E-Book Narrativas Diversas

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 238

ORGANIZADORES AUTORES

Andréa Moraes Ana Clara Oliveira


Jackson Tea Ana Maria Rodriguez Costas
Thiago Pirajira Andréa Moraes
Betha Medeiros
FOTO DE CAPA Carolina Romano de Andrade
Adeloya Magnoni, Carolina Teixeira
a partir de performance Débora Souto Allemand
de Sanara Rocha Deise de Brito
Felipe Cremonini
PROJETO GRÁFICO Jackson Tea
Pomo Estúdio Josiane Franken Corrêa
Karen Tolentino de Pires
REVISÃO Kleber Lourenço
Lácio Laura Franco
Lindete Souza
Luciano Correa Tavares
Márcia Mignac
Mariana Gonçalves
Mario Lopes
Monica Dantas
Pedro Bertoldi
Pedro Delgado
Priscila da Rosa
Rodrigo Teixeira
Rosemary `Rosa` Cisneros
Sanara Rocha
Thainan Rocha
Thaini Menegazzo
Thiago Pirajira
Viviam Caroline
NARRATIVAS
DIVERSAS
nas artes cênicas
Volume II

Organizadores
Andréa Moraes
Jackson Tea
Thiago Pirajira

Porto Alegre
2022
SUMÁRIO
5 APRESENTAÇÃO

10 1. DANÇAS NEGRAS E DIÁSPORA: visibilidades epistêmicas


Luciano Correa Tavares, Lindete Souza, Deise de Brito
e Kleber Lourenço

34 2. MULHERES-TAMBOR: rupturas no tempo


Jackson Tea, Sanara Rocha, Viviam Caroline, Laura Franco

39 3. DANÇA NA ESCOLA: abordagens artísticas,


inclusivas e diversas
Débora Souto Allemand, Josiane Franken Corrêa,
Ana Maria Rodriguez Costas (Ana Terra),
Carolina Romano de Andrade e Karen Tolentino de Pires

54 4. CORPOS BICHA EM PROCESSO


DE TRANSPERFORMACIONALIDADE POÉTICA
Pedro Delgado e Monica Dantas

80 5. ORIENTALISMO E DECOLONIALIDADE NA DANÇA:


da pesquisa à prática docente
Andréa Moraes,Rosemary `Rosa` Cisneros, Márcia Mignac
e Ana Clara Oliveira

108 6. CAINDO DE PARAQUEDAS NA PEDAGOGIA


DAS ARTES CÊNICAS E SEM ACESSIBILIDADE
Betha Medeiros, Carolina Teixeira, Pedro Bertoldi
e Rodrigo Teixeira

132 7. OCUPAÇÕES ARTÍSTICAS DA CIDADE:


do espaço alternativo ao site-specific
na práxis cênica da trupe Sinhá Zózima
Jackson Tea

162 8. IMAGINAÇÃO RADICAL E PRODUÇÃO DE FUTUROS


Mariana Gonçalves, Mario Lopes e Thiago Pirajira

190 9. PESQUISA EM ARTES CÊNICAS


Felipe Cremonini, Thainan Rocha, Thaine Menegazzo
e Priscila da Rosa

222 SOBRE OS AUTORES E AS AUTORAS


A pre se n t aç ão

NARRATIVAS
DIVERSAS
Os escritos que compõem esta publicação
são derivados das análises e diálogos es-
tabelecidos no II Seminário Discente Nar-
rativas Diversas nas Artes Cênicas, pro-
movido pelo Programa de Pós-graduação
em Artes Cênicas do Instituto de Artes da
Universidade Federal de Rio Grande do
Sul, em dezembro de 2021.
Neste compêndio, além de termos
a possibilidade convencional de acesso ao
conteúdo, por meio da leitura, apresen-
tam-se propostas multiverso, na qual
alguns capítulos são apresentados em
formato de áudio, em um arquivo digital
transmitido através de hiperligação, ou
seja, através de uma palavra que, quan-
do é clicada pelo leitor, o encaminha para
outra página na internet, a qual contém o
tópico em formato de áudio que possibili-
ta uma variedade de percepção para leito-
res videntes e não videntes.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 5


Nessa orientação, o e-book Narrativas Diversas nas Artes Cênicas
número dois foi concebido a partir do pensamento multiperceptivo acerca
das artes cênicas e, partindo dele, autoras e autores puderam explorar distin-
tas narrativas por meio de debates, ações performáticas e questionamentos
decoloniais que afastam o ordenamento hegemônico das práticas artísticas
plurais, que conformam as artes cênicas contemporâneas do Brasil.
Consequentemente, equivalendo à cena brasileira a fertilidade e a
complexidade, abrimos a seção buscando encontrar caminhos entre a de-
colonialidade e o feminismo na dança, como uma forma de recontar mitos e
fábulas nas quais os gestos, os comportamentos, a poesia, a música e as emo-
ções se unem para documentar o passado dos povos originários e assinalar
movimentos agenciadores para cena atual.
Isso posto, no capítulo inicial, DANÇAS NEGRAS E DIÁSPORA: VI-
SIBILIDADES EPISTÊMICAS, escrito por Luciano Correa Tavares, Lindete
Souza, Deise de Brito e Kleber Lourenço, busca-se olhar para danças afro-
diaspóricas com o objetivo de pautar pesquisas no âmbito da dança em que
os bailados da diáspora negra formam outras epistemes. Em verdade, episte-
mes que já existiam, porém não eram vistas como deveriam, contrapondo-se
aos modos hegemônicos do fazer dança, do pensar dança e do ensinar dança.
Desse modo, as reflexões se conformaram no intuito de reverenciar, reco-
nhecer e resgatar os saberes e os fazeres das ancestralidades do povo negro,
além de apresentar pesquisas que revelam, historicamente e criticamente, as
produções artísticas do vasto território brasileiro.
Avançando nessa direção, no capítulo MULHERES-TAMBOR: RUP-
TURAS NO TEMPO, escrito em formato áudio pelo professor-doutor Jackson
Tea e pelas mestras Sanara Rocha, Viviam Caroline, Laura Franco, há a pos-
sibilidade de contextualizarmos e refletirmos sobre o papel das mulheres nos
rituais, nas festas e nas performances cênicas ao tocarem os seus tambores.
Objetiva-se perfazer percursos e pontuar perspectivas pedagógicas, cênicas e
sociais acerca das mulheres-tambor. Sobressaem, sobretudo, algumas prá-

6 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


ticas pedagógicas, comunitárias e artísticas das mulheres-tambor, por meio
das ações do coletivo percussivo feminino Banda Didah.
Não por acaso, no capítulo DANÇA NA ESCOLA: ABORDAGENS AR-
TÍSTICAS, INCLUSIVAS E DIVERSAS, escrita por Débora Souto Allemand,
Josiane Franken Corrêa, Ana Maria Rodriguez Costas (Ana Terra), Carolina
Romano de Andrade e Karen Tolentino de Pires, propõe-se uma trajetória le-
gal acerca da dança na escola a partir de um infográfico de linha do tempo
que demarca o histórico da legislação nacional ao abordar questões relativas
à inclusão de pessoas com deficiência na aula de dança, e ao trabalho com
temáticas afro-brasileiras. Evidencia-se, de tal modo, as possibilidades e de-
safios da contemporaneidade, refletindo sobre as tensões formadas entre as
políticas públicas e as práticas no cotidiano da escola, a partir de olhares para
os corpos e suas diversidades, que são apresentados por meio de passagens
teóricas e imagens que demonstram a compreensão das autoras sobre a ideia
principal de cada marco legal.
Consequentemente, inspirado nos diálogos e nas exposições relativas
à diversidade e às narrativas de corpos na cena queer, no capítulo CORPOS
BICHA EM PROCESSO DE TRANSPERFORMACIONALIDADE POÉTICA, Pe-
dro delgado e Mônica Dantas desenvolvem uma escrita que busca sintetizar a
criação dramatúrgica do coletivo Cria Tures e, neste, por meio de um exercício
didático, apresentam processos cartográficos denominados bicha cisgêneros,
que são fundamentados em uma metodologia assinalada pelo horizonte da
cartografia, objetivando, assim, subsidiar articulações possíveis entre a teo-
ria queer e os estudos decoloniais.
Nessa toada, no capítulo ORIENTALISMO E DECOLONIALIDADE NA
DANÇA: DA PESQUISA À PRÁTICA DOCENTE, as autoras Andréa Moraes, Ro-
semary Cisneros, Márcia Mignac e Ana Clara Oliveira apresentam suas expe-
riências docentes de artistas pesquisadoras no Brasil e no Reino Unido com a
prática de danças de origem ou influência oriental, a saber, a dança do ventre,
a dança tribal de fusão e o flamenco. Os relatos têm em comum o discurso

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 7


feminista decolonial que enfrenta o orientalismo e suas estratégias de subju-
gação estética, política e artística que subvertem o potencial epistemológico e
criativo dessas danças. Uma vez inseridas na universidade, amplia-se o esco-
po do campo acadêmico da dança, permitindo que mais discursos e poéticas
sejam alcançados.
Na seção seguinte, pontuando as ações de docentes das artes cêni-
cas como agentes públicos articuladores de ações transformadoras para lidar
com o nefasto cenário sociopolítico que compromete a aprendizagem das ar-
tes no Brasil, quatro professoras- artistas, Betha Medeiros, Carolina Teixeira,
Pedro Bertoldi e Rodrigo Teixeira, tecem um debate para ilustrar como se to-
naram docentes das pedagogias das artes cênicas para pessoas com deficiên-
cia. Desse modo, no capítulo denominado CAINDO DE PARAQUEDAS NA PE-
DAGOGIA DAS ARTES CÊNICAS E SEM ACESSIBILIDADE, buscam apresentar
as dificuldades relativas à acessibilidade, inclusão, capacitismo estrutural e,
claro, sobre as benesses comuns que os fazem acreditar que podemos fazer a
diferença na sociedade atual.
Tais questões são relativizadas no capítulo subsequente, OCUPAÇÕES
ARTÍSTICAS DA CIDADE: DO ESPAÇO ALTERNATIVO AO SITE-SPECIFIC NA
PRÁXIS CÊNICA DA TRUPE SINHÁ ZÓZIMA, no qual o autor Jackson Tea pro-
blematiza as distinções e aproximações entre o teatro concebido para espaços
alternativos e as encenações realizadas sob o conceito de site-specific. Para
tanto, efetua uma análise descritiva da criação do coletivo cênico Trupe Sinha
Zozima, dentro é lugar longe e cordel do amor sem fim.
No capítulo IMAGINAÇÃO RADICAL E PRODUÇÃO DE FUTUROS,
Mariana Gonçalves, Mário Lopes e Thiago Pirajira apresentam uma escrita
performativa desenvolvida a partir de suas práticas artísticas. A proposição
surge em diálogo crítico à colonização e aos modos hegemônicos de criação.
É possível que nas rasuras, lacunas, imaginações utópicas, exercícios críticos
à normalidade apontem, desde os processos artísticos, possibilidades de pro-
duzir ou recuperar performances incapturáveis pelas estruturas de poder? As

8 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


ideias apresentadas neste capítulo confluem com esta questão, vislumbrando
caminhos de experimentação e de reflexão.
Encerrando o compêndio, apresenta-se um painel com algumas pes-
quisas em andamentos dos mestrandos do Programa de Pós-graduação em
Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Felipe Cremoni-
ni, Thainan Rocha, Thaine Menegazzo e Priscila da Rosa a fim de prospectar
futuros, epistemologias e desdobramentos investigados que podem demarcar
novos territórios para as artes cênicas brasileiras.
Diante desse vasto horizonte de encontros e reflexões, que confor-
mam o Narrativas Diversas nas Artes Cênicas número dois, podemos aventar
que não apenas os objetos de pesquisa estão sendo transformados, mas que as
narrativas que compõem a cena nacional estão em franca expansão por meio
de ações performativas, provocações didáticas e metodologias críticas que se
regulam por meio da pluralidade multiétnica e da percepção multilateral que
tentamos registrar neste compêndio.
C apí t u lo 1

DANÇAS NEGRAS
E DIÁSPORA:
visibilidades
epistêmicas
Luciano Correa Tavares
Lindete Souza
Deise de Brito
Kleber Lourenço
As linhas que se seguem apresentam falas
da Roda de Conversa que aconteceu na se-
gunda edição do Seminário Narrativas Di-
versas. A referida mesa partiu de um olhar
para danças afrodiaspóricas com o objeti-
vo de pautar pesquisas no âmbito das artes
da dança em que as danças negras da diás-
pora formam outras epistemes. Em verda-
de, epistemes que já existiam, porém não
eram vistas como se deveria, contrapon-
do-se aos modos de hegemônicos do fazer
dança, do pensar dança e do ensinar dan-
ça - quer dizer, ao conhecimento branco
europeu que há séculos se estabeleceu em
todos os âmbitos sociais, e que nas artes
não ocorreu diferente. Trazer essas ou-
tras epistemes foi uma maneira de tornar
visível o que durante muito tempo esteve
inviabilizado, esquecido, apagado. Desse
modo, as falas foram no sentido de reve-
renciar, reconhecer e resgatar os saberes e
os fazeres das ancestralidades de um povo,
de modo direto ou indireto de cada parti-
cipante. As discussões sobre as pesquisas
revelaram historicamente e criticamente
as produções artísticas do vasto território
brasileiro. Na sequência seguem as falas,
de modo editado, do seminário.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 11


Lindete:
Boa tarde, pessoal! A história é a
seguinte: em 1979 ele era bolsista
de uma escola de Ballet daqui de
Salvador. Então ele saltou do ôni-
bus, veio com sua mochila, suado,
para entrar na sala de aula, para

Lindete Souza entrar na escola e na sala de aula,


quando ele dá de frente com uma
das diretoras da escola a qual ele
não conhecia e nem ela o conhecia,
aí ela faz a seguinte pergunta:

Luciano Tavares

Deise de Brito

Seminário Discente PPGAC/UFRGS (2021)


II Narrativas Diversas nas Artes Cênicas
Danças negras e diáspora: visibilidades epistêmicas
Kleber Lourenço Disponível em: https://www.youtube.com/watch?-
v=mcnxwaF8mVM&t=3609s

12 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


- Você pensa que vai aonde?

Aí ele diz:

- Eu vou fazer aula de ballet.

- Não, não é possível. Aqui você não faz aula de ballet.

Ele disse:

- Faço sim, eu sou bolsista aqui, eu já faço há algum tempo


aula de ballet

Ela insiste, incisiva, violenta e diz:

- Não, pessoas como você, com esse cabelo (ele tinha um


cabelo black power), com essas vestes, não podem fazer aula
aqui. Aqui estudam meninas de família.

Aí ele interrompe, falando um pouco mais baixo porque já


tocado pelo que ouviu, e diz:

- Mas eu também tenho família.

Aí ela diz:

- Não. Estou falando “família”. Você não tem família. Pessoas


como você não têm família...

E fecha essa conversa com chave de ouro, para ela, dizendo


o seguinte:

- Pessoas como você não podem ser bailarinos, não sei quem
enfia na cabeça de vocês que vocês têm que ser bailarinos.
Pessoas como você têm que ir para a feira vender limão na
feira e é pra lá que você tem que ir, não aqui.
Ele engole seco, não discu- maravilhoso, a vanguardista que foi
te com ela, passa... vai fazer a aula, criada nessa época em 1979 que foi
chora muito. Quem conhece Salva- “Os Frutos Tropicais”, um grupo só
dor, em frente a essa escola do teatro de homens. Então, o ano era 1979 e
tem um monumento do Caboclo e a esse rapaz, o Luiz Bokanha, negro e
gente sempre diz “foi chorar no pé periférico, era bolsista e fazia suas
do Caboclo”, ele não! Literalmente, aulas de ballet sem faltar uma aula
ele não foi chorar no pé do Caboclo. sequer, porém, insatisfeito porque
Aí ele entra na sala de aula, segura a estava sempre carregando as baila-
barra, faz a aula dele toda de ballet, rinas brancas, eles não viam dança
chorando, mas continua o trajeto para eles, eles não se encontravam
dele na vida como bailarino. nas danças oferecidas e nem eram
Dali, dessa história ouvida chamados para assumirem os papeis
naquele dia na Universidade Federal predestinados dentro do ballet.
da Bahia, eu converso com ele e deci- Então, Eurico de Jesus, Luiz
do escrever um pré-projeto de mes- Bokanha e Antônio Alcântara esta-
trado que foi aprovado pela Univer- vam reunidos conversando na rampa
sidade Federal da Bahia. Eu defendi do Teatro Castro Alves e insatisfeitos
a minha dissertação no dia 30 de se- em não dançarem e não consegui-
tembro deste ano (2021) e o título era rem mostrar o potencial que tinham
O corpo negro negado à dança clássica: - porque eles acreditavam e sabia
não vendi limão na feira! Vida Conse- que eles tinham potencial - eles re-
guida do bailarino Luiz Bokanha. solvem criar um grupo e que eles ba-
Esse rapaz, o nome dele é tizaram de “Frutos Tropicais” e eles
Luiz Bokanha, no ano de 1979 ele se disseram “O grupo somente será
junta com outros rapazes e resolvem de homens. Homens dançando”, e
criar um grupo para eles dançarem - assim foi. Esses homens eram, que
esse corte da minha dissertação que fizeram parte, Eurico de Jesus, Luiz
eu falo para vocês, ela ainda não foi Bocanha, Rogério de Jesus, Antô-
publicada, quando ela for, são quase nio Alcântara, Regininho, Dalmar
180 páginas, vocês vão poder sabo- Lima, Renivaldo Flecha II, Dioní-
rear essa história muito mais. Então, sio Filho, Alberto Jorge Brito - que
eu fiz um recorte em que eu resumi era (Amendoim) o apelido - Edfran,
a vida desse rapaz e de um grupo (Edfan Bispo), Alberto Damasce-

14 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


no “Tarzan”, Albano D’Avila “Mo- romperam com o silêncio da situação
aba”, Wilson Dargolo e Edson Costa subalterna [que a] época proporcio-
“Bego”. Então, o Frutos Tropicais nava na hierarquia colonizadora dos
foi um grupo de grande sucesso em processos históricos que escraviza-
Salvador, onde, sem dinheiro e nem ram e escravizam o povo preto. Eram
apoio nenhum, esses rapazes cons- intérpretes com corpos aptos a ex-
troem um espetáculo com coreogra- pressões artísticas no enfoque histó-
fias próprias, figurinos inventados, rico-cultural que levou à constatação
ressaltando o corpo deles inspirado dos seus determinantes, vida econô-
num espetáculo de Ney Matogrosso, mica sociocultural.
Lenni Dale também, e foi um sucesso Nessa perspectiva desco-
estrondoso em Salvador. briram as possibilidades de realiza-
Bom, reafirmando que tam- ção de um show dançante, cenário,
bém nesse segundo grupo não hou- figurino movimentos coreográficos
ve diretor, por quê? Porque eles en- fizeram a construção de uma lin-
tendiam que a coletividade ia trazer guagem própria que passeava pelas
maior riqueza para este espetáculo, folhas e madeiras no cenário, shorts
então cada um [tinha] uma propos- curtos, fraldão (que é um modelo
ta que era aceita e assim [era] cons- de fralda de neném em tecido sim-
truído esse espetáculo de quase uma ples e barato lembrando também os
hora de duração. Então, o grupo de fraldões africanos), tapa-sexo no
dança Frutos Tropicais é o resultado figurino, dança afro, jazz, samba,
da necessidade mais que urgente que futebol, ritmos caribenhos, carna-
de os corpos negros se expressarem. val, xaxado e afroxé e o que mais a
Um convite a uma nova narrativa so- imaginação pedisse na composição
bre o negro na dança daquele período coreográfica. E eis o espetáculo sem
que se rebela por ter consciência que reproduzir um discurso de corpo ba-
não tinha um papel importante, ser- seado na cultura dominante branca:
vindo apenas para carregar os corpos eles criaram seu próprio vocabulário
das bailarinas brancas. Tinham qua- enquanto sujeitos do próprio corpo e
lidades artísticas, técnicas adquiridas da própria história.
nas aulas de ballet que eram feitas Aqui, nessa ideia, as iden-
lado a lado com o corpo de baile dia- tidades negras subalternizadas en-
riamente sem reconhecimento. Eles contram um ponto de resistência:

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 15


a arte, a dança como processo te- pobre, mal-vestido... depois foi que
rapêutico expressivo onde eles, ra- eles caíram na real, que o problema
pazes artistas, se autoafirmaram e era ser negro. O problema era a ne-
cada um assinou seu próprio nome gritude, é um problema que temos
e sobrenome na história da dança até hoje, mas ainda bem que essas
na Bahia. As narrativas eurocêntri- pessoas vieram antes e plantaram
cas como um modelo civilizatório tudo isso para hoje estarmos aqui
universal precisam ser combatidas podendo falar, podendo dar voz a
e assim esses artistas o fizeram, o histórias como essas afro-negras
pensar artístico foi dentro das pos- histórias dentro da Academia acei-
sibilidades reais e nelas moram a tas, lidas e faladas como numa mesa
cultura negra rica e potente no cer- como hoje. Muito obrigada!
ne todo do trabalho, sendo a força
motriz desse projeto. Das folhas que Deise:
lhe param, perfumaram e decoraram Bem, eu tenho um amor (risos) pelas
o palco aos atabaques e outros ins- relações íntimas entre corpo negro,
trumentos percussivos que embala- ancestralidade e arquivo, o que signi-
ram as coreografias com a poesia das fica ter uma paixão por conhecer his-
canções dando o brilho ancestral, o tórias de pessoas, especialmente, nas
nascimento dos “Frutos Tropicais” Artes Cênicas. Assim, minha soma
e a construção relâmpago em menos para esse encontro parte também
de 45 dias desse espetáculo mostram desse lugar e é uma percepção den-
a dinâmica de guerra pelo simples tre de muitas que existem a respei-
prazer de dançar, prazer e desejo re- to desse território de conhecimento
primido de dançar. É um projeto his- com danças negras. Eu considero que
tórico da dança na Bahia principal- estéticas, estilos acontecem, exis-
mente pelo ponto de partida que foi tem, porque pessoas e outras diver-
a rejeição, a negação do corpo negro sas presenças, bem como as relações
negado na dança clássica. entre elas, existem. Frisando que es-
Naquela época, gente, eles sas últimas podem constituir tanto,
não tinham certeza qual era o pro- consonâncias ou dissonâncias.
blema com eles. Eles achavam, por Ao movimentar uma elabo-
não conseguir trabalhar como bai- ração para dividir minha percepção
larino, eles achavam que era por ser com vocês, eu experimentei des-

16 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


membrar o título da mesa em partes veículo de comunicação visual, mas
de trás para frente em suas pala- eu vou chamar de painel banner di-
vras-chaves. A mesa que tem como gital-, com uma propaganda de uma
título “Danças Negras: diáspora e universidade privada, e a propagan-
visibilidades epistêmicas”. Então, da, ela consistia em uma foto com
eu vou começar pela primeira pa- uma mulher negra de pele, de tona-
lavra que pulsa nesse título que é lidade de pele semelhante a minha,
“episteme”. E a palavra episteme diz com os cabelos curtos, vermelhos,
respeito à produção de conhecimen- maquiagem bem expressiva. E ela
to e neste caminho é sempre impor- tinha uma atitude bem vigorosa na
tante sublinhar que o desafio aqui é fotografia. Quando eu estava retor-
reivindicar por e cultivar condições nando para casa, de novo no ônibus,
para que todas as epistemes coabi- eu encontro outro banner em um
tem os espaços de forma saudável. E outro ponto da mesma instituição.
aproximando um pouco mais o nos- Só que desta vez quem protagoni-
so diálogo, que todos os modos de zava era um homem negro de pele
produção de conhecimento em dan- retinta, cabelo com dreds e com uma
ças negras coexistam em uma core- atitude semelhante à da primeira
ografia responsável e crítica. Neste fotografia que eu havia visto mais
caminho eu tenho sentido, cada vez cedo, [no] mesmo dia. E aí, num pri-
mais, necessidade de ficar atenta meiro momento, se sobrepôs aquela
para não subestimar as coloniali- sensação “uau” “estamos em to-
dades que estão também na minha dos os lugares” (risos) e ao mesmo
cognição, porque o processo colonial tempo, acompanhada desse êxtase
foi sobretudo um projeto de domínio veio uma necessidade precisa de me
sobre as cognições. re-vol-tar. E nesse trajeto de re-
Visibilidade: na última quar- -vol-tar veio a palavra visibilidade.
ta-feira eu fui a uma consulta médi- Porque eu estava pensando no título
ca de rotina e eu passei de ônibus por desta mesa e no que eu poderia con-
uma avenida famosa, aqui da cidade tribuir aqui com vocês, além de ter
de São Paulo, e da janela, em um de- lembrado de uma citação de Beatriz
terminado ponto de lotação, havia Nascimento que eu gosto muito e
uma espécie de banner digital - não que me ajuda nos modos de fazer as
vou saber falar do nome técnico do travessias das minhas investigações.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 17


Eu vou citar a Beatriz agora:

Aceitação, a integração e a igualdade são pontos de vista do dominador, to-


mando como exemplo esses três conceitos poderíamos demostrar como se
torna difícil para o negro que se propõe a estudar a discriminação racial e não
só em si, mas [em] toda a história do negro brasileiro, conceituado seu pon-
to de vista, sua situação e suas aspirações dentro da sociedade dominante.
Torna-se ainda mais difícil a metodização deste estudo, pois, impregnado
de uma cultura em todos os sentidos branca e europeizada, se faz necessário
perguntar-se a si próprio se determinados termos correspondem a sua pers-
pectiva, se não são somente reflexos do preconceito repetidos automatica-
mente sem nenhuma preocupação crítica. Ou seja, se não estamos somente
repetindo os conceitos do dominador sem nos perguntarmos se isto corres-
ponde ou não a nossa visão das coisas. Se esses conceitos são uma prática,
caso fossem uma prática, se isto é satisfatório para o negro. Somos aceitos
por quem? Para quem? O que muda ser aceito? O que ser igual? É possível ser
igual? Para que ser igual? (NASCIMENTO, 2021, p. 55).1

E nessa dança dialógica com a pro- do nisso. Mas para sugerir, eu coloco
paganda, a necessidade das nossas isso, o engajar-se na ocupação dos
presenças em determinados espa- espaços precisa ser antes induzida
ços, o tema dessa mesa – Danças por uma ocupação de si, que não de-
Negras: diáspora e visibilidade epis- safirma o aspecto comunitário. Uma
têmicas e a argumentação cirúrgica ocupação de si em que a subjetivi-
de Beatriz Nascimento, eu me per- dade colonial seja, constantemente,
guntei: quais são as ambiguidades provocada.
e perigos envolvidos num projeto Diáspora: de todas as pa-
de engajamento da visibilidade na lavras correlatas, deslocamento é
cultura do capital, que só assegura, aquela que me causa quase um fas-
cada vez mais, as desigualdades? cínio, porque tem uma significação
Essa pergunta eu faço, não com um que me parece bastante imbricada
intuito de nutrir um sentimento re- à noção de encontro e desse jeito eu
acionário que investe no apagamen- gostaria de dividir com vocês duas
to, até porque eu acho que ocupar imagens. E é interessante quando a
espaços é importante, apoio e isso gente monta uma narrativa a res-
e também se eu estou aqui é porque peito dessas imagens, porque você
tem um processo histórico envolvi- vê que a caída de tronco do Otelo,

1 NASCIMENTO, Beatriz. Uma história contada por mãos negras. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

18 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


ambos, tanto o Otelo como a Jo- Danças Negras: as estéti-
sephine Baker estão com os troncos cas cênicas interligadas aos gêneros
inclinados, mas a caída de tronco, voltados para o divertimento como o
as formas como eles inclinam esse Music Hall, Teatro de Revista, Cabaré,
tronco pra frente, ela pra frente e ele cujas tendências e convenções eram
pra trás, a gente já, como o olhar, muito utilizadas em casas de diver-
com esse corpo imbuído desse uni- timento como Cassino da Urca, eram
verso de dança negra com a qual a produzidos e vivenciados modos e
gente trabalha, a gente já identifica criações que hoje podemos alocar
as assinaturas, assinaturas das dife- num macro campo de conhecimento
rentes partes da diáspora. Uma caí- chamado de dança negras em virtude
da que é mais característica de uma de como esse território de investiga-
experiencia de negritude brasileira ção está constantemente sendo re-
e uma inclinação para frente, uma dimensionado. Visto que nessas es-
experiência de negritude estaduni- téticas a presenças de artistas negras
dense, parisiense, por exemplo. A convergem a um lugar bastante ex-
mesma coisa a gente pode identifi- pressivo, ou seja, é muito comum, foi
car na imagem da Katharine com o muito comum a presença de artistas
Mestre Luiz Gonzaga quando estão negros nos gêneros voltados ao di-
dançando Xaxado juntos estão de vertimento como o Teatro de Revista,
mãos dadas. Então, tem ali um dire- o Music Hall e o Cabaré, não é apenas
cionamento do quadril para o chão o Grande Otelo e a Josephine Baker,
tanto dele como dela que dá pra inclusive a própria Katharine Du-
gente construir, identificar esses nham estava inserida nesse circuito.
modos organizacionais do corpo. Isso não é muito tocado em parte da
Bem, é importante e ressal- historiografia sobre ela, através dos
tar que esses exemplos são experi- documentos é possível ver isso. Uma
ências de micropontos da diáspora, qualidade comum quando eu me de-
um encontro Brasil, Estados Uni- brucei sobre os trabalhos, principal-
dos, França, a saber. E que possíveis mente do Grande Otelo e da Josephine
outros encontros aconteceriam em Baker, foi que a informação sobre al-
outros pontos também, com outras guma pessoa artista negra abre cami-
pessoas, assim como continua ocor- nhos para o conhecimento de outras
rendo, e tão potentes quanto. pessoas artistas negras.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 19


E, nessa nuance, eu consi- logando conceitualmente com a an-
dero que é muito importante, para tropologia da experiência a partir
quem se dedica a construir narrati- da ideia de Artetnografia, que é um
vas acerca das histórias das danças termo cunhado pela minha orien-
negras, tratar realmente diálogo tadora do doutorado que é a Lucia-
com as fontes como um encontro. E na Lira em que ela faz esse diálogo
quando eu me refiro a fontes eu me da Antropologia com a Arte e esse
refiro a orais, inscritas no corpo ou movimento da Artetnografia. É um
também escritas em diversos supor- movimento que eu vou traçando
tes, inclusive, os audiovisuais, além para perceber todo esse movimento
de ser mais do que imprescindível histórico até chegar nas produções e
que a gente se atente para não criar nos processos criativos que eu venho
uma hierarquia nessa conversação. participando atualmente e pensando
Porque da mesma forma que você sobretudo a questão da estética ne-
encontra as presenças documentais, gra nesses processos, essa escritura
elas também te encontram, é uma negra ou o que a gente vem chaman-
dissolução ali, pra mim nesse pro- do de “poética negra”. Quais são os
cesso que eu chamo de encontro e procedimentos? Como se dão os pro-
um processo que envolve um acon- cessos criativos? As metodologias
tecer. É uma dissolução da figura de de treinamento corporal pensando
pesquisador e quem está sendo pes- também a construção das drama-
quisado é realmente ali, todos nós turgias desses trabalhos. E aí eu vou
somos agentes desses processos. fazendo esse percurso todo lá de trás
para chegar nessas produções mais
Kleber: atuais para falar dos processos cria-
Na minha pesquisa de doutorado eu tivos dentro das poéticas negras.
venho tocando um pouco, venho fa- Eu sou um artista do teatro
zendo esse movimento de olhar um e da dança, não só da dança; a minha
pouco a minha trajetória de forma- formação já começa assim num pa-
ção artística e entender também o ralelo. Eu dentro, da área do teatro e
contexto de formação e o contexto da dança, eu atuo no campo da atu-
de produção artística nos lugares ação e da encenação, então eu tenho
onde eu passei. Esse movimento é experiências como diretor e coreó-
um movimento que eu venho dia- grafo e experiências como bailarino

20 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


e como ator também. Sou arte-edu- ele nasce, ele vai falar muito dessa
cador também, fiz a Licenciatura em importância da memória social para
Arte-educação na minha graduação. a gente entender essas questões de
Então, também já atuo desde a ado- negritude. Então, pensando esse
lescência como professor e essa re- contexto de memória social, eu acho
lação com o ensino, muito por con- que o corpo ele já está sendo forjado
ta de uma prática física com essas ali nessa primeira experiência.
duas linguagens, o teatro e a dança Por volta dos 10, 11 anos eu
e essa pesquisa que eu realizo com o vou entrar em grupos de teatro, e
trabalho com o teatro e com a dan- não mais em grupos de teatro da es-
ça está muito em cruzamento com cola, mas grupos de teatro amador,
as culturas populares. Porque sou que era um termo muito utilizado na
pernambucano, e não só porque sou década de 90. Então, eu vou traba-
pernambucano (risos), mas porque lhar com um grupo de teatro amador
cresci e vivi diversas experiências que é onde começa a minha primeira
ligadas a essas tradições populares e formação, meu estudo formal com a
experiências principalmente de pes- linguagem do teatro, com a lingua-
quisas e de produção artística que gem da dança. Porque logo depois
pensavam esse diálogo com as cul- eu vou estudar ballet clássico e jazz
turas populares levando-as para a numa academia com uma professo-
cena, levando-as para um trabalho ra negra a Gil Salles, uma professora
cênico mesmo, um lugar de releitura que vai ao grupo de teatro e parti-
ou de ressignificação. cipava para convidar homens para
As ritualidades internas, dançar. Aí a gente já tem outro ele-
dentro da minha formação fami- mento de discussão, essa questão do
liar, e essa ritualidades vivenciadas gênero, que é pensar o corpo mas-
fora, num contexto coletivo, num culino numa linguagem, num estilo
contexto de memória social- para de dança que é muito mais calcado
utilizar esse termo que o sociólo- para um corpo feminino, que é um
go e filósofo The Boy, William The ballet clássico. Então, você pensa,
Boy, que é um sociólogo com quem uma criança tinha 11 anos de idade,
eu venho também dialogando na um menino, dançando ballet, come-
minha pesquisa estadunidense; lá çando a dançar ballet, mas come-
do finalzinho do século XIX, quando çando a dançar pelo ballet clássico,

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 21


um menino negro e um menino ne- ção mais independente. Então, eu
gro pobre. não era vinculado a um grupo único
Muito cedo, com 15 anos, eu e aí eu transitava e trabalhava com
começo a ser professor, porque al- muitos coletivos e com muitos artis-
gum tipo de conhecimento que você tas, mas antes disso acontecer, que é
tem, você já vai repassando para ou- quando eu começo um trabalho mais
tras pessoas. E aí no grupo de teatro autoral como pesquisador, eu vivi
que eu trabalhava a gente dava ofici- duas experiências importantíssimas
nas, era assim, não existia um estu- para a minha pesquisa do mestrado
do metódico, racional daquilo, mas e pesquisa de doutorado. Eu parti-
uma pedagogia já estava sendo ges- cipei primeiro de uma Companhia
tada e experimentada ali. Um tipo de chamada “Compassos Cia de Dança”
pedagogia mais calcada nesse co- do coreógrafo Raimundo Branco, e
nhecimento empírico nesse repas- o Raimundo Branco, ele é mestre de
se de conhecimento, na relação, na capoeira, ele é capoeirista, ele é ator
convivência, nesse aprendizado de além de diretor e coreógrafo.
troca que é muito propício das tra- Nessa experiência de dois
dições, dos grupos e comunidades anos nessa companhia ele foi bai-
tradicionais. larino do ballet popular do Recife,
Depois dessa experiência e o ballet popular do Recife é uma
com o teatro popular eu migro para instituição muito importante para
o Recife. Começo a minha formação a formação de alguns coreógrafos
na Universidade Federal de Pernam- da dança contemporânea do Recife
buco, faço licenciatura que é a mi- hoje e o Branco, que a gente chama,
nha graduação e vou trabalhar com Raimundo Branco – ele é um des-
muitos artistas da cidade do Recife ses... Então, eu passei um tempo pela
e trabalhar com grupos também, e Compassos e lá a gente tinha um
nessa experiência, tem duas expe- treinamento muito híbrido também,
riências muito marcantes. Eu tra- nós tínhamos aula de teatro, nós tí-
balhei com vários grupos de teatro nhamos aulas de técnica de dança
lá, com diretores e com coreógrafos moderna e contemporânea, tínha-
diferentes também, porque num de- mos aulas de ballet clássico e tínha-
terminado momento eu comecei a mos aula de dança popular. Os espe-
trabalhar com um modo de produ- táculos refletiam esteticamente um

22 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


pouco dessa “mistura”, vamos dizer negras, são pessoas caboclas, mas
assim, que eu acho que é uma coisa isso não era discutido dentro da Cia,
muito característica do modernismo o foco era exatamente a ressignifica-
brasileiro, dessas experiências do ção formal estética dessa experiência
modernismo brasileiro. de beber na fonte popular e levar para
E depois que eu saio des- a cena, configurando aquilo numa
sa Cia eu vou para outra Cia que se dramaturgia, numa escritura muito
chama “Grupo Grial de Dança” di- específica.
rigido pela coreógrafa Maria Paula Em determinado momento
Costa Rêgo, onde fico durante 7 anos eu rompo, eu saio dessa Cia de 7 anos
nessas Cia. E essa Cia foi fundada e vou buscar iniciativas mais auto-
pelo Ariano Suassuna, pelo escri- rais por conta do meu desejo de falar
tor Ariano Suassuna, dentro de um dessa outra subjetividade negra que
pensamento estético do movimento não está necessariamente no passo
Harmorial, que ele criou no final da de dança ou na experiência do reper-
década de 70 para pensar o contato tório corporal. É aquela de reprodu-
com a arte popular, com as tradições zir as danças populares ou a dança
populares, levando-as para cena, afro ou ballet clássico, ou reproduzir
reconfigurando-as na cena. Essa uma técnica específica. Então, eu fico
experiência do Harmorial se deu em pensando, eu quero trabalhar com
cinco linguagens: na literatura, na linguagens híbridas, porque minha
dança, no teatro, na música e nas ar- experiência pessoal vem de um tea-
tes visuais. tro popular que misturava essas lin-
Nós pesquisávamos o ca- guagens o teatro junto com a dan-
valo marinho especificamente, mas ça, junto com a música e de alguma
tínhamos também contato com os maneira eu também me interessava
maracatus, com capoeiristas, enfim. em falar sobre essas subjetividades,
E dentro dessas experiências, existia essas questões mais ligadas ao indi-
uma busca, que eu considero, concei- víduo, ao sujeito. Os temas identitá-
tualmente, por uma ideia de “corpo rios, nesse momento, esse mergulho
brincante” e aí eu ficava: “mas que sobre identidade corporal, sobre cor-
corpo brincante é esse, que corpo poreidade, pra mim estava além de
é esse?” Esses brincadores e esses uma perspectiva da forma do passo
brincantes são na maioria pessoas de dança, da matriz original da dança.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 23


Eu comecei a fazer traba- Eu fui montando esses tra-
lhos autorais e esses trabalhos fei- balhos, criei um coletivo chamado
tos em coletivos, mas alguns desses Visível Núcleo de Criação e essa ex-
trabalhos são solos onde estou só periência do Grial, de pensar esse
em cena, mas criados em coletivos corpo brincante e pensar o que eu
numa dinâmica colaborativa, e nes- chamo de “corpo motriz”, porque foi
ses trabalhos eu fui pautando esses aí no mestrado que eu fiz esse meu
assuntos. O meu primeiro trabalho, primeiro relato de um percurso au-
“Jandira”, falava sobre gênero, so- toetnográfico, onde eu vou falar essa
bre arquétipo feminino. O segundo experiência de sete anos no Grial,
trabalho, “Negro de Estimação”, problematizar um pouco o proces-
que é um trabalho que eu apresento so criativo e essas questões da for-
há 14 anos, ele discute verticalmen- ma, da matriz fixa e da motriz, que
te na dramaturgia as questões de é essa dinâmica que implica numa
racialidade no Brasil baseado num dinâmica de adaptação e de desen-
livro chamado “Contos Negreiros” volvimento. Então, é muito ampara-
do escritor Marcelino Freire. Depois do no conceito de motrizes culturais
eu monto um outro trabalho, “Estar do professor Zeca Ligiéro, que ele vai
Aqui ou Ali”, que é um espetáculo falar desse conjunto de referências
que acontece na rua com uma per- na diáspora que são muito mais mo-
formance, com intervenção pública, trizes que matrizes. Pensando esse
mas também discutindo essa ques- ponto de partida eu fiquei “nossa,
tão de trânsito geográfico de um se eu não estou interessado no pas-
corpo nordestino que transita por so fixo, em algo que é “puro” ou que
várias cidades. E, enfim, de novo está ali estabelecido, eu estou inte-
essas experiências, pessoas sendo ressado na força motriz, eu estou in-
traduzidas, experiências pessoais teressado na dinâmica de processa-
de um indivíduo negro, de um artis- mento desse modo de dançar, desse
ta negro sendo traduzidas na cena modo de atuar e desse modo de ser
de outra maneira que não configu- também, socialmente, vamos dizer
rada no passo de dança ou não con- assim, enquanto sujeito negro.”
figurada numa forma fixa estabe- Pensei, no mestrado, “eu
lecida. Era esse o meu objetivo com vou falar “o corpo brincante VS o
essas experiências. corpo motriz””, e aí fui desenvol-

24 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


vendo um pouco essa experiência, maneira, eu já estava tocando nesses
e aí [por] essa experiência no mes- assuntos todos, na dramaturgia do
trado eu chego no doutorado que trabalho, na experiência e na expe-
eu realizo hoje - na verdade eu es- riência prática.
tou realizando ainda, não defendi, Eu queria finalizar dizendo
próximo ano é meu último ano de que toda essa minha apresentação e
pesquisa, estou fazendo na UERJ, na toda essa minha trajetória na verda-
Universidade Estadual do Rio com de é exatamente a pesquisa. É um en-
a orientação da professora Luciana tendimento de quem eu sou e, até de
Lira, e o mestrado eu realizei aqui alguma forma, para usar o termo que
em São Paulo, na UNESP no Instituto a Deise trouxe e que eu adorei, é uma
de Artes com a orientação da profes- “ocupação de si”, uma percepção de
sora Mariana Monteiro. Então, ago- si para entender quem eu sou coleti-
ra na pesquisa de doutorado eu estou vamente e como eu atuo e posso atuar
verticalizando as experiências que coletivamente. Porque uma coisa não
eu tive com processos criativos den- está desassociada da outra, a gente
tro de grupos intitulados “grupos de sabe que está inteiramente interliga-
teatro negro” porque aqui em São do, eu só existo porque outros exis-
Paulo eu participo de uma experiên- tem nessa perspectiva social. Acho
cia de sete anos dirigindo uma com- que essa percepção, esse movimento
panhia de mulheres negras que é a interno abre possibilidades para o ar-
Capulanas, Cia de Arte Negra, onde tista, principalmente o artista negro
dirigi dois espetáculos lá dentro e que é negado nos espaços de forma-
outros trabalhos menores, interven- ção e de atuação, onde muitas vezes
ções, vídeos. E essa minha vivência é negado esse exercício da subjeti-
com essas mulheres é uma vivên- vidade, da liberdade expressiva, das
cia de muito aprendizado, de muita escolhas estéticas. Inclusive, então
troca e é uma vivencia mais vertica- pra que cada vez mais, nós possamos
lizada nessas questões de entendi- ter essa experiência de poder esco-
mento de uma estética negra. Então, lher esteticamente aquilo que a gente
se naquele momento anterior, lá do quer pesquisar e desenvolver. Para
corpo brincante, do “Negro de Es- também não cairmos numa ditadura
timação”, desse espetáculo, eu já do “como tem que ser feito”, “do que
estava trazendo o êxtase de alguma deve ser feito”, porque isso vai ser

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 25


mais tradicional ou menos tradicio- Kleber:
nal. Porque, também, essa questão de E eu enfatizo muito nessa coisa da
pensar a tradição às vezes implica um escrita de si, Lu, porque como a gen-
exercício de poder que também colo- te parte de uma experiência que é
ca, às vezes, uma certa diferenciação corporal, que é prática e é uma ex-
e desigualdade nos modos de fazer. periência de sujeito negro no mundo
A tradição geralmente está e esse sujeito está inserido no pro-
em um lugar marginalizado, bas- cesso de racismo estrutural e colo-
tante invisibilizado, mas também nizar, então eu enfatizo muito que
às vezes [há] uma busca exacerbada é uma percepção automaticamente
de querer ser “puro”, como se a tra- política, não mais um fazer da dan-
dição fosse pura, e não é. É também ça que está só vinculado à forma, ao
pensar de forma colonial, porque é processo formal de treinamento fí-
um exercício de poder que você pre- sico, de treinamento do corpo ou do
cisa firmar que “eu tenho alguma passo de uma dança, ou uma técnica
tradição para poder ser alguma coi- de dança, é realmente um processo
sa”. Então, eu acho que a gente vive que traz essa dimensão da experiên-
o tempo inteiro esse contato, esse cia do repertório motor corporal e do
trânsito, a gente “é” e “não é”, a vocabulário corporal que a gente vai
gente vive num “entre”. constituindo. Mas o que parece que
fica à frente é essa busca por uma
Luciano: consciência de si mesmo que é uma
Enquanto você falava, me veio mui- dimensão social política e subjetiva
to aquela noção de escritas de si. também, sobretudo subjetiva.
Então um termo que eu gosto bas-
tante e tenho utilizado bastante nas Luciano:
minhas escritas que são “as formas Agora eu gostaria que a Deise vies-
africanizadas de escritas de si”, que se aqui conosco para fazer parte um
inclusive a Luciane Ramos Silva cita pouco dessa nossa roda de conversa,
e que vem da “Formas africanas de de partilhas de pesquisas. Uma fala
escritas de si” do filósofo Achille que a Deise fez e que eu achei muito
Mbembe. pertinente e profundo que é a ques-
tão de engajar-se na “ocupação de
si”, da subjetividade colonial. Então,

26 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


essas formas coloniais que ainda nos de subverter ali processos de apaga-
são impostas, para a gente elas ainda mento, durante a cena inclusive, que
têm um certo poder de tentar o nos- eu identifico. E a Josephine Baker
so apagamento. Isso a gente conse- também que teve uma expoência in-
gue ver diariamente nas mídias so- ternacional, isso é inevitável. Tanto
ciais e televisivas, que quase todos ele quanto ela, enquanto condição
os dias existem questões de racismo econômica, no final da vida, é mui-
e preconceito. Eu vejo a arte que a to inquietante, muito revoltante
gente faz, e a escrita que a gente faz perceber que eles poderiam ter tido
é uma forma de subverter o sistema, uma vida mais descansada. Ela pra-
subverter essas imposições que são ticamente foi despejada da casa, tem
colocadas para a gente. E uma outra uma imagem mesmo dela na casa,
questão que eu tenho bem colocada é resistindo, fazendo barricada na co-
que os sujeitos artistas negros e bra- zinha para não sair… ela tinha um
sileiros, ao mesmo tempo que têm castelo onde ela criou todas os filhos
reconhecimento cultural e na mídia, e filhas de várias etnias, que era um
nesse campo da cultura, socialmente projeto pessoal que ela tinha, uma
não têm essa visibilidade em termos crença pessoal na verdade. E é mui-
de condições sociais, que é uma vida to triste, muito perverso o quanto de
mais digna mais adequada. trajetória que ela teve, com muitas
contradições como qualquer pessoa,
Deise: mas ela teve uma postura política e
Sim! Essa questão de condição de uma posição muito importante.
vida adequada é infelizmente um Eu falo que a Josephine
lugar bem comum, mesmo vendo Baker aparece nesse lugar de en-
experiências artísticas negras como frentamento ao racismo estaduni-
expoentes. Eu vou pegar aqui uns dense e inclusive se deslocando pela
exemplos que, como falei, eu co- América Latina. Conversando sobre
nheço mais intimamente, que é O isso, palestrando sobre isso, denun-
Grande Otelo e Josephine Baker. Ele ciando bem antes da figura do Mar-
foi um ator que teve uma expoência tin Luther King, que a gente conhece
aqui no Brasil, trabalhando ali no como “o cara”. Então, ela vem bem
cinema muitas vezes como coadju- antes dessa galera, e numa posição,
vante, mas com uma técnica própria por ser mulher, por ser uma mulher

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 27


negra e trabalhando como espiã du- te vai para arquivos, para pesquisar
rante a 2ª Guerra... ela tem uma vida essa galera do século XX, do século
que realmente vale essa quantidade XIX para tentar ver essa presença
enorme de todas essas biografias negra, a gente vai cognitivamente.
que ela tem. E no final da vida ela E aí eu falo por mim, achan-
termina com a condição econômica do que não vai achar nada, com olhar
muito dependente de outra pessoa, pessimista, descrendo da própria in-
por exemplo, e o Grande Otelo tem tuição e é muito louco isso. Aí quando
uma história parecida. Então eu acho você pega um periódico, um jornal
que, nesse sentido, é um lugar que a muito famoso no século XX que esta-
gente precisa revisitar bastante para va ali no crescente, que era o Globo,
a gente entender as negociações en- das empresas Globo, você vê muita
quanto artista negro e artista negra gente preta. E aí pesquisando sobre
hoje na atualidade, que a gente faz, a Josephine Baker eu conheci a Miss
elas têm um limite também. Por- Bartira que era uma vedete também
que eu sempre falo quando eu estou de Minas Gerais que também fez su-
analisando os documentos, é como cesso na França. Então, aí você vai
se tanto o Grande Otelo quanto a percebendo que na verdade existem
Josephine Baker e outras pessoas narrativas bem antes dessas nar-
da cena me falassem “Olha, nego- rativas que felizmente a gente tem
cia, mas negocia menos, entendeu? acesso, que é a narrativa da Dona
Porque a gente já negociou demais Mercedes, a narrativa do Dr. Abdias
aqui”. Então, às vezes não negociar e antes do Dr. Abdias e da Dona Mer-
é uma estratégia também e eu fico cedes já tinha uma galera há muito
pensando muito nisso e nesses pro- tempo “trampando”. Por isso que eu
cessos de apagamentos e nesse mo- falo que a gente nunca sai de cena, a
vimento de contra apagamento que a presença negra nunca sai de cena. É
gente faz, nessas escritas de si... você algo que a gente precisa sempre re-
até colocou antes que esse projeto afirmar porque significa que a gente
dos documentos da escravidão que sempre esteve em cena, quer dizer,
foram queimados, que teve um idea- que existiram e existem, como o Kle-
lizador que foi o Rui Barbosa. Só que ber acabou de colocar, muitos modos
em contrapartida, isso é potenciali- de produção, muitas formas de você
zado de um jeito que, quando a gen- pensar cenicamente, muitas formas

28 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


de você pensar cenicamente a pes- com a sua história, a gente conver-
quisa, a investigação. Aí quando eu sa, eu conheço um pouco, mas não
penso o teatro de revista musicado, conhecia e agora fiquei mais ansiosa
onde a investigação se fazia literal- para ler a tese porque eu adoro saber
mente no palco, apresentando ali no histórias de pessoas e, enfim, a sua e
momento, no diálogo, eu fico pen- você, que é um operário da dança, um
sando o quanto de complexidades andarilho, maravilhoso.
estão envolvidas ali naquele jogo e
o quanto de escola e o quanto a pre- Kleber:
sença negra. Inclusive, rasurou os E era uma mulher negra que tinha
códigos ocidentais e francófonos do no ballet, entendeu? Era uma outra
teatro de revista porque, quando você formação. E eu fui catucando essas
vai estudar o teatro de revista, eles várias pessoas e estou levantando
ensinaram apenas os artistas negros, todas essas pessoas dentro da pes-
mas hoje eu defendo que não, gente, quisa. Essa coisa da memória social
a presença negra modificou inclusive e da memória de si, não é só sobre
a dimensão do teatro de revista. mim, é sobre mim em um contexto
E eu acho que por isso que de existência, de vida. Mas, só pon-
esse processo do encontro, onde a tuando uma coisa que você falou
gente sempre pergunta para os arqui- muito legal sobre a importância do
vos, sejam eles arquivos orais ou ar- fabular, porque é isso que você está
quivos escritos, para aquilo que é dito falando, essa coisa já foi modificada,
e para aquilo que não é dito também, você falando aí do teatro de revis-
porque tem muita coisa que não está ta, eles já subverteram essa forma
ali e que a gente precisa perguntar. E eurocentrada, europeia de fazer. O
a nossa história, por conta da experi- corpo negro ali subverteu a partir
ência da diáspora, são histórias mui- da sua própria experiência de cor-
to fragmentadas e entre um espaço po, então essa ideia do modificar é
entre um fragmento e outro a gente o que eu chamo de “motriz”. Então,
precisa fabular, a gente precisa in- essa modificação é a força motriz e
ventar e inventar com gosto, inven- ela é perene, ela está no dançar e está
tar com orgulho e fazer esse processo no viver, é uma instancia artística,
de revisita, que o Kleber está fazendo. mas é uma instância social e políti-
Inclusive, eu fiquei aqui maravilhada ca também e aí é importante fabular

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 29


por isso, porque entre “entre” que a várias pessoas que fizeram parte de
gente não conhece, não sabe, a gente vários grupos. E aí a gente vai ven-
“fricciona”, que é um outro termo do que são muitos protagonistas,
também que eu uso muito na tese. Eu são muitas pessoas fazendo, então
fricciono e vou fazendo essa escri- de fato não tem como a gente não
ta como uma escrita performativa, entender isso como uma forma de
como se eu estivesse desenvolvendo tradição. Uma coisa que se que per-
uma certa dramaturgia ali na escrita. petuou, que continuou.
Tem coisas que a gente fabula e fa- E só um exemplo, olhando
bula para defender, porque a gente para essa história da dança no Brasil
quer que essa história continue né... eu olho que a gente tem essa experi-
eu sei o que eu não sei o que aconte- ência do “TEN”, mas a gente tem ali a
ceu, eu seu o que aconteceu até certo Eros Volúsia, aí vem a Katherine Du-
momento, o que eu não sei eu vou nhan, a Mercedes e tal. Mas na mesma
fabular, para que isso se perpetue, época a gente tinha essa experiência
porque eu estou fazendo uma defesa. de pensar certos tipos de brasilida-
Então, eu acho muito im- des na dança com a Mercedes, fazen-
portante isso que você fala do fabu- do isso na Cia dela, o Ballet Stagium,
lar, da percepção do modificar que fazendo isso aqui em São Paulo, e o
eu acho que são os lugares em que Movimento Armorial fazendo isso no
a gente tem mexido hoje para dar Recife. Provavelmente em Salvador
corpo a essas outras epistemes, para devia ter também alguma experiên-
dar corpo a essas outras epistemo- cia, provavelmente no Norte do país
logias que são essas produções de devia ter uma experiência e a gente
conhecimento de cada território, de não sabe disso e o pouco que a gente
cada comunidade. Aí eu penso sem- sabe é praticamente o que está con-
pre essa comunidade da cena, não centrado no Sudeste do país. A gente
só a comunidade tradicional no rito sabe mais visivelmente dessas expe-
como ele acontece, de uma maneira riências cênicas do Ballet Stagium,
mais ligado à tradição. Mas, pensan- mas na mesma época estava aconte-
do em você como uma pesquisadora cendo três grandes experiências, para
do teatro de revista, eu olhando para citar, assim como a da Mercedes, no
esse passado, na minha formação do Rio de Janeiro e como a do Ariano, por
teatro, eu vou vendo vários nomes, exemplo, em Pernambuco, e pouco se

30 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


sabe isso. Inclusive, nos conteúdos de tórias, e as histórias estão aí para se-
ensino de dança na nossa formação rem vistas e para serem apreciadas.
a gente estuda São Paulo, Rio de Ja- Para finalizar, eu gostaria que vocês
neiro e Belo Horizonte, esses outros fizessem uma fala de trinta segun-
lugares, essas outras experiências. dos para acabar. Obrigado!
Então, esse movimento que a gente
está fazendo, de visibilidade epistê- Deise:
mica, como é o tema da nossa mesa, Gente, eu estou muito agradecida
não é pra gente ficar disputando, mas por estar aqui, sou muito agrade-
tentar equalizar essa desigualdade cida a vocês, gostei muito de ouvir,
epistêmica, essa desigualdade das aprendi muito aqui mesmo. Eu vou
visibilidades e dos conhecimentos. falar uma coisa que, inclusive, eu fa-
lei no lançamento do livro da Nave
Deise: Gris, que é um livro que o Kleber ci-
Até porque quanto mais a gente faz tou e que é um livro lindo, que eu re-
isso, quanto mais a gente evoca es- almente acredito muito na potência
ses diversos olhares e essas diversas do documento, do documento seja
percepções de diversos lugares do ele físico ou desse documento que é
território, mais a gente vai comba- o nosso corpo, e é a partir disso que a
tendo um projeto racista que tenta gente constrói novas possibilidades
sempre reduzir a gente a uma his- e inclusive novas possibilidades da
tória única, a um lugar único, então ocupação de si.
maravilho mesmo, isso, Kleber.
Kleber:
Luciano: Bom, eu também só quero agrade-
Isso aí... estamos quase na hora de cer ... Deise, muito bom te encon-
acabar (risos), que vontade de fi- trar, estava com saudade, a gente
car conversando a tarde toda, muito não consegue se ver aqui, mas foi
bom esses nossos encontros, essas bom demais te ouvir, você sabe da
profusões de ideias, de pesquisas minha admiração por você e pe-
e de histórias de vidas. Nossa, isso las suas pesquisas. Luciano, muito
é muito rico, muito bonito, muito obrigado por mais esse encontro e
lindo a gente poder ter essa oportu- queria agradecer às pessoas que es-
nidade de ouvir e escutar essas his- tavam aqui no chat.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 31


SOBRE OS AUTORES

Kleber Lourenço
Docente temporário Curso de Licenciatura em Dança da UFGRS. Doutorando
e Mestre em Artes Cênicas pelo PPGAC/UFRGS, Bacharel em Biblioteconomia
pela mesma universidade. Bailarino, coreógrafo e diretor.

