Ratio Decidendi X Tese Juridica A Busca
Ratio Decidendi X Tese Juridica A Busca
Ratio Decidendi X Tese Juridica A Busca
| Revista dos Tribunais
Ratio decidendi x tese jurídica. A busca pelo elemento vinculante do precedente brasileiro
RATIO DECIDENDI X TESE JURÍDICA. A BUSCA PELO ELEMENTO VINCULANTE
DO PRECEDENTE BRASILEIRO
Ratio decidendi x legal precept. The search for the binding element in the Brazilian precedent
Revista de Processo | vol. 265/2017 | p. 419 441 | Mar / 2017
DTR\2017\428
Taís Schilling Ferraz
Doutoranda e Mestre em Direito pela PUCRS. Juíza Federal. [email protected]
Área do Direito: Processual
Resumo: O artigo faz uma análise crítica sobre a construção das teses jurídicas ao final dos
julgamentos de repercussão geral e de recursos repetitivos, alertando para a pouca importância que
vem sendo atribuída à identificação da ratio decidendi, elemento verdadeiramente transcendente e
vinculante em um sistema de precedentes, cuja adoção, para fins de julgamentos futuros, produzirá o
efeito de dar coerência sistêmica e previsibilidade à atuação do poder judiciário, para além do
julgamento de casos absolutamente iguais.
Palavraschave: Precedente Tese jurídica Ratio decidendi.
Abstract: The paper examines critically the process of ceating precepts, at the end of general
repercussion or repetitive appeals judgments, making an award about the little importance given to the
ratio decidendi identification, the truly transcendent element in a precedent system, whose use, for
subsequent judgments, will produce the effect of giving systemic coherence and predictability to the
judiciary performance, beyond of judging strictly equal cases.
Keywords: Precedent Legal precept Ratio decidendi.
Sumário:
1Introdução 2A fundamentação baseada em precedente 3O precedente brasileiro e suas
especificidades 4Ratio decidendi e tese jurídica 5A possível compatibilidade entre ratio decidendi e
tese jurídica 6A busca da ratio decidendi em um precedente 7Considerações finais 8Referências
bibliográficas
1 Introdução
Ao decidir, assentando tese em um recurso extraordinário com repercussão geral,1 que “é incompatível
com a Constituição a exigência de inscrição na Ordem dos Músicos do Brasil, bem como o pagamento
de anuidade, para o exercício da profissão”, o Supremo Tribunal Federal deixou claro que não poderá
haver cobrança de anuidade para o exercício da profissão de músico, e dificilmente alguém dirá,
considerado o disposto no art. 927 do CPC (LGL\2015\1656), que juízes e tribunais poderão considerar
legítima tal cobrança.
Mas alguém se perguntará por quê? O que levou à inconstitucionalidade?
Em que medida a motivação deste precedente será relevante?
Na tese jurídica enunciada pelo tribunal superior, extrato da decisão que resulta do precedente
brasileiro, não está contido o motivo determinante para a solução de casos subsequentes análogos,
mas sim a própria solução, encartada em preceito de caráter normativo, com expectativa de ampla
aplicação, cujo suporte fático abstraise do caso paradigma.
Em qualquer caso em que se discuta a exigência de inscrição na Ordem dos Músicos do Brasil e
exigência de anuidade, o preceito valerá para afastar a obrigatoriedade.
Tal como a lei, esse preceito tende a ser adotado como premissa maior no argumento dedutivo e
silogístico a ser construído na solução de casos subsequentes. Por outro lado, a motivação, a razão que
levou o STF ao julgamento pela inconstitucionalidade, e os fatos que foram objeto de análise para a
construção da solução no recurso paradigma, registrados nos votos e, por vezes, na ementa, não se
apresentarão como fatores substanciais na construção do argumento de uma decisão futura.
No caso enunciado acima, decidiuse pela inconstitucionalidade porque a atividade de músico é
manifestação artística protegida pela garantia da liberdade de expressão, daí a incompatibilidade com
a Carta da exigência de prévia inscrição na Ordem dos Músicos como condição para o exercício dessa
atividade e a impossibilidade de cobrança de anuidade.
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A formulação de uma tese jurídica, aparentemente capaz de solucionar todos os casos iguais – e talvez
a razão pela qual se confunda, no Brasil, o sistema de julgamento de recursos repetitivos com o
sistema de precedentes –, em verdade vem limitando o espectro de aplicação do precedente e a sua
própria legitimidade intrínseca, indicando que sua aplicação ocorrerá desde que o suporte fático exato
nela previsto se implemente.
Equiparase a tese jurídica, tal como vem sendo enunciada, a uma edição de norma, porém pelo Poder
Judiciário, cuja aplicação tende a ocorrer da mesma forma que se faz incidir uma lei.
Adotada, porém, a verdadeira ratio decidendi do precedente pelo seu intérprete, a aplicação poderá ser
muito mais útil, sistêmica e mesmo abrangente, já que o fator que ensejou a inconstitucionalidade da
norma que estabeleceu a exigência de inscrição na OMB e a cobrança de anuidade poderá estar
presente em muitas outras normas semelhantes, o que evitaria que o STF tivesse que se debruçar
sobre todas as possibilidades de cobrança que incidirem na mesma inconstitucionalidade.
Tal como vem sendo manejado o sistema brasileiro de precedentes, o caminho que o intérprete
percorrerá, em aplicando o preceito abstrato gerado pelo julgamento de repercussão geral, será o do
argumento dedutivo, tomandose a tese assentada pelo STF como premissa maior, como se fosse uma
lei. Este percurso não lhe exige, em princípio, perquirir da motivação, compreender por que caso foi
levado a julgamento, que argumentos foram suscitados e quais foram tomados como relevantes.
