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INFÂNCIAS FRUSTRADAS E MATERNIDADES POSSÍVEIS EM CLARICE

LISPECTOR E EM MARIA LUCIA MEDEIROS: DO ERA UMA VEZ AOS


RESTOS DE SONHOS

Paulo Valente1
Rosana Cássia dos Santos2

RESUMO: Este artigo revisita o conto “Era uma vez”, da escritora paraense Maria Lucia Medeiros,
assim como o conto “Restos de carnaval”, de Clarice Lispector, com o intuito de cotejá-los em sua
temática que prioriza um olhar sobre personagens femininas na infância e como tais personagens
frustram-se com suas mães e veem-se obrigadas a amadurecer. Para tanto, discutimos,
primeiramente, o suporte teórico da Crítica Literária Feminista, a infância como um espaço de
construção social e, por fim, propomos a leitura comparada dos referidos contos. Para tanto,
recorremos aos textos de Simone de Beauvoir (2008), Adrienne Rich (1977; 2017), Elizabeth
Badinter (1985) e Susana Funck (2016), dentre outros.
PALAVRAS-CHAVE: Era uma vez; Restos de carnaval; Escrita de autoria feminina; Infância
feminina; Frustração.

FRUSTRATED CHILDHOOD AND POSSIBLE MOTHERHOOD IN CLARICE LISPECTOR AND


MARIA LUCIA MEDEIROS: FROM ONCE UPON A TIME TO THE REMAINS OF DREAMS

ABSTRACT: This article aims to revisit Maria Lucia Medeiros's “Era uma vez” short story, as well as
Clarice Lispector's “Restos de Carnaval”, in order to compare them in their theme that prioritizes a
look at female characters in childhood and how such characters become frustrated with their
mothers and are forced to become mature. Therefore, we discuss, first, the theoretical support of
Feminist Literary Criticism, childhood as a space of social construction and, finally, we propose the
comparative reading of these stories. To do so, we read the texts of Simone de Beauvoir (2008),
Adrienne Rich (1977; 2017), Elizabeth Badinter (1985) and Susana Funck (2016), among others.
KEYWORDS: Era uma vez; Restos de carnaval; Feminine authorship writing; Female childhood;
Frustration.

Quem tem a autoridade literária? De onde fala esse sujeito? E o que tem
a falar?

Desde Homero até as produções literárias mais contemporâneas, a mulher é


figura certa nos textos canônicos, porém, via de regra, a sua representação limita-se a
certo padrão dado pela ótica/escrita masculina como único possível e correto. Em outras
palavras, aquilo a que chamamos de mulher esteve presente na produção cultural

1
Doutorando em Literatura, na linha de pesquisa Crítica Feminista e Estudos de Gênero, pela Universidade
Federal de Santa Catarina. Bolsista Capes. E-mail para contato: [email protected]
2
Doutora em Literatura. Professora Associada IV da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail para
contato: [email protected]

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ocidental como objeto desde tempos imemoriáveis, mas é preciso que se questione esse
lugar passivo, privilegiando o modo como mulheres escreveram sobre as suas
experiências, do seu ponto de vista, tornando-se sujeito de sua própria narrativa. O
homem se vestiu de autoridade e universalidade, produzindo uma literatura que o
representasse, que desenhasse um mundo à sua semelhança e chamou isso de
universal. Qualquer coisa que fugisse desse padrão era visto como menor, não digno de
figurar em listas canônicas.
O sujeito masculino se veste de uma unicidade e sente-se capaz de falar sobre
absolutamente tudo, sobre toda e qualquer subjetividade, inclusive no texto literário,
espaço privilegiado para refletir e delimitar as possibilidades de realização dos sujeitos.
Simone de Beauvoir, em seu clássico O segundo sexo (1949) já refletiu sobre a mulher
ser inferior ao homem, este central, primeiro, enquanto ela seria o seu outro, impondo-se
à menina regras como, por exemplo, “endireita o corpo, não andes como uma pata. Para
ser graciosa deverá reprimir os movimentos espontâneos; pedem-lhe que não tome
atitudes de rapaz” (BEAUVOIR, 2008, p. 28). Tomar atitudes de rapaz, nesse contexto,
seria ousar ocupar um espaço que não lhe é de direito.
Assim como a crítica francesa, outras teóricas do feminismo têm compreendido
que a crítica deve servir para romper essa pretensa universalidade do homem como
sujeito universal e da mulher como o seu outro, seu objeto.