Lindete Souza
Mestra em Dança pelo PPGDança/UFBA. Cantora Profissional, Atriz Curso
Livre UFBA, Jornalista, Produtora Cultural.

Deise de Brito
Doutora em Artes pelo Instituto de Artes da UNESP. Mestra em Artes ECA/
USP, Graduada em Teatro UFBA. Fundadora e componente do Núcleo Vê-
nus Negra e Ouvindo Passos Cia de Dança. coordenadora do site Arquivos de
Okan.

Luciano Correa Tavares


Doutorando em Artes pela UERJ e Mestre em Artes pela UNESP. Licenciado
em Artes Cênicas UFPE. Ator, Dançarino, Encenador, Coreógrafo, Diretor,
Arte-educador e Pesquisador em Artes da Cena.
Para acessar o conteúdo deste capítulo,
aponte a câmera para QR Code ou clique
no link: https://youtu.be/mcnxwaF8mVM
C apí t u lo 2

MULHERES-TAMBOR:
rupturas no tempo
Jackson Tea
Sanara Rocha
Viviam Caroline
Laura Franco
RESUMO
Neste capítulo teremos a possibilidade
de contextualizar e refletir sobre o papel
das mulheres nos rituais, nas festas e nas
performances cênicas ao tocarem os seus
tambores. Objetivamos, assim, perfazer
percursos e pontuar perspectivas peda-
gógicas, cênicas e sociais acerca das mu-
lheres-tambor.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 35


Jackson Tea Sanara Rocha

Laura Franco Viviam Caroline


Para acessar o conteúdo deste capítulo,
aponte a câmera para QR Code ou clique
nos links:
https://youtu.be/CFrkkuzqjNE (vídeo)
https://tinyurl.com/mvy7mae4 (áudio)
REFERÊNCIAS

ANDERSON, Reynaldo; JONES, Charles E. Afrofuturism 2.0. New York: Lexington Book,
2016.

MARTINS, Leda Maria. Performances do Tempo Espiralar: Poéticas do corpo-tela. Rio


de Janeiro: Cobogó. 2021.

OLIVEIRA, Eduardo D. A Ancestralidade na Encruzilhada: dinâmica de uma


tradição inventada. Dissertação de Mestrado. Curitiba: UFPR, 2001.

OYĚWÙMÍ, Oyèrónké. Conceituando o gênero: os fundamentos eurocêntricos dos con-


ceitos feministas e o desafio das epistemologias africanas. Codesria Gender Series, v. 1,
p. 1-8, 2004.

OYÉWÙMÍ, Oyèrónké. Making history, creating gender: some methodological and


interpretive questions in the writing of Oyo oral traditions. Cambridge University Press,
Cambridge, v. 25, 1998, p. 263-305.

QUEIROZ, Viviam, Caroline de Jesus. Quilombo de Tambores: Neguinho do Samba e


a criação do Samba Reggae como uma tradição negro-baiana. Dissertação (Mestrado
Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade), Instituto de
Humanidades, Artes e Ciências, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2016.

ROCHA, Sanara de Santana. Narrativas fósseis: do tabu à mulher no tambor. Disserta-


ção (Mestrado Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade),
Instituto de Humanidades, Artes e Ciências, Universidade Federal da Bahia, Salvador,
2020.

SANTOS, Inaycira Falcão dos. Corpo e ancestralidade: uma proposta pluricultural de


dança-arte-educação. 2 ed. São Paulo: Terceira Margem, 2006.

SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.


C apí t u lo 3

DANÇA NA ESCOLA:
abordagens
artísticas,
inclusivas
e diversas
Débora Souto Allemand
Josiane Franken Corrêa
Ana Maria Rodriguez Costas (Ana Terra)
Carolina Romano de Andrade
Karen Tolentino de Pires
RESUMO
Tendo em vista o contexto político atual
de retrocessos e de perda de direitos ad-
quiridos nos últimos anos, propomos um
percurso sobre a Dança na escola a partir
de um breve histórico da legislação na-
cional. Com enfoque nas possibilidades e
desafios da contemporaneidade, refleti-
mos sobre as tensões formadas entre as
políticas públicas e as práticas no coti-
diano da escola, a partir de olhares para
os corpos e suas diversidades, abordando
questões relativas à inclusão de pessoas
com deficiência nas aulas de Dança e ao
trabalho com temáticas afro-brasileiras.
Partilhamos, então, um infográfico de
linha do tempo, destacando alguns dos
eventos que consideramos importantes
para o ensino de Dança na escola. O ma-
terial também é recheado com passagens
teóricas relevantes para o estudo e com
imagens que demonstram a nossa com-
preensão sobre a ideia principal de cada
documento legal.

40 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


Dança na escola:
abordagens artísticas, inclusivas e diversas

Introdução

Objetivo

te
m bre
Le

Contatos
Link da Mesa
Linha do Tempo

Criação da Lei de Diretrizes e


Bases da Educação Nacional 1961
4.024

1971 Promulgação da Lei de


Diretrizes e Bases da
Educação Nacional
5.692
RA
DITADU

1978 1979
Lei do Lei de
Artista Anistia

NSTITUIÇÃ
CO
Promulgação da Lei de
OD

1996 Diretrizes e Bases da


E 1988

Educação Nacional
9.394

nota:
Mudanças da décad
a de 1970
para 1996: LDB 939
4 tem
como ideal a forma
ção de
cidadãos e cidadãs,
assim, a
arte e a cultura ser
vem para
construir os sujeitos
crítica e
sensivelmente.
1997/1998
Criação e divulgação dos
Parâmetros Curriculares Nacionais

nota:
Primeira vez que a
dança aparece de
forma explícita como
linguagem artística
específica em um
documento oficial.

2003
Lei 10.639

A cultura negra pode ser considerada uma cultura


matriarcal, assim, ao trabalhar as danças afro-
brasileiras, estamos valorizando a importância das
mulheres negras e possibilitando a representatividade
negra nas crianças.

ras
: Neg de
res entida por
nota u lh
as M uma
e id nça, a
a ç
Muittituem eio da dda danão-
s n
con a por tinênciamais e como
m
r
neg o a perços for cação r uma
iss espa e edu ibilita a e a
nos mais de poss racist rpo
for rma d antir do co ento e
fo cação ização eram i.
edu scolon empod ia de s
de és do ciênc
v ns
atra da co
2005
Parecer do Conselho Nacional
de Educação 22/2005

2007 REUNI

"Entre os anos de 2002 e 2012, observou-se um aumento


significativo no número das graduações em
Dança no país [...]. Podem-se aferir a esse crescimento a
criação de novas instituições superiores e, consequentemente,
a expansão dos cursos superiores, melhor organização
profissional da própria classe, a obrigatoriedade da disciplina
Dança no ensino básico, o desenvolvimento da dança como
área de produção de conhecimento e, de certa forma, o
aquecimento da economia na produção cultural, que começou
a permitir que o artista sobreviva do seu trabalho."

SILVA, 2016, p. 31
2015
Promulgação da Lei 13.146
Estatuto da Pessoa com Deficiência

(BRASIL, 2015)

"Capacitismo é a leitura que se faz a


respeito de pessoas com deficiência,
assumindo que a condição corporal destas é
algo que, naturalmente, as define como
menos capazes"
cação clusiva

(VENDRAMIN, 2019, p. 17).


In

"É urgente que as escolas busquem fazer ver e


valorizar as diferenças que as habitam, pois esse é o
espaço institucional frequentado por crianças e
Edu

jovens no Brasil por, pelo menos, 13 anos de suas


vidas, caso haja permanência até o último nível
l #

ia escolar. Se existe um lugar onde podemos identificar


pec a nossa diversidade, esse lugar é a escola (pública)".
Es
Educação (CORRÊA, 2021, p. 92)

nota:
"Ser capaz de
Se a dança é uma
forma recomeçar sempre, de
de expressão do co fazer, de reconstruir,
rpo,
por que o parâmetr de não se entregar, de
o de
dança que a gent recusar burocratizar-
e têm
está fora do noss se mentalmente, de
o entender e viver a
próprio corpo?
vida como processo,
como vir a ser.... "

Paulo Freire

2015
2016
Promulgação da Lei 13.278

§ º

o
ininh
, p e quen
de lá ho
lá , eu vim pequeninin
im de im de
lá,
“Eu v u v visou
Mas
e me a rinho
Alg u é m
o d e vaga
chã
r neste e avisou ”
Pra p
is a
mm rinho
Algué o d e vaga
chã
is a r neste
Pra p ra)
v o n ne La
Y
(Dona

"Se por um lado se trata da implantação de um


modelo de escola mais abrangente, observa-se
imenso avanço na aplicação dos saberes dos
licenciados, o que se configura como fomento
importante no mercado de trabalho para
professores na área artística."

(SILVA, 2016, p. 32)

nota:
Os documentos norteadores
das políticas públicas para a
educação básica, para o
ensino da arte/dança são
resultantes (marcos legais) de
tensões e lutas políticas
situadas historicamente.
2017 Golpe d
e
Base Nacional

20
Comum Curricular (BNCC)

16
Documento de caráter normativo que define o conjunto de
aprendizagens essenciais que todos os alunos devem
desenvolver ao longo das etapas da Educação Básica. Serve
de base para a construção de currículos, que serão pensados
contextualmente pelas diferentes redes escolares.

Na BNCC, a Dança se
constitui pelo pensamento e Diante da realidade do
sentimento do corpo, por professorado que atua na
meio de experiências escola, que em sua maioria
artísticas sensíveis possui formação em Artes
implicadas no movimento Visuais, os conteúdos
dançado. pautados na BNCC são tão
mínimos e gerais que podem
levar o ensino da dança
para qualquer lado.

nota: ar uma
base
ir e o rganiz id e ia de
Discut o é r u im, a os
al nã s mínim
nacion h e c imento m aé
co n prob le
pautar o é ruim, o s s ão
mn ã t o
també c o n h ecimen
e quais ando a
s
como respeit ades d
e
esses, regio n a li d
il.
d e s e B r a s
icida omo o
especif erso c
p a ís tão div
um

"Posta a urgência da pluriculturalidade na educação


(SANTOS, 2006), reconhecermos na Ginga um interessante
fundamento ético e filosófico, marcador da diversidade
cultural imbricada na formação do povo brasileiro, significa
também reconhecer os legados danosos da colonialidade e
a urgência das lições ancestrais de matriz africana e
indígena nos processos de descolonização da educação."

(PIRES; ALVES NETO, 2021, p. 100-101)


2022
Projeto de Lei 231/2019
Mato Grosso do Sul
Dispõe sobre a proibição de
exposição de crianças e
adolescentes no âmbito escolar, a
DANÇAS que aludam a sexualização
precoce e a inclusão de medidas de
conscientização, prevenção e
combate à erotização infantil, nas
escolas públicas e privadas do
Estado de Mato Grosso do Sul.

A partir de uma discussão superficial sobre o


ensino de Dança na Educação Básica, deputados
estaduais do Mato Grosso do Sul aprovam um
projeto de lei que diz respeito à prática docente de
professoras e professores de dança nas escolas do
Estado. Com um tom voltado à preocupação com a
erotização infantil, tais políticos acabam inibindo o
ensino de Dança nas suas diferentes possibilidades.
O projeto envolve não só a intimidação à
autonomia de docentes desta Área, mas também
valores e ideologias políticas que cercam as escolas
brasileiras, fazendo com que haja perseguição à
práticas artísticas que, de modo algum, buscam a
sexualização precoce de crianças.

nota:
A BNCC pode ser vista, em parte
como um reflexo desse momento
em que os conhecimentos
artísticos são pouco ou nada
valorizados. Não à toa
acontecem movimentos como o
que está ocorrendo no Mato
Grosso do Sul.
Considerações
Como considerações provisórias, trazemos algumas questões
e conclusões que ficaram reverberando em nós após a
discussão na mesa redonda que culminou neste trabalho.
Esperamos que possam instigar leitoras e leitores a novos
movimentos e pensamentos acerca do tema aqui estudado.

Como a legislação tensiona


a abertura de espaços e
como o trabalho no dia a
dia da escola faz com que
se estabeleçam leis para
normatizar o ensino de
dança?

Até q
ue po
nas conse nto
a b a lh a m os guimo
Tr s a realm s
Às veze ente p
brechas. , mas ensino ensar
g is la ç ã o retrocede de da
nça q
num
le os que seja d
m projet ue
já existe e iverso
e
garantias inclus
ivo?
dão alho
t e n t a ç ã o ao trab
sus la.
a na esco
com danç

Educação inclusiva não é


uma missão só de
pessoas com deficiência,
assim como a educação
antirracista não é uma
missão só de pessoas
negras.

Como profissionais da Área da


Dança, temos como tarefa
dar visibilidade ao que
fazemos, para termos força
na conquista de novas
políticas públicas que
respeitem, insiram e valorizem
o ensino de Dança nas escolas
brasileiras.
Referências
ALLEMAND, Débora Souto; CORRÊA, Josiane Franken;
COSTAS, Ana Maria Rodriguez; ANDRADE, Carolina Romano
de; PIRES, Karen Tolentino de. Dança na escola: abordagens
artísticas, inclusivas e diversas. Mesa redonda no Seminário
Narrativas Diversas nas Artes Cênicas. PPGAC UFRGS, 2021.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?
v=dG89UyQj7JE. Acesso em: 30 mar. 2022.

BRASIL. Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961. Fixa as


Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: Presidência
da República, 1961.

BRASIL. Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971. Fixa Diretrizes


e Bases para o ensino de 1° e 2º graus, e dá outras
providências. Brasília: Casa Civil, 1971.

BRASIL. Lei n° 6.533, de 24 de maio de 1978. Dispõe sobre a


regulamentação das profissões de Artistas e de técnico em
Espetáculos de Diversões, e dá outras providências. Brasília:
Casa Civil, 1978.

BRASIL. Lei n° 6.683, de 28 de agosto de 1979. Concede


anistia e dá outras providências. Brasília: Casa Civil, 1979.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil


(1988). Brasília: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996.


Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.
Brasília: Casa Civil, 1996.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros


Curriculares Nacionais: Introdução aos Parâmetros
Curriculares Nacionais. Brasília: MEC; SEF, 1997.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros


Curriculares Nacionais: Arte. Brasília: MEC; SEF, 1997.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros


Curriculares Nacionais: Arte. Terceiro e Quarto Ciclos do
Ensino Fundamental. Brasília: MEC; SEF, 1998.

BRASIL. Lei n° 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei n


o 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade
da temática "História e Cultura Afro-Brasileira" e dá outras
providências. Brasília: Casa Civil, 2003.

BRASIL. Parecer CNE/CEB n° 22/2005. Brasília: MEC, 2005.


BRASIL. Decreto n° 6.096, de 24 de abril de 2007. Institui o
Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão
as Universidades Federais – REUNI. Brasília: Casa Civil, 2007.

BRASIL. Lei 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei


Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto
da Pessoa com Deficiência). Brasília: Secretaria Geral da
Presidência da República, 2015.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum


Curricular: Primeira Versão. Brasília: MEC; SEB; CNE, 2015.
BRASIL. Lei n. 13.278, de 2 de maio de 2016. Altera o § 6o do
art. 26 da Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que fixa
as diretrizes e bases da educação nacional, referente ao
ensino da arte. Diário Oficial da União, Brasília, 03 maio 2016.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação


Básica. Conselho Nacional de Educação. Base Nacional
Comum Curricular: educação é a base. Brasília: MEC; SEB;
CNE, 2017.

CORRÊA, Josiane Franken. Nem sempre funciona: a dança e


a escola. In: CORRÊA, Josiane Franken; ALLEMAND, Débora
Souto (Org.). Dança na Escola: pedagogias possíveis de sôras
para profes. São Leopoldo: Oikos, 2021.

DONA YVONNE LARA. Alguém me avisou. Rio de Janeiro:


Warner Music Brasil, 1981. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watchv=2KAOsDvcUuE&
ab_channel=DonaYvonne Lara-Topic>. Acesso em: 11 out.
2020.

PIRES, Karen Tolentino de; ALVES NETO, Manoel Gildo. Ginga:


uma ideia-corpo contracolonial estratégica para
descolonizar a educação. In: CORRÊA, Josiane Franken;
ALLEMAND, Débora Souto (Org.). Dança na Escola:
pedagogias possíveis de sôras para profes. São Leopoldo:
Oikos, 2021.

PORTAL ANDA. Nota de repúdio Projeto de Lei 000231/2019.


Disponível em: https://portalanda.org.br/2022/03/nota-de-
repudio-projeto-de-lei-000231-2019/. Acesso em: 31 mar.
2022.

SILVA, Eliana Rodrigues. Graduação em Dança no Brasil:


professor como orientador e aluno como protagonista. In:
ROCHA, Thereza (Org.). Graduações em Dança no Brasil: o que
será que será? Joinville: Nova Letra, 2016. P. 29-36.

VENDRAMIN, Carla. Repensando mitos contemporâneos: o


capacitismo. Simpósio Internacional Repensando Mitos
Contemporâneos. Campinas SP: Programa de Pós-
Graduação em Artes da Cena, 2019.

Este infográfico foi criado por meio da plataforma de


design gráfico "Canva", utilizando seus recursos e
imagens. Disponível em: <https://www.canva.com/>
SOBRE AS AUTORAS

Débora Souto Allemand


Professora de Dança do Colégio de Aplicação da UFRGS. Doutoranda no PP-
GAC/UFRGS. Mestra em Arquitetura e Urbanismo, Arquiteta e Urbanista e Li-
cenciada em Dança pela UFPel. Pesquisadora nos Grupos de Pesquisa OMEGA
(UFPel/CNPq) e GESTE (UFRGS/CNPq).

Josiane Franken Corrêa


Mãe do Joaquim. Pessoa com Deficiência (Transtorno do Espectro Autista).
Professora do Curso de Dança-Licenciatura da UFPel. Doutora e Mestra em
Artes Cênicas pela UFRGS. Especialista em Corpo e Cultura: ensino e criação
pela UCS. Licenciada em Dança pela UNICRUZ.

Ana Maria Rodriguez Costas (Ana Terra)


Docente no Curso de Bacharelado e Licenciatura em Dança e no Programa
de Pós-Graduação em Artes da Cena da UNICAMP. Graduada em Ciências
Sociais pela USP, Mestre em Artes e Doutora em Educação pela UNICAMP e
realizou um pós-doutoramento no PPGAC da USP.

Carolina Romano de Andrade


Artista da dança, pesquisadora e educadora. Doutora em Artes pela UNESP,
Mestre em Artes, Bacharel e Licenciada em Dança pela UNICAMP. Realizou
estágios de pós-doutorado no Instituto de Artes-Unesp e no PPGAC/UFRN.
É professora colaboradora do Mestrado Profissional (Stricto sensu) em Artes
da Unesp.

Karen Tolentino de Pires


Artista, Passista, Sambista. Doutoranda em Educação e Mestra em Ciências
Sociais pela UFSM. Graduada em Educação Física - Bacharelado pela Facul-
dade Metodista de Santa Maria e acadêmica em Dança - Licenciatura pela
UFSM. Seu trabalho está voltado para a performance e dança afro-brasileira,
o samba dançado, a mulher e a estética negra.

52 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


Para acessar o conteúdo deste capítulo,
aponte a câmera para QR Code ou clique no
link: https://youtu.be/dG89UyQj7JE
C apí t u lo 4

CORPOS BICHA
EM PROCESSO DE
TRANSPERFORMA-
CIONALIDADE
POÉTICA
Pedro O. L. Delgado
Monica Fagundes Dantas
A escrita de corpos bicha em processo de
transperformacionalidade poética é um
desdobramento dos diálogos apresenta-
dos na mesa Questões Queer e a Cena du-
rante o II seminário discente Narrativas
Diversas, promovido pelo Programa de
Pós-graduação em Artes Cênicas da Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul,
(PPGAC-URFGS), 2021, onde estiveram
presentes a pesquisadora Dra. Rosangela
Fachel (UFPEL), o pesquisador Dr. Lean-
dro Colling (UFBA), o pesquisador e Me.
Angel Alberto Leonelli (UNA) e o também
pesquisador Dr. Lizandro Calegari (UFSM).
Inspirados nos diálogos e exposi-
ções temáticas de Questões Queer e a Cena
(2021), Delgado e Dantas desenvolveram
uma escrita que busca sintetizar a pesqui-
sa de doutorado do próprio Delgado acer-
ca do processo de criação dramatúrgica
dos corpos do Coletivo “Cria”Tures”, du-
rante a criação da peça “Censuradas – Sos
Mulheres em Vênus ou Travestis na Porta
do Céu”, realizada entre os anos de 2016
e 2021 no PPGAC – UFRGS, sob a orien-
tação da própria professora Dra. Monica
Fagundes Dantas.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 55


Assim, para que esta escrita possa ser melhor assimilada, o pesqui-
sador e sua orientadora se colocaram diante desse processo como cartógrafos
bichas cisgêneros, se utilizando dos horizontes da cartografia como método
de pesquisa-interação de procedimentos práticos para o desenvolvimento
de algumas teorias fundamentadas, bem como do pensamento que subsidia
a Teoria Queer e os estudos decoloniais, temas que também foram aborda-
dos na mesa Questões Queer e a Cena. Dessa forma, a materialidade que aqui
é apresentada, enquanto estudo de caso, restringe-se aos corpos transper-
formacionalizados do elenco do coletivo Cria”Tures e suas expressividades
poéticas performativas enquanto processo criativo de uma produção cênica
que buscou refutar os princípio ontológicos e os conceitos e valores de uma
cultura colonizada judaico-cristã. Dessa forma, os autores postulam que os
leiam como se, aos poucos, fossem abrindo seus arquivos pessoais, revelando
os fantasmas que lhes constituem enquanto sujeitos que reformulam as in-
tervenções provisórias do corpo no espaço da cena teatral- corpos estes que
se engendram enquanto possíveis textualidades próprias do fazer dos corpos
palimpsestosos bichas, a partir de suas sexualidades e identidades de gênero,
em um contexto social heteronormatizado.
Dessa forma, e diante da vontade de compreender melhor as poéticas
dos corpos bichas construídas às margens de uma sociedade patriarcal, sexis-
ta e heteronormatizada, quando em estado de devir arte que busque escapar
os parâmetros e clichês heteronormativos, foi substituído o termo “queeri-
zar”, antes utilizado por Delgado para referir-se aos corpos performáticos
criados pelo ator gaúcho João Carlos Castanha – objeto de sua pesquisa de
mestrado, realizada entre 2011 e 2013 - pelo termo transperformacionalidade
e suas possíveis derivações. A escolha por utilizar tal arranjo linguístico não
se deu de forma aleatória, nem, tampouco, com a intenção de cunhar um novo
conceito, sobretudo porque sua intenção, assim como a de Delgado, em sua
tese, é unicamente de facilitar o entendimento interpretativo por parte dos
leitores acerca dos elementos sobre os quais se apoiam. Assim, entendemos
que tanto a expressão queerizar, que é uma derivação do termo queer, quanto
“transperformacionalizar”, possuem o sentido de descrever uma determina-
da e específica capacidade de transformação corporal puramente poética de
um determinado grupo de artistas, bastante específico também, cuja identi-

56 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


dade de gênero e sexualidade escapam à “normalidade” binária heteronor-
matizada. (DELGADO, 2021).
O prefixo “trans” presente no termo “transperformacionalizar”,
nesse caso, ganha significado enquanto algo que transforma (trans-forma),
que modifica a forma, mas que também transita, - do verbo transitar -, en-
tre as formas. Como essa escrita é um processo de transcrição de narrativas
corporais e ao mesmo tempo um processo de transcriação acerca das escri-
tas e polifonias dos corpos bicha, o prefixo trans, para os corpos aos quais
Delgado se refere em sua tese, e que aqui também foi utilizado, traz o senti-
do de, quando em estado de devir poético, transitar entre as formas corpo-
rais clichês da “normalidade” binária performativa1 num estado de arte e de
dramaturgia corporal, que, mesmo buscando refutar tais marcas, como num
processo palimpsestoso, vão estar presentes e se repetindo constantemente.
Amílcar Borges de Barros, em sua “Dramaturgia Corporal - Aproximação e
distanciamento fazem a ação e encenação corporal” afirma que (2011):

No teatro de repetição experimentamos forças puras, construindo dinâmicas


no espaço que atua sobre o “espírito” sem intermediários o que une direta-
mente a natureza e a história; sentimos uma linguagem que fala antes das
palavras, gestos que se elaboram antes dos corpos organizados, máscaras que
surgem antes dos rostos, espectros e fantasmas antes que os personagens
– todo o aparato de repetição como “terrível poder” (BARROS, 2011, p. 108,
Apud DELGADO, 2021, p. 16).2

Assim, seguindo o fluxo de “todo o aparato de repetição como ter-


rível poder” descrito por Barrosl, os autores se aproximaram do conceito de
performatividade de Judith Butler (2010). Segundo a autora, a performatiza-
ção é uma consequência do poder da repetição da linguagem num processo
ontológico formativo:

A performatividade deve ser entendida não como um ato singular e delibera-


do, mas como uma prática repetitiva e referencial na qual o discurso produz
os efeitos que ele representa. ...é que as normas reguladoras do sexo funcio-
nam de maneira performativa para constituir a materialidade dos corpos e,
mais especificamente, para materializar o sexo do corpo, para materializar
a diferença sexual em prol da consolidação do imperativo heterossexual.

1 No sentido butleriano
2 Tradução de Pedro Delgado

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 57


...o que é essencial é que a construção não seja um ato único ou um processo
causal iniciado por um sujeito e culminando em uma série de efeitos fixos. A
construção não é apenas realizada no tempo, mas é um processo temporário
que opera através da reiteração de normas; no decorrer desta reiteração, o
sexo se produz e ao mesmo tempo desestabiliza (BUTLER, 2010, p. 18, 29).

Delgado, em sua tese, se coloca diante da definição de performa-


tização de Butler para flexionar com o pensamento schechneriano sobre
o conceito de performance. No caso deste último, mais especificamente da
performance arte e de “aprender determinadas porções de comportamentos
culturais, de ajustar e atuar a partir dos papéis da vida de alguém em relação
às circunstâncias sociais e pessoais”, o pesquisador, para se referir à mate-
rialidade estética dos corpos transperformacionalizados, salienta que estes
serão sempre corpos cujo estado de presença estarão inseridos em um arran-
jo poético, num estado de devir arte que refuta propositadamente todos os
clichês cisheteronormativos. Sobretudo, porque o pesquisador se refere aos
corpos bicha como resultado do processo de performatização, enquanto ma-
terialidade discursiva de um arranjo de poder cultural heteronormativo antes
e durante o seu processo de transperformacionalização.
Assim, os corpos pretendidos na pesquisa de Delgado, quando em
estado de transperformacionalização, deverão ser entendidos sempre como
corpos bicha palimpsestosos num devir poético insurgente que tensiona os
padrões binários cisnormatizados, bem como o pensamento ontológico pre-
sente nas estruturas de poder. (DELGADO, 2021, p.17).
Dessa forma, o termo “corpo transperformacional”, ou “transperfor-
mativo”, ou “transperformacionalizacional”, ou qualquer termo que derive do
prefixo trans mais performacionalizar possui, em si, uma posição de nomear os
corpos palimpsestosos bichas e seus semelhantes, quando em estado de repre-
sentação de uma poética insurgente, em um processo de desenvolvimento de
produção de materialidade e expressividade que se encontrem em uma poética
cênica para além das fronteiras e dos limites de gênero e sexualidade cishete-
ronormatizada. São corpos que se contaminam constantemente em uma dupla
exposição entre aqueles segmentos gerados a partir do pensamento, da cultu-
ra e do poder falocrático performatizado e do processo de desterritorialização
dessa mesma ortodoxia. Assim, na perspectiva de Delgado, um corpo em estado

58 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


de devir transperformacional, deve, antes de tudo, questionar não apenas suas
próprias expressividades performativas e institucionalizadas, mas também sua
percepção do próprio corpo enquanto território heteroperformatizado. Para o
termo transperformacionalizar, além das referências teóricas já relacionadas,
Delgado também foi buscar inspiração no conceito de “Corpo Transformacio-
nal - métodos de treinamento cognitivo” ou “transformational body - cognitive
training methods” utilizado por Rachel Sweeney para nomear um dos capítulos
de sua tese “Transferring principles: The role of physical consciousness in Butoh and
its application within contemporary performance praxis” defendida em 2009, na
School of Performing Arts, da Middlesex University. Nesse caso, é importante des-
tacar que a investigação de Sweeney foi uma pesquisa desenvolvida acerca da
metodologia criada especificamente para a corporalidade e expressividade dos
bailarinos do Butô:3

Esta tese aborda o papel da consciência física na prática de formação per-


formativa contemporânea, delineando a minha posição enquanto performer
envolvida num conjunto de disciplinas de formação em dança e teatro, na ex-
pressão do movimento contemporâneo japonês do Butô. (SWEENEY, 2009).4

Dessa forma, na escrita da tese de Delgado, as questões abordadas


não têm como objetivo apresentar novos conceitos nem descrever ações que
promovam a permanência dos sujeitos marginais nas periferias, mas sim,
deslocá-los para além das fronteiras e, com isso, empurrá-los para o centro
das discussões, gerando, a partir desses cruzamentos, outros encontros, que
juntos possam constituir um deslocamento múltiplo das pluralidades discur-
sivas, a fim de perceber a importância de se friccionar tanto o teatro quanto a
dança, a partir da complexidade das diferenças nas construções das corporei-
dades e das identidades de gênero enquanto expressividade poética.
Butler (2009, p. 12), ao falar sobre a complexidade que está por trás
das construções de gênero, diz:

3 O butô, ou ainda Ankoku Butô (Dança das Trevas) é uma dança que surgiu no Japão pós-guerra e ganhou
o mundo na década de 1970. Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno, são os expoentes e criadores dessa arte. Eles
buscaram nas vanguardas europeias, como no expressionismo, no cubismo e no surrealismo, e nas danças
japonesas, como nô e bugaku, a inspiração para a criação de sua arte.

4 Tradução minha. A tese completa em língua inglesa está disponível em:
https://eprints.mdx.ac.uk/6777/1/Sweeney-Transferring-principles.phd.pdf

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 59


A complexidade do conceito de gênero exige um conjunto interdisciplinar e
pós-disciplinar de discurso, com vistas a resistir à domesticação acadêmica
dos estudos sobre o gênero ou dos estudos sobre as mulheres, e de radicalizar
a noção de crítica feminista. (BUTLER, 2009, P.12, apud DELGADO, 2021, p.48).

Louro (2004), em seu “Um corpo estranho – Ensaios sobre sexuali-


dade e teoria queer”, vai dizer que uma matriz heterossexual delimita os pa-
drões a serem seguidos, mas que, ao mesmo tempo, paradoxalmente, fornece
a pauta para as transgressões. Segundo a autora, é em uma referência a essa
matriz binária que se fazem não apenas os corpos que se conformam com as
regras de gênero e sexuais por ela impostas, mas também os que as subver-
tem. A professora, ao referir-se ao trabalho pedagógico contínuo, acerca das
questões relacionadas com as construções identitárias, vai dizer que esse é
um processo repetitivo e interminável, que é posto em ação para inscrever
nos corpos o gênero e a sexualidade “legítimos” e que isso é próprio de um
planejamento que toma como base o discurso da bissexualidade como matriz
referência e, que, ingenuamente, acredita-se em uma reversão das sexuali-
dades desviantes. (LOURO, 2004, p. 17).
Assim, diante das reflexões de Louro e, seguindo o fluxo das pistas
deixadas ao longo do subcapítulo 2.3 Aumentando a velocidade para enxer-
gar novas paisagens, Delgado, enquanto descobertas do lugar de onde fala e
de alguns conceitos com os quais articulou o pensamento da escrita de sua
tese, chama a atenção para o que ele nomeou de “corpo emergente bicha”
enquanto um conceito utilizado, exclusivamente, para referir-se aos corpos
que emergem dos entre polos masculino/feminino, corpos que escapam ao
conceito da normalidade heterossexista.
Isso significa que o lugar de onde o autor escreve é um território cor-
po transitório, contaminado por diversos agenciamentos que lhe aproxima
do pensamento de Henri-Pierre Jeudy na perspectiva de “o corpo estranho”
(2002). Para Jeudy, o corpo estranho pode provocar, na perspectiva do imagi-
nário, a possível vertigem da mais radical alteridade e que nele cristalizam-se
as frustrações e, simultaneamente, possibilitando, com isso, a aventura mis-
teriosa dos sentidos. Dessa forma, segundo o autor, o corpo estranho opera
a partir dos clichês, como uma espécie de “motor original” dos estereótipos
culturais (JEUDY, 2002, p. 102, apud DELGADO, 2021, p. 53).

60 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


Com isso, partindo do pensamento jeudyniano, Delgado diz que tal-
vez seja bem provável que o seu corpo, enquanto corpo bicha investigador,
funcione, temporariamente, como um motor originado dos estereótipos cul-
turais coloniais, fundido a partir do mito das três “raças”: indígena, africana
e europeia, onde a última se sobrepõe às outras duas.
Por essa razão e, também, por entender que o termo transperforma-
cionalidade dos corpos não está condicionado, unicamente, à transformação
de um corpo masculino em um corpo feminino e vice-versa, mas nas mais di-
versas e possíveis misturas de identidades de gênero, quando na cena, é que,
em sua pesquisa, Delgado utiliza tal arranjo linguístico enquanto conceito
operativo transitório de uma teatralidade de diferentes corpos insurgentes:

Assim, ao olhar para um corpo e descrevê-lo como corpo palimpsesto trans-


performacionalizado significa que estarei diante de um corpo que carrega em
si marcas características de um corpo emergente bicha em uma perspectiva
de corpo/processo/arte insurgente. (DELGADO, 2021, p. 57).

As questões simbólicas, que envolvem os corpos cristianizados, segundo o


autor, vão muito além de uma linguagem semiotizada:

Os corpos, qualquer que sejam eles, até mesmo os construídos dentro de uma
cultura sexista cristianizada escapam a qualquer tipo de leitura mais fechada.
Principalmente quando esses, cada vez mais, rompem e borram os códigos
heteronormatizados, que durante muito tempo foram utilizados como lin-
guagem para identificar o identificável. Após esse período longevo e ainda
hoje, os corpos e suas expressividades codificadas serviram para serem in-
cluídos ou marginalizados. (DELGADO, 2021, p. 57).

A linguagem corporal da heterossexualidade masculina, dentro de uma cul-


tura sexista, segundo Delgado, sempre se estabeleceu como norma padrão a
ser seguida, funcionando como um modelo para todos os corpos que nascem
com um falo, não importando as diferentes acepções sexuais.

Com o passar do tempo, foi-se criando algumas características clichês que


muitas vezes são levadas à cena como forma de representação de um deter-
minado gênero. Para representar um corpo masculino heterossexualizado, por
exemplo, o ator deve expressar movimentos fortes, pontuados, pisadas firmes,
caminhar com as pernas um pouco abertas, balançar o corpo para as laterais,

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 61


projetar a região fálica para frente, deixar os braços soltos e os ombros um pou-
co caídos; fazer uma pequena curvatura nas primeiras vértebras da torácica e
desenvolver a expressividade com movimentos mais graves. Já, para represen-
tar os corpos bichas, os intérpretes devem experimentar expressividades mais
leves, flutuantes, indiretas, coluna mais ereta, pernas mais juntas, mãos acima
da cintura, cabeças levemente caídas para uma das laterais, jogo nos quadris e
tons expressivos mais agudos. É impossível negar que esse vocabulário hetero-
normativo não tenha afetado as subjetividades de todos os sujeitos, seja pelos
signos que constituem a linguagem dos corpos heteronormativos masculinos,
seja pelos signos que constituíam a linguagem dos corpos emergentes bichas.
(DELGADO, 2021, p. 58).

Hoje, porém, Delgado diz entender que não precisava ninguém lhe
denunciar, pois sua própria corporalidade, diante dos códigos perfomativos
das linguagens heteronormativas, se denunciava. Era o seu próprio corpo que
emitia os signos dos corpos emergentes bichas que causava tamanha rejeição.

O meu corpo era o meu próprio delator, porque nele estavam inscritos os sig-
nos incidentes do corpo emergente bicha, sob o jugo de uma cultura sexista
heteronormatizada. (DELGADO, 2021, p. 58).

Esses mesmos códigos ainda operam até hoje e os corpos emergentes


bicha passam pelos mesmos julgamentos sem que haja uma preocupação com
a forma como isso pode influenciar no processo de desenvolvimento destes e
na construção das subjetividades dos sujeitos não binários.
É preciso pensar as construções dos corpos insurgentes bicha para
além da cena, para poder pensar a poética de um determinado corpo abjeto/
bicha enquanto poética da cena em uma teatralidade da diferença. Essa é uma
questão para ser tensionada e discutida, sobretudo, porque na visão heteros-
sexista, os corpos bichas devem estar associados ao humor quase gratuito, cujo
objetivo é potencializar e ridicularizar ainda mais os corpos abjetos por suas
sexualidades desviantes. “Se os corpos escapam aos valores morais heteronor-
mativos, que sejam ridicularizados e tornados piada”. (DELGADO, 2013).
Delgado diz, compreendendo os corpos, que somos e as reescritas dos
corpos que podemos vir a ser, a partir do processo de transperformacionali-
dade na cena, enquanto criadores que contribuem com as práticas artísticas
e com processos criativos acerca de um fazer teatral que ganhe vultuosidade
poética pela diferença. Sobretudo, porque os corpos palimpsestosos trans-

62 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


performacionalizados devem evitar fazer uso de clichês heteronormativos,
considerando que os clichês são manifestações externas dos corpos e, esses,
enquanto corpos emergentes bicha palimpsestosos transperformacionaliza-
dos precisam ser percebidos muito mais enquanto potência de uma deter-
minada subjetividade do que simplesmente uma transcriação periférica. E o
pesquisador vai além:

O lugar da cena, para os corpos emergentes bicha, diante da cultura sexista,


jamais será um lugar exclusivamente de criação, mas de articulação de um
poder disciplinador, de afirmação de um discurso heterocentrado, de um dis-
curso onde o ator corpo emergente bicha precisa estar em permanente esta-
do de vigilância de seu material corpóreo, para que esse não revele qualquer
traço expressivo desautorizado que possa lhe denunciar. Essa é uma questão
que deve ser pensada em relação aos corpos emergentes bicha assujeitados no
contexto de uma poética da diferença. (DELGADO, 2021, p. 60).

Delgado destaca, ainda, a importância de se perceber que, na con-


temporaneidade, cada vez mais a cena está contaminada por diversos corpos
e identidades de gênero e, cada vez que um corpo se transforma, em razão
do desempenho de uma identidade outra de gênero, do jogo dramático ou da
presentificação de um corpo estético, esse estará sempre envolto por uma
proposta poética e em busca de um acontecimento de comunicabilidade sim-
bólica, sendo ela mimética ou não, representada através de uma linguagem
teatral, da dança ou da performance.
Ao descrever os corpos com os quais trabalhou durante a concepção
das duas versões de Censuradas – Sos Mulheres em Vênus ou Travestis na
Porta do Céu, Delgado não se mostra nem um pouco surpreso em relação aos
limites normativos dos mesmos:

Existe um universo enorme e diverso, cheio de fissuras, entre os desejos e a re-


presentatividade das transperformacionalidades dos corpos que é preciso se le-
var em consideração, principalmente quando se pensa a transperformacionali-
dade dos corpos enquanto poética emergente. Nesse sentido, acredito que seja
importante se perguntar: o que esses diferentes tipos de transcrições corporais,
de reconfigurações de desejos, vontades, complementos, ou seja, que nomes fo-
ram dados nos processos de transperformatização contribuem para as poéticas
das cenas contemporâneas? E, o que esses diferentes corpos podem contribuir
para uma dramaturgia insurgente e, por extensão, para toda a poética da cena
enquanto potência artística da diferença? (DELGADO, 2021, p. 64 – 65).

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 63


Delgado busca fôlego nos escritos de Foster (2016, p. 12) ao refletir
acerca do teatro em uma relação com os escritos queer latino-americanos:

O queer não gira em torno da simples presença no teatro de gays e lésbicas (ou
de sujeitos sociais de qualquer determinação que se queira), mas, sim, remete
a uma postura, uma atitude, uma consciência contestatória frente ao impe-
rativo – a reticente naturalidade – do heterossexismo obrigatório. O hete-
rossexismo obrigatório opera não somente para impor tal naturalidade, mas,
de fato, serve para impedir fervorosamente que se questione isso, ainda que
se propague implicitamente a ficção de que não existe. Se o heterossexismo
é “natural” (e não se deve confundir isso com a heterossexualidade que é, se
assim posso dizer, uma opção do desejo tão legítimo como qualquer outra),
portanto, não pode, não tem que haver nenhuma ideologia social que o impo-
nha. (FOSTER, 2016. P. 12, apud DELGADO, 2021, p. 66).

Já, em “A representação do corpo queer no teatro latino-americano”


(2004), escrita onde Foster se debruça sobre a peça “O beijo no asfalto” de
Nelson Rodrigues para construir um pensamento queer acerca da relação re-
primida de Aprígio por Arandir, este afirma que o corpo de Arandir é o corpo
mais queer do teatro latino-americano. Ele diz que “O beijo no asfalto” é um
texto, cujo corpo em questão (Arandir) não é homoerótico e que a homoe-
rotização também não está presente nos corpos dos atores, pelo menos não
aparentemente, mas que, no entanto, o universo da obra está compenetrado
de referências e alusões à homossexualidade. Para Foster, “O beijo no asfal-
to” é um dos textos latino-americanos mais eloquentes, enquanto dinâmica
da homofobia e na forma como este opera enquanto um potente instrumento
de controle social. Arandir é acusado de “ser homossexual”, porque, em um
aparente gesto de solidariedade humana, se atreve a dar um beijo na boca de
um desconhecido ferido de morte, ao ser atropelado por um ônibus em plena
rua. Em sua análise, Foster vai dizer que não é o beijo dado por Arandir no
estranho que está em jogo, mas sim o escândalo que isso provoca quando vai
parar nos jornais. Arandir é denunciado por provocar indecência em plena via
pública. Ele é acusado de adultério e até de ter culpa no assassinato do atro-
pelado. Isso o leva a ser assassinado pelo sogro o que, aparentemente, seria
para vingar o próprio escândalo provocado. Porém, a verdadeira razão do as-
sassinato de Arandir é que Aprígio, o sogro, é homossexual e nutre um amor
pelo genro, que nunca foi correspondido. Na interpretação de Foster, somente

64 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


na morte Arandir assume a postura de um corpo erotizado. Ao disparar contra
Arandir, Aprígio, o sogro, confessa seu amor e seus desejos e a morte que lhe
impõe coloca em evidência o corpo do genro como seu objeto de desejo sexual.

Nem defesa nem denúncia do desejo homoerótico (a menos que seja uma
denúncia da sexualidade reprimida de Aprígio e do ciúme assassino que dela
broto), Rodrigues está mais interessado no processo pelo qual ele tenta impor
um desejo homoerótico a Arandir: obrigá-lo a confessar tal desejo e a per-
ceber em seu corpo os traços do ser homossexual, que ele nega ser. Arandir
não tem como se defender contra a necessidade dos outros de estarem cientes
desses traços e “tudo” o que significam para sua identidade como ser huma-
no, sendo Aprígio, o sogro, impulsionado por seus próprios interesses, inclu-
sive para acreditar que Arandir é homossexual, e ficar com ciúmes não porque
esse o repudiou e nem por ser heterossexual e amar sua filha, mas porque ele
estava realmente apaixonado por outro homem (FOSTER, 2004, p. 24, apud
DELGADO, 2021, P.67).5

Mas, Foster não para por aqui. Enquanto busca apresentar o teor que-
er, de “O beijo no asfalto”, ele vai dizer que a inflexível lei da homofobia torna
impossível, para Arandir, escapar da atribuição que todos querem lhe impor.
Esse jogo dramático, segundo o autor, provoca um grande efeito teatral, por-
que o espectador está convidado a ver o que os demais personagens da trama
querem ver. Isso ganha força, porque o Arandir, além de não ver o que os de-
mais querem ver, também não vê o que o Aprígio insiste que não pode ser vis-
to. E, tudo isso, apesar do fato de Aprígio tê-lo matado e colocado em exibi-
ção, diante do espectador. Morto por ciúme homoerótico, porque ele desejou
outro homem e não a ele. Dessa forma, segundo o autor, o que permanece em
evidência não é o corpo homoerótico, mas o corpo que a sociedade constrói
por meio da dinâmica inapelável da homofobia (FOSTER, 2004).
Diante das reflexões desenvolvidas por Foster, principalmente so-
bre os questionamentos acerca do corpo de Arandir, pelo simples fato de
este ter beijado a boca de um moribundo, é possível perceber a força que
possui a linguagem e como essa opera enquanto processo de poder norma-
tizador. Semelhante análise é feita por Delgado acerca dos corpos do elenco
de “Censuradas – Sos Mulheres em Vênus ou Travestis na Porta do Céu”
– espetáculo montado enquanto processo de sua pesquisa. O pesquisador,

5 Tradução de Pedro Delgado

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 65


logo após comparar a ação da heteronormatividade nos corpos, com a ação
de um gás tóxico, vai dizer que:

O sujeito, uma vez consciente de sua contaminação, pode deixar que essa de-
termine suas ações ou pode tentar neutralizá-las. Essa neutralidade, entretan-
to, nunca será igual a zero, pois o produto tóxico sempre estará em seu corpo
e quanto menos o indivíduo deixar de prestar atenção nele, maior será a pos-
sibilidade de esse agir sobre o seu efeito. Assim, chamo a atenção para o fato
de que, a partir do pensamento acerca da performatização da linguagem, em
Butler (2010), em graus maiores ou menores, todos nós, indivíduos tornados
sujeitos resultantes de uma cultura colonizadora heteronormativa, consciente
ou não, sempre seremos sujeitos cristianizados, intoxicados por discursos pa-
triarcais heteronormatizados, o que nos levará a ter reações diversas e de into-
lerância diante daquilo que nos foi apresentado como imoral e fora da aprova-
ção dos juízos dos homens de Deus. (DELGADO, 2021, p. 297 – 298).

A dramaturgia de Delgado, segundo relata em sua tese, havia se torna-


do um problema. ele havia construído diálogos e ações dramáticas, que atraíam
o interesse do elenco e, por isso, esse havia aceitado fazer parte do projeto. Ele,
no entanto, não queria ficar preso aos diálogos, porque o subtexto e as rubricas,
em sua opinião, eram mais potentes enquanto dramaturgia da cena.
Outra problemática que ele identificou ficou, exatamente, por conta
do fato de que havia chamado um elenco de atores e atrizes de grande capaci-
dade técnica e talento para a representação. Mas, por outro lado, embora sen-
do pessoas sexualmente bem resolvidas, carregavam em seus corpos o tóxico
da performatização dos discursos apocalípticos. Isto é, seus corpos, em pro-
porções diferentes, estavam contaminados pelos discursos heteronormativos
e pela moral cristã, principalmente naquilo que se refere às questões de sexu-
alidade e identidade de gênero. Em muitas de suas discussões, por exemplo,
apareciam colocações do tipo: “será que o público vai gostar?” Ou então “será
que o público vai entender?”. Existia uma preocupação em demasia, por parte
de alguns, com a aprovação do espectador. Outra fala que lhe causou grande
impacto foi quando uma das atrizes, bastante preocupada, tendo os olhos ver-
melhos lacrimejando, lhe falou: “eu tenho medo de que o meu namorado não
me queira mais depois de ver o meu corpo assim”. Ela estava se referindo ao
uso de um grande falo, em uma cena em que ela representava uma travesti se-
minua. “eu tenho medo de que ele perca o tesão por mim”.

66 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


Foram diversas as situações em que o medo e a culpa demonstrada
por parte do elenco fizeram perceber que a teatralidade que Delgado estava
buscando colocava em jogo valores morais, crenças e paradigmas que, de uma
forma ou de outra, estariam presentes nos corpos de seu elenco. Diante dessa
constatação, era preciso que cada jogador entendesse melhor seus corpos e
suas construções. Fazia-se necessário que eles entendessem os pensamentos
teóricos com os quais estavam trabalhando para só então perceber a dimen-
são dos corpos que lhes estavam sendo propostos, o que, das construções cor-
porais normativas, era preciso refutar. Era preciso que toda a equipe técnica e
artística do processo estivesse afinada e, sobretudo, entendendo as questões
das construções dos discursos sexuais, que foram impostas pelo poder falo-
crático europeu.
Segundo afirma Delgado, todos os corpos com os quais trabalhou, em
seu experimento, possuíam características distintas, conforme descrições
já feitas. Entretanto, eles não se restringiam tão somente às características
relatadas, já que nada neles estava organizado e estanque. Eles convergiam,
divergiam, atravessavam, se contaminavam, se afetavam, a partir de uma
infinidade de princípios, sobretudo no que se refere aos princípios norma-
lizadores de suas construções, enquanto corpos palimpsestosos sacro-nor-
matizados. Quando se refere aos princípios normatizadores, Delgado opera,
segundo ele próprio, com essa palavra como sendo um tratado de regras im-
postas por um agenciamento de forças de poder normatizantes, que ditam
regras comportamentais, e que o indivíduo, consciente ou não, acaba assimi-
lando de maneira que essas operam constantemente em seu corpo, interfe-
rindo em suas expressividades e manifestações de suas subjetividades, como
os desejos, por exemplo. Assim, por mais que os corpos, com os quais Delgado
trabalhou, procurassem escapar a tais estruturas heteronormativas, segundo
este, sempre haveria neles um olhar, uma culpa, um medo, um espectro in-
quisidor e censurador.
Cada corpo, a sua maneira, ao vigiar sua própria corporalidade ou a
de seus colegas de cena, numa espécie de espelhamento censurador, estava
vivendo sensações semelhantes à dos corpos bicha condenados pela santa
inquisição. O indivíduo sabe que está sendo observado o tempo todo e sabe,
também, que está sozinho nessa observação e que tudo o que ele fizer será

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 67


levado em consideração, durante o “julgamento” simultâneo. A sensação de
que está sendo visto e de que precisa ser aprovado prevalece acima de qual-
quer devir poético. Vigiar para poder punir, esse é o princípio regulador im-
posto pelos poderes, segundo Foucault (2007). Esses também são os princí-
pios normatizadores judaico-cristãos, bem como é também o princípio que
opera na heteronormatização. O regramento normalizador configurou o su-
jeito para ser um delator de si e dos demais.
A censura, em geral, está associada com a punição e a morte, a partir
de uma perspectiva apocalíptica judaico-cristã. Artaud, em “O teatro e a pes-
te”, diz que o teatro é anárquico e epidêmico, porque produz formas, ações,
sentimentos e ideias em um confronto ordinário de vida e morte. Ele diz ainda
que no teatro se percebem os desejos e as forças e que a realidade separa, or-
dena, hierarquiza e determina funções:

[...] o teatro é um ato superior exatamente porque pode reabrir o espaço vir-
tual das formas e dos símbolos, alimentando e expandindo os conflitos. Nele a
realidade não se apaga, mas também não se desliga do fluxo produtor da vida
(ARTAUD, 2006, p.28).