É sobre a necessidade de se repensar esse modelo de argumento, considerando que o sistema de
precedentes brasileiro ainda está em construção, que este artigo se desenvolverá, direcionandose à
avaliação crítica e possível defesa da necessidade de mudanças no modelo de julgamento dos casos
repetitivos e de repercussão geral, para que a motivação dos precedentes seja, de fato, o elemento
mais relevante para a construção de soluções nos casos subsequentes.
A proposta é ingressar mais diretamente sobre a forma como os tribunais vêm construindo os
precedentes e sobre os reflexos desta opção nos processos de tomada de decisão ao serem julgados os
casos subsequentes e análogos.
2 A fundamentação baseada em precedente
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal2 é absolutamente clara na classificação da exigência de
motivação das decisões como garantia constitucional inderrogável e como poderoso instrumento de
limitação ao exercício do poder do Estado e de proteção das liberdades públicas, a atuar como condição
de eficácia e requisito de validade dos provimentos judiciais.
No novo Código de Processo Civil, esse dever, para o magistrado, alcançou contornos ainda mais
precisos, impondose que a fundamentação satisfaça a critérios específicos de racionalidade e de
contraditoriedade (TROIS, 2016).
Da perspectiva do juiz, falase em dever de fundamentação das decisões judiciais. O seu não
atendimento compromete o próprio caráter jurisdicional do ato decisório (MARINONI; MITIDIERO;
SARLET, 2014, p. 753). Sob o prisma do jurisdicionado e da sociedade, é garantia fundamental e
instrumento de controle da atividade do Poder Judiciário.
Há, entretanto, diferentes modelos de fundamentação.
Para os efeitos deste trabalho, considerase importante trazer à luz as diferentes características da
argumentação jurídica com base na lei e com base em decisões dos tribunais.
Em um sistema jurídico essencialmente dogmático, que tem na lei, na sua generalidade e abstração, o
centro gravitacional, a tendência do jurista é buscar a justificação interna de seu argumento no
raciocínio dedutivo, na pretensão de estabelecer sua conclusão como necessária e certa, ao
pressuposto de que a veracidade desta conclusão é decorrência da veracidade das premissas adotadas,
que se constituirão, como regra, de uma afirmação normativa (geral) e de uma afirmação factual
(particular).
A decisão jurídica surge como uma construção silogística, onde a norma (geral) funciona como
premissa maior, a descrição do caso como premissa menor e a conclusão como o ato decisório stricto
sensu.
A origem desta forma de decidir parece situarse muito longe no tempo, nas origens da tradição
romanogermânica.
GHIRARDI (2007, p. 31), com muita clareza, apresenta este, que pretende ser um dos pressupostos de
onde parte a análise que ora se propõe, ao assentar que a diferença entre o direito romano e o
common law inglês radica em duas circunstâncias ou elementos fundamentais:
“a) em primeiro lugar, no direito romano o caso concreto nunca servia como fundamento de uma
sentença particular, mas apenas contribuía como elemento de origem de uma norma editalícia, norma
que era abstrata e universal; b) em segundo lugar, a jurisprudência assentada em caso concreto,
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jamais foi obrigatória. De sua parte, o common law inglês, o case law, que por certo, é singular,
fornece um precedente obrigatório para os demais casos semelhantes e supervenientes. A razão grega
está na base da atitude romana, apesar de que esta era mais pragmática. A razão inglesa será
diferente; foi escrava da experiência. Valendonos de uma metáfora, diríamos que o juiz inglês
buscava a solução bastante com a mão, com a qual só podia pegar um caso concreto, enquanto que
com o romano, a solução passava pela razão, com uma grande apetência de universalidade, que só
poderia ser dada pela norma (seja da lei surgida da primeira assembléia) ou da regra (em forma de
édito do pretor) ou da resposta do jurisconsulto” (o itálico não é do original).
Na sequência, demonstra o autor que o raciocínio, no direito romano, será dedutivo. “O que poderia
haver de indutivo se dá previamente ao conflito, no procedimento empírico para fixar a norma edital
por parte do pretor.” (GHIRARDI, 2007, p. 33). No common law não há lei prévia, “apenas se parte de
uma sentença (norma singular e não abstrata nem universal), expressada em um caso concreto: o
case law, que é obrigatório para o juiz”. E prossegue (p. 3334):
“Ressaltamos, ademais, que no common law, a atitude lógica é indutiva: a busca do precedente, que
conduz o juiz de caso em caso até dar com o que corresponde. É dizer, seu ponto de partida é o
singular e concreto (uma sentença) e não o geral e abstrato (lei ou norma editalícia). O sistema do
common law se vale primordialmente da experiência para ditar a sentença do caso concreto (norma
singular) ainda que em cada precedente exista ínsito um princípio, que se trata de seguir. Em ambos
os casos a lógica rege o pensar jurídico: no sistema codificado predomina a dedução (a partir das
normas) e no sistema do common law, a indução (na busca do precedente)” (o itálico não é do
original).
Não se desconhece, como leciona TÉRCIO FERRAZ (2004, p. 26), que reduzir o processo decisório a
uma construção silogística o empobrece e não o revela em sua maior complexidade. Segundo o autor,
“a aceitação geral de que a justiça deve ser feita não leva, por si, à premissa de que a ação X é injusta
e, portanto, deve ser rejeitada. É preciso dizer o que é a justiça e provar que a ação X é um caso de
ação injusta. Eis o problema da subsunção”.
Complexo ou não o processo de subsunção, buscase, aqui, na generalidade de uma norma, de um
princípio, a premissa maior para uma decisão, enquadrandose, na sequência, os fatos concretos na
hipótese de incidência da norma ou princípio.
Esta forma de argumentar pressupõe o reconhecimento de que a lei, em seu sentido amplo, e com sua
generalidade e abstração, é fonte primária e mais importante do direito.
