Punk - Cultura e Arte
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ISSN: 0104-8775
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Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
ABSTRACT This article deals with the squatting of a historical building, the
Guanabara Train Station, in Campinas (State of São Paulo) established by
a group of homeless and anarco-punks between the 1990s and 2004. My
focus is mainly turned to the anarco-punks’ rebellious culture mainly trough
their artistic performances, poems, graffiti and other forms of expression. My
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1 Um dos centros de referência no exterior é o Institut d’Histoire du Temps Présent, ligado ao CNRS e que desen-
volve estudos sobre a história recente, isto é, pós segunda guerra, da França e de outros países. Cf. INSTITUT
D’HISTOIRE DU TEMPS PRÉSENT. Ecrire l’histoire du temps présent Actes de la journée d’études de l’IHTP, Paris:
CNRS, 1993.
2 Sobre isso ver HOBSBAWM, Eric. The age of extremes. A History of the word, 1914-1991, New York: Pantheon Books,
1995; do mesmo autor a interessante obra de caráter autobiográfico Tempos Interessantes. Uma vida no século
XX, São Paulo: Companhia das Letras, 2002, ou ainda do autor, a recente coletânea de palestras e conferências
publicada sob o título Globalização, Democracia e Terrorismo, São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
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3 O conceito de cultura é muito abrangente e de difícil determinação. Do ponto de vista teórico se pode abordar
cultura pelo menos a partir de três considerações básicas. Inicialmente, como produção intelectual ou artística,
restringindo a abordagem ao universo destes círculos. Em segundo lugar, como um modo de vida de um povo,
num período ou ainda, peculiaridades de um determinado grupo, o que amplia o espectro da análise para as
festas, atividades esportivas, ritos religiosos, etc. Num terceiro foco, cultura representa uma produção artística
que visa significar práticas sociais e modos de vida. Estas categorias teriam sido estabelecidas por Raymond
Williams no seu livro Culture and Society 1780-1950, Londres: Penguin Books/Chatto&Windus, 1985, na tentativa
de sistematizar um pensamento em torno do conceito. Da cultura não se separam aspectos diversificados de
compreensão da ideologia e do poder político, de tal forma a nos alertar para usos indiscriminados dos termos.
Se, finalmente, optarmos pelo uso de cultura popular, uma nova série de questionamentos entram em jogo, dos
quais trataremos mais adiante. Na historiografia o debate é bem mais amplo e procuraremos fixar alguns pontos
no decorrer deste artigo, sem a pretensão de esgotar um tema tão polêmico e extenso como este, algo impossível
de se concretizar em poucas páginas. Ver John Storey. An Introductory Guide to Cultural Theory and Popular Culture,
Athens (Georgia): The University of Geórgia Press, 1993. Na historiografia ver a produção de E. P. Thompson,
Carlo Ginzburg, Natalie Zemon Davis, Peter Burke como alguns exemplos de aplicação do conceito no âmbito
da história social.
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4 As informações sobre o punk a seguir foram extraídas da bibliografia específica citada em notas no texto, bem
como do material reunido na minha própria pesquisa de campo, jornais, filmes.
5 Aqui existe uma discussão, alguns pesquisadores ou militantes determinam a data a partir da apresentação dos
Sex Pistols em Londres, em frente à loja da estilista Vivienne Westwood, outros argumentam, ao contrário, que já
havia nos Estados Unidos bandas punks, entre elas o Ramones. Ver em ABRAMO, H. W. Cenas juvenis: punks e
darks no espetáculo urbano de São Paulo, São Paulo: Scritta, 1994; BIVAR, A. O que é punk? São Paulo: Brasiliense,
1983; KEMP, Kênia. “Grupos de estilo jovens: o ‘Rock Underground” e as práticas (contra) culturais dos grupos
‘punk’ e ‘thrash’ em São Paulo”, dissertação de mestrado em Antropologia, Unicamp (Campinas-SP):IFCH, 1993,
PEDROSO, Helenrose A. da Silva; SOUZA, Heder C. A. “Absurdo da realidade: o movimento punk”, Cadernos
do IFCH (6) Campinas(SP): Unicamp, 1983; SOUSA, Rafael Lopes de. Punk: Cultura e Protesto: as mutações
ideológicas de uma comunidade juvenil subversiva, São Paulo 1983-1994, São Paulo: Ed Pulsar, 2002.