Dessa forma, Delgado vai dizer que a vigilância por parte dos corpos
bicha é algo que está muito mais em uma esfera de preservação. Todo o elenco
de “Censuradas”, quando em outras montagens, cujas identidades de gênero
e sexualidades eram preservadas, conseguiam desempenhos de grandes pro-
porções, inclusive, diversos deles já foram premiados em festivais de projeção
local, estadual e até em esfera nacional, o que significa que o elenco com o
qual Delgado estava trabalhando era composto de intérpretes com capacidade
e talento. O que, no entanto, aconteceu, no caso deste experimento, foi que,
antes de o elenco colocar seus corpos a serviço da dramaturgia, ele precisava
se despir de preconceitos e mergulhar em um jogo que refutasse as técnicas
tradicionais de interpretação em prol de um jogo propositadamente estabe-
lecido para deslegitimar os discursos sexistas heteronormatizados, a partir
de seus corpos transperformatizados e, para isso, cada intérprete deveria
abandonar o lugar de construção de uma personagem e de seu próprio corpo,
em prol de um jogo que fosse forjado a partir de outras corporalidades. Um
jogo que desterritorializasse seus corpos em um devir corpo outro do ser que

68 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


joga. Esse ser que joga era, nesse caso específico, muito mais o próprio ator ou
atriz em desconstrução de si próprio numa espécie de devir outros diferentes.
Assim, eram os corpos não mais de intérpretes, mas de jogadores ou joga-
doras, ou nem uma coisa ou nem outra, com suas escritas palimpsestuosas,
que deveriam entrar na cena para jogar. Foi nesse desmontar-se de intérprete
e remontar-se em corpo potência de jogo transperfomatizado, que o elenco
se deparou com o grande obstáculo. Primeiramente, ele deveria entender que
não estaria levando uma personagem para a cena, mas uma persona que joga
e que jogar fazia parte também do desmontar-se. Ainda, deveria, também,
lidar com essa persona, a partir da sua própria identidade, de seu corpo, de
sua sexualidade, de seus valores, de suas inquietações e de tudo aquilo que
lhe constituía enquanto sujeito vivo palimpsestoso heteronormatizado. Além
disso, cada corpo deveria entender e criar as proposições de cada jogada, as
estratégias e suas razões de jogo a partir de premissas que refutassem os cli-
chês e princípios da cultura colonizadora patriarcal, cristianizada e heteros-
sexista normativa. Cada jogador deveria partir do princípio de ter um corpo
que fora roubado e aprisionado no interior de dobras de um tecido construído
de diversos valores morais normativos e, que, portanto, não era um tecido fí-
sico, mas cultural e simbólico corporificado. Todas as jogadas precisavam ser
jogadas como estratégias de aproximação e de desdobramento do tecido para
que seus corpos, antes roubados, pudessem ser resgatados ou roubados de
volta, na tentativa de (des)colonizá-lo, (des)sacralizá-lo (des)normatizá-los
e, com isso, torná-los, cenicamente, corpos outros diferentes daqueles que
haviam sido aprisionados.
O que o elenco deveria possuir, enquanto arsenal/base de material de
jogo? Em primeiro lugar, entender os conceitos propostos pela dramaturgia,
sobretudo, naquilo que tangia aos princípios teóricos queer, tanto como mate-
rial de jogo quanto materialidade de seus próprios corpos. Em segundo lugar,
era preciso que cada jogador ou jogadora compreendesse o grau de complexi-
dade da produção de seus corpos palimpsestosos transperformacionalizados e
que era a partir deles, em estado de jogo, que nasceria a poética de insurreição
a que o pesquisador se propunha. Assim, consciente de seu papel, cada um dos
artistas/jogadores/jogadoras construiu as estratégias de jogo e, com isso, con-
tribuiu para com a concretização das duas montagens de “Censuradas”.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 69


Cada corpo, ao ser descrito por Delgado, recebeu um pseudônimo:
corpo Sal, corpo Mãe, corpo Vento, corpo Éter, corpo Fogo, corpo Terra, cor-
po Vênus, corpo Narciso e corpo Mesa. Cada pseudônimo foi dado a partir de
um conjunto de características, que Delgado observou ao longo da pesquisa,
durante o processo dos ensaios e das apresentações. Estes pseudônimos não
os rotulam e nem os encerram, enquanto possibilidades e grandiosidade do
trabalho de cada corpo que, carinhosamente e com muito empenho, atuaram
nas duas montagens da peça.
Em sua pesquisa, Delgado descreve os nove corpos citados acima da
seguinte forma:

Corpo Sal: Era um corpo que possuía a capacidade de conservação.


Nele estavam conservadas todas as marcas das normalidades e da
cultura ortodoxa sexista. Sua fruição era bastante comedida, porque
nele estava o germe de um discurso conservador. Acreditava que pre-
cisava de controle para que não aumentasse sua pressão externa, sob
o medo de ser incompreendido e, com isso, ser prejudicado pelo sis-
tema sexista do qual faz parte. Sua constituição se dava sob uma base
muito sólida a partir da materialidade dos discursos patriarcais he-
teronormatizadores, fazendo com que precisasse, acima de tudo, da
compreensão e da aprovação externa. Encontrava dificuldades para se
colocar no exercício da cena, despindo-se de uma identidade ficcio-
nal, assumindo a sua própria em um estado outro de jogo. Supervalo-
rizou seu corpo palimpsesto, evidenciando suas marcas e escrituras.
O patriarcalismo presente impediu que o corpo Sal roubasse seu corpo
outro antes aprisionado nas dobras da heteronormatividade.

Corpo Narciso: Era um corpo toxicamente sacralizado, que busca-


va aprovação em uma relação antropofágica, onde desejava ser devo-
rado, através de olhares desejosos, que os colocasse sempre em um
lugar de visibilidade gustativa, de potencialização de seus desejos e
de ser utilizado enquanto objeto sexual. Também estava contaminado
pelos diversos discursos normatizantes como o medo da invisibilida-
de, de não ser desejado, enquanto corpo homem, do pecado, da con-

70 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


corrência, da perda dos afetos, do julgamento, da morte, da finitude
de sua carne e da condenação de sua alma. Enquanto cartógrafo de
um território de jogo, se permitia facilmente ser contaminado pelos
discursos colonizadores, que qualificam o sujeito pela sua aparência.
Ele realmente acreditava ser um objeto de desejo e se sentia valori-
zado com essa condição. Assim, com a certeza de que, quando visto
na cena, deveria impressionar o espectador enquanto estimulador de
desejo, em muitos casos afastava-se do verdadeiro sentido do jogo
proposto e, com isso, ao invés de refutar os princípios normativos,
acaba assimilando-os e os potencializando.

Corpo Terra: Era um corpo toxicamente sacralizado que desenvol-


vera a capacidade da fertilidade. Já havia desenvolvido algumas ha-
bilidades que eram do universo da direção teatral e da dança. Tais
experiências se configuraram em uma força interna criativa capaz de
contaminar os demais corpos à sua volta. Dessa forma, permitia que,
de sua carne, fruíssem diferentes devires corpos outros e os distribuía
pelos mais variados relevos de sua materialidade. Era inventivo, no
entanto, precisava de complementos e interferências de outros ele-
mentos que o tornasse mais fértil e mais produtivo. As experiências
do corpo Terra, com um modelo de teatro normatizado, desenvolvi-
do no universo acadêmico e com uma dança que tem como modelo
estrutural o fantasma do balé, fazia com que ele levasse, para a cena
do jogo, alguns padrões corporais heteronormativos que lhe haviam
sido impostos ao longo de sua formação. Esse, como terra que era, em
muitos momentos, se mostrava mais preocupado com a organização
do espaço e dos demais corpos que com o seu próprio jogo.

Corpo Mãe: O corpo Mãe era um corpo paradoxal. Ele, ao mesmo


tempo em que transmutava sua expressividade e se reinventava, for-
tificando-se sempre que precisava defender sua cria (crias no senti-
do de criação), também se retraía quando a jogada precisava de sua
potência e fruição subversiva. Isso, por diversas vezes, fez com que o
corpo Mãe fragilizasse sua capacidade criadora se colocando no lugar

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 71


de fêmea heteronormatizada e toxicamente cristianizada, que depen-
dia da aprovação do macho provedor. Ele era um corpo Mãe, operando
como corpo mulher subjugado e tensionado entre o seu próprio desejo
e a cultura corporificada de um patriarcalismo heterossexista. Era um
corpo palimpsesto transperformacionalizado, que carregava em si,
em maior ou menor grau, todos os agenciamentos dos discursos vi-
venciados, tornados escritos na sua carne. Essas marcas eram poten-
cializadas sempre que ele precisava emergir e fruir em suas criações,
colocando-se em um estado de autojulgamento e de busca por apro-
vação do outro masculinizado, de onde provém a moral e as regras
comportamentais da heteronormalidade, e isso o impedia de fruir e
cuidar de suas crias como gostaria. Enquanto jogador que se coloca
em um tempo-espaço para traçar caminhos acentuados, o corpo Mãe,
enquanto devir corpos abjetos de uma teatralidade, que se pretendia
insurgente, cumpriu com os seus objetivos poéticos e dramáticos,
trazendo à cena a perturbação de uma subversão que estava mais na
sua intenção que no seu próprio corpo.

Corpo Fogo: Esse corpo, assim como o elemento Fogo, carregava


em si a capacidade de mutação. Dessa forma, se entregava à cena de
forma destemida e sem medo de se experimentar. Ele se desafiava e
transmutava, inclusive no que se referia ao seu sexo. O corpo Fogo
não tinha medo da mudança e, semelhante às labaredas, possuía ca-
racterísticas explosivas de difícil controle. Apesar de buscar alimen-
tar a transformação, o corpo Fogo conservava energias que estavam
na base de sua origem. Essa energia, por sua vez, operava como po-
tência conservadora de sua força simbólica, material e imaginativa.
Sua fruição, por vezes, era limitada, já que ele precisava se manter
preso a sua base originária. Era desse lugar que ele operava e se fazia
visível, enquanto estética e potência de jogo. Na sua construção en-
quanto identidade de gênero e sexo, já havia passado por intervenções
cirúrgicas de resignação. Dessa forma, trazia consigo marcas de uma
desconstrução heteronormativa masculina e de uma reconstrução
heteronormativa feminina e isso o tornava um corpo diferentemente

72 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


construído. Assim, se percebendo mulher, o corpo Fogo jogava em um
entrelugar de difícil devir corpos outros em estado de jogo. Enquanto
corpo palimpsesto transperformacionalizado, havia marcas e cama-
das discursivas que lhe eram diferentes dos demais.

Corpo Vento: O corpo Vento ingressou no espetáculo depois de eu já


ter experimentado outras jogadas em outros corpos. Assim, entrou no
jogo como um cartógrafo que, de antemão, já conhecia o território a
ser cartografado. Ao entrar no território de jogo, recebeu instruções
de “como não jogar”. Se, na primeira montagem, os corpos e as es-
tratégias de jogo não haviam sido suficientes, enquanto resultado de
uma poética insurgente, cuja ação de jogo não fora suficientemente
capaz de roubar os corpos do entredobras do tecido heteronormativo
e trazê-los de volta como potência imagética de distorção de valores,
o modelo de jogo feito pelo corpo Vento deveria ser reconfigurado.
Apesar de estar resolvido, enquanto sua preferência homoafetiva, o
corpo Vento carregava consigo sinais e marcas muito fortes dos dis-
cursos sexistas heteronormativos. Ele, em sua vida cotidiana, apre-
sentava-se socialmente como cisgênero. No entanto, quando estava
em estado de jogo retinha sua expressividade, limitando-se a ges-
tuais comedidos e incompletos. Ele parecia estar aprisionado a fios
imaginários, que o impediam de realizar suas expressividades para
além dos limites permitidos pelos valores normatizadores; sobretudo
quando seu corpo precisava ficar nu. Ele era um corpo magro, quase
esquelético, que poderia flutuar no jogo não fosse pelos fios imagi-
nários da construção heteronormatizada que lhe atravessavam, fun-
cionando como uma espécie de freio. Dessa forma, por mais que o
corpo Vento tentasse se libertar e alçar voos durante as jogadas, uma
força discursiva atuava sobre si lhe impedindo de ir além e, então, ele
facilmente cartografava traços de uma corporalidade cristianizada e
cheia de clichês.

Corpo mesa: O corpo Mesa foi um dos últimos corpos que chamei
para compor o elenco da primeira montagem. A presença de seu jogo,

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 73


em grande parte, se faz potência pela presença de uma personagem
bem definida, da qual ele necessitava para melhor dar voz a seu cor-
po. Mais voz do que expressividade do corpo. Era um corpo que so-
cialmente se apresentava com a identidade cisgênero, mas que desde
muito jovem se decidiu pela sexualidade homoafetiva. Essas escolhas
fazem com que o corpo Mesa tenha um comportamento discreto no
seu dia a dia. Profissionalmente, com muita frequência, experimen-
tava a transperformacionalização em devir corpos femininos. Assim,
quando o chamei para participar da primeira cartografia, fiz ques-
tão de explicar que os corpos que eu estava propondo poderiam devir
qualquer coisa que subvertesse os padrões das normalidades binárias
masculino/feminino. Poderia devir feminino desde que não fosse o
feminino construído pelas características da heteronormatividade.
Acho que foi nesse momento que eu coloquei o corpo Mesa diante de
um desafio até então nunca experimentado. Enquanto jogador, pre-
cisaria desconstruir o masculino e o feminino com os quais se cons-
tituía na cena, para possibilitar que outros devires fluíssem. Jogou
como conseguiu, se reinventou como lhe foi possível, se transperfor-
macionalizou como entendeu que podia se transperformacionalizar,
se arriscou sem se libertar da força do hábito e jogou como um joga-
dor experiente que conhecia a manha do jogo. Por outro lado, não se
permitiu ir além, derivar, devir, transitar pelo desconhecido como se
fosse um cego. Jogar, entendendo que seu corpo não estava na cena,
em uma perspectiva mimética, mas porque ele fazia parte de um jogo
que comportava, em alguma medida, uma dose de perversão e de sub-
versão.

Corpo Éter: O corpo Éter era o único assumidamente masculino hete-


rossexual. Sua participação se limitou à primeira montagem da peça.
Ele foi o último corpo a integrar o elenco. Eu não pretendia colocar
corpos heterossexuais no jogo, porque entendia que esses, apesar de
construídos, não teriam sido roubados e que, portanto, os jogadores
não teriam corpos para roubar de volta. Assim, quando foi aberta uma
exceção para que o corpo Éter participasse, tratava-se de uma apos-

74 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


ta amparada no pensamento de Butler (2010), quando ela diz que um
corpo heterossexual pode ser menos heteronormatizado que um cor-
po homossexual. Portanto, foi uma decisão tomada a partir de uma
teoria que deveria ser experimentada na prática. De antemão, o corpo
palimpsestoso do corpo Éter trazia inscrições e discursos diferentes
dos demais, já que o seu lugar de construção estava em acordo com a
normalidade binária heterossexista, já que ele era um corpo/homem
heterossexual. No entanto, por outro lado, o corpo Éter era o corpo
de um artista negro. Essa condição de corpo negro, de forma diferen-
te dos corpos bicha, mas também de forma muito potente, teria in-
fluenciado na construção do corpo Éter enquanto incidente. O lugar
de construção do corpo negro, em uma sociedade colonizada escrava-
gista e escravizada, contaminada pelos valores judaico-cristãos, me
fazia apostar nas jogadas do corpo Éter. Ele não teria um corpo bicha
aprisionado nas dobras do tecido heteronormativo, mas possuía um
corpo negro, que também estava aprisionado em dobras dos precon-
ceitos raciais estruturados pelo mesmo poder heteronormatizador.
Apesar de a construção do corpo Éter ter se dado no e pelo território
da heteronormatividade, ele se permitia transitar por outros devires
corpos diferentes que resultava em uma poética bem distinta. O do-
mínio das dissonâncias, dos contrapontos rítmicos e da complexidade
relacional, entre elementos provenientes de estruturas diversas, in-
seridas na lógica das relações do jogo proposto, colocava o corpo Éter
em um lugar de estratégia que era de grande importância na primeira
montagem de “Censuradas”.

Assim, motivados por essas forças e pela fricção entre o pensamen-


to queer e as dramaturgias dos corpos apresentados, concluímos essa escrita
destacando que, talvez, conforme afirma Delgado no último parágrafo de sua
tese, experimentar produzir poéticas e reflexões acerca das diversidades cor-
porais na contemporaneidade não seja um exercício de fácil conclusão, prin-
cipalmente pelas subjetividades e pelas diversas camadas culturais norma-
tivas onde estes estão aprisionados. Delgado conclui a escrita de sua tese se
utilizando de algumas simbologias que reforçam sua perspectiva acerca das

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 75


construções dos corpos performatizados e seus resultados estéticos trans-
performatizados:

Talvez eu não tenha alcançado nem o resultado e nem a poética insurgente


que imaginara desde o início. Mas, no entanto, o resultado alcançado foi tão
importante quanto acessível a uma infinidade de interpretações. Olhares de
espectadores e criadores que se permitiram viajar no interior do vagão de um
trem que perdia seus pedaços na medida em que se aproximava do efêmero e
das subjetividades dos corpos desejados. Corpos bolhas de espuma de sabão
que, como o meu e os dos demais membros das equipes das duas montagens,
puderam apreciar uma geografia cênica, cuja passagem estava contaminada
pelos padrões binários das bolhas colonizadoras que os oprimem ainda hoje.
Corpos que se jogaram, cada um à sua maneira, num processo de transperfor-
macionalidade e desterritorialização dos juízos de valores apocalípticos, se
deparando, constantemente, com o medo, a culpa e o abismo da reprovação.
(DELGADO, 2021, p. 380).

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 76


REFERÊNCIAS

ARTAUD, Antonin. O Teatro e Seu Duplo. São Paulo: 3. ed. Martins Fontes, 2006.

AUGÉ, Marc. Não-lugares: Introdução a uma Antropologia da Supermodernidade. 6. Ed.


São Paulo: Papirus, 2007.

BUTLER, Judith. Performativity, precariety and sexual politics. Madrid, Revista de


Antropologia Iberoamericana, v.4, n. 3, p. 1-1, deciembre 2009. Disponível em: < http://
www.aibr.org/antropologia/04v03/criticos/040301b.pdf>. Acesso em: 28 maio 2021.

BARROS, Amilcar Borges de. Dramaturgia Corporal. Santiago: Ed. Cuarto Próprio, 2011.

BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

BUTLER, Judith. Cuerpos que Importan: Sobre los Limites Materiales y Discursivos del
Sexo. Buenos Aires: Paidós, 2010a.

_______. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da Identidade. Rio de Janei-


ro: Civilização Brasileira, 2010b.

_______. Corpos Que Pensam: Sobre os Limites Discursivos do Sexo. In: LOURO,
Guacira Lopes. O Corpo Educado (Pedagogia da sexualidade). Belo Horizonte: Autên-
tica, 2001. p. 151-172.

________. A performatividade de Gênero e do Político: entrevista a revista Cult nú-


mero 205. São Paulo, 2015, p. 20-26.

________. Quadros de Guerra: Quando a Vida é Passível de Luto? Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2016.

________. Corpos Que Pensam: Sobre os Limites Discursivos do “Sexo”. In: LOURO,
Guacira Lopes (Org.). O Corpo Educado. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 153-171.

________. Corpos em aliança e a política das ruas: Notas sobre uma teoria perfor-
mativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização, 2018.

SCHECHNER, Richard. O que é performance? O Percevejo, UNIRIO, número 12. Dispo-


núvel também em: https://pt.scribd.com/document/138894550/O-que-e-performan-
ce-Schechner

DANAN, Joseph. Mutações da Dramaturgia Tentativa de Enquadramento: ou de desen-


quadramento. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2010.

DELEUZE, Gilles. Sobre o Teatro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2010.

DELEUZE, Gilles. Nietzsche Deleuze Jogo e Música. In: LINS, Daniel; GIL, José (Org.).
Jogo e Música. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

DELGADO, Pedro Omar Lacerda. Moldar a Carne: A Queerização dos Corpos no Teatro
de João Carlos Castanha, 2011. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10183/78758>.
Acesso em: 04 abr. 2021.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 77


________. Que Carne Pode a Cena: Estudos Sobre Poéticas Corporais Transperfor-
mativas, Para Além da Dramaturgia de Censuradas Sos Mulheres em Vênus ou Travestis
na Porta do Céu, 2021

FOSTER, David William. Espacio escénico y lenguaje. Buenos Aires: Galerena, 1998.

________. Estudios sobre teatro mexicano contemporáneo: semiología de la com-


petencia teatral: Peter Lang, 1984. Disponível em: <https://books.google.com.br/
books/about/Estudios_sobre_teatro_mexicano_contempor.html?id=pa5IzgEACAA-
J&redir_esc=y>. Acesso em: 27 abr. 2021.

________. Reafirmações Sobre o Queer e o Teatro. São Paulo, O Percevejo, v. 8, n. 2,


p. 60-70, jul.dez. 2016. Disponível em: <http://www.seer.unirio.br/opercevejoonline/
article/view/6497>. Acesso em: 23 mar. 2021.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: O Uso dos Prazeres. São Paulo: Graal, 2010.

________. História da Sexualidade: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal. 14.


Ed., 2001.

________. A Mulher/os Rapazes: Da História da Sexualidade. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1999.

________. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro: Vozes, 2007.

GIL, José. Metamorfose do Corpo. 2. ed. Lisboa: Relógio D’água, 1997.

GUATTARI, Felix. Revolução Molecular: Pulsações Políticas do Desejo. São Paulo: bra-
siliense, 1987.

JEUDY, Henri-Pierre. O Corpo Como Objeto de Arte. 2. ed. São Paulo: Estação Liberdade,
2002.

LOURO, Guacira Lopes. Um Corpo Estranho: Ensaios Sobre Sexualidade e Teoria Queer.
São Paulo: Ed. Autêntica, 2004.

LUGONES, María. Colonialidade e gênero. Tabula Rasa. Bogotá, n. 9, p. 73-101, jul-dez,


2008.

________. Rumo a um feminismo descolonial. Rev. Est. Fem, Florianópolis, n. 22,


v. 3, set/dez 2014.

MORRIS, Marla. O Pé Esquerdo de Dante Atira a Teoria Queer Para a Engrenagem. In:
TALBURT, Susan; STEINBERG, Shirley R (Orgs.). Pensar Queer: Sexualidade, Cultura e
Educação. Mangualde: Ed. Pedago, LDA, 2007. p. 23-44.

PASSOS, Eduardo e BARROS, Regina Benevides de. A cartografia como método de pes-
quisa-intervenção. Porto Alegre: Sulina, 2010.

PRECIADO, Pool. Manifesto Contrassexual. Barcelona: Anagrama AS, 2011.

QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e America latina. A


Colonialidade do saber, eurocentrismo e Ciências sociais. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
Para acessar o conteúdo deste capítulo,
aponte a câmera para QR Code ou clique
no link: https://youtu.be/LAXfmNhJqy8
C apí t u lo 5

ORIENTALISMO
E DECOLONIALIDADE
NA DANÇA:
da pesquisa à
prática docente
Andréa Moraes
Rosemary 'Rosa' Cisneros
Márcia Mignac
Ana Clara Oliveira
Esse texto expõe o modo como bailarinas
atuantes em universidades no Brasil e no
Reino Unido abordam danças de origem
ou influência oriental no âmbito da pes-
quisa acadêmica em artes de modo a de-
colonizarem sua prática. Dada a recente
entrada dessas danças no campo acadê-
mico das artes cênicas no Brasil, consi-
deramos importante dar visibilidade às
suas produções na universidade de modo
a atender à crescente demanda de mate-
rial para estudo e aprimoramento de suas
praticantes.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 81


Márcia Mignac Rosemary Cisneros

Andréa Moraes Ana


As danças abordadas neste artigo referem-se à dança do ventre clás-
sica, ao estilo tribal fusion e ao flamenco por tratarem-se de estilos nos quais
o Oriente Médio e Norte da África situam-se como origem cultural, como no
caso da dança do ventre, ou influência em sua estética, como no caso do fla-
menco e do tribal. Além de origem e estética, o Oriente demarca profunda-
mente essas danças sob a forma de interpretação e domínio ocidental, o que
Edward Said denominou como orientalismo:

O orientalismo pode ser discutido e analisado como a instituição autorizada a


lidar com o Oriente - fazendo e corroborando afirmações a seu respeito, des-
crevendo-o, ensinando-o, colonizando-o, governando-o: em suma, o orien-
talismo como um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade
sobre o Oriente. (SAID, 2007, p. 29).

Edward Said explica que o período colonial consolidou uma episte-


mologia acerca do Oriente por meio de pinturas e relatos de viagem enviados
ao império. As descrições ali contidas propagaram um imaginário de exotis-
mo, subjugação direcionados à cultura, às pessoas e a seu modo de vida. Os
conhecimentos propagados pelo colonizador disseminam-se até os dias atu-
ais, imortalizando o imaginário de um Oriente imutável, no qual o modelo de
modernização baseia-se no padrão ocidental capitalista.
Sendo assim, o orientalismo reflete-se também na dança ao conce-
bê-la como incapaz de modernizar-se, ligada a um passado histórico de sub-
jugação colonial e exotismo. A partir da visão orientalista, seria impossível
pensar o flamenco ou a dança do ventre como danças em constante moderni-
zação, com artistas criadores ao invés de bailarinas que simplesmente perpe-
tuam uma tradição estética.
Ao romper com tais ideias, as danças emergem como resistência à
epistemologia colonial, contrapondo-se ao orientalismo. No campo acadê-
mico, uma vez que essas danças tornam-se produtoras de conhecimento es-
tético, artístico e político, rompe-se o padrão dominante, inserem-se outros
saberes, outras visões de mundo, outras poéticas e avança-se no estado da
arte da pesquisa em dança. Ao considerarmos todas as danças como potentes
artisticamente, estamos contestando a subjugação colonial a que países com
passado de dominação foram impostos.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 83


A argentina Maria Lugones desenvolveu a ideia da colonialidade do
gênero a partir da noção de colonialidade do poder de Quijano (2000). Com
base em textos de autoras feministas de países de passado colonial, Lugones
demonstrou que o colonialismo foi responsável pela invenção e sustentação
da concepção da mulher como sexo frágil e subordinado; da heterossexua-
lidade como padrão normativo da sociedade moderna e da extinção do ma-
triarcado (LUGONES, 2008).
Sendo assim, a crítica feminista decolonial promove as narrativas de
mulheres negras, indígenas e de terceiro mundo a partir de estudos que valo-
rizam, entre outros aspectos:
• A singularidade em oposição às generalizações propagadas pelo fe-
minismo elaborado por mulheres brancas europeias;
• A interseccionalidade - análise considerando as diferenças de
opressão vividas por mulheres negras, indígenas e de terceiro mundo em ter-
mos de raça, gênero, sexo, classe e contexto geopolítico (MORAES,2021).
Consideramos que, se o corpo e o gênero são instâncias de domina-
ção, podem ser também de resistência. Assim sendo, compreendemos a prá-
tica de decolonização da dança como os modos de fazer e refletir danças cuja
origem cultural provenham de países de passado colonial, de modo a burlar,
impedir e romper o processo de subjugação e exotismo, recriando e estabele-
cendo inovações artísticas e epistemológicas a partir de sua estética.
Desta forma, para fins deste texto, refletimos a decolonização da
dança do ventre, flamenco e tribal fusion expondo modos de produção de co-
nhecimento no campo da dança na universidade em oposição ao orientalismo
e a suas epistemologias fundadas nos padrões de modernidade capitalista eu-
rocentrado.
O texto está organizado de modo a apresentar as comunicações das
pesquisadoras e professoras Rosa Cisneros, pesquisadora do Centro de Pes-
quisa em Dança da Universidade de Coventry (Reino Unido) ; da bailarina de
dança do ventre clássica Márcia Mignac, professora na Escola de Dança da
Universidade Federal da Bahia, da bailarina de dança indiana e tribal Fusion
Ana Clara Oliveira, professora na Universidade de Alagoas sob a mediação de
Andréa Moraes, bailarina de dança do ventre clássica e pesquisadora de Pós-
-doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

84 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


O corpo feminino do flamenco
explorado a partir dos suvenirs
Universidade de Coventry: A inovação do flamenco
a partir da artista Belén Maya. Por Rosa Cisneros.

O flamenco como forma de arte destaca a história da comunidade ci-


gana espanhola e revela o paradoxo da região andaluza. É uma forma de his-
tória oral onde o comportamento, os gestos, a poesia, a dança, a música e as
emoções se unem para documentar o passado de um povo e de uma região. O
flamenco originou-se com os ciganos espanhóis e está intimamente ligado à
interação entre não ciganos e ciganos. O flamenco tem suas raízes no cotidia-
no da comunidade cigana que se expressa na linguagem corporal que hoje é
conhecida como flamenco.
O flamenco é frequentemente visto como uma forma de dança tradi-
cional, mas o gênero está sempre em desenvolvimento. Um exemplo de artis-
ta que inovou a dança é o mundialmente conhecido artista de flamenco Roma
Bélen Maya.
O pai de Belén Maya, Mário Maya, foi um pioneiro da dança flamenca.
Belén Maya cresceu em um ambiente de dança flamenca e esteve imerso na
dança desde muito jovem. Ele é um bom exemplo de uma artista que nasceu
em uma família tradicional cigana-flamenca, e que começou realizando uma
forma mais clássica, mas depois ultrapassou os limites do flamenco e passou
a incorporar elementos modernos. Uma de suas peças mais recentes, “Rom-
nia-A ardente tributo às mulheres ciganas” (2017), recebeu análises impor-
tantes. Como o crítico Jonathan Stein escreve,

Esta obra de Belén Maya é um exemplo de um tradicional bailarino cigano


de flamenco que vem de uma famosa família cigana (Mário Maya), mas que
usa o vocabulário contemporâneo e as regras da coreografia para trabalhar no
campo do flamenco. “Romnia-A escaldante tributo às ciganas” leva o espec-
tador a uma jornada que honra as tradições do espírito e alma do flamenco,
mas transporta o espectador moderno para este novo lugar (STEIN, 2017).

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 85


Estratégia de contraversão ao estereótipo
da mulher cigana flamenca em Maya

Carlos Arbelos | Belén Maya dancing | photography | Spain | 1994 | fla_00207 Rights held by: Carlos Arbelos
(work) — Centro Andaluz de Documentación del Flamenco (reproduction) | Licensed by: Centro Andaluz
de Documentación del Flamenco (work/reproduction) I Licensed under: CC-BY-NC-ND 4.0 International |
Provided by: Centro Andaluz de Documentación del Flamenco (Jerez de la Frontera/Spain).

86 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


A imagem geralmente associada ao flamenco é a de Carmen, a ciga-
na ardente e apaixonada que seduz o homem no romance de Prosper Méri-
mée e na ópera homônima de Georges Bizet. O trabalho de Maya apresenta as
mulheres ciganas de uma forma mais realista, oferecendo contranarrativas à
imagem tradicional do flamenco. A figura de Carmen tornou-se um estereó-
tipo do flamenco e vemos esta figura representada em muitos objetos ligados
à forma de arte e à mulher cigana.

A imagem estereotipada de uma mulher ‘cigana’ pode ser bastante seme-


lhante à imagem em que Mérimée baseou seu romance Carmen na década de
1860. A história de Mérimée era sobre um soldado espanhol que foi seduzido
por uma ‘cigana ardente’ chamada Carmen. Pouco depois, o compositor fran-
cês Bizet escreveu uma ópera baseada no romance e a apresentou ao público
francês em 1875 (LEICESTER, 1994).

Esta imagem estereotipada está representada nas obras de muitos


grandes compositores e escritores ao longo dos séculos, reproduzindo assim
uma falsa imagem de corpo, da bailarina e da mulher cigana.
Embora a associação de mulheres flamencas e ciganas com a figura de
Carmen possa parecer bastante inofensiva, na verdade reflete uma imagem
profundamente enraizada, desinformada e romantizada da comunidade. A
tendência de muitas pessoas de associar o flamenco à Carmen não é apenas
altamente sexualizada, mas também distorcida e perigosa. Flamenco é tudo
sobre cantar, tocar violão e dançar, mas o foco típico é geralmente na dan-
çarina de flamenco com seus vestidos de babados, longos cabelos pretos e
dança sedutora.
Essas representações generalizadas estão ilustradas na coleção de
pandeiros do Dr. Daniel Baker, artista, pesquisador e curador que ao lado de
Rosamaria Cisneros mantém o RomArchive1, um arquivo digital que contém
textos, imagens de objetos, fotos e figurinos de dançarinos e dançarinas ro-
mani. A coleção de Baker inclui vários itens que podem ser classificados como
pandeiros, feitos de vários materiais. Três dos pandeiros têm uma imagem na
superfície circular, representando uma cena flamenca e capturando um este-
reótipo de uma dançarina cigana.


1 RomArchive: https://www.romarchive.eu/en/

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 87


O primeiro pandeiro da coleção é feito de madeira com membrana de
pele de animal. A superfície do instrumento é pintada com o retrato de uma
mulher que é presumivelmente uma dançarina cigana.
O segundo pandeiro é um pandeiro de lata de brinquedo infantil do
Vale do Chade, datado do final da década de 1960. A frente do pandeiro apre-
senta uma imagem impressa de uma dançarina cigana usando um vestido
com corpete vermelho com decote branco e uma saia amarela com sapatos
pretos e um xale azul. Uma caravana de madeira pode ser vista no fundo ar-
borizado. Mais ciganos são mostrados dançando ao redor de uma fogueira em
frente à caravana.
O terceiro pandeiro data de cerca de 1950 ou 1960. Tem uma cena gra-
ficamente estilizada de dançarinos de flamenco na frente e uma série de ilus-
trações semelhantes de dançarinos e músicos ao redor do aro.
Esses três pandeiros representam uma mulher cigana da mesma for-
ma que é representada em itens que podem ser classificados como souvenirs
de viagem. Esses tipos de representações visuais servem de pano de fundo
para diversas imagens estereotipadas que circulam pelo grande público.
Souvenirs são objetos tangíveis que podem ser associados a memó-
rias e experiências. A compra de souvenirs pode ser uma atividade regular
para muitos turistas, e os souvenirs concretizam e preservam as memórias
dos turistas de uma viagem (GORDON, 1986). Embora a compra de souvenirs
possa ser vista como uma vantagem para a economia como um todo e para
os negócios locais, a desvantagem é que os souvenirs geralmente projetam
imagens estereotipadas.
O que a coleção de Baker ilustra é a forma como a dançarina de fla-
menco e a mulher cigana são representadas em souvenirs e objetos que cos-
tumam ser usados como decoração. Essas imagens são, então, reproduzidas,
consumidas e consideradas reflexos genuínos da vida cigana, o que é uma
distorção perigosa. Embora esses pandeiros sejam principalmente das déca-
das de 1950 e 1960, a reprodução desses estereótipos ainda é prática comum
hoje. Vemos isso com bonecas menores que, às vezes, são chamadas de bone-
cas Senhoritas e que também refletem esse fascínio pela imagem de Roma e
pelo corpo da dançarina.

88 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


Baker afirma que as bonecas Marin Chiclana, conhecidas como Se-
nhoritas, foram originalmente desenhadas por Don José Marín Verdugo na
década de 1920. As bonecas anteriores eram feitas de cerâmica, mas muitas
que podem ser compradas hoje são de plástico. As bonecas de plástico cole-
cionáveis vistas aqui estavam em seu auge durante as décadas de 1960 e 1970.
As bonecas têm rostos sorridentes com olhares de soslaio. Cada uma tem
acessórios detalhados que podem incluir joias, guitarras, castanholas, pen-
tes tradicionais e mantilhas de renda. Até 2014 existia um Museu de Bonecas
Marin junto à fábrica localizada na província de Cádiz, Espanha. Esta foi uma
grande atração turística para a região e um fator significativo na economia
andaluza. Essas bonecas são muito significativas para a discussão sobre a co-
mercialização e globalização da dança cigana, neste caso, a dança flamenca.
Como artefatos elas demonstram a apropriação da cultura cigana e do corpo
da bailarina flamenca que vem sendo produzida ao longo dos anos.
Como afirma Hargrove, “Por volta de 1829, o vestido flamenco tor-
nou-se popular na alta sociedade. Acabou se tornando o traje nacional da Es-
panha e ainda é usado no Festival de Abril de Sevilha, bem como em outras oca-
siões especiais” (HARGROVE, 2013). A Feira de abril a que se refere Hargrove
é um festival de uma semana em Sevilha, que é extremamente popular e atrai
não apenas visitantes locais, mas também pessoas de outras partes da Espanha
e do exterior. Na Feira de abril, a dança sevilhana ainda é apresentada por casais
e grupos de todas as esferas da vida. Durante a feira, a maioria dos participantes
dança as sevilhanas, sejam eles dançarinos ou não. A cidade é frequentemente
associada ao flamenco, à Feira de abril e à bailarina de flamenco.
As bonecas e os souvenirs seguem perpetuando um padrão de nar-
rativa perigoso sobre a mulher dançarina de flamenco. Assim, como pes-
quisadora, mulher e artista de flamenco, Rosamaria Cisneros afirma buscar
romper com os estereótipos por meio do cuidado para a escolha do figurino
e elaboração da coreografia. Uma vez que a internet perpetua imagens e re-
presentações e as dissemina para um público muito maior que uma dança
em sala de espetáculo, a criação deve ter em vista o largo alcance por um
espaço de tempo que pode ser até eterno. Para ela, a decolonização na dan-
ça aplica-se na própria prática da dança, no corpo e na forma com que ela
apresenta sua criação para o público.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 89


Daniel Baker | Marín Chiclana Flamenco Doll (Circa 1960/70) |
photograph | United Kingdom of Great Britain and Northern Ireland
| 1920 - 1979 | dan_00363Rights held by: Dr. Daniel Baker (photo)
| Licensed by: Dr. Daniel Baker (photo) | Licensed under: CC-BY-
NC-ND 4.0 International | Provided by: Dr. Daniel Baker – Private
Archive

90 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


Em suas criações, Cisneros busca burlar o orientalismo introduzindo
elementos modernos em seu vocabulário de dança, rompendo com tradições,
projetando ideias de imutabilidade na dança e as desafiando. Ela expressa
como vive as narrativas da mulher flamenca imortalizada em representações
estereotipadas em seu corpo e como pode retomar e repensar essas narrativas
em uma perspectiva atual.
Em sua atuação de pesquisadora artista de flamenco na universidade,
Cisneros une a atuação artística ao trabalho de ensinar o flamenco em ONGS
no Reino Unido. Dessa forma, ela percebe que a dança dá a oportunidade para
trazer experiências de vida, experiências que permitem vislumbrar a dança e
seu papel de transformação social em que opera como um elemento de justiça
social, de modo que uma vivência alimenta a outra: a atividade artística, a
acadêmica e o ensino da dança.

Partilhas com “Danças do Ventre” na Escola de Dança (UFBA):


pesquisa, ensino e extensão.
Por Márcia Mignac

Para início de conversa, sinto a necessidade de dar contorno ao meu


lugar de fala, enquanto artista, pesquisadora e docente de Danças Árabe-
-diaspóricas por quase três décadas. Atualmente como docente permanente
da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, atuando nos Cursos de
Dança da Graduação/Diurno e no Mestrado e Doutorado Acadêmico do Pro-
grama de Pós-Graduação em Dança, me sinto convocada a pensar qual o pa-
pel da dança nos tempos de agora. Adentrar o meu vivido, o viver uma vida
de ser pessoa discente, ser-em-situação, para refletir a minha coimplicação
na construção de um campo de feituras/pesquisas artísticas acadêmicas em
danças árabes, e aqui também usarei o designador “danças” do ventre.
Reflexões e questionamentos que não podem deixar de ser postos,
justamente porque as “danças” do ventre não podem passar incólumes às
convulsões que vêm redesenhando o mundo: evidenciação do racismo, de-
sigualdade de gênero, misoginia, alto índice de feminicídio, LGBTQI+fobia,
gordofobia e etarismo, como ocorrências sociais a serem erradicadas. Entre-

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 91


tanto, ainda que o momento atual convoque entender a abrangência da pers-
pectiva colonial capitalista nos modos de existir, a ruptura com o modelo éti-
co, estético e civilizatório ocidental parece não avançar no ambiente artístico
das “danças” do ventre.
Neste sentido, atuando na prática docente, penso que o ofício do pro-
fessor “representa para mim a continuidade de um caminho no qual posso
continuar expandir os mundos que habito, colaborando na ampliação daque-
les habitados pelos alunos com os quais interajo” (LARROSA, 2018, p.104). E
nesta interação de habitar mundos em coexistências, faz-se preciso exercitar
a pluriversalidade (RAMOSE, 2011), isto é, diferentes conjugações no conhe-
cer, para não continuar compactuando com uma educação doutrinadora e an-
corada em uma mono-racionalidade.
De acordo com a pesquisadora Helena Katz (2010), para lidar contra
os preconceitos e a ignorância que o mundo produz, importa não parar de
perguntar. Perguntas como possibilidades de desabordar os contornos que
situam as “danças do ventre” e que serviram para mim como ignições para
“pensar diferentemente”. A este respeito, considero que o desejo de propor
práticas que atendessem os três pilares da Universidade: pesquisa, ensino e
extensão, não deveriam reproduzir uma mesma lógica e continuar atendendo
velhas formulações ancoradas no modelo de mundo colonial capitalista.
As partilhas a seguir se materializam no fluxo dos “desabordamentos” e,
para cada experiência relatada, trago uma pergunta para início de conversa.

PARTILHA 1: Para que tipo de mundo sua dança testemunha?


Projeto Re-creio: Dança do Ventre na ressignificação da violência sexual
com adolescentes (PROEXT/UFBA/2003-2004)

A pergunta que apresenta a partilha número um (1) é uma licença


poética da pergunta de autoria do filósofo José Antônio Saja Ramos Neves
dos Santos: “Para que tipo de mundo sua ação testemunha?”. Questão fre-
quentemente proferida nas palestras ministradas por Saja, que aqui terá a
dança como ação co-implicada nos testemunhos que ocorrem no mundo.

92 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


Disto isto, diante de um país chamado Brasil onde a cada quinze (15)
minutos uma criança sofre violência sexual[1], trago uma outra pergunta:
“Qual afeto nos abre para sermos sujeitos?” (SAFATLE, 2016), justamente
para pensar qual o papel da dança em processos de ressignificação dos corpos
em situação de violência.
Nos anos de 2004 e 2005 desenvolvi, juntamente com a Profa. Dra.
Beth Rangel, um Projeto de dança via ações da Pró-Reitoria de Extensão
(PROEXT/UFBA), em parceria com o CEDECA-BA[2] e Projeto Viver[3], cujo
objetivo era propor a dança do ventre como ação de ressignificação da violên-
cia sexual e reorganização de corpos adolescentes assujeitados.
Importa esclarecer que posteriormente essas ações constituíram o meu ob-
jeto de pesquisa do mestrado acadêmico, resultando nos anos 2008 na pro-
dução da dissertação intitulada: “A Subversão da Sujeição: a ação política da
dança do ventre em adolescentes sujeitadas e em instituições”, no Programa
de Pós-graduação em Dança (PPGDANÇA-UFBA).
É uma partilha que, de partida, apresenta um desabordamento no modo
como a dança do ventre é inserida no contexto de assistência às adolescentes em
situação de violência sexual. A dança do ventre foi anunciada como uma ação
cognitiva do corpo, que possibilitou outros estados perceptivos pelo mover-se,
como uma estratégia na qual a adolescente sujeitada pode assim conhecer-se
fora da moldura habitual. Sobre isto eu escrevo, na dissertação (2008):

As experiências corporais vivenciadas com a prática da dança possibilitam o


acesso a outras informações/assuntos, além dos referentes presentes na situ-
ação do abuso sexual. O corpo é deslocado do filtro da violência e ampliam-se
os modos de conhecê-lo de outro jeito, no âmbito do fazer artístico em dança,
(MIGNAC, 2008, p. 18).

A dança neste projeto foi entendida como um vestir-se de “corpossi-


bilidades”, termo criado por mim para enfatizar as ações de dança como pos-
sibilidades corpadas e, portanto, abertura para outros modos de se entender
corpo e reorganizar a violência sexual, justamente porque a dança do ventre
é implementada mais enfaticamente no assoalho pélvico, espaço também de
introjeção do assujeitamento.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 93


[...] a dança do ventre implementada no mesmo local de introjeção da sujeição
promova a percepção do corpo como espaço de distintas ocorrências e reor-
ganizador de experiências. Por acionar com maior ênfase a região do assoalho
pélvico e da cintura escapular, ações de dança do ventre terminam por repro-
por as informações vinculadas à sexualidade e ao assujeitamento. As ações
intervenções sensório-motoras trabalhadas no e pelo corpo que dança per-
mitem ampliar os modos de ver a sujeição e redirecionar posições e questio-
namentos relacionados às ações de intervenções aos quais foram submetidos
(MIGNAC, 2008, p.14)

Considero que essa ação é uma possibilidade de interrogar os corpos


sujeitos e institucionais e suas coimplicações na discussão da violência se-
xual, de avançar na análise sobre o papel da dança e, mais especificamente,
sobre o “lugar” do corpo e do corpo que dança nos espaços institucionais,
que recebem e acolhem adolescentes sujeitadas. A adoção de procedimentos
dessa natureza sinaliza para uma atuação política que, viabilizada por ações
do/no corpo, indique aos corpos-instituições outros modos de organização
da sujeição.

PARTILHA 2: Qual a agenda dos artistes/docentes da dança do ventre?


Danças, Ventres e Feminismos: experiências artístico-pedagógicas

A segunda partilha se refere às experiências enquanto docente no


Curso de Licenciatura em Dança (UFBA), com o componente curricular DAN
164/165, Dança de Caráter I e II, desde 2014. Esclareço ainda, que a oferta re-
corrente teve o respaldo do planejamento semestral do Colegiado dos Cur-
sos de Graduação da Escola de Dança/Diurno, em decorrência das solicitações
apontadas pelo corpo discente no período de orientação acadêmica.
A pergunta-guia desta partilha (2) tem como proposta pensar qual a
agenda civilizatória suleadora dos docentes de “danças do ventre” na atualida-
de. Ou seja, atende um conjunto ético e estético civilizatório ocidental ou busca
desabordamentos que impliquem a adoção de procedimentos decoloniais?
A partilha aqui apresentada foi pautada em experimentações deco-
loniais e feministas com “danças” do ventre no semestre 2018.1, nas quais

94 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


a pessoa discente pudesse desabordar crenças coloniais sobre si e seu corpo
dançante. Seus princípios suleadores foram:
• O sentido libertário do ato criativo e a insurgência de si – afirmação
e a reinvenção da existência;
• O ato investigativo via princípios da dança do ventre e a criação de
paisagens corporais múltiplas/ experiências pluriversais de mulheridades
(Letícia Navarro, 2021);
• Ruptura com a concepção homogênea e universal de mulher – cria-
ção de processos investigativos e compositivos em “danças” do ventre (in-
ventário de interesses e montagem de processos singularizados)
A percepção do corpo, como um lembrete de quem somos, na aula
de Dança de Caráter II, permitiu desabordar o imaginário de feminino repro-
duzido pela colonialidade. Os processos de pesquisa de movimento e com-
posição coreográfica também se constituíram como práticas feministas, na
medida em que romperam como moveres dançantes que objetificavam e su-
balternizavam o corpo feminino.
Ao vestir-se como uma matriarca ancestral e utilizar o cachimbo
sagrado, como elemento constituinte da cena, a pessoa discente ritualiza a
existência de si e das outras mulheres, corporificando uma oração dançada.
Há um deslocamento subjetivo, legitimado a partir da figura materna, que
opera na também no confronto dos modelos femininos sexistas impostos nos
moveres das “danças do ventre”. Sobre seus “desabordamentos”, a pessoa
discente diz:

Cursando este componente curricular, passei por dois momentos de desper-


tar distintos. O primeiro foi a necessidade de me enxergar enquanto mulher,
feminina. Fui desafiada a ver beleza em meu corpo, que é totalmente fora do
padrão estético vigente. O segundo despertar foi desencadeado pelas pro-
postas reflexivas lançadas pela professora Márcia Mignac. Ao refletir sobre
minhas raízes, a ancestralidade que trago em meu corpo, meu ventre, me-
mórias, ao pensar sobre o que me nutre. [...] Tudo começou a se encaixar com
meu estilo de vida, minhas escolhas pessoais, meus ritos diários e a dança do
ventre. (Aluna, 2018)
E prossegue:

Quando pensei nos meus referenciais de mulheres, resolvi homenagear a mi-


nha mãe, que é uma mulher extremamente ritualística, ligada aos saberes an-
cestrais e à natureza. Então decidi trazer para meu solo a figura da Anciã, que
já passou pelas fases da jovem e da mãe. A anciã é a sábia, a velha mulher que
tem muita experiência e ligação com a espiritualidade. A minha dança foi essa
referência às matriarcas ancestrais, às pretas velhas, às caboclas e ao poder de
cura que toda mulher carrega em si. (Aluna, 2018)

Arrisca-se, ainda, refletir que as práticas artísticas vividas pelas pes-


soas discentes, em sala de aula, encontram ressonâncias nos modos femi-
nistas de criar, justamente por bancar o sentido libertário no fazer criativo e
reformular as narrativas autobiográficas femininas, que na cena se configu-
ram também como estratégias de enfrentamento de “uma herança da velha
somatocentralidade do pensamento ocidental” (OYEWÚMÍ, 2022).

PARTILHA 3: Da dança ao ventre: dessencializar o gênero é possível?


Reflexões construídas em parceria com a orientanda Camila Saraiva
(Doutorado/PPGDANÇA/2021)

Esta terceira partilha diz respeito a minha experiência como pessoa


docente no Programa de Pós-graduação em Dança (PPGDANÇA-UFBA), no
qual desenvolvo a orientação da pesquisa de doutorado da pessoa discente
Camila Silva Saraiva, vinculado ao Grupo de Pesquisa Ágora: modos de ser
em dança (CNPq-UFBA) e ao Grupo de Estudos Oriente-se: Danças do Ventre,
Orientalismo e Decolonialidade (PPGDANÇA-UFBA).
A pesquisa em curso de Camila Saraiva intitulada: “Da submissão à
subversão do ventre que dança. O imaginário da odalisca oriental e a here-
ro-cis-normatividade, trajetórias, desvios e escapes”, abre para tensiona-
mentos importantes nos tempos de agora, principalmente com a reedição
do orientalismo nas mídias sociais, com a replicação do imaginário colonial
machista, que reforça a representação da bailarina de dança do ventre como
mulher cis, branca e heterossexual.

96 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


Neste sentido, a referida pesquisa tem a tarefa de iniciar o “desaborda-
mento” dos seguintes pressupostos que gestam a dança do ventre no ocidente:
• Qualificações hetero-cis-normativas que foram corpadas desde o
século XIX, com a construção do imaginário dos povos orientais pelos países
imperialistas;
• A representação da odalisca como uma ritualística máxima do fe-
minino, que cria condições de representação que gestam o próprio sujeito a
ser representado;
• Concepção homogênea universal de mulher. (OYEWÚMÍ, 2021);
• A generificação dos corpos, a partir do fundacionalismo biológico
dos sexos/ diferença sexual (NAVARRO, 2021; LAURENTIS, 2019).

Esses desabordamentos são necessários para romper com a univer-
salização e com a replicação dos pressupostos citados acima, que muitas ve-
zes retiram a capacidade de agência da pessoa artista. Sobre isto, Mignac e
Saraiva escrevem:

É interessante perceber os inúmeros estereótipos que existem e permanecem


ainda presentes no senso comum sobre a dançarina do ventre, estão situados
em um imaginário social de mulher sensual, sexualmente disponível, vul-
gar, competitiva e perigosa (PENNA, 1993; SAID, 1996; XAVIER, 2006; SAL-
GUEIRO 2012). Esse imaginário fantasioso da dançarina oriental é em grande
parcela produto do pensamento orientalista, o qual instaura a figura da dan-
çarina cortesã prostituta, como uma máquina de sexo, objeto de desejo e de
realização dos mais exóticos fetiches sexuais, evidenciado na obra de SAID
(1996). (MIGNAC, SARAIVA, 2021, p. 37).

Por fim, espera-se que esta comunicação com as três partilhas apre-
sentadas seja suleadora para compreender o que o mundo nos reivindica. As-
sim, que “no como singular de sua presença, no irredutível acontecimento de
seu ser-em-situação” (TIQQUN, 2019, p. 18) possa ser possível desabordar os
contornos das “danças” do ventre, assumindo elementos éticos e estéticos
orientais e modos de existências pluriversais.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 97


Estilo Tribal Fusion e implicações político-sociais
Por Ana Clara Oliveira

“Uma dança, mil nomes; um nome, mil danças”.


(Natália Espinosa)2

Antes de tudo, a dança tribal, construída esteticamente ao longo dos


anos, precisa ser, em todo o caso, discutida como problema maior no âmbito
científico e político-social contemporâneo. Do ponto de vista crítico, as dan-

ças do “estilo tribal” estão intimamente relacionadas ao processo de globa-


lização cujo papel é equalizar povos e culturas, causando-lhes impressões de
igualdade e naturalidade em relação ao poder hegemônico. Decerto, o padrão
absoluto de poder e controle, fruto da vestimenta do capitalismo, atua como
ferramenta potente de sujeição do corpo sendo, a circulação tecnológica uma
das responsáveis por expor o que está em voga na vida ordinária.
Nesse ínterim, a dança do ventre de fusão, genericamente, dança tri-
bal – termo majoritário entre praticantes do Brasil – nasce repleta de ques-
tões político-sociais (orientalismo, capitalismo, globalização e colonialida-
des) que afetam o campo artístico e pedagógico de praticantes, uma vez que
a dança nunca esteve isenta das afecções do mundo. No presente texto, fo-
calizaremos no estilo tribal fusion para repensar o cotidiano artístico/docen-
te no que diz respeito às reincidências orientalistas e requintadas maneiras
de opressão e exploração. Para tanto, é necessário mencionar a conceituação
e as personagens mais importantes que frutificaram a edificação desta Arte
Cênica, visto que a dança tribal, ainda invisibilizada no ambiente acadêmico,
passa por precarizações de expandidas naturezas no mercado produtivo da
dança, como sequela da perspectiva do “sistema-mundo patriarcal/capita-
lista/colonial/moderno” (GROSFOGUEL, 2008, p. 124).
À vista disso, se indagamos as danças “estilo tribal” a partir da pers-
pectiva conceitual submetida aos seus diversificados nomes, observa-se que
2 A frase foi o tema da palestra proferida por Natália Espinosa no Prakis - Simpósio Brasileiro de Fusões Tribais,
ano de 2020. Natália Espinosa é dançarina e professora do estilo tribal de dança do ventre. Possui o status de Partner
Studio Fat Chance Belly Dance®. Estudou nos EUA com Carolena Nericcio e as demais professoras do FCBD®, bem
como, estudou com diversos profissionais de renome nacional e internacional. Orienta o Amora ATS ®. Disponível
em: https://www.nataliaespinosa.com/. Acesso em: 16 de mai. 2022.

98 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


tão amplo é o entendimento quanto são concretas as diferenças entre verten-
tes. Historicamente, essa dança possui efervescência desde a década de 1960,
quando a pioneira Jamila Salimpour, através de eventos como Renaissance Ple-
asure Faire – Feira da Renascença - nos Estados Unidos, originou uma tradução
dançada junto ao grupo Bal Anat. Adiante, a nomenclatura “tribal” passa a ter
evidência conforme escreve a pesquisadora Maria Beatriz Vasconcelos:

As primeiras menções acerca da terminologia “tribal” para a Dança do Ventre


surgiram na segunda metade do século XX, em São Francisco, na Califórnia,
num momento contemporâneo de grande vanguardismo e celebração ao mo-
vimento nos Estados Unidos (VASCONCELOS, 2019, p. 243).