Com a reforma processual surge nova fonte jurídica primária. Os precedentes dos tribunais superiores
e alguns precedentes dos tribunais ordinários deverão ser observados, ao lado da lei, pelos juízes e
tribunais ao decidirem casos subsequentes (CPC (LGL\2015\1656), art. 927). O novo CPC
(LGL\2015\1656) convolou os precedentes judiciais, de secundárias em fontes primárias do direito.
Essa opção por tornar vinculantes os precedentes, elevandoos à condição de fontes primárias do
direito, requer uma ruptura com o mecanismo silogístico de construção do pensamento jurídico.
Doravante, as decisões judiciais não mais serão meros reforços argumentativos a uma decisão já
adotada. Serão a própria razão de decidir.
Aplicar precedente não é o mesmo que referir jurisprudência, exemplificando como casos anteriores
foram decididos; é julgar com base na rule construída para a solução de um caso anterior, adotandoa
como a própria razão de decidir.
Isto, porém, não equivale a transformar decisões judiciais em normas abstratas.
Um precedente não tem a generalidade e a abstração da lei. É produto do exame de circunstâncias
concretas, examinadas dentro e à luz de um contexto determinado. Ainda que dele se possam colher
um ou mais preceitos universalizáveis, esses jamais poderão ser totalmente abstraídos dos elementos
de fato e de direito que lhe deram fundamento.
Esse é outro marco teórico de onde se parte.
Decidir com base em precedentes requer muito mais que a busca de normas abstratas onde, em tese,
os fatos concretos possam ser subsumidos. O caminho a ser percorrido, doravante, parte de fatos em
particular, exige problematização, análise comparativa, uso da analogia e construção da norma
aplicável a cada nova decisão, tendo por paradigmas decisões anteriores. Tais decisões foram adotadas
frente a fatos específicos, e não frente a normas em abstrato.
Assim, para que possam ter seus princípios invocados como argumento em novas decisões, será
necessário percorrer um raciocínio indutivo, partindose da comparação entre as situações que
originaram o conflito, o que conduzirá à conclusão no mesmo sentido do precedente como provável
(não necessária e certa), diante da veracidade das premissas.
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Ao descrever um modelo de sentença norteamericano, FACCHINI NETO (2014, p. 410) chama a
atenção para o seu caráter exaustivo e para a importância atribuída à problematização dos fatos e do
princípio jurídico supostamente aplicável:
“Após uma completa análise da matéria de fato, passase ao exame das questões jurídicas, discutese
o princípio jurídico aplicável, examinase a sua origem, a sua evolução, as transformações que sofreu,
as leis que o acolhem, a sua aplicação nas cortes estaduais e federais. É nesse momento que também
se exercita a arte do distinguishing, distinguindose os precedentes onde aquele mesmo princípio
estava em jogo, mas em que os fatos relevantes apresentam diferenças marcantes a ponto de
justificar a não observância do precedente. Invocamse não somente argumentos jurídicos, mas
também fundamentos extrajurídicos, inclusive razões de ordem social, filosófica e de justiça, a fim de
interpretar o alcance do princípio e chegarse à decisão de aplicálo ou não”.
Percebese, no exame deste percurso, uma clara diferença de método, quando confrontado o
julgamento típico norteamericano com um julgamento típico no Brasil.
E qual é o caminho usualmente adotado no modelo brasileiro?
Ao invés da prévia problematização dos fatos pertinentes ao caso concreto e da localização dos
possíveis precedentes, aqui são identificadas, em um primeiro momento, as questões jurídicas
controvertidas, especificandose as normas legais ou constitucionais aplicáveis em tese e procedendo
se à sua interpretação à luz da Constituição ou de outras normas.
Na sequência, realizase a subsunção dos fatos do caso na hipótese de incidência das normas, já
devidamente interpretadas. A jurisprudência pode ser invocada como reforço aos argumentos jurídicos
utilizados para sustentar a melhor interpretação das normas, caso em que os acórdãos serão citados já
na fase da sua identificação e interpretação.
Também pode ser mencionada a jurisprudência para trazer exemplos de casos semelhantes que, em
julgamentos anteriores, encontraram solução mediante o mesmo processo de subsunção, hipótese em
que os acórdãos correspondentes serão indicados após o processo de subsunção.
Passase, então, à proclamação do resultado, primeiramente sobre as questões discutidas e, ato
contínuo, quanto às consequências práticas para o caso em julgamento, que são associadas ao
provimento, desprovimento ou parcial provimento do recurso; procedência, improcedência ou parcial
procedência do pedido.
Essa estrutura, que pode ser considerada tradicional nos julgamentos em um sistema dogmático, deve
ser repensada no novo modelo, seja para o adequado processo de formação de um precedente, seja
para a aplicação deste precedente. É fundamental que as anteriores decisões sobre casos semelhantes
já sejam consideradas para a problematização do caso em julgamento e não como mera finalidade de
reforço argumentativo.
E, mais do que isto, é necessário, como já se teve oportunidade de assentar, romper com as amarras
do modelo silogístico, em que os fatos da causa fazem as vezes de premissa menor, inclusive em
importância (FERRAZ, 2014, p. 222).
3 O precedente brasileiro e suas especificidades
Diferentemente do que ocorre nos países do Common Law, as características dos precedentes
provenientes dos Tribunais Superiores brasileiros, talvez em razão da tradição dogmática do direito
pátrio, revelam um grau considerável de abstração do direito aplicável frente aos fatos das causas
eleitas como paradigmas.
As decisões têm sido proferidas após amplos debates, na expectativa de trazerem solução para além
dos fatos da causa, a fim de que possam solucionar todos os casos que, em tese, dependam da solução
da mesma questão de direito.
São debates antecedidos ou instrumentalizados pela designação de audiências públicas, pela
apresentação de memoriais, pelas sustentações orais dos amici curiae, e pela análise de razões
provenientes de outros processos, da relatoria dos ministros, sobre a mesma questão, que permitem a
introdução de temas sequer suscitados no recurso paradigma.