Ao mesmo tempo, ao deslegitimar a alegação de que o Homem poderia


falar em nome da "Humanidade", bem como representá-la, a crítica
feminista desafiou a sua autonomia e pulverizou sua coerência. Como
Luce lrigaray mostrou em Speculum, a ideia deste sujeito (masculino)
como Um, isto é, como um princípio de organização e controle estável e
uniforme, só foi possível porque sua negatividade foi recusada e
transferida para um segundo termo, a Mulher, cuja função (vital) dentro
do sistema de sinalização nunca foi assumida como tal 3 (COLAIZZI,
1990, p. 15)

Parafraseando Colaizzi (1990) e pensando o seu escrito à luz da crítica literária


feminista, temos que esta empreende um olhar revisionista o qual descentraliza essa
figura masculina, retoma a produção de autoras apagadas pelo cânone ocidental, relê os
modos como esse cânone leu e representou a figura feminina e, ainda, traz à luz obras de
autoria feminina e problematiza o modo como nessas obras o perfil ao qual nos referimos
anteriormente é amplificado. Assim, um olhar comprometido com a perspectiva feminista
da produção cultural/literária deve se perguntar por que a produção de autoria feminina
comumente é invisibilizada entre os textos canônicos.

3
Al mismo tiempo, al deslegitimizar la pretensión que dicho Hombre asumía de hablar en nombre de la
"Humanidad", así como la de dar cuenta de ella, la crítica feminista ha desafiado su autonomía y pulverizado
su coherencia. Como ya mostró Luce lrigaray en Speculum, idea de este sujeto (masculino) como Uno, es
decir, como un principio de organización y control estable y uniflcado, sólo fue posible porque su negatividad
fue rehusada y desplazada hacia un segundo término, la Mujer, cuya función (vital) dentro del sistema de
signillcación nunca fue asumida como tal. (Tradução nossa do original em Espanhol).

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Tentando responder a esse questionamento, a professora Regina Dalcastagné
promoveu uma pesquisa pela UNB, com o intuito de pensar qual o perfil do público leitor
e do produtor de conteúdo literário canônico nacional. O resultado comprova que
quando se trata especificamente da produção literária contemporânea no Brasil, há o
que a autora chama de “mapa de ausências” (DALCASTAGNÉ, 2012, p. 147). Ou seja,
a literatura que se faz em nosso país ainda é restrita a certo padrão de autores, público
e local de produção.
Os dados sinalizam que “a produção literária das mulheres ainda é rotulada como
literatura feminina, que se contrapõe à literatura tout court, já que não se julga necessário
o adjetivo masculina para singularizar a produção dos homens” (DALCASTAGNÉ, 2012,
p. 159) e nos propõe uma reflexão acerca do papel das mulheres como produtoras de
conteúdo literário de grande alcance e que seja lido fora da pecha “feminista”. Os
resultados da pesquisa nos mostram que dos 165 autores que publicaram por três
grandes companhias editoriais, entre 1990 e 2004, 120 eram homens (72,7%), 93,9%
brancos, 82,5% dessas produções se passam em grandes metrópoles, 60% assinados
por autoras e autores que vivem no Rio de Janeiro ou em São Paulo.
Constata-se, portanto, que a conjunto de textos que surgem como literários
confunde-se com certos nomes sempre arrolados como supostamente necessários e
óbvios, de modo a mascarar certas ideologias. Nesse sentido, a circulação literária se
firma sob uma lógica social que representa uma realidade de poder androcêntrica, branca,
metropolitana, negligenciando outras possibilidades e subjetividades, conforme comprova
o estudo de Dalcastagné (2012). Minorias políticas como mulheres, indígenas e pessoas
negras quando aparecem estão em lugar de subalternidade, impressos segundo esse
olhar do centro, um olhar que os vê de cima, observa-os, até fala sobre eles, mas nunca
em termos de igualdade. Assim sendo, não há como pensar a Literatura como uma
realidade a-histórica, mas sim, a partir da História.
Isto posto, aquilo a que denominamos literatura canônica4 dialoga com uma
sociedade estratificada e que reitera valores extraliterários para efetuar a seleção de tais
obras e partir à busca de um valor estético. Opondo-se à perspectiva literária canônica, a
Crítica Literária Feminista questiona a própria sociedade e o sujeito de privilégios que
celebra o seu lugar, colocando-se como universal e invisibilizando, para tal, outras
realidades possíveis; repensa ainda o modo de fazer crítica literária, uma vez que entende
a literatura como produção de sentidos e de representações sociais que passam à
memória. E, por fim, questiona a pretensa autoridade que regula quem pode e quem não
deve ser canônico.
A produção literária e teórica sobre a Literatura compromissada com uma leitura
feminista deve, portanto, instrumentalizar uma compreensão do texto literário para além
das palavras em si, em relação com o seu contexto e local de produção, compreendendo
que a literatura também pode ser um espaço de poder e legitimação de algumas poucas