A partir de então, uma série de empenhos surgiram mediante a apro-


priação de danças do Oriente Médio e Norte da África, mais tarde, danças da
Índia, flamenco Espanhol, danças modernas e urbanas, podendo assumir a
depender dos interesses e experiência de quem dança, as expressões brasilei-
ras, entre outros repertórios. Atuando como artista-professora-pesquisado-
ra, considero que a dança tribal, de descendência da dança do ventre, é uma
artesania complexa em constante transformação que provoca uma releitura
de ideias, técnicas e aspectos estéticos de vários grupos sociais. Esse pensa-
mento dialoga com a noção da pesquisadora Kilma Farias Bezerra, para quem,
o movimento da dança tribal:

Está sob o guarda-chuva das danças contemporâneas do universo fusion que


persegue uma constante atualização e ultraprocessamento estético que a ca-
racteriza como arte de vanguarda. Isso se afirma no mundo da dança como
um estilo de mercado próprio e que, apesar da sua volatilidade, é palpável. [..]
E eu arriscaria dizer, o principal: a atualização; o que muitas vezes lhes con-
fere a nomenclatura de Dança Étnica Contemporânea (BEZERRA, 2017 p. 111).

Pertencem a essa pluralidade as composições denominadas como o


American Tribal Style Bellydance® (ATS®), na tradução para o português Es-
tilo Tribal Americano de Dança do Ventre, que veio a se tornar o gênero inicial
da dança tribal devido à sua sistematização, e seus subgêneros mais comuns
- Tribal Fusion e Improvisational Tribal Syle - interpretados no Brasil, respec-
tivamente, por Fusão Tribal e Estilo Tribal de Improvisação. De modo espe-
cífico, o tribal fusion com o passar dos anos resultou em diversas estilizações,

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 99


a exemplo, tribal old school, cabaret fusion, dark fusion, rock fusion, tribal ritu-
alístico, tribal brasileiro, fusão brasil, entre outras. Assim, ao examinarmos
no interior de todo o contexto histórico dos gêneros e subgêneros da dança
tribal, por meio do Curso de Formação em Fusion Bellydance, fornecido por Jo-
line Andrade3, percebemos os nomes principais no cenário internacional, são
eles: Jamila Salimpour – lida por grande parte da comunidade da dança como
a “mãe da dança tribal”; Katarina Burda – que, estudando com Jamila no Bal
Anat, ensinou muitas pessoas nos Estados Unidos e na Europa que vieram a
se tornar artistas célebres; John Compton – especialista em cymbals sírios e
o equilíbrio de bandejas, foi estrela do Bal Anat e cofundador e codiretor do
grupo folclórico Hahbi’Ru Eastern Dance Ensemble; Masha Archer – discípula
da Jamila que gerou na cena um misto europeu “parisiense-tunisiano” com
um visual “tribal bizantino”; Carolena Nericcio – estudou com Masha e fo-
mentou o conhecido ATS® (rebatizado para o nome FatChanceBellyDance),
que foi o primeiro método de improvisação coordenada mediante senhas e
repertórios estabelecidos; Jill Parker - fundadora do fenômeno mundial an-
tes denominado Tribal Fusion Bellydance (identificado na contemporaneida-
de como tribal fusion), em São Francisco em meados dos anos 90 e por fim,
Donna Mejia - dançarina, coreógrafa e pesquisadora responsável por debates
sobre a problematização da nomenclatura “tribal” e outras discussões a par-
tir dos seus conhecimentos de dança, tradições da diáspora africana e árabe e,
tradições emergentes de fusão transcultural (ANDRADE, on-line).
Na paisagem brasileira, destacam-se grupos e profissionais de todo o
país cujas produções artísticas e educacionais variam a depender das experi-
ências e linhas de pesquisa criativa. Foi a dedicação a duras penas de pratican-
tes brasileiras que estabeleceu a arquitetura da dança tribal, especialmente, o
tribal fusion e vertentes no Brasil, como um movimento dissidente no mundo
hodierno. Nesta ocasião, reforçamos os trabalhos da Shaman Tribal Co. e da
Caravana Tribal Nordeste como grandes potências contra-hegemônicas pro-
movedoras de danças feministas no combate da subalternidade, pois “[...] se,
no contexto da produção colonial, o sujeito subalterno não tem história e não

3 Graduação em Licenciatura em Dança, Dançarina Profissional e Especialista em Estudos Contemporâneos sobre


dança pela Universidade Federal da Bahia. Artista brasileira de notabilidade nacional e internacional. Disponível
em: https://www.jolineandrade.com/. Acesso em: em 15 de mai. 2022.

100 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


pode falar, o sujeito subalterno feminino está ainda mais profundamente na
obscuridade” (SPIVAK, 2010, p. 28).
Partindo desse panorama, perguntamo-nos: como reaprender o tri-
bal fusion, bastante difundido no Brasil, a partir das categorias político-so-
ciais (orientalismo, capitalismo, globalização e colonialidades)? Neste senti-
do, propomos o exercício de repensar a prática educativa a partir da extensão
universitária em dança tribal, principalmente, do tribal fusion e ramificações
brasileiras, sob minha coordenação na Universidade Federal de Alagoas. Ava-
liamos o plano artístico/pedagógico como um caminho possível para entender
as lacunas na formação em dança, as problematizações e subordinações que
afetam o corpo dançante. Prova disso são os objetivos do projeto extensionis-
ta “Poética da Dança Tribal” (UFAL): identificar conteúdos que questionam
os discursos orientalistas no mundo da dança tribal (SAID, 2007); discutir as
desigualdades sociais e precarizações oriundas do capitalismo no mercado
da dança tribal (BAMBIRRA, 2019); resistir às lógicas da globalização no que
tange ao consumo imediato de repertórios de dança internacional (SANTOS,
1997), dando lugar ao diálogo entre vocabulários estabelecidos do tribal fusion
e motrizes (LIGIÉRO, 2012), nesse caso, danças afrobrasileiras, coco alagoano
e histórias de vida; problematizar o estigma racial, em especial, da mulher
latino-americana, brasileira, nordestina e negra no cotidiano e no cenário da
dança, adotando a relação teórico-prática no ato de dançar (GOMES, 2021).
Para dar materialidade aos intentos, foram desenvolvidos laborató-
rios improvisacionais dos temas comprometidos com as realidades do cor-
po discente, isto é, estudantes da Licenciatura e Técnico em Dança (UFAL)
e também da sociedade em geral. O entendimento corporificado (RIBEIRO,
2015) foi partilhado em diários de bordo discente e docente, debates através
de textos e análise de vídeos, produção de coreografias e espetáculos, confec-
ção de artigos no formato relatos de experiência em congressos e seminários
e, por último, organização de eventos acadêmicos I, II e III Encontro de Dança
Tribal (UFAL), com pesquisadoras e pesquisadores convidados.
Levando em consideração o legado teórico-metodológico do edu-
cador Paulo Freire, apoiamo-nos no “saber que ensinar não é transferir co-
nhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua
construção” (FREIRE, 2020, p. 47). Sem dúvidas, a ação de extensão suleou a

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 101


minha entrada no Doutorado em Artes, Programa de Pós-graduação em Ar-
tes, na Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Da mesma forma, o projeto universitário em conversa com a sociedade man-
teve-se sensível a seus problemas e necessidades, sem assumir uma postura
detentora de conhecimentos conclusos. Confiamos que o projeto “Poética da
Dança Tribal” (UFAL) se tornou uma ação feminista decolonial provocadora
das esferas político-sociais totalizadas no “tripé colonialidade do poder, sa-
ber e ser como forma de denunciar e atualizar a continuidade da colonização e
do imperialismo, mesmo findados os marcos históricos de ambos os proces-
sos” (BALLESTRIN, 2013, p. 110).

Reflexão final

A partir das exposições das professoras e pesquisadoras é possível


perceber o espaço político que intersecciona dança, feminismo e decoloniali-
dade. As práticas reflexivas que emergem de seus estudos em danças de ori-
gem e influência oriental na universidade promovem novas possibilidades de
criação de saberes, saberes esses que não estão no escopo das danças de pa-
drão ocidental legitimadas como conhecimento acadêmico, a exemplo do balé
clássico, da dança moderna e da contemporânea.
De acordo com a proposta de Cisneros e Mignac, identificamos a te-
mática feminista e a busca por ressignificar os estereótipos orientalistas. De
um lado, está a estratégia de quebra de padrões estéticos nas composições de
Belén Maya; do outro, a força da recriação de sentido por meio do domínio de
movimento do quadril na dança do ventre em adolescentes que tiveram essa
mesma parte do corpo invadida e dominada pela violência sexual. Da mesma
forma, no trabalho da professora Ana Clara Oliveira a dança tribal efetiva sua
característica política e decolonial na prática junto à comunidade.
A inserção de danças outras, fora do âmbito e da lógica de domínio
colonial capitalista eurocêntrico e norte-americano na universidade, permite
a recusa aos padrões imperialistas e o estabelecimento de novas epistemolo-
gias. A dança abre suas fronteiras do pensamento para que as classificações e

102 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


hierarquias preestabelecidas sejam repensadas e retomadas.
Se toda dança tem seu discurso (DESMOND, 2013), é preciso considerar os
discursos que as danças do ventre, suas fusões e o flamenco permitem for-
talecer e dar visibilidade. Quais são os discursos que se fortalecem a partir de
sua prática na universidade? Por que valorizar um discurso sobre outro defi-
nindo quais danças servem e quais não servem ao âmbito acadêmico?
Esperamos que o tímido espaço que se abre com os trabalhos das pes-
quisadoras que assinam esse estudo se amplie e se fortaleça de modo que o
exercício de decolonialidade se dê no corpo, na prática e no pensamento do
campo acadêmico da dança no Brasil.

[1] https://www.vidaeacao.com.br/a-cada-15-minutos-uma-crianca-sofre-
-violencia-sexual-no-brasil/
[2] CEDECA - BA - Centro da Defesa da Criança e Adolescente/ Bahia. Insti-
tuição não governamental que presta serviços às pessoas em situação de vio-
lência sexual.
[3] Órgão da Secretaria de Segurança Pública do Governo do Estado da Bahia,
situado no Departamento de Polícia Técnica do Instituto Médico Legal Nina
Rodrigues, que presta serviços às pessoas em situação de violência sexual.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 103


REFERÊNCIAS

ANDRADE, Joline. T. A. Curso de Formação em Fusion Bellydance com Joline Andrade. On-li-
ne: Edição 2021. Disponível em: https://www.jolineandrade.com/. Acesso em 06.dez, 2021.

BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Rev. Bras. Ciênc. Polít., Brasí-
lia, n. 11, p. 89-117, 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcpol/a/DxkN3kQ3X-
dYYPbwwXH55jhv/abstract/?lang=pt.

BAMBIRRA, Vânia. O Capitalismo Dependente Latino-americano. Florianópolis: Editora: In-


sular; 1ª edição, 2019.

BEZERRA, Kilma F. Arte de si na Dança Tribal: narrativas entre espiritualidade e corpo cêni-
co. Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões, Universidade Federal da Paraíba
(Dissertação). Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/123456789/12190.
Acesso em: 06 dez. 2021.

CURIEL, Ochy. Construindo metodologias feministas desde o feminismo decolonial. BAL-


DUINO DE MELO et al, p. 32-51, 2014.

DESMOND, Jane C.; DE MATTOS NOGUEIRA, Tradução de Mariângela; AMOROSO, Revisão


Técnica de Daniela Maria. Corporalizando a Diferença: questões entre dança e estudos cul-
turais. Dança: Revista do Programa de Pós-Graduação em Dança, v. 2, n. 2, p. 93-120, 2013.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 66ª ed. Rio
de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020.

GOMES, Nilma L. O combate ao racismo e a descolonização das práticas educativas e acadê-


micas. Revista De Filosofia Aurora, 33(59). Disponível em: https://periodicos.pucpr.br/auro-
ra/article/view/27991. Acesso em 06.dez, 2021.

GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-


-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Crí-
tica de Ciências Sociais, n. 80, p.115-147, mar., 2008. Disponível em: http://www.ces.uc.pt/
rccs/includes/download.php?id=982. Acesso em: 23 mar. 2021.

GORDON, Beverly. The Souvenir: Messenger of the Extraordinary. The Journal of Popular
Culture. 2004, v 20. p. 135 - 146.

HARGROVE, Sandy. Costumes of old Mexico carselle & poveda souvenir dolls. [Place of publi-
cation not identified]: Lulu Com, 2013.

LARROSA, Jorge. Esperando não sabe o quê: sobre o ofício do professor. Belo Horizonte: Au-
têntica Editora, 2018.

104 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


LAURETIS, Teresa de. A Tecnologia do Gênero. 1987. Disponível em: <https://edisciplinas.
usp.br/pluginfile.php/4033218/mod_resource/content/1/LAURETIS%2C%20Teresa%20
de%20-%20%20A%20Tecnologia%20do%20Genero.pdf> Acesso em: 10.01.2021.

LEICESTER, H. Marshall. Discourse and the film text: Four readings of Carmen. Cambridge
Opera Journal, v. 6, n. 3, p. 245-282, 1994.

LIGIÉRO, Zeca. (2012). O conceito de “motrizes culturais” aplicado às práticas performativas


afro-brasileiras. Revista Pós Ciências Sociais, 8(16). Disponível em: http://periodicoseletro-
nicos.ufma.br/index.php/rpcsoc/article/view/695. Acesso em: 16 mai. 2022.

KATZ, Helena, Greiner Christine. Arte & Cognição: Corpomídia, política e educação. In: RI-
BEIRO, Mônica. Cognição e afetividade na experiência do movimento em dança: conheci-
mentos possíveis. 1ª edição. São Paulo: Annablume Editora, 2015. 23-76.

KATZ, Helena. O papel do corpo na transformação da política em biopolítica. Revista Trama


Interdisciplinar, v. 1, n. 2, 2010.

LUGONES, María. Colonialidad y género. Tabula rasa, n. 09, p. 73-101, 2008.

MIGNAC, Márcia Virgínia dos Reis. A subversão da sujeição: a ação política da dança do ventre em
adolescentes sujeitadas e em instituições. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/bitstream/
ri/27529/1/DISSERTA%c3%87%c3%83O_MARCIA_MIGNAC.pdfAcesso em: 13 Maio 2022.

MIGNAC, Márcia V. & SARAIVA, Camila S. Nos véus da existência: por outros modos de ser na
dança deslocados da hetero-cis-normatividade.V Congresso Internacional de Direitos Hu-
manos de Coimbra, Vol. 7, 2021.

MORAES, Andréa et al. Dança do ventre e o feminismo decolonial. Moraes, Andréa; Fagundes,
Silvia Patricia; Silva, José Jackson (Orgs.). Narrativas diversas nas artes cênicas. Porto Alegre:
UFRGS, 2021. p. 101-126., 2021.).

NASCIMENTO, Letícia. Transfeminismos. São Paulo: Jandaíra, 2021.

OYEWÚMÍ, Oyérónké. A Invenção das mulheres. Construindo um sentido africano para os


discursos ocidentais de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. 2000.

RAMOSE, Mongobe. Sobre a Legitimidade e o Estudo da Filosofia Africana. Disponível em:


http://www.ensaiosfilosoficos.com.br/Artigos/Artigo4/RAMOSE_MB.pdf. Acesso em : 05 de
maio 2022

SAID, Edward W. Orientalismo: O oriente como invenção do ocidente. Companhia das Letras.
São Paulo, 2007.
SAFATLE, Vladimir. O Circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo.
Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

SANTOS, Boaventura. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica
de Ciências Sociais, nº 48. Disponível em: http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/
pdfs/Concepcao_multicultural_direitos_humanos_RCCS48.PDF. Acesso em: 06 dez. 2021.

SPIVAK, Gayatri C. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos
Pereira Feitosa; André Pereira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.

STEIN, Jonathan. (2017). Belén Maya’s Romnia - A searing homage to Romany Women. [on-
line] Disponível em: http://thinkingdance.net/articles/2017/10/20/Beln-Mayas-RomniaA-
-Searing-Homage-to-Romany-Women Acesso em 15 Feb. 2018.

VASCONCELOS, Maria B. Estilo tribal americano de dança do ventre: algumas questões e


princípios estéticos, técnicos e composicionais. Programa de Pós-Graduação em Dança,
UFBA (Dissertação). Disponível em: http://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/30794. Acesso
em: 06 dez. 2021.
Para acessar o conteúdo deste capítulo,
aponte a câmera para QR Code ou clique
no link: https://youtu.be/qEpL0kchBrs
C apí t u lo 6

CAINDO
DE PARAQUEDAS
NA PEDAGOGIA
DAS ARTES CÊNICAS
E SEM
ACESSIBILIDADE
Betha Medeiros
Carolina Teixeira
Pedro Bertoldi
Rodrigo Teixeira
Este texto apresenta a roda de conver-
sa que ocorreu no dia 07 de dezembro de
2021 integrando o II Seminário Discente
do PPGAC/UFRGS.

Nessa mesa temática, quatro


professores artistas se encontram em um
bate-papo para explicar como acabaram
‘caindo de paraquedas’ na pedagogia das
artes cênicas e para dividirem suas expe-
riências como docentes. As dificuldades
como falta de acessibilidade, inclusão,
capacitismo estrutural e, claro, sobre as
coisas boas que os fazem acreditar que
podemos fazer diferença. O nome da mesa
já é a primeira de várias provocações.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 109


Carolina Teixeira Pedro Bertoldi

Rodrigo Teixeira Betha Medeiros

Maria José - TSL Alexandra - TSL


Fazem parte dessa roda de conversa:

Carolina Teixeira: artista da performance e Doutora em Artes Cênicas


pela UFBA. Carolina é pesquisadora no campo dos Disability Studies (Estu-
dos da Deficiência) nas artes da cena no Brasil e EUA. Foi uma das diretoras e
coreógrafas da renomada Roda Viva Cia de Dança. Ela é consultora em aces-
sibilidade estética atuando em instituições públicas e privadas do país. É pre-
paradora cênico-corporal e autora do livro Deficiência em Cena, pela Editora
Ideia (2011).

Pedro Bertoldi: ator, dramaturgo e arte educadores. Criador e coorde-


nador do Projeto CINECRAS: cinema e inclusão social. Desde 2018 atua como
professor no Centro Integrado de Desenvolvimento, onde desenvolve uma pes-
quisa voltada para a inclusão de pessoas com deficiência através da arte.

Rodrigo Teixeira: ator e professor de teatro formado pelo Departa-


mento de Arte Dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (DAD/
UFRGS). Mestrando em Artes Cênicas no Programa de Pós-Graduação em Ar-
tes Cênicas (PPGAC/UFRGS), pesquisa a audioarte como campo de inclusão
artístico-digital. Criou e dirigiu o podcast, de audiodramas, “Sexagenarte - A
vida não para” a partir de um processo de criação virtual com pessoas idosas
com e sem deficiência visual, no início da pandemia da Covid-19.

Betha Medeiros: Sou atriz, dramaturga e professora. Doutora e Mes-


tre em Artes Cênicas pelo PPGAC/UFRGS, Especialista em Teatro Contempo-
râneo (PPGAC/UFRGS), Bacharel em Arte Dramática pela UFRGS, Licenciada
em Educação Física (ESEF UFRGS). Atuo, desde 1995, como professora de te-
atro, Educação Física e Informática na Escola Especial Educandário São João
Batista e hoje me coube o papel de mediadora da mesa.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 111


Nosso bate-papo girará em torno da entrada de cada um na pedago-
gia das artes cênicas com seus alunes considerades fora do ‘padrão’ hetero-
cisnormativo, como PCDs (pessoas com deficiência), idosos, transexuais.
O tema dessa mesa surgiu da sugestão feita pelo colega José Jackson,
doutor pelo PPGAC – UFRGS e coordenador desse seminário. E é, também,
fruto de conversas com o Pedro Bertoldi sobre como nós havíamos ‘caído de
paraquedas na pedagogia das artes cênicas’. Porque, eu nunca imaginei ser
professora. Queria ser ATRIZ! Mas acabei entrando para o Departamento de
Arte Dramática, erroneamente, em Licenciatura. Quando as aulas começa-
ram, me dei conta do engano e, 2 anos depois, consegui mudar o curso para
Bacharelado. Quando terminei o curso fui chamada para substituir algumas
colegas em oficinas de teatro e aí percebi que tinha gosto por dar aulas. Então,
entrei para a faculdade de Educação Física, onde uma amiga me chamou para
dar aulas no Educandário São João Batista, onde estou desde 1994. Caí ‘de pa-
raquedas’ na pedagogia e já direto na pedagogia com pessoas com deficiência.
Lá eu me dei conta: será que o que eu aprendi no teatro e na educação física
seria suficiente para trabalhar com PCDs?
E para vocês, como foi esse encontro com a pedagogia?

Carolina: O meu processo é todo outsider. Fora das instituições. Mas eu que-
ria agradecer muito estar dividindo aqui esse espaço hoje na UFRGS, porque
eu tinha decidido desde o início desse ano não estar participando mais dos
espaços acadêmicos. Isso é uma escolha que eu me fiz este ano me dedicar só
nas questões artísticas. Por questões políticas mesmo. De posicionamentos
políticos. De tanta luta, de tanto processo educacional informativo prestado
às Instituições sem a validação desse conhecimento. Sofrendo boicotes em
concursos, tendo apropriações, expropriações. E essa decisão foi uma decisão
política que eu tomei. Mas seria inadmissível não estar aqui.
O meu processo com o ensino se deu por consequência. Minha for-
mação no campo artístico educacional se dá por consequência da minha ex-
periência com o [Grupo] Roda Viva1 e os rompimentos que tiveram aí... Depois
que eu saí do grupo; as possibilidades que eu deixei de acreditar e as novas que

1 A Roda Viva Cia. de Dança começou a atuar em 1995, como parte do “Programa Interdisciplinar de Reabilitação
na Lesão Medular”, do Departamento de Fisioterapia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em
Natal, RN, e acabou tornando-se a primeira companhia de dança com bailarinos com deficiência no Brasil.

112 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


surgiram para que eu pudesse fazer o meu caminho. Então, não eu fui, neces-
sariamente, essa figura da pedagogia. Eu tive que criar formas de trabalhar
que, muitas vezes, não dialogavam com as formas tradicionais utilizadas na
pedagogia. Então, eu me formei em Educação Artística com Habilitação em
[artes] cênicas. É um curso que não existe mais, foi terminado na década de
90. E a bagagem que eu já trazia pelo fato de eu já ter entrado na Roda Viva,
com um projeto de extensão que era oferecido por uma Universidade Pública,
que permitia a participação da comunidade; e da formação para essa comu-
nidade se transformarem em artistas. Então, o grande mérito da contribuição
que o Roda Viva deu ao país e à América Latina, isso foi inegável, mesmo eu
discordando com determinadas posturas com a tal contemporaneidade em
dança, dançante, foi essa de dialogar. De fazer essa aproximação entre uni-
versidade e comunidade. E, ao mesmo tempo, me ver inserida nesse proje-
to como aluna, depois como professora auxiliar, depois como assistente de
direção, como produtora... porque nós tínhamos que colocar a pasta debaixo
do braço e produzir. Não tinham editais públicos naquela época. E, por fim,
diretora artística, até eu dizer que já estava bom, [que] eu já tinha dado tudo
de mim e que eu poderia ter uma vida agora, independente, e entrar nesse
mundo acadêmico, que foi importantíssimo. Porque, por mais que eu não me
veja mais hoje como uma professora de uma universidade, por N questões ‘ti-
tularescas’... Eu não tenho títulos. O que eu tenho de experiência profissional
não serve à universidade brasileira, não é aceita como experiência profissio-
nal. Isso é muito triste. Mas, me ver como uma educadora que fez parte e que
contribui de alguma parte, mesmo não estando inserida nesses espaços insti-
tucionais. E foi importante entrar no início dos anos 2000, lá em 2008 quando
eu fiz a primeira seleção para o PPGAC porque era um tema que só se discutia
pelo ponto de vista da Educação Especial e que, por ter sido ampliado através
dessas falas, das identificações que foram criadas com os artistas da Bahia,
com meus colegas de classe, depois com o mestrado que veio se tornar esse
livro2 que eu estou tentando relançar esse ano. Depois, uma tese que me deu
condições de sair e conhecer os Estados Unidos, as pessoas que eu pude co-
nhecer por lá. E transformar isso numa partilha. Comparar: de que sistemas

2 Livro Deficiência em Cena. Primeira edição: Editora Ideia em 2011. Segunda edição revista e ampliada: Editora
Offset, 2021.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 113


de educação nós falamos? De que Educação Inclusiva é essa que nos incluem
na exclusão? Isso é importante falar. Na América Latina, não se resolve o dile-
ma da exclusão. Portanto, a inclusão ainda é um projeto onírico a ser alcança-
do. Não impossível, mas onírico porque estamos em construção coletiva para
que esse sonho aconteça.

Betha: Pedro, como foi tua ‘queda’? Tu também caíste de paraquedas na Pe-
dagogia das Artes Cênicas e não te machucaste? [risos]

Pedro Bertoldi: Me machuquei um pouco. Eu estava pensando hoje: como é
bom quando a gente encontra pares que trabalham e pesquisam sobre isso
também [pedagogia das artes com pessoas com deficiência] porque é um
trabalho muito solitário ainda, que nós temos que ter um autocuidado mui-
to grande, porque tem uma parte romântica de que é muito bonito, a gente
vivencia coisas muito sensíveis, muito profundas, mas tem o outro lado que é
brigar sozinho muitas vezes, brigar pelos nossos alunos que muitas vezes não
têm como se defenderem sozinhos, então a gente que dar corpo e dar voz para
defendê-los, então isso é muito cansativo, é massacrante. Às vezes estamos
inseridos em Instituições que não têm o mesmo olhar que a gente tem, então
a gente tem que estar sempre vendendo ‘o peixe’ da importância da inclusão...
Então, quando a gente encontra pares que também pesquisam sobre isso e
têm o mesmo interesse, é maravilhoso.
Mas eu também quando fui fazer o vestibular, eu também queria fazer
Teatro. Nem sabia bem a diferença entre Licenciatura e Bacharelado. Então,
estava tudo certo, iria me inscrever para Licenciatura. Mas quando eu vi o nú-
mero de vagas do listão, eu com 17 anos morrendo de medo de não passar no
vestibular, vi que o número de vagas do Bacharelado era maior do que Licen-
ciatura, então pensei que a minha chance fosse maior no Bacharelado. [risos]
Porque eu pensei: se eu optar por Licenciatura, não vou passar! Me inscrevi
para bacharelado e pretendia mais adiante, pedir transferência para Licen-
ciatura, mas quando percebi, já estava quase terminando o curso e não valeria
a pena trocar naquela altura. Só que eu acho que tem uma coisa bonita, que a
profissão nos escolhe. Porque foram aparecendo tantas oportunidades para
eu dar aulas! Em espaços... tinha uma extensão da Faculdade em que a gente

114 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


dava aula em vários espaços não convencionais como presídios, creches, em
asilos... e eu gostei muito de trabalhar naqueles ambientes. Depois, fui tra-
balhar no CRAS (Centro de Referência e Assistência Social) em Morro Heuter
onde trabalhei 3 anos. Então, eu fui me desenvolvendo muito mais na parte da
Educação do que na da atuação, propriamente dita. E, quando eu entrei para
a Pedagogia das Artes Cênicas, para a Pedagogia da Educação Especial, da
Educação inclusiva, foi um choque muito grande, porque tudo aquilo que eu
imaginava saber, eu não sabia. Todos os planejamentos, todas as técnicas que
eu conhecia, elas foram feitas por pessoas sem deficiência, para pessoas sem
deficiência e não levando em consideração a multiplicidade de corpos dessas
pessoas. Então, todo o repertório de coisas que eu tinha para ensinar não se
aplicavam naqueles corpos na maneira que eu imaginava. Não é nem que não
se aplicava, porque se aplicam. Mas, não da maneira que eu imaginava que
fosse se aplicar. Então, [tive que] fazer todo esse caminho de perceber o quê
que eu posso adaptar, o quê que eu posso encaixar e como eles podem ter au-
tonomia de escolher e perceber como vão realizar e que nem tudo fosse diri-
gido e proposto por mim, foi e tem sido uma caminhada. Por isso que eu digo
que me machuco um pouco, sim. Uma caminhada de se perceber o meu lugar
de pessoa sem deficiência, mas como eu tenho que recuar ou chegar mais per-
to e deixar um espaço em que eles possam encontrar os seus caminhos. Então,
tem sido um processo árduo, mas muito frutífero apesar de sairmos com ar-
ranhões, mas saímos também, com muitos curativos.

Betha: Rodrigo, então como foi que tu chegaste na Pedagogia.

Rodrigo: Minha história começa quando eu tinha, mais ou menos, quinze


anos. Os meus pais são professores, meu avô é professor. Então é uma família
de professores, acho que começa por aí. E quando eu tinha quinze anos, eu fui
apresentado ao que hoje é uma das áreas em que eu atuo profissionalmen-
te, que é audiodescrição. Então, há 10 anos eu fiz o primeiro curso de audio-
descrição num projeto de extensão da UFRGS, e foi quando eu conheci esse
universo que era totalmente novo e desconhecido para mim e que, relativa-
mente, era bastante novo no Brasil também, visto que a audiodescrição tem
evoluído a partir dos anos 2005 em diante. Então, conheci a audiodescrição

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 115


com 15 anos, depois com 19 anos prestei vestibular na UFRGS, fiz Licencia-
tura. Quando me mudei para Porto Alegre para fazer o vestibular, eu morei
um ano com meu avô que vivencia uma velhice bastante inusitada, eu diria,
porque ele tem 97 anos e defendeu seu pós-doutorado no ano passado. Então,
ele é uma pessoa que vivencia a sua velhice de forma extremamente ativa. Ele
teve algumas questões de saúde delicadas e, no meu segundo ano de facul-
dade, decidiu se mudar para um Residencial [geriátrico]. E, quando eu estava
pensando e idealizando o que seria o meu TCC, eu olhei para essa situação e
para o lugar onde ele estava morando, que é o Residencial onde ele mora até
hoje, bastante privilegiado do ponto de vista de estrutura e de atendimento, e
imaginei que seria extremamente bacana e desafiador criar, nesse espaço, um
laboratório de criação teatral. E algo que, na época, eu estava experimentando
com alguns amigos de forma independente, eram criações áudio-dramáti-
cas. Então, temos visto que nos últimos anos têm se ascendido criações em
áudio arte, haja vista os podcasts que estão em alta. Então, naquele período,
eu estava desenvolvendo isso. E eu relacionei o áudio-drama à velhice por-
que as criações em radioteatro ou radionovelas são algo afetivo para essas
pessoas que se criaram ouvindo radionovelas e radioteatro. Então, formamos
um grupo experimental de radioteatro no residencial onde meu avô mora-
va. Logo depois, emendei no mestrado e comecei a trabalhar e estudar, cada
vez mais, as questões relativas à audiodescrição e tinha interesse em criar um
grupo em que tivesse pessoas idosas com e sem deficiência visual, pensando
que a audiodescrição é um recurso de acessibilidade que nada mais é do que
a tradução de imagem visual em palavras. A gente traduz um signo, que são
as imagens, em outro signo, que são as palavras. Mas eu queria criar um ma-
terial junto com pessoas ‘não videntes’ que fosse exclusivamente sonoro, ou
seja, que não precisasse de tradução. Que ele fosse, essencialmente, inclusivo
para as pessoas com deficiência visual. Meu projeto inicial de mestrado, an-
tes da pandemia, era criar um grupo (e já estava tudo certinho) no CRAS aqui
em Porto Alegre, já tinha um grupo muito legal com 20 idosos. Vários deles,
pessoas com deficiência visual. E aí veio a Pandemia e não foi permitido dar
seguimento, mas eu consegui organizar um grupo virtual com 8 participan-
tes idosos, entre eles alguns com deficiência visual, e demos origem ao nos-

116 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


so [podcast] Sexagenarte3, que é um processo de inclusão artístico digital onde
criamos 8 episódios de audiodrama através de histórias reais que não versam
apenas sobre deficiência e que não versam apenas sobre velhice. Essas questões
fazem parte das histórias, mas era uma decisão estética e conceitual que não
fossem sobre isso [deficiência e velhice]. Que isso também estivesse ali, por-
que a pessoas vivem dessa forma, mas que a gente falasse sobre outras coisas.
Sobre amor, sonhos... enfim, histórias que positivassem todas essas questões.

Betha: O Rodrigo tocou agora num ponto que casa com o que a Carolina men-
cionou, que é o ‘incluir para excluir’ ou o ‘cantinho da inclusão’ que cha-
mamos quando as PCDs são convidadas apenas para falar sobre deficiência.
Como o Rodrigo disse, as pessoas com deficiência também querem falar sobre
outras coisas: sobre amor, compromissos, trabalho.

Carolina: Bom, eu vou partilhar um pouco de como está sendo o processo com
a Acessibilidade: Olha, eu acho que é porque eu tenho um histórico no... meu
campo de arte trabalha com 3 coisas, 3 estéticas: na área da saúde porque eu
tenho essa herança das reabilitações no meu corpo, a parte educacional e, por
fim, a parte artística. Tudo é muito diluído no meu trabalho. Mas uma coisa
que sempre me incomodou, foram essas nomenclaturas. Nomenclaturas me
incomodam muito. Sempre me incomodaram, por mais que elas se atualizem.
Mas parece que elas não dão conta de um problema. Elas só dão conta para
uma retroalimentação de outras nomenclaturas. E a gente fica nesse ciclo,
nesse ciclo sem fim. Quando eu tive contato com acessibilidade, pela primei-
ra vez, foi durante a transmissão de um filme, que foi o filme4 de Jean-Clau-
de Grenier, em 2006 logo que cheguei na Bahia, que tinha audiodescrição e
tradução simultânea. Era a história de Jean-Claude, que é um artista francês
com osteogênese, que é a doença da fragmentação, adoecimento ósseo. Ele
era um dos artistas mais famosos da França e que já tinha representado, prin-
cipalmente, peças de Samuel Beckett. Então, aquilo me impressionou muito.
E eu fiquei pensando: como é que eu... Eu faço performance. Quando eu não

3 Podcast Sexagenarte - a vida não para. Disponível em: https://open.spotify.com/show/4QmrZbeTlFQxG-


Ty8WB0w4k Acesso em: 22 fev. de 2022.
4 A Largura e o Comprimento do Céu – The Length and Breadth of the Sky (França, 1998, 26 min.) Dir. Dominique
Margot. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=I9G22WIb_mY Acesso em: 10 fev. de 2022.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 117


estou performando A prótese e órtese que são os elementos que eu trabalho
há muito tempo na rua, porque são performances de rua, portanto já é uma
exposição muito grande para todas as não-visões, visões, cisões, reparações,
interpretações, enfim... E no meio ambiente, nos espaços de meio ambiente.
Em árvores, duna, em mar, em pedregulho. Agora eu estou fazendo uma pes-
quisa com pedra. Não sei que santo é esse que baixou em mim, mas é que acho
que eu tenho um problema com pedra, desde a infância. Eu tenho um trauma
de pedra, eu tenho medo. Eu tenho pânico, principalmente, de pisar. Então,
estou estudando esse elemento agora. E fizemos um último trabalho agora,
que é “Ensaios para a falha”5, que é um ‘dança-movie’, um videodança, que é
como traduziram, que eu convido 7 artistas do Brasil todo para criarem o seu
entendimento sobre ‘falha’ e para mim, ficou muito complicado pensar sobre
esse trabalho agora. Como eu vou acessibilizá-lo. Não tem texto falado. Nin-
guém fala, são só gestualidades e movimentações. Existe uma trilha sonora
que foi pensada e construída como uma narrativa. Então a trilha sonora conta
musicalmente e melodicamente. Mas a minha preocupação, de três anos pra
cá, tem sido aproximar essa questão da acessibilidade com projeto criativo,
um processo criativo. Não apenas a utilização do discricional porque, claro,
ele é importante como um todo, mas a utilização no processo criativo. Então
como eu, através do meu corpo, do meu processo criativo, posso me aproxi-
mar desse lugar da acessibilidade. E a forma que eu encontrei, já que eu escre-
vo poesia, foi transformar o texto poético, ou seja, a poesia em si, na constru-
ção imagética para quem não enxerga. Porque, tanto nós quanto as pessoas
que não enxergam temos a capacidade imaginativa. Então, é bacana quando
o Rodrigo fala: desde a era do rádio, quando nós não tínhamos acesso a todo esse
aparato tecnológico que são cada vez mais reforçantes desse campo visual... E era
para ser ao contrário, mais do que nunca reforçando a visualidade, como a
gente poderia aproximar. E o processo tem sido pensado, primeiramente,
pela poesia para que depois eu consiga acessar a performance. É assim que
eu tenho tentado trabalhar. Por isso que termina sendo uma coisa de muita
exposição, porque aquela poesia, na verdade, é o meu estado pré-artístico e
artístico, ao mesmo tempo, porque pode ser que você escute uma poesia que
você se sinta não tão bem ao ouvi-la, mas é porque, justamente, [pela] forma

5 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FSmmsxU3VCs Acesso em: 06 abr. de 2022.

118 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


como o processo artístico está se identificando, e ele se concretiza a partir
do que é escrito. E a palavra sempre foi muito presente. Mesmo nas oficinas,
nas aulas que eu dava. As pessoas sempre recebiam indicações, orientações,
fosse através de verso, fosse através do que elas conseguiam construir en-
quanto palavra, quanto escrita própria, daquela prática corporal vivenciada.
Pois mesmo que ela enxergasse ou não enxergasse, a palavra chegaria pra ela.
A palavra chegaria através do corpo ou por meio do corpo. E tem sido assim
pra mim. Mas, ao mesmo tempo, tem sido desafiador porque nunca é a mes-
ma coisa. São novos desafios que são lançados, passo a passo. Agora, eu estou
me vendo diante de um dilema, porque não é só uma criação minha. É uma
criação em conjunto com mais 6 artistas. Inclusive a Carla Vendramin6, que
é esse tesouro que vocês têm aí no sul. A Carla faz parte desse vídeo. É uma
pessoa que tem contribuído há anos para essa discussão dos corpos diversos.
É o desafio de transitar e sair do conceitual. Não para o alcance uma ‘inclu-
são’, de uma ‘igualdade’ com fim. (Gosto de brincar com isso – a igualdade
com fim) Mas do entendimento humano do que é esse lugar que a deficiência
propõe. Independente de você utilizar essa fala ou não. Porque todos nós, de
alguma forma, precisamos nos enxergar nesse lugar e nessa experiência que
foi escondida da história, que foi apagada da história. E falar também sobre
outros lugares, sobre desejos. Eu penso muito no futuro em trabalhar sobre a
questão da pornografia. Mas não a pornografia no sentido literal, mas pensar
que tipo de pornografia, de sexualidade é essa que se pode trabalhar através
da acessibilidade. Não que eu vá me tornar uma especialista nisso, mas como
algo que venha se somar no que eu já faço. E tem tantas outras questões nesse
universo como sensualidade, meio ambiente, saúde, economia, coletivida-
de... tem tantas coisas que já estão sendo faladas há muito tempo. E acho que,
quando falam, é para somar mesmo nesse processo.

Rodrigo: Vou fazer dois adendos: O primeiro deles: esses dias eu ouvi; assisti
ouvindo, um filme pornográfico com áudio descrição e é bastante tentador.
E a outra questão: eu sei que a Carol disse que não gosta muito de nomes,
categorizações. Mas ela acabou descrevendo o que a gente chama de ‘audio-

6 Bailarina, coreógrafa, professora do curso de licenciatura em dança na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Mestre em coreografia pela Middlesex University. Doutoranda do PPGAC/UNICAMP. Criou e coordenou, de 2014 a
2019, o Projeto Diversos Corpos Dançantes.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 119


descrição integrada’. Isso que tu propuseste nessa performance que tu des-
creveste, em que a gente acaba desviando um pouco desse visocentrismo
etc. Audiodescrição integrada é, justamente, quando a gente, desde o início
da dramaturgia, concepção da obra, a gente já pensa essa audiodescrição fa-
zendo parte. Sendo que ela, no final, não vai vir como um adendo, como algo
que vai ser um recurso de acessibilidade. Mas ela já está no âmago inicial da
coisa. Isso faz lembrar de “desenho universal” que é pensar, desde o esboço
inicial de um projeto, que todas as etapas garantam acessibilidade. Desde a
dramaturgia até o programa do espetáculo ser entregue em braile até pensar
num teatro que garanta rampas, audiodescrição, tradução em Libras. Recen-
temente, participei de uma mostra que se chamava “Pra matar saudade”, es-
petáculos em vídeo com audiodescrição” na Casa de Cultura Mario Quintana,
onde tivemos a oportunidade de assistir um espetáculo belíssimo chamado
“Páginas Amarelas – Vida e Obra de Carolina de Jesus”, e nesse espetáculo,
a intérprete de Libra é praticamente uma personagem. Ela está ali junto com
a Carolina nas mesmas intenções, na mesma expressividade, e agora estão
fazendo uma nova adaptação da peça em que a audiodescrição está na boca
dos atores de uma forma muito natural. Não forçada, não artificial, mas como
parte do texto.

Betha: isso é o ideal! Acessibilidade além da contrapartida.

Carolina: mas, para se pensar isso, é preciso termos política pública para que
o artista tenha acesso financeiro a isso. Porque, por exemplo, eu não pude
‘acessibilizar’ minha exposição7 aqui em cartaz, porque 1 hora de tradução
de Libras simultânea pela tabela daqui [Natal, Rio Grande do Norte], é entre
R$200,00 a R$250,00. E eu precisaria de quase dois meses de profissionais de
Libras. Como eu pagaria isso? Então, eu tenho feito muito, na ‘base da amiza-
de’. Consegui passar por um edital aqui no Rio Grande do Norte, que eu nunca
imaginei passar. Sempre fui uma artista do RN que só trabalhava fora porque
não conseguia espaço para atuar aqui dentro. A exposição foi pensada assim:
como criar uma acessibilidade? Então, colocamos tudo que a gente tinha di-

7 http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/galeria-do-nac-recebe-exposia-a-o-poa-tica-prota-tica/525949
Acesso em: 10 fev. de 2022.

120 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


reito. Tradução simultânea, audiodescrição, MP3 pra cada obra ter um áudio
da poesia concebida para cada obra específica. Mas quando o valor do edital
chegou... Dez mil reais! E aí ficou complicado. O que vou fazer com esse valor?
Qual foi a solução criada? Vamos colocar todas as órteses, tudo que eu usei
até hoje à disposição do toque, da imagética com um monitor direcionando:
“Pode tocar em tudo!”. Criamos uma instalação só com caixas de remédio. E
em todas as caixas de remédios, a sinalização táctil em Braille. Uma televisão
grande da galeria que passava o documentário da Lilih Curi de 2016, Carolina8,
com tradução simultânea em Libras e audiodescrição. E, no final da exposi-
ção, já que não podia ter um MP3 por obra, comprei uma caixa de som velha,
mas de boa qualidade, copiei todos os poemas e direcionei o som. Quando as
pessoas entram na exposição, as luzes se reduzem um pouco, fica passando
um vídeo lá no fundo da galeria e as poesias ficam ecoando. Foi gravado um
som só. Então, as pessoas entram já escutando poesias muito impactantes
que falam de dor, de prótese, mas de orgasmo, de violências que sofri como
mulher, de desistências... essa ambiência sonora se cria e, ao mesmo tempo,
não é uma ambiência que é fluida. Ela é muito caótica porque são vozes di-
ferentes. Foram artistas diferentes que gravaram: homens, mulheres e uma
menina pré-adolescente. Isso vai ecoando pela galeria. Então é a forma que a
pessoa com deficiência visual vai se orientando para o que tem ali, mesmo que
ela não enxergue. O Rodrigo falou da audiodescrição integrada. Não sabia que
tinha essa nomenclatura, Rodrigo. Obrigada, por você falar. E eu já faço isso,
gente! [risos] E tem um trabalho que eu gosto muito que é o Teatro dos Senti-
dos9 do Rio de Janeiro e que tem um trabalho que eu gosto muito de falar nas
minhas aulas e orientações que eu dou, que é da Paula Wenke, e ela faz essas
criações, essas ambiências em que a plateia não é só plateia e o intérprete de
Libras também é ator, também é personagem, como a Brígida, que é intér-
prete aqui de Natal, que tem acompanhado os meus projetos, também está
estudando teatro. Assim, todo o processo de construção de Libras de Brígida
é dramatizado. [...] Eu tenho um sonho de coreografar Libras. Não sei como
eu conseguiria. Acho que já tem vídeos de bandas na Inglaterra que já fize-
ram. Mas eu queria muito trabalhar com o intérprete, vendo-o também como

8 Disponível em: https://vimeo.com/394254250 Acesso em: 10 fev. de 2022.


9 Disponível em: https://paulawenke.com/direcao/index2.htm Acesso em 11 fev. de 2022

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 121


um artista. É uma arte também. É uma linguagem, mas que também é arte.
É totalmente gestual. É imagética, também, do ponto de vista de quem vai
tocar. Como Helen Keller foi alfabetizada. Vocês imaginem que Hellen Keller
foi alfabetizada, uma surda cega, tocando os gestuais de quem fazia as Libras
[a linguagem de sinais] para ela. Isso é incrível, é extraordinário. Pena que a
gente não tem tecnologia pra pessoa entrar num simulador... já que a NASA,
aquela desgraça, só investe numa busca espacial que não vai dar em nada,
podiam investir um simulador em que uma pessoa pudesse sentir a descrição
em Libras no seu corpo.

Pedro: eu fiquei pensando no ‘desenho universal’, pensando no lado de produção
cultural e como nós, que trabalhamos e pesquisamos com isso [deficiência, in-
clusão, acessibilidade], acabamos sendo referenciais dos colegas. Vários me cha-
mam quando estão nas etapas de escrita de editais e, justamente, entra sempre
na parte da contrapartida, de que precisa ter acessibilidade. É uma imposição,
então, na verdade, muitas vezes criam acessibilidade não por uma visão da ne-
cessidade disso, mas sim porque é uma exigência dos editais. E aí entra, como
falou a Carol, a questão da política pública que não garante recursos para isso.
Então, ao mesmo tempo que a lei e o edital pedem que tenha acessibilidade, ele
não está conectado com a realidade, que é a gente garantir a acessibilidade de
forma monetária. Mas o que eu gostaria de chamar a atenção na minha fala é
como falta, nos grupos, o entendimento da importância da acessibilidade. Teo-
ricamente, se nós entendêssemos [a importância da acessibilidade], não deveria
nem ter ‘lei’ pra isso. Não deveria ser o Estado a pedir que tivesse acessibilida-
de no produto artístico. Nós, enquanto artistas, deveríamos entender que é um
direito das pessoas terem [acessibilidade] assim nós acessamos nossa novela,
nosso filme, nosso teatro. Todo mundo deveria ter o direito de acessar. E a lei
vem porque, na verdade, as pessoas não têm esse entendimento. E aí, quando
me pedem essa ‘consultoria’, digamos assim: “ah, como é que eu posso fazer
a acessibilidade, o que eu poderia descrever aqui?”, eu percebo que entra uma
coisa assim: “vamos incluir o que é o mais fácil. Então, tu colocas ali Libras, entra
Audiodescrição...” mas falta, eu acho, o entendimento... e aí eu coloco uma pro-
vocação, de que existem outras coisas para além disso, que é um pouco do que eu

122 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


coloquei no TCC10: vai além de acessar teatro, vai além de tu ter Libras, vai além
de tu ter audiodescrição. E aí mexe muito com as estruturas do teatro e provoca a
pensar assim: a estrutura do teatro, como ele está organizado hoje com espetá-
culos de 1 hora, 2 horas, num ambiente barulhento, com a luz apagada e mudan-
ças frenéticas, som alto... Esse teatro é acessível para todo mundo? Por exemplo:
meus alunos, alguns com autismo, não conseguem ir nesse teatro de 2 horas, 2
horas e pouco em que têm que ficar sentado, que exige uma passividade da pla-
teia. E se tu levantares ou emitir qualquer som, tu és mal-educado. Esse teatro,
dentro dessa ‘caixinha’, do que nós aprendemos como [sendo] teatro, ele não é
inclusivo. Por mais que tenha Libras, por mais que tenha audiodescrição, ele vai
ser inclusivo para algumas pessoas, mas não para todos. E, aí, como a gente faz
para ter acessibilidade universal? Eu me pergunto, porque eu também não sei. Eu
às vezes me pergunto: “Tá! eu vou por aqui, mas quem é que eu estou deixando
de fora nessa inclusão? Para incluir esse, quem eu estou excluindo?”. São essas
perguntas que eu fico me fazendo. Por isso que eu falo que a gente se machuca,
porque é sempre tapar aqui e descobrir ali.

Carolina: Eu estava pensando aqui... porque toda essa discussão começou com
a questão dos movimentos sociais, de luta, quando as pessoas foram pra rua
lá nos pós-guerra... primeira e segunda guerra mundial, depois o Vietnã, de-
pois aquela ‘rebordosa toda’ [dos anos 1970], depois as leis, os estatutos... aí
veio a questão da acessibilidade universal que surge dentro das Universida-
des [...]o que eu penso é que todas essas mudanças significativas que a gente
teve, nos últimos anos, elas não vão se direcionar para uma expectativa de
acessibilidade, mas para uma consciência das cidadanias que foram perdidas.
[...] Às vezes eu acho meio maluco... eu sei que a gente precisa discutir, que a
gente precisa aprofundar, mas nós ainda estamos em um país onde as pessoas
[com deficiência] estão dentro de casa! E nós já queremos... Essa discussão
que a gente está tendo aqui precisa chegar a essa mãe que está lá em Santana
dos Matos11, para ela entender que esse filho precisa sair de dentro dessa gra-

10 Trabalho de Conclusão do Curso de Bacharelado em Interpretação Teatral do Departamento de Arte Dramática


da UFRGS: Lugar de onde se vê: a acessibilidade estética aplicada às artes cênicas como ferramenta de inclusão de
pessoas com deficiência. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/230651/001132408.
pdf?sequence=1 Acesso em 17 fev. de 2022.
11 Carolina Teixeira nos disse que ao dar aula nessa cidade, Santana dos Matos no interior de Rio Grande do Norte,
conheceu uma mãe que mantinha seu filho com deficiência mental severa, enjaulado dentro de casa.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 123


de, que ele é enjaulado dentro da casa dele. Para que depois ele chegue à rua,
depois ele chegue à parada de ônibus, depois ele chegue dentro do ônibus,
depois ele chegue à escola, depois ele chegue à universidade... [...] todo mundo
quer incluir, incluir... Esse projeto de inclusão é complexo, ele é, por vezes,
hipócrita. Porque ele te joga nessa roda de Samsara12. Você está incluído, mas
quando você chega lá: “e agora, o que eu faço com essa inclusão? Eu tô só in-
cluída. Botam uma etiqueta aqui em mim, [escrita] Tô incluída”, e aí você se
vire pra terminar essa sua inclusão. E quando a gente fala sobre deficiências
múltiplas, deficiências severas que, até a década de 1980, as pessoas eram jo-
gadas na linha do trem pra morrer. Tem as Casas André Luiz13, lá em São Pau-
lo, e quem quiser fazer um estudo lá de como a arte entrou nas casas André
Luiz... um dos projetos que tem lá em São Paulo de dança, de teatro... eles con-
seguem, não por uma perspectiva artística, mas existe uma perspectiva ali de
trazer a cidadania, de trazer a existência da pessoa de volta pra humanidade,
porque eu cansei, minha vida toda, de ouvir as pessoas condenando as Insti-
tuições, condenando as terapias. Não é possível mais condenar nada. Tudo... e
só temos a arte, graças a todas essas contribuições que trouxeram a existên-
cia, a cidadania das pessoas de volta. E aí entra essa vaidade: O que é arte? E eu
fico num sofrimento. Eu fico na busca desse fazer artístico e esqueço do resto.
O fazer artístico precisa também trazer o cidadão, trazer a existência. Mes-
mo que a pessoa não consiga fazer, entender... mas é preciso que a pessoa... a
gente, na perspectiva de se fazer entendido, anula outras formas de entendi-
mento. E que precisam chegar, seja através do que a gente marca como arte...
essa ‘arte sagrada’ ou dessa tentativa humana que a gente faz de aproximar
o que o outro traz. Mesmo nas suas deficiências múltiplas, mesmo nas suas
dificuldades... porque têm deficiências em que a pessoa não consegue, sim-
plesmente, se socializar. Como levar até o teatro- porque aquele aluno vai ter
dificuldade... Eu tenho uma irmã que tem dificuldade de socialização há mais
de 13 anos e é complicado sair de casa. Então, eu estou dando aqui apenas uma
reflexão, porque isso também me angustia. Esse lugar sagrado da arte, né?

12 Roda de Samsara: “Também chamada de Roda da Vida do Budismo, Samsara representa um ciclo interminável de
nascimento, morte e renascimento, que são baseados no conceito de ação e reação ou lei do karma. Os desejos e ilusões
mantém os seres aprisionados na roda da vida, os impedindo de encontrar o caminho da iluminação.” Fonte: https://
www.dicionariodesimbolos.com.br/samsara-roda-da-vida-budista/ Acesso em 17 fev. de 2022.

13 Instituição de caráter filantrópico, sem fins lucrativos, de orientação espiritual que realiza atendimento gratuito
a pessoas com deficiência intelectual. Fonte: https://casasandreluiz.org.br/ Acesso em 17 fev. de 2022.

124 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


Betha: Eu preciso falar que eu dou aula em uma ‘escola especial’ e, muitas
vezes quando eu falo isso, causa um certo desconforto... É claro que existem
diferenças entre as Escolas Especiais. Por exemplo, nós tínhamos uma alu-
na que entrou na Escola Especial Educandário São João Batista com 15 anos
e nunca havia frequentado uma escola antes. A família a levou para se socia-
lizar. Foi a primeira vez que ela teve contato com outras crianças e adoles-
centes. Depois de um tempo, os pais vieram nos agradecer por eles poderem,
pela primeira vez, levar a filha no supermercado com eles. Pela primeira vez
ela estava participando da vida social da família. Ela tinha um ‘vulcão’ dentro
dela para pôr pra fora e, com a convivência com os outros e suas diferenças...
com os gritos dos outros e com os gritos dela, ela conseguiu dar-se conta de
que ela era um ser humano. Mesmo em uma ‘escola especial’. Reitero que
existem Escolas Especiais diferenciadas, assim como existem diferentes tipos
de Escolas Inclusivas.

PERGUNTA: “Para pensarmos a acessibilidade a partir do universo fí-


sico. Rampa, audiodescrição etc. Mas como se dá a acessibilidade a nível emo-
cional? Como promover a acessibilidade humana?

