Justiça e Democracia - John Rawls-238-280
Justiça e Democracia - John Rawls-238-280
Justiça e Democracia - John Rawls-238-280
II
Existem, obviamente, várias maneiras de compreender
o que se entende por filosofia política, e em diferentes épo-
cas, diante de circunstâncias políticas e sociais diferentes,
essa tarefa foi encarada de maneira diferente. Desejo mos-
trar que a teoria da justiça como eqüidade é uma concepção
da justiça válida para uma democracia que é, ao mesmo tem-
po, bastante sistemática e razoável e que oferece uma alter-
nativa para o utilitarismo* que dominou a nossa tradição de
filosofia política. Sua primeira tarefa consiste em propor-
cionar uma base mais segura e mais aceitável para os princí-
pios constitucionais e para os direitos e liberdades básicos
que o utilitarismo parece permitir5. Vejamos agora de onde
vem a necessidade de tal concepção.
4. Essa idéia foi introduzida em TJ, pp. 429 ss, a fim de tornar mais débeis
as condições de uma desobediência civil razoável numa sociedade democrática
quase justa. Neste artigo, aqui e nas seções VI e VII, utilizo-a num contexto mais
amplo.
5. TJ, Prefácio, p. 20.
206 JUSTIÇA E DEMOCRACIA
Na história de qualquer sociedade há períodos, por ve-
zes até mesmo períodos longos, durante os quais certas ques-
tões fundamentais são fonte de ásperas controvérsias políti-
cas que acarretam divisões, e parece então difícil, se não
impossível, encontrar qualquer base comum de acordo polí-
tico. De fato, certas questões podem resistir à análise e não
serem jamais resolvidas por completo. Uma das tarefas da
filosofia política numa democracia é precisamente a de se
interessar por esse tipo de questões e ver se uma base subja-
cente de acordo pode ser descoberta e se é possível estabe-
lecer publicamente um meio mutuamente aceitável de resol-
ver tais problemas. Ou, então, se essas questões não podem
ser completamente resolvidas, a divergência de opinião pode
ser reduzida de maneira suficiente para que se mantenha
uma cooperação política baseada no respeito mútuo6.
O desenvolvimento do pensamento democrático desde
cerca de dois séculos mostrou claramente que não existe
acordo algum sobre a maneira de organizar as instituições
básicas numa democracia caso elas devam especificar e ga-
rantir os direitos e as liberdades básicas dos cidadãos e res-
ponder às reivindicações da igualdade democrática - os
cidadãos sendo concebidos como pessoas* livres e iguais
(como explicam os três últimos parágrafos da seção III).
Existe uma profunda discordância sobre a maneira de efeti-
III
Examinemos agora, sucintamente, algumas das idéias
básicas da teoria da justiça como eqüidade a fim de mostrar
que elas pertencem a uma concepção política da justiça.
Como indiquei, a idéia intuitiva fundamental, aquela que
permite ligar sistematicamente as outras idéias intuitivas
básicas e que as rege, é que a sociedade constitui um siste-
ma eqüitativo de cooperação entre pessoas livres e iguais. A
teoria da justiça como eqüidade tem início numa intuição
que nos parece estar implícita na cultura pública de uma so-
ciedade democrática13. No seu pensamento político e no
contexto da discussão pública das questões políticas, os ci-
dadãos não tratam a ordem social como uma ordem natural
e fixa, nem como uma hierarquia institucional justificada
por valores aristocráticos ou religiosos. É importante subli-
nhar que os diferentes aspectos do mundo e da nossa rela-
13. Ainda que TJ utilize essa idéia desde o começo (ela é introduzida a partir
da p. 4), ali eu não insisto (como faço aqui e no "Kantian Constructivism") no fato
de as idéias básicas da teoria da justiça como eqüidade serem consideradas implí-
citas ou latentes na cultura pública de uma sociedade democrática.
214 JUSTIÇA E DEMOCRACIA
ção com ele apareceriam sob uma luz inteiramente diferente
se fossem examinados por outro ângulo, o da moral pessoal,
por exemplo, ou o dos membros de uma associação, ou o das
nossas doutrinas filosóficas e religiosas. Mas esses diferen-
tes pontos de vista não têm lugar na discussão política.
Podemos precisar a idéia de cooperação social indican-
do três de seus elementos:
1. A cooperação é distinta de uma atividade que fosse
coordenada apenas socialmente, como, por exemplo, as or-
dens emitidas por uma autoridade central. A cooperação é
guiada por regras publicamente reconhecidas e por procedi-
mentos que aqueles que cooperam aceitam e consideram
como regendo sua conduta com toda a razão.
2. A cooperação implica a idéia de que os seus termos
são eqüitativos (fair), de que cada participante pode razoa-
velmente aceitá-los, com a condição de que todos os outros
os aceitem igualmente. Os termos eqüitativos da cooperação
implicam uma idéia de reciprocidade ou de mutualidade.
Todos os que estão envolvidos na cooperação e que desem-
penham o seu papel de acordo com as regras e os procedi-
mentos devem extrair vantagens disso de uma maneira apro-
priada, avaliada por um critério de comparação correto. É a
concepção da justiça política que define os termos eqüitati-
vos da cooperação. Dado que o objeto primeiro da justiça é a
estrutura básica da sociedade, a teoria da justiça como eqüi-
dade os define graças a princípios que precisam os direitos e
os deveres básicos no âmbito das principais instituições da
sociedade e dirigindo suas instituições da justiça do contexto
social* com durabilidade, de modo que as vantagens produ-
zidas pelos esforços de cada um sejam eqüitativamente ad-
quiridas e distribuídas de uma geração para outra.
