(2021) Relatório Direito À Comunicação No Brasil 2020

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DIREITO À

COMUNICAÇÃO
NO BRASIL
2020
DIREITO À
COMUNICAÇÃO
NO BRASIL 2020
I NTERVOZES / C O L E T I VO B R A S I L D E C O M U N I C AÇ ÃO S O C I A L

Esta publicação foi elaborada visando ao máximo aproveitamento do


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Conselho Diretor do
Intervozes 2020-2021

Alex Hercog, André Pasti,


Bruno Marinoni, Marcos
Urupá, Mônica Mourão, Paulo
Victor Melo, Tâmara Terso

Cordenação Executiva

Alex Hercog
Gyssele Mendes
Iara Moura
Maria Mello
Marina Pita
Olívia Bandeira
Pedro Ekman
Ramênia Vieira

FICHA TÉCNICA

Textos
Ana Carolina Westrup, Bia
Barbosa, Eduardo Amorim, Gésio
Passos, Iago Vernek, Mabel Dias,
Maria Mello, Mariana Gomes,
Mariana Martins de Carvalho,
Marina Pita, Paulo Victor Melo,
Tâmara Terso

Edição e apresentação
Ramênia Vieira

Revisão
Gyssele Mendes e Olívia Bandeira

Projeto gráfico e diagramação


Oficina Sal

Apoio
Ford Foundation

ISBN 978-65-89397-03-8

/intervozes
@intervozes
Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative
@intervozes
Commons Attribution-ShareAlike 4.0 International (CC BY-
/intervozes SA 4.0) https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/
Sumário
A P R E S E N TA Ç Ã O

P E R S E G U I Ç Ã O A J O R N A L I S TA S E C O M U N I C A D O R E S
P O PU L A R ES E XPLO D E N O B R AS I L

COMO NOS TEMPOS DE CHUMBO: EMPRESA DE


C O M U N I C A Ç Ã O P Ú B L I C A V I R A A R M A D E P R O PA G A N D A
DE BOLSONARO

A S ERV I Ç O D O PU N ITI V I S M O, D O P O LI C I A M ENTO


PREDITIVO E DO R ACISMO ESTRUTUR AL

D I F I C U L D A D E S N O A C E S S O À I N T E R N E T: E X P R E S S Õ E S
DO R ACISMO ESTRUTUR AL

DESINFORMAÇÃO E VIOLÊNCIA POLÍTICA: PIOR DO QUE


E S TÁ , F I C A

O P O D E R D A S G R A N D E S P L ATA F O R M A S D I G I TA I S
AVA N Ç A S O B R E A E D U C A Ç Ã O

A N AT U R A L I Z A Ç Ã O D E S I S T E M A S E T E C N O L O G I A S D E
V I G I L Â N C I A N A PA N D E M I A

LEI G ER AL D E PROTEÇÃO D E DADOS EM VI GO R, AN PD


M I L I TA R I Z A D A

C O M U N I C A Ç Ã O P O P U L A R E C O M U N I TÁ R I A S A LVA M
V I D A S D U R A N T E A PA N D E M I A

RECOMENDAÇÕES

SO B R E AS AUTO R AS E OS AUTO R ES
INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

Apresentação

2020 foi um ano demasiadamente difícil, marcado pela perda irrepa-


rável de milhares de vidas, muitas incertezas, exaustão e ansiedade. As
crises ampliadas pela pandemia impactaram também o direito à comunica-
ção. Intensificaram-se as violações a direitos humanos na radiodifusão, no
direito à privacidade e os ataques a jornalistas e comunicadores populares.
O governo Bolsonaro seguiu impondo censura e proselitismo à comunica-
ção pública. Propostas com foco no vigilantismo voltaram à mídia e grupos
sociais já vulnerabilizados foram impactados pelas deficiências no acesso
à internet, pela desinformação e a concentração de propriedade.

Os retrocessos na garantia de direitos humanos afetaram de maneira


desproporcional a vida de grupos historicamente vulnerabilizados. Os povos
e comunidades tradicionais, mulheres, negros e negras, moradores de peri-
ferias e favelas, LGBTQIs, entre outros, sofreram, e muito, com o projeto
genocida e antidemocrático daqueles que atualmente governam o país.

A falta de um ambiente de mídia independente e plural foi fator funda-


mental para que houvesse limitação ao exercício da cidadania e ao desen-
volvimento de um sistema político democrático. A pluralidade de meios de
comunicação aliada à diversidade de vozes em circulação é indispensável
para o acompanhamento e participação da sociedade na formulação de
políticas públicas, para a visibilização das demandas das minorias e grupos
historicamente silenciados e, em um cenário em que a desinformação tem
causado tantos prejuízos, como ocorre na atual pandemia de Covid-19, tam-
bém para o pleno exercício do direito de acesso à informação e da liberdade
de expressão, sem os quais os demais direitos sociais ficam comprometidos.

Este é o cenário do Relatório Direito à Comunicação no Brasil 2020, quinta


edição da série iniciada pelo Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação
Social, em 2016, e segunda lançada em parceria com o Le Monde Diploma-
tique Brasil, que publicou os nove textos do relatório em sua versão online.
Comemoramos 5 anos de existência do relatório também podendo contar
com uma parceria de fora do Intervozes, a jornalista e ciberativista a partir
do feminismo negro Mariana Gomes, da Conexão Malunga.

Enquanto no Relatório Direito à Comunicação no Brasil 2019 vimos ata-


ques à mídia provenientes do próprio presidente da República e de seus
aliados — o que já vinha sendo uma prática comum desde as eleições de
2018 —, em 2020 observamos a perseguição a jornalistas e comunicadores
populares explodir no Brasil. Bolsonaro, sozinho, foi autor de 40,89% das
agressões registradas durante o ano pela Federação Nacional dos Jorna-
listas (Fenaj).

No texto Perseguição a jornalistas e comunicadores populares explode


no Brasil.01 Eduardo Amorim trata de alguns desses ataques e mostra como
saíram das redes sociais e alcançaram as ruas, com apoiadores do governo
se sentindo autorizados a atacar comunicadores, até mesmo com ameaças
de morte. Em 2020, Bolsonaro foi denunciado na 175ª Audiência Temática da

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), realizada em março,


no Haiti. Mesmo assim, seguiu estimulando os seguidores a hostilizarem
os jornalistas em suas atividades, o que levou a sociedade civil brasileira a
realizar nova denúncia à CIDH em audiência realizada em outubro do mesmo
ano, com foco no impacto das violações nas populações vulnerabilizadas.
O aceite de duas audiências pela comissão no mesmo ano mostra a gravi-
dade do cenário.

Bia Barbosa, Gésio Passos e Mariana Martins de Carvalho mostram como,


ao mesmo tempo que seguia atacando a mídia, Bolsonaro também trans-
formava a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) em arma de propaganda,
o que não o impediu de consolidar uma política de desmonte da empresa.
Importante lembrar que a comunicação pública é uma das três bases para
a complementaridade entre os sistemas de comunicação, junto com os
âmbitos privado e estatal, conforme previsto pelo artigo 5º da Constituição
Federal. A complementaridade entre os sistemas é essencial para um efetivo
direito à informação e para a realização, na esfera da comunicação social,
do princípio fundamental do pluralismo político (artigo 1º). Ainda assim, o
governo implementou ataques sistemáticos e graves às trabalhadoras e aos
trabalhadores dos diversos veículos que compõem a EBC.

Em junho de 2020, o governo Bolsonaro recriou o Ministério das Comu-


nicações (Minicom) e, numa tentativa de melhorar o diálogo com o Con-
gresso Nacional, entregou-o ao chamado Centrão. À pasta, foi incorporada
a EBC. O indicado ao cargo foi o deputado federal Fábio Faria (PSD-RN),
genro de Silvio Santos, dono de uma das maiores redes de TV do Brasil, o
SBT, e cuja família controla uma emissora de rádio no Rio Grande do Norte.
Em 2015, na condição de sócio da rádio, o ministro foi um dos citados na
ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) elaborada
pelo Intervozes e protocolada pelo PSOL junto ao Supremo Tribunal Federal
para, entre outros pontos, solicitar a devolução ao Estado de outorgas de
radiodifusão controladas por deputados federais e senadores, em respeito
ao artigo 54 da Constituição.

Com Faria no Minicom, fatos importantes foram censurados na EBC.


Coberturas relevantes feitas pela empresa pública no passado e que faziam
parte da sua memória foram apagadas, inclusive nas redes sociais. Mesmo
com a intimidação governamental, houve muita luta e resistência por parte
dos funcionários para tentar evitar o desmonte da empresa.

Matéria elaborada por Paulo Victor Melo mostra que, em paralelo às per-
seguições na esfera federal, gestores municipais priorizaram programas
e ações na área da segurança pública que colocaram as tecnologias de
informação e comunicação a serviço de uma política vigilantista, baseada
na segregação e no controle, e que mantém a lógica do punitivismo, do
policiamento preditivo e do racismo estrutural.

Essas tecnologias não são idealizadas apenas pelos gestores munici-


pais. Elas também são estimuladas por ações do governo federal, como,
por exemplo, no ato de regulamentação do Fundo Nacional de Segurança
Pública, que indicou a disponibilização de recursos para o “fomento à implan-
tação de sistemas de videomonitoramento com soluções de reconhecimento
facial”. Em muitas partes do mundo, o uso das tecnologias de vigilância,
especialmente do reconhecimento facial, vem sendo questionado por suas
falhas e pela reprodução do racismo estrutural presente no meio social.

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

Em outro texto, Tâmara Terso e Paulo Victor Melo mostram como, na


pandemia, também escancararam-se os múltiplos impactos da ausência de
conexão à internet por negros/as, quilombolas, indígenas e moradores de
áreas rurais e periféricas no texto Dificuldades no acesso à internet: expres-
sões do racismo estrutural. Se a sociedade no geral não estava preparada
para a nova realidade de home-office e estudos on-line, nas regiões perifé-
ricas e comunidades tradicionais as dificuldades ou a ausência de acesso à
internet tornou essa realidade ainda mais problemática. A educação, que já
era precária para essas populações, foi duramente impactada no período.

Na tentativa de diminuir os efeitos das desigualdades no acesso à inter-


net em territórios tradicionais, o Intervozes e a Coordenação Nacional de
Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) apre-
sentaram, em maio de 2020, uma proposta de emenda ao Projeto de Lei
(PL) 2388/2020, sugerindo o uso do Satélite Geoestacionário de Defesa e
Comunicação (SGDC) ou outra tecnologia semelhante para garantir a cone-
xão em comunidades indígenas, quilombolas e em distritos que não sejam
sede de município. Porém, o projeto só voltou a tramitar no Senado Federal
em abril de 2021, aguardando, até o fechamento deste relatório, ser colocado
em pauta para votação no plenário.

Outro projeto de lei, o PL 3477, começou a tramitar em 2020 com a previ-


são de oferecer acesso gratuito à internet, para fins educacionais, a alunos/as
e professores/as de escolas públicas do ensino básico (ensinos fundamental
e médio). A proposta tenta garantir as atividades de educação remota em
todas as regiões do país, sobretudo durante o isolamento social necessário
para o controle da pandemia de Covid-19. Para isso, estabelecia o uso de
recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações
(Fust). Porém, o projeto viria a ser aprovado apenas em março de 2021.
Além disso, Bolsonaro vetaria justamente o artigo que garantia a inclusão
educacional. O veto foi derrubado em plenário pelo Congresso Nacional
no dia 1º de junho e o texto finalmente foi sancionado no dia 11 de junho.

A dificuldade de acompanhar as transformações abruptas nos currículos


pedagógicos com a inserção da tecnologia no cotidiano dos estudantes
também foi experimentada nas regiões de periferia e esse é o tema abordado
por Iago Vernek no texto O poder das grandes plataformas digitais avança
sobre a educação. A manutenção das atividades escolares a distância, por
meio de plataformas digitais, sem a garantia de que estudantes de todo o
país tivessem acesso a equipamentos e à internet de qualidade, ampliou a
exclusão social no ensino. Isso porque 58% dos brasileiros usam a internet
exclusivamente pelo celular, índice que sobe para 79% nas áreas rurais e
para 85% entre as classes D e E.

Desinformação e violência política

2020 foi outro ano marcado pela violência on-line e por notícias falsas,
as quais voltaram a ganhar destaque na agenda política e social do país. Em
Desinformação e violência política: pior do que está, fica, Mabel Dias, Maria
Mello e Marina Pita detalham como a desinformação contra candidatas/os
e pessoas eleitas continuou ecoando nas redes e com ainda mais força,
referendada por um presidente que ataca pessoas em suas contas em redes
sociais e em atividades públicas.

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Nossa sociedade, que é marcada pelo racismo, homofobia e transfobia,


presenciou uma intensificação da violência política contra pessoas que com-
põem grupos historicamente vulnerabilizados. Candidaturas com bandeiras
de lutas sociais foram duramente atingidas pelo fenômeno da desinforma-
ção, suportado por interesses políticos.

A desinformação relacionada às eleições foi foco de atuação da Justiça


Eleitoral, com publicidade oficial, inclusive na TV aberta, dedicada à con-
tranarrativa. Enquanto o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) se preocupava em
responder à campanha de desinformação sobre as urnas e o sistema de apu-
ração de votos, as notícias falsas contra candidaturas populares circulavam
de modo intenso durante o pleito. Nenhuma ferramenta foi disponibilizada
pela Justiça Eleitoral em seus canais oficiais para o recebimento de denún-
cias. A tarefa de combate ao fenômeno das fake news foi praticamente toda
transferida às plataformas digitais e suas decisões privadas, que possuem
limites de atuação e falta de transparência, como mostra o sumário executivo
da pesquisa Fake news: como as plataformas enfrentam a desinformação,
publicado em outubro de 2020.

Na matéria A naturalização de sistemas e tecnologias na pandemia


Mariana Gomes fala como esse processo não veio acompanhado de edu-
cação digital. Um exemplo foi a necessidade de cadastro on-line para rece-
bimento do auxílio emergencial que acabou possibilitando a coleta de dados
de milhões de brasileiros, além de muitas fraudes.

Porém, 2020 também foi marcado pelo bom uso das tecnologias, como
no caso dos indígenas da aldeia Novos Guerreiros, da etnia Pataxó, no sul
da Bahia. Ameaçada de reintegração de posse, a comunidade, como mostra
Gomes, mobilizou-se a partir das redes sociais para fazer valer a decisão
do Supremo Tribunal Federal, de 6 de maio daquele ano, que determinava
a suspensão de todos os processos judiciais relacionados à anulação do
reconhecimento de terras indígenas.

Enquanto os poderes públicos não reagiam com agilidade para minimizar


os impactos da pandemia na sociedade e, em alguns casos, até dificultavam
a situação das comunidades em situação de vulnerabilidade, como no caso
da demora na aprovação de acesso ao auxílio emergencial, ou contribuíam
para a disseminação de informações falsas sobre o tratamento do novo
coronavírus, fortalecidas especialmente por manifestações oriundas da
Presidência da República, nos territórios vulnerabilizados o destaque era para
a cooperação entre as pessoas, como trazem Tâmara Terso e Paulo Victor
Melo no texto Comunicação popular e comunitária salvam vidas durante a
pandemia.

Experiências vividas em quilombos, aldeias indígenas e comunidades


periféricas apontaram para uma sintonia entre a comunicação comunitária,
mídias livres e o jornalismo independente no que se refere a usos e concep-
ções a respeito de tecnologias e da atuação nos territórios. De certa forma,
a pandemia favoreceu que algumas localidades adotassem estratégias de
comunicação popular e comunitária já desenvolvidas nos próprios territó-
rios a partir da necessidade de se comunicar. Tais experiências ampliaram
possibilidades e avançaram na defesa de direitos nas comunidades.

Outra conquista obtida foi a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de


Dados Pessoais (LGPD). Apesar de ter sido sancionada em agosto de 2018,

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

a legislação se tornou realidade concreta apenas em setembro de 2020. A


lei é considerada um começo para o reconhecimento da proteção de dados
pessoais como direito autônomo no ordenamento jurídico brasileiro, ainda
que a regulamentação de seus dispositivos siga sendo motivo de disputas.

Uma das novidades trazidas pela lei é a criação da Autoridade Nacional


de Proteção de Dados Pessoais (ANPD), composta pela seguinte estrutura,
conforme previsto no Art. 55 da LGPD: Conselho Diretor, Conselho Nacional
de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade, Corregedoria, Ouvidoria,
órgão de assessoramento jurídico próprio e unidades administrativas. No
entanto, infelizmente, a autoridade acabou sendo engolida pelos interesses
dos militares, que ganharam cada vez mais destaque no governo Bolsonaro,
como mostra Ana Carolina Westrup no texto Lei Geral de Proteção de Dados
em vigor, ANPD militarizada. Situação que comprometeu o caráter técnico
da ANPD e sua independência em relação ao governo.

Um exemplo disso é a indicação pelo presidente de três militares para


o Conselho Diretor da ANPD, espaço máximo de decisão da autoridade,
de um total de cinco nomes que compõem o órgão. Nenhum dos militares
indicados tem experiência no tema da proteção de dados pessoais enquanto
direito autônomo. Assim, mesmo com a existência da lei, é o próprio governo
quem põe em risco os dados dos cidadãos, utilizando-se de sistemas que
tratam e processam informações da população sem os devidos cuidados.

Seja pela narrativa da mídia tradicional sob controle de aliados, pelo


aparelhamento da comunicação pública ou pelos investimentos massivos
na distribuição de desinformação em redes sociais e aplicativos de men-
sagens, a comunicação tornou-se uma arma poderosa na manutenção do
bolsonarismo e de sua necropolítica. A luta tem sido árdua para que não se
perca as poucas conquistas obtidas em outros momentos.

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

Perseguição a jornalistas e
comunicadores populares explode no
Brasil
Eduardo Amorim

A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) considera que, em 2020,


“houve uma verdadeira explosão da violência contra jornalistas e contra a
imprensa de um modo geral”. No Relatório 2020 – Violência contra Jornalis-
tas e Liberdade de Imprensa no Brasil, a entidade contabilizou 428 episódios,
um crescimento de 105,77% em relação a 2019. Naquele ano, primeiro do
governo de Jair Bolsonaro, o número de casos de ataques a veículos de
comunicação e a jornalistas já havia registrado aumento de 54,07% em
relação ao ano anterior, tendo chegado a 208 casos.

O resultado constatado em 2020 é assustador, mas a pesquisa ainda


traz outros elementos que chamam atenção e que nos fazem questionar
a repercussão da “autorização” para comportamentos violentos que vem
sendo dada pelo presidente e seus filhos (como demonstra pesquisa da
organização internacional Repórteres Sem Fronteiras), especialmente em
comunidades tradicionais, territórios explorados pelo agronegócio, mine-
ração e por megaempreendimentos e em outras zonas críticas de conflitos.

Segundo o Relatório 2020, o presidente Jair Bolsonaro tem sido o prin-


cipal agressor dos jornalistas e veículos de mídia. Em 2020, sozinho, foi
autor de 40,89% das agressões registradas pela Federação Nacional dos
Jornalistas. Do total de atos praticados pelo político, 145 casos foram regis-
trados como ações de descredibilização da imprensa, por meio de ataques
a veículos de comunicação e a profissionais. Em outras 26 ocasiões, a Fenaj
identificou agressões verbais, além de duas ameaças diretas a jornalistas e
de dois ataques à própria Federação, totalizando 175 casos.

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Em outra publicação, realizada pela organização internacional Repórteres


Sem Fronteiras, os números totais de agressões contra a imprensa chegam
a 580. Os números divergentes entre ambas as pesquisas, no entendimento
do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, não tiram o mérito
ou tornam mais relevante um ou outro levantamento, já que cada um deles
aplica metodologia específica.

“Para a categoria dos jornalistas, 2020 teve particularidades. Mundial-


mente, houve um efeito positivo, com o Jornalismo recuperando parte de
sua credibilidade, mostrando-se ainda mais necessário para as sociedades
democráticas, e os jornalistas sendo reconhecidos profissionalmente. No
Brasil, entretanto, registrou-se também particularidades negativas. 2020 foi
o ano em que jornalistas arriscaram suas vidas (e muitos morreram), tiveram
suas condições de trabalho mais precarizadas e sofreram ainda mais ataques
violentos, por estarem cumprindo seu papel social”, avalia a presidenta da
FENAJ, Maria José Braga, na apresentação do Relatório 2020.

O presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, o presidente Jair Bolsonaro, o líder do governo no Congresso,
Eduardo Gomes e o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque (Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Família Bolsonaro lidera agressões

Levantamento da RSF teve parceria da Volt Data Lab, agência de jornalismo de dados (Imagem: Divulgação/RSF)

A Repórteres Sem Fronteiras (RSF) computa em 118 o total de episódios de


agressões à imprensa realizadas pelo presidente Jair Bolsonaro e seus filhos
Flávio, Eduardo e Carlos somente no quarto trimestre de 2020. O deputado
federal Eduardo Bolsonaro é destacado no Relatório 2020 da Fenaj como o
“principal predador da liberdade de imprensa da família”. Somadas, as ações
antidemocráticas dos quatro Bolsonaro respondem por 85% do total de ataques
de autoridades à imprensa no Brasil, segundo a pesquisa da RSF.

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

“A explosão de casos [de agressões] está associada à sistemática ação


do presidente da República, Jair Bolsonaro, para descredibilizar a imprensa
e à ação de seus apoiadores contra veículos de comunicação social e con-
tra os jornalistas. Ela começou em 2019 e agravou-se em 2020, quando
a cobertura jornalística da pandemia provocada pelo novo coronavírus foi
pretexto para dezenas de ataques do presidente e dos que o seguiram na
negação da crise sanitária”, aponta o relatório da Fenaj.

Em ambos os levantamentos, a violência contra jornalistas e a repres-


são à liberdade de imprensa estão diretamente ligadas à Presidência da
República. No Relatório 2020 da Fenaj, depois de Bolsonaro, aparece como
segundo grupo que mais agrediu jornalistas e imprensa o dos servidores
públicos e de dirigentes da Empresa Brasil de Comunicação; em terceiro,
o grupo genérico dos “políticos”.