Rodrigo: Difícil. É uma baita provocação. Até me veio uma frase clichê: a gente
pode ter todas as técnicas, pode dominar todas as teorias e procedimentos,
mas podemos esquecer que, diante de nós, tem outro humano. E é muito cli-
chê, mas eu fico pensando no sentido real disso. Pelo menos, na minha ex-
periência, não só com pessoas com deficiência, mas quando eu trabalhei no
CRAS... e aí é um outro aspecto da inclusão, que é a inclusão social... eram pes-
soas com vulnerabilidade social... E, antes de começar [a trabalhar], eu só ou-
via os aspectos negativos: ah, porque o fulano é assim... tu tomas cuidado com
o beltrano... e o sicrano, tu não deixar fazer isso. As pessoas com deficiência, a
mesma coisa. A gente ouve muitas coisas negativas: ah, é difícil, agride, bate...
e a gente já entra imaginando que vai ser um horror. Porque tu só ouves coisas
negativas e aí tu entras com toda essa carga e imagens que já se construí-
ram em relação a eles... E como tu vais desmanchando todas essas imagens
e conhecendo o humano que tá ali diante de ti. Eu acho que um caminho que
temos que construir é nos enxergarmos como humanos. Sair um pouco des-

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 125


ses rótulos que a gente ouve ou nós mesmo construímos, e [que] comecemos
a enxergar o humano. E que nem sempre tudo está relacionado à deficiência.
Às vezes, a gente acha que determinados comportamentos, que determinadas
atitudes são quase ‘sintomas’ da deficiência, mas não têm nada a ver. Muitas
vezes é do ser humano, é da personalidade da pessoa. A deficiência é uma das
coisas que fazem parte da pessoa, mas não é tudo. A pessoa não é um ‘autismo
ambulante’, não é uma ‘síndrome de down ambulante’. Ela é uma pessoa. E a
gente vai identificando cada coisa.

Carolina: e aí entra o capacitismo. Mas é o capacitismo mal traduzido no Brasil


– eu gosto de fazer esse adendo – que não é só atrelado a um aspecto compor-
tamental. Eu trabalho na área da deficiência desde os 15 anos de idade. E até
hoje eu tenho uma parte da minha família que pensa: “mas não era pra você
estar nisso!”; “você não tem deficiência!”; “chega a dar pena isso que você faz
no seu trabalho!” E uma das pessoas que eu mais escuto isso é minha própria
mãe. Então, como nós vamos fazer uma mudança anticapacitista se a gente
está mergulhado profundamente, lambuzados de uma cultura de ‘eficiência’?
Porque já foi chancelado, dividido: os que produzem e os que não produzem.
E, a partir dessa demarcação [o oposto de] ‘disability’ não é capacidade, é ha-
bilidade. Então se dividiu o que é hábil e quem não é hábil. Quem está apto e
quem não está. E, a partir daí, se demarcaram corpos negros, corpos gays...
a deficiência é uma chancela que serve para tantas minorias. É a deficiência
de cor, é a deficiência de gênero, então é um ‘melaço’ tão grosso que envol-
ve esse pensamento, a ponto de eu, particularmente, não acreditar mais em
palavras como reparação ou conscientização, porque é muito problemático o
processo. E aí é onde entra a educação. As Escolas... por exemplo, eu dei aula,
recentemente, numa escola onde aguentei ficar só um ano... A escola ganhava
dinheiro com o slogan ‘Escola Inclusiva’... e isso virou uma commodite, um
comércio... essa ideia de inclusão também está sendo capitalizada, tá sendo
vendida à toa e dentro da escola eu escutava conversas do tipo: “eu não te-
nho que adequar prova pra ninguém, eu não sou psicopedagoga, não estou
sendo paga pra isso”. Então, eu entrei como professora de arte. Quando eu
me vi, eu já estava fazendo assistência pedagógica com a escola inteira e ga-
nhava R$ 600,00. Eu já tinha doutorado! A escola pagava muito pouco. Como

126 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


se muda essa mentalidade? Porque não é só questão de mudança comporta-
mental, atitudinal, mas é uma mudança na esfera da consciência. Nós temos
um país que se recusa a usar máscara [para se proteger da COVID]. Isso já
tipifica um comportamento que é plausível de se aproximar de qualquer outra
forma de discriminação. A gente tá conceituando as lutas as lutas sociais na
Universidade, mas as travestis continuam sendo assassinadas, esquartejadas,
queimadas vivas. Será que a Universidade está preocupada com isso? Será que
todo crescimento midiático... será que a menina que aparece na propaganda
do Boticário14... será que eles estão preocupados com essa pessoa que está lá
sendo assassinada ou discriminada? Eu entendo que a arte e a educação são
as possibilidades mais reais que nós temos, de manter um nível e preservar
essas gerações que estão vindo, para que elas não reproduzam essa cultura de
‘eficiência’, padronizante. E que a gente não caia nessa de dizer que a minha
luta é maior que a sua, que a minha deficiência é maior que a sua, que a minha
minoria é maior que a sua, porque não é isso. Eu acredito nessa busca dessa
humanidade em comum. (1:17:38)
Entrou uma pergunta provocação, no chat, do nosso colega José Ja-
ckson: “Como nós, professores e agentes da cena, podemos tencionar uma
mudança na estrutura escolar/universitária por meio das nossas ações/me-
todologias de ensino e práticas cênicas?”

Pedro: A Carolina colocou um aprofundamento na questão, porque tu cha-


maste para estrutura da sociedade, mesmo. De como nos estruturamos e
como mantemos esse status quo, que é muito cômodo para muitos. Cômo-
do que mantenhamos esse status e sua estrutura, porque muitos se benefi-
ciam dela. Alguns corpos estão sendo excluídos e sendo aniquilados, mas uma
grande parte está ‘surfando’ nessa estrutura... Eu fico pensando nessa questão
que o colega trouxe. É tão delicado, mas recorro a uma questão estrutural do
Departamento de Arte Dramática da UFRGS onde, para ter acesso às salas de
aula... Todas as salas de aula estão no andar superior. A primeira imagem de
qualquer pessoa que entra no DAD, é uma escadaria. Ou seja, ou tu ultrapassas
aquela escadaria... E isso é muito simbólico... Há um caminho, há uma esca-
daria, há um obstáculo para que tu possas acessar o conhecimento! Algumas
14 O Boticário fez campanha para o Dia dos Namorados de 2021 buscando apostar na diversidade e dando destaque a
casais LGBTQIA+. Fonte: https://gkpb.com.br/66590/dia-namorados-boticario-gay-2021/ Acesso: 22 fev. de 2022.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 127


pessoas vão ultrapassar essas escadas de forma autônoma e banal... e outrasm
não! E aí nós e o Departamento encaramos, até agora, de forma muito passiva.
Muitas vezes, terceirizam a responsabilidade para a pessoa com deficiência:
“quando tiver um aluno cadeirante, aí a coisa vai mudar!” E a gente sabe que,
quando essa pessoa cadeirante chegar lá, o problema não vai ser resolvido e
aí será apenas o ‘dedo colocado na ferida’. Ou seja, novamente, a pessoa com
deficiência é quem terá de brigar por acessibilidade! Sendo que a escada está
ali há anos e todo mundo sabe. E aquela escada é apenas um símbolo físico da
exclusão que acontece para além disso. Como vamos pensar e trabalhar isso?
São coisas gigantescas que têm que mover de lugar e eu penso: quando vamos
conseguir? Até quando vamos ficar nessa discussão e agir?

Rodrigo: eu vou devanear um pouco. Eu penso que ser branco, ser jovem, ser
cis, ser bípede são privilégios no mundo em que vivemos. Pensando que tudo
está estruturado para privilegiar dentro dessas categorias mencionadas. En-
tão, eu que sou um homem dentro dessas categorias, sinto que eu sou res-
ponsável para fazer algo para abrir espaço: construir pontes ou agregar pes-
soas. Uma vez, a professora Mirna Spritzer15 me disse: “o que tu fazes é algo
muito interessante porque tu não dás voz às pessoas. Todas as pessoas têm
voz. Todas as pessoas se expressam... quando eu as convido para participar da
minha pesquisa e do processo de audiodrama, o que eu faço é oferecer escuta
às pessoas. Eu abro espaço para ouvir o que elas têm a dizer.” Respondendo à
pergunta do Jackson: não é ser ‘bom samaritano’, não é fazer ‘o bem’. É estar
aberto, ser parceiro, se colocar junto nessas questões. E não sei se essa CPI
do COVID16 vai dar em alguma coisa, mas algo que é pouco tocado, e que eu li
inúmeras matérias [onde] o professor Silvio Almeida17 discutiu sobre, é que
nós vivemos, nesse período do COVID, um estouro de práticas capacitistas e
etaristas que vão na ponta das vidas. Por exemplo: pessoas do alto escalão do
governo comemorando mortes de pessoas velhas e com deficiência porque,

15 Atriz e Professora do Departamento de Arte Dramática (DAD) e do (PPGAC) Programa de Pós-graduação em Artes
Cênicas da UFRGS.
16 “A CPI da COVID-19, também chamada de CPIPANDEMIA, CPI da Pandemia, CPI do Coronavírus, ou simplesmen-
te CPI da COVID, foi uma comissão parlamentar de inquérito da República Federativa do Brasil, que investigou su-
postas omissões e irregularidades nas ações do governo federal do presidente Jair Bolsonaro (na época sem partido)
durante a pandemia de covid-19 no Brasil.”Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Comissão_parlamentar_de_in-
quérito Acesso em: 17 mar. de 2022
17 O advogado e professor Silvio Luiz de Almeida, presidente do Instituto Luiz Gama.

128 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


principalmente pessoas velhas, significariam um fardo econômico a menos
para o governo. Então, estamos tendo que lidar com essas questões que sem-
pre lidamos, mas em um momento de extrema violência em que o mínimo de
humanidade e civilidade se perdeu. Outra coisa, complementando o que a Ca-
rolina já disse: minha carreira como professor é recente. Não tive muitas tur-
mas. Estou me descobrindo como professor. Há pouco tempo, tive uma aluna
cadeirante e, num determinado jogo que eu propus, me vi numa situação em
que eu estava reproduzindo estigmas de adequação que eu rechaçava quando
via sendo feito por outros. O jogo era “Telefone sem fio – corporal” em que a
primeira pessoa propõe um movimento para o seguinte que olha e reproduz
e assim por diante até chegar ao último e vemos como o primeiro movimen-
to se transformou. Quando idealizei o jogo, a minha maior preocupação... e
eu me envergonho em dizer, era ‘meu Deus, a primeira aluna vai propor um
movimento em pé e a menina cadeirante vai estar sentada e o movimento vai
se perder. O movimento não vai ser o mesmo e o objetivo da brincadeira não
vai ser cumprido!’ Fui para a aula com essa preocupação. O jogo aconteceu e
ninguém ali demonstrou a mesma preocupação que eu tive quando preparei a
aula. As alunas só jogaram, só se divertiram. No meio da aula eu tive um insi-
ght: no jogo e na vida não se trata sobre ser igual, ser idêntico, mas sobre ser
diverso e transformar, adaptar de forma que todos possam viver e conviver.
Partilhar juntos. E, muito engraçado que foi num jogo teatral que levei ‘uma
bofetada’ na cara.

Betha: Gostaria de terminar nossa mesa com uma citação da fala da colega
pesquisadora Onisajé18, que participou no seminário do ano passado na mesa
Mulheres Negras e o Futuro do Teatro no Brasil19: “eu agora estou fazendo
dentro desse ‘teatro de macumba’, desse ‘teatro de candomblé’ o movimento
que foi falado pela Érica [Malunguinho]20, que virou para mim um lugar de
reintegração de posse! Tudo que me tiraram eu quero de volta!” Ela falou so-
bre o corpo negro, mas eu acho que todos os corpos dissidentes precisam de
reintegração de posse! O mundo é de todos! E chega de exclusão!
18 Onisajé (Fernanda Júlia Barbosa): Doutoranda e mestra em Artes Cênicas CNPQ / PPGAC - UFBA, bacharel em
Direção Teatral Escola de Teatro UFBA, dramaturga, preparadora e formadora de atuantes.
19 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0BNlqqlKtb4&t=5412s Acesso em: 17 mar. de 2022.
20 Erica Malunguinho da Silva – educadora, artista e deputada estadual por São Paulo, sendo a primeira mulher
transexual da Assembleia Legislativa de São Paulo.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 129


REFERÊNCIAS

TEIXEIRA, Carolina. Deficiência em Cena. João Pessoa: Ideia, 2011.

ALBRIGHT, Ann Cooper. Coreographin Difference. Wesleyan University Press, 1997.

130 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


Para acessar o conteúdo deste capítulo,
aponte a câmera para QR Code ou clique
no link: https://youtu.be/8xCVgwpg-as
C apí t u lo 7

OCUPAÇÕES
ARTÍSTICAS
DA CIDADE:
do espaço alternativo
ao site-specific
na práxis cênica
da Trupe Sinhá Zózima
Jackson Tea
RESUMO
Neste capítulo, problematizamos as dis-
tinções e aproximações entre o teatro
concebido para espaços alternativos e as
encenações realizadas sob o conceito de
site-specific. Para tanto, efetuaremos
uma análise descritiva da criação de dois
espetáculos do coletivo cênico Trupe Si-
nhá Zózima, “Dentro é Lugar Longe” e
“Cordel do Amor Sem Fim”, sob condu-
ção do encenador Anderson Maurício.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 133


A poética do teatro site-specific ocupa um horizonte de territórios bastante
diversos para se configurar como tal, e, de certa forma, foi difundida no sécu-
lo XX por meio das propostas de Artaud e de trabalhos cênicos de Grotowski,
Kantor e Schechner, que, com suas formulações, calcadas no encontro entre
atores e público num ambiente propício e peculiar para experimento cênico,
influenciaram diversos encenadores mundo afora, consolidando as práticas
de teatro em espaços não convencionais.
No Brasil não foi diferente, podemos verificar a existência de várias
propostas em lugares outros que não o edifício teatral: em 1968, por exemplo,
o argentino Victor Garcia, a convite de Ruth Escobar, encenou o texto Cemi-
tério dos automóveis, de Fernando Arrabal, em São Paulo, em um galpão onde
funcionava uma oficina mecânica cujas características foram preservadas
para a encenação.
Já na década de 1970, o Teatro Oficina, sob direção de Zé Celso Mar-
tinez Corrêa, realizou diversos experimentos cênicos, nominados por ele de
Te-ato, que eram realizados nos lugares mais insólitos (fábricas, fazendas,
praças, rios, etc.), nos quais não havia mais divisão entre atores e espectado-
res, mas pessoas intervindo com ações cênicas na realidade, algo semelhante
às concepções de Happenings de Alan Kaprow.
Lembremos também A grande viagem ao centro da terra, de Ricardo
Karman e Otávio Donasci, encenação realizada em São Paulo (1992), no túnel
abaixo do Rio Pinheiros, utilizado como espaço cênico; bem como de Aderbal
Freire e sua encenação de O tiro que mudou a história (1991), no Palácio do Ca-
tete - RJ, local onde Getúlio Vargas realizou o famoso disparo de arma de fogo
contra si.
Ao mesmo tempo, podemos recorrer aos experimentos cênicos as-
sinados por Antônio Araújo e seu coletivo Teatro da Vertigem, com a Trilogia
Bíblica, formada por Paraíso perdido (1992), O livro de Jó (1995) e Apocalipse 1,11
(2000), apresentados, respectivamente, em uma igreja, num hospital e num
presídio. Montagens que, em decorrência das repercussões que causaram,
concretizaram de vez a prática dos lugares não-teatrais como possibilidade
poética no teatro brasileiro contemporâneo.
Além desses, podemos citar, por exemplo, os trabalhos de Wládia
Moura, que encenou espetáculos em porões da cidade de Belém, PA (2000-

134 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


2005); Inês Marocco, que criou o espetáculo O Cortiço (2008) dentro do Mu-
seu do Rio Grande do Sul; Fabiana Monsalú, encenadora de A Casa de Bernar-
da Alba (2007), realizada dentro de um casarão histórico em Salvador (BA).
Igualmente os trabalhos do Grupo XIX (SP) de Teatro e o Grupo Erro (SC),
dentre tantos outros, como notamos no artigo Considerações Sobre o Teatro
Site-specific no Teatro Brasileiro, publicado na revista Urdimento1.
Diante destas perspectivas espaciais tão diversas, e tão presentes
nas práticas contemporâneas, vale destacar um questionamento pertinente
quando nos detemos sob as práticas que utilizam espaços diferentes das es-
truturas e convenções do teatro de sala: o teatro em espaços alternativos é o
mesmo que site-specific?
Mais do que uma categorização, nos interessa perceber as compo-
sições sob as quais as encenações se assentam e distinguir suas concepções,
que podem apontar para procedimentos e discursos cênicos completamente
distintos, não apenas do ponto de vista estético, mas também dos aspectos
práticos e das dinâmicas por trás das encenações.
De início, um paralelo interessante que podemos traçar para começar
nossa distinção entre o espaço alternativo e o site-specific parte do entendi-
mento alcançado por Michel de Certeau (1990), quando o filósofo traça uma
diferenciação importante entre o lugar e o espaço.
Para o autor, um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se
distribuem elementos nas relações de coexistência, onde os elementos con-
siderados se encontram uns ao lado dos outros, cada um situado num lugar
“próprio” e distinto que os define.
Já a noção de espaço se estabelece quando se leva em conta vetores de
direções, quantidades de velocidade e a variável tempo. O espaço é, de certo
modo, animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram. Noutras
palavras: “espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o cir-
cunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente
de programas conflitais ou de proximidades contratuais. Em suma, o espaço é
o lugar praticado” (CERTEAU, 1990, p. 22).

1 SILVA, José Jackson; TORRES NETO, Walter Lima. Considerações sobre o conceito de site-specific no Teatro Brasi-
leiro. Urdimento, Florianópolis, v. 2, n. 38, ago./set. 2020.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 135


Avançaremos por essa compreensão para orientar nosso olhar acerca
do teatro site-specific, ao compreendê-lo como uma prática que se constitui a
partir dos arranjos dos vetores do lugar não-teatral, selecionado para instalar
a encenação, que será produzida a partir das operações que orientam esse lu-
gar, não pela sua oposição ao lugar convencional do teatro, o edifício teatral.
Partindo desta elaboração preliminar, buscaremos apreender algumas
características processuais do teatro site-specific, ao observarmos a experiência
da Trupe Sinhá Zózima, que tem no seu diretor, Anderson Maurício, o ponto de
referência para explorar a linguagem teatral em um lugar peculiar da cidade de
São Paulo, o transporte público de passageiros, denominado ônibus.
Para além da importância cênica do exercício de compreender os
lugares como potencialidade teatral, destaco o trabalho desse grupo, com
uma trajetória que o diretor teve que seguir para perceber a potencialidade
criativa que o ambiente do ônibus tem em se transmutar de um espaço alter-
nativo em site-specific.

ANDERSON MAURÍCIO E A TRUPE SINHÁ ZÓZIMA

Ao observar o significado do transporte coletivo de passageiros para


a cidade de São Paulo, a Trupe Sinhá Zózima (formada em 2007) passou a se
interrogar sobre a viabilidade de fazer teatro para aquelas pessoas que, em
geral, passavam de duas a seis horas diárias dentro do ônibus para ir de casa
ao trabalho e do trabalho à casa.
Por possuírem características tão particulares de conceber suas ro-
tinas, a equipe notou que, para os trabalhadores, pouco tempo lhes sobrava
para alguma atividade de lazer ou para acessar qualquer atividade artística,
sendo o teatro uma possibilidade muito remota, fosse por desconhecimento
ou falta de interesse, mas, sobretudo, pela falta de tempo para se dedicar a
uma experiência cênica.
Verificando essa dinâmica, o diretor do grupo, Anderson Maurício,
sendo ele próprio um cidadão periférico, percebeu, naquele universo do ôni-
bus, uma alternativa de fomentar o teatro e de explorar a linguagem cêni-
ca sobre novos parâmetros. Para tanto, partiu da seguinte questão: “Como

136 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


conquistar esse espaço para construção de outro imaginário sobre a cidade?”
(MAURÍCIO apud BORGES, 2013, p. 16).
Por consequência, valendo-se da demanda de acesso aos bens cultu-
rais, por parte dos usuários do transporte público, e da possibilidade de ex-
pansão das ações teatrais, o encenador passou vários meses gestando essa
ideia, ao interrogar-se acerca da viabilidade de lançar um olhar poético sobre
o cotidiano daquelas pessoas naquele espaço íntimo e ao mesmo tempo hostil
às relações humanas.
O passo inicial dessa proposta foi tentar notar as interações possíveis
entre os atores e os possíveis espectadores no universo do ônibus, que po-
deriam ser semelhantes às do espetáculo de sala, onde os atores se esforçam
para apresentar uma ficção, enquanto os espectadores, acomodados em suas
poltronas (geralmente à distância), assistem ao desenvolvimento da trama.
Nesta consideração, cada agente do espetáculo (justaposto ao ônibus) teria,
igualmente, o seu lugar particular.
Todavia, o espaço cênico-ônibus (projetado) oferecia um dado novo:
a impossibilidade de divisão palco-plateia, o que de início poderia proporcio-
nar a ambos (espectadores e atores) a expectativa de construir uma experiên-
cia cênica mediada pela interação direta.
Somado a essa interpretação, foi observado que o ônibus seria um es-
paço do cotidiano dos usuários do transporte público, não dos atores, e que,
ao ser utilizado como espaço cênico, poderia facilitar a aceitação das propos-
tas teatrais e potencializar a fruição, mediante a prerrogativa da intimidade
dos usuários com o ambiente, visto que:

O ônibus é uma espécie de casa em movimento. As pessoas namo-


ram, comem, dormem, mandam mensagens, brigam, ouvem música,
leem, pregam. Acontece de tudo nesse lugar! E por ele ser esse lugar da
casa, um espaço conhecido, ele atrai o público que já conhece esse es-
paço, que é dele. Diferente do teatro municipal, onde os trabalhadores
não conhecem e imaginam que existam vários protocolos a serem segui-
dos para ter acesso. A gente foi entendendo isso, percebendo esse espaço
como espaço do homem comum (informação verbal)2.

2 Entrevista concedida por MAURÍCIO, Anderson. Depoimento [jun. 2018]. Entrevistador: José Jackson Silva. São Paulo,
2018. Via Skype. Filmagem (270min). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita na tese do autor defendida em
outubro de 2020, junto ao PPGAC-UFRGS, intitulada O Teatro Site-Specific na Perspectiva da Direção Teatral.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 137


CORDEL DO AMOR SEM FIM: O ÔNIBUS COMO ALTERNATIVA TEATRAL

A primeira montagem do coletivo, Cordel do amor sem fim3 (2007),


com dramaturgia escrita por Cláudia Barral, se desenrola sob uma trama alo-
cada nas margens do Rio São Francisco. Foca na separação como mote, e dis-
corre sobre a vida à deriva da personagem principal, que definha, enquanto
espera a volta do seu amado.
A identificação do texto dramático com o contexto da cidade de São
Paulo é imediatamente articulada, uma vez que essa cidade é um grande re-
duto de migrantes nordestinos, que em meados do século XX, saíram em
massa das suas cidades para habitar a megalópole brasileira, que lhes ofere-
cia trabalho em troca de uma vida economicamente mais viável do que a que
dispunham em sua terra natal.
E, justamente por isso, tiveram que conviver, diariamente, com a
nostalgia de um passado remoto constantemente presente nas suas vidas,
coexistindo com a saudade das pessoas que ficaram para trás, enquanto o
tempo passa e os corpos definham.
Paralelamente à saudade, há a solidão do presente, decorrente da se-
paração causada pela ruptura de ter que sair de casa para trabalhar, tomar
o ônibus e trafegar pelas avenidas e vielas da grande cidade (tão enigmática
quanto o “velho chico” da ficção), num precário transporte que carrega vidas
cansadas em corpos abatidos pelo tecido citadino.
Principiando este experimento cênico em torno da cultura popular
nordestina, como mote estético, e do ônibus como espaço cênico, a encena-
ção de Cordel do amor sem fim, da Trupe Sinhá Zózima, compõe um mosaico
instigante diante da tessitura urbana da cidade, que apresenta diariamente
suas próprias mazelas, reveladas, sobremaneira, quando o cidadão necessita
deslocar-se por ela.
O processo de concepção do espetáculo e a criação dos personagens
passaram a ser desenhados, segundo o diretor, no instante em que ele fez a
leitura de dois livros de Gaston Bachelard: A poética do espaço e A água e os
sonhos, sendo o primeiro o livro de cabeceira da Trupe dali em diante.
3 Ficha técnica: dramaturgia de Cláudia Barral, direção de Anderson Maurício, direção musical de Roberta Forte,
com Trupe Sinhá Zózima (Anderson Maurício, Cleide Amorim, Junior Docini, Priscila Reis, Tatiana Nunes Muniz e
Tatiane Lustoza). Disponível em: http://sinhazozima.com.br

138 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


Maurício ressalta que o entendimento acerca das questões levantadas
pelo filósofo foi primordial para enxergar a potencialidade das imagens im-
bricadas na obra dramatúrgica, que poderiam ser exploradas e materializadas
na sua concepção, e, em especial, para compor as personagens que, por esta-
rem tão próximas às águas do Rio São Francisco, poderiam, cada uma delas,
trazer consigo uma característica das águas elencadas por Bachelard.
O Rio e suas águas, além de servirem de mote da preparação do
elenco, passaram a ser o conceito-chave da encenação, ao codificar o ônibus
como “casa-barco” a velejar pelas avenidas e vielas (rio), levando a bordo
os passageiros e atores que, juntos, compartilhavam da experiência vivida
pelas personagens.
Segundo o diretor, a etapa seguinte do processo foi fazer o levanta-
mento das cenas baseado nas dimensões do ônibus e nas possíveis interações
que, porventura, o espetáculo pudesse vir a ter com os passageiros. Contudo,
todo o processo de marcação das cenas e criação das personagens foi concebi-
do fora do ônibus, pois, no entendimento do grupo, era necessário que o ôni-
bus estivesse à disposição integral da equipe para que ela pudesse ter maior
controle sobre o deslocamento do ônibus pela cidade (itinerário e velocidade).
Após seis meses de diversas negociações e consecutivas negativas recebidas
de empresas que trabalhavam com transporte de passageiros, o ônibus foi
obtido mediante uma permuta com uma companhia de ônibus da cidade de
Guarulhos, que precisava desenvolver algumas ações educativas sobre a pre-
servação das instalações do transporte público, visto que estavam ocorrendo
muitas depredações por parte dos usuários, e consideravam que o teatro po-
deria ser de grande valia nessa empreitada.
Desta feliz coincidência, a Trupe conseguiu o veículo/ espaço cênico
pretendido e, finalmente, após estabelecer esta parceria, passou a adaptar as
cenas e conceitos desenvolvidos na sala de ensaio à estrutura do ônibus, bus-
cando conectar o universo do transporte público com a ficção e os conceitos
operacionais desenvolvidos pelo encenador, que nos relata:

Ali eu constatei várias questões, uma delas era que eu precisava de uma
velocidade menor, que o motorista fosse parceiro, o que era imprescindí-
vel para fazer esse trabalho, que a gente precisa ter um jogo de distância,
que a proximidade não era boa para o jogo cênico[...] a gente cria o trajeto,

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 139


cria paradas, tem pontos específicos que a gente quer passar, no sentindo
de potencializar o que a gente está narrando (informação verbal).4

Partindo deste entendimento, a Trupe passou a se deparar com a re-


alidade material e virtual (contextos e imaginários imbricados no universo do
transporte público), contraposta com as demandas da encenação percebidas
até então. E, desse embate, crítico e criativo multifacetado, desenvolveram a
encenação no ônibus.
Sobre este espaço peculiar, o diretor conta que se empenhou para
decodificá-lo e instaurar nele uma criação estética visual, que trouxesse as
marcas de memórias afetivas e aconchegos de uma casa, sobreposto à mate-
rialidade do transporte público.
Segundo Maurício, o objetivo do grupo na encenação do Cordel do
amor sem fim seria construir, naquele espaço, uma cenografia que remetesse
à casa das personagens ribeirinhas, que pudesse proporcionar aos passagei-
ros-espectadores uma percepção expandida do ônibus como local comum e
íntimo de uma casa.
Para tal, revestiram os assentos com forros de algodão com detalhes
em chita, colocaram algumas cortinas nas janelas (do mesmo material do re-
vestimento pensado para os assentos), além de lampiões ao longo do corre-
dor, uma gaiola e pequenos tapetes no piso. Tudo esquematizado para trazer
à memória uma casa interiorana com fortes traços regionais nordestinos, que
desse margem para acessar a “casa dos afetos” pretendida pelo coletivo cêni-
co, como podemos verificar na imagem ao lado. (Figura 1)
Anderson Maurício expõe que, além de cenografia e refletores, insta-
lou uma porta extra no veículo para ter um tratamento acústico mais elabo-
rado, na tentativa de diminuir o barulho da rua que adentrava o veículo e que,
por vezes, atrapalhava a audição dos diálogos entre os atores, como quando
o ônibus era ultrapassado por uma ambulância, ou passava por um lugar com
um fluxo de veículos e ruídos intensos, por exemplo.
No entanto, ao se dar conta da expansão que essa suposta sujeira po-
deria ter sobre a encenação, passou a trabalhar em função dela para construir
tempos e ritmos especialmente para aquele lugar, que se mostrava completa-

4 Id., 2018.

140 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


Imagem do Cordel do Amor Sem Fim (2007), texto de Claudia
Barral, encenação de Anderson Maurício.

A área interna foi revestida por uma cenografia (assentos


e janelas totalmente cobertos por cortinas e forros, além de
lampiões e gaiolas) que tenta camuflar o ônibus, quando na
verdade poderia espelhá-lo na encenação.
Fonte: Acervo do Grupo.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 141


mente diferente do espaço da sala de ensaio por onde o grupo havia iniciado o
processo de construção:

No primeiro ensaio nosso no ônibus eu falei: não vai dar certo. Porque
tinha uma coisa, quando a gente ensaiava na sala de uma poesia, de uma
delicadeza, de um silêncio... não tem como trazer a poesia pra isso. Com
essa velocidade, com esse ônibus, com essa cidade... então o primeiro
ensaio foi muito angustiante, porque, como a gente ensaiou muitos me-
ses numa sala, a sensação era uma, quando foi para o ônibus se trans-
formou, e se transformou em algo que eu não estava preparado por estar
apegado àquilo que estava assistindo nos ensaios. Mas, conforme fomos
ensaiando, eu fui me apaixonando pelo cordel do ônibus, que não é o cor-
del da sala fechada em um teatro, mas que tem sua beleza, seus silêncios,
mesmo com a cidade gritando ao fundo (informação verbal).5

O próprio diretor reconhece a inexperiência de entender o espaço e


as camadas constituintes que poderiam ressignificar a encenação naquele
ambiente, afinal, esse foi o primeiro espetáculo da equipe realizado em um
lugar não-teatral e, como tal, seria natural passarem despercebidas algumas
singularidades do espaço ao tentar impor sobre ele a mesma lógica do teatro
convencional no qual a trupe se formou, como explicar o diretor:

No palco italiano, tem uma distância que, de alguma forma, você conse-
gue mascarar, o público está à distância, você não sabe quem comentou
algo. No ônibus é muito difícil de ignorar a realidade. Você tem uma ci-
dade que está chamando a atenção do espectador (...) a gente percebe isso
como uma potência cênica (informação verbal).6

O que, de início, despontava como um desafio hercúleo, quando o en-


cenador tentava anular o espaço e seus atravessamentos (intrínsecos a sua
realidade), passou a ser o trunfo da encenação, pois, no instante em que ele
passou a considerar o ambiente e assumiu os contingenciamentos daquele
espaço como potencialidade cênica, prontamente, iniciou-se um processo
investigativo que calhou com a descoberta de algumas ações cênicas, advin-
das do próprio espaço-ônibus.

5 Id., 2018.
6 Ibid., 2018.

142 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


Nesta investigação, os atores passaram a considerar e se relacionar
com o ônibus para compor as cenas, como ilustra a imagem abaixo, na qual
a atriz dirige a atenção dos espectadores para outro ônibus que cruza o cam-
po de visão dos passageiros, estabelecendo, assim, uma conexão direta entre
eles, ao enunciar o externo como materialidade cênica.

Imagem do Cordel do Amor Sem Fim (2007), texto de Claudia


Barral, encenada por Anderson Maurício.

Notamos que a realidade está constantemente pedindo passagem


aos agentes da cena para também participar da fábula, apesar
da direção tentar apagar seus vestígios, o que põe em suspeição
a função e escolha do espaço cênico (ônibus) para a encenação.
Fonte: acervo da Trupe.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 143


Desse modo, ao compreender, por fim, que não se trata de repro-
duzir os códigos e reconstruir os equipamentos comumente utilizados nos
espetáculo de sala, mas, ao contrário, abrir os canais de percepção para as
potencialidades dos equipamentos e condições gerativas que o ônibus apre-
sentava −que, por si, poderiam expandir o território da encenação para além
da linguagem tradicional, superando, inclusive, seus códigos, convenções e
equipamentos−, a encenação passou a ser percebida sob outras camadas.
Esta consciência foi aguçada, principalmente, quando a dramaturga
assistiu à estreia do espetáculo e interrogou a equipe sobre o ônibus, que, na
sua compreensão, apenas figurava no espetáculo, mas que, em contrapartida,
se mostrava como uma potencialidade de expansão surpreendente de diálogo
com os passageiros e com a própria cidade, ao possibilitar uma leitura dilata-
da por meio de outras camadas de significação, para além do que se passava
no interior do veículo e da fábula.
Apoiando-se neste questionamento, o encenador afirma que o espe-
táculo tomou outras proporções, e que o veículo passou a fazer parte inte-
grante e indivisível da encenação, pois a sugestão da dramaturga ofereceu,
aos agentes da cena, uma chance de atravessamento mútuo entre ficção e re-
alidade, até então pouco sugestionado pela direção.

Fui pra casa com esse problema na cabeça e comecei a pensar na pri-
meira assinatura como encenador colocando a ação do ônibus, que é o
momento que a Teresa fala que vai esperar o Antônio e Madalena diz que
também vai esperar. Que Carminha vai esperar e que José também espe-
ra e todo mundo aqui, ela inclui todos os passageiros, vai esperar junto
e o ônibus freia, para, desliga o motor. E é de uma beleza quando isso
acontece porque o tempo para. E a gente fica 4 ou 5 minutos parados,
mas parece uma eternidade, parece que o tempo parou. O ônibus cria essa
sensação para o público. Ali eu comecei a me encantar por isso, com o que
dava pra fazer (informação verbal).7

Consequentemente, o diretor passou a considerar novos eventos que


pudessem ampliar cada vez mais a possibilidade de ações cênicas, decorren-
tes dessa interação do ônibus com os atores, dos atores com o público e do
público com o espaço. Trama que incidiu sobre as linhas fronteiriças da ficção

7 Id., 2018.

144 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


e da realidade da cidade, espelhada, em último caso, nos carros, caminhões e
ônibus que ultrapassavam o ônibus-palco.
Tal observação propiciou ao encenador o entendimento de que a peça
seria decifrada de uma forma global pelos sentidos dos passageiros-especta-
dores, não apenas pela audição e visualidades, como ele comenta:

No Cordel tem essa tentativa de como fazer com que o público perceba
algumas coisas sensorialmente, como, por exemplo, o começo e o fim
do espetáculo. No Cordel a gente tem essa inserção do ônibus que vai co-
meçar. Tem um prólogo que a gente faz com o ônibus parado e prepara
o público para o começo da história que é também o momento em que o
motor do ônibus é ligado e o ônibus inicia a viagem pelo roteiro que vai
trafegar. O mesmo acontece com o fim da peça, que é no instante em que
o ônibus estaciona no mesmo local de partida e desliga o motor pela últi-
ma vez, marcando o fim do espetáculo, que não é apenas uma percepção
visual, mas uma percepção sensorial (informação verbal).8

Sob tais distinções, essa proposta de espaço cênico demandou, pau-


latinamente, do diretor, uma capacidade de observação e escuta permanente
para a cidade e para o passageiro (isso enquanto a peça ia se desenvolvendo),
já que a qualquer momento o público e/ou os acontecimentos aleatórios da
cidade poderiam intervir na ação cênica, fosse para comentar algum ato da
peça, ou mesmo para querer modificar a sua estrutura, intervindo sobre ela.
Nas primeiras apresentações, destaca o encenador, os atores ficaram
surpresos com a reação do público (mesmo antes do início da peça, quando os
espectadores adentravam no ônibus), pois estes os abraçavam e lhes dirigiam
cumprimentos e animações um tanto invasivas para os atuantes, que tinham
vindo do teatro de sala, onde o público se mostrava menos caloroso e só se
manifestavam no final da apresentação.
Todavia, essa participação do público proporcionou alguns momen-
tos interessantes, quando, por exemplo, no instante em que a personagem
Carminha precisava deixar o veículo, mas hesitava por ter medo de sair da-
quela estrutura, os espectadores, surpreendendo a equipe, se voluntariavam
para ajudá-la a descer do coletivo.

8 Id., 2018.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 145


Essa proximidade dos atuantes e do público é, portanto, uma con-
dição para desenvolvimento da peça, e que deve ser levada em consideração
quando se trata de conceber um espetáculo sob tais termos.
Por notar essa característica de maneira empírica, enquanto a peça ia
sendo apresentada, o encenador se deu conta de que não se trata de aplicar os
códigos e convenções do teatro de sala, mas expandir o olhar para as contin-
gências e contextos do espaço selecionado, que, por si, pode potencializar a
experiência teatral. Isso pode, inclusive, oferecer à encenação uma perspecti-
va de leitura, significação e compreensão muito mais complexa.
Esta condição forçou o encenador a dilatar sua própria percepção
para além dos limites da linguagem e questionar os procedimentos pratica-
dos até então, sugestionados por ele, como Maurício pondera: “Fazer teatro
no ônibus tem uma profundidade, uma perspicácia que a gente foi adquirin-
do com o tempo. No começo foi bem difícil, a gente só foi descobrindo isso
na própria experiência de lidar com o espetáculo no movimento do ônibus”
(informação verbal).9
Provavelmente por essa razão, na encenação do Cordel do amor sem
fim o espaço do ônibus tenha sido, inicialmente, pensado e estilizado com
uma cenografia que revestia o veículo por dentro, sem levar em considera-
ção os ambientes que circundam tal espaço- compreensão alcançada desde
o início da proposta, quando o diretor nomeia o ônibus como alternativa,
não conceito.
Esse entendimento pode ser observado no fluxograma ao lado onde
descrevo, de maneira visual, tal raciocínio. As setas indicam o andamento da
criação, e vemos que todas as etapas são concebidas numa sala de ensaio e
alocadas, posteriormente, no ônibus (o espaço de apresentação).

9 Id., 2018.

146 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


Fluxograma 1 – Estrutura de criação do Cordel do Amor Sem Fim
Fonte: Elaborado pelo autor

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 147


DENTRO É LUGAR LONGE: O ÔNIBUS COMO CONCEPÇÃO TEATRAL

Prosseguindo a investigação, Maurício e Trupe encenaram Dentro é


Lugar Longe10 (2013), com dramaturgia colaborativa de Rudinei Borges. Par-
tindo do desejo inicial de verticalizar o processo de criação em torno do uni-
verso do ônibus, desde a concepção dos personagens à dramaturgia seriam
concebidas por meio de depoimentos dos usuários do transporte coletivo,
em diálogo com fatos autobiográficos dos atores, processo que perpassaria,
especialmente, memórias da infância, em que as lembranças de nascimento
e morte seriam contadas, compondo uma metáfora da vida como percurso-
existência desvelada como viagem que, com o ônibus em movimento, poten-
cializaria a ideia de jornada.
Entretanto, a organização do projeto teve que ser reformulada, por
conta de mudança de governo da cidade de São Paulo que inviabilizou essa
proposta do grupo, ao desautorizar a Trupe de continuar com a sua residência
artística nas imediações do terminal (que já durava anos), local onde o grupo
pretendia desenvolver e alocar a encenação, como estava acordado há meses.
Dessa imposição abrupta, o grupo teve que reorganizar sua estrutura, e, em
vez de desenvolver a criação partindo dos depoimentos e relações dos usuá-
rios com o transporte público, voltou-se para si e passou a discutir propostas
nas quais as “vidas dos atores” fossem o objeto do escrutínio da Trupe para
conceber a dramaturgia do espetáculo e, posteriormente, cruzar com “a vida
do ônibus” e estabelecer a encenação nesta relação.
Para concretizar tal obra, foi proposto pelo diretor que a equipe se
juntasse em uma casa por 24 horas ininterruptas, ocasião na qual os atores
deveriam contar fatos das suas vidas que tivessem relação com uma área par-
ticular da casa, examinada do jardim ao porão, para criarem propostas de ce-
nas formadas por três eixos: os espaços da casa, os possíveis ofícios que po-
deriam ter relação direta com o espaço selecionado, e pelas histórias pessoais
de cada um dos atores. Maurício comenta que:

10 Ficha técnica: dramaturgia de Rudinei Borges, direção de Anderson Maurício, com Trupe Sinhá Zózima (Ales-
sandra Della Santa, Junior Docini, Maria Alencar, Priscila Reis e Tatiane Lustoza). Disponível em: http://sinhazo-
zima.com.br

148 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


A gente ocupou uma casa numa área rural da cidade e dividiu o tempo por
ofícios. Existia o ofício da manhã, o ofício do meio dia, o ofício da tarde, o
ofício da noite. E cada ofício desse era experimentado em algum espaço da
casa: o ofício da manhã era no jardim, o do meio dia era na cozinha... Ti-
nham os espaços e cada ator cuidava de um espaço (informação verbal).11

Desta proposição, surgiram vários panoramas que, em seguida, fo-


ram organizados e levados ao ônibus para serem experimentados cenicamen-
te, no intuito de especular em quais momentos os espaços da casa poderiam
ser recriados e problematizados na relação do usuário do transporte público.
Por extensão, ao esquadrinhar equivalências e ressonâncias desses espaços
internos dos atores com os espaços reais da cidade, o ambiente do ônibus pas-
sou a nortear os componentes da encenação, desde a dramaturgia, criação dos
personagens, ambientação das cenas e marcações, em diálogos com a cidade.
Assim, a trama da encenação percorria pelas memórias pueris dos
atores que, enquanto lembravam, conduziam o público para visitar os espa-
ços descritos, ressignificando, deste modo, os espaços vividos na infância nos
espaços encontrados na cidade por onde o ônibus passava e se detinha para
amarrar a encenação.
Semelhante ao espetáculo mencionado anteriormente, o conforto e
a intimidade do lar foram concentrados nos elementos visuais da encena-
ção: havia cortinas presas por prendedores de roupa nas janelas, forros nos
assentos, filmes negativos de fotografias nas luminárias internas do veículo
e suportes presos ao teto do ônibus para os atores colocarem as malas (que
continha adereços e objetos) que cada um deles trazia consigo.
Apesar da semelhança, se comparamos a cenografia desse espetáculo
com a produção pensada para o Cordel do Amor Sem Fim, podemos observar
que este espetáculo traz menos elementos cenográficos e equipamentos de
iluminação, e isso acaba por revelar mais o veículo, como podemos ver na
imagem ao lado (figura 3).
Esta observação não se dá por acaso, uma vez que nesta encenação
a consciência do encenador para a materialidade do ônibus e sua capacidade
de ser agente das ações cênicas levou o trabalho da trupe a operar em outro
patamar, o da proposição das convenções conscientes, diferentemente do que

11 Id., 2018.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 149


Imagem de Dentro é Lugar Longe (2013), texto de Rudinei Borges,
encenação de Anderson Maurício.

Nesta imagem notamos que os revestimentos utilizados para estetizar


o veículo não tenta descaracterizá-lo, ao contrário, o interior do ônibus
parece orientado para acomodar os passageiros de excursão.
Fonte: Christiane Forcinito.

150 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


aconteceu na encenação anterior, na qual o entendimento foi sendo construí-
do na medida em que o território do ônibus invadia o território do teatro, sem
que o diretor e equipe tivessem consciência dos seus dispositivos e capacidade
de expansão.
Todavia, a etapa determinante desta encenação foi encontrar os espa-
ços explorados na casa pelos atores (quartos, garagem, quintal, etc.), nos espa-
ços reais do dia a dia da cidade, ou seja: transportar e materializar os espaços da
dramaturgia nos espaços concretos da cidade (parques, praças, monumentos,
ruas, etc.), por onde os usuários do transporte público constantemente trafe-
gam e que, por si, contêm certas referências sobre eles. Assim, a encenação se
valeu para revisitá-los sob novas lentes, como nos explica o diretor:

Para mim, é o espetáculo que mais gosto, porque ali eu consigo entender
essa potência do ônibus como diálogo com a cidade. A gente vai buscar
na cidade os espaços da casa, a cidade como casa, então eu vou fazendo
uma costura da casa interna do ser humano, do porão interno, que são as
vivências e histórias dos próprios atores, relacionadas com os espaços da
cidade (informação verbal).12

Neste espetáculo, o encenador destaca dois lugares que para ele são
os mais emblemáticos da ação cênica do ônibus como procedimento: o “quin-
tal” e o “porão” da casa.
O espaço-quintal deveria trazer consigo o frescor das brincadeiras
infantis, da correria, das travessuras e das mil aventuras que uma criança
constrói quando tem a oportunidade de ter ou estar em um quintal.
Já o espaço-porão, em oposição ao quintal, seria o lugar de guardar coisas
sem utilidade imediata; lugar escuro, propício aos fungos, aos ratos, aranhas,
traças e outros bichos que acaso venham habitar neste local repleto de som-
bras, aquém dos espaços ensolarados e frescos que os quintais sugerem.
Para materializar o espaço-quintal na cidade, o encenador expõe:

A gente encontrou uma praça que era circular, onde o público estava
dentro do ônibus e o ônibus ficava girando em torno dela, e as portas do
ônibus abriam e os atores entravam e saíam e representavam dentro e
fora do ônibus. E é uma cena linda, porque parece que você está dentro
de um filme, de uma memória, porque vai ativando as suas memórias,

12 Id., 2018.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 151


vai ativando o espaço, vai ativando um outro estado de recepção para o
público (informação verbal).13

A materialização dessa proposta pode ser observada na imagem abai-


xo, na qual a atriz, após abandonar o ônibus, passa a correr em volta dele,
como num jogo de pega-pega, enquanto o motorista conduz o veículo em
círculos atrás dela. Isso estabelece, assim, não apenas uma atmosfera pueril,
como implica o transporte e os passageiros numa ação cênica que desvenda
transporte como agente da teatralidade e modifica, naturalmente, a percep-
ção do público naquele espaço cênico incomum.

Imagem de Dentro é Lugar Longe (2013),


texto de Rudinei Borges, encenação de
Anderson Maurício.

Vemos uma atriz fora do ônibus, e este a


persegue constantemente em círculos, como em
um jogo de pega-pega. Esta ação desencadeia
uma sequência de ações cênicas na qual o
veículo, com os passageiros/espectadores no seu
interior, assume o papel de antagonista da atriz
ao personificar um espírito juvenil.
Fonte: Christiane Forcinito.

Em contrapartida, o porão da
casa-cidade foi encontrado na
Cracolândia, um espaço ex-
tremamente complexo para a
cidade de São Paulo, que, no
entendimento do diretor, ser-
viu bem aos propósitos da encenação ao apresentar na sua constituição todos
os elementos das coisas “sem utilidade”:

O nosso ônibus adentrava a cracolândia e era uma sensação muito forte


porque parece que você está entrando num umbral, sabe? E para passar-
mos, eles tinham que dar passagem, a gente não conseguia passar sem
ajuda deles porque era muita gente na rua. E é uma imagem muito forte,
como se você estivesse entrando dentro de um corpo humano, de um lu-
gar que você não teria coragem de entrar sozinho e o ônibus te leva para
esse lugar (informação verbal).14

13 Ibid., 2018.

14 Ibid., 2018.

152 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


Nesses termos, na encenação de Dentro é Lugar Longe percebe-se
que o diretor procura explorar a dramaturgia dos espaços da própria cidade
como organização cênica. Busca, inclusive, entender as problematizações e
linhas de força que cada espaço poderia oferecer a determinadas passagens
da encenação, e, consequentemente, oferecer à ficção os elementos reais que
possibilitariam uma abertura do campo de prospecção sinestésica, somática e
significante, concernente à estrutura conceitual do espetáculo.
Logo, o ônibus em Dentro é Lugar Longe funciona como o veículo que
é, ao transportar os passageiros para lugares que irão possibilitar novas leitu-
ras e relações com os espaços da cidade visitados pelo teatro, numa espécie de
sinapse, que repercute diretamente sobre a constituição da encenação e dos
procedimentos adotados pela equipe.
No fluxograma abaixo, observamos que a composição dessa encena-
ção foi estabelecida admitindo o ônibus e seu contexto (a cidade) como espaço
cênico e conceito da encenação. Os vetores indicam que, nesta criação, a sala
de ensaio serviu tão somente para os agentes criativos descobrirem o tema
sobre o qual a encenação iria versar, questão que, posteriormente, foi desen-
volvida no ônibus para materializar tal encenação.

Fluxograma 2 – Estrutura de criação do espetáculo Dentro é Lugar Longe.


Fonte: Elaborado pelo autor

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 153


Notemos que o começo da estruturação da proposta teve por base
uma investigação sobre os espaços do ônibus (espaços da cidade), sem os
quais seria inviável a concretização de tal proposta, não apenas no que diz
respeito à mobilidade e à transitoriedade pelos espaços, mas, sobretudo, pela
compreensão acerca das camadas que constituem o espaço-ônibus.
Tal proposição instalou, ao mesmo tempo, um diálogo estreito entre
a linguagem teatral, a cidade e os usuários do transporte público, caracte-
rística essencial do teatro site-specific, que se configura pela tríade dialética
formada pelo espaço, espectadores e atores.

DECOMPONDO O ÔNIBUS CÊNICO

Observar os procedimentos da Trupe, verificada nos dois espetácu-


los acima descritos, nos permite conferir certos padrões que podem ser exa-
minados em outras encenações realizadas em espaços não-teatrais, além
de semelhanças e distinções entre o teatro em espaço alternativo e o teatro
site-specific.
No Cordel do amor sem fim, o espaço cênico é visivelmente percebido e
concebido pelo encenador como uma alternativa para proporcionar uma ex-
periência teatral aos passageiros do transporte público, a ponto de o diretor
tentar anular o próprio espaço e as suas características, o que se mostrou ine-
ficaz, como constatamos nos seus depoimentos.
Já em Dentro é Lugar Longe, o espaço é configurado não somente como
lugar de exposição, mas espaço atuante e indivisível da encenação, fator que
implica o diretor numa atividade de ter de assumir uma relação mais respon-
siva e dialética com o ambiente onde o evento ocorre, não apenas como sítio
incomum de apresentação, como geralmente ocorre no espaço alternativo.
Ao acessar um mundo imagético e referencial do espaço (em Dentro é
Lugar Longe), que leva o espetáculo a ser compreendido não apenas pelos perí-
metros, equipamentos e funções que o constituem, mas pelas referências a ele
inerentes, o diretor percebe que pode oferecer à encenação conexões para recon-
figurar a percepção sobre o espaço (seus dispositivos visuais, sonoros e senso-
riais como um todo) quando esse é solicitado a ser lido sob os códigos do teatro.

154 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


Esse entendimento pode ser identificado, por exemplo, no espelha-
mento da Cracolândia como o porão da cidade, na encenação de Dentro é Lugar
Longe, proposição que acaba por vincular a encenação ao seu espaço, de forma
que tentar deslocá-la desse lugar é uma ação que pode destruí-la.
Essa tessitura da cena em volta de um espaço não-teatral implica a
encenação e seus agentes num problema muito particular: a carência técnica
(ou mesmo inexistência) dos equipamentos e seus respectivos códigos visuais
e sonoros de que a linguagem teatral faz uso para construir sua natureza, que
necessitam ser concebidos para dar vazão à linguagem teatral.
No trabalho de Anderson Maurício, conseguimos identificar pelo me-
nos dois momentos em que os equipamentos teatrais precisaram ser arranja-
dos para suprir a necessidade dos anseios da direção: o primeiro destaque são
os elementos de sonorização e iluminação, que tiveram que ser reeditados ou
adaptados para aquele contexto, visto que, inicialmente, aparecem para in-
tensificar os códigos da linguagem ao serem embutidos no espaço. Entretan-
to, foram sendo minados, gradualmente, quando o encenador passou a per-
ceber que os próprios equipamentos do ônibus supriam certas necessidades
técnicas de ambientação, iluminação e sonorização.
O segundo destaque são os elementos cenográficos (cortinas, tape-
tes, forro para os assentos etc.), que vestem o ônibus por dentro, pretenden-
do deslocar a percepção dos passageiros e, consequentemente, convidá-los a
uma viagem pelo caminho da fábula.
Porém, lembremos, não são esses disfarces visuais que determinam
a encenação como site-specific, mas suas exigências técnicas e materiais fa-
zem parte do escopo de trabalho do encenador nesta poética (caso perceba
que precisa estetizá-lo), ao ter que equipar o espaço de modo a solucionar as
demandas imagéticas alcançadas por meio de cenários, iluminação e sonori-
zação que fazem parte da própria linguagem teatral, já que seus dispositivos
não são dados a priori no espaço selecionado para uma encenação site-speci-
fic, diferentemente do que acontece no teatro de espetáculo de sala. Necessi-
tam, portanto, ser pensados e reestruturados pelo diretor e produção.
Além disso, com o amadurecimento da proposta e a respectiva fric-
ção com o contexto (estas, sim, característica do teatro site-specific), os expe-
rimentos aqui assinalados passaram a ser impregnados pela realidade do lugar

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 155


em vários momentos da encenação, quando, por exemplo, as lâmpadas do ôni-
bus apagavam e as luzes da cidade adentravam o espaço cênico; quando os sons
da rua invadiam a cena; quando era necessário calar as palavras para deixar o
próprio espaço articular as expressões próprias de sua linguagem, o real.
Mesmo que esse espaço cênico tivesse a sua própria forma de consti-
tuição, coube ao diretor observar sob quais estruturas o espaço-ônibus estava
assentado, para fazer dele um agente da teatralidade, não apenas uma plata-
forma incomum de apresentação.
Essa consciência pôde ser observada em várias passagens no trabalho
de Anderson Maurício; no momento que o ônibus para e faz todos esperarem
o imponderável (no Cordel do amor sem fim), ou ainda as paragens estratégi-
cas e movimentos propositais quando, por exemplo, o ônibus personifica o
espírito juvenil a correr e girar em volta da praça, enquanto os atores entram
e saem de sua estrutura, como acontece no Dentro é lugar longe, descartando,
portanto, qualquer simplificação desse espaço como mera cenografia ou es-
paço de exposição.
Deste modo, ressaltamos que, ao mesmo tempo em que o espaço or-
ganiza e estrutura a encenação, oferece ao público uma maneira particular de
fruição, ao permitir que o espectador encontre seu próprio espaço na encena-
ção, permitindo, inclusive, que ele intervenha de forma direta na ação cênica do
espetáculo, como verificamos nos dois espetáculos da Trupe Sinhá Zózima.
Outro fator de extrema importância para entender os códigos sob os
quais os trabalhos criativos desse diretor se orientam (que é uma característi-
ca percebida em menor ou maior grau nos trabalhos site-specific) diz respeito
aos interstícios decorrentes da dialética cênica entre ficção e o real, que por
vezes tem que conversar com o instante não programado e transformá-lo em
uma potência cênica.
Tais imprevistos podem convidar todos os agentes da encenação a
suspender por um instante a linguagem artística e proferir o vocabulário do
real, em todos os seus códigos e intenções.
Notamos, especialmente, que o procedimento criativo descrito pelo
encenador, de modo geral, se dividiu em duas grandes etapas. A primeira
consistiu na busca de materiais que pudessem servir de argumentos e inspi-
rações para a construção da fábula da peça em “Dentro é lugar longe”, no qual

156 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


o diretor deixa claro que os processos adotados por ele objetivaram incitar o
grupo a criar uma amálgama criativa que serviria de matéria-prima para o
desenvolvimento do texto dramático.
O segundo movimento diz respeito à edição e diálogos possíveis do
material inicial com as relações pessoais praticadas no ambiente do trans-
porte público, cabendo, portanto, ao encenador tecer as malhas ficcionais,
em consonância com a concretude do espaço e suas camadas constitutivas,
para estabelecer os jogos cênicos, acordos necessários e compreensões sines-
tésicas para todos os agentes do espetáculo (como ilustra a imagem abaixo,
na ocasião em que o ônibus adentrava a Cracolândia em Dentro é Lugar Longe).