4
Para leituras mais detidas sobre o sentido de cânone que aqui empregamos, sugerimos a leitura do texto
Cânon, de Roberto Reis. Cf. bibliografia completa ao final do artigo.

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vozes e espaço de representação de uma luta de gênero, que é também de classe e de
raça, dentre outras intersecções, conforme quer Adrienne Rich (2017)

Uma crítica radical da literatura, feminista em seu impulso, consideraria


a obra [literária] como um indício de como vivemos, como temos vivido,
como temos sido levadas a nos imaginar, como a nossa linguagem tem
nos aprisionado ou libertado, como cada ato de nomear tem sido, até
agora, uma prerrogativa masculina e como podemos começar a
enxergar e a nomear – e, portanto, a viver – de uma nova maneira
(RICH, 2017, p. 67)

O excerto de Rich (2017) posto aqui corrobora a necessidade de repensar a


produção literária como espaço privilegiado para refletir sobre as relações humanas, o
modo como nos enxergamos a nós mesmos, pois, o cânone, essencialmente
preconceituoso e excludente, representa um perfil de escritor e de autor, e esse perfil não
considera os excluídos sociais, antes esmaga-os, apaga-os.
Desse modo, entendemos que essa Crítica estabelece novos paradigmas de
pesquisas e se articula com a Crítica Literária, abalando-a. Desse abalo, por sua vez,
obras de autoras não canônicas e fora dos grandes centros urbanos nacionais surgem
com temáticas as quais raramente figuravam entre os escritos de autoria masculina.
Esse parece ser o caso da escrita de Maria Lucia Medeiros, autora da periferia
amazônica, que neste artigo aproximamos da produção clariciana, a partir da temática: a
infância perdida frente à maturidade precoce e necessária, dada em conflitos com as
suas respectivas mães.
Outrossim, a Crítica literária feminista é responsável por repensar os ideais que
couberam às figuras femininas representar na literatura canônica, dentre os quais consta
o de ser mãe, como um pressuposto do ser mulher. A maternidade, via de regra, ocupa
um dos lugares mais célebres entre os papeis que uma mulher pode – e deve – ocupar
socialmente. Salvo exceções, como Medeia, de Eurípedes, vem-se historicamente
recorrendo à imagem da maternidade, da mãe, como um privilégio, uma dádiva a qual
cabe à mulher ocupar necessariamente, compulsoriamente.
Adrienne Rich, em Of Woman Born: Motherhood as Experience and Institution
(1977), reflete que a maternidade, em certas culturas e épocas, pode ter sido imposta
como uma forma de a mulher buscar certa igualdade com o homem, na mesma medida
em que trabalhou para delimitá-las.

Em certos pontos da história e em certas culturas, a ideia de mulher como


mãe trabalhou para conferir respeito a todas as mulheres, mesmo com
admiração, e dar às mulheres alguma opinião na vida de um povo ou de
um clã. Mas, na maior parte do que conhecemos como o "principal" da

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história registrada, a maternidade como instituição criou guetos e degradou
as potencialidades femininas. (RICH, 1977, s/p.)5

É preciso que se discuta, portanto, a degradação das potencialidades femininas


como sugere Rich (1977), a fim de pensá-la para além desse papel de gueto, posto à
margem da sociedade androcêntrica, ou seja, esse papel de mãe imposto de forma
mandatória. O que essa obrigação encobre? Quais possibilidades de feminino apaga ou
deslegitima? Tanto em “Era uma vez” quanto em “Restos de carnaval”, contos lidos aqui,
temos discussões ainda que sutis à maternidade, ao fato de as mães delineadas nesses
textos não serem as responsáveis por uma infância feliz para as suas filhas, ao fato de
serem mais prováveis.
Portanto, ainda que a maternidade não seja o tópico principal a ser discutido
nos limites deste artigo, julgamos necessário esse breve panorama sobre como parte
da crítica literária feminista pauta outras formas de ser mãe para além da
sacralizada, canônica. Tal crítica dá-nos instrumentos para ler como obras de autoria
feminina propõem personagens como as mães das protagonistas que, mesmo que
involuntariamente, provocam o trauma, a dor e a perda do ideário de infância feliz,
conforme se vê mais à frente, indo de encontro a um ideal de maternidade protetora
e feliz.

