Beatriz Avinco - Feminismos, Corpo e Espaço
Beatriz Avinco - Feminismos, Corpo e Espaço
Beatriz Avinco - Feminismos, Corpo e Espaço
RESUMO
Introdução
Desde Simone de Beauvoir, o conceito de “feminino”, de “feminilidade” e de “mulher”
vem sendo readequado à medida que se entende sua posição numa estrutura social
e cultural. Aliado a esse caminho teórico, tem-se a performance como um meio pelo
qual o corpo é capaz de questionar a ele mesmo. Por isso, este artigo busca
questionar o “ser mulher” e as mudanças de significado dessa expressão a partir da
teoria queer, utilizando-se da performance como objeto de exemplificação.
“Não se nasce mulher, torna-se.” (BEAUVOIR, 1949). Em sua obra O Segundo Sexo,
Simone de Beauvoir observou que “ser mulher” é, mais do que uma natureza
intrínseca, uma construção atribuída. Nesse âmbito, o estudo de Butler pode ser
interpretado como uma extrapolação analítica do pensamento de Beauvoir. Ela define
o gênero como a “repetição estilizada de ações ao longo do tempo”. Ao propor essa
definição, Butler dissocia o gênero do indivíduo, transformando-o numa construção
social - e, mais do que isso, numa série de ações, feitas propositalmente ou não, que
incutem o gênero em um indivíduo e que o criam, ao mesmo tempo 1. De maneira
direta, a filósofa propõe a reformulação da ideia de corpo e sexo a partir de cinco
premissas. São elas:
1É importante reiterar que, neste momento lógico da teoria de Butler na obra Bodies That Matter,
gênero e sexo ainda não são dissociados.
Num sistema heteronormativo com o sexo como construtor do próprio indivíduo, tudo
é pautado por uma relação de inclusão e abjeção da norma. Dessa forma, “sexo” e
“gênero” geram e são gerados ao mesmo tempo, de maneira paradoxal; o sexo, para
a autora, é a construção social que associou determinadas condições biológicas a
uma performatividade de gênero.
Enfim, parte-se da ideia de que o “ser mulher” é uma ação realizada múltiplas vezes,
sem se exaurir de seu significado, mas se exaurindo da sua natureza criadora,
tornando-se um paradoxo. Ser mulher é, então, repetir padrões de ação e identificação
que fazem com que um indivíduo seja lido como mulher. Trata-se de adotar e
reproduzir padrões de gênero incutidos em si, e que são responsáveis por fazer com
que o indivíduo exista no seu contexto social e identitário.
1. Dicotomias de gênero
A história da arte, de maneira geral, assume que o movimento moderno não contou
com a participação de mulheres, mas a autora rebate que o movimento modernista
retratou principalmente a sociedade moderna vivida por homens.
Pollock se utiliza das obras das duas artistas para observar como o modernismo é
completamente diferente se comparadas as óticas feminina e masculina. Em primeiro
lugar, enquanto os homens tinham passe livre tanto no espaço urbano quanto no
doméstico, as mulheres eram restritas a esse último. As dimensões do lazer e dos
prazeres eram também reduzidas às mulheres. Mais do que isso, a frequentação, por
uma mulher, do espaço urbano preconizava também uma escala de classe, em que
os locais representados pelo típico artista modernista, como os bares e bordéis,
continham sempre mulheres de classe baixa – as únicas que frequentariam tais
espaços em tais condições. De mesma maneira, locais como o ambiente doméstico,
o jardim, ou o camarote da ópera traziam, em seu cenário ou objeto de observação,
mulheres da alta classe (ver Figura 1).
Figura 1. "In the Loge". Marie Cassat, 1878. Óleo sobre tela 81cm x 66cm. Fonte: Google Arts and Culture.
A relação entre ambiente, classe e gênero, segundo Pollock, fez com que a própria
noção de "feminilidade”, dependesse dessa combinação contextual. Uma mulher se
torna cada vez menos feminina – e, ipso facto, cada vez menos mulher – à medida
que frequenta locais cada vez mais públicos, tipificados como masculinos e regidos
pelo poder de consumo, passando a ser então território conquistável ou mesmo
objeto.
Assim, no contexto de seu tempo, Cassatt e Morisot são capazes de fomentar a crítica
sobre o local da mulher e o espectro da feminilidade, ao mesmo tempo em que são
objeto desses paradigmas. Observa-se, então, uma definição bastante nítida do “ser-
mulher” e do que isso implica social e culturalmente.
2A obra de Butler é largamente baseada nos preceitos de Foucault. Em sua análise, relações de poder,
sob a ótica de gênero, não são uma situação de agente e receptor, mas uma reprodução de contextos
em que, por consequência, determinado indivíduo se encontra uma posição de privilégio, enquanto
outro se encontra numa posição de subjugo.
observa que “as performances adequadas, segundo as normas, resultam em uma
identidade que nos torna visíveis ou que nos permite ser reconhecidos por aqueles
que chamo ‘os meus’”.