Figura 5 – Imagem de Dentro é Lugar Longe (2013), texto de Rudinei


Borges, encenação de Anderson Maurício.

Vemos o instante em que o ônibus passa pela Cracolândia e a relação que a atriz busca
estabelecer entre o interior do veículo e o tecido urbano social. O mergulho nesse espaço
socialmente “hostil” acentua e singulariza tal criação, ao incorporar as referências do
lugar na encenação. Fonte: Christiane Forcinito.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 157


Nestas experiências, eu destacaria ainda um terceiro momento: os ins-
tantes pensados pelo diretor para inserir o ônibus nas ações cênicas, atividades
que modificam de forma substancial a constituição do espetáculo, não apenas
de modo a afetar a percepção sobre o lugar, mas também a maneira de revelar
as potencialidades que esse lugar tem em ser um agente da teatralidade.
Por fim, destaco um questionamento que fiz ao encenador sobre a im-
portância do espaço-ônibus para a sua criação, a respeito da qual ele nos revela:

Pela possibilidade de conseguir trafegar pelo imaginário da cidade e al-


gumas vezes eu conseguir transmitir e colar, e costurar e tecer outras
imagens nele, de revelá-lo na encenação. De alguma forma poder trazer
o intangível para o tangível, trazer humanidade para um espaço tão de-
sumano. (informação verbal).15

Nas palavras do encenador desponta uma consciência sobre as par-


ticularidades do seu espaço cênico, e sobre a constante relação triangular
(espaço-ator-público) que tangencia todo o processo da encenação. Nela, a
equipe se detém constantemente para mediar as relações dos atores e do pú-
blico para com o próprio espaço, o que, por si, espelha as interações empre-
endidas no seu interior e contextos.
Nesta conjectura, os atores não são apenas personagens, os passa-
geiros são mais do que público e o espaço é mais que um cubo vazio ou recep-
táculo de poéticas cênicas a construir uma fábula peculiar num sítio alegóri-
co. Neste ponto, nos reencontramos como os fundamentos de Certeau (1990),
que entende que o espaço é forjado a partir das relações e dos vetores estabe-
lecidos no lugar, sem os quais o espaço inexiste.
Na perspectiva do teatro site-specific, o lugar (neste caso em par-
ticular, o ônibus) só passa a ser um agente da teatralidade no instante em
que os vetores de direção e tempo, percepções e camadas (sociopolíticas,
culturais, fenomenológicas) são revelados pelo jogo cênico, em diálogo com
a ficção em processo.
Sendo assim, o espaço não é um meio (ou alternativa), é um fim em
si, que se conforma a partir da criação/invenção das ações cênicas que serão
forjadas pelos agenciamentos dos vetores do lugar selecionado para constituir

15 Id., 2018.

158 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


a encenação, esta, que será produzida a partir das operações que orientam esse
lugar, não pela oposição ao lugar convencional do teatro, o edifício teatral.
Atentamos, portanto, que o “alternativo” do site-specific não diz res-
peito à falta de lugar para apresentação ou o uso do espaço como cenário in-
comum, mas à perspectiva de que as camadas constitutivas do próprio espaço
sejam os vetores essenciais da encenação, o que, por sua vez, refletirá o local e
balizará o que há de específico nestes trabalhos, como bem percebe Mcauley:

A performance site-specific é a ocupação mais recente de um local onde


outras ocupações ainda são visíveis e estão ativamente incorporadas. É
concebida e condicionada pelas particularidades de tais espaços: recon-
textualiza-os, então. É inseparável de seu espaço, o único contexto den-
tro do qual é compreensível (MCAULEY, 1999, p. 622 apud HOUSTON,
2007, p. 15).16

Afora a prática do lugar como laboratório da encenação, o espaço


criado na perspectiva do teatro site-specific, conforme anotamos na nossa
tese de doutorado17, pode oferecer ao diretor uma abertura para outras di-
mensões, difíceis de alcançar no teatro em lugares alternativos, que consiste,
precisamente, na possibilidade de revelar as especificidades do próprio espa-
ço, sejam elas históricas, sociais ou políticas. Esses são contextos sob os quais
a encenação site-specific se detém para expandir as fronteiras e territórios do
trabalho artístico.
Em contrapartida, o teatro em lugar alternativo constitui-se a partir
da própria faculdade que o anima: ser um contraponto para as propostas he-
gemônicas, ao oferecer um outro espaço como alternativa para a exposição
e fruição de uma determinada manifestação cênica, de modo que possa ser
constituída, sem necessariamente levar em conta os atravessamentos do lu-
gar onde será apresentado (como pudemos perceber no Cordel do amor sem
fim, que é o espetáculo mais apresentado do grupo e o que mais circulou por
outras cidades), fato que dificilmente ocorrerá nos trabalhos site-specific.
Nesse sentido, estamos falando, predominantemente, de processos
operacionais distintos, de metodologias de composição em artes cênicas
distintas: nas encenações em lugares alternativos, utiliza-se o espaço não-
16 Id., 2018.
17 SILVA, José Jackson. O Teatro Site-specific na Perspectiva da Direção teatral. 291 f. Tese (Doutorado em Artes
Cênicas) PPGAC-UFRGS, Porto Alegre, 2020.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 159


-teatral como ambiente de exposição, ao passo que, no teatro site-specific,
as encenações se conformam a partir das especificidades do lugar não-tea-
tral que, instituído como espaço cênico, vincula-se ao desenvolvimento e à
fruição do espetáculo.
Por essa razão, ocupar a cidade por meio do teatro site-specific pode
funcionar como uma espécie de portal que fornece uma abertura para outros
mundos inacessíveis a olho nu, porém, quando mediado pelas lentes do ence-
nador e pela equipe (conscientes dos atravessamentos e camadas que cons-
tituem os espaços), pode revelar as maravilhas panorâmicas, relacionais e
sensoriais que a superfície esconde.

Jackson Tea é Prof. Adjunto


do Departamento de Artes Cênicas
da Universidade de Brasília (Unb).

160 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


REFERÊNCIAS
AUGÉ, Marc. Não-Lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade.
Campinas-SP: Editora Papirus, 1994.

BACHELARD, GASTON. A poética do espaço. São Paulo: Martins fontes, 2008.

BORGES, Rudinei. O teatro no ônibus: pesquisa cênica da Trupe Sinhá Zózima. São Pau-
lo: Cooperativa Paulista de teatro, 2013.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Tradução: Ephraim Fer-
reira Alves. 19. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

HOUSTON, Andrew. Environmental and site-specific theatre. Toronto: Playwrights Ca-


nada Press, v. 8, 2007. (Critical Perspectives on Canadian Theatre in English).

SILVA, José Jackson; TORRES NETO, Walter Lima. Considerações sobre o conceito de
site-specific no Teatro Brasileiro. Urdimento, Florianópolis, v. 2, n. 38, ago./set. 2020.

SILVA, José Jackson. O Site-specific na Perspectiva da Direção teatral. Tese (Doutorado


em Artes Cênicas) Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes, Pro-
grama de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Porto Alegre, 291 f. 2020.

Para acessar o conteúdo deste capítulo,


aponte a câmera para QR Code ou clique
no link: https://youtu.be/7tnw_sz2oq8
C apí t u lo 8

IMAGINAÇÃO
RADICAL
E PRODUÇÃO
DE FUTUROS
Thiago Pirajira
Mariana Golçalves
Mário Lopes
RESUMO
O capítulo apresentado é composto pela
transcrição da mesa intitulada IMAGI-
NAÇÃO RADICAL E PRODUÇÃO DE FUTU-
ROS, realizada no II Seminário Discente
Narrativas Diversas da Artes Cênicas (PP-
GAC-UFRGS). A mesa propôs o encontro
com as artistas pesquisadoras Mariana
Gonçalves (Porto Alegre,Brasil) e Má-
rio Lopes (Munique, Alemanha / Helsin-
que,Finlândia), que estabelecem relações
criativas com as noções de imaginação
radical e produção de futuros, a partir de
suas práticas e pesquisas em artes da cena
e demais áreas do conhecimento. A pro-
posição surge em diálogo crítico à colo-
nização e aos modos de criação artística
hegemônicos.

É possível que nas rasuras, lacunas, ficções, ima-


ginações utópicas, exercícios críticos à normali-
dade apontem, desde os processos artísticos, pos-
sibilidades de produzir ou recuperar realidades
incapturáveis pelas estruturas de poder?
As pesquisas, processos e deslo-
camentos apresentados na mesa confluem
com estas questões, vislumbrando cami-
nhos de experimentação e de reflexão.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 163


Thiago:
Sejam bem-vindes à mesa “Imaginação Radical e Produção de Futuros”. Eu
tenho, além do agradecimento, uma alegria de mediar esse encontro, mediar
as falas dessas duas pessoas artistas, articuladoras, pesquisadoras, que, para
além do afeto, tenho uma admiração profissional muito grande com os traba-
lhos e um encontro artístico criativo que se dá com essas duas pessoas e que
cria então a justificativa, o sentido para essa mesa, que fala sobre a ideia de
imaginação radical e de produção de futuro. Tem a ver com as formas, os for-
matos das estratégias de criação artísticas de artistas negras, negros, negres,
que vêm trabalhando, pesquisando e propondo respostas criativas diante da
colonização. Criando rotas de fuga, criando possibilidades de existência que
estão para além da dimensão da dor, para além da dimensão do que a história
colonial narra, conta e tenta manter. Então eu queria já chamar minhas queri-
das Mariana Gonçalves e Mário Lopes, para estarem comigo. Muito bem-vin-
da Mari, agradeço demais…

Mariana:
Obrigada, um prazer estar aqui, estou empolgada e emocionada de poder tro-
car essa ideia com vocês aí.

Thiago:
Mário querido, bem-vindo também, Mário que… já é noite, já está frio aí, você
que está falando de Helsinki, na Finlândia, bem-vindo, meu irmão, bem-vin-
do, querido.

Mário:
Obrigado, obrigado pelo convite, é um prazer estar aqui com você e a Mari,
obrigado pelo convite e pela oportunidade, fico muito feliz de poder me co-
nectar com pensamentos, conversas, reflexões desde esse lado do Atlântico,
muito tempo longe, muito tempo sem cruzar esse Atlântico, e fica um saudo-
sismo, ainda mais nesse tempo de inverno, que é na Finlândia, -15º, quatro
horas de luz do dia, então estar com vocês é me conectar um pouco com esse
calor, com essa proximidade, por mais que seja nessas telas, eu me sinto mui-
to próximo. Eu sou um homem negro, me descrevendo aqui, tenho dreads

164 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


curtos, estou com um óculos lente quadrada, grande, caramelo, estou com
bigode mal feito crescendo, tenho barba cavanhaque, e estou usando um fone
preto, uma blusa de malha caramelo também, marrom, uma camisa azul es-
cura, aqui no fundo tem uma janela, e no outro lado tem a tela de um amigo
que se chama Aquiles Luciano, aliás, é um artista que eu admiro muito, muito
parceiro de trabalho, de vida. É isso. Então, meu nome é Mário Lopes, como o
Thiago falou, eu moro entre Munique e Helsinki, minha base é Munique, mi-
nha base de trabalho, mas eu vivo entre Munique e Helsinki. Eu tenho 41 anos,
sou coreógrafo-articulador, ou invertendo, articulador-coreógrafo, depende
do projeto, sou filho de Maria do Carmo e do Gilberto da Silva, sou pai de Ma-
dalena Inaiê, tem treze anos, Samuel Iatã, que tem doze anos, companheiro
de Isabel, de vida, tenho… Apesar de ter nascido em São Paulo, eu vivi muito
no nordeste do Brasil, morei em Salvador, em Maceió, e não consigo definir
um lugar de onde eu sou, eu me sinto nessa… além de transnacional, tem um
histórico aí de… um pouco de cada lugar que eu passei. Eu comecei… Eu sou
um ex-jogador de futebol, sou um ex-personal dance, sou um ex-cartorário,
sou um ex-bancário, sou um ex-contínuo, como dizia Nelson Rodrigues, sou
um ex-office boy… enfim, passei por um monte de coisa pra estar aqui. Mas
quando eu toquei o trabalho artístico, quando eu percebi que era esse o cami-
nho que eu queria trabalhar, eu estava tentando me profissionalizar como jo-
gador de futebol na França, em 2000, e percebi que não era o que eu queria, e
conheci uma coreógrafa. Essa coreógrafa, se chama Virgínia Bandeira, ela
trabalhava na Academia Parisiense de Dança, e ela abriu as possibilidades pra
mim. A partir daí eu liguei pro meu pai, falei “pai, não quero mais jogar fute-
bol, descobri o que eu quero, eu quero trabalhar com Arte, quero estudar,
quero investigar, quero explorar, é isso que eu quero fazer”. E aí voltei para o
Brasil, larguei o futebol, meu pai ficou desesperado, imagina, e voltei pro
Brasil. A partir daí comecei a trabalhar, estudar teatro, em uma escola que se
chama Encena, e aí comecei a investigar e trabalhar com essa área. Mas pra eu
começar a trabalhar com isso eu tive que começar a me produzir também,
bastante, aprender o mecanismo da produção. Então paralelo a isso eu fui me
formando como um artista, um ator, um coreógrafo, um diretor, eu ia me es-
pecializando como produtor, que eu acho que é um caminho que a maioria dos
artistas no Brasil passa, de trabalhar com arte, mas também se articular com

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 165


ela. Então durante esse processo eu vim também articulando os trabalhos que
eu vinha fazendo, e articulando os trabalhos de companheiras e companhei-
ros que também estavam produzindo. E comecei a me especializar na área de
produção. A partir daí foi uma construção, foram muitas coisas construídas,
muitas pontes construídas, muitas obras, muitos encontros, e nesse processo
eu entendi a necessidade de construir plataformas de encontro, construir
plataformas onde a gente pudesse se encontrar, trocar tecnologias de produ-
ção, tecnologias de fazer, de práticas, e comecei a investir muito nos espaços
de residência artística. Então, desde 2008, eu venho desenvolvendo espaços
de residência artística em Munique. A partir de 2007 eu comecei a ficar entre
Munique e São Paulo, aproveitei essa ponte pra construir esses espaços, pra
possibilitar que artistas pudessem ter espaços de investigação, espaços de re-
sidência, espaços de fuga, espaço de não criar, espaço de poder entrar não só
na ideia de troca, mas também de encontro. Eu fiquei, fico muito… Eu venho
de São Paulo, e tem muito da gíria “Vamos trocar ideia? Vamo”. Só que, ao
mesmo tempo, vindo pra Europa e me relacionando com instituições euro-
peias, me relacionando com o modo de pensar europeu, essa ideia da troca me
veio muito numa ideia colonial, onde a gente dá algo pra receber algo de volta.
Mas não descaracteriza o que a gente pensa como troca no Brasil, que é exa-
tamente isso, a troca que a gente pensa no Brasil são múltiplas vias, né. Mas
essa ideia da troca aqui, quando se fala de troca, é nesse lugar: você me dá uma
coisa, eu te dou outra coisa. E aí eu consegui desenvolver, construir e fundar
uma plataforma, se chama plataforma Plus, desde 2008, e aí a gente começou
a trazer artistas do Brasil, a princípio, pra ficarem uma temporada na Alema-
nha, em Munique, pra aí desdobrar ideias, encontrar outros artistas, artistas
de Munique, de outros locais de Munique, e entender uma forma de deslocar
pensamentos, deslocar ideias, e ao mesmo tempo, na época, em 2008 eu tava
muito naquela ideia de quebrar o estereótipo do Brasil, de quebrar essa ideia
estereotipada do Brasil, e trazer um pensamento contemporâneo que estava
dialogando ao mesmo nível no movimento contemporâneo aqui em Munique,
Berlim, na Alemanha, na Europa como um todo. Em 2015 a gente desenvol-
veu, a convite de uma residência, que foi pelo Goethe Institut em Santiago do
Chile, uma plataforma chamada MovimentoSur, a gente foi convidado pra fa-
zer uma etapa que era uma etapa de intersecção entre coreografia e arquite-

166 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


tura. E nesse encontro eu conheci as companheiras que até hoje estão dentro
da VeiculoSUR, que é a Thais Ushirobira e a Marcela Olate, e a gente desenvol-
veu a ideia de continuidade dessa residência. Porque esses eventos, na maio-
ria das vezes, eles trabalham com um gatilho de impulsionar, né, “vamos im-
pulsionar e depois a gente solta”. A gente ficou duas semanas e “Tá, vocês
investiram, a gente se deslocou, e agora, não tem continuidade? Vocês não
apoiam a continuidade?” Então, nesse sentido contrário, a gente começou,
“Não, vamos focar em gente que dê continuidade”. Então começou, eram ar-
tistas de toda a América do Sul, artistas do México, Chile, Uruguai, Argentina,
Brasil, então a gente… eu acabei impulsionando, mais uma vez, dei mais um
impulso pra gente continuar se encontrando. E aí a gente pensou em organi-
zar essa ideia de “Ah, vamos ficar um tempo no Brasil, um tempo no México,
cada núcleo, cada articulador articula um espaço de encontro, espaços de es-
tar, espaços que a gente possa compartilhar ideias e projetar futuros possí-
veis.” Começou muito nisso. A gente ficou 2015 viajando México, Chile, Brasil,
e em 2016 a gente veio pra Munique, numa residência que eu faço curadoria,
que chama Villa Waldberta, que é um castelo, um espaço incrível, de frente
pro lago Starnberger See, e a gente ocupou esse castelo, geramos conflitos
dentro da normativa dessa cidade, e foi super importante pra gente entender
que o deslocamento é necessário e a gente precisava articular uma forma de
deslocar esse espaço-tempo. E a gente começou a investir nisso, entramos em
um processo de articulação em 2017, e em 2018 a gente lançou a primeira edi-
ção da VeiculoSUR. A VeiculoSUR é uma residência itinerante que começa de
sul a norte, que tem países como Uruguai, Chile, Brasil, França, Alemanha e
Finlândia, onde a gente seleciona um artista de cada país e esse grupo de ar-
tistas, que são seis no total, seis articuladores-curadores, em princípio, se
encontravam - agora com o processo pandêmico a gente teve que modificar
- mas se encontravam no Uruguai e iam viajando juntos. No Uruguai 15 dias,
Chile, 15 dias, Montevidéu, Santiago, no Chile, São Paulo, 15 dias, Lyon, 15
dias, Munique, 15 dias e Helsinki 15 dias. Então, com isso, a gente fazia um
deslocamento completo de sul a norte. A gente começa a pensar na ideia tam-
bém, muito influenciado pela ideia da Jota Mombaça, a marcha encarnada, de
como que a gente se desloca no espaço-tempo como uma cápsula encarnada,
13 artistas, se deslocando de sul a norte, atravessando contextos, situações,

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 167


pessoas, instituições, atravessando o Atlântico, atravessando fronteiras. En-
tão a gente realmente faz um deslocamento. Quando a Jota fala da marcha
encarnada ela fala que quando essa marcha encarnada atravessa centros e
margens, ela gera múltiplas margens e múltiplos centros. Então isso ficou
muito na nossa ideia, de como vem, de como cápsulas de residência itineran-
te, enquanto a gente atravessa esse espaço a gente gera esses múltiplos cen-
tros e margens, na ideia, no contexto. Então é um projeto que fala disso, que
tem como subtema o deslocamento como coreografia, que, pra mim, a veicu-
loSUR não é só um projeto de residência artística, é um projeto também core-
ográfico, é uma obra coreográfica, porque esse trajeto de sul a norte deixa um
rastro, cria uma linha que vai daqui do sul ao norte. E essa linha eu chamo de
“linha e rastro coreográfico" [?]. Tem um planejamento, tem uma rota, e a
gente está organizando corpos e objetos no espaço tempo. Isso, pra mim, é
uma definição de coreografia. Então a veiculoSUR é um projeto que eu estou
me dedicando, o teatro faz parte dessa edição da veiculoSUR, estou muito feliz
por isso. Esse ano a gente teve que expandir a ideia da veiculoSUR. A gente não
estava contemplado em ter uma artista representando o Brasil, por uma
questão geográfica, política, e por uma questão de urgência do momento, que
a gente precisava abrir mais espaços. A gente fez uma expansão. Então o Bra-
sil, hoje, tem um total de oito artistas representando o Brasil. Então é um ar-
tista do Uruguai, um do Chile, oito do Brasil, uma da França, uma da Alema-
nha e uma da Finlândia. Esse projeto mexe muito comigo, porque a gente,
fazendo esse deslocamento, chegando agora na Finlândia, nesse norte, quan-
do a gente atravessa esse centro global, esse centro capital, a gente começa a
chegar mais para o norte, a gente começa a se sentir mais próximo do sul.
Chegando aqui na Finlândia e o contexto finlandês, eu me deparei com uma
noção indígena e uma comunidade indígena, que tem as mesmas pautas e
mesmas reivindicações que a gente tem no Brasil e na América do Sul como
um todo. A gente tá falando de um processo de demarcação, falando sobre
terra, falando sobre colonização de pensar, de idioma, de cultura, de uma
destruição, um assalto, um sequestro de uma cultura indígena, de um povo,
que é a comunidade sami, que é uma comunidade que tá dentro da Lapônia,
ela pega parte da Rússia, parte da Finlândia, parte da Suécia, parte da Noruega
e a gente se relaciona de novo. Então, quando a gente chega mais a norte, a

168 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


gente se conecta com o nosso extremo sul. E essa lógica da gente levar esse
discurso de sul a norte, é um trabalho que vem me abrindo muitas portas, vem
quebrando e desmantelando um muro que é construído nesse horizonte. Abre
uma imensidão de possibilidades. Dentro da VeiculoSUR, a gente vem trazen-
do muito essa ideia de como construir uma contra-academia né. A ideia de
construir uma contra-academia tá muito conectada a mais uma provocação,
porque a gente, a maioria das pessoas que estão dentro da VeiculoSUR nesse
ano, estão conectadas à academia e é mais uma provocação para gente pensar
em como criar intersecções, como intersectar tecnologias. Tecnologias,
quando eu falo, é legal falar, aqui eu preciso explicar. Com certeza no Brasil eu
nunca precisei explicar quando eu falo dessas tecnologias. Eu estava até ven-
do umas falas aqui que eu tinha que realmente explicar dentro de uma univer-
sidade, o que eu queria dizer com tecnologia. Aí eu tinha que entrar na ideia: é
uma tecnologia não ocidental. Uma tecnologia conectada aos povos originá-
rios, dos dois lados do atlântico. Quando eu falo de tecnologia, eu falo, por
exemplo, que eu voltei a falar com as árvores. Era uma tecnologia que a minha
vó praticava, ela me ensinou quando eu era criança, mas durante meu proces-
so de ocidentalização, eu bloqueei e considerei aquilo como loucura. Aqui na
Finlândia, me reconectando com comunidades indígenas, eu estava aqui na
minha casa, andando aqui no pátio, eu escorreguei, me apoiei na árvore, lem-
brei da minha vó, quando eu era pequeno, tinha sei lá, três ou quatro anos,
que ela pegava a minha mão, colocava na árvore, colocava a mão dela sobre a
minha mão e falava “filho, não esqueça, você pode falar com as árvores”.
Meu! Deu um choque aqui, com quarenta anos. Então é dessas tecnologias que
eu estou falando. A VeículoSUR está sendo um espaço que a gente está tendo a
possibilidade de acessar essas tecnologias, de viver em comunidade, de tudo
que a gente está falando, tudo que tem mestras e maestros e mestres aí, de
nações indígenas que estão martelando isso de novo, já vem há muito tempo
martelando, está começando a ter mais visibilidade, de que a natureza não é
recurso, a natureza é membro, é parte da família, né? Isso é sobre tecnologia.
Na VeiculoSUR a gente está tendo a possibilidade de fazer isso e agora, o meu
momento atual, que tem tudo a ver com esse espaço não acadêmico, eu fui
convidado para fazer um mestrado na DAS, eu não sou da área acadêmica, não
fiz faculdade, não tenho diploma, e fui convidado pelo trajeto, pelo processo,

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 169


pela carreira e eu estava muito na ideia de contra-academia, mas desejoso de
poder dialogar com [ela] e achar pontos de intersecção. Então, fui convidado
esse ano para uma das universidades mais conceituadas de arte, de coreogra-
fia principalmente. Estou animado, ao mesmo tempo já entendendo o con-
texto em que eu estou entrando, porque eu fui comunicado que eu sou o pri-
meiro negro a fazer esse mestrado de coreografia nessa universidade, não dá
pra desassociar o meu corpo político do meu trabalho, da minha reflexão ar-
tística. É isso mesmo. Estou nesse processo e meu tema, meu trabalho de in-
vestigação dentro desse mestrado é falar sobre um conceito que eu estou tra-
zendo que é afrotranstopia. Então o título do mestrado é Afrotranstopia:
salivar os nós do corpo, que é um mestrado, que é onde quero trabalhar esse
conceito. Para mim, a afrotranstopia é a intersecção entre tecnologias, exis-
tências e afrotranscedência. Afrotranstopia é um espaço de especulação.
Afrotranstopia é uma teletransportação. Afrontranstopia não é nem utopia e
nem distopia, mas é uma transtopia. Acho que o que me impulsionou a pensar
em transtopia, a partir do pensamento afrotranstópico, é uma conexão que a
gente pode ir falando depois, mas que eu achei muito louco. Não sei se vocês
sabem quando foi conceituada a ideia de utopia. Foi no século XVI, no ínicio do
século XVI e aí, junto com todo o processo colonial, início da colonização. Aí as
definições de utopia e distopia, estão conectadas a isso. Foi um inglês, um tal
de Thomas More, que criou a ideia da utopia e está relacionado a isso. Então,
quando se fala de utopia, sempre se pensava que estava conectado a algo do
futuro. Mas utopia está conectada a algo do passado. Utopia era o que as nos-
sas nações dos povos originários viviam. Essa é a descrição de utopia. E disto-
pia é o que a gente vive hoje. A transtopia é o que a gente especula para o fu-
turo, é o que a gente vai viver, é o que a gente pode viver, em transformação
com os atos do agora. É isso que eu estou pesquisando nessa universidade, é
isso que eu estou provocando, numa universidade que está querendo falar so-
bre decolonialidade, sobre métodos decoloniais, onde tem o primeiro coreó-
grafo negro fazendo mestrado. Então é isso, eu fico aqui feliz, agradeço o con-
vite e eu acho que resume um pouco a ideia da afrotranstopia, o meu filme
mais recente, meu trabalho mais recente que se chama Movimento 3, que é o
fim de uma trilogia. Movimento 3 Celebration: espumas pós tsunami, que fala
sobre esse espaço transtópico, afrotranstópico. É um filme que foi rodado no

170 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


Brasil, na Finlândia, na Alemanha, em Moçambi-
que, é um filme que só pode ser possível através de
artistas poderosos, artistas poderosas, que me
possibilitaram a realização de um sonho, especu-
lar esse lugar afrotranstópico. Tem Érica Malun-
guinho no filme, tem Maré de Matos, tem Malu
Avelar, tem Leo Castilhos, tem muita gente poten-
te e que levou o filme para estrear na Bienal de São
Paulo Frestas, que é uma curadoria histórica, do
Tiago, a Diane e a Bia, uma curadoria que fica aí
para a história e abre novas narrativas aí.

Acesse Movimento 3 Celebration: espumas pós tsunami apontando a câmera


do celular para o QR code ou acesse o link: https://vimeo.com/588340879

Thiago:
Valeu Mário, querido. Eu sou suspeito para falar, eu tive a oportunidade de
ver em primeira mão o filme, logo quando foi lançado na Frestas né. Acho que
é muito importante falar e destacar esse evento, essa ação que acontece no
contexto de Brasil pandêmico, onde as violências ao corpos estruturalmente
já violentados se amplia cada vez mais, e a gente consegue ter a realização de
um evento com a potência, como por exemplo, a Frestas Bienal de Artes, que
está acontecendo ainda em Sorocaba, em São Paulo, no Sesc Sorocaba e que
tem uma curadoria, como o Mário falou, que é feita por pessoas jovens, cura-
doras, curadores, que vêm desenvolvendo um trabalho e realmente de refun-
dação, eu acho, na perspectiva do mercado da arte no Brasil, pensando a arte
realmente como um mercado pré-estabelecido e ainda assim, tão conduzido
pelas dimensões de colonialidade. Eu mandei um podcast pelo whatsapp para
o Mário depois de ter visto o filme, eu acho que tem uma relação com as coisas
que tu traz como questionamento, como provocação, como teoria, querendo
ou não a gente acaba se relacionando com essas teorias, mas que partem de
uma prática né, partem de algo que é factível através e a partir, com e pelo
corpo. Então, logo que seja possível de todo mundo ver esse filme, eu acho que
é realmente fundamental e importante para a gente pensar questões estéti-

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 171


cas, de linguagem, de conceito, de tudo mais que é possível se pensar numa
arte que tenha essa ideia de imaginação radical, como ponto de partida. Eu
penso que se conecta diretamente com as coisas todas que tu falou aqui, que
são super importantes para a gente pensar essa ideia de descapturação. Ainda
mais quando a gente está falando de corpos que são corpos perseguidos dian-
te da violência de extermínio, mas que são perseguidos diante da violência de
tokenização, que é aquela violência contemporânea, dos espaços de arte, da
grande mídia, que tomam os corpos historicamente violentados como márti-
res das pautas de diversidade. Quando a gente está pensando em descaptura-
ção, a gente está pensando justamente nessas estratégias de posicionamento
e negociação com isso tudo. Fico pensando muito, muito pela minha própria
prática realmente como artista, que acho que estou em um momento de mui-
ta reflexão amparada pelos coletivos em que eu também venho me fazendo,
sobretudo o Coletivo Grupo Pretagô, no momento em que a gente se coloca no
mundo como artistas, como coletivo, pautando identidade, pautando a nossa
geração, a juventude negra, e hoje a gente se questiona sobre muitos desses
lugares nos quais a gente foi inserido, foi capturado e colocado. Então, quando
tem eventos, pautas, coisas sobre juventude negra, negritude, “vamo chamar
o Pretagô”, mas em todo o resto a gente não precisa chamar né. Então essas
capturações que vão acontecendo com os corpos quando a gente se legitima,
se coloca e se afirma. Os problemas da representação, da afirmação. Não que
não seja importante, fundamental e necessário. Mas também a gente pen-
sar que a colonialidade, ela é tão perversamente sofisticada, que ela dá con-
ta de reformular suas estratégias para manter a capturação. E Jota Mombaça
fala disso. Denise Ferreira da Silva fala disso, muita gente que é inspiração
pra coisas que artistas da nova geração estão produzindo, que fala sobre essa
continuidade da colonialidade, desses modos de capturação. Não que seja no-
vidade, porque Franz Fanon na metade do século XX estava lá pensando sobre
isso, quando dizia que ao fim e ao cabo, ele não queria ser negro, ele queria ser
um homem. Ponto final. Essa ideia de raça como uma ficção, também como
uma ficção para dominar, para colonizar, para exterminar, para controlar.
Acho muito incrível a poética que tu apresenta, porque ela entra em um lugar
que é o lugar ali também do incapturável e do intraduzível, do não entendível,
mas do não entendível como intenção mesmo. Da gente não se relacionar com

172 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


a obra de arte mais a partir de uma lógica que é de entender, de compreender,
porque entender e compreender, assim como tu falou a ideia de troca, muito
colonial, também é uma ideia colonial, entender e compreender. Tu enten-
de e compreende, então pronto, tu pode jogar aquilo fora porque tu já tem o
domínio sobre aquilo. Quando a gente fala de relação, de encontro, como tu
fala, a gente entra em um outro campo. É pensar também a obra de arte como
um lugar possível de a gente não entender e compreender mais, mas sim da
gente criar uma relação que seja possível para a gente ampliar aquilo que é
tão caro para a gente, que é a disputa pela nossa subjetividade. Acho que no
Movimento III Celebration, isso vem… e é isso, a gente conversando depois lá
no áudio, a gente diz, “bom, eu nem sei o que dizer né, Mário, porque se eu for
dizer alguma coisa eu vou querer traduzir e não é, não quero traduzir isso”.
É uma coisa muito mais da gente viajar junto. Já viajei aqui junto a partir da
tua fala, acho que também é um pouco isso assim, a gente ir trocando. Quem
tiver questões, gente, pode colocar aí no chat que chega aqui pra gente e a
gente, depois da fala da Mari, a gente tenta também conversar a partir dela.
Obrigado Mário! Valeu meu irmão querido. Então agora, vou passar a pala-
vra para a minha querida companheira, amiga de muitas e poucas também,
parceira também, artista pela qual eu tenho uma grande admiração, que vem
desenvolvendo um trabalho incrível também na cidade de Porto Alegre. Mari
querida, está contigo a palavra, estamos aqui contigo.

Mariana:
Então, boa tarde, boa noite para o Mário, é um prazer imenso estar aqui com-
partilhando desse encontro. Ia falar trocando, mas compartilhando desse en-
contro com vocês, com Thiago que é uma pessoa muito especial pra mim, a
gente teve diversas trocas aí, intensas trocas esse ano, nas nossas chamadas
de vídeo que duravam horas e, enfim, passamos manhãs e manhãs ali dialo-
gando sobre possibilidades de criação e invenção de futuros. Muito prazer,
Mário, muito legal te conhecer, mesmo que assim, desta forma, e principal-
mente conhecer o teu trabalho. Tu ia falando, sobretudo mais no final da tua
fala, tu foi trazendo algumas questões que justamente estão super conectadas
com o que eu e Thiago viemos discutindo. A ideia da Afrotranstopia me pegou
de um jeito, que eu estou realmente assim… Fui atravessada por isso e depois

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 173


daqui eu vou elaborar melhor isso e quero continuar acompanhando o teu
mestrado, a tua pesquisa e podendo pensar junto. Parabéns por esse convite.
Acho que é isso, esses títulos que a gente vem adquirindo ao longo dos anos
dentro de um âmbito instituicional, da academia, da universidade, muitas ve-
zes eles nos apresentam algumas armadilhas, em que a gente entende que
esses títulos muitas vezes podem estar nos conferindo alguns espaços, que na
verdade isso que tu fala, de não ter tido uma formação em graduação e ter sido
convidado logo para ser o primeiro estudante negro do mestrado no progra-
ma, para o qual tu foi convidado, mostra muito isso, de que o saber não se
constitui somente dentro desses espaços institucionalizados. É justamente
sobre isso que eu pensei em trazer pra gente conversar e refletir. Eu sou Mari
Gonçalves, sou uma mulher negra, de pele clara, tenho os cabelos crespos,
médios, uso óculos de cor lilás, estou vestindo uma blusa de alça, que tem um
detalhe em preto e amarelo e branco. Ao fundo, em um primeiro plano, a es-
querda de vocês e minha direita, tem uma estante azul com livros e algumas
plantas. No segundo plano tem um pandeiro pendurado na parede e a minha
esquerda, direita de vocês, um espelho laranja, que de vez em quando, à me-
dida que eu vou me mexendo, ele vai aparecendo. Estou usando fones de ou-
vido e argolas brancas ou beges. Eu sou Mariana, tenho vinte e nove anos,
venho da cidade de Bagé, no interior do Rio Grande do Sul. Sou filha de Con-
suelo e Paulo Sérgio, que são duas grandes referências pra mim, sobretudo no
que diz respeito a uma luta incansável, uma luta antirracista incansável, en-
tão eu gosto de dizer que sou filha do movimento negro, desde criança fre-
quentando os espaços de articulação política, aqui em Porto Alegre e em Bagé,
acompanhando meus pais em quilombos por aí, aqui no Rio Grande do Sul.
Em 2011 eu vim para Porto Alegre pra cursar a graduação, em um primeiro
momento, ingressando na universidade pelo curso de Administração Pública
e Social, no qual eu não dei continuidade e depois eu acabei transferindo mi-
nha matrícula para o curso de Ciências Sociais e lá me formei em 2017, 2018,
com ênfase em Sociologia, em pesquisas que, enfim, articulavam um pensa-
mento em torno da luta contra o genocídio e o extermínio da juventude negra,
não só em Porto Alegre, mas minha pesquisa de TCC foi focada mais em pen-
sar o movimento, a atuação do movimento negro aqui em Porto Alegre, dian-
te das questões vinculadas ao extermínio da juventude negra e etc. Em 2018,

174 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


eu fui pressionada, não pressionada, mas instigada por uma amiga, a fazer a
seleção do mestrado na Psicologia Social e Institucional, no Programa de
Pós-Graduação na UFRGS também. Não conhecia, não dominava o campo,
não conhecia ninguém, mas quis me aventurar, entendo que poderia ser um
espaço interessante de estar me inserindo e estar podendo contribuir, tam-
bém ainda dentro da pesquisa sobre juventude negra. Aí eu fiz essa seleção,
passei na primeira turma de cotas do mestrado em Psicologia Social e Institu-
cional, no PPGPSI na UFRGS. A nossa turma, era uma turma a qual tinham seis
vagas de cotas, destinadas para estudantes negros e nós entramos entre onze
estudantes negros. Ou seja, ocupamos bem mais do que as vagas destinadas
para o “nosso público”. Durante esses dois anos de mestrado, na verdade
três, mas durante esse tempo de mestrado, de 2018 a 2020, 2021, eu defendi
no início desse ano, eu acabei virando a minha pesquisa pra não mais discutir
os processos de genocídio, de violência e tudo mais, e passei a discutir ques-
tões que girassem em torno de não só pensar a produção de morte, enfim, os
atravessamentos do projeto que está colocado, um projeto colonial, de exter-
minação dos corpos. Há tanto tempo esse projeto está vigente na nossa… Nas
nossas relações, sobretudo aqui nas Américas, onde a gente viveu e vive até
hoje um processo violento de colonização, mas como que a gente resiste a
tudo isso, durante todo esse tempo, né, me traz muito mais… Me faz muito
melhor, me traz muito mais desejo e vontade de pesquisar dentro da acade-
mia os processos de produção de vida, e das políticas que a gente elabora, que
nos constitui, que estão vinculadas, estão focadas para pensar a produção de
vida - não só pensar, mas fazer, do que pensar as políticas de produção de
morte. Sem negá-las, obviamente, porque estão aí, a gente também não pode
vendar os olhos e não mais pensar sobre isso, mas por uma questão justa-
mente de tentar produzir um futuro onde nossos corpos existam, eu resolvi
fazer essa virada de chave. E aí o que eu ia destacar, voltando um pouquinho,
eu queria destacar a relevância dessa discussão do tema que a gente está ten-
do hoje, aqui, justamente pra pensar então algumas transformações, alguns
processos de transformação do conhecimento. Como que a gente vem produ-
zindo conhecimento dentro das universidades dentro dos programas de pós-
-graduação, dentro das nossas teses, dissertações, TCCs. Mas não só, dentro
também do nosso fazer em sala de aula, dessa própria troca, enfim, disso que

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 175


a gente faz e se propõe dentro da academia, que é construir, produzir algo.
Queria destacar esse movimento, porque eu acho que a gente ainda se depara
com muitas pesquisas que estão fechadinhas, enclausuradas dentro de algu-
mas caixas, engessadas e amarradas por proposições presentes em manuais,
sobre o que fazer nas pesquisas. Mas acredito que aqui - e não só aqui, mas
enfim - acho que tem aí um elemento importante das políticas afirmativas
dentro das universidades, me parece que o principal impacto diz respeito a
sair de dentro dessas caixas, ou melhor, colocar esses manuais dentro dessas
caixas, e dispensar pra algum outro lugar. Pensar não só o que fazer, mas
como fazer, não mais dentro do que esses manuais antigos supunham sobre
as pesquisas. Ou seja, aquela velha ideia do eu e do outro, do sujeito e do obje-
to. Eu acho que a essas questões a gente precisa estar atento, e não só atento,
mas o nosso saber fazer precisa estar também articulado, pensar o como fazer
desvinculado de uma lógica ocidentalizada, enfim, a qual os manuais nos su-
gerem. Então eu fiquei pensando numa provocação sobre o tema da mesa,
pensando também no que o Mário trouxe, reflexões que eu tenho tido com o
Thiago, e eu fiquei me perguntando assim, qual imaginação não é radical?
Qual imaginação não é radical, principalmente quando a gente fala de futuro,
de nós, dos nossos corpos, quando os nossos corpos provocam um pensar… O
que é mais radical do que imaginar um futuro pra gente, diante de um contex-
to de política de morte? O que pode ser mais radical do que isso? Então, diante
disso, eu estou pensando, e é algo que eu levo bastante para as discussões no
programa, no PPG da Psico, nas disciplinas que a gente está ali pensando jun-
tos as pesquisas de mestrandos e doutorandos, como que a gente articula essa
radicalidade do fazer para com um certo movimento que vem acontecendo
dentro do campo do saber. Como fazer esse movimento inverso também,
como que a gente articula esse saber orgânico, porque o Mário, por exemplo,
ele tem a trajetória dele, que na minha percepção, conforme o que o Mestre
Antônio Bispo nos provoca sobre saber orgânico e sintético, como que a gente
articula os saberes orgânicos sem apenas transformá-los em saberes sintéti-
cos? E não fazendo um movimento de retorno, ou… não sei se seria um movi-
mento de retorno, mas de reciprocidade, no que diz respeito ao saber sintéti-
co servir para o saber orgânico. Não sei se me fiz entender, mas é algo que…
como a gente faz para articular esse saber fazer, como a gente faz pra articular

176 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


a teoria com a prática, e como a prática incide sobre a teoria também. Então
dentro das universidades, dentro dos programas de pós-graduação, princi-
palmente ali no PPG Psi, a gente vem tensionando muito isso, principalmen-
te os estudantes não brancos. Bom, vocês estão falando de subjetividades,
vocês estão falando de produção de subjetividades a partir de uma lógica
brancocêntrica. Tá, isso aí não é novidade pra ninguém. Agora, se nós esta-
mos aqui, é importante que haja algum fato sobre, que a nossa presença cause
algum impacto sobre esse conhecimento. Então, se produção de subjetividade
está vinculada a experiências, vivências que a gente vai tomando ao longo da
vida, é óbvio que a produção de subjetividade do corpo não branco e de um
corpo branco não vai ser a mesma. Principalmente porque, pra nós, essas ex-
periências e vivências estão muito vinculadas a uma relação com o nosso ter-
ritório, né, que é o território do corpo. As violências estão direcionadas dire-
tamente aos nossos corpos. E a partir disso vem outros impactos. No entanto,
fico pensando também nessa discussão sobre essas contribuições que a gente
tem pra dar e vem dando dentro dos PPGs, não só dos PPGs, mas, enfim, den-
tro da academia como um todo, pensando nessa articulação entre saber orgâ-
nico e saber sintético, o que seriam pesquisas - isso é uma provocação que a
gente tem discutido também, eu e o Thiago - o que seriam pesquisas descolo-
niais? O que se pretende com o descolonial? Qual é o sentido de fato da desco-
lonialidade? O ‘des’ me causa uma sensação de desfazimento, de algo que se
desfaz, de algo que se desconstrói. Mas eu fico pensando também, como que a
gente desconstrói, desfaz um sistema colonial que está consolidado desde a
invasão das Américas, mas não só, algo que vem anterior, e aí pensando den-
tro de um movimento afrodiaspórico, esses movimentos transatlânticos,
como que a gente desfaz isso, né? O que eu tenho sentido, nessa perspectiva
da descolonização do saber, descolonialidade, o que eu tenho sentido é que
esse tem sido mais um argumento, um artefato, não sei se é essa a palavra,
utilizado pra refazer alguns movimentos, e não desfazer. Quem é que tem do-
minado as discussões sobre descolonialidade? Nesse sentido, eu gosto mais
de pensar numa ideia de enfrentamento, numa ideia de combate, numa ideia
de se colocar contra. Porque é isso que a gente faz. Desde sempre. A recons-
trução dos nossos territórios africanos, por exemplo, [áudio cortado 1:05:25]
mas que se coloca num movimento de resistência, num movimento de ir con-

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 177


tra, ainda que tenha que silenciar os nossos valores, a gente transforma o
tambor em samba, mas logo depois se torna um samba de terreiro. Ainda que
tentem silenciar, enfim, os nossos elementos, nós os trouxemos, nesse movi-
mento afrodiaspórico, para as Américas. E esses movimentos se mantêm, es-
sas expressões se mantêm. Eu gosto de falar de movimento porque… algo que
também está muito em voga agora, pensando também essa coisa da interdis-
ciplinaridade, e tudo o mais, algo que está muito em voga agora é pensar en-
tão essa ideia de encruzilhada, a ideia do pensamento exusíaco, a ideia de tra-
balhar com Exu, com esse operador conceitual. Mas o que eu tenho percebido,
que tem me incomodado muito, é que há um movimento no contexto do PPGs,
das disciplinas, e tudo mais, de dar uma certa estatizada no que diz respeito à
presença de Exu nas pesquisas. É algo que eu comentei muito com o Pirajira.
Como que a gente vai falar de Exu somente escrevendo? Utilizando apenas
uma ferramenta de linguagem, uma linguagem, pra poder produzir uma tese,
uma dissertação? Exu é movimento, Exu é multiplicidade, Exu é caos, Exu é
possibilidades diversas. Então utilizar somente a escrita dentro dessa discus-
são sobre encruzilhada, por exemplo, é algo que vem me incomodando bas-
tante, justamente por pensar que a própria escrita também se constitui en-
quanto dispositivo de poder. A própria escrita das nossas teses e dissertações
muitas vezes acabam se restringindo a um espaço, somente, que é o espaço da
academia. Então, quando a gente trabalha dentro da produção do conheci-
mento com outras ferramentas que estão dentro da ordem do campo do sen-
sível - obviamente a escrita, a depender de como se escreve, ela também tem
essa potência de acessar e fazer acessar lugares da imaginação que, enfim, ao
longo do tempo a gente vem percebendo, trabalhando com essa linguagem.
No entanto, até antes também, a gente estava conversando que desse evento
sai um ebó. Bom, mas se a gente está falando de imaginação radical e produ-
ção de futuro, por que não pensar então fazer o texto dessa mesa além do for-
mato de texto? Um formato que explore outras expressões, outras tecnolo-
gias. Eu gosto muito do que a professora Leda Maria Martins provoca a partir
de afrografia e a partir da ideia de oralitura, que é instigar a produção, não só
a produção, mas a transmissão do conhecimento a partir do que está inscrito
no corpo, a partir do que está inscrito em outras linguagens, não só a lingua-
gem escrita, não só a biblioteca, não só o livro. Mas a gente poder trabalhar

178 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


com outras formas, outras linguagens. O campo da música, do audiovisual, do
cinema, da poesia. Todas essas expressões, linguagens, ferramentas, o que
considerem chamar, pra mim é um momento possível pra gente pensar em
utilizar e tensionar, justamente pra romper - não sei se romper, talvez seja
um pouco radical demais - mas tensionar e borrar ideias de que o saber sinté-
tico só se produza através da escrita. Então, me parece que esse movimento de
reconhecer esses saberes orgânicos e colocar pra gente não só um pensar,
mas um sentir pra que a gente possa então pensar as nossas produções de
teses e dissertações, enfim. E, bom, pensar com isso, se estamos vivendo uma
distopia, se o caos se instala, vamos aproveitar esse momento de caos todo e
causar mais caos ainda dentro da academia e dos espaços onde a gente está,
onde estamos colocados, para tentar articular esse caos. Não no sentido de
organizar, mas de poder… Esses dias eu escrevi um breve texto para uma dis-
ciplina, e eu tenho muito a coisa do sonho, eu sonho muito com as coisas que
eu vou escrever. Então, eu sonhei com uma voz mandando eu adentrar o caos.
E eu pensava: “Bom, mas… eu já não estou no caos? Que outro caos é esse que
se quer que eu entre?” “Vamos lá, tem um lugar pra ti nesse caos, Mariana”.
E eu acabei fugindo disso, por entender que esse meu caos já estava instaura-
do. Depois eu fui refletir sobre a mensagem do sonho: “Bom, eu já estou no
caos, tem alguém me chamando para o caos maior ainda…” E esse sonho se
deu no contexto de final de semestre, de fazer os protocolos, de entregar o que
se tinha que entregar, e eu comecei a fazer a fazer a reflexão, “O que esse so-
nho quer dizer?” E a interpretação a que eu cheguei foi de que, realmente,
estamos no caos, mas o caos sempre pode se intensificar ainda mais, e você
não precisa organizar, não precisa ter o controle desse caos. Não precisa só ter
o teu caos para controlá-lo, e está tudo bem. Não precisa. O que precisa é dar
a mão para esse Exu que está te chamando para esse outro caos e aprender a
gingar com ele. Aprenda a gingar com esse caos, dançar com o caos, sem con-
trolá-lo, mas podendo utilizar dessa tecnologia que é a dança, que é o sentir,
que é o campo de outra sensibilidade, o campo do próprio sonho em si, tam-
bém como algo que possa utilizar para dentro do teu caos. E o que tu não qui-
ser, tu bota fora, é estar na encruzilhada mesmo. “Não é pra mim, então vou
em outro”. É isso, assim. As provocações que ficaram dessa discussão, dessa
mesa, e não só dessa mesa, mas também dos processos que eu venho vivendo

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 179


nesse último ano caótico, porém muito bom, no qual pudemos produzir coi-
sas fantásticas, mesmo que em meio ao caos, as provocações foram essas, de
aprender a dançar com o caos. A gente precisa aprender a estar dentro desse
movimento, não se intimidar com esse movimento, não se intimidar com
toda essa multiplicidade, com toda essa pluriversalidade, não se assustar,
porque a lógica ocidentalizante nos diz que a gente deve seguir uma lineari-
dade das coisas, que devemos colocar tudo em ordem, que a gente deve con-
trolar as coisas. Então, nesse sentido, e aí encerrando a minha fala e agrade-
cendo, pensando nessas diferentes e várias possibilidades de produzir
conhecimento, de aproveitar o movimento desse caos e dessa multiplicidade
toda de ferramentas que estão aí disponíveis pra gente, e das possibilidades
também que a gente tem de criar não só dentro da academia, mas fora dela,
articular o que a gente produz dentro e fora. E como não venho do campo das
Artes Cênicas, mas me aventuro em diferentes outros campos, um deles é a
música, no qual eu trabalho como DJ, articuladora, dentro desses coletivos
que são Coletivo Arruaça e Coletivo Turmalina, esse ano nós fomos convida-
dos por uma marca de cerveja para criar conteúdo para uma plataforma, que
foi criada na metade desse ano, e uma das criações do coletivo Turmalina, que
é um coletivo de jovens DJs e cantores pretos e pretas daqui de Porto Alegre,
dentro dessa produção eu pensei: “Como eu posso contribuir?” Porque eu não
estava muito a fim de tocar um som pra uma tela do computador. Mas eu pen-
sei: “Está aí o momento pra gente articular o que a gente está pesquisando
dentro da academia, como trabalho, que a gente desenvolve como coletivo”.
Então eu encerro a minha apresentação com a apresentação de uma perfor-
mance sonora, que se chama “Futuro Ancestral”. O texto foi produzido por
mim, a voz, a narração também é minha, e o beat foi de um produtor musical
muito foda, do Coletivo Turmalina, que se chama Léo Pianki, então, enfim,
acho que o conteúdo da performance vai sintetizar um pouco do que eu trouxe
hoje aqui pra gente pensar, e também vai dar alguns
caminhos pra gente elaborar o nosso futuro, e pensá-
-lo a partir da afrotranstopia, que é o caminho após
essa distopia. Então, é isso. Muito obrigada.

Aponte a câmera para o QR Code para ouvir


"Futuro Ancestral" ou acesse pelo link:
https://bit.ly/3zNMPJB

180 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


Thiago:
Eita! Nossa!

Mário:
Bom demais. Que lindo, Mari.

Thiago:
Nossa, já de manhã, quando mandou o áudio, eu já acordei nesse flow, ficando
cada vez mais empolgado. A palavra, esse sentido da palavra à qual nós fomos
submetidos e colonizados, que é a palavra como linguagem e língua, ela não
consegue traduzir todo o sentido. Ela não dá conta dessa tradução. E eu acho
fantástico a provocação que tu trazes dessa ideia de pensar as cosmovisões
africanas, sobretudo religiosas, essa palavra colonial, colonizada, dá conta de
pensar uma experiência que é advinda da dimensão da encruzilhada, que é
Exu. Já coloquei aqui no meu caderninho, porque eu estou falando de Exu na
minha tese, então eu já vou… Já coloquei no caderninho, pra pensar. Porque
acho que tem muito a ver com as trocas que a gente vem fazendo, nossos pro-
cessos. E, nossa, Mari, sempre é um aprendizado te ouvir, pela tua articula-
ção, que nos conduz, muito generosamente, levando a gente a refletir sobre
questões que eu acho que são fundamentais pra gente nesse evento como um
todo. Acho que encerrar com a tua fala, com a tua generosa articulação, tam-
bém é importante pra gente pensar o evento que a gente está produzindo, o
qual a gente se destina e pensa sobre essa ideia, que a gente nomeia o evento
como seminário que tem a palavra “diversidade”, né, e é realmente, o que a
gente está pensando quando fala em diversidade? O que a gente está pensando
e querendo disputar quando a gente está falando em decolonialidade, des-
colonialidade? Desde as nossas práticas como aprendizes, como estudantes,
mas também com as práticas docentes, como professoras, professores, acho
que também vem argumentando. Então acho que é muito importante essa tua
articulação, que tu também - por mais seja com ideias, assim, muito mentais,
mas há uma transposição constante com as práticas, com a própria ideia des-
se seminário que pensa as práticas artísticas e relaciona também como prá-
tica. Mas, afinal de contas, de que prática e de que teoria a gente está falan-
do? Que articulações são essas? Eu fico muito contente, muito grato por essas

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 181


falas de vocês, por esses compartilhamentos de tecnologias, pensamentos,
sempre tendo de que… Parece que a cada encontro, mesmo que algumas pa-
lavras, na nossa intimidade de troca, se repitam, parece que elas refundam o
sentido. Eu acho que tem a ver com uma tecnologia que nos pertence, a re-
criação, a reinvenção, a atualização, porque já ouvi o Mário falando o que ele
falou hoje, mas hoje ele falando fez outro sentido. Já ouvi a Mari falando as
coisas que está dizendo, mas hoje tem outro sentido. Então fico muito grato
com a generosidade de vocês compartilharem esses saberes orgânicos, esses
saberes de encontro, da nossa troca, do nosso sentido de troca, conectando as
nossas tecnologias.