A violência contra jornalistas e comunicadores populares é um dos


absurdos da gestão Bolsonaro, o qual se agrava ainda mais com medidas
como a tentativa de flexibilizar regras para porte de arma por meio dos
Decretos 10.627, 10.628, 10.629 e 10.630/2021, que alteram pontos do
Estatuto do Desarmamento. Além de corresponderem a uma tentativa do
Executivo de criar leis, que é uma atribuição do Legislativo, as medidas
podem aumentar a violência ao facilitar a circulação de armas de fogo e
munições na sociedade, favorecendo a aquisição e porte pela população
civil, profissionais, colecionadores, atiradores e caçadores.

Para a Repórteres Sem Fronteiras, “o tom deste início de 2021 coincide


com o que foi até agora o mandato do chefe de Estado brasileiro – que
ainda tem 2 anos na cadeira da Presidência. A hostilidade demonstrada por
Jair Bolsonaro não é novidade. Ela reflete como o presidente, sua família e
seus apoiadores refinaram, ao longo do ano passado, um sistema focado
em desacreditar a imprensa e silenciar jornalistas críticos e independentes,
considerados inimigos do Estado”.

Dois assassinatos de jornalistas em 2020

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Assim como já ocorrera em 2019, os atos de descredibilização da


imprensa foram a categoria de ataques mais frequente no Relatório da Fenaj
em 2020: 152 casos, o que representou 35,51% do total. Já os casos de
censura cresceram e institucionalizaram-se na Empresa Brasil de Comu-
nicação (EBC). O relatório da Fenaj registrou 76 casos de censura na EBC,
número que já colocaria a rede de veículos públicos quase empatada com
o setor audiovisual como o tipo de mídia em que mais foram registrados
casos de violência.

No relatório da Fenaj, “a coleta dos dados se dá por meio de denúncias


à Federação ou a um dos Sindicatos de Jornalistas, feitas pelas próprias
vítimas da violência ou outros profissionais da mídia, além da compilação de
notícias publicadas pelos variados veículos de comunicação”. A metodologia,
portanto, pode deixar de fora ataques a comunicadores populares, jovens
que se destacaram nas redes e lideranças das diversas comunidades tradi-
cionais que tenham desempenhado um papel importante na comunicação.

O relatório de 2020, assim como o levantamento de 2019, registra dois


assassinatos de jornalistas. Edney Menezes, 44 anos, foi assassinado a tiros
na noite de 15 de novembro, um domingo, na cidade de Peixoto de Azevedo,
no Mato Grosso. Horas antes de ser assassinado, o profissional comemorou
pelas redes sociais o resultado eleitoral, já que havia trabalhado na cam-
panha pela reeleição do prefeito da cidade. O jornalista havia comentado
com familiares que estava sendo ameaçado, mas não indicou por quem.

Na fronteira entre o Brasil e o Paraguai, entre as cidades de Pedro Juan


Caballero e Ponta Porã, o jornalista Lourenço Veras, 52 anos, conhecido
como Leo Veras, foi assassinado a tiros no quintal de sua própria moradia,
no dia 12 de fevereiro de 2020. Ele era responsável pelo site Porã News e tor-
nou-se conhecido por suas reportagens policiais sobre o crime organizado
na região. Em mais de uma ocasião, Veras relatou ter recebido ameaças de
morte em razão de seu trabalho jornalístico. Os dois casos ainda precisam
ser solucionados pela polícia.

Informações sobre casos destoam no país

Além do crescimento das agressões praticadas contra jornalistas, o levan-


tamento de 2020 mostra também que as regiões com menos episódios são
justamente o Norte (5,44% – 15 episódios) e o Nordeste (6,88% – 19 casos),
duas das regiões mais pobres do país. Além de se tomar cuidado para evitar
a reprodução de estereótipos, é importante avaliar se isso representa de
fato que os jornalistas não estão entrando em conflitos ou se mostra mais
que as entidades de classe estão enfrentando dificuldades para catalogar
os dados da violência em ambas as regiões.

Por outro lado, o Centro-Oeste, região marcada pelo agronegócio, tem


um número expressivo de registros no Relatório 2020 da Fenaj. No entanto,
dos 134 casos registrados, 120 ocorreram no Distrito Federal. Caso Brasília
fosse retirada do levantamento, a região teria apenas 14 casos de agressões
a jornalistas e à imprensa. Menos ainda, portanto, do que os números veri-
ficados no Norte e no Nordeste – o que significa que cabe aqui o mesmo
questionamento já citado sobre as causas do baixo índice de casos. Já no
Sudeste, a Fenaj encontrou 78 casos, enquanto o Sul totalizou 30.

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

Para entender como o brasileiro se informa, é importante desenvolver


estudos que cruzem dados como os dos relatórios sobre repressão a jor-
nalistas e à liberdade de imprensa com informações sobre a realidade de
comunicadores populares e lideranças comunitárias. Tais informações
devem avaliar o funcionamento das redes sociais e incorporar também
análises sobre as mudanças que vêm ocorrendo no setor da comunicação.

Os estudos da Fenaj e da Repórteres Sem Fronteiras são os principais


levantamentos sobre violência contra jornalistas e agressões à liberdade de
imprensa no Brasil. Analisar seus dados e compará-los com outros, como
os reunidos pelo Atlas da Notícia, por exemplo, é relevante para avaliar a
repercussão e o impacto das ameaças e da violência real sobre o setor e
seus profissionais.

“Os estados do Tocantins e Rio Grande do Norte têm a maior incidência


de desertos da notícia. Apenas dois em cada dez municípios contam com
algum meio de comunicação com produção de notícias locais”, explica a
equipe do Atlas da Notícia em artigo publicado no Observatório da Imprensa.
Essa informação ajuda a compreender por que cada um desses estados
registrou apenas um episódio de violência contra jornalistas no Relatório
2020 da Fenaj.

Em seis estados das regiões Norte e Nordeste, a Federação Nacional


dos Jornalistas não registrou nenhum episódio de violência ou repressão
à liberdade de imprensa em 2020: Acre, Alagoas, Amapá, Maranhão, Ron-
dônia e Sergipe. Além da crise econômica e das próprias características
do setor de comunicação, a ausência de episódios pode ser influenciada
ainda pelo fato de que, em alguns desses estados, veículos de radiodifusão
e impressos estão muitas vezes sob o controle de famílias que têm muito
poder econômico ou atuam na política local.

“É uma realidade de Norte a Sul do Brasil: o levantamento do Intervozes


mostra 9 candidatos donos de mídia no Nordeste, 4 no Norte, 2 no Sudeste,
2 no Sul e 2 no Centro-Oeste”, cita Paulo Victor Melo, jornalista integrante
do coletivo, se referindo a estudo sobre candidatos aos cargos de vereador
e prefeito nas eleições municipais de 2020. Evidentemente, os jornalistas
de um veículo comandado por político têm pouca liberdade para denunciar
desmandos, especialmente aqueles cometidos pelas famílias “donas da
mídia”, quando atuam profissionalmente nessas empresas.

Governo Bolsonaro escancarou violência

Maryellen Crisóstomo, liderança da Coordenação Nacional de Articulação


das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), considera que a violên-
cia contra jornalistas e a repressão à liberdade de imprensa foram escancaradas
nos territórios tradicionais após a posse de Bolsonaro. “Não creio que piorou.
Escancarou. Porque as violações sempre aconteceram”, enfatiza a bacharel
em Comunicação Social formada pela Universidade Federal do Tocantins.

Maryellen explica que a expressão “ir passando a boiada”[1] se refere a


uma sequência, porque “passando” diz respeito a algo que já vinha ocor-
rendo antes. “A Conaq tem trabalhado com vários parceiros para oferecer
cursos/dicas e elaborar planos de segurança para as lideranças tanto nos
espaços físicos quanto virtuais”, destaca ela entre as medidas de enfren-
tamento a esse cenário, citando a Via Campesina e a Coordenadoria Ecu-
mênica de Serviço (Cese).

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Perguntada sobre a existência de coberturas jornalísticas de territórios


quilombolas, especialmente em temas que vão de encontro aos interesses
dos políticos locais ou do país, Maryellen foi enfática. “Não existe. Geralmente
a ‘imprensa local/regional’ é afiliada da nacional, que tem uma ‘política edi-
torial’ de não enfrentar quem a patrocina. Que são os invasores dos nossos
territórios. Mas há meios de comunicação que contribuem, divulgando as
violações aos nossos direitos, como o Brasil de Fato”[2], respondeu ela,
fazendo questão de ressaltar o papel dos veículos independentes de mídia.

Portanto, além de denunciar a existência e de debater causas e possíveis


soluções para os casos de violência a jornalistas e à imprensa, é importante
também entender a realidade dos estados e regiões que não registraram
recentemente episódios de agressões. A ausência de casos pode, em algu-
mas situações, encobrir situações mais graves de ataques a comunicadores
populares e lideranças de comunidades do que aquelas verificadas nas
localidades com índices mais elevados de ataques.

REFERÊNCIAS

• FENAJ. Relatórios de Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa


no Brasil. Disponível em: <https://fenaj.org.br/relatorios-de-violencia-con-
tra-jornalistas-e-liberdade-de-imprensa-no-brasil/>. Acesso em: 18 fev.
2021.
• PROJOR – Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo e Volt Data Lab.
Atlas da Notícia – Mapeando o jornalismo local no Brasil. Disponível em:
https://www.atlas.jor.br/. Acesso em: 18 fev. 2021.
• RSF – Repórteres sem fronteiras. Classificação Mundial da Liberdade de
imprensa 2020. Disponível em: https://rsf.org/pt/classificacao. Acesso em
18 fev. 2021.
• [1] O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, afirmou que a pande-
mia do Covid 2019 deveria ser aproveitada para “ir passando a boiada e
mudando todo o regramento e simplificando normas”. A frase ficou famosa
por explicitar a tentativa de representantes do Governo Federal de acabar
com a regulamentação e as proteções ao meio ambiente previstas inclu-
sive na Constituição Federal. https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/
agencia-estado/2020/05/23/salles-diz-para-aproveitar-pandemia-e-ir-
-passando-a-boiada.htm
• [2] O Brasil de Fato é um dos veículos independentes que vêm atuando
no processo de explicitar violências contra comunicadores e jornalistas.
Em 2021, já existem denúncias também. https://www.brasildefatope.com.
br/2021/02/19/apos-embate-com-vereador-blogueiros-sofrem-ameacas-
-de-morte-em-petrolandia-pe

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

Como nos tempos de chumbo: empresa


de comunicação pública vira arma de
propaganda de Bolsonaro
Bia Barbosa, Gésio Passos e Mariana Martins de Carvalho

O segundo ano do governo Bolsonaro foi de consolidação da política de


desmonte da comunicação pública, cuja existência é considerada um dos
pilares de um sistema democrático. Apesar da política deliberada de des-
monte já ter sido um legado do governo de Michel Temer, houve, no governo
Bolsonaro, um aprofundamento, com ataques constantes à credibilidade e à
autonomia da comunicação pública, mais precisamente da Empresa Brasil
de Comunicação (EBC).

Ao contrário do que anunciou durante a sua campanha, Jair Bolsonaro


não acabou com a EBC e soube, mais do que os seus antecessores, fazer
da empresa uma aliada dos interesses do governo, com uma estrutura de
controle, censura e proselitismo político e religioso jamais vista.

A EBC é uma das tantas estruturas do Estado brasileiro que passam por uma
intervenção militar na gestão Bolsonaro. Não é novidade que governos militares
têm apreço pelas comunicações – e isso é, inclusive, parte do DNA das políticas
de comunicações no Brasil. Credita-se aos militares, e a suas estratégias de uso
da comunicação do Estado para autopromoção do governo, a sobrevivência da
empresa, contrariando os compromissos de campanha de Bolsonaro.

Mas a “vitória” dos militares não é inabalável; sabe-se que existe um cabo
de guerra entre as alas militar e privatista do governo quanto aos rumos da
EBC. Apesar de um dos grandes aliados da estratégia dos militares, o general
Santos Cruz, ter saído do governo em clima de guerra com o presidente,
outro ator que aparentemente quer a manutenção da EBC entrou em cena.

Em junho de 2020, o governo Bolsonaro, em franco desgaste de relações


com o Congresso Nacional, recriou o Ministério das Comunicações (Mini-
com) e o entregou ao chamado Centrão. Coube ao deputado federal Fábio
Faria (PSD-RN), radiodifusor e genro de Silvio Santos, dono do SBT, a missão
de fazer o rearranjo da pasta recriada, que acabou incorporando a EBC. “Em
mais uma ação inédita, Bolsonaro colocou a Secretaria de Comunicação da
Presidência da República – órgão ao qual a EBC voltou a ser vinculada – no
escopo do Minicom e, pela primeira vez em sua história, a EBC passou a ser
vinculada ao referido Ministério”.

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Apesar de ter tirado a presidência da empresa das mãos dos militares, a


mudança não foi suficiente para acabar com a visão do setor sobre a linha
editorial e o modus operandi da EBC. A defesa intransigente do governo e,
mais precisamente, da figura do presidente segue sendo a tônica da gestão
atual na empresa pública.

Falou tá falado, não tem discussão

A deturpação da missão legal da EBC afeta diretamente o direito à infor-


mação da população e descumpre premissas constitucionais de existência
de um sistema público de comunicação. Com a EBC capturada pelo governo,
o jornalismo dos seus veículos passou a atender aos interesses expressos
do Planalto, cerceando qualquer tipo de assunto que possa desagradar o
poder central.

Além da censura, o governismo na empresa ainda promoveu o negacio-


nismo durante a pandemia da Covid-19, uma das maiores crises sanitárias
vividas pelo mundo. Uma cobertura precária, desumana, sem ouvir as vítimas
e sem contraponto foi vista em todos os veículos do grupo. Um jornalismo
meramente declaratório, acrítico e que atende aos pedidos dos militares de
destacar os aspectos positivos da conjuntura.

Povos indígenas ainda reclamaram que a cobertura da EBC ignorou suas


vozes nas matérias produzidas sobre a pandemia. A vacina da Sinovac,
produzida em São Paulo, também ficou fora do noticiário, já que o gover-
nador do Estado, João Dória (PSDB-SP), é um dos principais adversários
do presidente e possível candidato ao Planalto em 2022.

A TV Brasil desprezou as mortes e a falta de oxigênio em Manaus. Qual-


quer reação ao genocídio promovido por parte do governo Bolsonaro foi
vetada. Por outro lado, o polêmico aplicativo TratCov, que receitava o uso de
medicamentos sem eficácia comprovada e não recomendados pela Orga-
nização Mundial de Saúde (OMS) como tratamento precoce da Covid-19,
ganhou destaques antes de ser suspenso. Até um repórter da Rádio Nacional
foi retirado da cobertura da pandemia por questionar militares durante uma
coletiva no Ministério da Saúde.

Fatos como o assassinato de um homem negro, João Alberto, em um


supermercado de Porto Alegre, na véspera do Dia da Consciência Negra,
foi, incrivelmente, censurado na empresa. E, claro, o militarismo continuou
presente na programação, louvando os atos “heroicos” das tropas.

Nem as redes sociais das emissoras passaram inertes à censura. Para


além do veto ao debate público sobre a ditadura militar, coberturas relevantes
feitas pela Empresa no passado e que faziam parte da sua memória foram
apagadas. Até mesmo um grupo no Facebook de funcionários da EBC foi
alvo de perseguição.

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

Imagem: Divulgação/FNDC

A programação da TV Brasil foi usada como ferramenta de promoção do


governo e do bolsonarismo , bem como de perseguição a adversários. A todo
momento, a emissora interrompia sua programação para pronunciamentos
oficiais, atos políticos, formaturas de militares e até celebrações religiosas.

Na manhã de 11 dezembro de 2020, um desenho infantil foi interrompido


para a transmissão ao vivo do presidente inaugurando a duplicação de uma
rodovia federal no Rio Grande do Sul. Após o discurso oficial, a TV Brasil
exibiu, por 11 minutos, o presidente acenando para carros e caminhões. A
transmissão total ultrapassou 50 minutos.

Em outubro, após uma obscura negociação entre CBF, Governo Federal


e os detentores dos direitos de transmissão de parte dos jogos das Elimina-
tórias da Copa do Mundo, a TV Brasil transmitiu, de última hora, o jogo entre
Brasil e Peru. Por duas vezes o narrador mandou um “abraço especial” a
Bolsonaro, atendendo a pedidos do Secretário de Comunicação Social, Fábio
Wajngarten. Em dezembro, a TV Brasil também transmitiu, ao vivo, a parti-
cipação de Bolsonaro em jogo beneficente em Santos (SP), por 28 minutos.

Outro exemplo de abuso foi a veiculação de um culto religioso com pas-


tores evangélicos, na Páscoa. Uma mistura ilegal de proselitismo político e
religioso, proibido tanto pela Constituição como pela lei que criou a EBC.
O tal culto provocou manifestação do relator especial para a Liberdade de
Expressão da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos (CIDH), Edison
Lanza, que afirmou: “O uso sectário e longe do interesse público da mídia
pública deve ser banido com garantias legais”.

21
INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Um dos programas mais antigos da televisão brasileira, o “Sem Censura”,


deixou a programação da TV Brasil após 35 anos. A atração, que foi um
marco na redemocratização do país, já se apresentava de forma desfigurada
e não sobreviveu ao bolsonarismo. Com a ampliação da censura na empresa,
foi até mais honesto o fim do programa.

Além do uso expresso para promoção de Bolsonaro e seu discurso, a emissora


ainda beneficiou redes de extrema-direita com imagens exclusivas para canais
que apoiam o governo, alavancando a audiência e o lucro desses apoiadores.

Apesar de você, amanhã há de ser outro dia

Os ataques sistemáticos e graves proferidos aos trabalhadores e traba-


lhadoras dos diversos veículos da EBC, em vez de silenciar os profissionais
de comunicação da empresa – como pretendia o governo –, teve como
resposta mobilizações e a resistência permanente nas redações.

Em 2020, a Comissão de Empregados da EBC, os sindicatos dos jor-


nalistas e dos radialistas no Distrito Federal, Rio de Janeiro e São Paulo e
a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) lançaram a segunda edição
do “Dossiê Censura EBC”, que teve o subtítulo “Inciso VIII”, em referência
ao Artigo 2° da Lei nº 11.652, de criação da EBC, que descreve como um
dos princípios a serem seguidos pela empresa o da “autonomia em relação
ao Governo Federal para definir produção, programação e distribuição de
conteúdo no sistema público de radiodifusão”.

O dossiê analisou o período de janeiro de 2019 a julho de 2020, reunindo


138 denúncias dos trabalhadores da EBC. Chegou-se, assim, à impres-
sionante marca de dois casos de censura ou governismo por semana no
período mapeado, mesmo sabendo-se que o medo de retaliações e per-
seguições tenha feito com que muitos episódios sequer fossem relatados.

Em dezembro, diversas Comissões de Jornalistas pela Igualdade Racial


(Cojira) denunciaram em nota pública a escalada de censura motivada tam-
bém por racismo dentro da empresa. Para além da censura ao caso João
Alberto, a nota denuncia a redução da representação negra nas telas da TV
Brasil e o silenciamento na cobertura de episódios como o assassinato da
vereadora Marielle Franco e a violência policial contra a população negra.
Ao manifestar indignação e revolta diante do racismo institucional na EBC,
as organizações clamaram por providências por parte do Ministério Público
Federal. Entretanto, o órgão não se pronunciou sobre o caso.

O número de violações à liberdade de imprensa foi tamanho dentro da


EBC em 2020 que a empresa foi destaque no relatório anual da Fenaj sobre
violência contra jornalistas. Depois do presidente da República, os dirigentes
da EBC integraram o segundo grupo a realizar mais ataques e agressões
a profissionais de comunicação, com 76 episódios registrados. Com mais
de 24% do total de casos de censura registrados, a Federação afirmou que
a censura se institucionalizou na empresa durante o ano, e que o Estado
brasileiro passou de omisso diante de ataques à imprensa a agressor.

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

Imagem: Divulgação/Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública

Foi também em função do que ocorreu na EBC que diversas organiza-


ções da sociedade civil – entre elas, o Intervozes – denunciaram o Brasil
perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Em duas
ocasiões, o governo teve que responder à CIDH sobre violações à liberdade
de expressão.

No final de 2020, a Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública,


que reúne dezenas de organizações da sociedade civil, instituiu uma Ouvi-
doria Cidadã da empresa. A iniciativa é uma resposta ao fim dos meca-
nismos de controle e participação social na EBC. Apesar de, oficialmente,
a ouvidoria seguir em operação, ela deixou de cumprir seu papel. Em vez
de relatórios com avaliações críticas sobre o que vai ao ar nos veículos da
empresa e manifestações da audiência, a ouvidoria oficial da EBC se limita,
hoje, a elogiar a gestão da empresa.

De forma a manter o espírito de uma ouvidoria comprometida com o


diálogo entre a sociedade e uma empresa pública de comunicação, a Ouvi-
doria Cidadã da EBC se propõe a publicar análise dos conteúdos, boletins
e artigos, os quais serão reunidos em relatórios periódicos, apontando vei-
culações e publicações em desacordo com os princípios previstos na lei
que criou a EBC, além de exemplos de bons conteúdos que promovam o
debate público e a pluralidade de ideias. Agindo assim, dá voz à resistência
em defesa da comunicação pública.

Salta aos olhos, no ano difícil de 2020, a mobilização de parte dos empre-
gados e empregadas da empresa, que não se sujeitaram a contribuir com o
desmonte da comunicação pública. Muitos dos que não quiseram ter seus
nomes vinculados a este tenebroso período da história organizam-se de
diversas formas para garantir tanto o registro histórico do que vem aconte-
cendo como a realização de denúncias junto a movimentos sociais, órgãos
públicos, organizações internacionais e parlamentares. Essas frentes de
resistência têm tido um papel essencial para revelar dentro e fora do Brasil
os ataques à comunicação pública e também à democracia brasileira.

REFERÊNCIAS

• CARVALHO, M. M.; VERRI, F.; OLIVEIRA, G.P. Jornalismo Público em Tempos


de Crise: cobertura das eleições presidenciais de 2018 pela Agência Brasil
(ABr/EBC), pág.62. Disponível em: https://periodicos.uff.br/confluencias/
article/view/47119/27125. Acesso em: 05 de fev. 2021.
• FENAJ. 2º Dossiê Censura EBC – Inciso VIII. Disponível em: <https://fenaj.
org.br/wp-content/uploads/2020/09/Dossie_Censura_EBC_2020.pdf>.
Acesso em: 19 de fev. 2021.