3. A idéia de cooperação social exige que se tenha uma
idéia da vantagem racional de cada participante, isto é, do
seu bem. Essa idéia do bem especifica aquilo que todos os
i
A TEORIA DA JUSTIÇA COMO EQÜIDADE 215
que estão envolvidos na cooperação procuram atingir, quer
se trate de indivíduos, de famílias, de associações ou mesmo
de Estados-nações, quando se considera o sistema do seu
ponto de vista.
Consideremos agora a idéia de pessoa14. É claro que exis-
tem numerosos aspectos da natureza humana que podem ser
escolhidos, em função do nosso ponto de vista, como sendo
particularmente importantes. Disso dão testemunho expres-
sões como homo politicus, homo faber, e assim por diante. A
teoria da justiça como eqüidade parte da idéia de que a so-
ciedade deve ser concebida como um sistema eqüitativo de
cooperação, e por isso ela adota uma concepção da pessoa
que está de acordo com essa idéia. Desde os gregos, tanto
em filosofia como em direito, o conceito de pessoa foi com-
preendido como o de um ser que pode participar da vida so-
cial ou nela desempenhar um papel e que, portanto, exerce e
respeita diversos direitos e deveres dessa vida social. As-
sim, dizemos que uma pessoa é um cidadão, isto é, um
membro plenamente ativo da sociedade durante toda a sua
vida. Acrescentamos "durante toda a sua vida" porque con-
cebemos a sociedade como um sistema de cooperação mais
ou menos completo e auto-suficiente, deixando espaço para
todas as necessidades e atividades da vida desde o nasci-
mento até a morte. Uma sociedade não é uma associação
com objetivos mais limitados; os cidadãos não se juntam a
14. Seria preciso sublinhar que uma concepção da pessoa, no sentido como
a entendo aqui. é uma concepção normativa, seja ela legal, política ou moral, ou
mesmofilosóficaou religiosa, dependendo da visão de conjunto da qual faz parte.
No caso presente, a concepção da pessoa é moral, partindo de nossa concepção
cotidiana das pessoas como unidades de pensamento, de deliberação e de respon-
sabilidade básica que corresponde a uma concepção política da justiça, e não a
uma doutrina moral abrangente*. E de fato uma concepção política da pessoa* e
portanto, dados os objetivos da teoria da justiça como eqüidade, uma concepção
dos cidadãos. Assim, é preciso distinguir entre uma concepção da pessoa e uma
análise da natureza humana pela ciência da natureza ou pela teoria social. Sobre
esse ponto, ver, neste volume, pp. 75 ss.
216 JUSTIÇA E DEMOCRACIA
ela voluntariamente, mas nascem nela, e para o nosso pro-
pósito pressuporemos que nela devem passar sua vida.
Dado que nos colocamos na tradição do pensamento
democrático, devemos também considerar os cidadãos como
pessoas livres e iguais. A idéia intuitiva básica, aqui, é a de
que, em virtude das suas capacidades morais, assim como
das da razão, do pensamento e do julgamento que a ela es-
tão ligadas, dizemos que essas pessoas são livres. Ademais,
dado que elas possuem essas capacidades na medida neces-
sária para serem membros integrais da sociedade, dizemos
que são iguais entre si15. Podemos explicar essa concepção
da pessoa da seguinte maneira: como as pessoas podem ser
membros integrais de um sistema eqüitativo de cooperação
social, nós lhes atribuímos as duas faculdades morais* que
correspondem à idéia de cooperação social tal como ela foi
descrita mais acima, a saber, ser capaz de um senso da justi-
ça e de uma concepção do bem. O senso da justiça é a capa-
cidade de compreender, aplicar e respeitar nos seus atos a
concepção pública da justiça que caracteriza os termos de
uma cooperação eqüitativa. E ser capaz de uma concepção
do bem é poder formar, revisar e buscar racionalmente uma
concepção de nossa vantagem ou bem. No caso da coopera-
ção social, é preciso não tomar esse bem no sentido estreito,
mas concebê-lo como tudo o que tem valor na vida humana.
É por isso que, em geral, uma concepção do bem consiste
num sistema mais ou menos determinado de fins últimos,
isto é, de fins que queremos concretizar por eles mesmos,
assim como laços com outras pessoas e compromissos em
relação a diversos grupos e associações. Esses laços e esses
compromissos dão origem à afeição e ao devotamento. E
por isso que o desenvolvimento das pessoas e das associa-
ções que são objeto desses sentimentos também faz parte da
IV
Tratarei agora da idéia da posição original*16. Essa idéia
é introduzida para se descobrir qual a concepção tradicional
da justiça ou a variante dessas concepções, que precisa os
princípios mais apropriados para a efetivação da liberdade e
da igualdade - com a condição de tratar a sociedade como
um sistema de cooperação entre pessoas livres e iguais. Com
esse objetivo em mente, vejamos por que introduziríamos a
idéia da posição original e como ela serve a esse objetivo.
Retomemos a idéia de cooperação social. Perguntemo-
nos como os termos eqüitativos da cooperação devem ser
determinados. São eles simplesmente ditados por algum po-
der exterior, distinto das pessoas envolvidas na cooperação?