O objetivo, de todo louvável, é que possam ser considerados e antevistos os mais variados espectros
de incidência da decisão que virá.
Esta ampliação do thema decidendum deveria permitir o amplo aproveitamento das razões da decisão
paradigma para a solução de casos subsequentes em que fatos análogos, frente a questões jurídicas
semelhantes se apresentassem, o que seria esperado em um sistema de respeito aos precedentes
judiciais.
No entanto, não são as razões de decidir que, de regra, orientam, no modelo brasileiro, a solução de
casos futuros, e sim as chamadas teses jurídicas que vêm sendo elaboradas ao final dos julgamentos
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pelos tribunais superiores. A essas teses a própria lei processual atribuiu o efeito vinculante.
A expressão foi cunhada pelo legislador, que, embora bem intencionado na pretensão de criar no Brasil
um sistema de respeito aos precedentes, acabou por permitir a interpretação, inclusive nos tribunais
superiores, de que todo o resultado de um julgamento com repercussão geral ou repetitivo resulta em
uma norma geral e abstrata.
A edição de teses jurídicas, tal como vem ocorrendo nos tribunais superiores, além de resultar em
verdadeira construção de norma, a ser utilizada como premissa maior em julgamentos subsequentes,
vem, na prática, limitando o potencial de construção do Direito pela via dos precedentes, diante da
mensagem que emite aos tribunais de origem e juízes de primeiro grau.
A tendência é tomar a norma e nela subsumir todos os casos sobrestados ou que venham a ser
ajuizados, havendo pouco espaço para a individualização de questões e, paradoxalmente, sua
aplicabilidade resulta restrita aos casos que sejam iguais.
4 Ratio decidendi e tese jurídica
Algumas teses jurídicas editadas pelo STF ao final dos julgamentos de questões constitucionais com
repercussão geral e pelo STJ ao concluir as decisões em recursos repetitivos, servem para exemplificar
o que acima se afirma. Como poderá se observar, seus enunciados não incluem os fundamentos
determinantes das decisões:
É inconstitucional o art. 13 da Lei 8.620/1993, na parte em que estabelece que os sócios de empresas
por cotas de responsabilidade limitada respondem solidariamente, com seus bens pessoais, por débitos
junto à Seguridade Social (RE 562.276).
Não viola a Constituição o estabelecimento de remuneração inferior ao salário mínimo para as praças
prestadoras de serviço militar inicial (RE 570.177).
É constitucional a fixação de alíquota progressiva para o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e
Doação — ITCD (RE 562.045).
É prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil (RE 669.069).
É obrigatória a observância pelos Estados e Municípios dos critérios previstos na Lei Federal 8.880/1994
para a conversão em URV dos vencimentos e dos proventos de seus servidores (REsp 1.101.726).
A dispensa de reexame necessário, quando o valor da condenação ou do direito controvertido for
inferior a sessenta salários mínimos, não se aplica a sentenças ilíquidas (REsp 1.101.727).
A simples propositura da ação de revisão de contrato não inibe a caracterização da mora do autor
(REsp 1.061.530).
Em exceção à regra geral (...), a extensão de prova material em nome de um integrante do núcleo
familiar a outro não é possível quando aquele passa a exercer trabalho incompatível com o labor
rurícola, como o de natureza urbana (REsp 1.304.479).
Ao assentar a tese de que é constitucional a fixação de alíquota progressiva para o Imposto sobe
Transmissão Causa Mortis e Doação – ITCD,3 o STF resumiu o conteúdo dogmático de sua decisão.
Estabeleceu um preceito.
Esse preceito será invocado nas execuções fiscais e ações de anulação de débitos fiscais, para afastar
a alegação de inconstitucionalidade e garantir possibilidade da cobrança do ITCD mediante alíquota
progressiva.
Mas algum juiz ou tribunal irá a busca das razões pelas quais o STF decidiu que a alíquota do ITCD
pode ser progressiva? Sentirseá vinculado a essas razões, ou apenas à tese enunciada?
A ratio decidendi é que deveria ser o elemento fundamental desse precedente, com maior espectro de
incidência e, inclusive, de vinculação.
Identificados os fundamentos determinantes desta decisão – a razão para possibilidade da cobrança do
ITCD à alíquota progressiva, esse precedente poderia ser invocado para a solução de outros casos em
que os pressupostos fossem semelhantes, relativamente a questionamento de outros tributos, não
necessariamente estaduais, que pudessem incidir na mesma problemática examinada, nos termos e
limites da fundamentação da decisãoparadigma. Isto garantiria coerência sistêmica.
Da forma como tem ocorrido, porém, garantese apenas a previsibilidade do julgamento de casos
exatamente iguais e, o que é mais grave, emitese uma espécie de convite a que se force o
enquadramento nesta norma, de casos que não seguem os mesmos pressupostos de incidência do
preceito criado no precedente, decidindose, ao final, problemas diferentes por uma mesma norma,
diante de sua pretensão de ampla aplicabilidade e sua desvinculação das razões que a informaram.
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Um sistema de respeito aos precedentes tem muito mais potencialidades que resolver casos iguais, e
exige do aplicador um processo muito mais estruturado de formação do argumento que a invocação de
uma norma geral.
Orientase não apenas para o passado, a reger conflitos que se reproduziram, mas também e
principalmente para o futuro, ao garantir que haverá coerência na aplicação do direito pelo Poder
Judiciário. Os cidadãos poderão pautar suas condutas na expectativa de como se orientam os tribunais
diante de determinadas circunstâncias. O próprio Poder Judiciário tenderá a funcionar de maneira mais
sistêmica e estável.
É esta inconsistência do modelo de respeito aos precedentes em construção no Brasil que deve ser
percebida, de forma a que se procure atribuir maior valor à fundamentação dos precedentes, sua ratio
decidendi, de forma que o sistema concebido seja verdadeiramente capaz de alcançar os propósitos
pretendidos pelo legislador, de segurança jurídica e estabilidade.