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6 Os flyers são folhetos contendo informações de caráter diverso sobre bandas ou sobre fanzines. Os fanzines ou
zines, são revistas produzidas artesanalmente que circulam no circuito underground. Normalmente são montadas
em papel A4 a partir de colagens, desenhos feitos à mão criando propositalmente uma poluição visual. A temática
dos zines foi se modificando dos anos 70 até hoje, mas versa sobre música, poesia, política, sexo, entre outros
assuntos.
7 Gigs corresponde a apresentação de bandas. A finalidade destas apresentações não é o lucro, mas a diversão, a
troca de experiências ou mesmo a reunião de recursos em favor de coletivos necessitados de suporte material.
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8 Nas referências de Kênia Kemp, na sua dissertação “Grupos de estilo jovens: o rock underground e as práticas
(contra) culturais dos grupos “punks” e “thrash” em São Paulo”; os thrashers admitem discussões sobre o na-
cionalismo, alguns até ligando-se a organizações racistas. Possui um imaginário voltado para o lado obscuro da
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magia, da morte, do mórbido. Os skinheads são conhecidos no Brasil como “carecas”, sobre eles comentaremos
logo adiante e, os heavy metal ou metaleiros, são herdeiros das bandas de rock dos anos 70.
9 Cf. a produção do grupo Temático Escritas da Violência dirigido por Márcio Seligmann e Francisco Foot Hardman
(IEL-Unicamp) e Jaime Ginzburg (Letras-Usp). A PUC-SP também conta com um grupo de referência dedicado à
questão da violência que une o Centro de Estudos de História da América Latina (CEHAL) e o Núcleo de Trabalho
Ideologia e Poder, ambos nessa Universidade.
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10 O’Hara é um ativista punk norte americano que publicou um livro que procurava dar conta da cena punk na
América do Norte. Este material foi traduzido e publicado no Brasil em 2005 pela Radical Livros com o título de
Filosofia do Punk, mais do que barulho. A fala citada de Greig O’Hara está em entrevista do repórter da Folha de
São Paulo Renato Roschel publicada no caderno Ilustrada em 05/07/2005. Sobre os 30 anos do punk ver NEY
Thiago. “Punks divergem no presente e no passado. Mostra que estréia hoje no CCBB paulista celebra os 30 anos
do movimento e gera discussão sobre sua estética atual”. Folha de São Paulo, SP, 5/07/2005, caderno Ilustrada.
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11 Esta categoria foi estabelecida e aceita nas ciências humanas na tentativa de explicar e definir os movimentos
sociais mais contemporâneos que apresentariam algumas características estruturais mais ou menos comuns como,
por exemplo: o fato de não mais estarem centralizados na classe trabalhadora; a sua formação heterogênea, seu
traço anti-hierárquico e descentralizado, instituem o cotidiano como um lugar da política, estabelecem uma cultura
política até então desconhecida que privilegia a cultura de grupos e fatores de identidades entre eles, trazem novos
temas e problemas para a reflexão como, ecologia, homossexualismo, interação cidade/campo, crítica à política
institucionalizada. Ver, por exemplo, SADER, Emir. Quando novos personagens entram em cena. Experiências, falas
e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-1980), Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; ALVAREZ, Sonia;
DAGNINO, Evelina; ESCOBAR, Arturo (orgs). Cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos: novas
leituras Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. Ao mesmo tempo, novas interpretações sobre a esquerda abrem um
debate como AARÃO REIS, Daniel e FERREIRA, Jorge (orgs.) Revolução e Democracia (1964-...), Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007 (As Esquerdas no Brasil; 3).