Infância: processo ou ruptura?

E dentro da menina
A menina dança
E se você fechar o olho
A menina ainda dança
Dentro da menina
Ainda dança
Os novos baianos

Ao compreendermos que a narrativa literária é uma forma de entender o mundo,


relacionar-se com a própria realidade, dentre outras conhecidas apenas nas páginas
que lemos, concebemos que o corpus literário de qualquer nacionalidade guarda relação
com a própria sociedade a que se refere. Assim, voltar a nossa atenção a um texto
literário é, em certa medida, observar como este dialoga com determinado contexto, e
não é apenas ficção ou abstração. Em outras palavras, é entender que aquele texto não
se refere apenas à ficção, “inverdades”, mas sim, a uma forma de olhar para a realidade
que se nos oferece.

5
At certain points in history, and in certain cultures, the idea of woman-as-mother has worked to endow all
women with respect, even with awe, and to give women some say in the life of a people or a clan. But for
most of what we know as the ‘mainstream’ of recorded history, motherhood as institution has ghettoized and
degraded female potentialities. (Tradução nossa do Inglês).

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Esse olhar crítico é preponderante a que pensemos os textos literários e os
sujeitos sociais para além de uma ideia imanentista como algo dado. Já é ponto acordado
que não há uma única forma de ser mulher e de se fazer representar no mundo, ou seja,
múltiplas são as possibilidades de permorfar a mulheridade. É urgente, porém, pensar
que igualmente a infância não se traduz em uma possibilidade apenas. Não existe apenas
uma forma de ser criança. Esta é uma construção social e “ser criança” varia conforme
época e sociedade.
Ao longo da história ocidental, a infância foi considerada uma fase menor,
apagada e silenciada, inclusive nos registros artísticos e literários. Corazza discorre
que “as crianças estão ausentes na história no período que compreende a Antiguidade
até a Idade Média por não existir este objeto discursivo que chamamos ‘infância’, nem
esta figura social e cultural” (2002, p.81). Com as Revolução Francesa e Primeira
Revolução Industrial, o período anterior à vida adulta passou a configurar um momento
rápido que antecedia a entrada das crianças filhas dos trabalhadores e das
trabalhadoras no chão de fábricas para começar a desempenhar funções laborais 6. Os
serviços que desempenhavam configuravam uma espécie de aprendizagem para a sua
futura vida naquele mesmo espaço, logo, ainda não havia o registro da criança como
sujeito de discursos. Enquanto objeto discursivo, parafraseando Corazza, a infância se
firma no contexto europeu da virada dos séculos XVIII ao XIX, com o surgimento de
leis que amparassem a infância, um mercado consumidor para elas, escolas e sua
frequência obrigatória.
Nas artes e Literatura, a infância foi uma quase completa esquecida, segundo
Ariès, “até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava
representá-la. É difícil crer que essa ausência se devesse à incompetência ou à falta de
habilidade. E mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo”
(ARIÈS, 1981, p. 39). De acordo com Mary Del Priore, no caso brasileiro, apenas após a
chegada da família Real Portuguesa, em 1808, houve uma maior preocupação com a
saúde e a higiene das crianças, assim como o registro em dicionário do termo “infância”
(cf. PRIORE, 2004). Esse brevíssimo e panorâmico olhar sobre a situação da criança não
pretende dar conta do tema, mas sim, revelar que a noção de infância se altera conforme
diversos fatores históricos e geográficos, o que, obviamente, levará a mudanças no modo
como a Literatura retratou o tema.
Destacamos aqui o modo como Clarice Lispector, em sua produção literária,
discutiu a infância e sua multiplicidade, examinando/propondo várias possibilidades de se
pensar a infância para além do imanentismo da criança ingênua, inocente e pueril. Em
Felicidade Clandestina (2016), para ficarmos no exemplo de um dos textos mais
conhecidos da autora, a narradora explora sentimentos de posse, certa crueldade, com
protagonistas, em certa medida, perversas, explora ainda o objeto livro como um amante
da criança, enfim, faz-nos ver a ideia que perseguimos nessa leitura: a infância é uma
construção social calcada num espaço-tempo.