Não confundem a tese jurídica, que vem sendo retirada ao final dos julgamentos de repercussão geral
e repetitivos, e a ratio decidendi dos precedentes.
A primeira vem sendo construída como um preceito genérico e abstrato, semelhante à lei, que
proclama o resultado de um julgamento, com a expectativa de ampla aplicabilidade a casos onde a
mesma questão tenha sido suscitada.
Ratio decidendi é expressão latina que pode ser traduzida na expressão razão para a decisão. A ratio
decidendi de uma decisão é o princípio (ruling on a point of law, nas palavras de BANKOWSKI;
MacCORMICK e MARSHALL, 1997, p. 338) que se extrai especialmente (embora não exclusivamente,
segundo MARINONI, 2013, p. 220) da fundamentação de um julgado. São os motivos determinantes da
decisão, passos necessários para que o julgador chegue a um determinado resultado, a ser construído
à luz dos fatos da causa de onde se originou e que destes não se abstrai.
É também conhecida como holding ou rule de um caso. Uma proposição (ou mais de uma) extraída da
decisão, e que é passível de se abstrair e se reproduzir para reger casos fundados em circunstâncias
semelhantes, por um processo de universalização que deve ser empreendido pelo intérprete
(GUASTINI, 2011, p. 264). É destinada a ser a porção transcendente e vinculante de uma decisão.
TERESA ALVIM (2012, p. 44) a associa à rule, ao coração de um julgamento, à proposition of law,
explícita ou implícita, considerada necessária para a decisão.
Daí já se extrai o que a ratio não é: Ela não expressa o que o tribunal ao final decidiu, mas sim e
especialmente por que o tribunal assim decidiu.
A ratio decidendi em um julgamento traduzse pelos princípios jurídicos, morais, políticos, sociais nos
quais o órgão julgador baseou sua decisão. Tratase de princípios enunciados a partir do exame de
fatos concretos e do conflito que estava sob apreciação do órgão que criou o precedente.
A ideia, nos sistemas que adotam o julgamento com base em precedentes, é de que esse princípio
possa ser abstraído da decisão em que foi enunciado ou construído, para ser utilizado em outros casos,
em que o mesmo contexto de fato se apresente à decisão.
É, portanto, a ratio decidendi em um precedente, o elemento essencial para a aplicação do princípio do
stare decisis.
É o elemento vinculante do precedente em um sistema tradicional, mas sua aplicação só poderá
ocorrer, para regular outros casos, se a nova situação de fato puder identificarse à que foi examinada
no caso já julgado.
É por essa razão que há muitos anos Lord Dunedin, da Câmara dos Lordes do Reino Unido, advertiu que
a ratio é de observância obrigatória, “but only on the footing that it leads to that judgement”.
O elemento vinculante, a rule a ser perseguida em um precedente e que terá sua aplicabilidade
avaliada no julgamento de casos subsequentes, não é a tese jurídica que vem sendo construída e
enunciada nos julgamentos de repercussão geral, como a que se expressa no preceito “são
inconstitucionais o parágrafo único do artigo 5.º do DecretoLei 1.569/1977 e os artigos 45 e 46 da Lei
8.212/1991, que tratam de prescrição e decadência de crédito tributário.”
A rule, ou ratio decidendi, ou holding do caso resultante no julgamento do RE 559.943 pelo Supremo
Tribunal Federal deve ser buscada nas razões desta inconstitucionalidade, nas questões de fato e de
direito consideradas pela maioria dos ministros para que se concluísse que a norma é incompatível
com a Constituição e que, em consequência, essa norma não tem potencialidade para definir os prazos
de prescrição e decadência de contribuições sociais.
No caso, uma lei ordinária invadiu matéria reservada pela Constituição à lei complementar, dispondo
sobre prescrição e decadência, que se qualificam como normas gerais de direito tributário.
Compreendido que foi esse o motivo da decisão, sempre que uma lei incorrer no mesmo erro,
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incorrerá em inconstitucionalidade e não se deverá decidir de forma diversa. O julgamento pela Corte
Superior não precisa produzir efeitos apenas sobre os processos em que se discutiu a
constitucionalidade dos arts. 45 e 46 da Lei 8.212 e o art. 5.º do Dec.lei 1.569/1977. Aplicar
precedente é muito mais que isso.
A enunciação de teses que não trazem referência aos seus fundamentos determinantes, entretanto,
convida as demais instâncias a reconhecer vinculação apenas à norma enunciada e não à ratio
decidendi dos julgamentos. E por mais que o direito brasileiro seja centrado na lei, e que a tese da
inseparabilidade absoluta entre questões de fato e de direito não se sustente (TESCHEINER, 2015), a
adoção de um sistema de respeito aos precedentes demanda atribuir maior valor à motivação das
decisões, como elementochave para sua aplicabilidade, o que exige percorrer os fatos que originaram
o julgamento paradigma.
5 A possível compatibilidade entre ratio decidendi e tese jurídica
Num sistema de tradição dogmática, como o brasileiro, talvez os conceitos de ratio decidendi e tese
jurídica possam conviver, reconhecendose a ambos o efeito vinculante e transcendente.
Não se desconhece que a expressão “tese jurídica” foi trazida pelo legislador, que a ela atribuiu efeito
vinculante (CPC (LGL\2015\1656) arts. 927, 985, 987, § 2.º, 1.040), estabelecendo, ainda, que sua
eventual revisão, pelas consequências que terá, deverá ser precedida de amplo debate.
Esse mesmo legislador, conforme assentado na própria exposição de motivos do novo Código de
Processo Civil, ao introduzir um sistema de precedentes vinculantes no direito brasileiro, estabeleceu,
no art. 927 que os juízes e tribunais observarão os acórdãos (não apenas as teses jurídicas) originados
de julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos. Deixou claro que “o conteúdo do
acórdão abrangerá a análise dos fundamentos relevantes da tese jurídica discutida” (art. 1.039, § 3.º).
