Materiualizador de Sonhos - Jose Carlos Guerra Damasceno - Tese - PT 2
Materiualizador de Sonhos - Jose Carlos Guerra Damasceno - Tese - PT 2
Materiualizador de Sonhos - Jose Carlos Guerra Damasceno - Tese - PT 2
3 SONHO
Muito do que sei sobre sonhos foram os sonhos mesmos que me ensinaram.
Eu anotava alguns, mas não tinha nenhuma atenção especial para isso antes de
começar o Materializador de Sonhos. O projeto surgiu em 2007. Eu estava
trabalhando em um material para exposição de Michel Groisman, 264 estávamos na
minha casa, e eu lhe contava da minha crise com a cerâmica. Sempre trabalhei com
escultura em cerâmica: com 5 anos frequentava o ateliê de uma amiga da minha
mãe, e isso me acompanhou toda a infância e juventude. Depois que eu comecei a
fazer arte contemporânea, não sabia onde encaixar isso na minha vida. Percebia
uma necessidade física de estar trabalhando com argila, mas ao mesmo tempo não
sabia o que fazer. Na época, eu estava em uma longa série em que copiava
imagens de fotos em relevos de cerâmica.
264
Portas da mãos Michel Groisman e Sung Pyo Hong com participação de Nadam Guerra. MAM RIO
2007.
130
• Tomar nota.
história do mundo, para o passado e para o futuro, e estava aberto na página do ano
de 1263, quando os demônios teriam sido soltos na terra. Os simbolismos da carta
passaram totalmente despercebidos por mim: eu estava fazendo um livro de sonhos
que poderia acessar qualquer parte do passado e do futuro. E o século XIII é quando
se supõe que o tarô foi criado.
Figura 45 - Materializador de Sonhos III a X como cartas de Tarô. Nadam Guerra, 2012.
265
Falaremos disso na parte sobre imagem.
136
Os Arcanos Maiores do tarô são uma história, uma trilha em uma sequência
que tem uma lógica. Eles podem se relacionar por exemplo com o desenvolvimento
de uma pessoa. Assim, é possível ver o paralelo entre o crescimento da criança
como descrito por Freud, por Piaget 266 ou nos ciclos de setênios de Rudolf
Steiner. 267 No tarô, se pode ver também o processo de individuação proposto por
Jung268 ou a Jornada do Herói. 269
Até o seu 1° ano, o bebê aprende a andar sem saber para onde, como o
Louco. De 1 a 6 anos (e nas cartas de 1 a 6), a criança desenvolve o corpo físico e
sua constituição como indivíduo.
266
MARTORELL, 2014. p.30.
267
LANZ, 1997.
268
GAD, 1996 e SALLIE, 1980.
269
BANZHAF, 2007.
137
Com 21 anos, se inicia a nova fase, e vamos entrar novamente no ciclo como
uma nova volta em outro nível da espiral.
Sempre resisti a fazer relações diretas com as cartas do tarô e as histórias do
Materializador de Sonhos. Ainda assim, há uma série surpreendente de
coincidências, de correlações entre os sonhos que recebi e os arquétipos dos
Arcanos Maiores. A mão do primeiro sonho é um possível símbolo do mago que
manipula. O livro do Materializador de Sonhos II é o símbolo da sacerdotisa.
Consigo ver relações em todas as cartas, ora pelas formas, ora pela história, como
no Materializador de Sonhos X que tem uma roda, como na roda da fortuna; ou no
meu sonho XXI, em que na verdade ocorreram três sonhos de uma mesma pessoa,
que estendi em três relevos, terminando com o Materializador de Sonhos XXIII
Vitória.
Mas como seria possível que uma sequência de relatos aleatória estivesse
ligada a uma estrutura de imagens criada há quase mil anos? Percebi que os
símbolos eram flexíveis. Mas eu não conseguia entender seu funcionamento. E,
ainda hoje, por mais explicações que encontre, continua sendo um mistério para
mim como os símbolos se relacionam.
139
270
Exposição Desempenho, Acontecimento, Ação. Curadoria de André Sheik e Chico Fernandes.
Novembro Arte Contemporânea, Rio de Janeiro.
140
Embaralhe e disponha as cartas à sua frente com os sonhos virados para baixo.
Faça uma pergunta ou apenas veja o que o baralho tem a lhe dizer. Escolha
uma das 3 sugestões de jogos. Siga a sua intuição.
2. Perguntas gerais
Fale ou mentalize a sua questão. Lembre que quanto mais clara a pergunta,
mais clara a resposta. Evite perguntas com resposta sim/não. Para estes casos,
sugerimos jogar cara ou coroa ou usar um pêndulo. Evite também perguntas
adivinhatórias. Perguntas em que a sua ação, e não o seu destino, está em
271
Galeria TAC, dezembro de 2012. O conjunto também foi exposto no Museu Bispo do Rosário, na
Exposicão Das Virgens em cardumes, 2016, curadoria Danila Labra; Galeria Lucina Caravello, 2014 e
da Bienal da Bolívia SIART, 2018 com curadoria de Keyna Eleilson
272
Texto adaptado do livro Materializador de Sonhos, GUERRA, 2012.
142
3. Relacionamentos
Se a sua questão está ligada intrinsecamente a um relacionamento afetivo ou
profissional com uma pessoa, utilize este jogo de 4 cartas como mostra o
desenho.
1: como eu estou na relação
2: como está a outra pessoa
3: como está a relação
4: um conselho do tarô
Como interpretar
As cartas são pequenas chaves e podem ter diferentes interpretações. Siga a
intuição e observe as coincidências. O texto neste livro aponta para uma direção,
mas faça suas próprias associações com a história e com a imagem, conforme o
momento e o contexto em que a carta aparece.273
275
WILSON, 2004, p.85.
144
3.2 Livro 2
Pergunta: Qual o melhor procedimento que posso empregar para fazer a lista de
pessoas a convidar para darem sonhos ao Materializador?
276
Disponível em: <http://www.sonho.nadam.com.br>.
277
Retirado do meu blog: <http://www.sonho.nadam.com.br>. Trecho do post de 25 de agosto de
2014.
146
Resposta:
1. Casa cai – Pedaços do teto começam a cair. A casa está prestes a desabar.
Ela sai correndo enquanto vê a beleza do azul do céu através dos buracos no
telhado.
2. Alien pinguim – Um grande temporal cai sobre a cidade do Rio de Janeiro. Ele
é levado pela enxurrada para o fundo da Baía de Guanabara. Consegue se
salvar segurando em uma madeira que flutua. Um grande bando de pinguins
passa por ele, mas são animais estranhos. Ele desconfia que há algo errado.
Atira o sapato em um dos pinguins, que se parte ao meio. São na verdade naves
robôs e de dentro saem vários aliens de cabeça alongada.
3. Festa – Ele chega para uma festa em uma grande mansão. Entra pelos jardins
bem-cuidados. Ninguém pergunta nada na entrada. O pátio da casa está repleto
de pessoas bem-vestidas. Ninguém olha para ele, e ele não conhece ninguém.
Passa por entre as pessoas sem ser notado.
Imagino que o pressuposto está errado. Não tenho que fazer uma lista de
pessoas a convidar, tenho que me deixar levar para lugares desconhecidos.
Resposta:
1. Briga de amor – Ele está numa praia selvagem. Encontra sua namorada com
outro homem, dormindo junto de uma fogueira apagada. Ele desperta, e os dois
homens brigam. Rolam na areia por cima das cinzas. Em um lance confuso, ele
acaba por acertar na cabeça o adversário, que cai morto. Ele foge. (Ele me deu
este sonho porque a namorada havia terminado o namoro por e-mail com ele.
Depois me disse que contar este sonho de violência ao Materializador parece ter
sido importante para a reconciliação do casal.)
2. Mãe de santo – Sonha com uma mãe de santo dizendo a ele que tome
banhos de ervas abre-caminho. (Ele me contou este sonho porque é ateu, mas
no dia seguinte comprou as ervas e tomou o banho que lhe foi recomendado.)
3. Mãos – A professora de técnica de Alexander 278 conta que trabalha com as
mãos e só consegue atingir uma pessoa por vez, ao passo que um grande
orador usa as mãos para se expressar para multidões. Ele conta que também
nas suas performances se comunica com as mãos. (Michel me contou este
sonho na conversa em que surgiu a ideia do Materializador de Sonhos. A
sugestão dele era que eu fizesse só sonhos por encomenda. Recomendação de
que abri mão na primeira série e agora retomo.)
Decido então que vou começar sem ter uma lista de pessoas e deixar os fatos
irem se mostrando. Na semana seguinte, vou ao oráculo de Ifá para me aconselhar.
