer, que afirma a
hermenêutica como uma análise da natureza fundamental da compreensão humana (HEKMAN,
1986, p. 196). Segundo Giddens (1996, p. 75), as ciências sociais para Habermas são tanto

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hermenêuticas como nomológicas (quase naturalistas), em que a teoria crítica vem


obrigatoriamente complementar estas perspetivas.
Habermas declara as falhas do positivismo e da hermenêutica, ao privilegiarem um certo
tipo de conhecimento e ao suprimirem outros tipos. O positivismo tenta reduzir o conhecimento
ao modelo das ciências empírico-analíticas e a hermenêutica, privilegiando as ciências histórico-
hermenêuticas, não considera devidamente a atenção aos fatores extralinguísticos que
perturbam a compreensão nem às relações de dominação que afetam a comunicação
intersubjetiva (SAMPAIO, 1998). Com a intenção de projetar a concepção das ciências sociais
resultante desta crítica, Habermas apresenta uma doutrina dos interesses do conhecimento.

Os interesses do conhecimento

Habermas divide os processos de investigação em três categorias, demonstrando a


conexão entre elas de regras lógico-metódicas e interesses que orientam o conhecimento
(HABERMAS, 1968, p. 136). Este trabalho deve ser feito por uma teoria crítica da ciência,
como afirma o Autor, de forma a evitar as armadilhas do positivismo.
O primeiro interesse do conhecimento é o interesse técnico, que congrega as ciências
empírico-analíticas. Estas ciências atuam segundo o modelo hipotético-dedutivo, estabelecendo
regras para a construção e aplicação de teorias à realidade, mas também, como afirma
Habermas no mesmo texto atrás citado, para a sua comprovação crítica. O saber empírico
apresenta-se como um saber prognóstico possível, em que os factos e as relações entre eles são
apreendidos descritivamente. Importa salientar, segundo o autor, que “os factos relevantes nas
ciências experimentais só se constituem como tais mediante uma organização prévia da nossa
experiência, no círculo de funções da acção instrumental” (HABERMAS, 1968, p. 138). O
interesse técnico diz respeito à relação entre o homem e a natureza, ao domínio da natureza
hostil, inscrevendo-se no domínio do trabalho, contribui para a autoconservação do homem. A
oposição de Habermas é contra a absolutização do modelo empírico-analítico operada pelo
positivismo.
As ciências histórico-hermenêuticas situam-se noutro enquadramento metodológico,
remetendo para o interesse prático, onde “nem as teorias estão já construídas de modo dedutivo,
nem as experiências se encontram organizadas em vista do êxito das operações. Em vez da
observação, é a compreensão de sentido que abre o acesso aos factos” (HABERMAS, 1968, p.
138). Aqui devem ser seguidas as regras da hermenêutica de forma a possibilitar os enunciados.
O interesse prático não se insere na racionalidade instrumental, mas sim na racionalidade
comunicativa, no domínio da interação social, com o objetivo do entendimento intersubjetivo,
do “possível consenso dos agentes no âmbito de uma autocompreensão transmitida”
(HABERMAS, 1968, p. 139).
Estes dois interesses do conhecimento acima mencionados inserem-se na distinção
clássica entre ciências empíricas e ciências humanas. Ora, para Habermas (1968, p. 139), as
“ciências da ação sistemáticas”, como sejam a economia, a sociologia e a política, tendo como
objetivo semelhante às ciências empíricas a produção de saber nomológico, como ciências
críticas que são, não se devem contentar com isso. Devem estar ao serviço da emancipação do
homem, face às forças da natureza e à opressão do homem pelo homem. Estamos perante o
terceiro interesse do conhecimento: o interesse emancipatório. Aqui Habermas aplica o modelo
da psicanálise, influenciado por Freud, à teoria social. Da mesma forma que o paciente se pode
libertar pela consciência da sua patologia, mediante a reflexão que ponha fim a uma
comunicação sistematicamente distorcida, o indivíduo pode-se libertar da opressão. O
enquadramento metodológico que avalia a validade desta categoria de investigação avalia-se

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pelo conceito de auto-reflexão. “Esta liberta o sujeito da dependência de poderes hipostasiados.