6
Sempre oportuno fazer um recorte social e de raça. Aqui referimo-nos às crianças filhas dos trabalhadores
dessas fábricas, pobres, e um sistema ainda mais injusto que negava qualquer forma de ascensão social.

60
Quanto à Maria Lucia Medeiros, a infância também não é algo simples, fácil e
pueril em sua obra. A autora paraense descreve as suas personagens em situações de
trauma, dor, perdas e desilusões. Tais personagens enfrentam circunstâncias diversas,
com as quais se percebem em situações conflitantes e enfrentam o que se pode chamar
de “angústia de crescer”, a saber, perceber que ser adulto é enfrentar dificuldades sociais
ainda que não sejam adultas, tampouco estejam preparadas para tal embate.
Dado esse preâmbulo, no tópico seguinte, propomos uma leitura comparada dos
contos “Era uma vez”, de Maria Lucia Medeiros e “Restos de carnaval”, de Clarice
Lispector, a fim de discutir as imagens de infância feminina que as duas autoras propõem,
a relação mãe e filha de suas protagonistas e, ainda, a frustração frente a um trauma que
encerra a infância – pelo menos a infância pueril a que estamos acostumados a ler na
literatura canônica.

Era uma vez restos de sonhos...

Maria Lucia Medeiros, nascida no interior do estado do Pará, na cidade de


Bragança, no ano de 1942, era carinhosamente conhecida como Lucinha na cena
literária paraense, foi professora de Redação e de Literatura Infantil na Universidade
Federal do Pará, disciplina que ajudou a criar na instituição. A escritora lançou o seu
primeiro livro Zeus ou a menina e os óculos, em 1988, e a partir de então escreveu
outras quatro coletâneas de contos, faleceu em decorrência de uma doença
degenerativa, em 2005. Sua obra privilegia um olhar infantil sobre questões sociais, com
protagonistas quase sempre meninas, assim como ocorre no conto “Era uma vez”,
presente em seu livro de estreia.
O olhar de Maria Lucia Medeiros é sempre para compor protagonistas fora da
zona de conforto, para além do cânone. São histórias que, ainda que partam do lúdico,
caminham para narrativas de dor, de trauma, de frustração. Por vezes, há a superação do
referido trauma, em outras, vence o medo e a dor. O título “Era uma vez” faz clara alusão
ao canônico começo das histórias encantadas, dos contos de fadas em que personagens
femininas, via de regra, são salvas por príncipes dispostos a dar a vida para mantê-las a
salvo de bruxas, feitiços e maçãs envenenadas. Nessas histórias, habitam dois
perfis/possibilidades de representar o feminino. Ou se é má – a bruxa – ou se é boa – a
princesa. A narrativa de Medeiros brinca também com essas possibilidades, uma vez que
sua protagonista encontra na mãe essas duas possibilidades de existência.
Ao ler o referido conto, o primeiro fato que o leitor toma ciência é o de que a
menina se prepara para uma viagem e arruma uma mala para as suas roupas e outra
para os livros. A idade não é revelada, mas sabe-se ser uma criança, já leitora voraz e
com uma irmã mais velha.

Tinha muita gente que achava aquela menina muito inteligente e o motivo
era um só: era uma menina devoradora de livro. Às vezes, é claro, a irmã
mais velha encontrava a menina debulhando-se em lágrimas, grossas
lágrimas, o livro aberto, o personagem esperando a emoção passar, e a

61
irmã esperando que ela fechasse o livro tão incomodativo. (MEDEIROS,
2009, p. 143)

A partir desse momento, a narradora mergulha nessa paixão da menina e em um


recurso de analepse, volta no tempo e conta as experiências da garota leitora com os
livros e reitera que tal hábito tornara-a uma observadora perspicaz da realidade, alguém
que vivencia uma série de experiências pela literatura e quando as vive na “realidade”,
apenas reconhece-as, como se fossem comuns, rotineiras.