3.2.1 Ifá
278
A Técnica de Alexander é uma técnica de reeducação corporal e coordenação realizada a partir de
princípios físicos e psicológicos.
279
Disponível em: <http://www.sonho.nadam.com.br>. Trecho do post de 31 de agosto de 2014.
148
Cheguei ao prédio em uma rua tranquila. Subi pela escada ao apartamento que
fica no segundo andar. Abre a porta o oluwo, que é senhor do segredo de Ifá.
Entro e um gato preto me saúda se esfregando nas minhas pernas. Sentamos
no sofá para baixar a energia da rua. Ele me oferece um chá. O gato sobe no
meu colo e fica lambendo a minha mão. Ele conta que faz parte de uma tradição
que foi reconstruída depois do fim da escravidão. Alguns babalaôs se
aproveitaram de um incentivo do governo brasileiro para mandar de volta os
negros recém-libertos para a África. Assim, puderam rever suas origens e fazer
as iniciações com mestres africanos para depois voltar ao Brasil. O Ifá mais
comum no Brasil tem 16 Odus e é fruto de uma simplificação que foi possível
pela transmissão oral nas condições adversas do cativeiro. A versão que ele
joga trabalha com 256 Odus, e em cada Odu uma infinidade de narrativas,
conselhos e trabalhos.
Conversamos brevemente tomando o chá até que ele diz para nos mudarmos
para a mesa. Desenrola suavemente um pano rendado e organiza os pequenos
objetos que estavam dentro. Um cordão de contas é colocado em círculo. Acima,
um cristal, algumas moedas e uma semente grande. E, no meio do círculo, os
búzios. Ele faz uma oração com palavras iorubá. Com os dedos dentro de um
pequeno pote de água, enquanto fala, joga gotas no chão. Pedimos autorização
aos meus mortos. Ele pega os búzios e os esfrega entre as mãos várias vezes.
Aproxima-os do rosto e sussurra para eles. Me passa os búzios, e faço o
mesmo. Como que em segredo, peço a Orunmilá orientação para o
Materializador de Sonhos. Os búzios foram jogados várias vezes. Em um papel
ao lado, ele ia anotando o resultado, que foi mais ou menos esse:
“Vai mexer em outras estruturas. Ciúmes. É preciso cuidar para fazer a divisão
justa das coisas e não gerar dívidas.
“Uma história: Da disputa entre três caminhos, Terra, Praça e Água, pelo desejo
de ser o mais importante, Ajá, que serviu de intermediário lhes disse: ‘Lutem por
simples prazer, pois nenhum dos três é mais importante que os demais. Desta
forma, é necessário que se unam e vivam em paz. Se a Água não cair sobre a
Terra, esta não produzirá seus frutos e a Praça perderá a sua utilidade, que é a
de servir como local de comercialização dos frutos da Terra. Vivam em paz, os
três têm a mesma importância!’
Traçando linhas se faz uma corda… Não estou entendendo. Que tipo de
trabalho é este que você vai começar?”
“Ah, tá! Porque ele está dizendo várias vezes: ‘Ele não pode querer ser maior
que Orumilá, ele sabe que não pode querer ser maior que Orumilá.’”
“Eu sei que não posso querer ser maior que Orumilá. Claro. É um projeto de
arte, uma pesquisa, um experimento.”
“Não pode ser nem maior nem menor do que é. Tem de ser do tamanho justo.
Porque vejo que tem uma força e uma prática espiritual o trabalho. Isso indica
solução para o problema das pessoas. Você só não pode achar que é você que
ajuda as pessoas. […]
“O terceiro Odu é Odi Meji, que significa bunda. Tudo que tem na terra um dia
morre. É preciso atentar para o fim das coisas. Aqui, Odi Meji caiu em Ire Omã.
A inteligência está potencializada, porém é preciso tomar cuidado com o
esquecimento e com a loucura. Há muita vitalidade sexual.”
Resumindo, temos um início claro como o nascer Sol. Os acordos devem estar
claros e depende de mim deixá-los claros. O desafio de não se perder na mente,
no orgulho ou na idealização. E a solução de ser guiado pela vitalidade sexual,
pelo prazer e inteligência do corpo.
O oluwo joga mais algumas vezes os búzios e diz que minha cabeça é de
Ajaguna, uma manifestação de Oxalá jovem. Me manda tomar um banho de
flores do campo coloridas, com leite de coco, por 3 dias.
“Sim e não. Depende de como, mas não conte tudo. Edite e mostre somente o
que for essencial.”
Tomei o banho por 3 dias começando em 28 de agosto, que descobri que é o dia
do início do festival de Ganesha, quando oferecem flores e coco a esta deidade.
Com esta reflexão, assim meio sem querer, fiz minha primeira encomenda de sonho.
Durante oito dias sonhei muito mais do que o habitual. Lembrava de vários sonhos
por noite e em algum deles eu me via indo a eventos sociais, exposições, jantares e
até lançamentos de livro. No nono dia, surpreso, pensei comigo que já tinha mais
pessoas do que o necessário. A partir daí, passei semanas sem lembrar dos sonhos.
Sem perceber e tentando não controlar, eu havia me programado a sonhar
com pessoas até o momento em que me programei a interromper. A encomenda de
sonhos, também chamada de “incubação de sonhos”, é uma prática presente em
muitas culturas. É como uma conversa com o inconsciente.
No islã, há uma prática intitulada istikhara (procura do bem), que seria similar
à incubação, e há correntes do sufismo 281 nas quais a iniciação acontece por sonho.
O próprio Maomé teria praticado variações deste ritual. No taoísmo, variações da
incubação consistem em meditações feitas antes de dormir. No judaísmo, pedidos
para receber respostas de anjos também seriam recorrentes. 282
Eu praticara a incubação da maneira mais simples e mais efetiva. O sonho
não pode ser forçado. Como dizia uma história que eu escutei muitas vezes quando
era criança, “se necessitas muito e desejas pouco,” 283 terás o que pedes. Na minha
experiência, propondo a encomenda de sonhos em diversos grupos, vejo que o
excesso de desejo de ter experiências mágicas diminui eficiência da encomenda.
Conversar com os sonhos deve ser como conversar com um amigo: com carinho,
respeito e sem pressão.
Para se começar uma conversa com os sonhos (ou com qualquer pessoa), é
útil ter uma boa pergunta ou um assunto que realmente interesse. A necessidade de
ter uma resposta ajuda, mas a ânsia de resultados intimida o interlocutor.
280
WILSON, 2004. p.37-8.
281
Correntes místicas do islamismo.
282
Idem, p.40-4.
283
“A História de Mushkil Gusha”, conto tradicional sufi.
151
A resposta dos sonhos pode ser direta e literal, como já vi acontecer. Outras
vezes, o sonho deve ser interpretado levando em conta a pergunta que foi feita. Os
sonhos são flexíveis, e levamos primeiro em consideração as relações pessoais –
antes de pensar em símbolos codificados.
Na antiguidade, havia duas maneiras de se interpretar o sonho. A primeira,
como no famoso sonho de José, em Gênesis (41:17-24), quando sonha com sete
vacas gordas sendo devoradas por sete vacas magras que representam um
presságio de sete anos de fartura seguidos de sete anos de fome no Egito. A
interpretação simbólica é sugerida pelo próprio sonho, que praticamente já carrega
consigo sua significação, e afeta a vida de todo um povo. Esta função tão grandiosa
do sonho é própria de figuras importantes da comunidade. Para os ianomâmis, só os
sonhos dos chefes e pajés são passíveis de interpretação e têm uma aplicação para
o coletivo. 284
Alguns sonhos, ao que parece, são mais reais que a realidade e não há
como interpretá-los de forma errônea. Eles exalam claridade superior, forte
emoção e validade inquestionável. O sonhador acorda imediatamente,
convencido como se alguma amostra material do sonho permanecesse
285
[…]
284
KOPENAWA, 2015.
285
WILSON, 2004, p.21.
152
“Há alguma decisão importante da sua vida que tenha sido tomada no
sonho?”
“A minha vida toda. […] Nos fundamentos da tradição não há a palavra
vazia. Os fundamentos da tradição são como o esteio do Universo. A
memória desses fundamentos não é uma coisa decifrável. É como a água
do rio: você olha de um determinado ponto a água correndo; quando voltar
na manhã seguinte, não verá a mesma água, mas o rio é o mesmo. Ele está
ali. Você não distingue. Você só sabe que não é a mesma água porque vê
que ela corre, mas é o mesmo rio. O que o meu tataravô e todos os nossos
antigos puderam experimentar passa pelo sonho para a minha geração.