A auto-reflexão está determinada por um interesse emancipatório do conhecimento. As ciências
de orientação crítica partilham-no com a filosofia” (HABERMAS, 1968, p. 140).
Podemos afirmar que às três grandes dimensões da socialização: o trabalho, a linguagem
e a dominação, correspondem os três interesses do conhecimento. Habermas, para além da
crítica ao positivismo e à hermenêutica, procura reabilitar os ideais do Iluminismo, afirmando a
razão na sua dimensão crítica e emancipatória. Com base na filosofia da linguagem e, mais
concretamente, através da teoria da comunicação é que Habermas irá superar as suas
dificuldades epistemológicas.

Racionalidade comunicativa

A Teoria da Ação Comunicativa de Habermas (1981) tem como pretensão desenvolver


uma avaliação crítica das formas de vida e das épocas concretas na sua totalidade, sem projetar
normas concedidas por qualquer filosofia da história. Assim se deu uma clara evolução: é a
ambição de uma ciência crítica da sociedade, em particular da sua estrutura comunicacional,
que serve de base daí em diante para constituir um saber evolutivo da história, criado como
lógica da contradição social. É esta a possibilidade que permite fazer a economia duma filosofia
da história, ainda que pessimista. Habermas não se detêm no impasse da teoria crítica da
primeira geração, abre novas perspetivas para a direção da praxis.
Habermas fazendo parte da segunda geração da Escola de Frankfurt, substitui os
conceitos marxistas de forças e de relações de produção, conceitos chave da dialética social de
Marx, pelos de trabalho (envolvendo este da mesma maneira a ação instrumental e a escolha
racional) e de interação simbolicamente mediada ou ação comunicativa (THERBORN, 1996, p.
58). Ao distinguir diferentes tipos de ação e de interesses de conhecimento afirma a perspetiva de
conflito entre o mundo do quotidiano e o sistema social.
A racionalidade habermasiana ultrapassa o limite da ciência empírica, expandindo-se a
todos os processos argumentativos e comunicativos dirigidos ao consenso intersubjetivo. A
comunicação assume o papel de especial relevo da racionalidade não só ao nível das escolhas e
práticas, mas também ao nível da ciência empírica, pois o sujeito parte sempre de pressupostos
na compreensão da realidade.
Para Habermas a sociedade apresenta-se em duas dimensões, ou dois mundos que se
interpelam: o mundo do sistema e o mundo da vida. O mundo do sistema (System) divide-se em
dois subsistemas: economia e administração; caracteriza-se pela organização estratégica da
economia e da política, constituindo a macroestrutura na qual se organizam as formas de
trabalho e de interação. No sistema predomina a racionalidade instrumental, onde a lei serve
para racionalizar e legitimar o sistema. Por sua vez, o mundo da vida (Lebenswelt) representa a
cultura, a personalidade e a sociedade. Caracteriza-se pela vida do quotidiano onde o processo
comunicativo se desenvolve, onde as relações intersubjetivas se desenrolam. A sua reprodução é
feita na medida em que cumpre estas três funções que transcendem a perspetiva do ator: a
propagação de tradições orais; a integração de grupos por normas e valores e a socialização das
gerações vindouras (HABERMAS, 1990, p. 279). O Mundo da vida é constituído pelo conjunto
de sentidos que permite interpretar e atuar sobre o mundo, por criações simbólicas que
correspondem a um conhecimento pré-teórico, tais como tradições, objetos de arte, atos de fala
imediatos, estruturas de personalidade e outros conteúdos subjetivos. Assim, para Habermas
([1981] 1992, p. 177) a linguagem e a cultura são elementos constitutivos do mundo da vida.
Este, segundo Silvério Rocha-Cunha (2008, p. 240):

FONTES, Paulo Vitorino. A reflexão epistemológica de Habermas e a sua proposta de racionalidade comunicativa. Griot :
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reúne as referências das descrições, das prescrições, das experiências vividas, numa
dimensão de existência verdadeira, na pluralidade do eu que é um nós, é a reflexividade
que acompanha a arquitetura e a gramática do verbo, é uma polivalência discursiva que
não pode ser contemplada pelo discurso organizado da ciência, da ética e até da estética.