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

A serviço do punitivismo, do policiamento


preditivo e do racismo estrutural

Paulo Victor Melo

Muralha Digital; Cercamento eletrônico da cidade; City Câmeras; De Olho


na Rua. Com esses e outros nomes, prefeitos de capitais brasileiras, eleitos
ou reeleitos em novembro de 2020, batizaram programas e ações na área
da segurança pública que colocam as tecnologias de informação e comu-
nicação a serviço de uma política vigilantista, de segregação e controle.

Um levantamento do Instituto Igarapé já apontava a aplicação de reco-


nhecimento facial – uma das tecnologias utilizadas – por polícias, guardas
civis e outros órgãos em 30 cidades de 16 estados do país.

A partir das últimas eleições municipais, vislumbra-se um crescimento


do fenômeno, considerando que, dentre os 26 prefeitos de capitais empos-
sados em janeiro de 2021, 17 apresentaram propostas[i] que, de algum
modo, preveem o uso das tecnologias de informação e comunicação na
segurança pública.

Tarcízio Silva, que é bolsista de tecnologia e sociedade na Mozilla, quali-


fica o uso acrítico dessas tecnologias na segurança pública como “soluções
imediatistas e equivocadas”. Ele acredita que a expressiva quantidade de
programas governamentais com essa perspectiva representa uma tendência
de fortalecimento da anuência à violência estatal, o que impacta diretamente
a democracia.

“O longo compromisso racista da sociedade brasileira é mantido por


uma estratificação do respeito aos direitos humanos, onde a interseção
de negritude e pobreza cria grupos preferenciais que são alvos constantes
de vigilância e da violência estatal – efetiva ou sempre potencial”, ressalta
Tarcízio.

Jornalista e pesquisadora sobre governança da internet, Mariana Gomes


também compreende que o investimento público em tecnologias de vigilân-
cia tem relação direta com o racismo estrutural e a cultura punitivista contra
grupos vulnerabilizados da sociedade.

Mariana enfatiza que essa “é uma decisão que atualiza o punitivismo,


ideologia que alicerça as políticas de segurança pública em nosso país, e
consequentemente atualiza os mecanismos do racismo e outras opressões.
Em termos de democracia, é um investimento num setor que já tem a prática
de punir pessoas negras, periféricas e LGBTs”.

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

Sala de vigilância da Prefeitura de Curitiba (Crédito: Daniel Castellano-SMCS-Prefeitura de Curitiba)

A institucionalização da vigilância

Não desconsiderando as diversas gradações das propostas, o conjunto


dos programas governamentais e a pulverização partidária[ii] desses ges-
tores materializam a utilização das tecnologias de informação e comunica-
ção como instrumentos a serviço do policiamento preditivo, que pode ser
resumido como uma prática de segurança baseada na indicação de futuras
cenas criminosas, adotada com base em dados criminais passados ou em
características “suspeitas”.

Em outros termos, o policiamento preditivo implica em “reconhecer”


alguém que em algum momento da vida tenha cometido um crime e, mesmo
que já tenha cumprido a respectiva pena, colocá-lo num “banco de dados”
de possíveis reincidências, ou então, a partir de determinados perfis, definir
previamente alguém como potencial criminoso.

Ainda que diferentes iniciativas em diversas partes do mundo, inclusive


no próprio Brasil[iii], proponham uma maior regulamentação ou o banimento
desse tipo de tecnologia, a perspectiva a partir de 2021 é a de ampliação do
seu uso. Isso resultará no aprofundamento de uma legitimação instituciona-
lizada do vigilantismo como estratégia de segurança pública.

Nessa linha, o reconhecimento facial foi expressamente defendido no


programa governamental de quatro prefeitos empossados, nos seguintes
termos (o nome do prefeito, da cidade e do partido estão identificados entre
parênteses):

• Ampliar o videomonitoramento, incorporando tecnologia de reconhecimento


facial e análise de comportamento dissonante (Gean – Florianópolis – DEM).
• Análise de reconhecimento facial e comportamental e mapeamento das áreas
com maior incidência de crimes, integrando com as câmeras de segurança e
o sistema de monitoramento eletrônico, que serão ampliados para outras ruas
e avenidas da cidade (Delegado Pazolini – Vitória – Republicanos).
• Implantar o cercamento eletrônico da cidade, com câmeras e softwares de

25
INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

qualidade, leitura de placas e reconhecimento facial (Edvaldo Nogueira –


Aracaju – PDT). Implantar um sistema integrado de reconhecimento facial e
utilizar as tecnologias de comunicação e informação para combater a crimi-
nalidade (Cinthia Ribeiro – Palmas – PSDB).

Três das propostas analisadas também previam, de forma incisiva, o uso


de drones, nos seguintes termos:

• Utilização de drones para acompanhamento de atividades nas praças,


ocupações e atividades irregulares, segurança de instalações (Gean –
Florianópolis – DEM).
• Aquisição de drones com Inteligência Artificial para monitoramento da
cidade (Maguito Vilela – Goiânia – MDB).
• Aumento do número de drones usados na bem-sucedida estratégia de
combate à criminalidade (Bruno Covas – São Paulo – PSDB).
• A intensificação do videomonitoramento ou da vigilância por câmeras
é outra das estratégias mencionadas nas plataformas de prefeitos das
capitais brasileiras:
• Criar o programa “De olho na rua”, que estabelece a implantação de
câmeras em pontos estratégicos das cidades (Maguito Vilela – Goiânia
– MDB).
• Ampliar pontos de videomonitoramento e estruturar o serviço de inteli-
gência em segurança, favorecendo a identificação dos principais fatores
de violência e criminalidade (Marquinhos Trad – Campo Grande – PSD).
• Integrar mais 4.240 câmeras ao Programa City Câmeras, mais que
dobrando o número atual, além de instalar 12 mil equipamentos para
vigilância nas escolas da rede municipal (Bruno Covas – São Paulo
– PSDB).
• Utilizar a infraestrutura de iluminação pública para ampliação das
câmeras de videomonitoramento (Edvaldo Nogueira – Aracaju – PDT).
• Instalação de câmeras de monitoramento em torres de observação nas
principais vias de acesso e pontos estratégicos da cidade, que enviarão
imagens de toda cidade em tempo real para uma central da Guarda
Municipal (Tião Bocalom – Rio Branco – PP).
• Ampliar o número de câmeras de videomonitoramento em espaços
públicos, bem como modernizar a Central de Monitoramento (Álvaro
Dias – Natal – PSDB).
• Instalação de câmeras de monitoramento dentro dos ônibus e em
pontos de parada, com supervisão da Guarda Municipal e da Polícia
Militar, e instalação de câmeras de monitoramento por toda cidade
(Cícero Lucena – João Pessoa – PP).
• Ampliar o sistema de videomonitoramento das vias e logradouros
públicos com uso de câmeras de vigilância nos espaços públicos de
Teresina, permitindo a prevenção da criminalidade e da violência (Dr.
Pessoa – Teresina – MDB).

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

Câmera de vigilância na capital paranaense (Imagem: Luiz Costa/SMCS/Prefeitura de Curitiba)

Vale ressaltar ainda que, no sentido da legitimação institucional, o


uso dessas tecnologias tem sido estimulado por ações normativas do
Governo Federal, a exemplo da Portaria 793/2019 que, ao regulamentar
o Fundo Nacional de Segurança Pública, prevê a disponibilização de
recursos para o “fomento à implantação de sistemas de videomonito-
ramento com soluções de reconhecimento facial, por Optical Character
Recognition – OCR, uso de inteligência artificial ou outros”.

Outra questão relevante a considerar, compreendendo o vigilan-


tismo como uma problemática global, diz respeito à convergência de
interesses entre órgãos de segurança e defesa e empresas de tec-
nologia na segregação e controle dos espaços urbanos via captura,
tratamento e uso de dados dos cidadãos. Isso extrapola a área da
segurança e se constitui como articulação necessária entre empresas
privadas e instituições de segurança e defesa para o que a pesqui-
sadora estadunidense Shoshana Zuboff descreve como capitalismo
de vigilância[iv].

Num país já caracterizado pela materialização de lógicas racistas


na atuação das polícias e órgãos de segurança pública, como é o caso
do Brasil, pesquisadores e organizações da sociedade civil têm aler-
tado que a legitimação institucionalizada do vigilantismo nos espaços
urbanos tem como uma das principais consequências o agravamento
de práticas racistas, como a identificação e prisão, a partir do uso das
tecnologias de informação e comunicação, de pessoas negras que
não tenham cometido qualquer crime.

Um caso emblemático nesse sentido ocorreu em janeiro de 2020,


no Rio de Janeiro, quando Victor Mendes e Leonardo Nascimento
foram “confundidos” por câmeras de videomonitoramento e presos.

Igualmente alarmante é o fato de 90,5% das pessoas presas a partir


da identificação por reconhecimento facial no Brasil serem negras, de
acordo com pesquisa da Rede de Observatórios de Segurança.

27
INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

A perversidade de colocar a população como “aliada” do punitivismo

No intento de consolidar a vigilância e o punitivismo como tônicas


na política de segurança pública, alguns gestores propõem também
o envolvimento direto da população nas estratégias de monitora-
mento. Com isso, contribuem para uma espécie de grande “big bro-
ther” público, em que todo mundo vigia todo mundo e o Estado pune
os vigiados.

Um exemplo é o programa de governo do prefeito Maguito Vilela


(MDB)[v], de Goiânia, que estabelecia que “condomínios com sistemas
de câmeras de vídeo serão obrigados a ter parte do equipamento
monitorando as ruas”. Medida semelhante foi defendida por Rafael
Greca (DEM), em Curitiba, que apontava “o incentivo à população
(residências, prédios e condomínios)” na colaboração com o programa
Muralha Digital.

Já em Belo Horizonte, no plano do governo Kalil (PSD), estava


previsto que o Centro de Operações da Prefeitura “passará a contar
também com as câmeras e sensores instalados pelo próprio cida-
dão, cujas imagens poderão ser disponibilizadas por meio de uma
plataforma colaborativa de monitoramento, ampliando a cobertura da
cidade e aprimorando as respostas às diversas situações de segurança
e desordem pública”.

Para Tarcízio Silva, que é também doutorando na Universidade


Federal do ABC (UFABC), a consciência de determinados supostos
privilégios – a exemplo daqueles relacionados à cor da pele, ao local
em que se vive e à renda – leva boa parte da população a se afiliar a
projetos equivocados de promoção de encarceramento como solução
para problemas sociais.

“As janelas gradeadas nas periferias e os condomínios que muram


ruas – até então – públicas em bairros de classe alta se irmanam na
percepção do espaço público como ambiente hostil e cheio de peri-
gos. A desigualdade como forma de controle de recursos humanos
no país promoveu esse tipo de ideologia, que não por acaso acaba
por gerar padrões de comportamento em âmbitos distintos, desde
consumo – vide os shoppings – até educação – como universidades
públicas muradas e de acesso restrito”, aponta ele.

“Não é surpresa, então, o uso de recursos discursivos com evoca-


ção de [expressões como] ‘muralha’ ou ‘cercas’ para criar uma cisão
fundamental entre quem é visto como cidadão e quem é visto como
ameaça potencial”, complementa Tarcízio.

28
DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

A articulação entre os programas policialescos e as tecnologias


de vigilância

Uma das principais narrativas de produção e legitimação dos dis-


cursos de ódio contra as populações vulnerabilizadas, os programas
policialescos têm relação intrínseca com a cada vez maior utilização
de tecnologias de vigilância na segurança pública.

Caracterizados pelo acompanhamento de casos policiais, pela


superexposição da violência e pela violação de uma série de trata-
dos internacionais e legislações brasileiras, esses programas – que
estão presentes tanto em redes nacionais de TV e rádio quanto em
emissoras locais – comumente são espaços de defesa de medidas
como a redução da maioridade penal, o encarceramento em massa,
a pena de morte e o justiçamento “com as próprias mãos”.

Nas eleições municipais de 2020, conforme levantamento reali-


zado pelo Intervozes, pelo menos 10 candidatos a prefeito ou vice, de
oito partidos diferentes, tinham algum tipo de vínculo com programas
policialescos (apresentadores, repórteres e ex-apresentadores). Do
mesmo modo que os prefeitos empossados em janeiro de 2021, esses
candidatos também defenderam propostas que reforçam a vigilância
e o punitivismo.

No entendimento de Tarcízio Silva, os programas policialescos se


pautam no desrespeito aos direitos humanos e reforçam o imaginário
carcerário e punitivista. “Por essa lente, podemos entender, por exem-
plo, como nas principais cidades do país há sempre o espectro – por
vezes realizado – da eleição para o Executivo de apresentadores de
tais programas. A constante enunciação de discurso violento con-
tra parte historicamente vulnerabilizada da população os posiciona
como líderes por enunciarem o que parte das classes em posições
de poder – absoluto ou relativo – são sociabilizadas desde cedo a
acreditar”, avalia.

O pesquisador da UFABC chama a atenção para a gravidade desses


programas como definidores de diferentes níveis de cidadania. “Ao
performar diariamente a relação entre cidadãos-consumidores, de um
lado, e de párias indesejáveis, de outro, os programas policialescos
fazem a manutenção da estratificação social entre humanidades dife-
renciais”, salienta – referindo-se aos tratamentos distintos dispensados
por essas narrativas, a depender, por exemplo, da raça ou do local de
moradia das pessoas retratadas.

Na mesma perspectiva, Mariana Gomes destaca que “as imagens


exaustivas de violência veiculadas pelas equipes desses programas
são mais uma camada da banalização da vida que jovens negros,
principalmente das periferias, travestis e transsexuais em situação
de rua e mulheres vítimas de violência doméstica já passam em ser-
viços de saúde e nas delegacias. É a comunicação e a tecnologia em
desserviço à vida”.

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

NOTAS

i O levantamento aqui apresentado baseia-se em pesquisa realizada nos


programas de governo de todos os prefeitos eleitos nas capitais do país em
novembro de 2020 e empossados em 1º de janeiro de 2021, disponibilizados no
site do Tribunal Superior Eleitoral: https://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/.
Considerando o volume de material e o fato de muitos programas serem amplos
nas suas temáticas, a metodologia empregada foi a de pesquisa a partir de 10
expressões-chave que se aproximam do objeto investigado: “Reconhecimento
Facial”; “Inteligência Artificial”; “Vigilância”; “Videomonitoramento”; “Monitora-
mento”; “Drone”; “Câmera”; “Vídeo”; “Dados”; “Tecnologia”.

ii Os prefeitos defensores dessas medidas estão em nove partidos diferentes,


entre os diversos espectros ideológicos da política brasileira: PSDB (4 prefeitos);
DEM (3 prefeitos); MDB (3 prefeitos); PP (2 prefeitos); Republicanos (1 prefeito);
PSD (1 prefeito); Avante (1 prefeito); PDT (1 prefeito); PSB (1 prefeito).

iii Alguns exemplos são Big Brother Watch e Liberty Human Rights, ambas na
Inglaterra; a campanha Ban Facial Recognition, nos Estados Unidos; a Internet
Freedom Foundation, na Índia; e o projeto Panóptico, no Brasil. Recentemente,
em uma carta aberta, mais de 2 mil matemáticos dos Estados Unidos pediram
ao conjunto dos profissionais da área que não colaborem com tecnologias de
informação utilizadas por órgãos de segurança pública e exigiram que qualquer
tecnologia para esse fim passe por uma auditoria pública.

iv Ainda que a formulação desse conceito se dê a partir da investigação


de estratégias mais recentes de empresas de tecnologia – como a extração
de dados e a respectiva análise, a personalização e customização de serviços
e o mapeamento de usuários de modo a alcançá-los com maior eficácia –,
vale ressaltar que as suas bases foram constituídas ainda na década de 1970,
quando as tecnologias da informação e comunicação passaram a cumprir,
de modo crescente, um papel determinante na estrutura econômica em nível
mundial e na mediação das relações sociais.

v Em 13 de janeiro de 2021, após complicações da contaminação por Covid-


19, o prefeito Maguito Vilela faleceu. Com isso, Rogério Cruz, eleito como vice,
assumiu a Prefeitura de Goiânia.

30
DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

Dificuldades no acesso à internet:


expressões do racismo estrutural

Paulo Victor Melo e Tâmara Terso

Caiana dos Crioulos. Território quilombola localizado na zona rural do


município de Alagoa Grande, no agreste da Paraíba. Considerada um dos
patrimônios culturais do estado, com forte presença de manifestações
populares como o samba de coco e a ciranda, Caiana está a apenas 122
km da capital João Pessoa, mas “bem distante das capitais” quando o
assunto é acesso à internet.

Edinalva Rita, que preside a Associação do Quilombo de Caiana, men-


ciona alguns impactos das dificuldades no acesso à internet, especial-
mente entre crianças e jovens. “Apenas sete jovens da comunidade se
inscreveram este ano no Enem e mesmo assim não conseguem estudar,
porque o sinal de telefone não pega. Nossa preocupação é como nossos
jovens vão disputar uma vaga no Enem e como vão participar da seleção
de um emprego se não conseguem ter acesso às informações igual aos
jovens da cidade”, questiona.

O fato que preocupa a líder quilombola, vale ressaltar, é um dos prin-


cipais motivos para o índice recorde de abstenção no Exame Nacional
do Ensino Médio (Enem) realizado nos dias 17 e 24 de janeiro de 2021:
num contexto de crescimento das contaminações e mortes pela Covid-
19, 51,5% dos inscritos optaram em resistir à orientação negacionista do
Governo Federal e, assim, não foram fazer as provas.

Nesta edição do Enem, foram contabilizados mais de 5,79 milhões de


inscritos, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educa-
cionais Anísio Teixeira (Inep). Destes, 60% eram negros; 60%, mulheres;
e houve ainda um crescimento de 450% na inscrição de pessoas tran-
sexuais. Portanto, os dados de abstenção revelam que a única porta de
entrada nas universidades públicas para milhares de pessoas em situação
de vulnerabilidade foi trancada na pandemia.

31
INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Imagem: Cléverson Oliveira/MCom

No centro político do país, a situação não é diferente. A indígena Nubiã


Tupinambá, nascida na Bahia e atualmente vivendo no Distrito Federal,
conhece as dificuldades no acesso à internet por uma dupla perspectiva:
como doutoranda em Linguística na Universidade de Brasília e como mãe
de Poti Porã, estudante de ensino fundamental no Centro Educacional Stella
dos Cherubins, em Planaltina.

“Eu, como mãe, vejo que a ausência do professor não auxilia no apren-
dizado das crianças. Minha filha não conseguia interagir com as aulas e
não conseguia tirar as dúvidas”, relata Nubiã, sobre as atividades on-line.
“Diferente de minha filha, que tem a maioria das aulas gravadas, eu já perdi
aulas inteiras ao vivo por falta de conexão, principalmente em dias de chuva
e quando tinha queda de energia”, complementa ela.

No caminho entre Alagoa Grande e Planaltina, está Alfavaca, povoado na


zona rural de Juazeiro, cidade do sertão da Bahia. Lá, onde mora a agricultora
Lilian Clara, a realidade é semelhante quando o assunto é desigualdade no
acesso à internet.

Mãe de duas crianças, Lilian frisa que a maior dificuldade na pandemia


tem sido a manutenção do estudo de seus meninos. “A internet, eu pego
emprestada do vizinho, e não é muito boa. Ou eles têm que ir pra casa
da avó acessar. E, como o único celular que eu tenho está ruim, às vezes
nós temos dificuldades para acessar e mandar as atividades. Tem sido um
pouco estressante para entregar as atividades em dia, porque não temos
uma internet boa”, descreve.

As dificuldades que sentem as mães de crianças e adolescentes, como


Nubiã e Lilian, são também percebidas pelas trabalhadoras da educação.
“O acesso à internet aqui não é muito bom. Poucos têm wi-fi em casa e
a rede 3G não funciona em todos os locais. Muitos alunos estudam com
celulares emprestados por familiares, vizinhos, ou precisam esperar os pais
voltarem do trabalho para acessar as propostas de atividades”, pontuou, em
entrevista à revista Nova Escola, Danielle Ferreira, coordenadora pedagógica
da Escola Virgínia Garcia Bessa, localizada no quilombo de Castainho, em
Garanhuns, Pernambuco.

32
DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

Em Caiana dos Crioulos, entretanto, nem mesmo essas alternativas de


empréstimo de telefone ou de uso compartilhado da internet foram possíveis.
Frente à precariedade não apenas da internet, mas também da atuação do
Estado na manutenção de estradas, por exemplo, a saída encontrada pela
escola da comunidade foi reduzir o processo educacional à realização de
atividades semanais em formato impresso.

“São 187 alunos na escola fundamental e apenas uns 5% da comunidade


têm internet, que ainda é ruim. Imagina essa quantidade de alunos sem sinal
de internet para desenvolver os trabalhos on-line? Então o diretor da escola
vem no começo da semana, entrega as atividades e, com oito dias, as devol-
vemos. E tem mais: a nossa estrada aqui, que dá acesso à cidade, também
é muito complicada. Se der uma chuva, às vezes a escola não consegue
entregar ou a gente não consegue devolver as atividades”, conta Edinalva.

Quando as filas da Caixa não foram por acaso

Principalmente em maio e junho de 2020, quando as famílias mais vul-


nerabilizadas começaram a ter direito ao auxílio emergencial – uma garantia
de renda mínima complementar a outros programas sociais e criada para
minimizar os efeitos da pandemia –, milhares de mulheres e homens, em
sua maioria negras e negros, aglomeraram-se nas portas das agências da
Caixa Econômica Federal em busca de informações sobre “um dinheiro que
viram falar na televisão” e “um aplicativo que tinham que baixar no celular”,
expressões que eram comumente ouvidas.