Tenho o compromisso de manter o leito do sonho preservado para os meus
netos. E os meus netos terão que fazer isso para as gerações futuras. Isso
é a memória da criação do mundo. Então, não decifro sonhos. Eu recebo
sonhos. O leito de um rio não decifra a água, ele recebe a água do rio. […]
O sonho é o instante em que nós estamos conversando e ouvindo os
nossos motivos, os nossos sábios, que não transitam aqui nesta realidade.
288
E um instante de conhecimento que não coexiste com este tempo aqui.”
286
FERREIRA, 2014.
287
FERREIRA, 2014, p.92.
288
Ailton Krenak – Receber sonhos, em <https://teoriaedebate.org.br>. EDIÇÃO 07 - 06/07/1989.
Alipio Freire e Eugênio Bucci.
153
das circunstâncias do sonhador. Um conselho que Jung dava aos seus alunos era
para que aprendessem tudo de simbolismo e depois esquecessem quando
estivessem interpretando um sonho, pois só o sonhador pode interpretar totalmente
seu sonho. 289
A Interpretação dos Sonhos de Freud 290 é uma obra inaugural de uma nova
forma de entender os sonhos e da própria psicanálise. No livro, de 1900, Freud
formula quais seriam as leis e as características do inconsciente. Sonho e os
sintomas histéricos teriam uma estrutura comum: ambos seriam a realização de um
desejo. Quando se trata de um desejo inaceitável, preferimos esquecê-lo. O desejo
recalcado, no entanto, permanece em algum lugar exercendo seus efeitos. O sonho
poderia ser entendido, então, como a expressão de uma série de desejos, que
encontram nele a única maneira para a consciência. Freud apontou dois
mecanismos básicos desta tradução de desejo em sonho: a condensação e o
deslocamento. Na condensação, como uma metonímia, um pequeno detalhe pode
representar uma ideia completa. No deslocamento, como na metáfora, haveria uma
distorção, necessária para que o material inconsciente possa se expressar.
Para Freud, os sonhos seguem uma lógica que não é a cotidiana; ao mesmo
tempo, a distorção no material do sonho não é casual ou caótica, apontando sempre
para as zonas obstruídas do inconsciente. Neste modelo, o sonho é dividido em
duas partes: um conteúdo manifesto, que são as histórias e imagens que o sonhador
se recorda ao acordar, e, uma segunda camada de conteúdo latente, o significado
do sonho depois de analisado. Pelo método de livre associação, o analista, junto
com o paciente, chega nos significados ocultos. Reparem que a estrutura da
abordagem é a mesma da decifração antiga, só que agora com um novo dicionário
de desejos recalcados.
289
JUNG, 2002.
290
FREUD, 1996.
154
Qualquer psicólogo que tenha ouvido várias descrições de sonhos sabe que
os seus símbolos existem numa variedade muito maior que os sintomas
físicos da neurose. Consistem, inúmeras vezes, de elaboradas e pitorescas
fantasias. Mas se o analista que se defronta com este material onírico usar
a técnica pessoal de Freud da "livre associação" vai perceber que os
sonhos podem, eventualmente, ser reduzidos a certos esquemas
291
básicos.
Ao mesmo tempo, percebe que não era necessário partir do sonho para
utilizar a livre associação.
Os sonhos não são todos da mesma natureza. Jung entende que alguns vêm
da experiência pessoal, enquanto outros são transpessoais.
291
JUNG, 2002, p.27.
292
Idem, p.28.
293
JUNG, 2002, p.28.
155
294
JUNG, 2000, p.53.
295
WANGYAL, 1998, p.48-51.
296
No hinduísmo e no budismo, “karma” refere-se ao efeito que nossas ações geram em nosso
futuro, tanto nesta como em outras vidas depois da reencarnação. No espiritismo, o karma é
associado à 3ª Lei de Newton: toda ação gera uma reação de igual intensidade no sentido contrário.
297
WANGYAL, 1998, p.51.
156
Jodorowsky diz que os sonhos trazem o material inconsciente que precisa ser
trabalhado pelo consciente. 298 Com toda a preocupação em não tomar decisões, eu
conduzia os sonhos a se tornarem quase iguais à minha vida cotidiana. “Talvez
fosse sobre isso que eu devesse trabalhar”, pensei. Vendo a lista de pessoas com
que sonhei, só depois percebi que havia um padrão. Eram pessoas a quem eu
atribuía um poder ou que admirava. O desejo recalcado, para usar as palavras de
Freud, era o de ser aceito em um meio de status de arte com a velha distinção
burguesa.
[…] São Paulo. Dirijo um carro. Ao meu lado Bruno Zenni que vai me apontando
o caminho nas ruas movimentadas. Várias ruas trocaram de mão. Ele conta que
298
JODOROWSKY, 2009.
299
WANGYAL, 1998, p.51.
157
está trabalhando sobre vários textos antigos que escreveu quando era
adolescente. A ingenuidade o ajudava. Mais do que escrever ele era poesia. Me
animo a escrever como quando era jovem. Entro em uma rua errada. Vem um
táxi na contramão. Freio. Volto. Achamos graça da cidade […]
[…] penso em escrever este sonho. Pego meu caderno (este), mas alguém já
escreveu nele até o final. Procuro um outro, que também já está cheio. Vou ao
escritório, onde há vários cadernos cheios. Pego folhas brancas novas, mas não
encontro a caneta. Domênico está no computador, mostra seu clip. Ele, vestido
de noiva, canta uma música lenta. A música fica tocando no ar. Tento me
concentrar: “como era aquele sonho mesmo?” Lembro do Cabelo e sua
namorada, do Zenni que dizia que é poesia. Entram pessoas no quarto. Peço
que saiam. Fecho as duas portas. Volto para escrever, mas perdi as folhas.
Procuro nas estantes. Um cão negro vem e enfia o focinho comendo algo na
minha mochila. Expulso o cão, que tenta voltar várias vezes. Mais gente vem
falar comigo. “Termino isso em cinco minutos e vou,” respondo, já nervoso. Pego
uma caneta que não funciona. Jogo fora. Pego outra, é uma caneta de grafite em
pó, só que está quebrada na minha mão, sujando o papel. Já não lembro do
sonho. Procuro outra caneta….
[…] Cabelo me chama para andar pela Praia Vermelha. Me mostra a estátua do
soldado ferido.
Percebi que não é possível ignorar a minha intenção. Fazer coisas é ter
intenção, e queria me aprofundar, entender como o sonho funcionava. O livro
Muká 300 é o relato de um jornalista nascido em São Paulo que trabalhava com índios
Yawanawá do Acre. A partir do sonho de um xamã, ele é convidado a participar de
uma jornada espiritual. Todas as etapas da jornada dependem de sonhos. Só depois
de muitos retiros, ao longo de anos, ele tem o sonho que é interpretado pelo xamã
como indicação de que o espírito do Muká reconhece que ele está pronto para
continuar. O sonho é um caminho espiritual. “Os espíritos da natureza se
comunicam com os humanos nas alucinações e nos sonhos, ou seja, por imagens
mentais”. 301
O outro livro indicado pelo Cabelo naquela noite foi muito importante para
minha compreensão geral de sonho. Chuva de estrelas: O sonho iniciático no
sufismo e taoísmo compara uma infinidade de rituais sufis, taoístas, judaicos e de
outras tradições. Foi escrito por Peter Lamborn Wilson,302 mais conhecido pelos
300
ALTHEMAN, 2013.
301
NARBY, 2018, p.108.
302
Peter Lamborn Wilson, conhecido pelo pseudônimo de Hakim Bey, autor de Zona Autônoma
Temporária (ou T.A.Z), é um historiador, escritor e poeta, pesquisador do sufismo, teórico libertário,
cujos escritos causaram grande impacto no movimento anarquista das últimas décadas do século XX
e início do XXI.
159
escritos anarquistas que assina como “Hakim Bey”. O livro começa com uma
narrativa de um dos escritos mais antigos de que se tem registro. É um livro de
sonhos, escrito na Suméria, terceira dinastia Ur (2300 a 2000 a.C.). Um certo
Gudea, alto sacerdote de da cidade ancestral de Lagash, recebe em sonho a tarefa
de construir um templo. Os sonhos foram escritos em placas de argila que ficavam
reunidas nas bibliotecas da Mesopotâmia, as edubbas, que significa literalmente
“casas de placas”. A deusa padroeira da cidade, das edubbas, da escrita, era
Nidaba, e a deusa que interpretava sonhos se chama Nanshe. 303
No sonho, Gudea viu um homem de enorme estatura com uma coroa divina
na cabeça, asas de ave e uma “onda do dilúvio" como a parte inferior de
seu corpo. Leões se agachavam aos seus pés. Este homem ordenou que
Gudea construísse um templo, mas ele não conseguia compreender suas
palavras. O dia raiou – no sonho – e uma mulher com um buril dourada
surgiu lendo uma placa de argila ilustrada com um céu estrelado. Então, um
herói surge carregando uma placa de lápis-lazúli na qual havia desenhado a
planta de um prédio. Ele também pôs tijolos e um molde em frente a Gudea,
além de uma cesta para carregá-los. Um asno olhava tudo batendo com os
304
cascos no chão.