A relação entre estes dois mundos constitui um problema na perspetiva habermasiana,


resultado da racionalidade instrumental e da excessiva burocratização, onde a economia e o
poder constituem-se como verdades naturais que não são questionadas, conduzindo à
colonização do mundo da vida. “Esta desconexão do sistema e do mundo da vida é
experienciada dentro dos mundos da vida modernos como uma coisificação de formas de vida.”
(HABERMAS, 1990, p. 322). Habermas afirma a perspetiva de conflito entre o mundo do
quotidiano e o sistema social, posiciona-se radicalmente contra a universalização da ciência e da
técnica, isto é, contra a penetração da racionalidade científica, instrumental, em esferas de
decisão onde deveria imperar um outro tipo de racionalidade: a racionalidade comunicativa. A
racionalidade comunicativa surge como resposta ao domínio da racionalidade instrumental,
como alternativa à rutura entre o mundo da vida e o sistema. Habermas apresenta a resposta
para esta problemática no paradigma da ação comunicativa.
A ação comunicativa em resposta às teorias socialistas negativas reabre o acesso a uma
esfera de ação emancipatória. No contexto de uma virada linguística em muitos campos das
ciências sociais, Habermas parte do paradigma marxista de produção e cria o paradigma da
própria ação comunicativa. O trabalho como categoria central do marxismo é agora
representado pela linguagem. Para Habermas ([1981] 1999, p. 369) "o entendimento é imanente
como telos na linguagem humana". Isto é, devido ao fato pré-científico de que as pessoas são
treinadas para se comunicar através da linguagem, uma linha de emancipação para a
compreensão já é seguida. Seu objetivo é, portanto, "analisar o conhecimento preventivo dos
falantes competentes, que podem distinguir-se intuitivamente quando tentam exercer influência
sobre os outros e quando se entendem com eles" (HABERMAS, [1981] 1999, p. 369).
Habermas pretende fundamentar o imperativo da emancipação no seio das ciências
sociais, não descrevendo este ideal, mas afirmando os passos de uma teoria da competência
comunicativa, cujo paradigma deveria assentar na liberdade, na crítica e na racionalidade.
Habermas defende uma teoria consensual da verdade, que só pode ser definida através da noção
de discurso (Diskurs), em que este se apresenta sob a forma de diálogo, caracterizado pela
argumentação num contexto de comunicação reflexiva. Para este teórico alemão, a verdade não
é fundamentada na experiência, embora possa ser apoiada por esta, mas sim no seio da
comunicação intersubjetiva. Ainda de acordo com Habermas, só através do processo
argumentativo é que se podem legitimar as pretensões de validade. Sendo que as noções de
consenso, verdade e argumentação e contra argumentação pressupõem uma situação
comunicativa ideal, de forma a evitar falsos consensos; o que apela à plena democracia. Sem
pretender ser utópico, Habermas aponta este caminho como ideal regulador da ação
comunicativa.

A teoria do agir comunicativo estabelece uma relação interna entre praxis e


racionalidade. Ela investiga os pressupostos de racionalidade da praxis comunicacional
quotidiana e eleva o conteúdo normativo do agir orientado para a compreensão mútua à
conceptualidade da racionalidade comunicacional (HABERMAS, 1990, p. 81).

Habermas, empenhado na construção de uma teoria da competência comunicativa,


apresenta a pragmática universal, cuja função “é identificar e reconstruir condições universais
de possível compreensão mútua” (HABERMAS, 1996, p. 9). O tipo fundamental de ação social
constitui-se na sua orientação para o consenso intersubjetivo, o que transporta para

FONTES, Paulo Vitorino. A reflexão epistemológica de Habermas e a sua proposta de racionalidade comunicativa. Griot :
Revista de Filosofia, Amargosa – BA, v.20, n.1, p.277-288, fevereiro, 2020. 284
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determinadas pretensões de validade do processo comunicativo: O sujeito em questão deve