12 Trata-se da mostra “Punk 30 Anos”, organizada pelo colunista da Folha de São Paulo, André Fischer,que foi levada
primeiro no Rio de Janeiro, depois em São Paulo no CCBB, em julho de 2005. A mostra levantou o protesto de
setores do anarcopunk, pelo fato de ter sido levada numa instituição financeira, contraditando a ideologia punk,
depois por apresentar o Sex Pistols como os fundadores do punk. NEY, Thiago, em matéria já citada na nota
nº10.
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13 KEMP, Kênia.“Grupos de estilo jovens: o rock underground e as práticas (contra) culturais dos “punks” e “thrash”
em São Paulo; p.45, refere-se ao termo que teria sido empregado tanto por CAIAFA, Janice. O movimento punk na
cidade. Invasão de bandos Sub, Rio de Janeiro Zahar, 1986, como por GOLDTHORPE, Jeff “Intoxicated Culture:
Punk Symbolism and Punk Protest” in Socialist Review, vol. 22(2), Apr/jun: 35-64. O verbo encapsular definiria a
intransigência do hardcore com o comércio e com os de fora do universo punk.
14 Squatt pode ser definido hoje como habitação comunitária de artistas e intelectuais e estudantes, que inclusive se
presta para recepção de turistas na Europa. Mas a palavra também é empregada para designar uma ocupação
formada por grupos heterogêneos em regime de autogestão. Na Inglaterra do século XVII, os squatters eram um
segmento na categoria de homens sem senhores que ocupavam ilegalmente os terrenos comunais, as áreas
incultas e as florestas e com as suas ações resistiam aos cercamentos, às determinações reais e às leis restritivas
à propriedade comunal e à pobreza. Ver HILL, Christopher. O mundo de ponta cabeça: idéias radicais durante a
revolução inglesa de 1640, São Paulo: Companhia das Letras, 1987
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15 Aqui é preciso que se faça uma distinção entre as ocupações urbanas e as rurais, do tipo das promovidas pelo MST
no Brasil. Com objetivos diferentes, o MST foca o aspecto primordial da sua luta na Reforma Agrária, entretanto,
poderíamos também encontrar elementos de semelhanças entre estes diferentes tipos de ocupação, sobretudo
na forma de gestão da economia, de caráter coletivo. Por outro lado, o MST, ou mesmo os movimentos urbanos
de sem teto, não discutem a família burguesa e os grupos e padrões de sexualidade, mas numa luta política
podem contar com a simpatia dos punks.
16 GALLO, Ivone. Contra-informação e cultura política. Anais do XXIV Simpósio Nacional de História, Unisinos/RS,
julho 2007.
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17 HILL, C. O mundo de ponta cabeça: idéias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640, São Paulo: Companhia
das Letras, 1987.
18 MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo na sociedade de massas, Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1991.
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19 TONOCCHI, Mário. Estação vazia abriga “sociedade alternativa”; punks e sem-teto ocupam Estação Guanabara,
em Campinas. Folha de São Paulo, SP, 05 jan, 2003.
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21 Até o envio desde artigo a estação encontrava-se em tal estado. Hoje está restaurada, sem que se notem os vestí-
gios da ocupação dos punks e dos sem teto. É como se não fizessem parte da história da cidade e do edifício.
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22 Todas estas informações foram extraídas de TONOCCHI, Mário em matéria já citada na nota 19 deste artigo. Para
uma compreensão mais abrangente sobre a transformação da arte em mercadoria com o aval do poder público
sugiro a leitura de WU, Chin-tao. Privatização da cultura: a intervenção corporativa na arte desde os anos 1980,
São Paulo: Boitempo, 2006 e BRANT, Leonardo.Mercado cultural: panorama crítico com dados e pesquisas e guia
prático para gestão e venda de projetos, São Paulo: Escrituras Editora, 2002.