Parecia que a menina já andava pelo mundo há mais tempo que os outros
meninos de sua idade. Parecia saber o princípio de todas as histórias.
Referências... casos contados à mesa do almoço e do jantar, pareciam já
sabidos, tão antigos e simples, tão conhecidos. Acostumada às tramas e
aos enredos, enredava-se. (MEDEIROS, 2009, p. 145)

Com ares quixotescos, a garota dá vida aos personagens que lê e, tal qual o
protagonista de Cervantes esperando a sua Dulcineia, aguarda por Richard, personagem
do romance que lê, o qual, obviamente, não vem ao seu encontro, mas isso não a abala,
nem diminui a sua paixão pelas letras ou pelo personagem.

Uma noite, jantar à mesa servido, a conversa rolava sobre política e as


eleições que viriam. Mãe e pai envolvidos nas últimas declarações do
candidato de oposição, a voz da mãe sobressaindo, clara, inquieta,
imaginando acontecimentos borbulhantes para o final da semana. De
repente, alguém notou a menina de olhos perdidos, o prato limpo e vazio e
a reposta veio clara, quando perguntaram por que não se servia de frango.
_ Espero por Richard, não percebem? (MEDEIROS, 2009, p. 144)

Essas e outras passagens refletem a íntima ligação com a literatura. O começo do


conto também marca o lugar da memória como espaço da ficção, e onde se registra a
situação traumática retomada aqui. Contá-la é revivê-la, situação e recurso semelhante ao
empregado pela narradora clariciana, conforme constataremos posteriormente.
Sobre a mãe, há uma mudança de postura ao longo do conto. Se, em sua
apresentação, ela surge em uma cena doméstica, discutindo política com o marido,
conforme destacado anteriormente, mais à frente, aparece como alguém alegre,
risonha, livre e longe do marido, na referida viagem com a filha. Note-se como, fora do
ambiente doméstico e da representação da maternidade que encena junto à filha e ao
marido, a mãe da protagonista parece desabrochar, experimentar uma liberdade só
possível quando está para além do ambiente familiar que a aprisiona, posto que neste,
ela apenas sonha com “acontecimentos borbulhantes para o final da semana”
(MEDEIROS, 2009, p. 144).
A menina orgulha-se dessa mãe que performatiza a maternidade como esse
espaço do cuidado, e tal admiração parece aumentar quando a mãe é bem recebida por
amigos que, fora do ambiente familiar, a admiram. “Gostava da mãe e das conversas que

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varam a madrugada entremeadas do café forte ou vinho tinto” (MEDEIROS, 2009, p. 145).
É nessa viagem que a imagem da mãe alegre e sedutora, a princípio reconfortante, causa
o choque que a afastará dos livros, trazendo-a de vez à “realidade”.

Às vezes a mãe cantava e era bonito vê-la assim, olhada por todo mundo,
e todo mundo querendo acertar que música era aquela, quem havia
gravado pela primeira vez.
Naquela noite, porém, a conversa prolongou-se demais. Parecia até
reunião. Do grupo inicial sobrou um rapaz magro, olhos negros e
profundos que anotava as coisas, perguntava outras, às vezes, parecendo
tímido, aprendiz. (MEDEIROS, 2009, p. 146, grifos nossos)

O rapaz tímido deixa-se encantar pela voz e, provavelmente, pela presença forte
da cantora. A mãe que canta é admirada, seduz, a sua vaidade está nesse ato, longe de
casa. A filha, como seu duplo, também se sente envaidecida com a mãe sedutora que
tem. Porém, essa mesma performance da mãe que tanto acalanta a garota será a sua
fraqueza e perdição de sua infância. Tal qual uma personagem mitológica que seduz pela
voz, levando os que a ouvem à tentação, a mãe seduz os presentes, torna-se o centro
das atenções, seduz principalmente a filha, encantada com a situação, a qual,
certamente, frustrar-se-á com o desenrolar dos acontecimentos.

Naquela noite, passou da cadeira para o sofá e quando acordou estava


agasalhada, o cobertor, o travesseiro, a sala meio às escuras, ninguém ao
redor da mesa, nenhuma voz, ninguém.
Agarrada ao travesseiro e ao cobertor, tratou de andar para o quarto. Abriu
devagar a porta e o que viu foi uma cama desarrumada, homem e mulher
que, sôfregos e felizes, beijavam-se, riam-se deliravam. O corpo magro do
homem, reconheceu. Era o rapaz tímido, de olhos negros. E a mulher mais
velha e mais bela era sua mãe.
Voltou para o sofá e ali se quedou por um longo tempo. Depois dormiu.
(MEDEIROS, 2009, p. 146-147)