procurar que o seu discurso seja compreensível; compromete-se a dizer a verdade; empenha-se
em adequar a sua atitude às normas existentes que regulam as relações interpessoais e deve ser
sincero (HABERMAS, 1996, p. 12).
Ainda de acordo com Habermas, estes pressupostos de validade estabelecem as
pressuposições indeclináveis de toda a ação comunicativa, ou sejam, as pressuposições da
inteligibilidade, verdade, correção e veracidade. A primeira é intralinguística, a segunda aponta
para a relação existente entre a linguagem e o mundo objetivo, a terceira remete para o plano
intersubjetivo, enquanto a última relaciona a linguagem com a interioridade subjetiva. As três
últimas pretensões de validade correspondem assim às esferas da cognição, da interação e da
expressão subjetiva.
Em que nada está imune à crítica e só se reconhece o melhor argumento, numa situação
comunicativa que não pode ser distorcida por relações de dominação e onde todos devem ter o
direito de acesso ao debate público.
Percebem-se várias finalidades na obra de Habermas, ao desenvolver a teoria da ação
comunicativa, baseada na argumentação e contra argumentação, na intersubjetividade e na
procura de validade e consenso no seio da comunicação. Habermas pretende reabilitar a razão
moderna através do recurso ao paradigma da comunicação. Pretende estabelecer um diálogo
racional entre o mundo da vida e o sistema, segundo Pilar Damião de Medeiros (2010),
contribuindo para a emergência de uma esfera pública autêntica e para a revitalização da
sociedade civil das sociedades pós-industriais.
Não podemos deixar de fazer referência, de uma forma geral, às críticas a Habermas.
Uma delas prende-se com a impossibilidade de alcançar um diálogo sem dominação quando
temos atores sociais com capitais culturais e políticos diferenciados. Existem autores como
Edward P. Thompson ([1963] 1988) que criticam a tese de Habermas por ser demasiado
idealista e de não considerar o papel dos media não sistémicos que surgem como reação à
colonização do sistema. Franz Hinkelammert, por seu turno, na sua obra Crítica a la razón
utópica (1990) ao criticar os pressupostos do pensamento soviético e as teorias formais de uma
forma geral, inclui a crítica a Habermas.
Habermas ao abandonar a expressividade particular da vida concreta, com vista à
formulação normativa de uma Ética do Discurso, é criticado por alguns teóricos como tendo
conduzido ao empobrecimento cultural, na medida em que extrapola a forma de vida ocidental.
Pensadores como Alasdair MacIntyre (2006) e Charles Taylor (1989) criticam a ética discursiva
de Habermas por dar prioridade ao justo sobre o bem. Suas críticas partem da consideração de
que os agentes morais são condicionados social e historicamente e agem por várias motivações
que não só a consideração imparcial de todos os indivíduos. Por outro lado, estes autores
afirmam que a escolha de determinadas condições que possibilitam a validade das normas
morais vincularia a ética habermasiana a um ethos particular, com os seus valores a serem
constituídos num processo histórico específico e que não podem ser considerados universais. A
acusação de que a ética discursiva afasta para segundo plano as questões da vida boa, sem se
aperceber de que ela própria é baseada numa noção de bem lança dúvidas sobre a prioridade do
justo proposta por Habermas.
Partindo de objeções como esta, Axel Honneth ([1992] 2011) pretende reformular a
teoria crítica nos termos de uma teoria social do reconhecimento. A teoria do reconhecimento,
baseando-se no paradigma habermasiano da comunicação e no legado hegeliano e marxista da
teoria crítica, propõe um modelo original de articulação, na forma de “dependência mútua”
entre uma filosofia social fundada normativamente e uma sociologia convidada a apresentar
estas normas à verificabilidade dos factos. Honneth examina de forma crítica a tradição da