São eles, por exemplo, ditados pela lei divina? Ou será que
esses termos devem ser reconhecidos como eqüitativos pe-
las próprias pessoas com referência ao seu conhecimento de
uma ordem moral anterior e independente? Por exemplo,
são eles considerados como necessários segundo a lei natu-
ral ou em função de um mundo de valores conhecido por in-
tuição? Ou será que esses termos devem ser estabelecidos
pelas próprias pessoas à luz daquilo que elas consideram
como sua vantagem mútua? Segundo a resposta que dermos,
teremos uma concepção diferente da cooperação.
Dado que a teoria da justiça como eqüidade retoma a
doutrina do contrato social, ela adotará uma variante da res-
posta à última pergunta. Os termos eqüitativos da cooperação
social são concebidos como sendo aqueles sobre os quais se
17. Sobre o véu de ignorância, ver ibidem, seção 24, e o índice remissivo.
220 JUSTIÇA E DEMOCRACIA
ciar um acordo sobre os princípios que devem reger as insti-
tuições da própria estrutura básica desde o momento pre-
sente até o futuro.
Parece que estamos agora diante de uma segunda difi-
culdade. Contudo, ela é apenas aparente. Pelo que acabamos
de dizer, fica claro que a posição original deve ser tratada
como um procedimento de apresentação e que, portanto,
qualquer acordo alcançado pelos parceiros* deve ser consi-
derado ao mesmo tempo hipotético e não histórico. Mas en-
tão, dado que os acordos hipotéticos não criam obrigação,
qual é o significado da posição original?18 A resposta está
18. Essa questão é levantada por Ronald Dworkin na primeira parte do seu
estudo muito esclarecedor, e para mim extremamente instrutivo, "Justice and
Rights" (1973), retomado em Taking Rights Seriously (Cambridge, Mass., Har-
vard University Press, 1977). Dworkin examina várias maneiras de explicar a uti-
lização da posição original numa análise da justiça que invoca a idéia de contrato
social. Na última parte do seu estudo (pp. 173-83), depois de analisar alguns dos
aspectos construtivistas da teoria da justiça como eqüidade (pp. 159-68) e afirmar
que se trata de uma concepção baseada nos direitos e não nos deveres ou nos fins
(pp. 168-77), ele propõe conceber a posição original e o véu de ignorância como
proporcionando um modelo da força do direito natural que impele os indivíduos a
uma preocupação e a um respeito iguais, os quais se exprimem na concepção das
instituições políticas que os governam (p. 180). Ele acha que esse direito natural
está na base da teoria da justiça como eqüidade e que a posição original serve de
procedimento para verificar quais são os princípios de justiça requeridos por esse
direito. E uma sugestão engenhosa, mas não a segui neste artigo. Prefiro não con-
siderar a teoria da justiça como eqüidade como baseada nos direitos. Na realidade,
a classificação de Dworkin entre doutrinas baseadas nos direitos, nos deveres ou
nos fins (pp. 171 ss.) é demasiado estreita e deixa de lado possibilidades importan-
tes. E por isso que considero que a teoria da justiça como eqüidade - o que expli-
quei na seção II - tenta estabelecer uma concepção idealizada de certas idéias
intuitivas, fundamentais, como as da pessoa como ser livre e igual, de uma socie-
dade bem ordenada e do papel público de uma concepção da justiça política, e que
ela vincula essas idéias à idéia ainda mais fundamental e geral da sociedade como
sistema eqüitativo de cooperação através do tempo, de uma geração à seguinte. Os
direitos, os deveres e os fins são apenas elementos desse tipo de concepção ideali-
zada. Assim, a teoria da justiça como eqüidade está de fato baseada em concep-
ções ou, como Elisabeth Anderson me sugeriu, em ideais, já que essas idéias intui-
tivas fundamentais refletem ideais implícitos ou latentes na cultura pública de uma
sociedade democrática. Nesse contexto, a posição original é um procedimento de
apresentação que fornece um modelo da força'não do direito natural com uma preo-
A TEORIA DA JUSTIÇA COMO EQÜIDADE 221
implícita no que eu já disse: ela é dada pelo papel que os di-
versos traços da posição original desempenham na condi-
ção de procedimento de apresentação. Assim, é necessário
que os parceiros estejam situados simetricamente caso os
consideremos como representantes de cidadãos livres e iguais
que devem chegar a um acordo em condições eqüitativas.
Além disso, uma das nossas convicções mais ponderadas é,
creio eu, a seguinte: o dado de ocuparmos uma certa posi-
ção social não é uma razão válida para que aceitemos, ou es-
peremos que outros aceitem, uma concepção da justiça que
favoreça os que ocupam essa posição. Para integrar essa
convicção na posição original, dizemos que os parceiros não
têm o direito de conhecer sua posição social, e a mesma
idéia é estendida a outros casos. Ela é expressa de maneira
figurada dizendo-se que os parceiros se encontram por trás
de um véu de ignorância. Em suma, a posição original é
simplesmente um procedimento de apresentação; ela des-
creve os parceiros - cada um deles sendo responsável pelos
interesses essenciais de uma pessoa livre e igual - como es-
tando numa situação eqüitativa e chegando a um acordo que
está sujeito às restrições referentes àquilo que deve contar
como razão válida nesse caso19.
cupação e um respeito iguais, mas sim dos elementos essenciais dessas idéias intui-
tivas fundamentais que precisam os argumentos em favor dos princípios de justiça
que aceitamos após reflexão. Enquanto procedimento, ela serve primeiro para com-
binar e depois para pôr em evidência a força resultante de todos esses argumentos,
escolhendo os princípios de justiça mais apropriados numa sociedade democrática.