Em artigo publicado na Revista Raça, o militante da questão racial e atual


diretor da Fundação Pedro Calmon, Zulu Araújo, escreveu que as filas da
Caixa não eram um erro, mas uma expressão do projeto racista de Brasil, já
que ali estavam “contidos todos os elementos que deram causa e perduram
na relação entre o Estado brasileiro e a população de origem negra e pobre
no país: a discriminação, o descaso, o desrespeito e a insensibilidade”.

Os dados dão razão à avaliação de Zulu. Uma nota técnica divulgada em


maio de 2020 pelo Projeto Covid-19: Políticas Públicas e as Respostas da
Sociedade apontou justamente as dificuldades das populações mais vul-
nerabilizadas no acesso ao aplicativo do governo federal de solicitação do
auxílio emergencial, tanto por quem simplesmente não tinha acesso à rede
quanto por quem até dispunha de internet, mas não sabia utilizar.

Num país em que o racismo é fator estruturante das relações sociais,


políticas e econômicas, citar a expressão populações mais vulnerabilizadas
significa falar no conhecido encontro entre os critérios de raça e classe. E,
no tocante ao acesso à internet, não é de outro modo: apenas 33% das pes-
soas das classes D/E já utilizaram computador de mesa, notebook ou tablet,
enquanto esses números são bem maiores nas classes C (62%), B (88%) e A
(93%). A desigualdade se observa também no componente racial: somente
48% dos indígenas e 55% das pessoas pretas já utilizaram computador pelo
menos uma vez na vida. Entre as pessoas brancas, o índice é de 63%.

O tipo de dispositivo para acessar a rede é outro indicador da desigual-


dade: 75% de indígenas e 65% dos pretos e pretas utilizam a internet exclu-
sivamente pelo celular, numa proporção superior à das pessoas brancas

33
INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

(51%). Quando acrescida a perspectiva de classe social, essa desigualdade


se agrava ainda mais, já que 85% das pessoas das classes D/E têm apenas o
celular como meio de uso da internet, uma diferença abissal para as demais:
61% na classe C, 26% na classe B e 11% na classe A.

Os dados acima, da pesquisa TIC Domicílios divulgada em 2020, que


analisa o uso das tecnologias de informação e comunicação nas casas bra-
sileiras, dão pistas sobre a profundidade dos problemas enfrentados por
indígenas, pessoas negras e pobres do país para acesso a uma política
pública que, por opção do Governo Federal, centralizou as informações em
um aplicativo conectado à internet.

Segundo Carolina Requena, uma das integrantes do projeto Covid-19:


Políticas Públicas e as Respostas da Sociedade, a “centralização da imple-
mentação e execução da Renda Básica Emergencial na Caixa Econômica
excluiu do processo o Sistema Único de Assistência Social (Suas), que pos-
sui relativo sucesso no amparo a populações mais carentes sem acesso à
internet ou celular. Ao ficar de fora [o Suas], foram dispensados os Centros
de Referência de Assistência Social (Cras), serviço de ponta dos municí-
pios. As filas da Caixa acontecem porque as pessoas, ao terem dificuldade
com o aplicativo, recorrem às agências e acabam se tornando um foco de
aglomeração”.

Em depoimento ao Jornal da USP, a pesquisadora lembrou também que


mais de 7 milhões de brasileiros elegíveis para receber o auxílio não tinham
como acessar tecnologias como os aplicativos, “pois vivem em domicílios
sem acesso à internet, reflexo da desigualdade social mais que evidente
neste momento e que não deve ser ignorada pelo governo”.

Alguns desses brasileiros e brasileiras citados por Requena moram no


quilombo Caiana dos Crioulos, na Paraíba, e precisaram sair de suas casas
– logo, se expor ao vírus – em busca de ajuda para acessar o aplicativo
do Governo Federal. “As famílias aqui não perderam o auxílio emergencial
porque foram até a cidade, procuraram estabelecimentos que tivessem
internet e pessoas que soubessem usá-la para conseguir fazer o seu cadas-
tro. Ninguém perdeu, mas porque precisamos uns apoiar os outros”, narra
Edinalva Rita, demonstrando que, em resposta à negligência institucional,
os quilombos resistem com organização e solidariedade.

Decerto os quilombolas da Paraíba não foram os únicos que, por força


da necessidade, se deslocaram até centros urbanos para ter a possibili-
dade de acessar o auxílio emergencial, já que o exposto por Edinalva é,
infelizmente, o comum dentre os povos e comunidades tradicionais. Um
levantamento realizado pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação
Social e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras
Rurais Quilombolas (Conaq) revelou parte do cenário: a partir da aplicação
de questionários em 29 comunidades quilombolas de 11 estados brasileiros,
verificou-se que o acesso limitado à rede por franquia de dados ou moda-
lidade pré-paga e baixa qualidade do sinal são a tônica.

De acordo com integrantes da Conaq e do Intervozes que sistemati-


zaram os dados do estudo, “computadores também não fazem parte do
cotidiano de muitas comunidades quilombolas, exceto nas localidades onde
há unidades nas associações de moradores ou nas escolas. Algumas des-
sas instituições de ensino localizadas nas comunidades foram citadas na

34
DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

pesquisa como centros de informação, já que os computadores podem ser


compartilhados com muitas famílias que não dispõem de acesso domiciliar”.

Negar o acesso à internet é parte da necropolítica institucional

Para Givânia da Silva, que é quilombola e doutoranda em Sociologia na


Universidade de Brasília, há uma série de nuances na relação internet e
povos tradicionais, “porque há os que não têm internet, os que têm acesso
a uma internet ruim, os que têm aparelhos com pouca capacidade e os que
têm pouco conhecimento em lidar com esses aparelhos, e todos esses
problemas se materializam na baixa aprendizagem e no pouco rendimento
dos estudantes quilombolas”.

Pesquisadora de educação quilombola e políticas públicas, Givânia


chama a atenção para o fato da pandemia não ter criado qualquer desigual-
dade, mas descortinado o racismo e a negação de direitos que os quilom-
bolas e outros povos e comunidades tradicionais enfrentam todos os dias.

“Serviu para escancarar um problema estrutural que já estava aí. Você


não tem acesso à água potável na pandemia porque já não tinha antes.
Você não tem a terra regularizada na pandemia porque já não tinha antes.
A pandemia potencializou um quadro gerado estruturalmente pelo racismo.
A questão é como os quilombos já estavam quando a pandemia chegou.
Então, na educação, que foi quase toda agora on-line, também foi assim. Se
os quilombos já estavam bem atrás na fila de uma educação de qualidade,
foram empurrados ainda mais para trás”, enfatiza.

Essas desigualdades de ordem estrutural que a pesquisadora enumera


são amplificadas por um governo que – no discurso e na ação – atua contra
os povos e comunidades tradicionais.

No discurso, impossível esquecer falas como: “eu odeio povos indígenas,


odeio esse termo”, dita pelo ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub;
“a escravidão foi benéfica para os descendentes”, feita pelo presidente da
Fundação Palmares, Sergio Camargo; ou declarações do próprio presidente
da República, que, quando ainda candidato, afirmou que quilombola se
pesava em “arrobas” e que, em seu governo, “não teria um centímetro de
terra demarcado para reserva indígena ou quilombola”.

Na ação prática, não parece mera coincidência, portanto, que a maior


quantidade de vetos de Jair Bolsonaro desde o início de seu mandato presi-
dencial tenha sido justamente ao Projeto de Lei 1142/2020, que dispõe sobre
medidas de enfrentamento à Covid-19 entre povos indígenas, quilombolas
e outras comunidades tradicionais.

Em uma única canetada, na noite de 7 de julho de 2020, foram deter-


minados 22 vetos, dentre eles, ao “provimento de pontos de internet nas
aldeias ou comunidades, a fim de viabilizar o acesso à informação e de evitar
o deslocamento de indígenas para os centros urbanos”. Aproximadamente
um mês e meio depois, em 18 de agosto, o Congresso derrubou 16 dos 22
vetos no texto final do projeto (sancionado como Lei 14021/2020), incluindo
o relativo à internet. Porém, até fevereiro de 2021, aproximadamente um
ano após o início da pandemia no Brasil, não se verificava qualquer sinal
de efetivação da lei.

35
INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Em outubro de 2020, diversas organizações da sociedade civil, entre elas


o Intervozes e a Conaq, participaram de uma audiência na Comissão Intera-
mericana de Direitos Humanos (CIDH) para denunciar as graves violações à
liberdade de expressão no Brasil durante a pandemia, entre elas a falta de
acesso à internet e as violações ao direito à informação que impactam a vida
de indígenas, quilombolas, mulheres, população negra, crianças e adoles-
centes, moradores de favelas e periferias e população LGBTQI+, entre outros
grupos que têm sido privados do direito de acessar informações confiáveis.

No entendimento de Givânia, os vetos do presidente ao PL e a ausência


de iniciativas que concretizem o acesso à internet pelos grupos vulnerabi-
lizados são parte daquilo que o filósofo e cientista social camaronês Achille
Mbembe qualifica como necropolítica [i]. “O governo Bolsonaro, e o Estado
brasileiro de um modo geral, tem a sua ação institucional ou para matar a
população negra ou para deixar morrer. No caso da pandemia, estamos sendo
deixados morrer, por meio da negação de direitos fundamentais, constitu-
cionais, por decisão exclusiva do presidente da República”, acentua ela.

Propostas para atenuar as desigualdades

Buscando minimizar os efeitos das desigualdades no acesso à internet


em territórios tradicionais, o Intervozes e a Conaq apresentaram, em maio
de 2020, uma proposta de emenda sugerindo o uso do Satélite Geoesta-
cionário de Defesa e Comunicação (SGDC) ou outra tecnologia semelhante
para garantir a conexão de comunidades indígenas, quilombolas e distritos
que não sejam sedes de municípios.

A emenda propõe a modificação do Projeto de Lei 2388/2020, de autoria


da senadora Daniella Ribeiro (PP-PB), ainda em tramitação no Senado. A
emenda leva em consideração que a problemática do acesso à internet no
Brasil é uma questão coletiva e não de dificuldades individualizadas. Por
isso, estabelece o uso de recursos do Fundo de Universalização dos Ser-
viços de Telecomunicações (Fust) na oferta gratuita do serviço de conexão
em comunidades indígenas, quilombolas e distritos que não sejam sede de
município, por meio do programa Governo Eletrônico – Serviço de Atendi-
mento ao Cidadão (Gesac).

Outra proposta com objetivo semelhante é o Projeto de Lei 4383/2020,


apresentado pela bancada do Partido dos Trabalhadores na Câmara dos
Deputados. Ainda aguardando decisão da Mesa da Casa para ser colocado
em pauta, o PL dispõe sobre o fornecimento de banda larga e de dispositivos
tecnológicos necessários ao acesso à educação para comunidades quilom-
bolas e indígenas. De acordo com o texto, as despesas da contratação de
acesso à internet poderão ser ressarcidas com desconto proporcional à con-
tribuição anual das prestadoras de serviços de telecomunicações ao Fust.

NOTAS
[i] Grosso modo, necropolítica pode ser conceituada como a determinação
institucional do Estado sobre quais corpos têm direito à vida e quais corpos são
“matáveis”, a partir da implementação de mecanismos técnicos de eliminação
daqueles considerados “inimigos”. Para melhor compreensão do conceito,
ver MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3ª edição. São Paulo: N-1 Edições, 2018.

36
DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

Desinformação e violência política: pior


do que está, fica

Mabel Dias, Maria Mello e Marina Pita

Em março de 2018, o assassinato da vereadora Marielle Franco (Psol-


-RJ) chocava o Brasil. Logo após sua morte, começaram a circular nas
redes sociais inúmeros conteúdos desinformativos sobre sua vida pessoal
e política, além de ataques. Três anos depois do episódio mais emblemá-
tico da tragédia social e política que nosso país enfrenta, seu assassinato
continua impune. Contudo, o fato de a desembargadora do Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro, Marília de Castro Neves Vieira, ter sido conde-
nada, em outubro de 2020, pelo crime de calúnia e, consequentemente,
a pagar indenização, pode ser um dos muitos sinais de alguma inflexão
de setores do Estado brasileiro e da sociedade à imposição de limites
aos discursos desinformativos.

Ao mesmo tempo, a eleição da mesma desembargadora – que também


sugeriu o fuzilamento do deputado federal Jean Wyllys – para o colégio
especial, do tribunal em que atua, demonstra a falta de consenso acerca
das respostas necessárias para conter o fenômeno da desinformação e
o discurso de ódio.

A internet, que já vinha ganhando papel proeminente no processo


eleitoral, no contexto de isolamento social decorrente da pandemia de
Covid-19, tornou-se ainda mais central em 2020 – e, com ela, também
a violência e a desinformação.

Desinformação se sustenta em ódio, discriminação e preconceitos


Apesar de o tema da violência online e notícias falsas ter ganhado
destaque na agenda política e social, o país não conseguiu dar passos
certeiros em direção à contenção do processo. Pelo contrário. Em 2020,
e em 2021, a violência política on-line e a desinformação contra candi-
datas(os) e pessoas eleitas continuaram ecoando nas redes.

O projeto MonitorA, que coleta e analisa comentários direcionados a


candidatas de todos os espectros políticos, para compreender as dinâ-
micas da violência durante as eleições, apontou que, no primeiro mês da
campanha eleitoral de 2020, de 93.335 tuítes que citavam as 123 can-
didatas monitoradas na Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande

37
INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

do Sul, Santa Catarina e São Paulo, 11% tinham algum teor agressivo.
Dentre os que tinham algum tipo de engajamento (likes e/ou retweets),
1.261 eram xingamentos direcionados diretamente às candidatas.

Em uma sociedade marcada pelo racismo, homofobia e transfobia, a


violência política é ainda mais intensa no caso de integrantes de grupos
historicamente vulnerabilizados. Um levantamento da TretAqui.org, pla-
taforma que coletou, em cinco semanas, 40 denúncias em nove estados
sobre discursos de ódio e desinformação, mostrou que machismo, ódio
ideológico, racismo e LGBTfobia foram os principais temas de ataques
contra candidaturas, no primeiro turno das eleições de 2020. A pesquisa
“A violência política contra mulheres negras”, feita pelo Instituto Marielle
Franco com 142 candidatas negras de 21 estados e 16 partidos, mos-
trou que a violência virtual foi o principal tipo de agressão sofrida pelas
respondentes, perfazendo 78% do total (oito entre cada dez candidatas
negras entrevistadas sofreram violência on-line).

Ilustração: Oficina Sal/Intervozes

Um dos casos, divulgado pela imprensa, aconteceu em Joinville (SC).


Ana Lúcia Martins, do PT, eleita a primeira vereadora negra para o Legis-
lativo municipal, recebeu ameaças de morte por meio de suas redes
sociais durante a campanha eleitoral e dias após o resultado das eleições.
Em Curitiba, no Paraná, Carol Dartora, também eleita pelo PT como a
primeira vereadora negra da cidade, igualmente recebeu ameaças pela
internet. Em uma delas, o agressor dizia que iria comprar uma pistola 9
mm e matá-la.

No Rio de Janeiro, a deputada estadual pelo Psol Renata Souza, ex-as-


sessora de Marielle Franco, também foi vítima de violência política. Can-
didata a prefeita do Rio de Janeiro em 2020, Renata recebeu ameaças

38
DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

nas suas redes sociais. Dentre as quais: “você fala demais… vai perder
a linguinha”. Em Belo Horizonte, a vereadora pelo PDT Duda Salabert,
mulher trans, igualmente foi vítima de discurso de ódio e ameaçada de
morte nas redes sociais. Duda foi a candidata mais votada em sua cidade
no pleito de 2020.

Ainda, Erika Hilton (Psol/SP), primeira mulher trans negra vereadora


de São Paulo e a 6ª candidata com o maior número de votos em 2020,
relatou que sofreu ameaças, ataques, ofensas e ações de desinformação
durante a campanha. Em janeiro de 2021, ela entrou na Justiça contra 50
pessoas por ataques transfóbicos, misóginos e machistas nas redes.

Esses dados reforçam que o fenômeno da desinformação está anco-


rado na violência e discriminação, especialmente de gênero, raça e orien-
tação sexual, e é suportado por interesses políticos.

Fake news para além das candidaturas e o papel da Justiça

Além das notícias falsas ou distorcidas contra candidaturas, o próprio


processo eleitoral foi alvo de teorias infundadas e mentirosas, descon-
fiança que engrossou o caldo da desinformação. A contestação em torno
da lisura das eleições, mais uma vez, teve como porta-voz o presidente
da República. Jair Bolsonaro afirmou diversas vezes que o pleito de 2018
teria sido fraudado, colocando em dúvida a instituição da democracia.

A pesquisa “Desinformação On-line e Eleições no Brasil: A circulação


de links sobre desconfiança no sistema eleitoral brasileiro no Facebook e no
YouTube (2014-2020)” aponta que o volume de mensagens em circula-
ção na internet, cujo alvo de ataques é o sistema eleitoral, é permanente
e crescente, inclusive em anos não eleitorais. Se em 2018 o número
de denúncias de desinformação acerca do contexto eleitoral foi o mais
volumoso até aqui, o pleito de 2020 está em segundo lugar. A pesquisa
revelou que, no YouTube, a quantidade de posts em setembro de 2020
quase se equiparou a outubro de 2018. Isso porque há conteúdos que
foram produzidos em 2014 e que seguem circulando livremente entre
diversas plataformas até hoje – tendo sido “requentados” nas últimas
eleições.

A desinformação relacionada às eleições foi o foco de atuação da


Justiça Eleitoral durante todo o ano de 2020, com publicidade oficial,
inclusive na TV aberta, dedicada à contranarrativa. E, enquanto o Tribu-
nal Superior Eleitoral (TSE) se preocupou em responder rapidamente à
campanha de desinformação que as urnas e seus sistemas de apuração
sofreram, as notícias falsas contra candidaturas circularam abundante-
mente. Nesse campo, a tarefa de combate ao fenômeno das fake news
foi praticamente toda transferida às plataformas digitais e suas decisões
privadas.

Nenhuma ferramenta foi disponibilizada pela Justiça Eleitoral em seus


canais oficiais para o recebimento de denúncias de distribuição de fake
news contra candidaturas, conforme registrado em especial da Coalizão
Direitos na Rede no site Congresso em Foco. A exceção foi a parceria com
o WhatsApp, que oferecia ao cidadão um canal para denúncias contra
desinformação e disparos em massa. Como fruto dessa parceria, mais

39
INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

de mil contas foram banidas da aplicação por suspeita de disparo em


massa, num universo de 4.759 denúncias feitas entre 27 de setembro e
15 de novembro.

No entanto, vale destacar que o TSE informou que, na parceria, cabe a


si “apenas repassar as suspeitas” ao aplicativo de mensagens do grupo
Facebook, cujo papel seria o de bloquear contas suspeitas. Ou seja,
também nesse caso, o TSE lavou as mãos. Diante da inação do Tribunal
Eleitoral, o coletivo Transforma MP e a Associação Brasileira de Juristas
pela Democracia (ABJD) solicitaram o encaminhamento também ao Minis-
tério Público Eleitoral as notícias de possíveis ilícitos eleitorais, relativos
aos disparos em massa.

Para se ter uma ideia da lentidão da Justiça em lidar com o tema da


desinformação, foi somente no dia 26 de novembro que o Ministério
Público Eleitoral ofereceu a primeira denúncia relacionada ao tema na
campanha de 2020. Na data, a Procuradoria Regional Eleitoral no Rio de
Janeiro entrou com ação contra Marcelo Crivella e Andréa Firmo, candida-
tos à Prefeitura pelo Republicanos, por atribuírem a Eduardo Paes (DEM)
“fatos que sabem inverídicos para influenciar o eleitorado”, considerados
“propaganda falsa”.

E não faltam denúncias para investigar e julgar. A jornalista Patrícia


Campos Mello, na Folha de S. Paulo, denunciou que ao menos cinco
empresas estavam oferecendo disparo em massa para candidatos, con-
duta vedada pelo TSE. O Ministério Público da 1ª e 2ª zonas eleitorais,
em São Paulo, instaurou um procedimento de investigação para apurar
as denúncias sobre os disparos em massa por WhatsApp e extração de
dados de eleitores do Instagram e Facebook na eleição municipal.

Desde as eleições presidenciais de 2018, ainda aguardam julgamento


por parte do TSE quatro ações – duas protocoladas pela coligação Brasil
Feliz de Novo (PT-PC do B-PROS) e duas pela Coligação Brasil Soberano
(PDT-Avante) – que tratam de denúncias de disparo ilegal em massa
pelo WhatsApp em benefício da chapa de Jair Bolsonaro (então PSL) e
Hamilton Mourão (PRTB), configurando abuso de poder econômico, uso
indevido dos veículos e meios de comunicação social e caixa 2, por meio
de financiamento empresarial de campanha.

Priorizar o andamento dessas ações não parece ter sido a escolha


dos atuais integrantes da Corte, incluindo seu presidente, Luís Roberto
Barroso, e o vice, Luiz Edson Fachin – que ocupam os cargos na corte
eleitoral desde maio de 2020. Caso as denúncias sejam consideradas
procedentes pelo TSE, a chapa Bolsonaro-Mourão pode ser cassada.

Dados pessoais protegidos?

Outro tema em que o país precisa avançar com urgência é o da har-


monização entre os princípios de proteção de dados pessoais e as regras
eleitorais. Após o pleito de 2018 ter sido marcado por uma utilização
mais intensa de dados de eleitores para direcionamento de propaganda
política e influência, cresceu o coro em torno da necessidade de aplica-
ção da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) também durante
o período eleitoral.

40
DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

Respondendo a essa preocupação, em dezembro de 2019, o TSE


editou resolução vedando a doação ou utilização de bases de dados
pessoais por empresas a campanhas eleitorais, bem como a venda de
cadastros de e-mails, e indicando a LGPD como texto legal a nortear o
uso de informações pessoais de eleitores também no contexto eleitoral.
A orientação apontou que o consentimento deveria preponderar como
base legal aplicável para o tratamento dos dados de eleitores, sendo que
a coleta destes deveria ser feita gratuitamente pelo candidato, partido ou
coligação, cabendo à Justiça Eleitoral o acompanhamento e apuração
das denúncias sobre vendas de bases de dados, utilização de bases de
dados constituídas com outra finalidade e até o uso de dados pessoais
de eleitores sem consentimento informado.