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Escola de Frankfurt, com base nas realizações da pesquisa sociológica. É a partir destes
desenvolvimentos operados com base no saber sociológico que vai esboçar os traços de um
projeto, embora primariamente filosófico, de reformulação de uma teoria social que se distancia
de alguns pontos essenciais do modelo habermasiano, tais como a separação radical entre o
mundo da vida e o sistema e a insuficiente tematização do conflito. Estes desenvolvimentos
ultrapassam a exígua economia deste trabalho, pelo que serão apresentados noutro projeto de
investigação.
Aqui, importa salientar, seguindo o raciocínio de Rocha-Cunha (2015, p. 208) esse grande
rasgo de Habermas, a clara distinção entre o mundo sistémico, que surge como entidade
abstrata que emite normativos imperativos independentes, que possibilitam a sua estabilização
contínua, e o mundo social da vida dos humanos e humanas, que implica interpretações e
justificações. Daqui resulta a tese habermasiana de que existe uma relação interna entre sentido
e validade, tese que possui uma evidente importância política, uma vez que o consenso
estabelecido pelas pessoas tem sempre na sua base, não um simples acordo empírico e
circunstancial – como aconteceria se a ação humana fosse apenas orientada por interesses
instrumentais –, mas um acordo esclarecido pela razão, onde “são os próprios atores que buscam
o consenso e o submetem aos critérios da verdade, da justeza e da veracidade” (HABERMAS,
[1981] 1999, p. 144), numa relação em que importa o mundo objetivo, o mundo subjetivo e o
mundo social. E se é certo que quotidiano está cheio de comunicação confusa, a verdade é que,
sublinha Habermas, encontra-se sempre presente a estrutura teleológica da ação, na medida em
que os atores têm de possuir capacidade de projetar fins e de agir em função de objetivos. Ora,
acrescenta Habermas ([1981] 1999, p. 146), “só o modelo estratégico de ação se contenta com
uma explicação dos traços caraterísticos da ação imediatamente orientada para o sucesso”, pois
os outros modelos especificam “as condições sob as quais o ator persegue os seus objetivos –
condições de legitimidade, da auto-apresentação, ou ainda do acordo obtido na comunicação”.
Encontramo-nos assim, como sublinha Rocha-Cunha (2015, p, 208), perante “o ideal regulador
que é a situação linguística ideal, na qual os atores procedem como se todos se encontrassem em
cisrcunstâncias que permitem um diálogo livre e crítico, e que consente igualmente medir e
comparar os factos com o dever ser”.
Habermas ao invés de potenciar a dimensão crítica pela comparação de constituições
sociais histórica e culturalmente específicas, propôs, como vimos, um conjunto de condições
universais da vida humana, com base numa ideia lata de progresso evolutivo na comunicação.
Habermas afastou-se da história de modo a recuperar a base para o otimismo (CALHOUN,
1996, pp. 463-464). Com a pragmática universal fundamenta uma orientação otimista para a
teoria crítica. Habermas transpôs para o seu trabalho seguinte sobre a ação comunicativa o
potencial inacabado do projeto iluminista. Ensaiar a resposta àquele ceticismo, “mediante a
reconciliação entre a consciência individual capaz de pensar a monstruosidade e a consciência
social que, a segrega e renova pela aparência, tem sido a tarefa habermasiana” (ROCHA-
CUNHA, 2008, p. 239). Habermas acredita que as perspetivas sociológica, psicológica e
filosófica podem unir-se através da linguagem, se esta for considerada como sistema autónomo,
uma vez que a racionalidade comunicacional não isenta nenhum requisito de validade de
possível exame crítico, dado que só na comunicação humana se podem cumprir requisitos de
validade.

Considerações finais

A reflexão epistemológica de Habermas pretende superar o pessimismo da Escola de


Frankfurt e o perigo da racionalidade instrumental, já anteriormente enunciado por Max

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Weber. Envolvido no debate em torno do positivismo na sociologia alemão, revela-se um crítico


declarado do paradigma positivista nas ciências sociais. No entanto, não podemos afirmar
Habermas como um inimigo da objetividade e da investigação empírica, opõe-se sim a uma
interpretação positivista daquela, que impede a sociologia de se afirmar como teoria crítica da
sociedade.
Habermas opõe-se à concepção instrumental da sociologia, bastante presente desde o
nascimento desta ciência, quando esta pretende reproduzir a ordem social, através do
conhecimento que produz com vista aos fins previamente dados pelo sistema social. Pelo
contrário, procurando refletir sobre os fins, defende com grande intensidade a vocação crítica da
sociologia, numa relação umbilical com a filosofia.
A reflexão epistemológica de Habermas procura ultrapassar as insuficiências do
objetivismo e do relativismo, apoiando-se no paradigma hermenêutico, procura uma solução
para a emancipação social.
Explorando novas formas de organização da sociedade, procura a emancipação humana,
inspira-se no ideal iluminista ao afirmar a racionalidade comunicativa em detrimento da
racionalidade instrumental. Como alternativa à colonização do mundo da vida pelo sistema,
Habermas propõe a teoria da ação comunicativa, fundamentada nos pressupostos universais da
linguagem e no potencial dos indivíduos, na tentativa de alcançar um consenso intersubjetivo.
Habermas pretende estabelecer um diálogo racional entre o mundo da vida e o sistema,
contribuindo para a emergência de uma esfera pública autêntica.

FONTES, Paulo Vitorino. A reflexão epistemológica de Habermas e a sua proposta de racionalidade comunicativa. Griot :
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Referências

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Autor(a) para correspondência: Paulo Vitorino Fontes, Vereda de Baixo, 59, Fenais da Luz, 9545-261 Ponta
Delgada, Açores, Portugal. [email protected]

FONTES, Paulo Vitorino. A reflexão epistemológica de Habermas e a sua proposta de racionalidade comunicativa. Griot :
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