(Desse modo, a força do direito natural estará presente, mas de outra maneira). Essa
análise da utilização da posição original se parece em vários aspectos com a que
Dworkin rejeita na primeira parte de seu estudo, em especial nas pp. 153 ss. Dadas
a ambigüidade e a obscuridade de 77 quanto a alguns pontos que ele examina, não
tenho por objetivo criticar a valiosa análise de Dworkin, mas antes indicar em que
sentido minha interpretação da posição original difere da sua. Algumas pessoas
poderão preferir a análise dele à minha.
19. A posição original fornece um modelo de um traço básico do construti-
vismo* kantiano, a saber, a distinção entre o Razoável* e o Racional*, sendo o
Razoável anterior ao Racional. (Para uma explicação dessa distinção, ver, neste vo-
222 JUSTIÇA EDEMOCRACIA
Ambas as dificuldades que mencionei mais acima são
superadas tratando-se a posição original como um procedi-
mento de apresentação. Essa posição fornece um modelo das
condições, na nossa opinião, eqüitativas segundo as quais
os representantes de pessoas livres e iguais devem precisar
os termos da cooperação social no caso da estrutura básica
da sociedade. E, como esse modelo também vale para aqui-
lo que, nesse caso, consideramos como restrições aceitáveis,
limitando as razões disponíveis para os parceiros a fim de
favorecer mais um acordo do que outro, a concepção da jus-
tiça que os parceiros adotariam define a concepção que con-
sideramos - aqui e agora - eqüitativa e que é sustentada pe-
las melhores razões. Tentamos fornecer um modelo das res-
trições que se aplicam às razões de modo que se torne perfeita-
mente evidente o acordo que seria concluído pelos parceiros
na posição original na medida em que eles representam
cidadãos. Mesmo que existam, como é certo, razões pró e
contra cada concepção da justiça, deveria haver aí um con-
junto de razões que favorecessem nitidamente uma concep-
ção em relação ao resto. Na condição de procedimento de
lume, pp. 66-74 ss.). A pertinência dessa distinção aqui provém de que TJ fala de
maneira mais ou menos regular de condições não racionais, mas sim razoáveis (ou
às vezes adequadas ou apropriadas) que limitam os argumentos em favor dos prin-
cípios de justiça (ver pp. 20 ss, 22 ss, 129 ss, 140 ss, 148-9,494-5, 574 ss, 643-
4 e 652 ss.). É a posição original que fornece o modelo desses cerceamentos e que
os impõe aos parceiros, ficando suas deliberações submetidas, e de forma absolu-
ta, às condições razoáveis das quais a posição original fornece um modelo graças
ao qual ela é eqüitativa (fair). O razoável é, portanto, anterior ao racional, o que
conduz à prioridade do justo (right). Constituía portanto um erro (e uma fonte de
graves mal-entendidos) descrever a teoria da justiça como uma parte da teoria da
escolha racional* (ver TJ, pp. 18 e 649-50). O que eu deveria ter dito é que a con-
cepção da justiça como eqüidade utiliza uma análise da escolha racional, porém
submetida a condições razoáveis, para descrever as deliberações dos parceiros, re-
presentativos de pessoas livres e iguais - tudo isso no âmbito de uma concepção
política da justiça que é também, claro está, uma concepção moral. Na realidade,
não se trata de tentar derivar o conteúdo da justiça de uma estrutura que utilizaria
como única idéia normativa a idéia do racional. Essa idéia seria incompatível com
uma concepção kantiana de qualquer tipo que fosse.
A TEORIA DA JUSTIÇA COMO EQÜIDADE 223
apresentação, a idéia da posição original serve de meio para
a reflexão pública e permite um auto-esclarecimento. Po-
demos utilizá-la para melhor compreender o que pensamos
agora, tendo uma visão clara e precisa das exigências da jus-
tiça no caso em que a sociedade é concebida como um siste-
ma de cooperação entre pessoas livres e iguais, que passa de
uma geração a outra. A posição original serve portanto para
unificar as nossas convicções mais ponderadas, em todos os
níveis de generalidade, e para aproximá-las umas das outras
a fim de alcançar um acordo mútuo maior e uma melhor
compreensão de nós mesmos.