A atuação e parcerias firmadas pelo TSE com empresas de tecno-


logia e organizações da sociedade civil não tiveram, entretanto, esse
foco, sendo vários os registros de abusos. É o caso, por exemplo, de um
candidato a vereador de Belém, denunciado por irregularidade eleitorais
relacionadas ao uso de informações do cadastro de alistamento militar
– o Ministério Público Eleitoral investiga se o candidato utilizou números
ligados a pessoas cadastradas no alistamento militar para disparo de
material de campanha por aplicativo de mensagem instantânea. Outro
caso resultou na solicitação do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo
à operadora Tim e ao Facebook dos dados de identificação de uma conta
que, sob a alegação de fazer parte de um movimento suprapartidário,
coletou dados pessoais de eleitores para posterior direcionamento de
propaganda política do candidato Celso Russomanno (Republicanos).

Ilustração: Oficina Sal/Intervozes

41
INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Soluções fáceis não são soluções

A tensão entre a sociedade civil, organizada na defesa de direitos na


internet, passa por momentos de divergência com partidos e movimentos
progressistas. Há uma clara discordância quanto às medidas adequadas
para contenção do fenômeno da desinformação, evidente em debates
em torno das alternativas regulatórias para tratar do fenômeno. Em pro-
jetos apoiados pelo campo progressista, foram levantadas preocupações
quanto a garantia do direito à privacidade, proteção de dados e liberdade
de expressão.

As divergências no campo progressista também foram evidenciadas


no processo, iniciado em 2019, sob diversas críticas, do Inquérito nº 4781
do Supremo Tribunal Federal (STF) que ganhou fôlego em 2020, a des-
peito dos questionamentos sobre a interpretação do regimento da corte
que suporta a investigação. Na ocasião, Toffoli justificou a legitimidade
do inquérito ao afirmar que o Tribunal e seus ministros sofriam ataques e
tinham sua integridade e sua honorabilidade ameaçadas por milícias digi-
tais, que buscam atingir a instituição e o Estado Democrático de Direito.

O desdobramento do inquérito colocou a sociedade civil na difícil posi-


ção, em um contexto de polarização, de apontar problemas na decisão
do STF de bloquear as contas nas redes sociais Facebook, Instagram
e Twitter de bolsonaristas populares, como o empresário Luciano Hang
(Havan), o ex-deputado Roberto Jefferson (PTB), a ex-feminista Sara
Giromini e os blogueiros Allan dos Santos e Bernardo Küster. O ministro
disse que a medida era necessária para “a interrupção dos discursos com
conteúdo de ódio, subversão da ordem e incentivo à quebra da norma-
lidade institucional e democrática”. Na ocasião, coube ao Intervozes e
outras organizações da sociedade civil questionar a decisão.

A questão é que a suspensão das contas, estando baseada em expres-


sões como “subversão da ordem” e “incentivo à quebra da normalidade
institucional e democrática”, poderia ser usada contra movimentos sociais
e ativistas, no futuro. O Intervozes destacou que a liberdade de expressão
não é um direito absoluto, mas que “sua limitação deve ocorrer de forma
estrita e justificada, observando os princípios da legalidade, necessidade
e proporcionalidade”. “Um abuso, em termos de ataques à Corte, não
justifica outro”, enfatizou o comunicado do coletivo.

As divergências entre as entidades da sociedade civil organizada pela


defesa de direitos on-line e partidos dos mais diversos campos, inclusive
os progressistas, não se deram apenas nas discussões em torno das
decisões judiciais. Diante do problema real e palpável da desinformação,
com consequências nefastas (que passam pela eleição de um presidente
sem qualquer compromisso com valores democráticos e com a vida de
centenas de brasileiros em um cenário de emergência sanitária), não fal-
taram propostas regulatórias para conter a desinformação. Muitas delas
bastante problemáticas.

A proposta de regulação da desinformação que mais ganhou tração


foi a do Projeto de Lei (PL) 2630/2020, do senador Alessandro Vieira
(Cidadania-SE), texto que gerou trabalho intenso das organizações da
sociedade civil para tentar alterar o que poderia resultar na pior lei de inter-
net do mundo. O projeto, em sua versão inicial, transferia responsabilidade

42
DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

para as plataformas vigiarem os conteúdos desinformativos, a partir da


avaliação de agências de checagem de fatos, o que levou a críticas seve-
ras por colocar em risco a liberdade de expressão e dar superpoderes
a agentes privados.

A partir dessa proposta inicial questionável, o Senado, após mui-


tos embates e reuniões, em curtíssimo espaço de tempo e sem análise
estruturada em comissão, aprovou um projeto que avança em regras de
transparência e limites à ação das plataformas, com vistas a resguardar
os direitos do usuário. Por outro lado, manteve alguns pontos extrema-
mente problemáticos, especialmente quanto à privacidade dos usuários
de sistemas de mensageria privada, e outros que carecem de um ama-
durecimento cauteloso, como o acesso a dados armazenados no exterior
pela Justiça brasileira, entre outros.

Na Câmara, a proposta foi longamente debatida, por eixos polêmicos,


em seminários on-line, uma vez que a casa legislativa operou durante
todo o ano em regime excepcional, com atividades remotas. A proposição
poderia alcançar um desenho interessante de regulação das platafor-
mas digitais, caso aplicados os ajustes necessários. Inclusive, a Coalizão
Direitos na Rede, a qual o Intervozes integra, produziu um documento
elencando problemas e orientando alterações para que a proposta não
divergisse dos padrões internacionais de direitos humanos. O projeto
segue em tramitação na Casa.

Entretanto, em 2021, com as negociações entre o bolsonarismo e o


bloco do “Centrão” intensificadas para a eleição das presidências da
Câmara dos Deputados e do Senado Federal, é provável que a tramita-
ção de projetos de lei que visem normatizar as ações das redes sociais
seja enterrada. O presidente da República e seus asseclas desejam uma
liberdade de expressão que ignora os demais direitos e a interdepen-
dência entre eles. Com isso, corremos o imenso risco de ver o poder de
moderação das plataformas privadas crescer, sem contraponto, uma
vez que as empresas de mídias sociais vêm, cada vez mais, intervindo
no que é ou não publicado e/ou visto, conforme aponta a pesquisa Fake
news: como as plataformas enfrentam a desinformação, elaborada pelo
Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Notas

i Em 2015, a magistrada Marília de Castro Neves Vieira fez outro ataque


nas redes sociais. Marília Castro Neves escreveu: “Eu, particularmente, sou a
favor de um ‘paredão’ profilático para determinados entes. O Jean Wyllys, por
exemplo, embora não valha a bala que o mate”.
ii InternetLab; Revista AzMina. Projeto MonitorA. Disponível em: <https://www.
internetlab.org.br/pt/?s=MonitorA+discurso+de+%C3%B3dio&post_type=post>.
Acesso em 4 mar. 2021.
iii Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. Fake news: como as
plataformas enfrentam a desinformação. Disponível em: <https://intervozes.
org.br/publicacoes/fake-news-como-as-plataformas-enfrentam-a-desinfor-
macao/>. Acesso em 4 mar. 2021.

43
INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

O poder das grandes plataformas digitais


avança sobre a educação

Iago Vernek

As tecnologias sempre causaram transformações abruptas nos cur-


rículos pedagógicos. No processo, longo e híbrido, de adaptação às
mudanças técnicas, é gerada uma série de descompassos nas redes
de educação, pois, normalmente, tal processo é movido por interesses
comerciais. Nesse sentido, a manutenção das atividades escolares a
distância, por meio do uso de plataformas digitais, a fim de salvar o
empresariado do choque causado pela pandemia de Covid-19, amplia
a exclusão social no ensino.

Além das dificuldades de acesso à internet e do deficitário sistema


público educacional, muitas famílias enfrentam problemas financeiros
por terem perdido o emprego nesse período. Nas escolas, houve cortes
em quase todos os setores terceirizados, como os cargos de cozinha,
limpeza, transporte e manutenção. Portanto, apesar de a tecnologia
possibilitar uma certa mediação entre professores e estudantes, não foi
acompanhada de uma política que abarca toda a complexidade do ensino
e aprendizagem, inclusive em relação à garantia de direitos trabalhistas.

No atual período de globalização e emergência do neoliberalismo,


junto ao desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação
(TICs), alteram-se as infraestruturas dos lugares, o que acaba por desa-
justar as normas que os regem, chamadas por Marx de superestruturas.
Como percebemos no embate entre saúde e economia, durante todo o
ano pandêmico de 2020, a pressão corporativa trata de sempre realinhar
as ideias aos interesses capitalistas, mesmo quando atentam contra a
vida e o bem-estar da população.

De acordo com Marcos Dantas, o controle privado da comunicação


ampliou a segmentação social e dos territórios, sendo que “a totalidade
humana, vista nas suas grandes e reais classes sociais, e os sonhos uni-
versalistas dela derivados, esfarelam-se na afirmação das diferenças, dos
localismos, das identidades grupais, subculturais, raciais, sexuais etc.”[i].
Já para Ladislau Dowbor, caminhamos em direção a uma “sociedade da
informação”, que apresenta novos mecanismos de dominação econômica
e cultural, conforme uma pirâmide histórica de exploração do trabalho
e do conhecimento[ii].

44
DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

Com o isolamento social, motivado pela pandemia do novo coronaví-


rus, a presença da internet e de plataformas digitais no trabalho, lazer e
estudo das pessoas foi intensificada ainda mais. No entanto, a migração
rápida da rotina presencial para o ambiente virtual acabou por ampliar os
desafios de conexão e organização, tornando evidentes os problemas
estruturais na educação brasileira. Assim, o conjunto da sociedade deve
ser alertado sobre as disputas que envolvem a crescente digitalização
do cotidiano social, no qual a escola está inserida.

O uso de tecnologias digitais no ensino: barreiras, riscos e


oportunidades

No bojo da flexibilização trabalhista, das reformas administrativas


do Estado e do rentismo financeiro, o avanço das empresas de tecno-
logia sobre a educação é barrado em desigualdades sociais. A título
de exemplo, um levantamento realizado no Colégio Técnico da Unicamp
(Cotuca), em 2020, divulgado pelo Intervozes, mostrou que mesmo em
um colégio com melhor estrutura, os problemas de acesso à internet e
de baixa qualidade dos equipamentos são constantes. Além disso, 27,9%
dos estudantes têm alguma responsabilidade no cuidado de crianças e
19,7%, de idosos.

Segundo as pesquisas TIC Educação e TIC Domicílios 2019 (Cetic/


NIC.br), somente 14% das escolas públicas no país tinham um “ambiente
ou plataforma virtual de aprendizagem” antes da pandemia, sendo este
índice de 64% na rede particular – o que demonstra o alto nível de des-
preparo nas redes públicas de ensino. Há uma desigualdade também em
nível regional. Enquanto no Sudeste 88% dos estudantes estão conecta-
dos à internet, no Nordeste são apenas 73%. Na área rural, apenas 40%
das escolas possuem um computador com acesso à rede.

Outra questão relevante é que 58% dos brasileiros usam a internet


exclusivamente pelo celular. Na área rural, esse índice sobe para 79% e,
entre as classes D e E, para 85% (Cetic/NIC.br). Dados da Agência Nacional
de Telecomunicações (Anatel)[4] mostram que 55% dos acessos móveis no
país se dão por planos pré-pagos, muitos deles com pacotes básicos de
dados. Com todas essas situações, assistir vídeo-aulas, baixar materiais
ou, simplesmente, manter uma rotina de estudos se tornam atividades
desafiadoras e excludentes.

Mesmo com todas essas barreiras, houve quase uma unanimidade


de governos e instituições privadas na adoção de estratégias de ensino
remoto durante a pandemia. De acordo com levantamento do Instituto
Alana, Educadigital e Intervozes, quase 70% das escolas públicas estaduais
e municipais das capitais brasileiras contrataram plataformas privadas no
período. Das 53 secretarias de ensino mapeadas, mais de 20 adotaram
serviços do Google, o que representa 31,9% das aplicações utilizadas[iii].
Por outro lado, diversas organizações desenvolveram ou aprimoraram
aplicativos e ambientes virtuais de aprendizagem (conhecidos pela sigla
“ava”) próprios. No Tocantins, a aposta se deu em usar um software livre:
a plataforma colaborativa Moodle.

45
INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Imagem: Educação Vigiada

Uma iniciativa de acadêmicos e organizações sociais, sob o título


“Educação Vigiada”, alerta para esse avanço das corporações privadas
de tecnologia sobre a educação pública. A pesquisa realizada em todas
as universidades públicas e secretarias estaduais de ensino, além de
secretarias municipais de cidades com mais de 500 mil habitantes, veri-
ficou que 65% das escolas estão expostas ao chamado “capitalismo de
vigilância”, termo utilizado para designar modelos de negócio baseados
na ampla exploração de dados pessoais via inteligência artificial.

Para alcançar o comando dos meios de comunicação, algumas cor-


porações constroem gigantescos bancos de dados (big data) e poten-
tes sistemas físicos, capazes de armazenar, processar e transmitir uma
enorme quantidade de dados pelo mundo. Através de algoritmos fecha-
dos, conteúdos são captados e entregues de acordo com a personalidade
dos usuários das plataformas. Estrutura-se, com o tempo, uma acurácia
no direcionamento dos fluxos, bem como um poder de modulação da
audiência e do comportamento social. Vale ressaltar que boa parte dos
satélites e cabos submarinos de fibra óptica, bem como os servidores
e provedores, que permitem o armazenamento e a distribuição de toda
essa gama de informações, são de posse de poucas firmas, localizadas
no norte desenvolvido[iv].

Distribuição dos Cabos de Fibra Ótica Submarinos no Mundo (Fonte: TELEGEOGRAPHY’S/ 2010)

46
DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

Outra pesquisa importante, produzida em 2017 pela PretaLab/Olabi


e ThoughtWorks sob o título #quemcodabr para analisar a diversidade
no mercado de tecnologia, revelou que apenas 36,9% da mão-de-obra
empregada no setor é de pessoas negras/pretas e pardas, enquanto as
pessoas brancas respondem por 58,3% do total. Percebe-se, assim, uma
sub-representação das pessoas negras, que respondem por 53,9% da
população brasileira, contra 45,2% de brancos, além de uma super-repre-
sentatividade masculina, que responde por 68,3% dos cargos ocupados
enquanto compõe 48,5% dos habitantes do país. Além disso, 20% das
equipes profissionais não possuem mulheres e em mais de 30% delas
não há pessoas negras.

De forma diferente do que se poderia esperar em relação a uma pos-


sível ampliação da liberdade de expressão e da diversidade de ideias,
bem como em termos de cidadania e democracia, as TICs restringi-
ram as relações pessoais, ampliando a mediação enviesada dos robôs.
Um “efeito rede”, conveniado ao big data, favorece a concentração de
acessos em algumas plataformas, nas quais a quantidade de interações
equivale ao valor de mercado dessas empresas.

Segundo Marcos Dantas, “a internet permite ao capital individualizar


o consumidor e dele extrair toda a informação-valor que puder, levando
a um limite nuclear a fragmentação social e a concomitante exclusão”[v].
Por outro lado, a rede digital “concretizou novas possibilidades no que se
refere à circulação global de informações, garantindo maior velocidade
aos fluxos”[vi]. Apesar dos tentáculos das corporações, a apropriação
integral das tecnologias abre espaços alternativos para a produção de
uma educação e comunicação livres e abertas nos aspectos político,
técnico e narrativo.

Alternativas para a democratização da comunicação na educação


No Brasil, apesar dos avanços em relação aos direitos digitais a partir
do Marco Civil da Internet (2014) e da Lei Geral de Proteção de Dados
Pessoais (2018), algumas garantias legais ainda não são aplicadas, seja
por falta de acúmulo jurídico ou mesmo por vontade das empresas e dos
governos[vii]. Enquanto entrega a infraestrutura e os serviços públicos às
corporações estrangeiras, o Estado falha na universalização do acesso
à internet e à educação.

Como revelam os dados da Cetic/NIC.br, falta infraestrutura e suporte


técnico nas escolas, das quais apenas 25% afirmam possuir projetos
de formação sobre o uso de novas ferramentas digitais no ensino. Na
ausência de capacitação adequada, mais de 80% das professoras e dos
professores utilizam a própria internet para desenvolver ou aprimorar
suas habilidades no tema.

Mais uma vez, durante o isolamento social, coube às trabalhadoras e


aos trabalhadores usarem recursos próprios para dar conta de um pla-
nejamento improvisado, oferecendo apoio, não apenas pedagógico, às
comunidades escolares. Como destacou a professora Carla Carvalho,
da rede municipal de São Paulo, no debate Educação, Internet e Pande-
mia, promovido pelo Intervozes, os desafios educacionais, que não eram
poucos, ficaram ainda maiores durante a pandemia, o que evidenciou a
importância das políticas públicas.

47
INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Acreditando no mito de que a tecnologia é neutra e pode solucionar


os problemas educacionais, alguns gestores, frequentemente, realizam
investimentos gigantescos em novos recursos eletrônicos sem o acompa-
nhamento de uma reflexão responsiva sobre seus impactos no cotidiano
escolar. Também alguns projetos de educomunicação e formação para
tecnologias digitais no ensino se esvaziam na ausência de sentido social
para a mídia nos lugares.

Em meio à reorientação dos currículos pedagógicos para o uso de tec-


nologias digitais, Instituto Alana, Educadigital e Intervozes – organizações
que defendem a democratização da comunicação, bem como a promo-
ção dos direitos de crianças e adolescentes – elaboraram o guia interativo
A Escola no Mundo Digital. O material traz elementos importantes para
uma problematização da proteção de dados pessoais dos estudantes.

Entre as preocupações trazidas pelo guia, estão: garantir que os estu-


dantes não se tornem um instrumento de exploração comercial; proteger
crianças e adolescentes de riscos relacionados à sua segurança e inte-
gridade física, psíquica e sexual; impedir a consolidação da vigilância
e o reforço da discriminação; diminuir riscos e ameaças à privacidade;
proteger a segurança, integridade e privacidade de professores e ges-
tores escolares; desenvolver práticas educativas em cidadania digital
nas escolas[viii].

A partir da organização coletiva e da experiência da escassez, diversas


comunidades fazem uso de tecnologias e meios de comunicação alterna-
tivos para reverter situações de injustiça. Na pressão sobre as instâncias
governamentais, no trabalho coletivo de base e na cultura popular estão
contidas estratégias de caráter político para (re)viabilizar o território de
acordo com suas potencialidades. É nesse sentido, por exemplo, que
atua a Rede Emancipa de Cursinhos Populares, “um movimento social
de educação popular que desde 2007 constrói um importante trabalho
voltado à educação de jovens de escolas públicas”, sobretudo na orga-
nização de cursinhos pré-universitários, gratuitos e voluntários.

Democratizar o ensino e a comunicação significa, portanto, libertar


os sujeitos da passividade em relação à informação e ao conhecimento.
Assim “é que os segmentos populares conscientizados buscam sua
autoemancipação comunicativa. O fazem numa perspectiva coletiva,
tanto no sentido de gestão e uso dos espaços na programação, como
no conteúdo das mensagens que são transmitidas”, conforme destaca
Peruzzo[ix].

Ao lado dos povos tradicionais, movimentos sociais e coletivos auto-


-organizados, há chances efetivas de a comunicação e a educação
mudarem a realidade. Em meio à digitalização e “plataformização” do
cotidiano, a segurança digital fornece boas perspectivas para uma nova
frente de batalha, na qual o software livre e a programação aberta (códi-
gos ou licenças) são armas eficientes contra o monopólio privado das
redes sociais e plataformas digitais.

No processo de democratização da comunicação e da educação estão


em jogo não apenas a liberdade de expressão e de cátedra stricto sensu,
que possuem garantia por leis nacionais e acordos multilaterais, mas
também a possibilidade de uma transformação política e cultural mais

48
DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

ampla, voltada à cidadania e à democracia. Trata-se de assegurar, para


além do acesso à informação, na posição passiva de recepção, o pro-
tagonismo de sujeitos e coletivos na produção de conteúdos e saberes,
assumindo, assim, a condição de emissores.

Referências

[i] DANTAS, Marcos. Informação e Trabalho no Capitalismo Contem-


porâneo. Lua Nova, 2003, p. 33.
[ii] DOWBOR, Ladislau. O capitalismo se desloca: novas arquiteturas
sociais. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2020.
[iii] Segundo a pesquisa Monopólios Digitais, elaborada pelo Inter-
vozes em 2017, os sites de produção e distribuição de conteúdo mais
acessados no Brasil são do Google e do Facebook, além de Twitter e
Yahoo. Em relação ao mercado de aplicativos, essas plataformas repre-
sentam 63% dos downloads na loja do Google e 75% na loja da Apple.
[iv] De acordo com a revista Submarine Telecoms Forum, quase 99%
do tráfego de dados intercontinental na internet passa por cabos subma-
rinos de fibra óptica. Segundo o site BroadBandNow, em 2019, o Google
se tornou acionista majoritário de 100 mil km de cabos submarinos, tendo
alguma participação em 8,5% do total existente. Já o Facebook possui
uma rede de 90 mil km; a Amazon, 30 mil km; a Microsoft, 6,6 mil km.
[v] DANTAS, Marcos. Informação e Trabalho no Capitalismo Contem-
porâneo. Lua Nova [online], 2003, p. 40.
[vi] PASTI, André Buonati. Notícias, informação e território: as agências
transnacionais de notícias e a circulação de informações no território
brasileiro. Dissertação (Mestrado em Geografia) – GEOPLAN, Instituto de
Geociências, Universidade Estadual de Campinas, 2013, p. 82.
[vii] Conforme a pesquisa “Fake news: como as plataformas enfrentam
a desinformação”, lançada pelo Intervozes em 2020, Facebook, Insta-
gram, Whatsapp, Youtube e Twitter não apresentaram quaisquer políti-
cas e processos estruturados para combater a desinformação, reagindo
pontualmente ao fenômeno por meio de práticas verticalizadas e sub-
jetivas de moderação, remoção e redução de alcance dos conteúdos.
A monetização, que representa o ponto central do modelo de negócios,
segue opaca, impossibilitando um diagnóstico preciso sobre o controle
privado dos dados pessoais.
[viii] VERNEK, Iago; MEIRA, Marina; GONSALES, Priscila. A Escola no
mundo digital – dados e direitos de estudantes. Instituto Alana, São Paulo,
2020.
[ix] PERUZZO, Cicilia Maria Krohling. Direito à comunicação comunitá-
ria, participação popular e cidadania. In: OLIVEIRA, Maria J. da C. (Org.).
Comunicação pública. Campinas: Alínea, 2004, p. 34.