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materiais como garrafas pet, jornais, papelão e etc., para fazerem artesa-
nalmente os seus próprios brinquedos. Temos também uma parceria com o
“Trilhares”, grupo de contação de histórias infantis, formado por estudantes
da Unicamp, que tem como proposta o incentivo à leitura de forma mais
descontraída, diferente da rotina escolar”.24 Estas atividades aconteciam
às quintas-feiras pela manhã, das 10 às 11 hs e as crianças eram busca-
das em suas casas e depois devolvidas aos seus lares pelos punks. Com
eles as crianças brincavam e iam sendo alfabetizadas na língua materna,
além de aprenderem o Esperanto, considerado como língua universal.25 As
atividades em geral também se destinavam aos adultos, como batuques,
capoeira. É importante frisar o quanto este tipo de ação se distancia daquela
proposta assistencialista que tem sido a tônica das políticas públicas dos
governos, geralmente ancoradas numa visão paternalista, hierarquizada e
uniformizante, da classe dominante sobre os pobres.
Na fase áurea da ocupação, havia, além da farmácia, da batucada, do
esperanto, do parquinho, uma sessão de vídeos aos domingos, por volta
das 6 horas da tarde, com entrada franca. Possuíam uma pequena vide-
oteca, porém os vídeos apresentados, na maior parte eram alugados ou
retirados nas Bibliotecas do IFCH ou da FE da Unicamp. Após as sessões
havia discussões sobre o tema do filme, dirigida para uma reflexão crítica da
realidade a partir das propostas apresentadas no vídeo. A iniciativa de levar
à comunidade uma informação por via audiovisual fazia-se com grandes
sacrifícios, sendo os aparelhos de TV e vídeo, emprestados e em péssimo
estado o que dificultou a continuidade deste projeto tão importante para
uma comunidade não leitora. Mas vivendo nos limites da sobrevivência não
podiam dar-se ao luxo de acesso a equipamentos caros e, em virtude da
filosofia política adotada pelos punks e de uma ética, resistiam à aceitação
de recursos de instituições governamentais, ou não governamentais, e
de empresas privadas, preferindo manter autonomia aceitando doações,
reciclando materiais, produzindo poesia e artesanato. A cooperativa de
bandas, a oficina de serigrafia, a reciclagem de lixo, o núcleo de produção
de grafites e um estúdio de gravações fonográficas, compunham os ele-
mentos capazes de fornecer a sustentação do projeto.
Todo este trabalho viria a ser demolido em começos de 2004, quando
depois de muitas ameaças e de invasões policiais foram finalmente desa-
lojados para ceder espaço para o Espaço Cultural Guanabara projetado
pela Unicamp.
24 “Desenvolvimento da criação” Periferia Central, Informativo dos moradores da Estação Okupada Mogiana, nº 1,
agosto de 2003.
25 O Esperanto foi criado por Zamenhof (1859-1918), judeu polonês, na tentativa de romper barreiras lingüísticas
em todo o mundo. A língua teria sido apresentada ao público em 1887 e construída a partir de uma fusão de
várias línguas, como hebraico, latim, grego e outras línguas modernas. No Brasil, a difusão do Esperanto deu-se
principalmente, nas organizações operárias que a incluíam nos seus projetos de educação.
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26 “Centro Cultural Unicamp: revitalização do espaço urbano ou homicídio cultural???????” panfleto sem autoria e
sem data.
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27 LOPEZ, Miguel martinez. “Okupa y resiste, conflictos urbanos y movimiento contracultural” http://www.hartza.
com/okupas3htm.
28 TOLSTOI, Leon. O que é arte? São Paulo: Ediouro, 2002 (Clássicos Ilustrados), p.77.
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29 No zine Ramificações que saiu em dezembro de 2003 os poetas esclarecem que “La poema é um mosaico
humano...Um tapete velho de retalhos que se renovam ou se destroem. Uma ferida doída que ora inflama ora
fecha... Aglutinando novas idéias, concepções...Alternando diálogos, projetos de comunicação. Contra a arte
burguesa e acadêmica!!! Um suspiro de ódio ao estabelecido! Aos monumentos e tradições... DESTRUIÇÃO!!!