E no art. 489, § 1.º, V, registrou expressamente que a sentença, ao invocar precedente, deverá
identificar os correspondentes fundamentos determinantes e a demonstração de que o caso sob
julgamento a eles se ajusta, estabelecendo, também, que para deixar de seguir um precedente o juiz
deverá demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
A expressão “tese jurídica” convida, sem dúvida, à abstração, à formulação e à posterior busca, pelo
aplicador do direito, de uma solução em tese, uma norma.
Esta solução adotada no julgamento paradigma, porém, não se abstrai completamente do conflito que
lhe deu origem e de todas as circunstâncias consideradas relevantes para que se decidisse por um
determinado caminho ao julgar. Não se trata de uma lei. Tratase de um precedente e o elemento
essencial de um precedente é sua ratio decidendi.
Assim, para além da tese, é necessário buscar, nos precedentes dos tribunais superiores e nos que
resultarem do julgamento dos incidentes de resolução de demandas repetitivas e de assunção de
competência, os fatos e questões jurídicas que estavam sob apreciação e que foram considerados
substanciais para a decisão tomada.
Um caminho possível, e que tornaria mais clara esta vinculação da tese extraída do precedente aos
seus fundamentos determinantes, seria construir a tese de forma a trazer conjuntamente sua
motivação essencial. Em recente estudo sobre o tema já se sustentou, inclusive, que “o conceito de
tese jurídica adotado pelo novo Código parece guardar correspondência com o conceito de ratio
decidendi” (MELLO e BARROSO, 2016, p. 34).
Para tanto, porém, a tese deveria agregar os fundamentos determinantes da decisão e os tribunais
superiores deveriam acolher, frente à criação de um sistema de respeito aos precedentes, a teoria da
transcendência dos motivos determinantes, no que parece haver ainda alguma resistência.4
Percebese que em algumas oportunidades, ao fixar teses jurídicas após os julgamentos de questões
constitucionais com repercussão geral e de questões repetitivas, o STF teve essa preocupação. Alguns
exemplos servem para demonstrar a diferença entre esta espécie de formulação e aquela em que
apenas se enuncia um preceito:
A Emenda Constitucional 10/1996, especialmente quanto ao inc. III do art. 72 do ADCT (LGL\1988\31),
é um novo texto e veicula nova norma, não sendo mera prorrogação da Emenda Constitucional de
Revisão 1/1994, devendo, portanto, observância ao princípio da anterioridade nonagesimal, porquanto
majorou a alíquota da CSLL para as pessoas jurídicas referidas no § 1.º do art. 22 da Lei 8.212/1991
(RE 587.008).
Não foi recepcionada pela Constituição da República de 1988 a expressão “nos regulamentos da
Marinha, do Exército e da Aeronáutica” do art. 10 da Lei 6.880/1980, dado que apenas lei pode definir
os requisitos para ingresso nas Forças Armadas, notadamente o requisito de idade, nos termos do art.
142, § 3.º, X, da Constituição de 1988. Descabe, portanto, a regulamentação por outra espécie
normativa, ainda que por delegação legal (RE 600.885).
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É inconstitucional a aplicação retroativa de lei que majora a alíquota incidente sobre o lucro
proveniente de operações incentivadas ocorridas no passado, ainda que no mesmo anobase, tendo em
vista que o fato gerador se consolida no momento em que ocorre cada operação de exportação, à luz
da extrafiscalidade da tributação na espécie (RE 592.396) (O itálico não é do original).
Nestes e em alguns outros casos, o STF não se limitou a afirmar uma inconstitucionalidade ou editar
determinada norma. Os enunciados formulados, conforme se pode observar nas transcrições em
itálico, trouxeram seus fundamentos essenciais. No primeiro exemplo, não houve apenas a enunciação
de que a Emenda 10/1996 violou o princípio da anterioridade nonagesimal. A Corte assentou que a
Emenda 10/1996 deveria observar o princípio da anterioridade nonagesimal porque majorou a alíquota
da CSLL.
Este fundamento determinante servirá não apenas ao julgamento de casos de contribuintes que foram
submetidos à majoração da CSLL pela Emenda 10/1996. Em todos os casos nos quais, tendo havido
aumento da carga tributária das contribuições (ao que corresponde um aumento de alíquota), será
necessário observar a anterioridade nonagesimal, inclusive se esse aumento ocorrer em decorrência de
uma Emenda Constitucional.
Nos demais exemplos também é possível antever, por seus fundamentos determinantes, que a
aplicabilidade não ficará restrita aos casos especificamente julgados, porque a ratio decidendi é ampla.
Se determinada norma regulamentar não foi recepcionada pela Constituição, porque apenas a lei pode
definir requisitos para ingresso nas Forças Armadas, a ratio poderá ser invocada para afastar outros
requisitos de acesso ao serviço militar que tenham sido definidos por regulamento.
Percebese, portanto, que é possível obter uma enunciação com caráter mais geral, ao final do
julgamento dos casos paradigma, prevendose sua aplicabilidade futura, numa adaptação do sistema
de precedentes à tradição brasileira, sem abrir mão, porém, da ideia de que é a ratio decidendi o
elemento verdadeiramente vinculante em um precedente e que dela a enunciação do resultado não se
poderá desvincular para impor soluções em abstrato.