Na sequência, desperta ao lado da mãe, já na cama. Esta, alheia ao que a filha


presenciou. Posteriormente, voltam à casa. A narração registra ainda que a menina não
mais abriu um livro durante a viagem, porém “abriu portas, sim” (MEDEIROS, 2009, p.
147). Metaforicamente, podemos pensar essas portas como a realidade dura com a qual
se confronta ou, denotativamente, a porta do quarto em que presenciara a mãe mantendo
relações sexuais com o rapaz tímido.
Afastando-se da literatura, portanto, da ficção, a menina vê-se frente a uma nova
possibilidade, para a qual texto literário algum a havia preparado. A narradora havia
afirmado que a literatura já dera referências e preparara a menina à ‘realidade’, no
entanto, aquela cena que vira e o que representaria a partir de então, fora além da
compreensão infantil da garota.

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O trauma de ver a mãe em ato sexual, e ainda com um completo desconhecido,
traindo o seu pai, reverte a imagem maternal idealizada e também o final feliz nos contos
de fadas. É capaz, ainda que sutilmente, de reverter o lugar da família feliz como em um
conto de fadas e vai além ao não encerrar a mãe da protagonista pura e simplesmente a
esse papel.

Temos suposições, anseios, mitos, fantasias, análogos. Sabemos muito


mais sobre como, sob patriarcado, a possibilidade feminina foi literalmente
massacrada no local da maternidade. A maioria das mulheres na história
se tornou mãe sem escolha, e um número ainda maior perdeu a vida
trazendo vida ao mundo. (RICH, 1977, s/p.)7

A mãe da protagonista não abandonou os seus desejos – sexuais, inclusive – e


vontades em função de um ideal de maternidade. Parafraseando Rich (1977), ela não
“morreu” para dar a vida à filha. Em certa medida, é isso que a filha também não
consegue processar na cena que testemunha.
Se o conto começa com um “era uma vez”, o final quebra as expectativas que
isso pudesse causar, ao terminar com a traição da mãe, a menina tendo que guardar tal
segredo do pai e da própria genitora e a sua desistência dos livros, portanto, da ficção. A
nova situação se impõe sem margem à fantasia. Esse final irônico que desfaz o “viveram
felizes para sempre” faz-nos refletir sobre a infância como esse lugar da ingenuidade e
protegido pelos adultos que circundam a criança. Na realidade, a situação pela qual passa
a garota obriga-a a “perder-se”, obriga-nos a deixar de idealizar esses estereótipos de
infância e de maternidade alimentados pela cultura ocidental.
Maria Lucia Medeiros costuma dialogar com essas outras possibilidades de
infância em sua obra, conforme já dissemos, posto que em seus contos, quase sempre
protagonizados por meninas – crianças e adolescentes –, traz para o centro da discussão
questões existencialistas, dramas comuns ao cotidiano e à literatura de adultos – como o
adultério, por exemplo – e faz-nos perceber e considerar como tais questões afetam a
infância e o desenvolvimento de suas personagens.
Em sentido semelhante, Clarice Lispector dialoga com um perfil plural de infância.
Os seus contos protagonizados por meninas questionam essa ideia pueril, pois trazem
personagens em situações-limite, dramas densos para uma criança e/ou com sentimentos
que raras vezes a literatura infantil trata.
“Rastos de carnaval” é o segundo conto da coletânea Felicidade clandestina,
originalmente publicado em 1971. Aqui, a narração centra-se na figura de uma garota que
almeja o carnaval tal qual a menina do conto de Medeiros almejara a viagem e que,
igualmente, se frustra quando da realização de seu desejo. O título do conto comporta
diversas leituras. Pode-se pensar em restos como o que sobra do carnaval, o final, outra

7
We do have guesses, longings, myths, fantasies, analogues. We know far more about how, under
patriarchy, female possibility has been literally massacred on the site of motherhood. Most women in history
have become mothers without choice, and an even greater number have lost their lives bringing life into the
world. (Tradução nossa do Inglês)