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

A naturalização de sistemas e
tecnologias de vigilância na pandemia

Mariana Gomes

O aumento vertiginoso do número de infecções pelo coronavírus SAR-


S-CoV-2 no Brasil coincidiu com um curioso crescimento do setor de
tecnologia. Em abril de 2020, os valores do mercado de eletrônicos já
estavam 30% mais caros do que no primeiro trimestre do mesmo ano. Em
maio, o Ix.br, setor do Comitê Gestor da Internet (CGI.br) que promove a
infraestrutura de internet no país, detectou 11 Tbps de tráfego de dados
na rede, batendo o recorde histórico de 10 Tbps – consolidado em março
anterior.

No período de setembro a outubro de 2020, 49% dos usuários de


internet no Brasil já realizavam atividades de trabalho remotamente; 64%
acompanhavam transmissões de áudio ou vídeo em tempo real e 72%
buscavam informações relacionadas à saúde, segundo o Painel TIC Covid-
19, do Cetic.br (Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da
Sociedade da Informação/CGI.br). “As pessoas tiveram de mudar, de
maneira abrupta, do físico para o digital, ainda que muitos não estives-
sem preparados”, relata Flávia Carvalho, advogada especializada em
direitos digitais.

Por outro lado, ao longo de 2020 nos deparamos com ataques ciber-
néticos a candidaturas eleitorais de pessoas LGBTs, mulheres, negros
e indígenas, assim como a invisibilização da nova onda de protestos do
movimento Vidas Negras Importam pelas plataformas de mídias sociais
digitais. Também lidamos com a proposta do Cadastro Base do Cidadão[1]
apresentada pela Presidência do Brasil e com os obstáculos on-line à
distribuição do auxílio emergencial. Um ambiente complexo que nos levou
a repensar o que em geral conhecemos como vigilância.

Passageiro com celular no aeroporto Internacional Juscelino Kubitschek (Imagem: Marcelo Casal Jr/Agência Brasil)

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

Privacidade não é luxo

O Brasil fechou o ano de 2019 com 134 milhões de pessoas acessando


a internet, segundo o levantamento TIC Domicílios do Cetic.br. Contudo,
2020 é o ano que transforma profundamente nossos usos dessa tecnolo-
gia até aqui. Com a necessidade de cadastro on-line para recebimento do
auxílio emergencial, ficava evidente que privacidade não é artigo de luxo.

Todo “esse movimento não veio acompanhado de uma educação


digital necessária, tampouco do fortalecimento dos mecanismos de
segurança. Então, como resultado, estamos ultrapassando uma grande
onda de fraudes, ataques de ransomware[2], vigilantismo”, avalia Flávia
Carvalho.

Conforme o aumento da presença das pessoas nas ruas durante a


pandemia era detectado a partir de dados de localização compartilhados
entre os setores empresarial e governamental, as imbricações do capi-
talismo de vigilância – que passa pelas plataformas de redes sociais –
começaram a ser amplamente questionadas. Não à toa, a decisão do
WhatsApp de compartilhar dados pessoais e conversas com o Facebook
desdobrou-se em protestos já em janeiro de 2021. Pela influência de
defensores dos direitos digitais, a big tech resolveu adiar a nova medida
para 15 de maio.

“O monopólio das redes sociais desfavorece o alcance de postagens


de alguns grupos políticos. Além de casos de monitoramento, espiona-
gem, falta de transparência e suspensão de usuários que fazem denún-
cias de cunho racial. Ao passo que essas mesmas redes adotam uma
postura condescendente sobre manifestações de racismo, xenofobia,
misoginia e diversos crimes de ódio a grupos minorizados”, explica Bár-
bara Aguilar, programadora e fundadora do Kilombotech.

A pressão política também surge das disputas em torno da Lei


13.709/2018, mais conhecida como Lei Geral de Proteção de Dados
Pessoais (LGPD), que entrou em vigor em agosto de 2020, mesmo mês
em que o Brasil chegava aos 100 mil mortos pela Covid-19. As alterações
propostas pela legislação impactam desde as big tech até as pequenas
empresas de tecnologia.

No caso da plataforma AfroSaúde, por exemplo, a LGPD impacta desde


o momento de sua fundação. “Conseguimos nos alinhar, desde o início
lá em 2019, para que o nosso principal produto estivesse de acordo com
as diretrizes da LGPD. Hoje, com a plataforma em funcionamento e a lei
em vigor, podemos assegurar que a coleta das informações dos usuários
está de acordo com a LGPD”, argumenta Igor Leonardo, co-fundador da
healtech brasileira.

A AfroSaúde promove a visibilidade de profissionais negros da saúde


e conecta com os pacientes que procuram por um serviço qualificado e
atento aos aspectos raciais na mesma área. Durante a pandemia, com
apoio de outras oito entidades, criou o TeleCorona, projeto de telefone
gratuito e canal de respostas on-line para auxiliar moradores de bairros
periféricos a conter a propagação do vírus e a desinformação.

51
INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Além da internet – vigilância e opressão

A partir da internet é possível desenvolver outras tecnologias. Atual-


mente a rede não conecta somente pessoas e computadores, mas tam-
bém dispositivos diversos entre si, na chamada Internet das Coisas. Os
dados pessoais e de experiência coletados massivamente na interação
entre múltiplas ferramentas do nosso dia a dia fomentam o caminhar de
outras inovações, como a inteligência artificial (IA), a nanotecnologia e
a impressão 3D.

“A urgência de contenção da pandemia tem sido utilizada como jus-


tificativa para sedimentar o discurso de controle e vigilância cibernética,
porém deve ser acompanhada com atenção para não influenciar o for-
talecimento de práticas de vigilância em massa nos próximos tempos”,
avalia a especialista Bárbara Aguilar.

Os negócios de vigilância mobilizados a partir do big data ou da IA são


treinados primordialmente em regiões e populações que não estão no
centro do Ocidente. No caso da inteligência artificial, as ruas das grandes
capitais brasileiras têm se tornado, desde 2019, celeiro de teste a partir de
políticas de segurança pública. Apesar do afã do mercado sobre o uso de
IA no contexto de “guerra às drogas”, por exemplo, dos 151 casos de pes-
soas presas com informação de raça e cor só naquele ano, 90,5% eram
negras – conforme levantamento da Rede de Observatórios de Segurança.

Passageiro com celular no aeroporto Internacional Juscelino Kubitschek (Imagem: Marcelo Casal Jr/Agência Brasil)

Diferente do que corre no senso comum – e até mesmo em setores


da produção tecnológica –, computadores não são máquinas neutras,
à prova de erro e desconexos da cultura. Quem programa os sistemas
e trata as bases de dados o faz a partir de suas intenções, crenças e
expectativas. “A inteligência artificial precisa ser treinada para responder
com maior assertividade, porém, hoje, os principais provedores de soft-
wares de reconhecimento facial possuem altos níveis de vieses raciais e
de gênero”, explica Aguilar.

52
DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

Durante a pandemia, vimos no Brasil protestos de combate ao racismo


e ao fascismo, em que os manifestantes colocaram-se no risco de contrair
a doença para defender valores democráticos. As máscaras até dificul-
tam a identificação por câmeras de reconhecimento facial que utilizam
inteligência artificial e são operadas pelas polícias, contudo, o uso da
força nesses casos foi desproporcional em relação ao empregado nos
protestos de apoiadores da Presidência da República no mesmo período.

No contexto de economias giradas pelo capitalismo de vigilância, parte


dos grupos beneficiados em razão da raça, do gênero e do território, mas
à margem das decisões do capitalismo de dados, também são afetados
pelas técnicas de vigilância. No entanto, o acirramento das políticas de
fronteiras internacionais e lockdowns setorizados na pandemia, retendo,
principalmente no Brasil, moradores das periferias, demonstram que os
alvos históricos da desumanização lidam com o acúmulo de violências
a partir das inovações tecnológicas para vigilância.

“Existe a preocupação sobre o tratamento desses dados coletados,


uma vez que a LGPD trouxe exceções sobre a aplicação de suas normas
para fins de segurança pública. As situações serão regidas por legislação
específica que até agora não foi criada, gerando insegurança jurídica e
terreno fértil para arbitrariedades”, explica Flávia Carvalho.

Vigilância como resistência

Como escreve Simone Browne, professora associada da Universi-


dade do Texas em Austin em seu livro Dark Matters: On The Surveillance
of Blackness, os debates sobre vigilância continuam a se desenvolver
sem perceber como sistemas de vigilância se desenvolvem através da
racialização. Produzido em sintonia com os estudos de Steve Mann e em
análise feminista negra sobre os aspectos raciais depois do panóptico
de Bentham[3], Browne analisa os aspectos de raça implicados na vigi-
lância, partindo dos navios negreiros até os aeroportos e a internet. A
pesquisadora então cria uma abordagem sobre vigilância que também
permita-nos traçar o registro de experiências de liberdades no contexto
da escravidão.

Uma dessas memórias de liberdade remonta aos idos 1848 nos Esta-
dos Unidos. Ellen e William Craft, duas pessoas negras até então escraviza-
das, saíram do estado da Geórgia, sudeste do país, rumo à liberdade, mas
não como o casal que eram. Mulher negra de pele clara, Ellen conseguia
muitas vezes se passar por branca. Ela era filha de uma mulher negra “mes-
tiça”[4], escravizada, e um homem branco, dono de escravos. Ao resgatar
essa história, a pesquisadora Simone Browne revela que, viajando em trens
e navios, Ellen driblou as expectativas de raça e gênero, apresentando-se
como um homem branco, o suposto Sr. William Johnson. No disfarce, ela fin-
gia ser dona de William Craft, seu marido. Dessa maneira, jogando com as
regras dos sistemas de vigilância da época, o casal garantiu a liberdade.

Aqui no Brasil, a vigilância tem um sentido caro às populações indígenas,


no que diz respeito à proteção de suas terras. Isso não tem sido diferente
no contexto da pandemia. Contudo, essas populações têm lançado mão
de novas técnicas a partir das tecnologias digitais, principalmente das
redes sociais.

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Em agosto de 2020, quando o Brasil alcançava a marca de 100 mil


mortos por Covid-19, a aldeia Novos Guerreiros, da etnia Pataxó, no sul
da Bahia, foi ameaçada de reintegração de posse, após pedido da empresa
Sky Dream Escola de Pilotagem, que tentou se apoderar de uma área
da aldeia ocupada por 24 famílias. “Se não fosse nosso modo de vigi-
lância, teria sido pior”, afirma Thyara Pataxó, liderança da aldeia Novos
Guerreiros.

Protesto na aldeia Novos Guerreiros, da etnia Pataxó, no sul da Bahia (Crédito Emerson Pataxó)

Com a ameaça de perda das terras, a comunidade Novos Guerreiros


mobilizou-se a partir das redes sociais para fazer valer a decisão do
Supremo Tribunal Federal, de 6 de maio de 2020, que determinava a
suspensão de todos os processos judiciais de reintegração de posse e
anulação de terras indígenas.

“Antes íamos até Brasília para tentar derrubar uma liminar, mas, com
todas as secretarias fechadas na pandemia, era impossível. Então esco-
lhemos usar o celular de maneira consciente, postando fotos e vídeos
da tentativa de reintegração de posse”, explica Thyara Pataxó, que é
graduanda em Agroecologia pela Universidade Federal do Recôncavo
da Bahia (UFRB).

A aldeia Novos Guerreiros localiza-se entre as cidades de Santa Cruz


Cabrália e Porto Seguro, ao lado de outras 37 comunidades Pataxós. As
aldeias mais distantes do centro urbano não acessam televisão ou rádio.
Entretanto, comunidades como a Novos Guerreiros acessam a internet,
sobretudo por dados móveis nos celulares. Por meio de provedoras rurais
de acesso à internet, são negociados também pacotes de wi-fi que auxi-
liam na comunicação entre as aldeias e nas escolas das comunidades.

A liderança relata ainda que os povos indígenas já vivem, desde antes


da pandemia, em certa forma de isolamento, saindo das suas comunida-
des para resolver o que é necessário. “Esse modelo é o que nos faz bem
hoje. Nos sentimos confortáveis”, comenta a líder Pataxó.

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

Ainda que usar as redes sociais para defesa dos direitos civis e polí-
ticos não seja mais novidade, as comunidades originárias têm muito a
dizer sobre planejamento da vigilância como resistência. “De imediato,
quando soubemos da Covid-19, colocamos o cadeado na entrada da
comunidade. Fazíamos revezamento entre grupos de mulheres e homens,
com álcool em gel e máscara, passando informações para quem não
acreditava na pandemia. A vigilância que fizemos nas aldeias foi impor-
tante pela questão de suporte coletivo”, avalia Thyara Pataxó.

Com o acesso limitado à internet na região, o auxílio emergencial não


chegou à maioria das famílias indígenas. Somado ao turismo em baixa,
houve escassez de alimentos e outros insumos nas aldeias. Para solucio-
nar o impasse, as comunidades Pataxós do sul da Bahia se organizaram
para gerar renda por meio do comércio on-line. “Nós voltamos a cultivar
nossos conhecimentos tradicionais, plantando e colhendo de três meses
em três meses. Foi importante, porque, enquanto etnia Pataxó, vivemos
muito do artesanato, mas a gente não pode ficar à mercê de uma (única)
fonte de renda. Além de vender a colheita, começamos a vender os arte-
sanatos das aldeias pela internet”, afirma a liderança de Novo Guerreiros.

Hoje, os desafios em relação aos sistemas de vigilância são imensos:


dificuldades de acesso à internet, “políticas de diversidade” segregadoras
e algoritmos de redes sociais que minam a visibilidade de grupos histo-
ricamente desumanizados. Não esqueçamos também das corporações
privadas que satisfazem-se com a “guerra às drogas” e o desrespeito às
comunidades tradicionais, lucrando com o uso do aparato tecnológico.
Infelizmente o aumento da vigilância como estratégia de resistência não
significa a diminuição da vigilância como tática de coerção. Assim, deve-
mos nos questionar: quais experiências de liberdade permitiremos daqui
para frente? Já é mais que necessário abrir espaço nos altos postos de
decisões para os saberes pioneiros das comunidades tradicionais, indí-
genas e negras, de LGBTs e mulheres em relação à miríade da vigilância.

Notas
[1] Uma base de dados integradora de várias bases da administração
pública que vai crescendo na medida que mais órgãos integram o cadas-
tro. Com potencial de gradualmente reunir uma ampla diversidade de
dados pessoais de toda a população brasileira, inclusive dados sensíveis,
sem transparência ou explicação a respeito de finalidade específica de
acesso a esses dados.
[2] Um tipo de código malicioso que torna inacessíveis os dados
armazenados em um equipamento, geralmente usando criptografia, e
que exige pagamento de resgate (ransom) para restabelecer o acesso
ao usuário.
[3] Panóptico é um termo utilizado para designar uma penitenciária
ideal, concebida pelo filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham em 1785,
que permite a um único vigilante observar todos os prisioneiros, sem que
estes possam saber se estão ou não sendo observados.
[4] Nesta oportunidade, opta-se por mestiça para a tradução livre do
termo “mixed race”, que, na língua inglesa, refere-se a pessoas nasci-
das de junções interraciais. Ao mesmo tempo, compreende-se que, na
experiência brasileira, após as denúncias do mito da democracia racial,
este termo tem sentido pejorativo. Contudo, o termo “parda” não seria
adequado nesta tradução, visto as diferenças entre Brasil e EUA.

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Lei Geral de Proteção de Dados em vigor,


ANPD militarizada

Ana Carolina Westrup

No Brasil, a discussão sobre a importância de garantia ao direito à


privacidade nas redes ganhou forma na luta pela promulgação da Lei
Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018), sancionada em
agosto de 2018 com o objetivo de “proteger os direitos fundamentais de
liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade
da pessoa natural” – conforme determinado em seu Artigo 1º –, em vigor
desde setembro de 2020.

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) é considerada


um avanço significativo em termos de proteção à privacidade e à liber-
dade de expressão no Brasil. No momento em que todas as atividades
cotidianas passam pela internet, a lei se torna a principal proteção dos
cidadãos nesse âmbito.

Mas a entrada em vigor da LGPD é apenas o início do reconhecimento


da proteção de dados como direito autônomo no ordenamento jurídico
brasileiro, pois a efetiva aplicação da nova lei e a regulamentação de seus
dispositivos ainda são motivo de disputas. O principal deles é a atuação
independente de uma Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pes-
soais (ANPD), órgão responsável pela fiscalização e aplicação da norma,
hoje atrelada ao Executivo e nas mãos de militares.

Propostas sobre proteção de dados pessoais são debatidas no Congresso (Imagem: Marcello Casal Jr/ Agência Brasil)

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

Medida Provisória 869/2018: o erro de origem


As disputas em torno da ANPD se intensificaram no governo do pre-
sidente Michel Temer, com o veto à criação da Autoridade Nacional de
Proteção de Dados Pessoais sob a alegação de vício de iniciativa. Em
dezembro de 2018, 42 entidades representativas, instituições acadêmicas
e organizações, por meio da Coalizão Direitos na Rede, subscreveram um
manifesto reivindicando a imediata criação da ANPD, de forma a imple-
mentar as providências legais decorrentes da sanção da lei, ou seja, para
garantir a eficácia da LGPD, já que o órgão tem a responsabilidade de
detalhar, a partir da elaboração de normas e diretrizes, a aplicação dos
inúmeros dispositivos ainda pendentes de regulamentação.

O manifesto versava também sobre a importância dessa Autoridade


ter independência e autonomia decisória, ser composta por um corpo
funcional estritamente técnico, capaz de realizar o gerenciamento deste
tema perante seus múltiplos e distintos atores e ter em sua estrutura
um conselho consultivo multissetorial, apto a propiciar segurança jurí-
dica para o tratamento de dados no país, dar efetividade aos direitos
assegurados na LGPD e possibilitar que o Brasil participe do livre fluxo
internacional de dados.

Entretanto, no mesmo mês de dezembro de 2018, entre os atos der-


radeiros de Michel Temer à frente do Executivo, foi publicada no Diário
Oficial da União a Medida Provisória (MP) 869/2018, que criava a ANPD,
mas a vinculava à Casa Civil e, consequentemente, à Presidência da
República, comprometendo sua independência e autonomia, além de
diminuir seu poder, retirando da Autoridade funções relacionadas a san-
ções e medidas de fiscalização.

No primeiro semestre de 2019 foi criada a comissão especial mista


no Congresso Nacional para analisar a Medida Provisória. O relatório
produzido pelo deputado Orlando Silva (PCdoB/SP) restabeleceu à LGPD
vários pontos importantes e foi aprovado, por unanimidade, no Senado
Federal e na Câmara dos Deputados.

Mas o relatório não mudou a relação de dependência entre a ANPD e


o Executivo. A Autoridade continuaria ligada à Casa Civil e à Presidência
da República, como um ente dependente, embora fizesse recomendação
de que em no máximo dois anos o Executivo encaminhasse proposta
para sua transformação em autarquia.

O presidente Jair Bolsonaro vetaria depois nove pontos desse rela-


tório, entre eles, a possibilidade de ocorrerem sanções administrativas
importantes aplicáveis pela ANPD aos agentes de tratamento de dados
que cometerem infrações. Quadro que viria novamente a ser modificado
pelo Congresso Nacional, o qual, em sessão conjunta, rejeitou cinco
dos nove vetos presidenciais relacionados à legislação de proteção de
dados pessoais.

Especialmente os vetos presidenciais que retiravam dispositivos de


ampliação do rol de sanções administrativas aplicadas pela Autoridade
foram rejeitados. A decisão dos parlamentares retomou duas das mais
severas punições aplicáveis pela ANPD quando o assunto é proteção de
dados: a suspensão total ou parcial do banco de dados e até mesmo da
própria atividade empresarial que dependa do tratamento de informações.

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

No entanto, a Medida Provisória de Michel Temer que embasou a


decisão do governo Bolsonaro de vincular a ANPD à Casa Civil não foi
revisada. Na ocasião, o próprio presidente da Câmara dos Deputados,
Rodrigo Maia (DEM-RJ) apontou para o problema que se enseja nessa
ligação direta. Em entrevistas, Maia chegou a dizer que “quem tiver
o comando dos dados talvez possa ter o comando do país por muito
tempo”, ressaltando a importância de uma agência reguladora distante
do Executivo. Ainda assim, nenhuma ação no sentido de reformulação
desse quadro foi tomada por parte do Congresso Nacional.

A ANPD militarizada

Após muitas idas e vindas, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais


finalmente entrou em vigor em setembro de 2020, após o Senado Federal
acatar uma questão de ordem apresentada pelo senador Eduardo Braga
(MDB-AM) contra a Medida Provisória 959/2020, que postergava o início
da vigência da LGPD para maio de 2021.

O que parecia o fim de uma batalha, entretanto, se apresentava como


início de outra. A já questionada relação íntima entre o Executivo e a ANPD
ganhou novos contornos no que tange à sua formatação, o que veio a
confirmar todas as inquietações por parte de entidades e organismos
ligados à proteção de dados.

A estrutura da ANPD – regida pela LGPD no Art. 55 e composta pelo


Conselho Diretor, Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais
e da Privacidade, Corregedoria, Ouvidoria, órgão de assessoramento
jurídico próprio e unidades administrativas – foi atingida pela atmosfera
militar que circula o governo Bolsonaro.

Depois de um mês da LGPD entrar em vigor, mais precisamente no


dia 15 de outubro, a Presidência da República publicou os nomes dos
diretores indicados para o Conselho Diretor da ANPD, espaço máximo
de decisão. Entre os cinco indicados, três são membros do Exército bra-
sileiro, em sua maioria com experiência limitada no tema da proteção
de dados enquanto direito autônomo. São eles: Waldemar Gonçalves
Ortunho Junior, ex-presidente da Telebras, que ficou no comando da
Autoridade; Joacil Basilio Rael e Arthur Pereira Sabbat, hoje lotado no
Gabinete de Segurança Institucional (GSI).