Esta técnica, porém, foi utilizada em pouquíssimos casos no STF. A quase totalidade das teses
enunciadas ao término dos julgamentos de questões constitucionais com repercussão geral constituise
de preceitos desvinculados de suas causas.5
O Superior Tribunal de Justiça vem adotando procedimento que melhor vincula os princípios extraídos
dos julgamentos dos seus fundamentos determinantes. Em diversos exemplos se verifica que as teses
jurídicas, no STJ foram construídas de forma a deixar assentada as razões de decidir de uma ou outra
forma. Encontramse, na pesquisa dos julgamentos dos temas repetitivos, enunciados que associam a
prescrição (preceito) e a descrição dos motivos que a originou:
A tese construída no julgamento do REsp 1.350.804 pode ser citada como exemplo:
“À mingua de lei expressa, a inscrição em dívida ativa não é a forma de cobrança adequada para os
valores indevidamente recebidos a título de benefício previdenciário previstos no art. 115, II, da Lei
8.213/91 que devem submeterse a ação de cobrança por enriquecimento ilícito para apuração da
responsabilidade civil”
A ausência de lei expressa foi o fundamento determinante, no caso, para que se negasse a
possibilidade de execução fiscal de débitos originados de pagamento de benefício previdenciário.
Ainda assim, mesmo que se adote como procedimento trazer para o conteúdo das teses jurídicas a sua
ratio decidendi, será necessária a leitura do precedente, integralmente, para conhecer as
circunstâncias em que enunciadas.
O conflito julgado, seu contexto, as circunstâncias consideradas relevantes para a solução da causa,
são elementos que dificilmente constarão em um enunciado geral, embora seu conhecimento seja
absolutamente necessário quando se fundamenta com base em um precedente, ao julgar um caso
subsequente.
É fundamental que os próprios tribunais superiores deixem claro que os fundamentos determinantes
dos seus julgados, em um sistema de respeito aos precedentes, são dotados de transcendência e de
efeito vinculante, qualidades que não são exclusivas das teses tal como vêm sendo enunciadas.
E quando se verificar que o caso escolhido inicialmente para ser o paradigma tem especificidades que
não recomendam a enunciação de um princípio de direito com efeitos expansivos, os tribunais
superiores deverão refrear eventual iniciativa de enunciação de tese ao final do julgamento. Isto vem
sendo percebido pelos Ministros do STF e do STJ, que, em alguns casos, vêm debatendo sobre a
conveniência ou não de fazêlo, já tendo concluído, por exemplo, no RE 580.264, por não fixar tese
jurídica, diante das peculiaridades do caso concreto.6
6 A busca da ratio decidendi em um precedente
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Procurase essencialmente (embora não exclusivamente) na fundamentação a razão de ser de um
precedente, sua ratio decidendi.
É necessário saber identificar a ratio, avaliála, distinguir no seu contexto o que foi considerado
determinante para a decisão e o que foi apenas circunstancial (obiter dictum). Isto exige o domínio de
técnicas ainda pouco difundidas no sistema processual pátrio.
Além disso, tais técnicas não poderão ser simplesmente transpostas e aplicadas aos precedentes, sem
uma necessária contextualização ao modelo brasileiro de produzir precedentes.
O grau de abstração das questões constitucionais de repercussão geral e das questões
infraconstitucionais, que, ao final, resultam na enunciação das chamadas teses jurídicas pelos tribunais
superiores, não se identifica com o modelo adotado pela Suprema Corte dos Estados Unidos e, menos
ainda, com o concebido pelos ingleses, ambos muito mais vinculados aos fatos da causa eleita como
leading case do que ao direito em abstrato.
A tese tem trazido apenas a solução da questão jurídica, encartada em preceito de caráter normativo,
com expectativa de ampla aplicação, não a causa para esta solução. Seu suporte fático facilmente, no
atual contexto, abstraise do caso paradigma. A tese, tal como vem sendo concebida, responde à
indagação: o que o tribunal superior decidiu?
A ratio decidendi, como já referido, equivale ao porquê.
O caminho do intérprete e aplicador do direito até a ratio não é tão simples. Fazse necessária a leitura
de toda a decisão candidata a precedente, das principais peças do processo que o originou. É preciso
identificar qual a principal questão que estava sendo solucionada pela corte do precedente e, para
tanto, será necessário conhecer o conflito, saber quais as questões de fato e de direito que foram
debatidas naquele caso, até que a Corte chegasse a uma decisão.
Neste processo, o jurista terá que indagar como e em que medida os fatos do caso julgado
influenciaram na construção do princípio jurídico que conduziu à decisão e distinguir todas as questões
jurídicas enfrentadas para que a decisão fosse tomada. Será fundamental, ainda, examinar o julgado
candidato a ser paradigma à luz de outras decisões, da mesma Corte ou de corte superior, de forma a
delimitar seus efeitos, conhecer as tendências daquele tribunal e saber se o precedente ainda está
vigente.
Só então será possível determinar, no conteúdo da decisão, qual a rule que dela decorreu para
solucionar o caso.
Uma vez identificada a ratio, a possibilidade de sua utilização para solução de casos subsequentes
demandará percorrer um novo caminho, muito mais analógico que silogístico.
A maior ou menor extensão da ratio decidendi em um precedente ditará a sua potencial aplicabilidade
aos casos subsequentes. Quanto mais abrangente for o princípio de direito que se extrair do
julgamento, maior será sua perspectiva de incidência.
A probabilidade de que um caso sob apreciação seja julgado a partir do que foi decidido em outro caso
anterior diminui na medida em que aumentam as diferenças entre os fatos presentes em um e outro
caso. Segundo afirmam CROSS & HARRIS, “Judgments must be read in the light of the facts of the
cases in which they are delivered” (1991, p. 43).
As decisõesparadigma, no sistema de precedentes brasileiro, são forjadas a partir de fundamentos de
fato e de direito advindos das mais variadas origens, como audiências públicas, recursos repetitivos,
atuação dos amici curiae, etc., de forma que seus fundamentos determinantes não necessariamente
serão encontrados a partir de questões de fato e de direito suscitados no recurso inicialmente eleito
para ser um futuro leading case.