Ainda em sonho, Gudea, para quem não estava claro o significado do sonho,
vai procurar a deusa Nanshe, que interpretava sonhos para os deuses. No longo
caminho, oferece sacrifícios e preces às divindades. Ainda dormindo, ele encontra a
deusa Nanshe, lhe conta o sonho, e ela o interpreta: o gigante era seu irmão
Ningirsu, que lhe mandara construir o templo. O Sol nascendo era Ningishzida, deus
pessoal de Gudea ascendendo como o Sol. A mulher com o buril dourado e a placa
de argila era Nidaba (a deusa da escrita e patrona da edubba, biblioteca de placas
de argila), que guiava a construção do prédio de acordo com as estrelas sagradas.
O herói era o deus arquiteto Nindud, e o asno era o próprio Gudea, impaciente por
cumprir sua missão. 305
Eu fiquei especialmente surpreso por imaginar que o Materializador estava
intrincado em uma longuíssima tradição. Na Mesopotâmia, já havia placas de argila
que descreviam sonhos trazendo premonições. Os nomes das deusas Nanshe e
303
WILSON, 2004.
304
WILSON, 2004, p.24-5 apud Kramer, 1963, p.138-9.
305
Idem.
160
[…] o sonho […] é o primeiro local de união entre o corpo e o espírito, além
de ser mais transparente em termos fisiológicos. Na verdade, como Adão
que dormia enquanto Deus fazia Eva com sua costela (como o xamã que é
destruído e reconstruído por espíritos de iniciação), devemos perceber o
sonho primordial como criativo. O que o sonho cria é, na expressão de
Robinet, o “excesso de significado”. isso implica no que os intérpretes
judeus e muçulmanos de sonhos dizem, que “o sonho segue sua
interpretação” […] Uma vez que o sonho é contado, seu excesso de
significado é lançado no mundo consciente de causas materiais. Esse texto
306
então se torna o foco de atenção, no lugar do próprio sonho.
306
WILSON, 2004, p.84.
307
Idem, p.27.
161
Se a leitura a partir dos astros, das vísceras e dos acasos era para o
primitivo sinônimo de leitura em geral, e se além disso existiram elos
mediadores para uma nova leitura, como foi o caso das runas, pode-se
supor que o dom mimético, outrora fundamento da clarividência, migrou
gradativamente, no decorrer dos milênios, para a linguagem e para a
escrita, nelas produzindo um arquivo completo de semelhanças extra-
sensíveis. […] em outras palavras, a clarividência confiou à escrita e à
311
linguagem as suas antigas forças, no decorrer da história.
308
Interpretação das rachaduras em ossos de animais queimados em sacrifícios.
309
FOUCAULT, 2000.
310
Idem, p.22.
311
BENJAMIN, 1987, p.112.
312
Idem. p.34.
162
3.2.10 Labirinto
Vou ao Comuna para o lançamento do disco do Jonas Sá. Parece com alguns
de meus sonhos recentes. Muitas pessoas na rua. Uma menina me oferece um
cubinho de tapioca frito com molho de pimenta doce. Mariano me diz que sua
banda preferida é o New Kids on the Block. Pedro Lago diz que acaba de discutir
no bar porque o acusaram de furar fila. Falo do livro 2. Vitor Paiva pede que eu
sonhe com ele. “Por que não?”
Penso no livro 2 como um livro acima de tudo. Penso nos encontros com quem
eu sonhei como parte dos encontros, digo, como parte do livro.
Sonhei com a Bianca Ramoneda […] ela nos hospedava em São Paulo. A casa
tem um grande quintal com árvores e bananeiras, que estão com os cachos.
Sentamos em um banco, digo que é preciso colher e cortar as bananeiras para
que elas não deem sombra para as novas que estão nascendo, e discorro sobre
o manejo do bananal[…]
[…] lembro que Bianca é a primeira carta do livro 2, que fala em não ter
vergonha de querer ficar bem na foto. Lembro das muitas pessoas que
caminham pelos meus sonhos. Será que cada uma tem uma mensagem? Será
que cada pessoa é uma carta? E, se eu reencontrar a pessoa, é como tirar a
carta novamente?
Para sair deste labirinto não é suficiente o desejo narcísico de fazer uma
exposição bonita ou o desejo comercial de ser bem-sucedido. Pensando neste
sonho com Bianca, visitei algumas galerias procurando o jardim com bananeiras,
buscava um sinal para dar continuidade ao projeto em São Paulo, mas vi que eu
precisava dar um passo atrás. Que eu talvez estivesse interpretando
tendenciosamente os presságios. Talvez podar a bananeira fosse indicação de que
o projeto tinha que ser podado para rebrotar. Tudo tinha tanto significado e de
repente não tinha mais sentido algum. Ao final, eu apenas ia anotando os sonhos e
já não os interpretava; apenas ia completando a lista de pessoas que iam
aparecendo. Em dos últimos posts desta fase no blog eu conto:
Abro o caderno onde anoto os sonhos, e há muitas coisas curiosas que não sei
onde encaixar. Em um, negocio que uma associação de prostitutas dê desconto
para os participantes de um evento que organizo, é uma homenagem ao Ericson
Pires, e as meninas trabalhariam por um “preço de custo”. Em outro, compro
roupas rastafári e uma camisa do Raul Seixas. persigo cobras pela casa. Pego
um trem errado no interior da Alemanha. Vejo uma explosão em uma
manifestação no centro do Rio. Me aproprio de imagens de sexo da webcam de
uma mulher muito gorda pra fazer um videoinstalação em uma exposição em um
barraco de madeira na favela. Interpreto Jesus em uma peça de Zé Celso no
teatro Oficina. Gabriel Pardal me conta que vai estudar na PUC pois conseguiu
uma bolsa de 50%. Aprendo a usar uma minicâmera de vídeo. Ajudo a arrumar
as pizzas para a festa da Domi. Vou no velório de meu avô que é arrumado
como uma exposição em uma caverna. Invento um jogo com pedaços de
chocolate e um outro que tem um tabuleiro em forma de disco voador e que o
objetivo é gravar um documentário em uma comunidade carente. Uma mulher
projeta uma foto antiga de si mesma com 4 seios como a Taura (filha da Virgem
do Alto do Moura).
Hoje, entendo que caí nas armadilhas que os primeiros conselhos (de Ifá e do
Materializador) tinham me advertido. Eu evitava expressar os maus sentimentos.
Não sabia como terminar o projeto. Nem sabia cuidar para fazer a divisão justa das
coisas e não gerar dívidas. Para algumas pessoas acabei não entregando uma
cópia do sonho como tinha prometido. Para outros eu dei, mas sentia que faltava
164
313
Literalmente, o livro apareceu na minha casa sem explicação.
314
HARARY; WEINTRAUB,1999.
315
ALTEMAN, 2013; CASTANEDA, 2001; WILSON, 2004.
316
WANGYAL, 1998
165
Recordar dos sonhos é ter o diálogo com o inconsciente aberto. Passo longos
períodos sem me lembrar ou sem dar atenção aos sonhos. Algumas pessoas
relatam que nunca ou quase nunca lembram. Estar desconectado do sonho é um
sintoma que pode apontar para uma alienação contemporânea de nosso processo
de crescimento pessoal. O sonho pode trazer criatividade para artistas, mas também
revelações para cientistas ou para qualquer pessoa. E “o magista tem como objetivo
obter acesso irrestrito ao plano dos sonhos”. 317
As práticas para voltar a lembrar de sonhos são bem simples e consistem em
deixar claro para o seu inconsciente que você quer conversar:
• Pedir para lembrar com uma meditação, uma prece ou mesmo uma
conversa com outras pessoas onde você conta que está se preparando
para lembrar.