O espaço que coube aos civis foi ocupado por uma representante
do setor privado, a advogada Nairane Farias Rabelo Leitão, e por Miriam
Wimmer, atual diretora de Serviços de Telecomunicações no Ministério
das Comunicações.

Para a Coalizão Direito na Rede, “se o desenho institucional da ANPD


vinculado à Casa Civil já gerava preocupação pela falta de autonomia
administrativa do órgão diante de suas atribuições – como fiscalizar as
operações de tratamento de dados do próprio governo –, as nomeações
de militares confirmam a hipótese de que a Autoridade não terá a inde-
pendência e composição que se espera de um órgão responsável por
defender direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos brasileiros”.

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

Cerimônia Comemorativa do Dia do Exército (Imagem: Marcos Corrêa/PR)

Esse cenário de preocupação se agudiza quando se leva em con-


sideração que, durante os primeiros anos de trabalho da ANPD, serão
formulados parâmetros e diretrizes para orientação da aplicação da LGPD,
ou seja, as decisões a serem tomadas pela Autoridade agora definirão
como a proteção de dados se dará no futuro.

Prova disso foi a recém publicada “agenda regulatória”, documento


divulgado no final de janeiro de 2021 que reúne uma série de medidas
consideradas prioritárias até o segundo semestre de 2022 e que servi-
rão de base para a criação da Política Nacional de Proteção de Dados
Pessoais e da Privacidade.

Na agenda, estão previstas pela Autoridade dez medidas, incluindo: o


regimento interno da ANPD; o planejamento estratégico de 2021 a 2023;
normas para aplicação de sanções; métodos para definição dos valores
de multas; além da construção de uma política de transferência interna-
cional de dados. No entanto, não há sequer uma palavra sobre como se
dará a política de uso de dados por parte do governo.

A agenda regulatória da ANPD foi publicada na mesma semana em


que surgiu a notícia de um mega vazamento de dados, intitulado “Serasa
Experian”, que expôs o CPF de mais de 220 milhões de brasileiros em
um fórum de internet, junto a outras informações como foto de rosto,
endereço, telefone, e-mail, score de crédito, salário e renda. Cenários
como esse serão enfrentados por uma ANPD fragilizada, tanto pela falta
de autonomia e independência quanto pela ausência de uma qualidade
técnica em sua atuação.

A advogada especializada em direito digital e do consumidor, repre-


sentante do coletivo Intervozes e da Coalizão Direitos na Rede, Flávia
Lefèvre Guimarães, entende que, com exceção de Miriam Wimmer, os
outros quatro membros estiveram distantes das discussões sobre as
criações da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e da ANPD. “Tirando
a Miriam, não conheço as outras pessoas”, enfatiza a advogada.

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

A compreensão sobre o trabalho a ser desenvolvido pela Autoridade


é outra problemática a ser enfrentada. A LGPD é uma legislação voltada
à proteção dos dados pessoais, do cidadão, e não para questões de
segurança pública. Para Flávia Lefèvre, “é preciso tomar muito cuidado
para que o viés dessas pessoas indicadas não termine contaminando
o espírito da lei, que é de proteção do cidadão, e não é de segurança
pública”.

Para Marina Pita, jornalista integrante do Intervozes, a composição da


ANPD deveria ter espelhado o caráter técnico e a independência em rela-
ção ao governo que a função exige. “Os integrantes desse órgão seriam
funcionários de carreira que teriam como atribuição enfrentar inclusive
ministérios. Se o Ministério da Saúde decide coletar e compartilhar dados
e a Autoridade entende que ele está equivocado, como seus integrantes
– funcionários públicos – vão se contrapor a um ministro? É preciso que
o órgão tenha autonomia, capacidade técnica”, aponta.

Proteção de dados e a agenda internacional

Em nota encaminhada para a Comissão Europeia, Conselho da Europa


e Global Privacy Assembly, a Coalizão Direitos na Rede alertou os órgãos
internacionais sobre os riscos existentes nas indicações de militares para
o Conselho Diretor da Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pes-
soais. O texto afirma que “a opção do governo Bolsonaro de militarizar
a ANPD ignora as diretrizes da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais
(LGPD), que aponta para a criação de uma autoridade técnica e inde-
pendente, desconsidera as recomendações internacionais para a cons-
tituição de autoridades do tema, abre espaço para o órgão se imiscuir
em atividades de vigilância e repressão e coloca em risco a necessária
supervisão do tratamento de dados no país”.

A política de proteção de dados não é somente uma agenda nacional.


Ela envolve uma série de atores internacionais, como o Comitê Europeu
para a Proteção de Dados (CEPD) e a Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), que, em cooperação, delineiam
recomendações sobre a aplicação das leis de proteção de dados nos
países.

Em outubro de 2020, um estudo realizado pela OCDE, denominado


de A Caminho da Era Digital no Brasil, destacou que a visão atual sobre
proteção de dados no Brasil está na contramão da agenda internacional
de proteção de dados, principalmente no que tange à falta de inde-
pendência da ANPD. O levantamento aponta “diferenças importantes,
especialmente com relação às estruturas de governança e supervisão”,
no caminho percorrido até aqui no país.

Em um trecho, o estudo afirma que a defesa da independência da


ANPD “tem por finalidade assegurar a efetividade e a confiabilidade do
monitoramento, e do cumprimento das disposições relativas à prote-
ção de dados pessoais, sendo assim, ela deve ser interpretada à luz
dessa finalidade. Ela foi estabelecida não para conceder qualquer status
especial à autoridade em questão ou seus agentes, mas para reforçar a
proteção aos indivíduos, e aos órgãos afetados por suas decisões. Por

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

conseguinte, a ANPD deve agir de maneira objetiva e imparcial no exer-


cício de suas funções. Para atender esse propósito, a ANPD precisa con-
tinuar livre de qualquer influência interna ou externa”. E conclui que “no
entanto, a ANPD está, atualmente, fortemente vinculada ao Executivo”.

Da Medida Provisória 869/2018 até a composição da ANPD, o governo


brasileiro vem mostrando o seu total descompasso com a política de
proteção de dados. Todos esses cenários nos mostram que, apesar de
termos a LGPD em vigor, a sua aplicação está extremamente compro-
metida com o tipo de composição que a Autoridade assumiu logo após a
promulgação da lei. Ou seja, apesar de termos uma legislação compatível
com os desafios postos para o cenário de proteção de dados, não temos
a independência necessária do órgão responsável pela sua fiscalização
e regulamentação. O que gera fenômenos como o que estamos viven-
ciando de militarização da ANPD.

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Comunicação popular e comunitária


salvam vidas durante a pandemia

Tâmara Terso e Paulo Victor Melo

De nós para os nossos! Esse foi o lema que unificou comunicadoras e


comunicadores populares e as lutas antirracistas e por igualdade de gênero
em um ano pandêmico. O chamado também orienta o manifesto da iniciativa
#CoronaNasPeriferias, uma coalizão nacional de coletivos de comunica-
ção e periferias criada em março de 2020 no intuito de produzir conteúdos
informativos e ações territoriais contra o novo coronavírus, considerando a
diversidade de linguagens e modelos de organização local.

Desde que a pandemia de Covid-19 chegou ao Brasil, de norte a sul do


país foram desenvolvidas estratégias das mais diversas para enfrentá-la.
Sem dúvida, o papel da comunicação comunitária, mídias livres e jornalismo
independente, além do trabalho desenvolvido por movimentos sociais, foi
determinante para que os números de infectados e de mortos não fossem
ainda maiores do que já são.

Enquanto os órgãos do Executivo, Legislativo e Judiciário, com raras


exceções, mantiveram políticas de deixar morrer – com a demora na aprova-
ção e inúmeras dificuldades de acesso ao auxílio emergencial – ou políticas
de matar – com a disseminação de informações falsas sobre o tratamento
do novo coronavírus, sobretudo por parte da Presidência da República –,
nos territórios vulnerabilizados, a palavra de ordem foi colaboração.

Cartaz produzido pelo coletivo Rede Tumulto (Imagem: Divulgação)


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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

A Covid-19 encontrou um país já arrasado pelo racismo estrutural,


violência de gênero e negação do direito à comunicação. Na ausência
do Estado, a sociedade civil enfrenta agora mais um fim do mundo com
tecnologias sociais aliadas à comunicação digital – quando a conexão
é possível. Não faltou megafone, rádio-poste, barcos equipados com
cornetas, moto de som, cartazes, checagem de notícias no WhatsApp,
áudios informativos circulando em bicicletas e paródias para informar
sobre métodos de higiene e isolamento necessários na prevenção ao
novo coronavírus. Para boa parte das mais de 13 milhões de pessoas
que vivem em favelas, milhares em situação de rua ou em áreas rurais,
essas foram as únicas fontes de comunicação segura.

Os conhecidos instrumentos da comunicação popular ganharam


mobilidade e escala, dada a urgência do momento. Nesse processo, o
fortalecimento dos laços comunitários e o reconhecimento territorial se
tornaram expressivas alternativas contra a desinformação.

A experiência da Vila Brasilândia, na zona norte de São Paulo, é um


exemplo. Desde o início da pandemia foi montada a rede Brasilândia
Solidária, que uniu organizações comunitárias do território para mobili-
zar estratégias de informação e apoio às famílias. A Rádio Comunitária
Cantareira, fundada no bairro em 1995, foi fundamental no processo de
produção e distribuição de conteúdos informativos, passando a contar
com carros de som e até minitrio para reforçar as mensagens de preven-
ção. Segundo a série “Pandemia e Desigualdade”, do Instituto Polis, as
ações integradas, realizadas nas comunidades, foram responsáveis por
conter a doença nos territórios vulnerabilizados em São Paulo.

Em Recife, na favela do Totó, a cineasta Yane Mendes, com mais dois


amigos, iniciou um trabalho voluntário de “tradução” das mensagens
sobre prevenção contra o coronavírus feitas pela Secretaria de Saúde
do município. Com cartazes colados ao lado dos boletins oficiais, a Rede
Tumulto usou termos familiares à comunidade para tratar de assuntos
referentes à pandemia. Yane critica que “os meios de comunicação em
que eles [governos] gastaram inúmeros recursos não dialogavam de
maneira nenhuma, não tinham funcionalidade dentro das periferias”.

Sobre os efeitos positivos das ações realizadas pela rede, ela afirma
que “mais do que nunca, na pandemia, ficou comprovado que a comu-
nicação que a gente faz é a comunicação que chega e não rodeia tanto
para aquilo que se quer falar. A gente enxerga na conversa do vizinho,
numa porta de casa, o meio, uma ferramenta de comunicação. E também
tem a diferença dos territórios. Tem território que um cineclube funciona
melhor, tem território que está botando um áudio, em outro numa caixa
de som na laje é melhor, e há outros em que os cartazes funcionam”.

Na região amazônica, destaca-se o trabalho da Rede Mocoronga de


Comunicação. No território, os rios são vias por onde navegam informa-
ções de prevenção para 76 comunidades da Reserva Extrativista Tapa-
jós-Arapiuns, no Pará. Como parte do projeto Saúde e Alegria[1], a rede
intensificou em 2020 suas iniciativas de comunicação já conhecidas
pela comunidade, com alerta especial para a Covid-19. Os programas
de rádio, fotonovelas e produções audiovisuais somaram-se com inicia-
tivas de produção e distribuição de cartazes. Uma corneta foi adaptada
ao barco-hospital do projeto que visitou periodicamente os ribeirinhos,

63
INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

reproduzindo paródias de músicas famosas na região como meio de


informação, organizadas pelo coletivo Jovens Tapajônicos.

Walter Kumaruara, jovem liderança indígena que coordena as iniciati-


vas, contou que a rede seguiu incentivando a produção local através de
rádios-poste e da premiação Mocorosca, uma espécie de “Oscar” amazô-
nico. “Fizemos o Mocorosca em 2020, incentivando os jovens a produzir
mensagens educativas sobre a prevenção à Covid-19. A ideia desses
cartazes era para colar dentro de casa, ensinando como se higienizar e
o que fazer quando vem da comunidade para a cidade e da cidade para
a comunidade. Porque tem toda a questão do cuidado. Quando você leva
a compra da cidade para a comunidade está levando esse vírus. Então a
melhor forma de higienizar as sacolas, tudo isso, era repassado”.

Colaboração e modelos de conexão nos territórios

Todas essas experiências apontam para uma sintonia entre a comuni-


cação comunitária, as mídias livres e o jornalismo independente no que se
refere aos usos e concepções de tecnologias e atuação territorial. Não há,
nesse sentido, uma tentativa de superação das formas de comunicação
já existentes, mas uma busca pela convivência e experimentação com o
que já é desenvolvido nos territórios.

Essa articulação é conceituada pela pesquisadora Raquel Paiva, do


Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (LECC/UFRJ), como Epistemologias Compreen-
sivas. “A ideia central é que, teoricamente, possamos construir objetos
capazes de dar conta do território que habitamos. Um número cada vez
mais significativo se propõe a compreender a realidade do outro, a intervir,
exercitando em toda a sua amplitude os princípios básicos da essência
humana de convivialidade. A ordem atual deixou bastante evidenciada a
necessidade do aterramento e construção coletiva de ciência que possam
atuar de maneira gerativa no território, com dignidade e respeito mútuo.
Alguns desses grupos fizeram rede e estabeleceram conexões entre si,
independente do lugar, cidade ou estado onde estão. Diante do aban-
dono completo do estado, os coletivos arregaçaram suas mangas e se
fortaleceram graças, em primeiro lugar, às suas intrínsecas e orgânicas
redes nos territórios onde atuam e, em segundo lugar, com as possibi-
lidades que a digitalização oferece, puderam romper barreiras físicas”.

Ação da Rede Tumulto para doação de alimentos (Imagem: Divulgação)


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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

Na perspectiva do mencionado por Paiva, ações importantes foram os


serviços colaborativos de checagem, produção e disseminação de infor-
mações em arquivos de áudio e para aplicativos de mensageria. Com um
crescente número de desconectados ou conexões precárias à internet no
país, a solução emergencial para disseminar informações seguras foi ocupar
aplicativos como o WhatsApp.

Vale frisar que esses aplicativos têm se tornado espaço fértil para a
disseminação de notícias falsas e, ao mesmo tempo, ocupando espaços
não povoados por fontes diversas de informação e produção de notícia.
Os desertos de notícias são exemplos de espaços vazios, que, segundo
levantamento do projeto Atlas da Notícia/2019, atingem cerca de 62% dos
municípios brasileiros, os quais não contam com meio de comunicação de
jornalismo local.

Buscando atuar e reverter os efeitos de um contexto em que as notí-


cias falsas aprofundaram a crise sanitária, muitos coletivos entraram no
“zap” para realizar um trabalho de redução de danos. Foi o caso da iniciativa
soteropolitana Dendicasa, um noticiário para o WhatsApp em formato de
áudio que buscou apurar e desmobilizar notícias falsas que circulavam nos
grupos do aplicativo. A iniciativa também divulgou informações importantes
sobre fechamento e reabertura dos bairros soteropolitanos, fases de testes
das vacinas de imunização contra o coronavírus e rede de atendimento à
doença em Salvador. O noticiário foi ao ar entre abril e agosto de 2020, com
36 episódios distribuídos em listas de transmissão e sites de streaming.

Outras iniciativas de escala municipal e regional apostaram na colaboração


entre vários coletivos para alcançar mais pessoas. O projeto Pandemia sem
Neurose foi um podcast organizado pelos coletivos Desenrola e não me Enrola,
Alma Preta e Periferia em Movimento, que produziram e checaram notícias
para as diversas periferias de São Paulo e tiveram como principal meio de
distribuição os aplicativos de mensageria.

“A distribuição foi focada no WhatsApp, em grupos estratégicos e listas


de transmissão, chegando, diretamente, a mais de 2 mil pessoas a cada
edição. Alguns episódios também foram veiculados em rádios comunitárias
como Cantareira FM e Heliópolis FM. Os retornos foram variados, desde
pessoas iletradas que viram na ferramenta de áudio um meio seguro de obter
informação até pessoas que sugeriam pautas para os boletins. Os áudios
também eram reenviados a diversos grupos, de ocupações por moradia a
catadores de recicláveis”, relata Thiago Borges, do Periferia em Movimento.

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Cartaz produzido pela Rede Tumulto (Imagem: Divulgação)

Outra experiência de comunicação popular desenvolvida durante a


pandemia, o podcast Existo Norte-Nordeste decidiu conectar diferentes
partes do país ao apostar na parceria regional entre jovens do Pará, Per-
nambuco e Fortaleza, os quais compartilham, semanalmente, as vivências
dos seus territórios e oferecem dicas de como enfrentar o isolamento,
criando alternativas de cultura e educação.

As concepções de tecnologias compartilhadas por esses e outros


coletivos parecem tensionar o paradigma da convergência da comu-
nicação, uma ideia disseminada na primeira metade do século XXI, e
muito conhecida no Brasil a partir do livro “A cultura da convergência”,
do pesquisador em comunicação Henry Jenkins.

A hipótese do paradigma era de que, na contemporaneidade, o con-


sumo de tecnologias digitais formaria comunicações híbridas com uma
certa “inteligência coletiva” e uma “cultura participativa” para superar o
individualismo. Ao que parece, as experiências de comunicação popular
e comunitária, geradas nos territórios, questionam o lugar do individual

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

não por causa do consumo de tecnologias, mas porque está fora dos prin-
cípios das comunidades tradicionais e periféricas não pensar o comum
como modo de organização, em qualquer circunstância.

O possível caráter hibridista das comunicações digitais, que unifica


diversas formas de comunicação em um “novo” modelo infértil, não repre-
senta as possibilidades múltiplas de comunicações gestadas na vontade
de transformar e preservar aspectos da realidade concreta no território. A
maioria das iniciativas off-line encontraram lugar no ambiente digital sem
reduzir seus núcleos de atuação, ao passo que as iniciativas digitais foram
levadas a realizar trabalhos territoriais através das velhas gambiarras que
cumpriram uma dupla função: de fazer a informação chegar às pessoas,
ao mesmo tempo em que denunciava ao país a existência de mais de 47
milhões de pessoas desconectadas da internet.

As estratégias de implementação de redes comunitárias on-line e


off-line, neste sentido, também surgem como oportunidade de descen-
tralizar e distribuir o digital, banindo usos únicos de plataformas e alar-
gando a ideia do fazer tecnológico e de internet. A formação de redes
antirracistas, acessíveis e feministas no Brasil são estratégias que vão
ao encontro do “aterrar” para possibilidades de internet(s) possíveis.

Corpos dissidentes na agenda da democratização da comunicação

Em 2013, a partir das jornadas de junho, não faltou literatura que


identificasse o ressurgimento das alternativas de mídias ou midiativismo
no Brasil a partir dos centros urbanos, em torno dos usos de tecnologias
digitais, ações diretas, mas sem uma cara bem definida. Desde então,
com o acirramento das lutas antirracistas e pela igualdade de gênero, é
possível perceber com nitidez a identidade de quem está por trás e na
frente das telas reivindicando representação e saberes/fazeres tradicio-
nais na luta pela democratização das comunicações. Não é por acaso
que as iniciativas apresentadas aqui são protagonizadas por negros/as,
mulheres e jovens de periferias, comunidades tradicionais e rurais.

Não bastasse a crise sanitária, os índices de violência policial con-


tra jovens negros, o feminicídio e os ataques aos territórios tradicionais
aumentaram em escala exponencial, exigindo uma mobilização redobrada
dessa população contra as violações de direitos.

Antes mesmo da pandemia chegar, um silêncio ensurdecedor pai-


rou na mídia tradicional em relação aos impactos do derramamento
de petróleo que atingiu a costa brasileira em 2019 e seguiu em 2020,
inviabilizando as formas de vida em pelo menos 1.009 localidades de
marisqueiras, pescadoras e demais povos que têm seus modos de vida
entrelaçados com o mar. Para quebrar a invisibilização desses grupos
e denunciar o racismo ambiental, surgiu o projeto Ondas da Resistência
– que denunciou a falta de cobertura do caso nas mídias tradicionais e,
com artigos, debates e podcast, amplificou as vozes das comunidades
atingidas pelo petróleo e pela Covid-19.

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Para os povos indígenas, que há 521 anos resistem às doenças tra-


zidas pela colonização europeia, 2020 foi o ano de se fazer ouvir o som
dos maracás cada vez mais longe. Com o agravamento da pandemia
colocando em risco mais de 50% dos povos originários, sobretudo anciãs
e anciãos, responsáveis por guardar a memória das etnias, a Articulação
dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) criou a frente Emergência Indígena.

Responsável pela condução de planos de enfrentamento à Covid-19


nos territórios, a iniciativa aliou ações de distribuição de alimentos e
construção de hospitais de campanha com a responsabilidade de contar
histórias sobre as vidas indígenas perdidas, através do “Memorial Indí-
gena”, e revelar dados do novo coronavírus com o monitoramento per-
manente de infectados, aldeados ou não. O monitoramento é um trabalho
de jornalismo de dados nunca antes feito na história da comunicação
brasileira e que soma esforços com outras iniciativas de denúncia do
genocídio indígena, como a rede de comunicação Mídia Índia e os festivais
de cinema indígena que mantiveram edições on-line.

Coletivamente, as mulheres – as primeiras na linha de frente da luta


pelo direito à vida – protagonizaram inúmeras ações no âmbito da comu-
nicação popular, a exemplo do “Conversa de Portão”, podcast semanal,
realizado pelo coletivo de comunicação “Nós, Mulheres da Periferia”, que
compartilha as experiências das mulheres periféricas de São Paulo e seus
desafios para manter a saúde física e mental no contexto de pandemia e
isolamento(s). Já a Revista Afirmativa, organização de mídia negra liderada
por jornalistas, lançou em 2020 o laboratório de jornalismo Respeita a
Favela! As experiências do processo de formação são cotadas no e-book
Narrativas afirmativas em tempos de pandemia.