ANTI-ART no aqui e agora...Subversão viva&ativa. Para uma interpretação da cultura anarquista ver QUEIROZ
NORTE, Sergio Augusto. “Ars Anarchia-arte, vida e rebeldia”, in Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 18,
nº35, pp.133-164, 1998. Para uma interpretação de fontes visuais ver, BEZERRA DE MENESES, Ulpiano. “Fontes
visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares” in Revista Brasileira de História,
São Paulo: ANPUH/ Humanitas Publicações, v.23, nº45, pp.11-36, 2003. Interessantes também os novos estudos
em História e Linguagem, por exemplo, BURKE, P. e POTTER, R.(orgs) História Social da Linguagem, São Paulo:
Fundação Editora da UNESP, 1997 (UNESP/Cambridge).
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em arte, mas não em arte burguesa, um corpo que passa por uma plástica
letal, é o corpo-lixo, resto, que se destaca na paisagem, se arrasta com
sua magreza cadavérica, sua palidez, seus trajes sujos e incomuns e que
nesta fantasmagoria de seres mortos/vivos incomodam quando invadem
o espaço limpo da burguesia, com seus modos rudes e sarcasmos. Se o
punk representa um poema vivo, nos interrogamos inclusive sobre o lugar
e a forma assumidos pela poesia no mundo alternativo.
Um outro aspecto a se destacar quanto a isto, é a própria forma de
produção da arte no universo underground. Um exemplo que gostaria de
citar é o da Livre Associação dos Poetas Marginais, estabelecida pelos punks
do Pomba Negra que publicava seus zines a partir desta concepção de
produção coletiva e sem a finalidade de lucro e que circulavam nas redes
de relações do grupo.
Em suma, a arte anarquista e a arte libertária são arte livre, isto é, em
rompimento com a sociedade de mercado, com os padrões estéticos
pré-determinados e congelados, e com a comercialização da cultura. Ela
está imediatamente vinculada à vida e usufrui das mudanças permanentes
operadas no presente. Um poema, por exemplo, que fala sobre as invasões
freqüentes da Estação Guanabara pela polícia nos ajuda a compreender
melhor a relação arte/vida e rebeldia: “Dos consistentes muros de um lugar
esquecido/ecoam os gritos do desespero. Em turbulentas noites de ameaça,
a paranóia/se apodera do meu sentido./O temor de sentir-se desprotegid@
ante/a realidade do oprimido, me torna mais uma vítima/dese jogo de am-
bição, dolor/deste sistema fascista que mata/prende para conseguir seus
objetivos/O cheiro da miséria a meu redor misturado com medo/me mostra
que não somos nada ante sua moral assasina/somos tão insignificantes
como para desaparecer/numa madrugada de bombas e tiros/mas nosso
ódio a tal cobarde crueldade/não está sosinho...cuidado!!!/exponho a si-
tuação do cotidiano/a insetesa rondando nossas vidas/a violência do seus
cães de guarda/tenta paralisar nossas ideas/aterorisarlas.../mas sempre
estarão ativas!!!.(sic)
Este poema do zine La Poema aparece circundado por palavras soltas:
morte, vidas em perigo, controle, insubmissão, fim trágico, programados
para matar.
Por realizar-se independentemente do mercado, do gosto popular ou
da crítica intelectualizada, só pode efetivar-se como autogestionada o que
mais uma vez, garante independência de forma e conteúdo. Como esta arte
desenvolve-se fora dos circuitos intelectualizados comunica seus concei-
tos de forma simplificada para que sejam absorvidos imediatamente pelo
público. Isto, por outro lado, deriva de uma concepção de artista como
homem comum que como qualquer um não precisa ser superdotado para
uma expressão artística, ao contrário do que pressupõe a produção artística
burguesa. A sua estrutura não é apenas rápida e assimilável, ela é rude. No
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