Estes passos costumam funcionar para a maior parte das pessoas. Nos
relatos dos participantes da oficina que ministrei,318 para alguns bastou o ato
simbólico de se inscrever no curso, e antes da primeira lição já tiveram sonhos
reveladores. Para outras pessoas pode demorar mais tempo, e é preciso ter
paciência e não forçar. Acordar mais cedo pode ajudar (com despertador ou
tomando alguns copos de água antes de se deitar). Algumas vezes, não lembramos
do sonho porque demoramos a tomar nota, e na última fase de sono mais leve ele
se desfaz. Se realmente estiver demorando, é possível que haja algum bloqueio que
te protege de receber as informações dos sonhos. Neste caso é possível fazer uma
incubação pedindo mais claramente e dizendo que você está disposto a encarar o
sonho como ele vier. Outras terapias ou trabalhos corporais também podem ajudar.
317
CARROLL, 2016, p.26.
318
O curso à distância, via lista de WhatsApp, se chamava Oficina experimental de sonhos. Setembro
de 2018.
166
Um hábito que eu adotei é: quando percebo que estou para acordar, começo
a relembrar tudo que acabei de viver no sonho. Para ancorar este hábito, ao ir
dormir, já deitado na cama de olhos fechados, recapitulo de trás para frente todas as
ações – com detalhes – que aconteceram durante o dia. Por exemplo: me deitei na
cama, coloquei a roupa, me sequei, tomei banho, voltei para casa de tal forma,
encontrei tal pessoa… e assim por diante, até cair no sono.
Outra prática que também funciona bem para mim na hora de dormir é focar a
atenção na testa, no espaço logo acima entre os olhos (no chamado terceiro olho).
Por alguns dias, ao se deitar, apenas visualize este ponto com uma luz, como em
uma pintura, girando até adormecer. Depois de se habituar a isso, a prática pode
evoluir para apenas observar este mesmo ponto, deixando que a imagens se
formem e se transformem, entrando na vigília e no sono gradualmente.
expectativa de ter um não ajuda a que aconteçam. Não se pode pressionar demais.
“Se necessitas muito e desejas pouco...”, 319 ele pode acontecer.
319
Máxima sufi presente na história que eu escutei muitas vezes quando era criança.
169
320
Adaptado de ARINA et al, 2017, p.18-9. (Tradução minha.)
321
YOUNG, S. N., 2011. “Biologic effects of mindfulness meditation: growing insights into
neurobiologic aspects of the prevention of depression.” Journal of Psychiatry and Neuroscience, 36
(2): 75–7.
322
STRIBALL, 2017.
323
Peter James Carroll (1953) é um ocultista inglês. Autor, cofundador dos Iluminados de Thanateros,
e praticante da magia do caos.
324
CARROLL, 2016, p.33.
325
Quadro adaptado de CARROLL, 2016, p.35.
170
326
Roland Fischer (1915– 1997) foi um pesquisador experimental e psicofarmacologista conhecido
por seus primeiros trabalhos sobre drogas psicodélicas, esquizofrenia, e o modelo contínuo de
percepção-alucinação de estados alterados de consciência.
171
similares: tanto o samadhi quanto o êxtase são experiências de dissolução do ego (I)
327
e de percepção de uma realidade do ser (SELF).
Para Rimbaud, é necessário se fazer vidente por meio do desregramento dos
sentidos. Com o famoso “eu sou um outro” Rimbaud busca estar fora de si. Seria um
transe como o do xamã ou do mago?
327
CONNOLLY, 2000.
328
Idem.
172
329
Chris Burden (1946–2015) foi um artista americano que trabalhou com performance e instalação e
um dos principais nome da body art dos anos 70.
330
Through the Night Softly, September 12th 1973, Main Street, Los Angeles.
331
Grupo informal de artistas que partilhavam de uma visão de mundo de agressividade e
transgressão. Realizaram alguns trabalhos juntos entre 1960 e 1971. Günter Brus , Otto Mühl,
Hermann Nitsch, Kurt Kren e Rudolf Schwarzkogler são os mais citados como integrantes.
332
Rudolf Schwarzkogler (1940–1969), parte do grupo junto com os artistas, em uma ação (3rd
Aktion, 1965), envolvia a cabeça de um parceiro em bandagens e a perfurava com o que parecia ser
um saca-rolhas e giletes, produzindo manchas de sangue nas ataduras.
173
Entrevista com o curador Jochen Volz sobre a Retrospectiva da obra de Marina Abramović na
333
exposição Terra Comunal - Marina Abramović + MAI, 2015. Realização Sesc. Direção de Felipe Lima.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=39bCFxeujeE>. Acesso em: agosto de 2019.
334
TRUNGPA, 1999.
174
335
TRUNGPA, 2008.
336
Parágrafo adaptado da minha dissertação de mestrado. (DAMASCENO, 2015.)
337
Entrevista com Bill Viola: McLeod, M. (2004), ‘The Light Enters You’, Shambhala Sun (Nova
Scotia) Nov. 2004, pp. 32–6.
176
338
WANGYAL, 1998.
339
Samsara, em sânscrito, quer dizer perambulação. Assim é chamado o fluxo incessante de morte e
renascimento. Na maioria das tradições filosóficas da Índia, incluindo o hinduísmo, o budismo e o
jainismo, é encarado como um fato natural. A maioria das tradições observa o samsara de forma
negativa, uma condição a ser superada. Samsara é visto como a ignorância do verdadeiro eu. Já
algumas adaptações dessas tradições identificam o samsara como uma metáfora, como o ciclo de
morte e renascimento da consciência de uma mesma pessoa. Momentos de distração, anseios e
emoções destrutivas são momentos em que a consciência morre para despertar em seguida, em
momentos de atenção, compreensão e lucidez.
340
HOLECEK, 2016.
341
WANGYAL, 1998.
342
SHAKESPEARE, 2008. A tempestade, ato IV, cena I.
177
4 IMAGEM
A imago não é uma aparência enganadora, nem esses funerais são uma
ficção: o manequim do defunto é o cadáver (a tal ponto que se coloca um
escravo ao lado do manequim de Pertinax para afugentar as moscas com
um leque). Essa imago é um hipercorpo, ativo, público e irradiante, cujas
cinzas subirão em forma de fumaça para juntarem-se aos deuses no
empíreo (quando os restos reais foram deixados debaixo da terra), abrindo-
lhe as portas da divinização. É em imagem que o imperador subia da
fogueira para o céu, em imagem porque em pessoa. Queda dos corpos,
ascensão dos duplos. A transposição em imagem – como a glória para o
herói grego, a apoteose para o imperador romano, a santidade para o papa
cristão (tal como Dâmaso que se tornou venerável por um retrato em vidro
dourado colocado na abside) – é o melhor que acontece ao homem do
343
DEBRAY, 1994, p.20.
344
Idem, p.23.
345
Idem, p.24.
178
Ocidente porque sua imagem é a sua melhor parte: seu ego imunizado,
346
colocado em lugar seguro. Por ela, o vivo apreende o morto.
espírito. Esta operação pode parecer natural hoje para alguém imerso na cultura
hebraico-cristã-ocidental, mas reparemos com atenção este salto. Há uma dupla
negação. O espírito passa a ser definido como o que não é o corpo, e o corpo é tudo
que não é espírito. Mundos paralelos. De um lado temos o corpo, a matéria, a carne.
De outro, temos o espírito, Deus, a palavra. Isso vai contra todas as práticas que
chamamos hoje de xamânicas ou pagãs. E vai contra a experiência praticada por
todos os povos até então.
Mas falta algo. Como o espírito e o corpo se encontram? Para fechar este
sistema, se fez necessário o dogma da encarnação. O corpo encarna o espírito. “E o
Verbo se fez carne” (Jo 1,14): uma clara superioridade do espírito sobre a carne,
afinal “no início era o verbo”. A imagem fica em uma situação difícil neste sistema.
Ela é corpo, mas também espírito. Ou, nas palavras de Belting, a carne, além de ser,
é um meio, é uma imagem. O meio seria a parte física, o suporte e a imagem seriam
a imagem mental contida no suporte. 350
O que seria natural em uma compreensão de uma continuidade de mundos
torna-se um absurdo: uma imagem/corpo tomando o lugar do espírito. E porque se
esperava a encarnação do próprio Deus, toda outra imagem que não seja a própria
materialização de Deus é uma mentira. “Por natureza, todos os monoteísmos são
iconofóbicos e, em certos períodos, iconoclastas.” 351
Importantes disputas internas na história do cristianismo giram em torno da
imagem. No Concílio de Jerusalém, em meados do século I, havia a questão sobre
que práticas judaicas antigas deveriam ser seguidas pelos novos cristãos. A
circuncisão e outras práticas culturais foram deixadas de lado. Para ser cristão,
bastaria ficar longe das uniões ilegítimas e não sacrificar animais em oferenda às
imagens.