Em conclusão, direi que uma idéia como a da posição
original é introduzida porque não há melhor meio para ela-
borar uma concepção política da justiça para a estrutura bá-
sica a partir da intuição fundamental de que a sociedade é
um sistema eqüitativo de cooperação entre cidadãos, isto é,
entre pessoas livres e iguais. Entretanto existem certos ris-
cos. Na condição de procedimento de apresentação, a posi-
ção original corre o risco de parecer um pouco abstrata e
por isso mesmo sujeita a mal-entendidos. A descrição dos
parceiros pode parecer pressupor alguma concepção metafí-
sica da pessoa, como, por exemplo, que a natureza essencial
das pessoas é independente dos seus atributos contingentes
e anteriores a elas, incluindo os seus fins últimos e os seus
laços com outrem, e, finalmente, de seu caráter tomado como
um todo. Mas trata-se aqui de uma ilusão provocada pelo
fato de não se ver que a posição original não passa de um
procedimento. O véu de ignorância, para citar um traço im-
portante da posição, não tem implicação metafísica alguma
referente à natureza do eu; ele não implica que o eu seja
ontologicamente anterior aos fatos referentes aos indivíduos,
que os parceiros não têm o direito de conhecer. Podemos
adotar essa posição, em qualquer momento, simplesmente
raciocinando a fim de encontrar princípios de justiça que
224 JUSTIÇA E DEMOCRACIA
estejam de acordo com as restrições enumeradas. Quando
desse modo simulamos essa situação, nosso raciocínio não
nos compromete mais em relação a uma doutrina metafísica
sobre a natureza do eu, do mesmo modo que o fato de jogar
Monopoly não nos leva a pensar que somos proprietários
empenhados num combate encarniçado no qual o vencedor
ganha tudo20. Não esqueçamos nosso objetivo, que é o de
mostrar como a idéia de uma sociedade enquanto sistema
eqüitativo de cooperação social pode ser desenvolvida com
o fim de precisar os princípios mais apropriados para a efe-
tivação das instituições da liberdade e da igualdade, sendo
os cidadãos considerados como pessoas livres e iguais.
20. TJ, pp. 147 ss. e 158. Diz-se que os parceiros na posição original (p. 158)
são indivíduos teoricamente definidos, cujas motivações são precisadas pela análi-
se dessa posição e não por uma concepção psicológica das motivações reais dos
seres humanos. Aí está também uma parte do que se quer dizer quando se fala (p.
130) que o reconhecimento dos princípios particulares de justiça não é encarado
como uma lei ou uma probabilidade psicológicas, mas antes que ela decorre da
descrição completa da posição original. Ainda que esse objetivo possa não ser per-
feitamente concretizado, queremos que a argumentação seja dedutiva, "uma espé-
cie de geometria moral". Neste volume (p. 73), os parceiros são descritos como
"agentes puramente artificiais vivendo numa construção". Assim, creio que R. B.
Brandt se engana quando objeta que a argumentação da posição original está ba-
seada numa psicologia defeituosa. Ver A Theory of the Good and of the Right (Ox-
ford, Clarendon Press, 1979, pp. 239-42). Naturalmente se poderia objetar à posi-
ção original que ela fornece um modelo da concepção da pessoa e das deliberações
dos parceiros de uma maneira inadaptada às finalidades de uma concepção políti-
ca da justiça. Contudo, para essas finalidades a teoria psicológica não é diretamen-
te pertinente. Pelo contrário, a teoria psicológica é pertinente para a análise da es-
tabilidade de uma concepção da justiça, tal como a examinei em TJ, terceira parte
(ver mais adiante a nota 32). Do mesmo modo, penso que Michel Sandel se equi-
voca quando pressupõe que a posição original implica uma concepção do eu "des-
pojado de todos os seus atributos contingentes", um eu que "possui uma espécie
de status supra-empírico [...] e que recebe, anteriormente aos seus fins, um puro
tema de ação e de posse, definitivamente sem densidade" (ver Liberalism and the
Limits of Justice, Cambridge University Press, 1982, pp. 93-5). Não posso aqui
examinar essas criticas em detalhe. O ponto essencial (como sugeri em minhas ob-
servações introdutórias) não é saber se certos trechos de TJ requerem uma inter-
pretação, mas ver se a concepção da justiça como eqüidade que ali é apresentada
pode ser compreendida à luz da interpretação que delineio neste artigo e nas con-
ferências sobre o construtivismo, como eu acredito.
A TEORIA DA JUSTIÇA COMO EQÜIDADE 225
V
Acabo de mostrar que a idéia da posição original e a
descrição dos parceiros poderiam fazer-nos pensar que está
pressuposta uma doutrina metafísica da pessoa. Quando digo
que tal interpretação seria um erro, não basta simplesmente
descartar o recurso às doutrinas metafísicas porque, malgra-
do as nossas intenções, elas sempre podem estar presentes.
Para rejeitar afirmações dessa natureza, é preciso examiná-
las em detalhe e mostrar que elas não têm cabimento. Mas
não poderei fazê-lo aqui21.
Posso, em compensação, delinear uma análise positiva
da concepção política da pessoa*, ou seja, a concepção da
pessoa como cidadão (examinada na seção III) que é impli-
cada pela posição original enquanto procedimento de apre-
sentação. Para explicar o que quer dizer uma concepção po-
lítica da pessoa, consideremos como os cidadãos são repre-
sentados na posição original enquanto pessoas livres. A re-
21. Uma parte da dificuldade provém do fato de não haver acordo sobre o
que seja uma doutrina metafísica. Poder-se-ia dizer, como me sugeriu Paul
Hoffman, que desenvolver uma concepção política da justiça sem pressupor ou
utilizar explicitamente uma doutrina metafísica - aqui uma concepção metafísica
particular da pessoa - já é pressupor uma tese metafísica, a saber, que nenhuma
tese metafísica particular é requerida para esse propósito. Poder-se-ia também
dizer que a nossa concepção cotidiana das pessoas como unidades básicas de deli-
beração e pensamento pressupõe ou implica de certa maneira teses metafísicas a
respeito da natureza das pessoas como agentes morais e políticos. Seguindo meu
método de "evasão", não desejo rejeitar essas objeções. Eis o que direi. Se consi-
derarmos a apresentação da teoria da justiça como eqüidade e assinalarmos como
ela é estabelecida, assim como as idéias e as concepções que ela utiliza, nenhuma
doutrina metafísica particular sobre a natureza das pessoas, distinta e contraposta a
outras doutrinas metafísicas, surgirá entre suas premissas nem parecerá requerida
por sua argumentação. Se há uma implicação de pressupostos metafísicos, talvez
eles sejam tão gerais que não acarretariam uma diferença entre as doutrinas meta-
físicas distintas - cartesiana, leibniziana ou kantiana, realista, idealista ou materia-
lista - com as quais a filosofia tradicionalmente manteve uma relação. Nesse caso,
eles não pareceriam ser pertinentes para a estrutura social e o conteúdo de uma
concepção política da justiça de uma maneira ou de outra. Sou grato a Daniel
Brudney e a Paul Hoffman pelo exame dessas questões.