A busca da ratio decidendi, em tais condições, deverá ser empreendida a partir de todos os elementos
efetivamente considerados, de forma a extrairse, para efeitos de universalização, o que for
determinante. É neste processo que se encontrará o princípio ou rule do precedente brasileiro. Este
princípio, ainda que tenha sido construído a partir de elementos aportados de múltiplas fontes ao
momento da decisão, estará sempre relacionado a fatos especificamente analisados e a questões
jurídicas determinadas, tratados como fundamentais na construção do julgamento. Não há como
abstraílo do contexto de onde proveio, por mais amplo que tenha se tornado este contexto em razão
da sistemática de julgamento.
Este princípio de direito, informado pelos fatos materiais levados a julgamento, não estará
necessariamente contido no voto do relator. É possível que tenha que ser extraído da leitura de
diversos votos dos magistrados que participaram daquela decisão. É que com muita frequência, em um
julgamento colegiado, no Brasil, chegase a uma mesma conclusão – que aqui se poderia chamar de
tese – porém por fundamentos absolutamente diferentes. É comum ouvir dos julgadores a frase
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“acompanho o relator por outros fundamentos”. Este dissenso quanto à razão de decidir torna mais
difícil, em um sistema de precedentes, a identificação da verdadeira ratio do julgamento.
Uma solução possível, que tornaria mais simples a identificação da ratio decidendi e que não
demandaria mais que uma alteração regimental ou mesmo mudança nos procedimentos das cortes de
precedentes, seria a instituição da figura jurídica da majority opinio nos julgamentos, a exemplo do
modelo adotado na Suprema Corte dos Estados Unidos.
O Relator ficaria com a missão de registrar, ao lavrar o voto condutor do acórdão, não apenas a sua
posição, que, quanto ao dispositivo prevaleceu, mas as razões consideradas como fundamentos
determinantes do julgado para a maioria da Corte, sem prejuízo de que o relator agregue seus próprios
fundamentos excedentes ou diferentes, na condição de obiter dicta. Da mesma forma, os demais
julgadores não ficariam impedidos, sempre que desejassem, de formular seus votos em separado, mas
seria muito mais seguro, para a comunidade jurídica, ao interpretar aquele precedente, saber que os
fundamentos determinantes para a maioria do colegiado que construiu o precedente, estarão
especialmente concentrados no voto daquele que foi designado relator para o acórdão. E, mais que
isso, que houve um (ou mais) fundamento determinante acolhido pela maioria, ao decidir.
Embora atribuir tal missão aos relatores venha a onerar ainda mais seu trabalho na Corte, exigindose
uma espécie de construção negociada de consenso quanto às razões da maioria, devese ter presente
que em uma verdadeira corte de precedentes, os magistrados deverão ter a possibilidade de dedicar
se de forma mais profunda a cada decisão, ainda que para isso tenham que abrir mão de outras
competências que tradicionalmente abraçaram.
7 Considerações finais
O novo Código de Processo Civil afasta qualquer dúvida que pudesse ainda haver quanto à centralidade
do elemento fundamentação nas decisões judiciais e nas peças jurídicas em geral.
A introdução de um modelo de vinculação aos precedentes judiciais no Brasil exige um repensar do
caminho tradicional de formação do argumento jurídico, essencialmente silogístico, já que,
diferentemente da lei, normalmente adotada como premissa maior, a construção e posterior utilização
de um precedente como razão de decidir exige argumentação indutiva, dialógica e problematização.
Requer muito mais que a busca de normas abstratas onde possam ser enquadrados os conflitos.
Na prática, porém, no Brasil, não é esse o discurso que vem sendo construído na fundamentação de
decisões e demais peças jurídicas. Também não é pressupondo estas diferenças que os precedentes
vêm sendo construídos pelos Tribunais Superiores. Editamse, sob a denominação de teses,
verdadeiras normas jurídicas nos julgamentos dos casos de repercussão geral e repetitivos.
E estas normas tendem a ser (e vêm sendo) invocadas como premissa maior em julgamentos
subsequentes, sem que se perceba a necessidade de recorrer à sua origem, àquilo que foi
determinante para que as cortes decidissem em um e outro sentido.
É importante repensar a enunciação e o papel das teses ao final dos julgamentos de temas de
repercussão geral e recursos repetitivos, de forma a que se coloque nos trilhos o sistema de
precedentes brasileiros, que deve ter na ratio decidendi e não na proclamação da solução para o caso,
o elemento vinculante.
Não há óbices a que convivam a tese e a ratio enquanto elementos vinculantes no sistema de
precedentes em construção. A lei orienta para que assim ocorra. Será necessário, porém, que na
construção das teses sejam agregados seus fundamentos determinantes e que os tribunais superiores
deixem claras a transcendência e a vinculação dos fundamentos determinantes dos seus julgados, que
devem ser procurados, pelo intérprete para além do conteúdo das teses e ementas.
O uso da sistemática da majority opinio do direito norteamericano poderá facilitar esse processo.
Aos aplicadores dos precedentes vinculantes, agora fontes primárias do direito, será necessário
revisitar o tema da argumentação jurídica, questionar a adequação do modelo tradicional,
essencialmente dedutivo, frente à necessidade, agora imposta legalmente, de fundamentação de
decisões, petições e pareceres com base em precedentes judiciais, cuja utilização, como conteúdo
motivacional, exige raciocínio indutivo e dialógico.
O sucesso das mudanças implementadas no sistema jurídico, pela criação de um modelo de respeito
aos precedentes, está na dependência dos primeiros movimentos que a comunidade jurídica lhe
imprime, e, em especial, o próprio Poder Judiciário. Estes movimentos devem ser engendrados de
forma a assegurar consistência e efetividade ao novo modelo, criado que foi não apenas para
uniformizar a jurisprudência frente a casos que se repetem, mas sim e principalmente com vistas à
obtenção de maior coerência e segurança jurídica na construção e aplicação do Direito.
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