De fato, pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor nenhum
outro peso além destas coisas necessárias: que vos abstenhais das carnes
imoladas aos ídolos, do sangue, das carnes sufocadas, e das uniões
352
ilegítimas. Fareis bem preservando-vos destas coisas.
350
BELTING, 2005.
351
DEBRAY, 1994, p.75.
352
BÍBLIA, Atos 15:23-29.
180
353
DEBRAY, 1994, p.76.
181
Foi através da hagiografia cristã que os cultos locais [europeus] […] foram
reduzidos a um “denominador comum”. Devido à sua cristianização, os
deuses e os lugares de culto da Europa inteira receberam não só nomes
comuns como encontraram de certo modo os seus próprios arquétipos e,
por conseguinte, as suas valências universais. […] Sobrevivem hoje, no
cristianismo popular, ritos e crenças do neolítico. […] A cristianização das
camadas populares da Europa fez-se sobretudo graças às Imagens:
354
Declaracão de fé do Concílio de Nicéia, 787 d.C.. Disponível em:
<http://www.spc.rs/eng/synodikon_holy_great_ecumenical_council_second_nicea_787>. Acesso em:
agosto de 2019.
355
DEBRAY, 1994, p.75.
356
FREEDBERG, 1992.
182
357
ELIADE, 1979, p.169-70.
358
FREEDBERG, 1992.
359
SCHMITT, 2007.
360
Idem.
361
FREEDBERG, 1992.
183
A idade média, como sugere Belting, não era ainda uma “idade da arte”, mas
uma época da “imagem e do culto”. Ele distingue a função da imagem conforme seu
uso. O uso de “culto” medieval, de estar presente, ou o uso pós-renascimento, de
ser a semelhança e remeter à ideia. 362 Seguindo raciocínio semelhante, Debray
pensa a evolução conjunta de técnicas e crenças, e divide a história da imagem no
ocidente em três etapas: magia, arte e visual.
362
BELTING, 2010.
363
DEBRAY, 1994, p.37.
184
364
Os últimos parágrafos sintetizam o pensamento de Regis Debray em Vida e morte da imagem
(idem).
365
DEBRAY, 1994.
185
Vemos, portanto, que pelo menos em dois lugares, dois elementos como
traço e cor, que, à primeira vista, parecem ser tão resplandecentes em si
mesmos, extraem sua vitalidade de algo mais que o apelo estético neles
contido, por mais real se seja. […] A unidade da forma e do conteúdo é,
onde quer que ocorra, seja em que grau ocorra, um feito cultural e não uma
tautologia filosófica. Para que possa existir uma ciência semiótica da arte é
preciso que esta explique este feito. E, para explicá-lo, terá de dar mais
367
atenção […] ao que se fala além do discurso reconhecidamente estético.
Por esta linha de raciocínio, tudo que vemos é por dentro de nossa própria
cultura. E como ver o que nos faz ver? Não existe um observador externo imparcial.
Qualquer observação está imersa no que observa. A arte, também com suas
propriedades internas, depende da cultura em que está inserida para significar:
366
Idem, p.59.
367
GEERTZ, 2002, p.154.
368
Idem, p.165.
186
369
SIMONDON, 2014, p.252. Tradução disponível em: <https://pedropeixotoferreira.wordpress.com/>.
Acesso em: abril de 2019
370
DEBRAY, 1994, p.61.
371
SAUSSURE, 2006.
187
372
LACAN, 1985, p.139.
373
SANTOS, 2015.
374
LACAN, 1999, p.35.
188
produção de arte abstrata do século XX. Uma pintura pode transmitir sensações,
emoções, estados de espírito apenas por sua presença física, sem que se remeta a
qualquer referente externo. Da mesma forma que para o xamã, para o artista
abstrato “FORMA=CONTEÚDO em termos de estrutura espacial”. 378
4.5.1 Posição
378
OSTROWER, 1983, p.30.
379
Idem.
380
Fayga Ostrower (1920–2001) foi uma artista plástica brasileira nascida na Polônia. Atuou como
gravadora, pintora, desenhista, ilustradora, teórica da arte e professora.
190
381
OSTROWER, 1983, p.54; OSTROWER, 1997.
191
Os dois lados de uma folha também não são iguais: se distinguem pelo
movimento. Desenhemos duas retas diagonais que se cruzam no centro da folha. A
linha da esquerda parece descer e a da direita parece subir, e o contrário não se
aplica. O movimento começa do lado esquerdo e termina no lado direito.
382
OSTROWER, 1983; OSTROWER, 1997.
192
383
OSTROWER, 1997.
384
OSTROWER, 1983.
385
OSTROWER, 1997.
193
386
OSTROWER, 1983; OSTROWER, 1997.
194
387
OSTROWER, 1983; OSTROWER, 1997..
388
Livremente adaptado de JODOROWSKY; COSTA, 2016.
195
389
Não se vê o sexo da personagem, que tem seios e pomo de adão. (JODOROWSKY, 2016)
198
390
WILSON, 2004, p.84.
201
4.6.1 Cores
391
Tabela livremente inspirada a partir do livro Light Language (“Manual de linguagem de luz”), de
Starr Fuentes. Tradução de Jaya Pravaz, sem data e sem editora. Material entregue aos participantes
do curso com Karen-or.
392
Chacras são os centros de energia do corpo, segundo a cultura hindu.
393
Para aprofundar este assunto, ver Da cor a cor inexistente, de Israel Pedrosa.
394
JODOROWSKY, 2016, p.116.
202
395
JODOROWSKY, 2016, p.116.
204
O plano intuitivo lida com analogias entre a experiência física das formas e as
sensações, o movimento e os usos que esta forma pode ter metaforicamente.
Naturalmente este entendimento vai sendo sedimentado e transformado em
convenções sistematizadas, que podem tomar formas diferentes em tradições
diferentes. O poder de síntese desta correspondência entre forma e conceitos
filosóficos pode ser fascinante para muitos artistas.
O sistema de “linguagem de luz” (do livro Light Language) teria sido
estruturado por Starr Fuentes a partir de uma sabedoria ancestral do México pré-
colombiano, relatada à autora pela xamã Esperanza. Na tabela a seguir, 396
propriedades físicas são associadas a formas tridimensionais. Nos restringimos aqui
a formas básicas. No nível avançado da técnica, trabalha-se com 117 formas
geométricas e 144 cores. As formas poderiam ser “emanadas” (ou transmitidas) a
uma pessoa ou situação pela intenção, ou “ancoradas” em pessoas ou lugares por
meditação.
396
Tabela livremente inspirada a partir do livro Light Language (“Manual de linguagem de luz”), de
Starr Fuentes. Tradução de Jaya Pravaz, sem data e sem editora. Material entregue aos participantes
do curso com Karen-or.
205
397
Tunga (1952–2016), artista brasileiro.
398
SOUSA, 2017.
399
LÉVI, 2017.
400
GAZIRE, Nina. “Tunga: a alquimia como arte.” Isto é independente, São Paulo, n. 2132, 17 set.
2010. Disponível em: <http://www.istoe.com.br/reportagens/
101173_tunga+a+alquimia+%20como+arte>. Acesso em: março de 2019.
401
JUNG, 1990.
207
402
Tabela livremente inspirada na sistematização de JODOROWSKY; COSTA, 2016, e VIEGAS,
1988.
209
impõem na sua singularidade enquanto os pares podem ser divididos e são, assim,
acolhedores. 403
Pensar a estrutura da numerologia da imagem é pensar também a imagem.
Os números são uma abstração de formas e relações. Por serem abstratos, há mais
variações de sentidos atribuídos. Na cultura nórdica, por exemplo, “o número 1,
importante na cultura monoteísta e na filosofia platônica-hermética, não é tão
significativo”. 404 O 1 é um pilar, enquanto a criação do mundo acontece com o
número 2, e o 3 é o movimento eterno do universo. 405 Os números de 6 a 9 suscitam
mais divergências, uma vez que se pode dar a eles sentidos compostos pela soma
ou pela multiplicação e também por podermos lhes atribuir mais de uma forma ou
desenho.
A tabela anterior comporta um sistema decimal ligado aos dedos da mão,
mas podemos aplicá-la às cartas do tarô: nos Arcanos Maiores, de I a X, e depois
novamente de XI a XX, onde o XI é um novo 1. e também nos Arcanos Menores que
já são numerados de 1 a 10 em cada naipe. A cabala é outro caso de sistema
decimal e funciona mais ou menos com este padrão.
4.7.1 Polaridade
403
TRESIDDER, Jack. O grande livro dos símbolos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003, p.241.
404
KARLSSON, Thomas. Uthalark: o lado noturno das runas. São Paulo: Penumbra, 2018, p.29-30.