226 JUSTIÇA E DEMOCRA CIA
presentação de sua liberdade parece ser uma das idéias que
sugerem uma doutrina metafísica no segundo plano. Disse
em outro lugar que os cidadãos se consideram a si mesmos
como livres de três pontos de vista. Portanto, examinemos
sucintamente cada um e indiquemos em que sentido a con-
cepção da pessoa utilizada é política22.
Em primeiro lugar, os cidadãos são livres pelo fato de
se considerarem a si mesmos e aos demais como moralmente
capazes de ter uma concepção do bem. Mas isso não signi-
fica que se considerem, na sua concepção política de si mes-
mos, como inevitavelmente ligados à concretização da con-
cepção particular do bem que sustentam. Em vez disso, en-
quanto cidadãos, consideram-se como capazes de rever e de
modificar essa concepção em função de motivos pessoais e
razoáveis, e podem fazê-lo se assim o desejarem. Desse mo-
do, na condição de pessoas livres, os cidadãos reivindicam
o direito de considerar suas pessoas como independentes de
qualquer concepção particular do bem e de qualquer sis-
tema de fins últimos, e de não se identificarem com tais
concepções.
Dada a sua capacidade moral de formar, de rever e de
tentar concretizar racionalmente uma concepção do bem, sua
identidade pública, enquanto pessoas livres, não é afetada pe-
las mudanças no tempo de sua concepção do bem. Por exem-
plo, quando cidadãos se convertem de uma religião para ou-
22. Para os dois primeiros pontos de vista, ver, neste volume, pp. 94 ss.
(para o terceiro, ver mais adiante a nota 25). Desenvolvo aqui a análise que se en-
contra nessas conferências e sou mais explícito sobre a distinção entre o que cha-
mei de nossa "identidade pública" por contraposição à "identidade não pública ou
moral". O interesse do termo moral nesta última expressão é indicar que as con-
cepções que as pessoas têm do bem (completo) são em geral um elemento essen-
cial para caracterizar sua identidade não pública (ou não política) e que essas con-
cepções são consideradas como comportando normalmente elementos morais im-
portantes, ao mesmo tempo que incluem outrosfilosóficose religiosos. Deve-se
compreender o termo moral como representando todas essas possibilidades. Sou
grato a Elisabeth Anderson pelo exame e esclarecimento dessa distinção.
A TEORIA DA JUSTIÇA COMO EQÜIDADE 227
tra, ou cessam de aderir a uma religião estabelecida, não dei-
xam de ser, para as questões de justiça política, as mesmas
pessoas de antes. Não há perda daquilo que se poderia deno-
minar sua identidade pública, sua identidade básica perante a
lei. De maneira geral, eles têm sempre os mesmos direitos e
os mesmos deveres, conservam as mesmas propriedades e
podem fazer as mesmas reivindicações que antes, salvo quan-
do estas se acham ligadas à sua filiação religiosa anterior. Po-
demos imaginar uma sociedade (e a História de fato oferece
numerosos exemplos disso) na qual os direitos básicos e as
reivindicações legítimas dependem da filiação religiosa, da
classe social, e assim por diante. Uma sociedade desse tipo
tem uma concepção política da pessoa diferente. Ela pode
não ter em absoluto uma concepção da cidadania, pois essa
concepção, tal como a utilizamos, acompanha aquela da so-
ciedade como sistema eqüitativo de cooperação em vista da
vantagem mútua entre pessoas livres e iguais.
E essencial sublinhar que, na sua vida pessoal ou na
vida interna dos grupos a que pertencem, os cidadãos po-
dem encarar seus fins últimos e seus compromissos de uma
maneira muito diferente do que pressupõe a concepção po-
lítica. E possível que os cidadãos tenham - e efetivamente
em geral as têm em qualquer momento - relações de afeto,
de devotamento e de lealdade das quais pensam que não se
separariam - e de fato não o poderiam nem o deveriam - e
que não poderiam avaliar objetivamente do ponto de vista
de seu bem puramente racional. Eles podem considerar sim-
plesmente impossível pensar em si mesmos, abstração feita
de certas convicções morais, filosóficas e religiosas ou de
certos compromissos ou lealdades duradouros. Essas con-
vicções e esses compromissos fazem parte do que podemos
chamar de sua "identidade não pública". Eles ajudam a or-
ganizar e a formar o modo de vida de uma pessoa, a manei-
ra pela qual vemos os nossos atos e aquilo que tentamos
228 JUSTIÇA EDEMOCRACIA
realizar no nosso mundo social. Pensamos que, se ficásse-
mos subitamente privados dessas convicções e desses com-
promissos particulares, ficaríamos desorientados e incapa-
zes de prosseguir. De fato, já não haveria, segundo pensa-
mos, interesse em prosseguir. Mas as nossas concepções do
bem podem mudar e de fato mudam a longo prazo, em geral
lentamente, mas às vezes com bastante rapidez. Quando es-
sas mudanças são súbitas, corremos o risco de dizer que já
não somos a mesma pessoa. Sabemos o que isso quer dizer;
referimo-nos então a uma mudança profunda nos nossos fins
últimos e no nosso caráter; referimo-nos à nossa identidade
não pública e talvez moral ou religiosa. Na estrada de Da-
masco, Paulo de Tarso se transformou no apóstolo Paulo.