A profusão dessas iniciativas confirma o que escreveu a antropóloga


iraniana Niousha Roshani no artigo intitulado “Discurso de Ódio e Ati-
vismo Digital Antirracista de jovens afrodescendentes no Brasil e Colôm-
bia”: “os jovens, e predominantemente mulheres, estão indo além da
tentativa de combater o racismo; ao invés disso, estão reivindicando
representações de si mesmos e contribuindo para a emergência de
uma nova cultura, perturbando o que a escritora Chimamanda Ngozi
Adichie chama de ‘o perigo de uma história única’”.

De rede em rede, de território em território, das mais variadas formas,


se constituindo no local-local e no local-global, as experiências de comu-
nicação popular e comunitária que surgem pela própria necessidade de
comunicar colocam o desafio de que comunicadoras e comunicadores
negros/as e de povos e comunidades tradicionais estejam no centro dos
debates e da formulação de projetos de regulação e políticas de comuni-
cação no país, propondo alternativas que sigam barrando os retrocessos
e avançando em direitos.

Nota

[1] Grupo de médicos e arte-educadrxs que atuam na promoção do


desenvolvimento comunitário integrado em Santarém, Belterra, Aveiro e
Juruti, municípios localizados no oeste do estado do Pará. Ver mais em:
https://saudeealegria.org.br/

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

Recomendações
Nesta publicação apresentamos nove artigos que apontam como alguns
dos problemas já vivenciados em outros períodos foram agravados por uma
escalada autoritária do governo. No mundo todo o surto da pandemia de
Covid-19 resultou no enfraquecimento dos direitos fundamentais, como a
liberdade de expressão, o direito de acesso à informação e o direito à pri-
vacidade. No Brasil, esse problema foi potencializado pelo discurso de ódio
e desinformação disseminado pelo chefe do poder executivo.

Ao contrário de outros países democráticos, o Brasil não possui uma lei


unificada sobre os meios de comunicação, que dê conta, por exemplo, da
regulação das concessões públicas de radiodifusão e de estabelecer regras
relativas a conteúdos jornalísticos ou não.

A comunicação social brasileira está amparada numa série de regras


legais, uma delas a Constituição Federal de 1988, que possui capítulo espe-
cífico sobre o tema. Também se destacam: o Código Brasileiro de Teleco-
municações (Lei 4.117/1962) e o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão
(Decreto nº 52.795/1963), quando se trata de radiodifusão; a Lei Geral de
Telecomunicações (Lei nº 9.472/1997), que regulamenta os serviços de tele-
fonia e conexão à internet; e o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) e a
Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei n° 13.709/2018) que garantem
direitos aos usuários digitais, entre as leis que regulam o setor.

Outras legislações estão mais voltadas a questões estruturais como a


Lei das Licitações (Lei nº 8666/1993) e outras, embora não tenham sido
criadas para este fim, apresentam dispositivos legais que limitam abusos ou
violações de conteúdo. Exemplos são o Estatuto da Criança e do Adoles-
cente (Lei nº 8069/1990), que trata da classificação indicativa, as leis Caó
(Lei nº 7.716/1989) e o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010), que
tipificam o crime de racismo e estabelecem sanções maiores quando ele é
cometido nos meios de comunicação. Por estarem, no entanto, fragmen-
tadas em diferentes dispositivos legais, seguem sendo de difícil aplicação.

O Brasil também é signatário de tratados internacionais que se referem


à garantia do direito à liberdade de expressão, bem como à garantia de
outros direitos humanos, que podem vir a ser violados no âmbito da mídia
(radiodifusão e internet). Entre eles, vale destacar: a Declaração Universal
dos Direitos Humanos; a Convenção Americana sobre Direitos Humanos
(Pacto de San José da Costa Rica); e o Pacto Internacional sobre Direitos
Civis e Políticos (PIDCP).

Com base nesse cenário e no diagnóstico de violações ao direito à comuni-


cação no Brasil no ano de 2020, o Intervozes apresenta a seguir suas principais
recomendações para efetivação e garantia do direito à comunicação no país.

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Liberdade de expressão e diversidade

01 Recomenda-se às escolas de comunicação que fortaleçam suas


disciplinas de ética no jornalismo, discutindo casos atuais sobre violações
de direitos nos meios de comunicação e as legislações nacionais e
internacionais existentes sobre liberdade de expressão e os documentos
internacionais sobre diversidade e pluralidade.

02 Recomenda-se aos jornalistas que se disponham a conhecer mais


a fundo o que diz o Código de Ética da categoria e as legislações
nacionais e internacionais existentes, e que busquem a diversidade e a
pluralidade de fontes de informação em suas coberturas.

03 Recomenda-se aos jornalistas e demais profissionais da


comunicação que, quando vítimas de censura interna nas redações,
formalizem denúncias aos sindicatos de jornalistas nos estados ou regiões
ou à Comissão Nacional de Ética da Federação Nacional dos Jornalistas
(Fenaj).

04 Recomenda-se ao Estado brasileiro que respeite as obrigações


internacionais a respeito dos direitos humanos determinadas nos
tratados dos quais é signatário e garanta a efetividade dos dispositivos
previstos no artigo 5º da Constituição Federal, que dizem respeito ao direito
à livre manifestação e associação.

05 Recomenda-se ao Estado brasileiro que investigue e puna os


responsáveis por casos de violência e perseguição a jornalistas,
comunicadores/as e defensores/as de direitos humanos, assim como
ofereça proteção imediata às vítimas de ameaças, mantendo e fortalecendo
os programas de proteção a defensores/as.

06 Recomenda-se à sociedade civil que apoie a difusão de estratégias


de alfabetização digital e educação para as mídias, uso crítico da
internet e segurança digital destinada a grupos vulneráveis, e incentive
iniciativas de formação.

07 Recomenda-se ao Estado que incentive projetos e a inserção no


currículo escolar de conteúdos relacionados à alfabetização digital
e à educação para as mídias.

08 Recomenda-se, às diferentes esferas do Poder Executivo, criar uma


política de financiamento e apoio às mídias populares, alternativas
e comunitárias, com editais públicos com premiação em recursos e editais
de fomento à criação e desenvolvimento de novos meios de comunicação
populares, alternativos e comunitários, ampliando o potencial produtivo
dos mesmos.

09 Recomenda-se que a sociedade civil denuncie violações à liberdade


de expressão, tanto nas redações de empresas jornalísticas quanto
no ambiente digital, assim como práticas de censura promovidas tanto pelo
Estado quanto pelo setor privado. As denúncias podem ser direcionadas à
Campanha Calar Jamais!, que busca levantar os casos de cerceamento à
liberdade de expressão em diferentes setores.

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

10 Recomenda-se ao Poder Legislativo a promoção de audiências


públicas para debater projetos de lei em tramitação no Congresso que
tratem de plataformas digitais, mas que podem comprometer a liberdade
de expressão, além de discutir parâmetros democráticos e multissetoriais
para a regulação das grandes plataformas digitais.

11 Recomenda-se ao Poder Público o banimento da tecnologia de


reconhecimento facial e outras tecnologias de vigilância em massa na
segurança pública por ser comprovado o alto índice de imprecisão e seu
caráter discriminatório, em especial sobre pessoas racializadas.

12 Recomenda-se à Defensoria Pública da União e dos Estados e


Distrital que proponham ações judiciais, buscando a indenização
pelo dano moral coletivo eventualmente ocorrido, para assegurar o direito
de resposta pelos agravos e a indenização por danos individuais sofridos,
nos casos de violações de direitos.

13 Recomenda-se aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário que,


no intuito de regular e/ou combater a proliferação de discursos de
ódio, notícias falsas, e crimes cometidos na internet não proponham ou
implementem ações limitadoras ao livre exercício da expressão de ideias
– como sinalizam alguns projetos de lei em tramitação hoje no Congresso
Nacional – uma vez que a liberdade de expressão é um dos pilares
fundamentais à garantia da democracia.

Comunicação pública e comunitária

01 Recomenda-se ao Estado brasileiro que garanta a operação da


Empresa Brasil de Comunicação (EBC) como empresa pública,
com orçamento próprio, adequado e respeito às estruturas de gestão
que viabilizem sua independência e autonomia em relação ao governo e a
participação da sociedade.

02 Recomenda-se ao Estado brasileiro a revogação da Lei nº


13.417/2017, que modificou a Lei nº 11.652/2008, sobre a Empresa
Brasil de Comunicação (EBC), de modo a garantir que a população tenha
acesso ao sistema público de comunicação, conforme previsto no art. 223
da Constituição Federal.

03 Recomenda-se a revogação da Portaria-Presidente nº 216/2019,


publicada pelo presidente da EBC, que extingue a NBR e altera o
caráter público da TV Brasil, tornando-a um canal de publicidade dos atos
do Executivo.

04 Recomenda-se ao Poder Legislativo que regulamente em definitivo


o Art. 223 da Constituição Federal, delimitando percentuais
equivalentes entre os sistemas público, privado e estatal na radiodifusão
e garantindo a autonomia, financiamento e mecanismos de participação
popular no sistema público.

05 Recomenda-se ao Poder Legislativo estabelecer uma nova


legislação de fomento à comunicação pública, com financiamento
obtido a partir da cobrança de taxas de empresas que operam no sistema
comercial e em outros sistemas de exploração do serviço audiovisual; do

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

pagamento de outorgas pelas emissoras privadas; de recursos advindos


de Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), de 3% sobre
a receita obtida com publicidade veiculada nas emissoras privadas; além
de garantir recursos à comunicação pública provenientes da publicidade
oficial.

06 Recomenda-se ao Poder Executivo retomar o diálogo com a


sociedade sobre o papel da comunicação pública, iniciado nos
Fóruns de TV e Rádio Pública e na Conferência Nacional de Comunicação,
garantindo a autonomia, o financiamento e a participação da sociedade.

07 Recomenda-se ao Ministério Público Federal que, no uso de suas


prerrogativas, combata a utilização dos veículos públicos para
proselitismo político e religioso, garantindo a autonomia deste sistema de
comunicação.

08 Recomenda-se a reforma da Lei nº 9.612/1998, a partir de amplas


consultas às rádios comunitárias, visando principalmente à
redução das barreiras para funcionamento das mesmas e a ampliação dos
mecanismos de fomento e fortalecimento.

09 Recomenda-se ao Estado brasileiro apoiar as rádios comunitárias,


com a criação de um fundo para distribuição de verbas destinadas
a dar suporte à estruturação, apoio técnico, capacitação e investimento em
equipamentos e manutenção.

Conteúdos

01 Recomenda-se que os órgãos competentes fiscalizem o conteúdo


dos programas de rádio e TV, a começar pelos chamados
“policialescos”, por reconhecidamente violarem direitos humanos e
previsões legais, e apliquem as sanções administrativas cabíveis por
violações de direitos humanos, cobrando responsabilização e estimulando
mudança de práticas.

02 Recomenda-se que o Estado brasileiro considere: propor normas


que detalhem a política de fiscalização e apuração das violações
de direitos humanos praticadas pelos concessionários de radiodifusão;
criar espaços colegiados multissetoriais independentes, com participação
da sociedade civil, que contribuam no acompanhamento de conteúdos;
publicizar, de forma ampla e transparente, as sanções aplicadas às
empresas; estimular boas práticas entre as emissoras visando a defesa,
proteção e promoção dos direitos humanos.

03 Recomenda-se que o Poder Executivo, por meio de seus órgãos


competentes, informe a população brasileira sobre as formas
possíveis de realização de denúncias a respeito de violações de direitos
humanos em programas de rádio e TV, por meio de campanhas de
comunicação e ferramentas permanentes de informação.

04 Recomenda-se aos órgãos públicos municipais, estaduais e


federais, bem como às empresas e autarquias a estes ligados, não
veicular publicidade institucional, nem de utilidade pública, em programas

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

que violem direitos humanos, seja como cota de patrocínio, seja nos
intervalos comerciais ou por meio de merchandising.

05 Recomenda-se, às diferentes esferas do Poder Executivo,


estabelecer mecanismos democráticos e transparentes para o
investimento em publicidade oficial nos meios de comunicação, como
forma de garantir uma distribuição de recursos que não tome as medidas
de audiência e de alcance como único critério, permitindo o investimento
também em pequenos veículos.

06 Recomenda-se às empresas privadas que também não concedam


verbas, auxílios, patrocínios ou subvenções de qualquer espécie,
ou sob qualquer pretexto, às empresas de comunicação que veiculem,
de forma recorrente em sua programação, condutas, discursos, práticas
ou situações contrárias aos direitos humanos – como ora se observa nos
programas “policialescos”.

07 Recomenda-se ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que oriente


os órgãos do Poder Judiciário quanto ao julgamento prioritário
de ações sobre violações de direitos humanos na mídia e aplicação de
sanções administrativas e multas dissuasivas de forma célere, dado o
impacto negativo dessas violações em toda a sociedade.

08 Recomenda-se ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)


que oriente os MPs a instaurarem inquéritos civis públicos para
analisar denúncias nos estados em que foram veiculados programas de
rádio e TV que violem direitos humanos, bem como a adoção de providências
legais pertinentes à responsabilização das emissoras e o ajuizamento de
ações de reparação de danos morais coletivos eventualmente ocorridos.

09 Recomenda-se ao Conselho Nacional do Ministério Público que


oriente os órgãos estaduais a abrirem ações relativas à veiculação
da publicidade de órgãos públicos e empresas estatais em programas
sabidamente violadores de direitos humanos, seja como cota de patrocínio,
seja nos intervalos comerciais ou por meio de merchandising.

10 Recomenda-se à Defensoria Pública da União (DPU) e dos Estados


e Distrito Federal que proponham ações judiciais buscando a
indenização pelo dano moral coletivo eventualmente ocorrido, para
assegurar o direito de resposta pelos agravos e a indenização por danos
individuais sofridos, nos casos de violação de direitos humanos por
concessionários de radiodifusão, bem como em outros casos de violações
que venham a ocorrer.

11 Recomenda-se às empresas de radiodifusão e às suas entidades


representativas que respeitem os direitos humanos, cumpram a legislação
vigente no país e promovam esses direitos e leis junto à sociedade, exercendo
a responsabilidade social pertinente ao setor; que adotem e respeitem
mecanismos de autorregulação transparentes, a fim de que os conteúdos
sejam avaliados permanentemente e corrigidos, tendo como parâmetros o
respeito aos direitos humanos, às regras e às instituições democráticas e à
diversidade; que as empresas não realizem a abordagem de pessoas sob
custódia do Estado, a título de entrevistá-las, salvo se estas consentirem e
estiverem acompanhadas de advogado ou defensor público; e que promovam
formações internas junto aos profissionais sobre direitos humanos.

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

12 Recomenda-se ao Estado brasileiro que não proponha ou implemente


ações limitadoras ao exercício da liberdade de expressão, inclusive
por meio da criação de novos tipos penais, ainda que tenham o intuito de
combater a proliferação de discursos de ódio, disseminação de notícias
falsas e crimes cometidos na internet. O Poder Judiciário possui meios para
esse tipo de ação e deve aplicar a legislação vigente, sempre considerando
o necessário equilíbrio entre a liberdade de expressão e os demais direitos
humanos.

13 Recomenda-se aos órgãos competentes que fiscalizem e


responsabilizem agentes públicos que promovam campanhas de
ódio por meio de seus canais institucionais ou pessoais na internet.

14 Recomenda-se ao Poder Executivo que amplie o acesso a programas


de inclusão digital para populações de baixa renda em espaços
públicos, especialmente escolas, bibliotecas e centros comunitários, e
desenvolva iniciativas que levem a incorporar a temática da educação
em direitos humanos nos programas de inclusão digital e de educação à
distância.

15 Recomenda-se, às diferentes esferas do Poder Executivo, contemplar


a educomunicação e a leitura crítica da mídia nas escolas, estimulando
a formação de um público com condições de questionar os conteúdos
midiáticos, em geral, e jornalísticos, em particular, a que têm acesso, além
dos modelos de negócios que influenciam na produção de conteúdos.

16 Recomenda-se ao Poder Judiciário a criação de mecanismos


de proteção à violência de gênero praticada por meio da internet,
abarcando situações como perseguição, ameaças, invasão de privacidade,
dentre outras formas de violência.

17 Recomenda-se ao Poder Executivo, em âmbito federal e estadual,


notadamente Ministério da Justiça, Secretaria de Direitos Humanos
e Secretarias de Segurança Pública, que capacite agentes estatais para
acolher as vítimas de violência de gênero, lgbtifóbicas e motivadas por
racismo e crie canais oficiais de recebimento de denúncias e produza
dados estatísticos sobre violência on-line.

18 Recomenda-se às empresas de internet maior transparência em


relação à discriminação e moderação de conteúdos publicados em
redes sociais e a seus mecanismos de regulação de discurso. Recomenda-
se ainda que essas empresas observem sua responsabilidade de defender,
proteger e promover os direitos humanos, no que diz respeito à gestão de
conteúdos produzidos por terceiros, e que facilitem aos usuários o acesso
a formulários de denúncias e de questionamento à retirada de conteúdos,
bem como disponibilizem mecanismos de comunicação direta com a
empresa para a resolução de conflitos.

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

Radiodifusão

01 Recomenda-se ao Poder Executivo a ampliação da transparência


e da fiscalização da exploração do serviço de radiodifusão, com a
inclusão de todas as obrigações previstas em lei para as emissoras nos
contratos de concessão. A possibilidade de perda da licença, em caso de
descumprimento das normas em vigor, deve estar prevista no contrato.

02 Recomenda-se a modificação do Regulamento de Sanções


Administrativas, publicado pelo então Ministério de Ciência,
Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), visando o
estabelecimento de punições gradativas às emissoras de radiodifusão que
descumpram suas obrigações, inclusive de respeito aos direitos humanos,
estabelecendo penas mais altas em caso de reincidência.

03 Recomenda-se ao Estado brasileiro que dê fim aos arrendamentos


e transferência de outorgas de radiodifusão, incluindo as que
envolvem igrejas e os chamados “supermercados eletrônicos”. Quando
identificada essa prática, a outorga deve ser devolvida ao Estado e um
novo processo de licenciamento deve ser aberto para novos interessados.
Recomenda-se ainda que o legislativo não descumpra essa premissa e
não manobre para mudar as regras a fim de permitir o arrendamento.

04 Recomenda-se ao Estado brasileiro que aprove uma nova legislação


para o setor de radiodifusão que limite o número de concessões
por grupos econômicos e impeça a propriedade cruzada dos meios,
instituindo também a separação da infraestrutura de transporte do sinal e
as atividades de programação. Tal legislação deve prever a criação de uma
autoridade independente de composição multissetorial, responsável por
analisar possíveis violações.

05 Recomenda-se ao Estado brasileiro que cumpra com a garantia da


vedação constitucional de que políticos em exercício de mandato
sejam concessionários de serviços de radiodifusão (Art. 54 da Constituição
Federal) e inclua na legislação a vedação também a seus familiares.

Telecomunicações e internet

01 Recomenda-se ao Poder Executivo garantir a oferta de banda


larga em regime público, especialmente no atacado, como ação
fundamental de uma política estratégica para a universalização do acesso
à internet, conforme proposta elaborada pela campanha Banda Larga é
Um Direito Seu!

02 Recomenda-se ao Poder Executivo garantir que os recursos do


Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust)
sejam utilizados em investimentos de infraestrutura para cumprimento
da meta de conectar todas as escolas públicas brasileiras até 2024 e de
garantir que os recursos do fundo sejam investidos em áreas de baixo
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

03 Recomenda-se ao Poder Executivo recuperar o papel da Telebrás,


fortalecendo também a empresa, como instrumento público
fundamental para a condução de políticas públicas que tenham o objetivo
de garantir a universalização do acesso à banda larga.

04 Recomenda-se ao Estado brasileiro que observe o estabelecido


na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018)
no que se refere à proteção dos direitos fundamentais de liberdade e de
privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.

05 Recomenda-se que o Poder Executivo resguarde a independência


da Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais (ANPD),
permita sua autonomia e garanta condições de funcionamento adequadas
e independentes de ingerências externas.

06 Recomenda-se ao Estado brasileiro que observe o estabelecido


no Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) no que se refere ao
direito do acesso à internet e à garantia da neutralidade de rede na entrega
do respectivo serviço, considerado essencial.

07 Recomenda-se que o Poder Executivo resguarde o Comitê Gestor


da Internet (CGI.br) em sua autonomia e viabilidade financeira,
garantindo-lhe condições de funcionamento adequadas e independentes
de ingerências externas, com participação paritária e multissetorial.

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2020

Sobre as autoras e o autor

Ana Carolina Westrup é integrante do Intervozes, doutoranda em


Sociologia pela UFS, pesquisadora do LEPP/UFS e bolsista CNPq/
Tecnologia Social.

Bia Barbosa é jornalista, especialista em direitos humanos e mestre em


Gestão e Políticas Públicas. É integrante do Intervozes e foi secretária geral
do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação.

Eduardo Amorim é jornalista, doutorando no programa de pós-graduação


em Comunicação da UFPE (PPGCOM-UFPE) e integrante do Coletivo
Intervozes.

Gésio Passos é jornalista da EBC, mestre em comunicação pela UnB,


diretor do Sindicato dos Jornalistas do DF e vice-presidente Centro-Oeste
da Federação Nacional dos Jornalistas. É integrante do Coletivo Intervozes.

Iago Vernek é professor e associado do Intervozes.

Mabel Dias é jornalista feminista e integrante do Intervozes.

Maria Mello é jornalista, mestra em Comunicação e integrante do Conselho


Diretor do Intervozes.

Mariana Gomes é jornalista e co-fundadora da Plataforma Conexão


Malunga. Liderança negra apoiada pelo Fundo Baobá, é pesquisadora do
Centro de Estudos e Pesquisa em Análise do Discurso – UFBA.

Mariana Martins de Carvalho é jornalista e gestora em comunicação


pública da EBC. Doutora em comunicação e pesquisadora do Laboratório
de Políticas de Comunicação da UnB (LaPCom). É integrante do Coletivo
Intervozes.

Marina Pita é jornalista, mestranda em Comunicação pela UnB e integrante


do Intervozes.

Paulo Victor Melo é jornalista, doutor em Comunicação e Cultura


Contemporâneas, integrante do Conselho Diretor do Intervozes.

Tâmara Terso é jornalista amefricana, doutoranda em Comunicação e


Cultura e integrante do Conselho Diretor do Intervozes.

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