405
Idem.
210
Gerador:
Inibidor:
4.7.7 DNA - 22 e 64
Cada gene que forma o DNA é formado por uma sequência de 3 bases. Há 4
possibilidades de base, “as letras” (A, G, C, T). Assim, há 64 possibilidades de
combinação de “palavras” de 3 letras (4x4x4). Entre estas combinações, há algumas
que são redundantes e formam o mesmo aminoácido. Os genes correspondem a 22
“sentidos”: 20 aminoácidos e mais 2 sinais de pontuação (“começar e parar”). 406 22
406
NARBY, 2018, p.105.
215
407
Adaptado de JODOROWSKY; COSTA, 2016.
217
4.9 Simbologia
408
JUNG, 2011a.
409
JUNG, 1978.
410
ELIADE, 1979A, 1979B, 1996
411
MORIN, 2003, p.302.
220
412
Austin Osman Spare (1886–1956) foi um artista e ocultista inglês. Também pintor e desenhista,
desenvolveu algumas técnicas mágicas idiossincráticas, incluindo escrita e desenho automáticos e a
sigilização.
413
SPARE, 1913.
414
MORRISON, 2016.
221
funcionar assim: condensar uma intenção em uma forma. Quais métodos ou rituais
podem ser realizados para isso não é o mais importante. Estamos falando da
intenção, que por si só já tem um poder.
4.11 Oráculos
É curioso que a palavra religião (do latim religio) seja derivada de relegere
(reler, revisitar, ou retomar o que estava largado); no império romano, era usada no
sentido de consultar o oráculo dos deuses antes de tomar uma decisão. Usava-se o
termo neglegere para se referir a “falta de cuidado” ou “negligência” – o oposto de
relegere (ou seja, não negligenciar a vontade dos deuses). O sentido de religio como
religare (religação) só surge muito depois com os teóricos cristãos, que queriam
afastar-se da herança pagã. 415 O oráculo é o voltar a ler, prestar atenção na opinião
dos deuses. E os deuses, como sabemos, são também nosso inconsciente.
Para se ler um oráculo, o primeiro passo é fazer a pergunta – uma pergunta
que sintetize os desejos e foque nossa atenção. Um desenho ou uma dúvida,
sintetizados na pergunta, fazem inconsciente e consciente trabalharem juntos para
encontrar uma resposta. O todo está na parte como a parte está no todo. O
holograma do mundo. As semelhanças e similitudes, as analogias fazem com que
leiamos de novo uma imagem que o mundo nos apresenta. O relegere é esta
segunda leitura do mundo. A primeira é a objetiva, funcional. A segunda leitura é a
leitura oracular.
Jung explica o oráculo pelo conceito de sincronicidade. Tudo que acontece
neste instante participa da qualidade deste instante. Isso é a sincronicidade. 416 Ele
explica que para a cultura chinesa a sincronicidade é mais importante que a
causalidade. A percepção de que uma coisa resulta em outra como causa e efeito
não é negada; porém, mais importante do que isso é a percepção de que tudo
acontece integradamente no mundo: ações humanas, eventos naturais, clima,
estações, horas do dia. A sincronicidade se sobrepõe à causalidade. Ela é uma
415
AZEVEDO, 2010.
416
JUNG, 1988.
222
4.11.1 Tarô
417
Em francês, tarot; em italiano, tarocco (cujo plural é tarocchi).
223
Não se sabe nem a data exata nem a origem precisa do tarô. Não há registro
de associações de ofício muito menos de autores que reivindicam a autoria. Ele
aparece como uma prática marginal à religião, instituída possivelmente no sul da
Europa, em algum lugar no espaço onde hoje ficam França e Itália, entre 1200 e
1300. Esta época é importante na história da imagem na Europa pois é quando elas
passam a ser incorporadas pela Igreja.
O baralho mais antigo que se conhece é dos Tarocchi Visconti-Sforza, jogos
de baralho pintados por encomenda às famílias Visconti e Sforza, governantes do
Ducado de Milão entre 1395 e 1499. Os Arcanos Menores foram possivelmente
apropriados de cartas Árabes de jogar ou vêm de algum padrão comum anterior. O
baralho Mamlûk, ou Mameluco, proveniente do oriente médio e norte da África, tem
a mesma estrutura das cartas de jogar contemporâneas, com quatro naipes de 13
cartas. Seus desenhos são muito similares aos dos tarôs europeus posteriores. O
tarô que se tornou padrão é o de Marselha A cidade do sul da França foi um dos
principais portos da região, sendo um ponto de encontro entre as culturas africana e
oriental com a europeia. Marselha era o único lugar na região com manufaturas que
poderiam fazer baralhos em série com xilogravura. 418
A iconografia do tarô reúne imagens cristãs e pagãs e sintetiza uma sabedoria
popular da Europa que inclui alquimia e magia. Como um livro mudo,419 o tarô revela
e esconde um conhecimento muitas vezes reprimido pela Igreja. No livro Dogma e
ritual de Alta Magia, Lévi estrutura toda a sabedoria de teoria (dogma) e prática
(ritual) guiando-se pelas figuras dos Arcanos Maiores do tarô sem nunca fazer
referência direta a eles. Lévi, como vimos na crítica de Eliade, 420 não pode ser
considerado uma referência para dados culturais e factuais sobre as culturas
antigas, pois seus textos, quando se referem ao Egito, Pérsia e Índia, carecem de
qualquer comprovação histórica. Ao mesmo tempo, é interessante observá-los do
ponto de vista de uma linhagem de resistência de práticas mágicas. Algumas
passagens são deliberadamente falsas para despistar os não iniciados; como ele
418
Escrevi um artigo sobre minha viagem a Marselha em meu blog em 2014. Disponível em:
<http://sonho.nadam.com.br/?p=134>.
419
Livro mudo ou Mutus Liber é um tratado de alquimia de 1677 que não tem palavras e trata dos
conceitos alquímicos somente em imagens.
420
ELIADE, 1979b, p.55: “não passam de uma soma de afirmações pretensiosas”.
224
mesmo indica, o mago precisa saber calar. 421 Podemos entender sua obra como
uma compilação da cultura popular oculta da Europa que sincretiza mitologias
cristãs, pré-cristãs, judaicas primitivas e orientais. Ele segue uma tradição dos textos
gregos pseudografados e atribuídos a Zoroastro ou Hermes Trismegisto, que, como
se sabe hoje não têm qualquer relação histórica com os ritos do deus Thot do Egito
como por séculos se acreditou. É uma tradição que se mantém pela simulação,
pelos discursos fantasiosos, por uma performatividade de uma ritualística falsa que
esconde práticas muito simples e quase universais no xamanismo. De toda forma,
mesmo a leitura de Lévi sendo fantasiosa, foi com a sua tradição exotérica que o
tarô incorporou outras referências ligadas à astrologia e à cabala que vão resultar
nas releituras mais conhecidas do século XX: os tarôs Rider e de Thoth.
O Rider Tarot, 422 lançado em 1910, é um baralho do ocultista Arthur Edward
Waite (1857–1942) executado pela artista plástica Pamela Colman Smith (1878–
1951). Atualiza a iconografia de Marselha com desenhos ao estilo art nouveau e
toda a informação agregada pelas escolas ocultistas do século XIX. É também o tarô
mais copiado pelos baralhos contemporâneos. O Tarô de Thoth, de Aleister Crowley
e pintado por Frieda Harris sob sua supervisão, foi finalizado em 1943, mas só
lançado no fim dos anos 60; também se tornou bastante popular ao explicitar as
correlações astrológicas com imagens mais dramáticas e estilo modernista
simbolista.
Muitos artistas do século XX se aventuraram a redesenhar o tarô. Salvador
Dalí fez o seu nos anos 70; 423 o artista francês Niki de Saint Phalle (1930–2002)
criou na Itália O Jardim do Tarô, 424 um jardim de esculturas baseado no tarô. No
Brasil, Israel Pedrosa fez sua releitura dos 22 Arcanos Maiores em telas nas quais
relaciona o tarô com figuras da cultura brasileira – o trabalho foi transformado em
livro em 1991, mas não em baralho. 425 Recentemente, porém, editores têm
421
LÉVI, 2017.
422
Rider foi o nome do primeiro editor. O baralho é encontrado também como Waite Tarot, Rider-
Waite ou Rider-Waite-Smith.
423
DALI, 2014. Dali, Tarot Universal, editado pela primeira vez em 1942. Colônia: Editora Evergreen,
2014.
424
Em italiano: Il Giardino dei Tarocchi. O parque foi aberto ao público em 1998 na região da
Toscana.