Em compensação, não há mudança na nossa identidade pú-
blica ou política nem na nossa identidade pessoal, no senti-
do que esse conceito pode ter na filosofia do espírito {philo-
sophy of mind)2\
23. Aqui, suponho que uma resposta ao problema da identidade pessoal ten-
tará precisar os diversos critérios (por exemplo, a continuidade psicológica das
recordações e a continuidade física do corpo ou de uma parte do corpo) segundo
os quais duas ações ou estados psicológicos diferentes, produzindo-se em dois
momentos diferentes, podem ser considerados como ações ou estados da mesma
pessoa que dura no tempo. Ela tentará também precisar como se deve conceber
essa pessoa que dura, seja como substância cartesiana ou leibniziana, seja como
um eu transcendental kantiano, seja como uma continuidade de algum outro tipo,
corporal ou física, por exemplo. Ver a coletânea de artigos dc John Perry, Per-
sonal identity (Berkeley, University of California Press, 1975), em especial a in-
trodução de Perry, pp. 3-30; e o artigo de Sidney Shoemaker em Personal Identity
(Oxford, Basil Blackwell, 1984), sendo que ambos os textos examinam um certo
número de doutrinas. As vezes as análises desse problema ignoram a continuidade
nos fins e nas aspirações fundamentais, como, por exemplo, em H. B. Grice (na
coletânea de Perry) que enfatiza a continuidade da recordação. E claro que, uma
vez introduzida a continuidade dos fins e das aspirações fundamentais, como no
livro de Derek Parfit, Reasons and Persons (Oxford, Clarendon Press, 1984, 3?
parte), já não há distinção nítida entre o problema da identidade não pública ou
moral das pessoas e o problema da sua identidade pessoal. Esse último problema
suscita questões graves, sobre as quais as doutrinasfilosóficaspassadas e atuais
divergem amplamente e continuarão certamente a divergir. É por isso que é im-
portante tentar desenvolver uma concepção política da justiça que evite esse pro-
blema na medida do possível.
A TEORIA DA JUSTIÇA COMO EQÜIDADE 229
24. Para a idéia de "morte social", ver Orlando Patterson, Slavery and Social
Death, Cambridge, Mass, Harvard University Press, 1982, em especial pp. 5, 9,
38, 45 e 337. Essa idéia está desenvolvida de maneira interessante nesse livro e
ocupa um lugar central no estudo comparativo da escravidão feito pelo autor.
25. Ver "Social Unity and Primary Goods", em Utilitarianism and Beyond,
org. por Amarty Sen e Bernard Williams, Cambridge, Cambridge University
Press, 1982. Ver seção IV, pp. 167-70.
A TEORIA DA JUSTIÇA COMO EQÜIDADE 231
intensidade psicológica das suas demandas e dos seus dese-
jos (por contraposição às suas necessidades e às suas exigên-
cias de cidadãos), ainda que, do seu ponto de vista, estas se-
jam racionais. Não prosseguirei aqui nesse estudo. Mas o
procedimento é o mesmo que o de antes: partimos da idéia
intuitiva básica de uma sociedade como sistema de coopera-
ção social. Uma vez desenvolvida essa idéia numa concep-
ção da justiça política, ela implica que tratemos a nós mes-
mos como pessoas envolvidas na cooperação social durante
toda a nossa vida e que, portanto, possamos assumir a res-
ponsabilidade dos nossos fins, isto é, ajustá-los de maneira
que possam ser buscados, graças a meios que podemos ra-
zoavelmente esperar adquirir dadas as nossas perspectivas e
a nossa posição na sociedade. Essa idéia de responsabilidade
está implícita na cultura política pública e se discerne nas
suas práticas. Uma concepção política da pessoa explicita
essa idéia e a integra na da sociedade como sistema de coo-
peração social durante toda uma vida.
Para terminar, recapitularei os três pontos essenciais
desta seção e das duas precedentes.
Em primeiro lugar, na seção III considera-se que as pes-
soas são livres e iguais porque possuem, na medida requeri-
da, as duas faculdades que caracterizam a personalidade mo-
ral (assim como as capacidades de argumentação, de pensa-
mento e de julgamento que lhes são associadas), a saber, um
senso da justiça e uma concepção do bem. Essas faculdades
estão associadas, na nossa opinião, a dois elementos essen-
ciais da cooperação, a idéia de termos eqüitativos da coopera-
ção e a idéia da vantagem racional para cada um.
Em segundo lugar, nesta seção (seção V) examinamos
sucintamente os três pontos de vista segundo os quais se con-
sidera que há pessoas livres, e vimos que, desses pontos de
vista, os cidadãos, na cultura política pública de uma demo-
cracia, se consideram livres.