PRECIADO (2014) pode ser vista como o extremo desta linha de raciocínio. A
autora, em seu Manifesto Contrassexual, propõe não apenas enxergar relações de
gênero como um produto social, mas dar as costas a essa performatividade,
assumindo corpos não pela dicotomia de gênero, mas como “corpos falantes”.
Afinal, como considerar, então, o que é uma mulher? À medida que novas teorias se
desenvolvem, e conforme se aprofundam os sentidos e as possibilidades sobre o
gênero e a sexualidade, essa distinção parece se tornar cada vez mais solúvel.
Entretanto, permanece clara a força da dicotomia de gênero enquanto geradora de
todas essas possibilidades e, ao mesmo tempo, perpetuadora dessa separação.
O “ser-mulher”, hoje, se caracteriza por linhas bem mais tênues do que, por exemplo,
em 1880. Mulheres hoje são mulheres cis, lésbicas, trans, entre tantas outras formas
de se “performar” mulher na atualidade. Nesse aspecto, a arte da performance é
pertinente para trazer à tona esse dilema contínuo. Conforme observa MONTAGNER
(2019):
A performance também explora a mulher e o corpo como lugar, em sua relação com
o lar e com os sentidos de segurança, nutrição, aconchego, maternidade, abrigo. No
caminho inverso, a performance vai desde a crítica à extrapolação completa da ideia
do corpo-abrigo, expondo a dimensão misógina dessa interpretação ou trazendo o
corpo hostil ao que é socialmente esperado, como faz Aleta Valente.
1. Performatividades em performance
Figura 2. Trecho da performance "Mermaid", por Ann Liv Young, 2019. Fonte: MONTAGNER, Alessandra. “Do
corpo feminino em performance: exceder-se para não asfixiar”.
Figura 3. Trecho da performance "Elektra", por Ann Liv Young, 2014. Fonte: MONTAGNER, Alessandra. "Do
corpo feminino em performance: exceder-se para não asfixiar".
Já Aleta Valente, em sua performance Eletrodoméstica6 (ver Figura 4), se coloca como
pêndulo, equilibrando o peso entre o próprio corpo e um apanhado de equipamentos
eletrodomésticos presos juntos, como fogão, batedeira e aspirador de pó. Ao longo da
performance, ela permanece em giro e contrapeso infinitos, numa relação clara com
o papel da mulher enquanto doméstica e a relação social estabelecida entre o feminino
e o lar. Além deste trabalho, Aleta Valente também questiona a subversão dos papeis
sexuais e domésticos da mulher, adicionando especialmente a dimensão de classe,
em diferentes mídias.
Figura 4. Trecho da performance "Eletrodoméstica", por Aleta Valente, 2019. Fonte: Aleta Valente. Disponível
em: https://www.agentilcarioca.com.br/artists/32-aleta-valente/works/5467-aleta-valente-eletrodomestica-2019/.
Acesso em: 17 jun. 2023.
Figura 6. Trecho da performance "Dance with Me", por Elle di Bernadini. Fonte: Youtube. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=VgeM7Qnpvxs&t=275s>. Acesso em: 17 jun. 23.
Considerações finais
Este trabalho teve como objetivo uma reflexão acerca da construção da imagem de
“mulher” e “feminino”, e como isso pode ser explorado teórica e artisticamente. Um
dos pontos mais importantes desta análise é perceber que, hoje, muito das teorias
iniciais acerca do feminismo são revisitadas para incluir novas percepções e
compreensões do espectro identitário de gênero. Nesse âmbito, o trabalho artístico
performático é um dos formatos que, talvez, melhor explore esse desenvolvimento,
permitindo trazer reflexões que colocam o corpo “de mulher” no espaço, com seus
estigmas, paradoxos, críticas, observações e extrapolações. Cada artista de
performance é capaz de incluir em seu trabalho dimensões diversas da compreensão
do que é ser mulher, e este conceito se torna cada vez mais amplo e fluído.
Referências
Bordo, S. (1993). Unbearable Weight: Feminism, western culture and the body. Berkeley,
California, USA: University of California.
Girls, G. (2003). Bitches, Bimbos and Ballbreakers: the Guerilla Girl's illustrated guide
to female stereotypes (Vol. 1). Nova York: Penguin Books.
Goldberg, R. (2011). Performance art: from futurism to present. Nova York: Thames &
Hudson.
LUZ, Rosa. Performance na rodoviária de Brasília. 2016. Performance pública com registro
audiovisual.
BERNADINI, Elle di. Dance with Me. 2018. Performance pública com registro audiovisual.
YOUNG, Ann Liv. Mermaid. 2012. Performance pública com registro audiovisual.
YOUNG, Ann Liv. Elektra. 2014. Performance pública com registro audiovisual.