425
PEDROSA, 1991.
225
publicado tarôs em todo estilo que se possa imaginar: de Botticelli a Klimt, de Star
Wars a Game of Thrones. Tudo pode virar tarô. 426
Em 1998, é lançada uma versão “restaurada” do Tarô de Marselha, uma
pesquisa de Philippe Camoin, herdeiro de uma tradicional casa de impressores, e do
artista Alejandro Jodorowsky. Foram escaneadas e sobrepostas todas as dezenas
de versões conhecidas deste baralho com o objetivo de chegar o mais próximo
possível do que seria um tarô original. Esta versão resgata muitos detalhes
ambíguos e as cores que teriam se perdido. Jodorowsky busca se afastar da
tradição ocultista e se aproximar das leituras junguianas e do uso terapêutico do
tarô.
4.11.2 Astrologia
426
Só a editora italiana Lo Scarabeo oferece mais de 100 versões do tarô em seu site:
<https://shop.loscarabeo.com>.
226
mais importante será: qual pergunta que está sendo feita? O que se busca? E a
subjetividade no exercício de flexionar os símbolos vai passar pela visão de mundo e
intuição de quem lê o oráculo.
Carroll brinca dizendo que astrologia não é nem ciência nem magia, mas
uma pseudociência porque as evidências são muito sutis. Se fossem fortes, seria
uma ciência. Se fosse magia, não precisaria de evidências.427 O tarô não precisa de
evidências além do fato de uma imagem ter sido tirada para uma certa pergunta.
427
CARROLL, 2016.
227
podia responder: “sim, qualquer um pode criar um oráculo”, “sim, qualquer coisa
pode ser um oráculo”. Algo que parecia à primeira vista difícil ou mesmo impossível,
como no primeiro encontro quando disse que cada um iria fazer seu oráculo pessoal,
três semanas depois era uma realidade. Os baralhos autorais, produzidos durante a
oficina, chamei de Oráculo Experimental.
As imagens dos baralhos de oráculo experimental são bem específicas e
pessoais. Alguns fazem imagens abstratas, outros, palavras, figuras ou ícones.
Alguns optaram por desenhos, outros, colagens, fotografias ou mesmo apropriações
de capas de discos. Alguns artistas usaram imagens de obras próprias, outros
criaram intrincadas lógicas para chegar no conjunto de imagens de seus oráculos.
Todos os oráculos exercitam a flexão simbólica, que é onde reside a inteligência do
artista e a do mago. Os caminhos levam a analogias, associações de formas,
imagens, ideias, arquétipos, em uma busca individual.
Desdobrei os cursos na EAV Parque Lage em 2018 e 2019, expandindo a
experiência com mais vivências para um curso de 4 meses. Tive que estudar muito
para entender o que eu estava falando e como era possível funcionar. Derivado
deste curso, criei também um “Curso experimental de sonhos” para ajudar as
pessoas a entrarem contato com seus próprios sonhos e experimentar os muitos
exercícios sobre os quais vinha lendo nas minhas pesquisas.
428
Brian Eno (1948–) é um músico, compositor e produtor musical britânico, lembrado como um dos
responsáveis pelo desenvolvimento da música ambiente.
429
Disponível em: <http://www.rtqe.net/ObliqueStrategies/>. Acesso em: setembro de 2019.
228
Estou terminado este texto e pergunto ao oráculo do Eno, que tenho instalado
no meu telefone, o que devo fazer nas últimas revisões deste texto. Ele me
responde:
Entendo que o texto já está muito extenso e não devo me perder buscando
exemplos redundantes (Only one elementof each kind). Tenho que consultar fontes
promissoras, ou talvez buscar as origens prometidas – revendo se cumpri o que
prometi no início (Consult other promissing sources) – e dar ênfase às diferentes
compreensões e hipóteses (Emphasise differences).
Passemos então às considerações finais.
229
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Falta uma semana para a data que determinei que terminaria este livro. E
ainda gostaria de incluir tantas coisas. Reviso o texto focando nas orientações do
Brian Eno: só um elemento de cada. Quais são as fontes realmente importantes que
faltam? Ressaltar os contrastes.
Olho o conjunto e vejo um trajeto de um trem com muitas paradas. Algumas
talvez sejam muito parecidas, mas como saber sem parar em cada uma para
investigar? O trem precisa parar em todas as estações. Pode ser que alguém
necessite descer ou subir no vagão, no livro, no sonho. O trilho sobe em espiral, ao
redor de uma revelação – que é também um segredo que, por mais que seja
revelado, permanece misterioso. É da natureza do segredo ser indizível. As
estações se aproximam do mistério, mas não são capazes mergulhar nele. As
estações se parecem:
“Olha ali de novo a alquimia de um outro ângulo.”
“Olha! Uma fantasia virando realidade, um mito tomando vida.”
Mas este é o mesmo que vi antes? Ou uma nova pós-arqueologia? O trem
segue, e talvez seja só uma linha circular. O que chamo de magia é praticamente
sinônimo do que chamo de arte: um processo de pesquisa e autoconhecimento
baseado em formas e criação.
Anoto as ferramentas de arte e magia em um mapa tripartido:
430
Tatiana Podlubny é astróloga, artista e editora. Portfólio disponível em:
<https://tatianapodlubny.myportfolio.com>.
431
Maína Mello é escritora e astróloga. Seu site está disponível em: <http://mmmapeando.com.br>.
231
ela fez o mapa de todos os colegas. As correlações entre os mapas e as obras que
ela acompanhava eram muito óbvias, até literais, e isso saltou aos seus olhos. O
mapa astral sempre se manifesta na personalidade de qualquer um, mas com
artistas isso é exposto em sua máxima clareza, disse ela. Estudar o mapa poderia
se tornar uma forma de desenvolvimento do trabalho artístico.
A leitura do mapa com Tatiana segue um procedimento parecido com o de
outros astrólogos, mas com um detalhe: ela me pedira alguns dias antes, além da
data e hora de nascimento, também o meu portfólio. Nos sentamos em frente ao
computador com meu mapa natal aberto na tela.
232
432
Puer é o arquétipo do jovem, e Senex, do velho. Jung afirma que toda forma elementar do ser
contém dentro de si o seu oposto, sendo assim, o enrijecimento em uma das polaridades, isto é, a
saída da conexão do eixo relacional Puer-Senex propicia a vivência dos aspectos negativos tanto do
Puer como do Senex. O Puer-Senex é o equilíbrio de poder integrar os arquétipos complementares
na personalidade. (MONTEIRO, 2010.)
433
RANCIERE, 2002.
234
(Saturno na casa 10). Como se interessar pelo futuro e pela tradição? (Seria isso a
pós-arqueologia?) E como me comunicar (Mercúrio) através desta tensão? E, ainda,
como usar esta tensão para me curar (Quíron)? Mercúrio em Touro “é falar por meio
de coisas que não falam. Quíron é o curador ferido, é onde temos uma ferida
incurável.” Os dois juntos na casa 7 (encontros) mostram que tanto o poder de me
comunicar quanto a minha “ferida incurável” estão no lugar do encontro com o outro.
Para os artistas, as tensões (quadratura) tendem a ser mais produtivas que as
facilidades (trígono). Criar trabalhos que dependem do encontro com o outro, como
o Materializador de Sonhos, é um desafio que me imponho como estrutura disruptiva
para curar esta ferida em estar com outros. Mercúrio se manifesta também no
inventar jogos (encontros - casa 7) para falar de algo que pode ser apenas vivido e
não falado, não traduzível no campo léxico-semântico (Touro).
No triângulo azul mais acima, se encontra Saturno, com Plutão em Libra e
Júpiter em Gêmeos. De novo, o leve e o pesado se juntam. Tive um sonho e acordo
com a ideia de uma história satírica em que uma boneca de barro faz sexo com
deuses ao redor do mundo, gerando os padroeiros mestiços da nova era. Uma
ironia, uma brincadeira, jogos de palavras desconstruindo e expandindo mitos
antigos e lugares comuns (Júpiter em Gêmeos). Mergulho na história da Virgem do
Alto do Moura e anos depois me vejo orando para deuses inventados. Invocando e
sentindo a presença destas entidades fictícias (Plutão na casa 12), estruturo uma
tese que equilibra a profundidade das ciências ocultas e espirituais (Plutão em Libra
na casa 12). Com a leveza da expansão (Júpiter em Gêmeos), olho para o sexo e a
morte (casa 8). “Um bom jeito de traduzir esta combinação é o verso do Paul Valéry,
‘o mais profundo é a pele’.” Descubro que na superfície e expansão é que encontro
transcendência e profundidade.
235
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