232 JUSTIÇA E DEMOCRACIA
Em terceiro lugar, dado que a questão de saber qual é a
melhor concepção da justiça política para concretizar nas
instituições básicas os valores da liberdade e da igualdade
permanece sujeita a controvérsia na própria tradição demo-
crática em que os cidadãos são considerados como pessoas
livres e iguais, o objetivo da teoria da justiça como eqüidade
é tentar responder a essa questão partindo da idéia intuitiva
básica da sociedade como sistema eqüitativo de cooperação
social, sendo os termos eqüitativos da cooperação objeto de
um acordo entre os próprios cidadãos. Na seção IV, vimos
como essa conduta leva à idéia da posição original como
procedimento de apresentação.
VI
Examinarei agora um ponto essencial para se com-
preender que a teoria da justiça como eqüidade é uma con-
cepção liberal. Ainda que esta seja uma concepção moral,
ela não é concebida, como eu disse, como uma doutrina
moral abrangente. A concepção do cidadão como pessoa li-
vre e igual não é um ideal moral que deva reger todos os as-
pectos da vida, mas sim um ideal que pertence a uma con-
cepção da justiça política que se aplica à estrutura básica
da sociedade. Insisto nesse ponto porque do contrário essa
doutrina seria incompatível com o liberalismo* enquanto
doutrina política. Recordemos que, enquanto doutrina polí-
tica, o liberalismo pressupõe que num Estado democrático
moderno existem necessariamente concepções do bem em
conflito e incomensuráveis entre si. Essa é uma caracterís-
tica da cultura moderna desde a Reforma. Este é um fato
social fundamental que toda concepção política viável da
justiça, que não queira depender do uso autocrático do po-
der do Estado, deve reconhecer. Isso não quer dizer, é claro,
A TEORIA DA JUSTIÇA COMO EQÜIDADE 233
que tal concepção não possa impor cerceamentos aos indi-
víduos e aos grupos, mas sim que, se o fizer, esses cercea-
mentos serão justificados, direta ou indiretamente, pelas
condições exigidas pela justiça política para a estrutura
básica26.
Dado esse fato, adotamos uma concepção da pessoa
entendida como parte de uma concepção explicitamente po-
lítica da justiça, à qual ela fica portanto limitada. Nesse sen-
tido, a concepção da pessoa é política. Como sublinhei na
seção precedente, as pessoas podem aceitar essa concepção
de si mesmas como cidadãos e utilizá-la para as questões de
justiça política sem ficarem comprometidas nos outros as-
pectos de sua vida, com ideais morais que são muitas vezes
associados com o liberalismo, como, por exemplo, os da au-
tonomia e da individualidade. A ausência de compromisso
com esses ideais, e na realidade com qualquer ideal particu-
lar desse tipo, é essencial para o liberalismo enquanto doutri-
na política. A razão disso está em que esse ideal, quando
procurado na condição de ideal abrangente, é incompatível
com as outras concepções do bem, com as formas de vida
pessoal, moral e religiosa compatíveis com a justiça e que
têm efetivamente seu lugar numa democracia. Na condição
de ideais morais, a autonomia e a individualidade não con-
vém a uma concepção política da justiça. Esses ideais, tais
como se encontram em Kant e em Stuart Mill, a despeito de
sua extrema importância para o pensamento liberal, saem
de seus limites quando são apresentados como o único fun-
30. Essa análise da unidade social se encontra em "Social Unity and Pri-
mary Goods", cujas referências se acham na nota 25. Ver em especial pp. 160 ss.,
170-3, 183 ss.
238 JUSTIÇA E DEMOCRACIA
trina política afirma que a questão à qual a tradição domi-
nante tentou responder não tem resposta ou, mais exata-
mente, que ela não tem resposta válida para uma concepção
política da justiça numa democracia. Numa tal sociedade,
uma concepção política teleológica está fora de questão, já
que não se pode alcançar um acordo público sobre a con-
cepção do bem requerida.
Como assinalei, a origem histórica dessa hipótese liberal
é a Reforma e suas conseqüências. Até as guerras de religião
dos séculos XVI e XVII, os termos eqüitativos da cooperação
social eram estreitamente delimitados; a cooperação social ba-
seada no respeito mútuo era considerada impossível entre pes-
soas de credos diferentes ou (segundo minha terminologia) com
pessoas que sustentam uma concepção do bem fundamental-
mente diferente. Assim, uma das raízes históricas do liberalis-
mo foi o desenvolvimento de diversas doutrinas que exigiam
a tolerância religiosa. Um dos temas da teoria da justiça como
eqüidade é o reconhecimento das condições sociais que dão
origem a essas doutrinas no contexto subjetivo da justiça* e,
em seguida, a explicitação das implicações do princípio de to-
lerância31. O liberalismo, tal como foi formulado no século XIX
por Benjamin Constant, Tocqueville e Stuart Mill, aceita a plu-
ralidade de concepções do bem incomensuráveis entre si como
um fato da cultura democrática moderna, com a condição, é
claro, de que essas concepções respeitem os limites indicados
pelos princípios de justiça. Uma das tarefas do liberalismo en-
quanto doutrina política é responder à questão de saber como
compreender a unidade da sociedade, dado que nela não pode
haver acordo público sobre um bem racional único e conside-
rando-se que existe uma pluralidade de concepções contrapos-
tas e incomensuráveis. Ademais, supondo-se que a unidade da