Mário:
Sim, o tempo é uma outra questão, a gente está falando de como radicalizar,
dentro de formações conformes, como que a gente desassocia isso, como que
a gente… Acho que tudo é possível, depende do tempo… Eu estava aqui con-
versando, só pra fazer uma observação, nem vou entrar muito nas perguntas,
mas sobre a questão de trocas, pra não ficar no “a gente deve ou não usar tro-
ca?” Acho que a gente deve usar, aliás, ouvindo da Pascale Obolo, que é uma
curadora camaronesa, que vive na França, da revista Afrikadaa, a gente estava
conversando um dia e a gente chegou à conclusão de que nós, corpas e corpos
multidimensionais, temos todo o direito e somos as únicas existências que
podem se apropriar, se reapropriar, ressignificar o que a gente quiser. Porque
a gente fala português, no nosso caso, porque a gente passou por um processo
de colonização, sabe? Isso cria várias capas e nos dá o direito de a gente fazer o
que a gente quiser. Então a gente, corpas e corpos multidimensionais, a gente
pode fazer o que a gente quiser. A minha questão é aqui na Europa, de trazer
essa fricção e poder provocar. Então é troca, e quando a gente fala troca, são
múltiplos caminhos, múltiplos vetores.

Mariana:
Eu só queria fazer um comentário muito rápido sobre isso que você estava
falando, Mário, que, de fato, a troca só se dá a partir do encontro, e são esses
territórios do encontro que a gente está aí com a missão de explorar e criar
cada vez mais. Nesse território que a gente construiu aqui, agora, a partir des-

182 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


se encontro, ele semeia trocas que vão muito além desse espaço tempo, que
obviamente está articulado. Movimentos que foram feitos durante esse ano
e estão sendo feitos nesse momento, reverberam para um futuro. A própria
ideia de tempo, pra nós, é algo que… Eu vou aproveitar que estou com a pa-
lavra, queria pensar aqui a questão da radicalização do futuro. Não há como
pensar futuro, na minha percepção, sem pensar ancestralidade. Em todas as
nossas práticas. Partindo de onde eu falo, que é deste lugar de doutoranda,
todas as minhas pesquisas, de um determinado tempo pra cá, eu virei essa
chave, a importância de pensar a ancestralidade. Não só na minha prática do
cotidiano, mas na questão de como a ancestralidade pode influenciar e rever-
berar pra transformação do conhecimento, pra transformação desses proces-
sos criativos, que eu constituo não só dentro da universidade, mas dentro de
outros espaços que eu ocupo. Essa chave, quando essa chave virou, eu tive um
entendimento muito maior sobre… Não um entendimento, porque não acho
que é sobre entendimento, mas é sobre o que nos move. O que nos movimen-
ta? E pensar que é isso, ancestralidade é… Muitas vezes, quando a gente fala
de ancestralidade, é algo que parece que está lá, lá atrás, no passado, “saberes
ancestrais”, algo que vem de longe”. Não, a ancestralidade está presente no
aqui e no agora. A ancestralidade se constitui no presente. Ela se expressa no
presente. E se ela se expressa no presente, ela deve servir como uma condu-
tora do futuro, do que a gente vai construir para um futuro. Então, sem dúvi-
da, essa tua pergunta, com certeza a gente precisa, pra radicalizar o futuro, a
gente vai precisar pensar a ancestralidade. E a ancestralidade de forma atua-
lizada. A ancestralidade como aquilo que nos move no presente para construir
esses caminhos para o futuro.

Mário:
Indo por esse mesmo caminho, só para contribuir um pouco para a pergunta
também, eu vou por essa via e eu acho que pra radicalização é fundamental a
gente conseguir chegar em transformações em outros espaços, assim. Uma
radicalização que eu acho que é super importante pra gente começar a pensar
- aliás, já tem muita gente pensando, eu até vi uma conversa do Thiago com
você, Mari, vocês falando que uma companheira, professora, fala muito sobre
a questão do tempo, de passado, presente, que é uma questão que está sempre

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 183


em movimento, eu tenho uma perspectiva também de uma experiência com
uma maestra de uma nação indígena no México, eu fui pra um programa, e
ela me falou: “Mário, no dia que a gente conseguir quebrar a lógica ociden-
tal de tempo, a gente vai conseguir radicalizar”. Que é modificar, quando a
gente fala de futuro, a gente está falando de passado. E a gente modificar,
dentro do nosso ponto geográfico, quando a gente começar a quebrar a ideia
de que o futuro está na frente, aqui está o presente, e o passado está lá atrás,
quando a gente inverter essa lógica, contemplando que o passado está aqui na
frente, o futuro está aqui atrás, é o que a gente não vê, mas ele vibra, e essa
vibração atravessa a nossa existência, a gente faz o presente e consegue cons-
truir esse passado, que é como se fosse um tecido”. Então tudo o que a gente
faz tem consequência, tudo o que a gente faz… ele encara de frente, então o
passado está sempre aqui, construído, então quando a gente quebrar, radica-
lizar quebrando essa lógica de tempo, a gente vai conseguir alcançar e viver
essa afrotranstopia. Tentando resumir o ponto de vista, a gente vai conseguir
especular não só futuro, mas passado, especular presença, e pôr em prática,
realizar, quebrar lógicas. Acho que a radicalização está não em ser descolo-
nial, mas ser anticolonial. Como diz a Ana Lira, uma companheira, aliás, eu
tenho o privilégio, eu vou ser orientado por três pessoas incríveis nesse mes-
trado, que é Castiel Vitorino, Diane Lima e Ana Lira. E fora que eu vou ter ainda
companheiros, que eu não ando só, Thiago vai fazer um acompanhamento
dramatúrgico do processo. Então, Ana Lira fala que decolonialidade - que ela
também já escutou de outras companheiras maestras - é como se fosse molho
pra salada. Então não… Eu vou muito na ideia do anticolonial. Acho que é essa
radicalização, a gente tem que quebrar e trazer o caos, o caos é a distopia, a
distopia é o conflito de normas, a distopia é a gente, a partir dessa situação
caótica. Só é possível transformar a partir desse caos. A partir do conflito nor-
mativo. E aí, várias capas, conflito jurídico, conflito institucional… Essa radi-
calização. E aí a gente consegue vir com outra estética. Com outras práticas.
Com outros resultados. E o extrato disso é contra tsunami. [risos]

Thiago:
Aí vai, né? [risos] Eita! Nossa. Agora que está começando a ficar bom. O que
que eu ia falar, até me perdi. Mas eu acho que é, nossa, essa ideia de pensar

184 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


a realocação do tempo, ela também consegue não inverter, mas desfazer a
dimensão que nos coloca no mundo como a gente está agora. Pensar a ideia
de refundação, refundamento, reconstrução, também tem essa dimensão,
porque ela parte de uma imaginação. Tem uma pesquisadora de estéticas tra-
dicionais africanas, que é a Nathalia Grilo, ela lançou um texto agora, recen-
temente, em que fala sobre a ideia de imaginação radical negra, que é uma
ideia que o professor Robin Kelly já desenvolve há um tempo, mas que ela
atualiza, e tem uma das imagens que ela traz, que eu acho impressionante –
impressionante, assim, que a gente se reconhece, impressionante que a gente
muitas vezes não consegue traduzir na palavra, então quando encontra um
certo conjunto ali de uma frase, de uma expressão, o sentido vem. Quando ela
diz assim: a resposta negra sempre é criativa. Não quer dizer que isso com-
porte uma passividade ou isso comporte uma conformação. Pelo contrário.
Se, diante da violência sistemática de morte, uma resposta é criativa, é que
existe uma forte oposição a isso. E aí, quando mestre Nego Bispo fala sobre
contracolonialidade, que na própria academia é muito criticado, por dizerem
que não existe uma sustentação teórica sobre o termo - acho que na verdade,
desculpa aí, mas isso é medo de gente branca de não conseguir…

Mariana:
Não conseguir capturar. Não vão capturar.

Thiago:
…Exatamente, de não conseguir capturar. E de não conseguir ficar… como é
que a gente fala? Não conseguir ficar na carapuça. Porque a impressão que
eu tenho, também sobre essa ideia de decolonial, é que é uma carapuça,
como tu bem falou, Mari, de realocação, de continuidade de processos siste-
máticos. Como sempre foi feito com a dimensão da teoria, da racionalidade,
que é um pressuposto ocidental. Que não tem o corpo da prática, porque o
corpo está morto, porque não tem movimento, porque é estático. Quando a
gente vai pensar nessas cosmovisões, nesses conceitos, afrotranstopia, an-
cestralidade, de Exu, são movimentos, pensamento indígena, que realoca o
passado na frente, que a gente vê, são pensamentos corpóreos, pensamen-
tos que é corpo. E aí quando a gente fala de pensamento que é estagnado, de

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 185


pensamento que é morto, é o pensamento ocidental, que domina, para que
não se tenha uma continuidade do movimento. Mas a própria ideia já está
estancada, morta. A professora Maria Aparecida Silva Bento, desde a psico-
logia, ela fala na perspectiva do trauma colonial, mas que parte justamente
da fragilidade do medo branco. O medo branco diante da produção de vida,
diante daquilo que a religião afro vai dizer que é o axé, que é o princípio vital,
e todo o movimento. Esse medo que justifica a colonização, que justifica o
extrativismo, que justifica a midiatização da diversidade, que justifica a dita
“ampliação da diversidade”, operativa nos conceitos a partir de corpos do-
centes, é a questão de uma estagnação que tenta se realocar e se remutar em
estratégias outras. Então, eu fico pensando muito sobre essa ideia de… pen-
sar esses nomes, essa inventividade, que a gente tem a capacidade, a inteli-
gência - que também é tecnologia - de reatualizar, e, por isso, dizer, como a
pesquisadora de estéticas africanas Nathalia Grilo fala, que a resposta negra
sempre é criativa. Você não me captura. “Lancei a braba, lancei a nova, lan-
cei a quente”, vai lá a branquitude e [onomatopeia] captura, “xun”, desvio,
fujo, descapturo, crio outra. Entende? Parece um pouco pacman, você vai lá
e vem a coisa [imita o bonequinho do pacman], então me parece que é um
pouco esse movimento de ser um constante manancial criativo, que é o que
vem fazendo a gente inclusive refundar e atualizar isso que a gente entende
como ancestralidade, disso que a gente entende por algo que nos funda e não
está lá no lugar da dimensão artística, sobretudo, hegemônica, na perspec-
tiva do museu, na perspectiva da biblioteca, na perspectiva do repositório,
do depósito. Porque a memória é movimento. Quando a gente vê as perfor-
matividades pretas que refundam e tensionam, confundem a própria cate-
goria onde as coisas se encaixaram, “Mas isso é teatro, isso é dança, isso é
o quê, afinal de contas?” Não é nada disso, ou é tudo isso ao mesmo tempo.
A prática desenvolvida não cabe na categorização que o ocidente inventa.
Então essa inventividade é o que vocês dois estão aqui agora trazendo, um
torrencial de elementos que acho que configura isso que a gente chama tam-
bém de imaginação radical. É algo que é o azeite, sabe? O azeite [imita algo
escorregadio], está untado, sabe? É o dendê, a coisa que não se consegue
pegar. Desconfio que é por aí, sabe? Que a gente está pensando, imaginando,
confabulando. Me empolguei. [risos] Não sei se vocês querem fazer consi-

186 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


derações finais, pra gente ir encaminhando, porque o nosso tempo de fato
agora está encerrando.

Mariana:
Eu posso começar. Começar a terminar. Então, mais uma vez, muito obrigada,
Thiago, meu amigo, meu parceiro, meu amor, gosto muito de trocar contigo,
é bem aquilo que tu falou, assim, sempre tem algo novo, sempre tem alguma
coisinha ali, por mais que a gente tenha passado o ano inteiro praticamen-
te, dialogando, trocando sobre essas questões que a gente trouxe aqui hoje,
sempre vai ter algo que vai se atualizar. Sempre vai ter algum elemento novo
de troca, e eu acho que tivemos vários elementos, mas acho que um deles
foi muito especial, que é a troca com o Mário, eu ainda estou mexida com a
afrotranstopia e… cara, eu achei fantástico e já virei uma pessoa que vai fi-
car pensando junto, acompanhando tudo o que tu for produzindo. Acho que a
gente também precisa estar de fato bebendo aí desses saberes orgânicos que
emergem a partir dessa criatividade, dessa inventividade toda suscitada por
artistas como você, como o Mário, como o Thiago, como tantos outros, que
me tiram da cadeira, “o que que isso quer dizer, onde é que ele vai chegar
com isso?” Então agradeço demais, imensamente, pela presença do pessoal
que ficou nessa tarde aí com a gente, pensando junto, me coloco à disposição
para outras atividades, outros eventos, outras trocas, acho que esse texto que
vai sair aí, acho que a gente precisa pensar, realmente, qual o formato desse
texto, sobre essa mesa, que foi tão rica, enfim, e desejar um feliz caos pra todo
mundo [risos] que 2020 seja mais caótico ainda, que a gente consiga vencer
mais uma vez, que a gente ainda consiga dançar, sentir o grave. Hoje eu vou
tocar numa festa, eu estou bem ansiosa, mas é aquela ansiedade boa de sentir,
é isso, foi dia de trocas intensas, encontros intensos. Obrigada, obrigada, pes-
soal do PPG, obrigada Jackson, Jane, pessoal que está nos bastidores, dando
um suporte, e é isso aí, muito prazer, Mário, fiquei me sentindo muito, muito
bem mesmo. Meu corpo está flutuando ainda em meio a tanta troca aí, essa
coisa massa que a gente pôde estar construindo nessa tarde. Valeu.

Thiago:
Obrigado, Mari, querida.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 187


Mário:
Ah, que ótimo! Gente, tem que ter continuidade, eu quero acompanhar tam-
bém, ter essas ideias com a Mari, que prazer te conhecer, com é bom esses en-
contros. Eu estava aqui guardado, hibernando aqui, mas Thiago falou: “Bora,
venha”, é disso que a gente precisa, desses encontros. Eu sinto falta desses
encontros, de encontrar as minhas, os meus, pra gente construir essa estra-
tégia juntos, de radicalizar, de pôr em prática a radicalização. Porque eu estou
mesmo cansado da gente… Eu falo isso sempre com o Thiago, é uma repeti-
ção, esse discurso circular, mas eu estou cansado de ficar correndo atrás da
luz no fim do túnel, que nunca chega. Ou a gente radicaliza ou a gente vai ficar
eternamente correndo atrás dessa luz no fim do túnel que nunca chega. O que
eu quero fazer agora é explodir o túnel, porque eu preciso de luz agora. Então
é isso que a gente tem que fazer juntos, e é importante a gente pensar na con-
tinuidade, para construir essas estratégias de radicalizar, porque a gente não
consegue radicalizar sozinho, a gente precisa dessa comunidade construída
para isso, desenhar essas estratégias, e entrar nesse processo de treinamento,
a gente precisa treinar. É mais esse reapropriar. O treinamento vem de uma
base militar, de uma base de guerrilha, mas a gente está em guerra, e a gente
se reapropria dessa palavra e reutiliza, ressignifica, e a gente tem que colocar
em ação. Então, eu fico muito feliz de poder intersectar essas ideias, porque
isso é o começo desse espaço de treinamento, porque a gente tem muito o que
fazer. Quando eu falo desse tsunami eu falo desse sistema do que PACACO-
BI, porque a gente tem que dar nome às coisas, agora, ainda mais entrando
no mestrado, então tem que dar nome, eu chamo esse grande vírus, que eu
venho falando já há um tempo, antes da pandemia, que é sindêmico, que é o
PACACOBI:Patriarcado, Capitalismo, Colonialismo, dentro de uma estrutura
Binária. Esse vírus é que ativa esse tsunami, que pra mim é uma grande me-
táfora do que a gente vive, um tsunami gigante, que vem, que devasta, que
vai destruindo. E eu descobri que a única forma de você desativar, desarti-
cular um tsunami é através de uma ressonância magnética sonora, acústica.
Só que não tem como construir uma máquina pra isso, tem a teoria, mas não
dá pra colocar em prática porque não tem recurso tecnológico ocidental pra
construir essa máquina. E pra mim esse contra-tsunami, essa ressonância de
onda magnética só é possível através dessa construção de comunidade. É a

188 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


nossa voz, a gente em comunidade consegue fazer essa ressonância acústica
magnética pra dissolver esse tsunami. Então é isso, obrigado pela oportuni-
dade, Thiago. Obrigado por me apresentar a Mari, pra gente poder construir
essa sonoridade juntos.

Thiago:
Querido Mário, termina lançando outra, já [risos] fazer outra mesa. Mário,
Mari, mais uma vez agradeço a generosidade, agradeço, como sempre, a ge-
nerosidade de compartilhar saberes e de abrir o corpo pra gente construir essa
comunidade que está desfazendo os mapas ocidentais, e deslocando, pelo
globo, realocando nossos corpos, nossas corpas, nesses espaços, nessa dis-
puta de poder. Então mais uma vez agradeço.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 189


SOBRE OS AUTORES

Thiago Pirajira é ator, encenador, professor, curador e articulador cultural.


Bacharel em Teatro, mestre em Educação e doutorando em Artes Cênicas
(UFRGS). Professor substituto no Departamento de Arte Dramática do Insti-
tuto de Artes da UFRGS. Artista co-fundador do grupo Pretagô e do coletivo
teatral carnavalesco Bloco da Laje. Ator e produtor no grupo Usina do Traba-
lho do Ator. Idealizador e curador da CURA - Mostra de Artes Cênicas Negras
de Porto Alegre

Mariana Gonçalves é socióloga, mestra e doutoranda em Psicologia Social


e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Dedica-se
à pesquisa sobre a formação de Territórios Negros na contemporaneidade,
discutindo os processos de re-existência presentes nas intervenções artísti-
cas e culturais protagonizadas por corpos negros no centro de Porto Alegre.
DJ e produtora cultural nos Coletivos Turmalina e Arruaça, núcleos da cena
de música eletrônica underground de Porto Alegre.

Mário Lopes é coreógrafo e articulador/ gestor cultural. Mestrando em Artes


Performativas pela DAS Theatre / Amsterdam University of the Arts. Coreó-
grafo integrante do coletivo DMV22. Diretor geral e co-curador da Plattform
PLUS / Munique. Sócio executivo da HumaVida Produções / São Paulo. Arti-
culador e curador da VeiculoSUR.

190 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


Para acessar o conteúdo deste capítulo,
aponte a câmera para QR Code ou clique
no link: https://youtu.be/GuoqWRNFv7o
C apí t u lo 9

PESQUISA EM
ARTES CÊNICAS
Felipe Cremonini
Thainan Rocha
Thaini Menegazzo
Priscila da Rosa
SOBRE O TEATRO
EXPANDIDO,
AUDIOVISUAL
E TEATRALIDADES
RESUMO

NAS MANIFESTAÇÕES
O texto aborda alguns fragmentos da pes-
quisa em andamento do discente de mes-

DE TEATRO DIGITAL trado em Artes Cênicas Felipe Cremoni-

EM TEMPOS DE
ni de Leon, sob orientação da Prof. Dra.

PANDEMIA
Marta Isaacsson, com o título de “A cena
teatral em contexto remoto: stalkeando
teatralidades no ciberespaço”. A escrita
Felipe Cremonini de Leon trata acerca da situação de cenas de Te-
Marta Isaacsson de Souza e Silva atro Digital realizadas durante o período
de pandemia de COVID-19 no Brasil, no
ano de 2020, pela perspectiva do teatro
expandido. Ainda, o texto busca traçar
paralelos com a arte cinematográfica e
cinema expandido, dada a aproximação
com a linguagem audiovisual de algumas
manifestações de teatros digitais. A pes-
quisa propõe uma investigação de caráter
teórico-analítico e empírico, buscando
reconhecer elementos de teatralidades
em criações concebidas para o espaço da
rede de informação e refletir sobre as di-
versas formas de produzir e manifestar
teatro, além de documentar algumas das
estratégias dos artistas de teatro no en-
frentamento à pandemia de COVID-19.

Palavras-chave: poéticas tecnológicas,


teatro digital, cinema expandido, teatro
expandido, teatralidades

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 193


A arte cinematográfica, em como do cinema e das artes cênicas,
seu surgimento, através de recursos cunham expressões com vista a de-
da linguagem audiovisual, possui nominar o processo de transbor-
uma relação íntima de experimen- damento dos limites e dos modelos
talismos junto à cena teatral, desde de base de cada uma das disciplinas
os aparelhos de projeção, como a artísticas, processo promotor de
lanterna mágica e os espetáculos de hibridismos entre as artes. É nesse
fantasmagoria, abordados no texto contexto teórico que as terminolo-
“Pré-Cinemas e Desejos de Teatra- gias expandidas surgem, de forma
lidade” (OLIVEIRA; BIASUZ; ISAA- que costuma-se atribuir sua origem
CSSON, 2016), até aspectos configu- ao que Rosalind Krauss denominou
racionais da chamada forma cinema, como “campo ampliado” em seu
termo que Parente (2009) utiliza texto referencial, em 1979:
para definir o formato tradicional
A ampliação do campo que
de exibição fílmica, que assemelha
caracteriza este território do
o prédio teatral às salas de projeção pós-modernismo possui dois
cinematográfica. Com a crise provo- aspectos já implícitos (...). Um
deles diz respeito à prática
cada pela pandemia de Covid-19, as
dos próprios artistas; o outro,
delimitações entre estas duas ma- à questão do meio de expres-
nifestações artísticas se tensionam são. Em ambos, as ligações
das condições do modernismo
novamente e empurram a cena tea-
sofreram uma ruptura logica-
tral para o ciberespaço, provocando mente determinada. (KRAUS,
uma verdadeira hibridização de lin- 2018, p. 136)

guagens e formas. O presente texto


pretende relacionar o acontecimen- Em seu texto, Krauss pro-

to de teatro digital, ocorrido durante põe uma concepção de escultura que

o período de pandemia, articulando difere da categorização determina-

as noções expandidas do Teatro e da até então, conferindo noções de

do Cinema; e discutir as manifesta- forma e espaço que, de forma lite-

ções de teatralidades no campo que ral, ampliam o campo dessa moda-

é, majoritariamente, habitado pela lidade artística. Porém, as formas

linguagem audiovisual. expandidas de arte vinham sendo

Constata-se que diferen- pensadas antes da publicação origi-

tes teóricos, tanto das artes visuais nal de Krauss. Podemos citar como

194 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


exemplo, e também adentrando em tro e do cinema, constata-se que o
nosso tema, o conceito de cinema qualificativo, embora similar, de-
expandido, originalmente cunhado signa fenômenos distintos. Enquan-
pelo crítico estadunidense Gene You- to no cinema, em geral, entende-se
ngblood, em 1970, que trata, em di- como expandida a obra que sai da
versos aspectos, sobre a saída da sala sala convencional e manifesta-se
de projeção convencional, abordan- em instalações e espaços urbanos,
do “as instalações que reinventam a a expansão do teatro se faz na rela-
sala de cinema em outros espaços e as ção com o real, no borramento das
instalações que radicalizam proces- fronteiras que até então separavam
sos de hibridização entre diferentes o ato teatral da vida. Um processo
mídias” (PARENTE, 2009, p. 41). Já que teve início, conforme apontam
no teatro, são tratados como “cam- Fernandes e Isaacsson, a partir dos
pos expandidos” os processos que anos 1960, “quando artistas vindos
preferencialmente das artes visuais
proliferam experiências híbri-
e da música, como Alan Kaprow, Jo-
das, descentradas, cujo traço
dominante é furtar-se a pa- seph Beuys ou John Cage, criam gê-
drões de criação e leitura neros teatrais híbridos como o ha-
convencionais. Seja quando se
ppening e a performance.” (2016, p.
expande para além dos limites
do que se considera uma ma- i). Assim, enquanto o cinema realiza
nifestação teatral, seja quando sua expansão no encontro de outros
invade a vida e dela se apropria
lugares para seu acontecimento, o
por mecanismos de anexação
do real, parece evidente que o teatro, que traz na sua história o uso
campo de ação do teatro de hoje de diferentes espaços, inclusive a
é amplo e informe. (FERNAN-
DES; ISAACSSON, 2016, p. i) rua, expande-se em termos de lin-
guagem, construindo uma relação

Trata-se, no campo do tea- de ambiguidade com a vida real.

tro, portanto, de relações de hibri- Mesmo em seu formato

dização das linguagens, conside- ampliado, o teatro é compreendi-

rando-se aspectos dos processos de do como um acontecimento em que

criação. atores/performers e espectadores

Na análise do emprego do compartilham o mesmo espaço-

adjetivo expandido ou ampliado, -tempo. É esta a relação de convívio

pelos teóricos dos campos do tea- que, por exemplo, Walter Benjamin

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 195


utiliza para traçar diferenças entre (DUBATTI, 2020, p. 262). Porém,
o teatro e o cinema. Para o filósofo Dubatti defende as transmissões de
alemão, o cinema se distingue do te- teatro remoto como uma possibili-
atro, entre outros aspectos, por “co- dade laboral:
locar a aparelhagem no lugar do pú-
O teatro neotecnológico, na sua
blico” (BENJAMIN, 2020, p. 75), ou
proposta liminar (cruzamento,
seja, se a relação de troca no mesmo ponte, zona compartilhada en-
espaço-tempo é suprimida, a per- tre experiência convivial e tec-
novivial), não pretende subs-
formance deixaria de ser do campo
tituir nem superar o teatro de
do teatro. No entanto, em uma re- presença física; mas, em tem-
alidade de pandemia e de convívio pos de necessidade, canaliza a
expressão dos artistas e garan-
restrito, tais noções se veem em cri-
te uma oportunidade laboral.
se e proporcionam experimentações (ibidem, p. 264)
de novos espaços e relações entre a
obra e o espectador, repensando as Apesar de concordar com a
formas basilares do fazer cênico, incapacidade de substituir a expe-
sem uma intenção de substituí-las, riência de convívio físico, e na não-
mas de propriamente expandi-las, -superação de uma forma de tea-
como no caso do Teatro Digital. tro que é basilar, acreditamos nas
Como, então, promover o possibilidades de expansão do fazer
convívio, tão caro para as artes cê- cênico e nas formas plurais de se
nicas, de uma forma remota? O pes- produzir teatro para além de experi-
quisador argentino Jorge Dubatti ências que são mero fruto de neces-
cunhou o termo tecnovívio para tra- sidade imposta pela pandemia.
tar das relações de troca mediadas Expandir as noções de tea-
pelas formas eletrônicas, e refletiu tro talvez implique, em certa medida,
sobre os espetáculos de teatro re- expandir as noções de convívio. Pa-
moto, questionando a pertinência vis (2013) problematiza a relação es-
do emprego do termo teatro na de- sencialista do teatro com o convívio/
signação dessa nova prática. Assim, presença do ator no espaço de cena,
diz o pesquisador argentino: “Por ao refletir sobre a ideia de espetáculo
que perseverar no termo ancestral ao vivo, questionando se a presença
‘teatro’, e não recorrer a outros mais pressupõe necessariamente estar face
próximos, como ‘artes cênicas’?” à figura carnal do ator, e como seria

196 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


essa relação com uma transmissão em Da mesma maneira que é
live do ator em outro canto do mun- possível pensar nas variações des-
do, em que ele vai chamar de ato da ta forma de cinema, sem necessa-
presença: “o ator pode, assim, muito riamente restringi-las como ex-
bem estar ausente do espaço cênico, e perimentalismos que ajudam a
estar absolutamente presente em um reafirmar sua forma original, acre-
lugar totalmente distinto.” (p. 175- ditamos que o mesmo movimento
176). Entendemos que o que o autor pode se dar no teatro. Afinal, ao in-
propõe é um olhar para o processo da vés de refletir somente sobre o que
obra teatral, não restrito ao convívio/ perdemos com o movimento do te-
presença como um definidor de seu atro para o ciberespaço, por que não
pertencimento à ordem do teatro de olhamos para o que carregamos da
forma convencional. forma original para as suas expan-
Aliás, pensando na arte em sões? E mais, o que é possível pro-
sua forma convencional, e relacio- duzir e realizar neste espaço, que o
nando novamente com as discussões espaço físico não permite?
sobre cinema, as noções chamadas Para citar um exemplo, o
de forma cinema, que caracterizam o espetáculo autobiográfico de Marat
cinema convencional, também vêm Descartes, Peça, com direção de Ja-
sendo revisitadas. Segundo Parente: naína Leite, começou a ser conce-
bido pensando na cena presencial,
A própria “forma cinema”, ali-
e tomou forma durante o contexto
ás, é uma idealização. Deve-se
dizer que nem sempre há sala; de pandemia. A obra mescla víde-
que a sala nem sempre é escu- os pré-gravados com sequências ao
ra; que o projetor nem sem-
vivo e explora as potencialidades das
pre está escondido; que o filme
nem sempre se projeta (...); chamadas por vídeo no ciberespaço,
e que este nem sempre conta gerando uma relação de estranha-
uma história (...). A história do
mento para quem assiste - que não
cinema tende a recalcar os pe-
quenos e grandes desvios pro- sabe quais arquivos são gravados e
duzidos nesse modelo, como quais não são - e manejando a par-
se ele se constituísse apenas do
que quer que tenha contribuído tir daí as suas teatralidades. Neste
para o seu desenvolvimento e o exemplo, verifica-se uma potência
seu aperfeiçoamento. (PAREN-
de teatralidade, que se manifesta na
TE, 2009, p.25)
intenção de trabalhar com o imagi-

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 197


nário do público, quando este se vê Desta maneira, interessa que
tentando compreender de que forma a teatralidade não sirva de forma ex-
aquele espetáculo é ao mesmo tem- clusiva ao teatro, mas sim que se ma-
po síncrono e gravado, na narrativa nifeste em diferentes níveis, nas mais
extracotidiana da cena, e na própria plurais formas de criação cênica.
utilização do meio digital para criar Ao buscar caracterizar a te-
as situações cênicas, entre outros atralidade, Féral aponta a “emer-
atributos que caracterizam Peça gência da teatralidade em outros
como uma obra de teatro. espaços, que não o teatro” (FÉRAL,
Aliás, reconhecer as teatra- 2015, p. 82), e também define suas
lidades nestas formas diversas de condições:
produzir teatro seja, talvez, parte
A condição de teatralidade se-
do caminho para identificar as suas
ria, portanto, a identificação
expansões. Assim como o cinema (quando é produzida pelo outro)
carrega em sua terminologia expan- ou a criação (quando o sujeito a
projeta sobre as coisas) de um
dida alguns dos pressupostos da for-
outro espaço, espaço diferente
ma cinema, talvez o teatro carregue do cotidiano, criado pelo olhar
consigo sua potência de teatralidade. do espectador que se mantém
fora dele. (ibidem, p. 86)
Neste sentido, Fernandes também
sublinha as teatralidades como uma
Dessa forma, a manifestação
forma possível de pensar o teatro
de teatralidade não seria de caráter
contemporâneo:
exclusivo do teatro, pelo contrário,
O conceito de teatralidade tem “o teatro só seria possível porque a
se revelado um instrumento teatralidade existe e o teatro a con-
eficaz de operação teórica do
voca” (ibidem, p. 89-90). Ou seja,
teatro contemporâneo, espe-
cialmente por levar em conta para Féral, a teatralidade está na
a proliferação de discursos de criação desse “outro espaço”, pro-
caráter eminentemente cêni-
co que manejam, em sua pro- vocado pelo performer e efetivado
dução, e em diferentes graus, pelo olhar do espectador e, em sua
múltiplos enunciadores do
definição, já expande suas frontei-
discurso teatral. (FERNANDES,
2013, p. 113) ras, podendo ser evocada em terraço
de café ou vagões de trem, e que em
“definição mais ampla, a teatrali-

198 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


dade pertence a todos.” (ibidem, p. portanto, suas formas expandidas
87-89). Portanto, com a teatrali- como variações possíveis dentro de
dade sendo um fenômeno possível um vasto campo de produção ar-
de existir de forma independente tística, seja como os panoramas e
da prática cênica e do espaço tea- instalações no cinema, seja como as
tral convencional, sendo definidora mídias e formas remotas no teatro.
e qualificadora do teatro, talvez seja O que vale é o convite para explorar
essa a estrutura da “forma teatro” potenciais e formas, estabelecendo
(para relacionar com o cinema) que diálogos das artes com todos os re-
as artes da cena carregam consigo cursos que forem passíveis de utili-
para o ciberespaço, visualizando, zar para manifestar-se.

Felipe Cremonini de Leon


Mestrando em Artes Cênicas na UFRGS. Licenciado em Teatro pela UFPel.
Artista, pesquisador e produtor cultural. Bolsista CAPES.

Marta Isaacsson de Souza e Silva


Profa. Dra. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas e do Departamen-
to de Arte Dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista
Produtividade de Pesquisa 1B/CNPq. Representante da área de Artes Cênicas
no Comitê de Artes do CNPq 2019-2022.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 199


REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na era de sua Reprodutibilidade Técnica. Porto Ale-
gre: L&PM, 2019.

DUBATTI, Jorge. Experiência Teatral, Experiência Tecnovivial: nem Identidade, nem


Campeonato, nem Superação Evolucionista, nem Destruição, nem Vínculos Simétri-
cos. Tradução de Victor Lavarda de Freitas. Revista Rebento, n. 14, p. 254-269, jan./
jun./2021. Disponível em:<http://www.periodicos.ia.unesp.br/index.php/rebento/arti-
cle/view/609> Acesso em: 25 set. 2021.

FÉRAL, Josette. Além dos Limites: Teoria e Prática do Teatro. São Paulo: Perspectiva,
2015.

FERNANDES, Sílvia. Teatralidades Contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2013.

FERNANDES, Silvia; ISAACSSON, Marta. Os Campos Expandidos do Teatro. Art Resear-


ch Journal, v. 3, n. 1, p. i-vii, jan./jun. 2016. Disponível em: <https://periodicos.ufrn.br/
artresearchjournal/article/view/9033> acesso em 01. out. 2021.

KRAUSS, Rosalind. A Escultura em Campo Ampliado. In: Gávea 1 (1984), pp 87-93; repr.
Arte & Ensaios 15:17, Rio de Janeiro: EBA, UFRJ, 2008, p 128-137. Disponível em:<ht-
tps://monoskop.org/images/b/bc/Krauss_Rosalind_1979_2008_A_escultura_no_
campo_ampliado.pdf> , acesso em 25 set. 2021.

LEITE, Janaína; DESCARTES, Marat. A Peça. Brasil, 2020

OLIVEIRA, F. A.; BIASUZ, M. C. V.; SOUZA E SILVA, M. I. de. Pré-cinema e desejos de te-
atralidade. PÓS: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes da EBA/UFMG, [S.l.],
p. 24–34, 2016. Disponível em: <https://periodicos.ufmg.br/index.php/revistapos/ar-
ticle/view/15735> Acesso em: 25 de set. 2021.

PARENTE, André. A forma cinema: variações e rupturas. In: MACIEL, Katia. Transcine-
mas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2009.

PAVIS, Patrice. A Encenação Contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 2013.


ESTÉTICA DO
(IM)POSSÍVEL:
a deficiência como potência
na criação cênica

Autor(a): Priscila Silva da Rosa


Orientadora: Drª. Marta Isaacsson
Souza e Silva
Co-orientadora: Drª. Marcia Berselli

Vivemos em um contexto social que visa


à economia de eficiência que susten-
ta “a ideologia de um corpo virtuoso”
(TEIXEIRA, 2016, p. 81). Diante desse
cenário virtuosístico, em especial no
teatro, o que pode o corpo de um artis-
ta deficiente? Partindo do princípio de
que esse corpo vive um “vazio físico”
(TEXEIRA, 2016, p. 81) e que “a falta” é
parte dele, o corpo do artista deficiente,
tais quais outros corpos, quer, ao atuar,
se comunicar por meio de sua presença.
Logo, é possível que haja um processo
de desestabilização da percepção da au-
diência e de seus fazedores.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 201


“O corpo aqui atua como ve- as estratégias encontradas pelas ar-
tor de poder” (BUTLER, 2018, p. 36) tistas em suas trajetórias na busca
capaz de comunicar e de fazer de sua de visibilidade artística? A pesqui-
vulnerabilidade mobilidade de resis- sa tem, como objetivos específicos,
tência. Acredito que as transforma- problematizar a presença de corpos
ções corporais pelas quais passei me deficientes nas artes da cena, reco-
fazem perceber que existem formas nhecer e localizar a deficiência como
variadas de expressão, bem como um elemento e investigar os modos
procedimentos de criação e compo- de interação entre o corpo da artista
sição, e que os parâmetros virtuo- com deficiência e os demais elemen-
sísticos (treinamentos de alta per- tos da composição cênica. Para tanto,
formance, com a presença de saltos e aproximei-me da trajetória artística
acrobacias, por exemplo), aos quais da artista multidisciplinar escocesa
fui exposta e me expus durante a Claire Cunningham e busco analisar
minha trajetória acadêmica, não são os trechos do espetáculo The Way You
um ponto de partida, e sim mais uma Look (at me) Tonight (2016).
forma de trabalho.
Essa é uma investigação de O fazer artístico como um “ato de
mestrado finalizada em 2022, que rebeldia”: um breve relato
nasceu de uma experiência pesso- da trajetória de Claire Cunningham
al da pesquisadora, de redescoberta
de suas potências corporais. Ela tem A coreógrafa Claire Cunnin-
como questão principal investigar: gham1 nasceu em 1977 em East Ayr-
como pode o artista transformar sua shire, na Escócia. A artista nasceu
deficiência física em potência? com Artrogripose 2, que causa rigidez
Ademais, são destacadas ou- nas articulações e atrofiamento dos
tras questões em complemento a esta músculos. “Quando ela tinha dois
questão central, tais como: qual a po- anos, os médicos adicionaram um
tência política da forma de agencia- diagnóstico de osteoporose 3 , uma
mento da deficiência em cena? Quais condição cujo impacto em seu cor-

1 As principais produções de Cunningham: Mobile (2007), Evolution (2008), 12 (2012), Ménage á Trois (2014), Guide
Gods (2014), The Way You look ( at me) Tonight (2016), Beyond the Breakwater (2017), Thank Very Much (2019), Chore-
ography of The Care (2019).
2 Condição genética.
3 Osteoporose é uma condição metabólica que se caracteriza pela diminuição progressiva da densidade óssea e au-
mento do risco de fraturas

202 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


po foi acelerado quando ela atingiu ginou seu corpo como possível nas
a puberdade” (WILLIAMS, 2014, p. artes da cena, independentemente
220). Aos 14 anos, a coreógrafa pas- de quais fossem essas áreas. Desde
sou a utilizar as muletas de forma muito jovem, sofreu uma das mais
definitiva. Esses atravessamentos cruéis manifestações de preconcei-
clínicos fizeram e fazem parte da to, quando seu professor de canto
carreira artística dela e foram pon- afirmou que a música não compor-
tos determinantes. tava seu corpo. Nunca poderia can-
Ainda muito jovem, viu-se tar, conforme ela mesma relata:
em meios a médicos, a fim de desco-
Quando eu era jovem sabia que
brir-se e colocar-se dentro de uma
queria cantar, era como uma
sociedade que invisibiliza corpos fora paixão para mim. Escolhi estudar
de um padrão normativo (branco, música também por conta da ati-
tude de um professor que disse
forte, jovem e saudável). “Eu cresci
“você deveria estudar arte e não
com o tipo de programação da profis- música, porque lá você poderia
são médica para você no que diz res- ficar sentada”. (CUNNINGHAM,
tradução nossa. Entrevista con-
peito ao que seu corpo não faz. Você
cedida à pesquisadora, 06 de no-
cresce condicionado com isso e é uma vembro de 2020).
atmosfera bastante negativa a que se
sujeitar.” (WILLIAMS, 2014, p. 220). Cunningham teve a sua
Entendo que não há como a vivência escolha profissional alimentada
da deficiência não ecoar em seu fazer por um “ato de rebeldia” (CUN-
artístico de forma político-social. NINGHAM; 2020) e, contrariando,
A experiência vivida com a esse Imaginário Social (LE BRETON,
deficiência pode ser vista gradual- 2006) de um corpo e o “cenário” por
mente assumindo seu lugar como ele ditado, decidiu então lutar contra
um papel importante em suas cria- as expectativas da área musical.
ções artísticas. Claire pode ser en-
tendida como uma pessoa criativa A Sistematização da Técnica Claire
que, principalmente no início de sua Cunningham e o espetáculo TWYT
trajetória, buscava a sua forma de (2016)
expressão.
Mesmo com todo acesso à A sistematização de sua
educação e à saúde, ela nunca ima- técnica tem início no seu primei-

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 203


ro contato com a dança, através do pos e o conceito de Queer Animancy.
coreógrafo britânico Jess Curtis, e A obra apresenta a agilidade
4
técnica
consolidou-se nos anos 2000. Com e as capacidades daqueles cujas vidas
financiamento federal (Bolsa Cre- são frequentemente consideradas
ative Scotland), Claire fez um es- lamentáveis e impotentes . A híbrida
tágio durante seis semanas com o fusão do ser humano com a máqui-
mestre das muletas Bill Shannon, na, na teoria cyborg da artista Donna
nos EUA, a fim de investigar no- Haraway, ainda “desafia a suposição
vas possibilidades de movimento, a dominante de que os corpos são po-
partir da muleta. tência de capacidade perfeitamente
Na residência, Claire pôde delimitados” (BELSER, 2016, p. 16)
experimentar o uso da muleta de e que o corpo dito sadio pode passar
maneira criativa, bem como seus por transformações, por genética,
possíveis desdobramentos criativos. velhice, ou condições crônicas, pois
Os movimentos da técnica de Shan- somos mutáveis.
non influenciaram-na diretamente A performer não usa as mu-
e, a partir desse experimento e da letas como um objeto inanimado,
apropriação da dança como um fa- mas sim como um5 objeto que ocupa
zer, Claire conseguiu sistematizar espaço íntimo em sua vida. Ela busca
movimentos próprios, que são par- não apagar a sua vivência e realidade
tes do cerne de sua técnica, tendo com a deficiência (BELSER, 2016),
como princípio o respeito, a corpo- mas sim torna a sua relação com as
reidade, a individualidade do baila- muletas como um provedor de ines-
rino e movimentos que visam a uma perados movimentos e diferentes
repetição sem dor. olhares acerca da cena.
Em uma obra sonora binau- Ao longo do tempo, o seu
ral intitulada Quanimancy (2019), contato com as muletas passou por
criada em parceria com a pesqui- uma grande modificação, pois, an-
sadora Julia Watts Belser, a artista teriormente, o objeto estabelecia
reflete sua íntima relação com suas a conexão com o seu corpo, dife-
muletas, o “queering” de seus cor- rentemente desse momento de sua
4 But where posthumanist philosophers have largely aimed to dethrone the sovereignty of the human, disability ac-
tivists use alternative animacies to raise up a devalued and discounted portion of humanity: to emphasize the agency
and capacity of those whose lives are often cast as pitiable and powerless (BELSER, 2016, p. 5).
5 ...and is an embodiment of the meetings of many minds, bodies and knowledges shared over year off collaboration
and attending...( VALERO, 2016, p. 209).

204 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


carreira em que Claire Cunningham como as pessoas a olham. A coreó-
faz de sua muleta uma maneira de grafa, assim como a próxima artista
se conectar com o espectador, tor- a ser analisada, sinaliza a importân-
nando-se uma lente pela qual ela cia de o sujeito com deficiência ter,
vê o mundo e o mundo a vê. E a per- ele mesmo, um outro olhar sobre seu
formance TWYT (2016) nasceu após corpo.
uma década de experimentação com O público é recebido nes-
o Objeto Técnico, ou seja, as mu- se espaço com aparência caótica e, à
letas. Esse, marca o reencontro de medida que dão início ao trabalho, os
Claire Cunningham com seu mentor performers se aproximam de uma das
Jess Curtis, após uma década do pri- paredes onde estão projetadas ima-
meiro trabalho juntos. gens de gráficos semelhantes a um
No dueto de dança TWYT, a monitor de sinais vitais, encontrados
coreógrafa Claire Cunningham abor- em quartos de hospital. A aparelha-
da um pouco da sua vivência com gem técnica encontra-se à mostra,
deficiência e a progressão de sua equipamentos como mesa de som e
pesquisa empírica com as muletas. de filmagem, o urdimento, projeto-
Nele, a artista convida o público a res, tripés com caixas de som e com
conhecer um pouco de seu universo câmera de vídeo, a fim, de trazer um
enquanto mulher deficiente, cria- distanciamento e reforçar o discurso
dora da dança e nos apresenta uma de que o público está no teatro.
criação diversa, estruturada em A criação de atmosfera e a
duas técnicas: Contato Improvisação modificação do tempo, para a exe-
(PAXTON, 1972), e a Técnica Claire cução de movimentos que parecem
Cunningham. rápidos, é algo que o público só per-
Ao apresentar uma bailarina cebe no decorrer da cena. Os ele-
dançando com muletas e com uma mentos como o som em formato de
base técnica não estruturada no bal- ‘PI’ e a imagem animada projetadas
let, o dueto rompe com o que público marcam o ritmo dos acontecimen-
está acostumado a ver em cena com tos espaciais. Através desse efeito,
a dança, corpos fortes e virtuosos. a artista busca realocar a perspecti-
Segundo a artista, o questionamento va/percepção da audiência, de modo
que moveu a criação dessa perfor- a inseri-los no aqui e agora desse
mance com Jess Curtis foi a maneira acontecimento.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 205


Ao longo do espetáculo, são criadas com o “pi”, entre outros) são artifí-
pequenas intervenções de movimen- cios que estão à disposição da artista
to entre os performers, tais como: para a construção do diálogo com o
direções de movimento, espaço no público. Entendo que, por exemplo,
palco e descrições de suas ações em a criação da atmosfera e a modifica-
cena. Em dados momentos, o espec- ção do ritmo do espaço não seriam as
tador é convidado a experimentar al- mesmas sem o recurso do som e que
gumas das convenções criadas pelos elas são formas de chegar a objetivos
performers. Os espectadores, em es- cênicos de maneira variada. Ao findar
pecial os que estão no nicho no meio a análise, é perceptível que há uma
do espaço cênico, podem desfrutar preocupação da coreógrafa escocesa
da performance ativamente, experi- com o conteúdo poético-político e
mentando pequenos movimentos no de limpeza do material que chega até
local onde estão sentados. seu público, no que diz respeito à te-
Concluo que os elementos mática da deficiência e à exposição de
técnicos aqui analisados (luz, o som corpos dissidentes na cena.

Autor(a): Priscila Silva da Rosa


Pesquisadora de Mestrado com bolsa CAPES no PPGAC/UFRGS, Bacharela
em Interpretação pelo Curso de Artes Cênicas pela Universidade Federal de
Santa Maria, pesquisadora, produtora , diretora e atriz def .

Orientadora: Drª. Marta Isaacsson Souza e Silva


Professora Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, atua no
ensino da graduação e pós-graduação de Artes Cênicas. Orienta mestrado
e doutorado, nos campos de pesquisa: procedimentos de criação cênica e
poéticas cênicas tecnológicas.

Co-orientadora: Drª. Marcia Berselli


Graduada em Teatro (2012), Mestre (2014) e Doutora (2019) em Artes
Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professo-
ra Adjunta do Departamento de Artes Cênicas, Centro de Artes e Letras, da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

206 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


REFERÊNCIAS
BELSER, Julia Watts. Vital Wheels: Disability, Relationality, and the Queer Animacy of
Vibrant Things. Revista Hypatia. v. 31, p. 5-21, 2015.

BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria perfor-
mativa da assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

CUNNINGHAM, Claire. Entrevista com Claire Cunningham. Entrevista concedida à pes-


quisadora, 2020.

LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Rio de Janeiro: Editoras Vozes, 2006.

TEIXEIRA, Ana Carolina Bezerra. A Estética da Experiência: Trajetórias do Corpo Defi-


ciente na Cena da Dança Contemporânea do Brasil .2016. 239 f. Tese (doutorado)- Es-
cola de Teatro, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2016.

WILLIAMS, Gillians. Disability, the dancer and the dance with specific reference to
three choreographers: Caroline Bowditch, Marc Brew and Claire Cunningham. Tese
(doutorado)- Universidade de Coventry, Coventry, 2014.
TEATREIROS O mercado teatral é difícil. No mundo ca-

AO TRABALHO:
pitalista neoliberal de hoje, os artistas
acumulam responsabilidades em todas

diferentes trajetórias as etapas da produção cênica, na difusão

no mercado teatral de cultural e na autogestão de suas carrei-

Porto Alegre ras. Com a crescente digitalização das


experiências e o desmantelamento das
políticas culturais, essa sobrecarga tem
Thainan Rocha
se intensificado. Trabalhamos cada vez
mais, ganhamos cada vez menos. Mas
essa realidade não é a mesma para todos.
A presente comunicação quer discutir as
diferentes trajetórias de artistas da cena
teatral porto-alegrense: como demons-
trar os desafios na carreira de artistas
mulheres, negros ou mais velhos? A partir
de um referencial teórico multidisciplinar
e de pesquisas quantitativas com a clas-
se local, busco iniciar um debate sobre os
fatores mercadológicos das artes cênicas
e sobre as desigualdades de trajetórias
na cena local. É possível ilustrar as dife-
renças em remuneração, oportunidades e
longevidade de carreira. O intuito é con-
tribuir para esse diálogo, ainda incipiente
na pesquisa acadêmica em artes cênicas,
e estimular estudos futuros na área que
possam aprofundar essas questões, le-
vando em conta outros fatores sociais e
ampliando o panorama.

208 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


Quem trabalha nas artes cê- titativa, de modo a nos proporcionar
nicas conhece bem a dimensão dos um olhar mais amplo sobre o tema.
desafios deste mercado. No mundo O sociólogo Everett Hughes
capitalista neoliberal de hoje, que (1937, p. 409-410) define o conceito
incentiva uma economia competi- de carreira como a “perspectiva di-
tiva de livre mercado e uma postura nâmica pela qual a pessoa concebe
empreendedora de todo o proleta- sua vida como um conjunto e inter-
riado, os artistas trabalham cada vez preta o significado de suas diversas
mais para receber cada vez menos. características, das ações e das coi-
Entre a baixa remuneração, a falta de sas que lhe ocorrem”1. Neste olhar
seguridade social, o acúmulo de res- interacionista, portanto, a carreira
ponsabilidades e o trabalho intermi- compreende todas as experiências
nável, estes profissionais sentem na objetivas e subjetivas pelas quais
pele a crescente precarização do seu um indivíduo passa, interpreta e
ofício. Mas a realidade não é a mes- que usa para conceber a própria
ma para todos. identidade. O trabalho é apenas uma
Para entender como a de- de suas facetas.
sigualdade laboral se manifesta no Cada vez mais o debate pú-
mercado teatral, através desta pes- blico tem discutido como certos
quisa mergulhei no estudo de car- marcadores sociais afetam a nossa
reiras com enfoque no teatro de trajetória pessoal e profissional. O
Porto Alegre. Os dados que utilizo teatro pode ser visto como um campo
para mensurar esse cenário são pro- de trabalho mais progressista, mas
venientes de um levantamento que nem por isso deixa de reproduzir a
realizei com 157 profissionais do te- discriminação social enraizada na
atro porto-alegrense entre março e nossa sociedade. Nesta breve exposi-
abril de 2021, como parte da minha ção, vamos demonstrar os diferentes
pesquisa de mestrado que apresen- desafios impostos nas trajetórias de
tava um panorama do mercado te- artistas mulheres, negros e velhos da
atral e da formação profissional na cena teatral porto-alegrense.
capital gaúcha (ROCHA, 2022). Tais O levantamento local con-
dados são de natureza quali-quan- corda com outros censos ao deter-
1 “Subjectively, a career is the moving perspective in which the person sees his life as a whole and interprets the
meaning of his various attributes, actions, and the things which happen to him” (HUGHES, 1937, p. 409-410). Tra-
dução nossa.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 209


minar que as mulheres são maio- O mesmo acontece em Por-
ria (63%) entre os profissionais do to Alegre, com a retração da maioria
2
teatro de Porto Alegre . No entan- feminina com o avançar da idade.
to, numa sociedade machista e pa- Olhando apenas para a fatia dos 20%
triarcal, ser a maioria não lhes ga- mais velhos, as mulheres tornam-
rante facilidade ou privilégios. Uma -se 52% para 45% de homens. É um
pesquisa semelhante realizada em dado preocupante especialmente se
Portugal, onde as mulheres também notarmos a precariedade dos pró-
eram maioria, apontou que as atrizes prios trabalhadores mais velhos do
estavam menos inseridas em grupos nosso campo.
de teatro. Nossa pesquisa confirma A média etária dos respon-
essa tendência: apenas 29% dos ho- dentes foi de 31,2 anos. Esse fato
mens não participam de um grupo, reflete uma situação histórica já
em comparação a 39% das mulhe- relatada em outros levantamentos
res. As atrizes portuguesas também e censos com a comunidade ar-
apresentavam uma longevidade tística. A média etária dos traba-
profissional inferior aos homens e, lhadores das artes cênicas tende a
com a idade, elas recebiam menos ser mais baixa do que nas outras
oportunidades de trabalho: profissões, uma vez que as dificul-

No entanto, com o passar do dades da carreira artística muitas


tempo, as actrizes beneficiam vezes obrigam que teatreiros mais
menos da sua experiência pro-
velhos busquem subsistência em
fissional do que os actores e o
peso da idade actua na sua parti- outras atividades. Os trabalhadores
cipação no teatro e no volume de mais velhos do teatro porto-ale-
trabalho que aí conseguem an-
grense apresentam renda acima da
gariar. Será que as actrizes com
mais idade correm o risco de não média (indicando que segurança
terem trabalho? Ou na origem financeira é um fator de perma-
deste resultado estão explicações
nência na profissão) e estão mais
espúrias que fazem com que, por
alguma razão que ultrapassa esta frequentemente ligados a grupos e
investigação, as mulheres com coletivos (indicando que essa afi-
mais idade tenham tido menos
acesso aos questionários (BOR- liação é essencial para manter-se
GES, 2010, p. 120). em atividade).

2 As mulheres cis foram 62% das entrevistadas; homens cis foram 33%; não binários foram 2% e mulheres trans
foram 1%. A pesquisa não computou respondentes identificados como homens trans.

210 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


Outro critério determinan- busquei outras formas de mensurar
te é o racial. Em nossa pesquisa, os essa diferença no mercado teatral.
resultados se assemelham à distri- Através de questões mais objetivas,
buição racial geral da população de descobri que, apesar da precarieda-
Porto Alegre: eram 83% de brancos de, a profissão artística é a principal
e 15% de negros (incluindo pretos fonte de renda para 52% dos teatrei-
e pardos). Nenhum respondente se ros de Porto Alegre, ainda que so-
autodeclarou amarelo ou indígena. mente 38% destes sejam o principal
Numa sociedade racista e provedor do seu núcleo familiar.
nitidamente hierarquizada em raça Podemos avaliar a desigual-
e gênero, os efeitos dessas discri- dade ao fazer um recorte por gêne-
minações são palpáveis nas carrei- ro: a arte é a principal fonte de ren-
ras. Isso é especialmente verdade da para 58% dos homens e 51% das
em profissões em que, como nas mulheres. Ao mesmo tempo, 50%
artes cênicas, as redes de conta- dos homens são a principal renda
to são determinantes na distribui- familiar, contra 33% das mulheres.
ção de oportunidades de trabalho. Mesmo que as mulheres sejam maio-
É observado que o círculo social de ria, a riqueza continua distribuída de
homens brancos tende a ser majo- forma desigual dentro do campo te-
ritariamente compostos por outros atral, reforçando uma lógica patriar-
semelhantes, que deste modo rece- cal. Um abismo maior se abre quando
bem mais ofertas (FRANÇA, 2021). focamos em raça: a arte é a principal
Artistas mulheres e negros precisam renda para apenas 42% dos artistas
lutar para conquistar espaço nestas negros, e somente 25% destes são a
redes que determinam nosso campo, principal fonte de renda familiar.
ou então constituir circuitos em seus Vale notar que esse crité-
próprios nichos para fomentar uma rio é um mais relativo, pois avalia
economia alternativa. percepções individuais sobre renda.
Demonstrar essa desi- Em um estudo australiano que in-
gualdade econômica em números vestigou as necessidades mínimas
é difícil. Existe um tabu em discutir de renda de artistas de diversas áre-
questões financeiras no Brasil, que as (THROSBY; ZEDNIK, 2012), foi
trata o debate sobre renda como uma observado que, quanto maior era
questão pessoal e sensível. Por isso, a renda dos entrevistados, maior

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 211


eram as suas necessidades mínimas mesma idade, porém só recebem o
de renda apontadas. Fatores como primeiro cachê aos 22,3 anos. Por-
idade, ter filhos e nível de educação tanto, os artistas negros do teatro
também impactam essa percepção porto-alegrense demoram mais
— mostrando que os artistas têm para receber e não ganham o sufi-
necessidades de renda similares ao ciente com arte para tê-la como sua
resto da população. Para quem não fonte de renda principal.
atingia suas necessidades mínimas, Em algum nível, essa desi-
o mesmo estudo ainda demonstrou gualdade econômica pode ser rastre-
uma relação direta entre o tamanho ada desde a produção artística des-
do déficit e a quantidade de tempo tes indivíduos. Nosso levantamento
passado em trabalhos não artísticos. constatou que os artistas locais par-
O que leva artistas a buscarem tra- ticipam em média de 3,6 projetos
balhos em outras áreas é, sobretudo, por ano, fazendo uma média de 11,8
a necessidade financeira. apresentações com cada trabalho.
Perguntei a idade em que os Essa produção anual é menor (2,5)
respondentes começaram a traba- entre os que não participam de gru-
lhar com teatro e quando fizeram seu pos e maior (4,4) entre os que parti-
primeiro trabalho teatral remune- cipam de vários grupos. Não há uma
rado. Em média, os artistas de Porto diferença relevante entre recortes
Alegre fazem seu primeiro trabalho raciais, mas homens apresentam
profissional aos 19,1 anos e rece- uma média maior de projetos anuais
bem o primeiro cachê aos 21,1 anos. (4,3) do que mulheres (3).
Este padrão de dois anos entre iní- A média de apresentações
cio da carreira e o primeiro contrato por projeto é maior entre aqueles
se repetiu na pesquisa de Portugal que nunca cogitaram abandonar a
(BORGES; PEREIRA, 2012), embora profissão artística (16), indicando
os portugueses comecem a trabalhar que esse sucesso é um fator de sa-
mais tarde, aos 21 anos. tisfação profissional, e entre aqueles
Em Porto Alegre, essa média que são a principal fonte da renda
é a mesma entre homens e mulheres familiar (17). Por outro lado, apli-
brancos. Mas se olharmos somente cando nossos filtros demográficos,
para os artistas negros, percebemos essa média é menor entre mulheres
que estes começam a trabalhar na (10) e negros (9,8). Novamente são

212 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


os homens brancos que concentram das fora do principal eixo econômi-
as maiores oportunidades e levan- co do teatro brasileiro: as cidades de
tam os índices da média geral. Rio de Janeiro e São Paulo. A capi-
Podemos novamente cons- tal gaúcha tem suas especificidades
tatar que mulheres e negros têm culturais que acabam por influenciar
maior dificuldade em se inserir nesse o seu mercado, mas algumas dinâ-
mercado teatral. Poderíamos pensar micas, como o baixo teto de cresci-
que os homens do teatro porto-ale- mento profissional e a maior inse-
grense têm mais oportunidades pela gurança dos seus trabalhadores, são
maior demanda, uma vez que são recorrentes em cidades fora do eixo.
menos numerosos do que as mulhe- Quanto à discussão sobre desigual-
res. Porém, teatreiros negros são ain- dade no trabalho pautada por um es-
da menos numerosos do que os bran- tudo demográfico, sou levado a crer,
cos e estão em uma situação também pela estrutura da sociedade brasilei-
precária. A cena porto-alegrense é ra, que seja um fenômeno comum
pródiga em produções autorais, livre mesmo nas grandes capitais do eixo
do teatro de representação que his- (ainda que possa ter um comporta-
toricamente apresenta menos papéis mento diverso). Precisamos realizar
femininos ou negros. Os níveis de es- novos estudos em diferentes con-
colaridade e formação artística são textos para agregar o nosso enten-
similares entre todos os grupos. Não dimento sobre tais diferenças em
é plausível justificar essa diferença remuneração, oportunidades e lon-
pela oferta e demanda de papéis ou gevidade de carreira. O intuito des-
falta de qualificação destes profis- ta pesquisa é contribuir para esse
sionais. Resta entendermos esse fe- diálogo, ainda incipiente na pes-
nômeno como reflexo do machismo e quisa acadêmica em artes cênicas, e
racismo estruturais da sociedade em também estimular estudos futuros
que nosso teatro está inserido. na área que possam aprofundar es-
O estudo aqui parcialmen- sas questões e ampliar o panorama.
te apresentado teve foco em Porto Desta forma, poderemos ter uma
Alegre, mas pode refletir a realidade base mais sólida onde fundamentar
do mercado teatral de muitas outras políticas públicas para dirimir estas
capitais e grandes cidades localiza- desigualdades.

Thainan Rocha é ator, diretor, empreendedor cultural,


pesquisador e Mestre em Artes Cênicas pelo PPGAC/UFRGS.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 213


REFERÊNCIAS
BORGES, Vera. Trabalho, gênero, idade e arte: estudos empíricos sobre o teatro e a dan-
ça. ECadernos CES, 10, p. 110-127, 2010. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/hand-
le/10451/6124. Acesso em: 07 abr. 2020.

FRANÇA, Michael. E os contatinhos do trabalho? Folha de São Paulo, São Paulo, Colu-
na, 26 jul. 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/michael-fran-
ca/2021/07/e-os-contatinhos-do-trabalho.shtml. Acesso em: 30 mar. 2022.

HUGHES, Everett. Institutional office and the person. American Journal of Sociology,
43, p. 404–413, 1937.

ROCHA, Thainan. Mercado Teatral, Formação e Carreira: estratégias para viver de tea-
tro em Porto Alegre (2010-2020). Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) – Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2022. Disponível em: https://www.
lume.ufrgs.br/handle/10183/238071. Acesso em: 29 abr. 2022.

THROSBY, David; ZEDNIK, Anita. Minimum income requirements of creative artists:


some empirical results. In: BORGES, Vera; COSTA, Pedro (Org.). Criatividade e insti-
tuições: novos desafios à vida dos artistas e dos profissionais da cultura. Lisboa: ICS.
Imprensa de Ciências Sociais, p. 37-48, 2012. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/
handle/10451/23716. Acesso em: 07 abr. 2021.
CIRCUITOS
DE UM TEATRO
MARGINAL: RESUMO
a produção do grupo
O trabalho tem por objetivo apresentar a

Menegazzo Teatros
pesquisa de mestrado em andamento da

no interior do estado
discente Thaini Menegazzo, orientada

do Rio Grande do Sul


pelo Prof. Dr. Clóvis Dias Massa, que se
intitula “Circuitos de Um Teatro Margi-
nal: a produção do grupo Menegazzo Te-
Thaini Menegazzo atros no interior do estado do Rio Grande
do Sul”. Passando por questões como ter-
ritorialidade, invisibilidade e descentra-
lização da cultura, o trabalho é um estu-
do de caso da produção teatral do Grupo
Menegazzo Teatros, visando identificar e
compreender circuitos de produção, cir-
culação e consumo teatral provenientes
de determinado território, que expõem
e compõem a identidade cultural desse
estado. Pretendendo inverter a relação
preconceituosa dos binômios capital/in-
terior, esse trabalho quer dar voz aos que
estão na margem do sistema/circuito;
quer descentralizar desde a margem, para
entender e mostrar como ela se pensa e se
projeta; além de contribuir com a histo-
riografia e cartografia do teatro no estado
do RS, descentralizar o teatro das grandes
cidades, gerar visibilidade aos grupos do
interior, fomentar essa produção e afir-
mar a importância desses trabalhos tan-
to na esfera cultural, quanto na esfera da
economia criativa.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 215


O texto a seguir apresenta Quanto mais o tempo passa,
um breve panorama da pesquisa de mais ela reflete o seu lugar de fala
mestrado em andamento da autora nesse espaço e deseja entender os fa-
no Programa de Pós-Graduação em tores que fazem o teatro ser tão valo-
Artes Cênicas da Universidade Fe- rizado nesse novo lugar, se opondo à
deral do Rio Grande do Sul (PPGAC/ região de onde viera. Ela se questiona
UFRGS), tendo como orientador o o porquê de quase ninguém da capital
Professor Doutor Clóvis Dias Mas- conhecer o grupo Menegazzo Tea-
sa. Este estudo origina-se das inda- tros. Desde então, esse grupo e suas
gações pessoais e profissionais da peculiaridades se tornaram seu ob-
autora, oriundas de sua trajetória jeto de estudo, não só pelo seu com-
enquanto atriz. Além disso, é im- promisso para com ele, mas também
portante destacar sua naturalidade pelo seu desejo de difusão do teatro
da cidade de Casca, no interior do produzido no interior. Em 2021, o
estado do Rio Grande do Sul (RS), e grupo Menegazzo Teatros comple-
sua participação ativa no grupo tea- ta 30 anos de história, sobrevivendo
tral Menegazzo Teatros, desse lugar, e resistindo em um território onde a
para que se registre e se compreenda, arte e a cultura são pouco valoriza-
assim, a ligação com essa localidade e das. Logo, também busca-se enten-
esse grupo em suas proposições. der como se dá esse processo, deci-
A primeira inquietação que frar e expor quais são as estratégias
começa a dar corpo a esse trabalho que o grupo precisa desenvolver para
ocorre durante a sua graduação em continuar existindo.
teatro, quando a autora se muda Mesmo que a produção cê-
para Porto Alegre. Nesse período, ela nica no estado exceda as ações reali-
percebe que há grande preocupação, zadas em Porto Alegre, pouquíssimo
por parte dos professores, em aliar material bibliográfico faz referência
teoria e prática trazendo à sala de à produção dos outros municípios,
aula diversos grupos teatrais – em minorizada nos escritos sobre teatro
sua maioria grupos da capital e re- gaúcho (FERREIRA, 2014, pg. 02). A
gião metropolitana. Já os grupos in- partir dessa afirmação, a Dra. Taís
terioranos poucas vezes são citados Ferreira (2014, pg. 01) manifesta seu
nas aulas, fato que lhe causa grande apelo pela construção de novas his-
incômodo. toriografias no estado e propõe uma

216 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


revisão bibliográfica comentada de pios ou locais? Para Johnson, pes-
materiais existentes publicados que quisador dos Estudos Culturais, “se
indicam a construção de uma histó- estamos colocados em um ponto
ria do teatro no RS. Nesse artigo, a do circuito, não vemos, necessa-
autora “busca construir uma visão riamente, o que está acontecendo
descentralizada do teatro gaúcho, ou nos outros. ” (JOHNSON, apud FER-
seja, daquele teatro que participa do REIRA, 2006, pg. 08). Certamente,
circuito cultural de criação, circula- existem outros circuitos dentro do
ção e consumo no estado” (FERREI- estado do Rio Grande do Sul, movi-
RA, 2014, pg. 01). mentados por grupos de teatro das
Tentando mapear esse cir- cidades menores, mas que acabam
cuito, coletam-se todos os nomes sendo invisibilizados em relação ao
de cidades citadas com produção re- circuito principal, por uma série de
ferenciada pela autora. Obtém-se o questões que essa pesquisa preten-
seguinte montante: a capital Porto de problematizar.
Alegre; Novo Hamburgo, São Leo- Da mesma forma, mapeou-
poldo e a Região Metropolitana; na -se a região de atuação do grupo
região central Santa Maria; ao sul Menegazzo Teatros, pontuando to-
Pelotas, Rio Grande e Bagé; na ser- das as cidades em que o grupo já
ra Montenegro, Gramado e Canela, trabalhou nesse estado, obtendo-se
Caxias do Sul, Bento Gonçalves e Ga- o montante de 192 municípios. Com
ribaldi; e na região norte Passo Fun- esses dois mapeamentos, pretende-
do e Erechim. Partindo dessa pre- -se comparar e problematizar aque-
missa, pode-se concluir que existe le circuito principal e um circuito
um circuito principal de circulação, cultural secundário de criação, cir-
produção e consumo teatral no esta- culação e consumo, no qual acredi-
do e que esse é formado por cidades ta-se que o Menegazzo Teatros está
de grande e médio porte. inserido e faz uso.
Se a autora afirma que pra- Para tanto, adentra-se no
ticamente todas as regiões do inte- estudo da territorialidade a fim de
rior do estado possuem atividades compreender de que modo esse gru-
teatrais em andamento (FERREIRA, po opera e ocupa seu espaço. Nesse
2014, pg. 02), por que pouco se tem aspecto, as referências são dois pes-
informações sobre esses municí- quisadores: a Ma. Juliana Canali De-

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 217


mori e o historiador Jorge Dubatti. se tem sobre determinada cultura.
Demori (2016), que abordam o estu- Dito isso, um dos objetivos é iden-
do sobre a territorialidade na produ- tificar esses circuitos culturais pro-
ção artística de um grupo do interior venientes de determinado território
do estado, o Miseri Coloni de Caxias que expõem e compõem a identidade
do Sul, o qual se assemelha em vá- cultural do estado, alimentando o
rios aspectos ao Menegazzo Teatros. processo de descentralização que já
Dubatti (2011) é um grande pensa- se vivencia.
dor que reflete sobre a ideia de ter- O termo descentralizar
ritorialidade – o que consideramos emerge nesse trabalho de forma
do teatro em contextos geográficos, muito natural, dada a temática abor-
histórico-culturais de relação e di- dada. Em se tratando de cultura e do
ferença, quando contrastado com estado do RS, ao falar em descen-
outros contextos (DUBATTI, 2011, tralizar, recorda-se do projeto Des-
1
pg. 15, tradução da autora) . centralização da Cultura, da cidade
A partir do conceito de iden- de Porto Alegre. Esse é um exemplo
tidade cultural de Stuart Hall (2006), bem claro de que “descentralizar
questiona-se se o estado do RS de- também é democratizar, pois visa
senvolveu uma identidade construí- estimular o fenômeno artístico-cul-
da em torno das grandes cidades, ou tural em diversas regiões da cidade,
melhor, em torno do circuito cultu- transferindo a linha de ação política
ral principal de criação, circulação geograficamente para a periferia”
e consumo apontado anteriormen- (MASSA, apud LAGES, 2018, pg. 75).
te, visto que, segundo o autor, uma Logo, percebe-se que esse é um mo-
cultura é um discurso, um modo de vimento que parte do centro do ter-
construir sentidos que influencia e ritório em direção às margens. Por-
organiza tanto nossas ações quanto tanto, levanta-se a hipótese de que
a concepção que temos de nós mes- o Menegazzo Teatros, assim como
mos (HALL, 2006, pg. 50). À essa outros grupos da sua região, faz uma
afirmação, acrescenta-se: não só espécie de movimento de descentra-
influencia nossas ações e nossa con- lização, em relação ao circuito prin-
cepção, mas, também, a ideia que cipal, quando estabelece e ocupa um

1 Se entiende por territorialidad la consideración del teatro en contextos geográfico-histórico-culturales de relación y diferencia cuando se los
contrasta con otros contextos. (DUBATTI, 2011, pg. 15)

218 Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II


circuito secundário, dadas as con- a partir de outros lugares fora de um
dições do seu território, atingindo eixo” (JESUS, 2020, pg. 208).
outras tantas cidades do estado, não Assim como considera o
contempladas no circuito primário. historiador Paul Thompson (1998,
Para a especialista Jaqueline p. 17), “A memória de um pode ser
Spencer Cunha (2012, pg. 18), des- a memória de muitos, possibilitan-
concentrar as ações culturais de um do a evidência dos fatos coletivos”,
município é um mecanismo que visa acredita-se que, falando da produ-
dar visibilidade às ações do governo ção do grupo Menegazzo Teatros
nesse campo e colocar à disposição em seu território, abra-se a pos-
da população os equipamentos pú- sibilidade de dialogar com muitos
blicos de cultura. Vale ressaltar que outros grupos interioranos. Logo,
a esmagadora maioria dos municí- através das experiências da autora e
pios do interior do estado não pos- dos outros membros e colaborado-
sui esses equipamentos e não conta res do grupo, essa pesquisa disser-
com recursos próprios para realizar tará sobre o movimento de produ-
projetos como o Descentralização ção teatral da Menegazzo Teatros
da Cultura da capital, e nem outros no circuito cultural secundário de
projetos de fomento cultural. Assim, produção, circulação e consumo no
resta aos trabalhadores da cultura interior norte desse estado. Preten-
desses espaços criarem iniciativas dendo inverter a relação precon-
independentes para a sua sobrevi- ceituosa e “subalterna” (TORRES,
vência, e contar com a ajuda das Leis 2016, pg. 19) dos binômios capital/
de Incentivo à Cultura, que só recen- interior, metrópole/colônia, cen-
temente estão aderindo a políticas tro/periferia, esse trabalho quer
de interiorização. Assim, também é dar voz aos que estão à margem do
objetivo da pesquisa refletir “sobre sistema/circuito; quer descentrali-
as condições de produção e circula- zar desde a margem, para entender
ção do teatro que busca um espaço e mostrar como ela se pensa e se
político vital que pensa e gera relatos projeta.

Thaini Menegazzo é pesquisadora de Mestrado com bolsa CAPES no PP-


GAC/UFRGS. Licenciada em Teatro pela UFRGS. Professora de teatro, atriz
e produtora cultural no grupo Menegazzo Teatros da cidade de Casca.

Narrativas Diversas nas artes cênicas | Volume II 219


REFERÊNCIAS
CUNHA, Jaqueline Spencer. Descentralização da Cultura Como Forma de Democratiza-
ção. 2012. Monografia - Especialização em Gestão Pública Municipal, Universidade Fede-
ral do Rio Grande do Sul, São Sepé, 2012. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/
handle/10183/71754/000874226.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 19 nov. 2020.

DEMORI, Juliana Canali. POÉTICAS SINGULARES: um estudo sobre a territorialida-


de na produção artística do grupo de teatro Miseri Coloni, de Caxias do Sul/RS. 2016.
Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Universida-
de Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016. Disponível em: http://hdl.handle.
net/10183/147617. Acesso em: 12 nov. 2020.

DUBATTI, Jorge. Introducción a los Estudios Teatrales. México: Libros de Godot, 2011.
Disponível em: https://formaciondanzacontemporanea.files.wordpress.com/2013/05/
dubatti-introduccic3b3n-a-los-estudios-teatrales-1.pdf. Acesso em: 27 nov. 2020.

FERREIRA, Taís. ESTUDOS CULTURAIS, RECEPÇÃO E TEATRO: uma articulação possí-


vel?. Revista de História e Estudos Culturais, v. 3, n. 4, p. 1-20, 2006. Disponível em: ht-
tps://www.revistafenix.pro.br/revistafenix/article/view/788. Acesso em: 14 dez. 2020.

FERREIRA, Taís. Pelo devir de uma historiografia do teatro gaúcho. Ometeca


(Corrales, N.M., EUA), v. 19-20, p. 238-260, 2014. ISSN 1041-3650.

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: Dp&a, 2006.

LAGES, Paula Nunes; MASSA, Clóvis Dias. DESCOLONIZAÇÃO E DESCENTRALIZAÇÃO DA


CULTURA ATRAVÉS DA PEDAGOGIA TEATRAL. In: X JORNADA LATINO AMERICANA DE
ESTUDOS TEATRAIS, 2018, Florianópolis. Anais. Ceart/udesc, 2018. p. 73-83. Disponível
em: https://www.udesc.br/arquivos/ceart/id_cpmenu/7866/Anais_X_Jornada_Lati-
no_Americana_de_Estudos_Teatrais___Andre_Carreira_15644080131104_7866.
pdf#page=73. Acesso em: 15 dez. 2020.

JESUS, Maria Edilene de. Teatro nas fronteiras: descentralizando o teatro no interior de mato
grosso. Revista Nupeart, [S.L.], v. 23, p. 206-223, 14 ago. 2020. Universidade do Estado de
Santa Catarina. http://dx.doi.org/10.5965/2358092521232020206. Disponível em: https://
www.periodicos.udesc.br/index.php/nupeart/article/view/17428. Acesso em: 18 dez. 2020.

MENEGAZZO, Thaini. Seminário Narrativas: Apresentação de trabalhos Mestrandes.


PPGAC UFRGS, Porto Alegre, 2021. Disponível em: <https://youtu.be/HLGgXM3Sw3g>.
Acesso em: 07 abril 2022.

THOMPSON, Paul. A voz do passado: História oral. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
UFRGS, Lume. Apresentação. Disponível em: <https://www.lume.ufrgs.br/apresenta-
cao>. Acesso em: 18 nov. 2019.

TORRES, Walter Lima. Ensaios de Cultura Teatral. Jundiaí/SP: Paco Editorial, 2016.
Para acessar o conteúdo deste capítulo,
aponte a câmera para QR Code ou clique
no link: https://youtu.be/dJbRmn-9RfA
SOBRE
OS AUTORES
E AS AUTORAS
Ana Clara Oliveira É licenciado em Atuação e especialista
em Linguagens Artísticas Combinada
Professora (ETA/ICHCA - UFAL)
pela pela UNA (Universidad Nacional de
Artista da Dança do Ventre e Fusão
las Artes). É professor da cátedra His-
Tribal
tória da Cultura, do departamento de
Professora (ETA/ICHCA - UFAL)
Artes Visuais da UNA, e pesquisador do
Doutoranda em Artes (PPGARTES -
P.I.P.C.A.G (Programa de Investigación,
UFMG) com pesquisa no estilo tribal de
Producción, Cultura, Arte y Género do
dança do ventre.
departamento de Artes Visuais da UNA),

Ana Maria Rodriguez Costas (Ana é ator, diretor, performer, professor de

Terra) inglês e autor do livro “El Teatro Queer


de Wilde a Muscari” (2014).
Docente UNICAMP
Ana Terra atua como docente no Curso
de Bacharelado e Licenciatura em Dança
Alessandra Santos de Souza
Doutorado em Artes Cênicas (UFRGS)
e no Programa de Pós-Graduação em
Atriz formada pela Universidade Federal
Artes da Cena do Instituto de Artes da
do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestra
UNICAMP. É graduada em Ciências So-
em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-
ciais pela USP, Mestre em Artes e Douto-
-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS,
ra em Educação pela Unicamp e realizou
e doutoranda na mesma instituição. Pes-
um pós-doutoramento no PPGAC da
quisadora no GETEPE - Grupo de Estu-
USP. Atualmente está dedicada a pesqui-
dos em Educação, Teatro e Performance
sar as relações entre dança em contextos
da UFRGS (www.ufrgs.br/getepe), e pes-
de emergência, processos criativos e
quisadora no grupo de pesquisa GINGA
pedagogias insurgentes.
– Grupo Interseccional de Pesquisas em

Andréa Moraes Negritude, Gênero e Arte, contribuindo


para a pesquisa A formação teatral como
Mestre, Doutora, Pesquisadora de Pós
criação de si mesmo: narrativas sobre
-doutorado em Artes Cênicas CAPES/
uma proposição de constituição ética e
UFRGS. Professora de Dança do Ventre,
política. É integrante do Grupo de Brin-
proprietária da Escola Harm desde 2001
cantes do Paralelo 30, coletivo de Porto
em Porto Alegre. Investiga hibridações
Alegre/RS que pesquisa e vivencia sabe-
em dança, dança do ventre, pedagogia da
res das culturas populares. É investiga-
dança decolonial e feminista.
dora da área das Artes e tem como foco

Angel Alberto Leonelli os temas: culturas populares, práticas


cênicas e relações étnico-raciais.
Professor do departamento de Artes
Visuais da UNA (Universidad Nacional
de las Artes)
Betha Medeiros estética atuando em instituições públicas
e privadas do país. É preparadora cênico-
Atriz, dramaturga e professora. Doutora
-corporal e autora do livro Deficiência em
e Mestre em Artes Cênicas pelo PPGAC/
Cena pela Editora Ideia (2011).
UFRGS, Especialista em Teatro Contem-
porâneo (PPGAC/UFRGS), Bacharel em
ArteDramática pela UFRGS, Licenciada
Caroline Falero
Mestrado em Artes Cênicas (UFRGS)
em Educação Física (ESEF UFRGS). Atua,
Diretora, atriz e arte educadora, mes-
desde 1995, como professora de teatro,
tranda na Pós Graduação em Artes
Educação Física e Informática na Escola
Cênicas pela UFRGS e formada em
Especial Educandário São João Batista.
Licenciatura em Teatro pela UERGS.

Carolina Romano Natural de Porto Alegre iniciou sua tra-


jetória artística em 2002. Cofundadora
Professora Colaboradora do Mestrado
do Grupo Trilho de Teatro Popular onde
Profissional em Artes, Instituto de Artes,
trabalhou, ao longo de mais de 10 anos,
UNESP/SP
uma pesquisa poética que coloca no foco
Artista da dança, pesquisadora e edu-
da cena um teatro periférico e popular
cadora, Doutora em Artes pela UNESP,
influenciado pelo estudo dos elementos
Mestre em Artes, Bacharel e Licencia-
do Teatro Épico, do dramaturgo e ence-
da em Dança pela UNICAMP. Realizou
nador alemão Bertolt Brecht. Em 2015
estágios de pós-doutorado no Instituto
inicia sua atual pesquisa artística voltada
de Artes-Unesp/SP e no Programa de
para temáticas étnico-raciais, tendo as
Pós-Graduação em Artes Cênicas/UFRN.
bonecas de tecido e amarração abayomis
É professora colaboradora do Mestrado
como marionetes no do teatro de anima-
Profissional (Stricto sensu) em Artes,
ção, em especial a linguagem do Teatro
PROF-ARTES, no Instituto de Artes-
Lambe-lambe.
-Unesp/SP. É autora de livros e artigos
científicos sobre formação de professo-
res, dança, infância e currículo, além de
Cecília Lauritzen
Professora do Curso de Licenciatura em
autora de livros didáticos.
Teatro da Universidade Regional do Ca-

Carolina Teixeira riri (URCA), amante das cidades, de suas


feiras, cores e contrastes. Doutora em
É artista da performance e Doutora em
Teatro pela Universidade do Estado de
Artes Cênicas pela UFBA. Carolina é pes-
Santa Catarina (2018), cuja tese inves-
quisadora no campo dos Disability Studies
tigou a noção de recepção acidental. É
(Estudos da Deficiência) nas artes da cena
líder do Grupo de Pesquisa "Ocupações
no Brasil e EUA. Foi uma das diretoras e
Artísticas da Cidade" vinculado ao CNPq.
coreógrafas da renomada Roda Viva Cia
de Dança. É consultora em acessibilidade
Celina Nunes de Alcântara danças urbanas e intervenções urbanas.
Pesquisa relações entre Dança, Educação
Atriz, pesquisadora e professora asso-
e Espaço.
ciada da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Instituto de Artes, no
Departamento de Arte Dramática e no
Deise de Brito
Arquivos de Okan/ EMIA-SP/Núcleo Vê-
Programa de Pós-Graduação em Artes
nus Negra / Ouvindo Passos Cia de Dança
(PPGAC). Integra o Núcleo de Estudos
Artista-Professora das Artes Cênicas
Afro-brasileiros, Africanos e Indígenas
e Pesquisadora. Nordestina, baiana de
(Neab/Ufrgs), coordena o Grupo Inter-
Salvador, nascida e criada no Engenho
seccional de pesquisas em Negritude,
Velho de Brotas, residente em São Paulo
Gênero e Artes (GINGA), participa do
há 14 anos. Namora quadril e é artista da
GETEPE - Grupo de Estudos em Edu-
dança e do teatro. Graduada em Tea-
cação, Teatro e Performance e é edi-
tro pela UFBA. Formada em Dança pela
tora-associada da Revista Brasileira
Escola de Dança da Funceb. Mestra em
de Estudos da Presença. Como atriz, é
Artes pela USP e Doutora em Artes pela
membra fundadora do grupo Usina do
UNESP. Integra o Núcleo Vênus Negra e a
Trabalho do Ator (UTA/RS) e, desde
Ouvindo Passos Cia de Dança. Desenvol-
2018, integra o coletivo do espetáculo A
ve pesquisas referentes a artistas negres
mulher arrastada.
com diálogos entre corpo, ancestrali-

Débora Allemand dade, memória e arquivo. Idealizadora e


coordenadora do site Arquivos de Okan.
Professora de Dança do Colégio de Apli-
cação da UFRGS
Professora de Dança do Colégio de Apli-
Felipe Cremonini
Estudante / Universidade Federal do Rio
cação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul
Grande do Sul. Doutoranda no Programa
Iniciou na companhia P com P de Teatro
de Pós-graduação em Artes Cênicas da
em Livramento/RS em 2013, é formado
mesma Universidade. Mestra em Arqui-
em Teatro-Licenciatura pela UFPel no
tetura e Urbanismo pela Universidade
ano de 2020 e Mestrando em Artes Cê-
Federal de Pelotas. Possui graduação
nicas na UFGRS. Fez parte da Cia Ubuntu
em Arquitetura e Urbanismo e Licen-
de Teatro (2016-2018) em Pelotas/RS.
ciatura em Dança, ambas pela UFPel.
Se aproximou da linguagem audiovisual
Pesquisadora nos Grupos de Pesquisa
durante a graduação, com o curta-me-
OMEGA - Observatório de Memória,
tragem Bicha Camelô (2017) partici-
Educação, Gesto e Arte (UFPel/CNPq) e
pando da seleção oficial do Festival de
GESTE - Grupo de Estudos em Teatro e
Cinema de Gramado e oficinas ministra-
Educação. Como artista da dança, tem
das junto aos cursos de cinema da UFPel.
experiência com dança contemporânea,
Pesquisa as especificidades do Teatro
Online e atravessamentos com a lingua- Desenvolve pesquisas sobre docência
gem audiovisual. Foi contemplado com o em dança, dança na escola, formação
prêmio Trajetórias Culturais promovido docente e a/r/tografia.
pela SEDAC/RS em 2021.
Karen Tolentino
Jackson Tea Doutorado em Educação UFSM
Encenador, ator e iluminador. Doutor Artista, Passista, Sambista. Foi dançari-
em Artes Cênicas pelo Programa de Pós- na do Grupo de Dança Euwá Dandaras e
graduação em Artes Cênicas da UFRGS; do Coletivo Negressencia. É Doutoranda
Mestre em Artes Cênicas pela Universi- em Educação pela Universidade Federal
dade Nova de Lisboa (UNL); Bacharel em de Santa Maria, Mestra em Ciências So-
Artes Cênicas pela Universidade Federal ciais pela Universidade Federal de Santa
da Bahia (UFBA); Suas pesquisas em ar- Maria (2015), formada em Educação
tes cênicas têm ênfase na criação teatral Física - Bacharelado - pela Faculdade
em site-specific. Atualmente é profes- Metodista de Santa Maria (2007) e aca-
sor substituto do Curso de Licenciatura dêmica em Dança - Licenciatura - pela
em Teatro da Universidade Regional do Universidade Federal de Santa Maria.
Cariri- (URCA). Passista e bailarina afro, propõe o estudo
acadêmico dialogando com as danças de
Josiane Franken matriz africana e/ou afro-brasileira. Seu
Profa. do curso de Dança - Licenciatura trabalho está voltado para a performan-
da UFPel ce e dança afro-brasileira, o samba dan-
Mãe do Joaquim. Artista, professora, çado, a mulher negra e a estética negra.
pesquisadora. Pessoa com Deficiência
(Transtorno do Espectro Autista). Pro- Kleber Lourenço
fessora do Curso de Dança - Licenciatu- Doutorando em Artes pela UERJ
ra, da Universidade Federal de Pelotas. Bailarino, ator, encenador e coreógra-
Doutora em Artes Cênicas e Mestra fo, educador e pesquisador em artes da
(bolsista CAPES) em Artes Cênicas pela cena. Doutorando em Artes pela UERJ e
UFRGS. Especialista em Corpo e Cultu- Mestre em Artes pela UNESP. Dirige o
ra: ensino e criação pela Universidade Visível Núcleo de Criação e é integran-
de Caxias do Sul. Licenciada em Dança te do grupo de pesquisas MOTIM e da
pela Universidade de Cruz Alta. Líder do Capulanas Cia de Arte Negra. Seus traba-
Grupo de Pesquisa Observatório de Me- lhos concentram-se nas linguagens da
mória, Educação, Gesto e Arte (OMEGA dança e do teatro em cruzamento com
UFPel/CNPq). Coordenadora do Projeto as culturas populares, atuando nas áreas
Unificado Ensino Contemporâneo de da coreografia, encenação e formação
Dança na Educação Básica: pedago- pedagógica.
gias possíveis (Centro de Artes UFPel).
Laura Franco Leandro Colling
Mestra em Dança - Escola de dança Professor Programa Multidisciplinar de
UFBA Pós-graduação em Cultura e Sociedade
Artista-pesquisadora das artes do corpo e professor colaborador do Programa de
e do som. Neta de Inacinha e Cavachão Pós-Graduação em Estudos Interdiscipli-
– mestra sambadeira e mestre sambadô nares sobre Mulheres, Gênero e Femi-
dos batuques rurais do Vale do Jiquiri- nismo, da Universidade Federal da Bahia,
çá, Laura é contra-mestra tamboreira e do Programa de Pós-Graduação em
que herda de seu povo negrindígena a Ciências Humanas e Sociais (PPGCHS), da
responsabilidade de ser memória cor- Universidade Federal do Oeste da Bahia.
porificada de sambas de rezo do sertão É graduado em Comunicação Social pela
da Bahia. Pesquisadora interdisciplinar, Universidade do Vale do Rio dos Sinos,
atualmente cursa Doutorado em Cultura mestre e doutor em Comunicação e
e Sociedade pelo POSCULT/UFBA mape- Cultura Contemporâneas pela Universi-
ando vestígios e formulando estratégias dade Federal da Bahia. É um dos criado-
para pedagogias feministas de tambor. res e integrante do Núcleo de Pesquisa e
Extensão em Culturas, Gêneros e Sexua-
Lauro Fagundes lidades (NuCuS) e da revista Periódicus.
Aluno-Mestrando/ Programa de Pós Presidiu a Associação Brasileira de Estu-
Graduação UFRGS dos da Homocultura (ABEH) na gestão de
Lauro Fagundes é ator, mestrando em 2011-2012. É autor dos livros "A vontade
Artes Cênicas na UFRGS e licenciado em de expor - arte, gênero e sexualidade"
Teatro - UFRGS. Em 2018 recebeu o Prê- e "Que os outros sejam o normal: ten-
mio Açorianos Revelação como Ator por sões entre movimento LGBT e ativismo
GRANDES bençãos/dáDIVAS preciosas queer" e organizador de "Stonewall 40 +
(monólogo, dir. Ricardo Zigomático). Em o que no Brasil?", "Estudos e políticas do
oito anos de vida profissional no teatro, CUS", "Dissidências sexuais e de gênero
atuou em 16 espetáculos e atualmente e Artivismos das dissidências sexuais e de
está indicado ao Açorianos 2021 na cate- gênero". Fez parte da primeira compo-
goria Artista/Performer masculino por sição do Conselho Nacional de Combate
“Foi o que deu pra fazer” (dir. Vitória à Discriminação e Promoção dos Direitos
Titton). LGBT e também já foi membro do Con-
É sócio na Centauro Produções e integra selho Estadual de Cultura da Bahia. Foi
a UMBU - coletivo de produtores teatrais coordenador do Curso de Especialização
de Porto Alegre. em Gênero e Sexualidade na Educação,
oferecido pela UFBA em parceria com a
Universidade Aberta do Brasil.
Lindete Souza Luciano Tavares
Dançarina Profissional - desde 1979 Natural de Canoas, herda de sua mãe
Cantora - Coral do Mosteiro de São Ben- traços da etnia indígena Guarani e de seu
to - desde 2008 pai traços de sua origem negra. É docen-
Atriz - Formação UFBA 2015 te temporário no Curso de Licenciatura
Jornalista - Faculdade 2 de Julho 2014 em Dança da Universidade Federal do
Poeta - Participações em diversas cole- Rio Grande do Sul, doutorando e Mestre
tânea em Artes Cênicas pelo PPGAC/UFRGS,
Mestra em Dança - Escola de dança Bacharel em Biblioteconomia pela mes-
UFBA ma universidade. Idealizador da Mostra
Masculinidades Negras na Dança. Propõe
Lizandro Carlos Calegari um estudo acadêmico que dialoga com
Professor de Literatura no Colégio Po- questões das masculinidades negras na
litécnico e no Programa de Pós-Gradu- dança. Atua na Eduardo Severino Cia de
ação em Letras (Mestrado e Doutorado) Dança e desenvolve um trabalho solo que
da UFSM. enfoca danças negras, transe, rituais e
Possui Doutorado em Letras (Estudos ancestralidade. Atualmente faz parte da
Literários) pela Universidade Federal de a organização do Projeto Semana Negra
Santa Maria (UFSM, RS). Tem artigos ESEFID/UFRGS, bem como do Coletivo
publicados em periódicos especiali- 18A. É integrante o GT Afro nas Artes
zados no Brasil, no Chile, nos Estados Cênicas, braço da ABRACE.
Unidos, na França, na Dinamarca e em
Portugal. É autor de Crítica da cultura, Márcia Mignac
crítica da modernidade e Ensaios (in) Doutora em Comunicação e Semiótica
conjuntos, e organizou, em coautoria, PUC/SP, Mestre em Dança PPGDANÇA/
os seguintes livros: Literatura, exclu- UFBA e Licenciada em Dança/UFBA. É
são e resistência (2020); Sexualidades e professora Associado I da Escola de Dan-
identidades culturais (2019); Excluídos ça da UFBA (Graduação e Pós-gradua-
e marginalizados na literatura (2013); ção (PPGDANÇA e PRODAN). Investiga
Estética e política na produção cultural Biopolítica, Dança do Ventre, Orienta-
(2011) e Clarice Lispector & Guimarães lismo, Gênero e Feminismo Decolonial.
Rosa (2012), entre outros. Tem diversos É Co-líder do Grupo de Pesquisa Ágora;
artigos e capítulos de livro publicados. modos de ser em dança (CNPq/UFBA),
Atualmente, é professor de Literatura no qual desenvolve dois Projetos de
na Universidade Federal de Santa Maria Pesquisa: 1) Sintomas no corpo: dança e
(UFSM). materialidades biopolíticas e 2) Orien-
te-se: Dança do Ventre, Orientalismo
e Feminismo Decolonial. Mãe de uma
criança de 11 anos, atua em prol da causa ferramenta política de luta e afirmação,
de mulheres-mães na academia. através da ocupação e criação de espaços.

Marcelo Sousa Brito Mario Celso Pereira Junior


PÓS-DOUTOR PESQUISADOR- UFBA Mestrando PPGAC UFRGS
Ator-diretor teatral, Mestre e Doutor Ator, dramaturgo, dançarino e artista
pelo Programa de Pós Graduação em circense com especialidade em malaba-
Artes Cênicas (PPGAC-UFBA), onde rismo e clown. Professor de teatro licen-
realizou estágio de Pós Doutorado com ciado pela Universidade Federal de Pelo-
bolsa PNPD da Capes, entre 2016 e 2021. tas (UFPel). Mestrando em Artes Cênicas
Autor dos livros "O teatro invadindo a pelo Programa de Pós-Graduação da
cidade" (2012) e "O teatro que corre nas Universidade Federal do Rio Grande do
vias" (2017), ambos pela EDUFBA. Sul (UFRGS). Integra como colaborador o
Grupo de Pesquisa Teoria Teatral: Histó-
Maria Guadalupe Casal ria, Dramaturgia e Estética do Espetácu-
PPGAC/UFRGS lo, vinculado ao Diretório de Grupos de
Atriz, diretora, produtora e professora Pesquisa do CNPq, sob a orientação do
de teatro. Bacharela em atuação (DAD/ Prof. Dr. Clóvis Dias Massa.
UFRGS) e mestranda (PPGAC/UFRGS).
Pesquisa processos pedagógicos femi- Mário Lopes
nistas. Integra o grupo Teatro Sarcáusti- Coreógrafo e articulador/ gestor cul-
co desde 2005 e é membra fundadora da tural. Mestrando em Artes Performa-
Cia T.O.D.A.S. tivas pela DAS Theatre / Amsterdam
University of the Arts. Coreógrafo
Mariana Gonçalves integrante do coletivo DMV22, com
Socióloga, mestra e doutoranda em as obras “VRUM(2009)”, “a cidade se
Psicologia Social e Institucional pela move(2010)”, “vrumvrumzinho(2011)”,
Universidade Federal do Rio Grande do “ENTRE(2012)”, “TREPP(2013)”, “Mo-
Sul. Dedica-se à pesquisa sobre a forma- vimento I, parado é suspeito(2014)”,
ção de Territórios Negros na contempo- performance “Keller(2015)” e o proces-
raneidade, discutindo os processos de so “Re_sistir_existir (2016)”. Em ou-
re-existência presentes nas intervenções tubro de 2016 iniciou o processo da co-
artísticas e culturais protagonizadas por produção coreográfica “ALBUM kodex_
corpos negros no centro de Porto Ale- feedback” com o coreógrafo mexicano
gre. Desde 2018, Mari Gonçalves é DJ e Martin Lanz, que terá estreia no dia 20
produtora cultural nos Coletivos Turma- de maio de 2017 no teatro HochX-Mu-
lina e Arruaça, importantes núcleos da nique. Como gestor e articulador cultu-
cena de música eletrônica underground ral, é diretor geral e um dos curadores
de Porto Alegre, utilizando a festa como da plattformPLUS/ Munique e sócio
executivo da HumaVida Produções/São na Casa de Bonecas. Como ator integrou
Paulo. Desde 2015, faz parte da equipe as óperas Tempos de Solidão – Missa
de articulação/ curadoria do veiculoSUR, do Orfanato (Ópera na UFRGS, 2016) e
responsável pela gestão e produção da Don Pasquale (OSPA, 2016), DESTERRO:
residência na Alemanha. Sobre restos que não importam mais
(Coletivo Nômade,2018), Inimigos na
Natália Dornelles Casa de Bonecas (Projeto Gompa, 2018),
Licenciada em dança pela Universidade apresentado em Skien, na Noruega. Foi
Federal do Rio Grande do Sul. Integrante criador e coordenador do Projeto CI-
dos projetos de extensão Coletivo Corpo NECRAS: cinema e inclusão social. Foi
Negra e Brincantes do Paralelo 30, am- co-apresentador da noite especial do
bos desenvolvidos na UFRGS. Bailarina Programa Educavídeo durante o 48º
no grupo de dança e música Afro-Sul, FESTIVAL DE CINEMA DE GRAMADO.
coordenado pela Mestra Iara Deodoro. Desde 2018 atua como professor no Cen-
Pesquisadora das corporalidades negras tro Integrado de Desenvolvimento, onde
na área da dança e das práticas e ações desenvolve uma pesquisa voltada para
educacionais pautada nas questões étni- a inclusão de pessoas com deficiência
co-raciais através da arte.

Pedro Bertoldi Pedro Delgado


Professor, Centro Integrado de Desen- Professor de Artes Cênicas no Estado do
volvimento Rio Grande do Sul, Professor de expres-
Ator, dramaturgo e arte educador. Como sividade e ressignificação corporal na
dramaturgo assinou os seguintes espe- AACRT, diretor do Coletivo de Criadores
táculos: Tempos de Solidão - Missa do Cria"Tures e, do Grupo TeatroLáEmCa-
Orfanato (2016), Desterro: Sobre restos sa.
que não importam mais (2017), Inimi- Possui doutorado em Artes Cênicas pelo
gos na Casa de Bonecas, vencedor do PPGAC (Estudos da criação dramatúrgica
Ibsen Scholarships 2017 (2018), Fábrica e corporal na perspectiva dos estudos
de Robôs (2018), Filhas do Sal, Melhor queer) da Universidade Federal do Rio
Texto Original no 5º Festival de Teatro Grande do Sul (UFRGS). Autor do livro A
de Gravataí (2019), O Diário Inexisten- Roda da Imaginação e de diversas peças
te, Melhor Texto Original Infantil no de teatro, diversas delas premiadas em
14º Festcarbo e 5º Festival de Teatro concursos nacionais de dramaturgia.
de Gravataí, Frankenstein (2019), Olga Possuem graduação em História e Dan-
(2020), ambos investigando a drama- ça. Tem Especialização em Pedagogia da
turgia de processo colaborativo. Indica- Arte e Mestrado em Artes Cênicas.
do ao Prêmio Açorianos de Teatro 2018,
na categoria Dramaturgia, por Inimigos
Priscila Rosa  Pesquisadora, professora e curadora.
Possui mestrado e doutorado em Lite-
Atriz e diretora
ratura Comparada pela Universidade
Atriz com formação em Interpreta-
Federal do Rio Grande do Sul com finan-
ção Teatral pela Universidade Federal
ciamento CAPES. Integra a Red Iberoa-
de Santa Maria, trabalha como atriz,
mericana de Investigación en Narrativas
diretora, figurinista, produtora e editora
Audiovisuales - RedINAV, a Red de In-
de vídeo. Tem interesses em produção e
vestigadores sobre Cinema Latinoame-
criação em audiovisual, e, atualmente,
ricano - RICila, e a Red de investigación
tem sua pesquisa voltada para corpos
del Audiovisual hecho por Mujeres en
diversos e pessoas com deficiência na
América Latina - RAMA. Idealizadora e
cena contemporânea. É pesquisadora
codiretora do Festival Internacional de
e bolsista do Mestrado Acadêmico do
Videoarte SPMAV (UFPel), e do Festival
Programa de Pós-Graduação da Univer-
Internacional de Videodança – FIVRS
sidade Federal do Rio Grande do Sul.
(UFPel/ECARTA).

Rodrigo Teixeira
Mestrando em Artes Cênicas (PPGAC/
Rosemary 'Rosa' Cisneros
pesquisadora, bailarina, coreógrafa,
UFRGS) Audiodescritor (Mil Palavras
socióloga e curadora que trabalha no
Acessibilidade Cultural) Professor de
Centro de Pesquisa em Dança (Uni-
teatro (Bublitz Academia de Musicais)
versidade de Coventry) e trabalha em
Ator e professor de teatro formado pelo
estreita colaboração com a RomArchive,
Departamento de Arte Dramática da
Rede Européia de Estudos do Hip Hop
Universidade Federal do Rio Grande do
e muitas ONGs. Cisneros desenvolveu
Sul (DAD/UFRGS). Como mestrando em
o curso de História da Dança Romani
Artes Cênicas no Programa de Pós-Gra-
com a Universidade Barvalipe, dirigida
duação em Artes Cênicas (PPGAC/UFR-
pela ERIAC. Ela lidera vários projetos
GS), pesquisa a audioarte como campo
financiados pela UE que visam tornar a
de inclusão artístico-digital. Criou e
educação e as artes acessíveis a grupos
dirigiu o podcast de audiodramas “Se-
vulneráveis e minorias étnicas, e parte
xagenarte - A vida não para” a partir de
de projetos de herança cultural que reú-
um processo de criação virtual com pes-
nem dança, sítios e tecnologias digitais.
soas idosas com e sem deficiência visual
Seu doutorado é em Sociologia com foco
no início da pandemia da Covid-19.
em mulheres ciganas, interseccionalida-

Rosângela Fachel de, feminismo dialógico e metodologias


comunicativas e foi premiada com Sum-
Professora Voluntária do Programa de
ma Cum Laude. Ela iniciou sua própria
Pós-graduação em Artes Visuais da Uni-
produtora, RosaSenCis Film Production
versidade Federal de Pelotas.
Co., que trabalhou no Projeto de História
Oral da Sociedade de Pesquisa em Dan- concretos desta pesquisa. Atualmente é
ça e também dirigiu o projeto Dancing integrante do NUCUS – Núcleo de Pes-
Bodies in Coventry. Os filmes de dança quisa e Extensão em Culturas, Gêneros e
de Cisneros já foram exibidos no Reino Sexualidades no IHAC/UFBA, onde atua
Unido, EUA, Colômbia, México, Grécia, como uma das coordenadoras da LIF-
Chipre e Alemanha e seu documentário linha de estudos sobre Lesbianidades,
de média-metragem ganhou o melhor Interseccionalidades e Feminismos.
documentário do Reino Unido em 2016.
Ela também gerenciou grandes projetos Sávio Fárias
financiados pela UE e projetos locais da Doutorando- UFBA
Parceria Cidade da Cultura e está organi- Artista, professor, pesquisador. Douto-
zando conversas Hip-Hop. Ela é editora rando e Mestre em Artes Cênicas (PP-
de revistas acadêmicas e estas incluem o GAC-UFBA); Licenciado e Bacharel em
Journal for Embodied Practices, Interna- Teatro (UFPB). Atualmente está profes-
tional Journal of Romani Studies e a re- sor substituto do Departamento de Te-
vista HOTFOOT Online da OneDance UK. atro da Universidade Regional do Cariri
(URCA). Integrante do Grupo Bufões de
Sanara Rocha Olavo e do Projeto Corpos de Saia desen-
Feminista negra, pesquisadora, pro- volvendo em ambos funções alternadas
dutora cultural e artista interdiscipli- de atuação, dramaturgia, encenação e
nar com campo de atuação nacional e produção. Tem experiência e interesse
internacional. É mestre em cultura e em processos de criação, formação ar-
sociedade pelo Programa Multidisci- tístico-pedagógica e pesquisa em artes.
plinar de Pós-graduação em Cultura
e Sociedade do IHAC-UFBA (2020); é Thainan Rocha
bacharel em artes cênicas pela Escola de Mestrando em Artes Cênicas (PPGAC/
Teatro da Universidade Federal da Bahia UFRGS)
e habilitada à direção teatral (2011). Artista-produtor (Teatro Inventário)
Dedica-se ao desenvolvimento de duas Coordenador de Produção (Platô Cultural)
pesquisas poéticas multidisciplinares, Thainan Rocha é artista, professor e
uma que se intitula “Narrativas Fós- produtor cultural, quase sempre ao mes-
seis” e ancora-se nos estudos de gênero mo tempo. Bacharel em Teatro e mes-
e afro-futurismos a título de construir trando em Artes Cênicas (UFRGS), onde
ações artísticas e culturais que pautam a pesquisa o mercado teatral e métodos
reterritorialização feminina no universo de criação cênica neste contexto neo-
simbólico percussivo, sendo o espetácu- liberal. Possui formação diversificada
lo solo performático “Iyá Ilu” e o texto em teatro, dança, produção cultural e
dissertativo “Narrativas Fósseis: Do administração pública. Trabalha com o
tabu à Mulher no Tambor” resultados grupo Teatro Inventário, com a startup
Platô Cultural, e colabora com diferentes Integra a residência artística internacio-
coletivos na criação de novos mundos. nal itinerante VeículoSur (2020-2023).
Pesquisa experiências e práticas perfor-
Thaini Menegazzo mativas negras em perspectiva multi-
Mestranda / PPGAC UFRGS disciplinar.
Ingressa ao meio artístico ainda criança,
através do grupo teatral de sua família. Viviam Caroline
Nesse grupo, já participou de mais de 10 Víviam Caroline de Jesus Queirós é uma
espetáculos teatrais e ministra diversas mulher negra, nordestina, jornalista,
oficinas no interior do estado do Rio pesquisadora, arte educadora e liderança
Grande do Sul. No ano de 2019, con- social destacada em Salvador no campo
cluiu sua graduação em Licenciatura em da comunicação, cultura, educação e
Teatro na Universidade Federal do Rio dessa dos direitos das mulheres e crian-
Grande do Sul (UFRGS), na qual tam- ças negras. Mestra em Cultura e Socie-
bém participou de diversos espetáculos dade pela Universidade Federal da Bahia,
e fundou com amigos o grupo Teatro desenvolveu a dissertação Quilombo
Inventário, em Porto Alegre. Atualmen- de Tambores – Neguinho do Samba e
te, cursa mestrado em artes cênicas no a criação do Samba-Reggae como uma
Programa de Pós-Graduação em Artes tradição negro-baiana que será publica-
Cênicas da UFRGS (PPGAC/UFRGS); Atua da pela editora Ogum´s Toques em 2021,
como atriz, diretora, produtora cultural ano em que também lança seu primeiro
e professora de teatro na Menegazzo livro infantil “tamborinas, memória do
Teatros Ltda. DRT/RS 16016. meu tambor-menina”. É uma das fun-
dadoras da banda e projeto social Didá, é
Thiago Pirajara percussionista e compositora do GRUPO
Professor UFRGS e atua como relações públicas e gestora
Performer, encenador, professor arti- da instituição.
culador cultural. Bacharel em Teatro(-
DAD-IA-UFRGS), mestre em Educação
(PPGEdu-UFRGS) e doutorando em
Artes Cênicas (PPGAC-UFRGS). Pro-
fessor substituto no Departamento de
Arte Dramática do Instituto de Artes da
UFRGS. Artista co-fundador do grupo
Pretagô e do coletivo teatral carna-
valesco Bloco da Laje. Ator e produtor
no grupo Usina do Trabalho do Ator.
Idealizador e curador da CURA - Mostra
de Artes Cênicas Negras de Porto Alegre.
Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Narrativas diversas nas artes cênicas [livro


eletrônico] : volume II / organização Andréa Moraes,
Jackson Tea, Thiago Pirajira. -- 1. ed. -- Porto Alegre,
RS : Pomo Estúdio, 2022.
PDF.

Vários autores.
ISBN 978-65-999040-0-4

1. Artes cênicas 2. Decolonialidade 3. Corpo - Arte


4. Dança 5. Criatividade (Literária, artística, etc)
6. Narrativas I. Moraes, Andréa II. Tea, Jackson I
II. Pirajira, Thiago.

22-132720 CDD - 791

Índices para catálogo sistemático:


1. Artes cênicas : Artes da representação 791
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB -1/3129

Você também pode gostar