64
forma de se referir à quarta-feira de cinzas – momento em que se situa a narradora
quando se lembra do carnaval de sua frustração. Pode-se também, pensar em pedaços
de carnaval, ou seja, a festa sem a sua concretude, já que a menina apenas pôde se
preparar, vestir a fantasia, mas não a aproveitou, posto que sua “mãe de súbito piorou
muito de saúde” (LISPECTOR, 2016, p. 399) e ela teve de ir até a farmácia na busca de
um remédio. Pode-se ainda pensar nos restos de fantasia da amiga da protagonista, o
que permitiria que esta pudesse se vestir de flor para o festejo.
E, metaforicamente, poder-se-ia pensar nos restos de sentimentos, nas dores
causadas pelo trauma nunca esquecido daquele carnaval que fora “tão melancólico”
(LISPECTOR, 2016, p. 399). Um carnaval de menina, importante destacar que ainda que
outros carnavais tenham se sucedido no decorrer dos anos, aquele era o da infância, o
almejado, o desejado e que nunca mais voltaria.
Narrado em primeira pessoa, o conto memorialístico faz referência aos carnavais
da infância da narradora e seu desejo de participar dos festejos, do divertimento dos
outros, conforme destacamos no excerto que segue.

Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em


compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé
de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se
divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as
com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de
confete. (LISPECTOR, 2016, p. 397, grifos nossos)

Desde os primeiros parágrafos, a narradora esclarece que “falar” sobre o assunto


é difícil, mas segue fazendo-o como em uma sessão de terapia, na qual revisitar e
enfrentar o problema é parte do processo de cura, dialogando, assim, com outro ponto em
comum com a escrita de Maria Lucia Medeiros: revisitar a memória é voltar a viver uma
dor da infância.
A menina ressente-se, em certa medida, de não ser notada, de ser preterida em
meio às demandas da doença da mãe. O carnaval era um sonho de criança, um desejo e
um anseio que parecia distante, assim como a vaidade de menina que se expressava
apenas naqueles três dias.

Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente,


ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a
uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me
causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos
frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda,
minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça – eu mal
podia esperar pela saída de uma infância vulnerável – e pintava minha
boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces.
Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.
(LISPECTOR, 2016, p. 398)

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As máscaras, o anseio do carnaval e a maquiagem forte refletem o desejo da
menina de ser outra, de evadir ainda que momentaneamente da vida que levava, muito
provavelmente em função da doença da mãe. Ironicamente, será a piora do estado de
saúde dessa mãe que frustrará os seus sonhos e impossibilitará a sua concretização.
Nesse momento de suas recordações, fica claro quão importante e marcante foi
não ter podido aproveitar a festa para a qual tanto se planejara e, ainda, a mágoa que
ficou com a vida. Mágoa com o destino e não com a mãe, um dado importantíssimo que
retomaremos mais à frente.

Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No


entanto, essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um
destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel
crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom
e ruge – minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço
repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um
remédio na farmácia. (LISPECTOR, 2016, p. 399, grifos nossos)

O carnaval já não existe. Ser vista já não é uma possibilidade. Ser outra pessoa,
alheia aos problemas cotidianos se esvai quando ela precisa voltar a ser apenas a filha de
uma senhora enferma, e precisa reassumir as suas funções e deixar “a máscara”, quem
sabe, para outro carnaval. Assim como no conto de Maria Lucia Medeiros, a “verdade”
nua e crua se impõe à fantasia em que vive a protagonista.
Logo, a frustração vem como resposta a não realização dos desejos projetados
para a festa, do fato de ter engolido o próprio orgulho para vestir as sobras, os “restos” da
fantasia da amiga. Pela primeira vez, ela seria vista, ou seja, sairia do lugar de
espectadora a que estava acostumada.
Ainda nesse jogo entre ver e ser vista, a narradora conta – quase de forma
inocente, como se deixasse escapar uma informação menor – dos pudores de serem
vistas de combinação na rua. Salientemos que a amiga não fala em momento nenhum e
para alguém que almejava tanto ser vista, a situação de se destacar em meio ao carnaval,
ainda que inconscientemente, não parecesse tão absurda ou vergonhosa.

Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira


tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo,
embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia
se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas – à ideia de
uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de
oito anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha –
mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria! Quanto ao fato de minha
fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor
meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me
dava de esmola. (LISPECTOR, 2016, p. 399)

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O carnaval para a protagonista é como um evento que se apresenta, o qual ela
vê, é espectadora, mas não participa. Ao mesmo tempo tão longe e tão perto, ao toque de
seus dedos e sem uma realização concreta, representa o desejo de possuir, de fazer
parte de algo que apenas admira. A possibilidade de fazer parte, quando se apresenta, é
subitamente tirada de seu horizonte de expectativas, de suas possibilidades e o desejo de
também ser admirada morre. Não se pode desconsiderar, nesse sentido, a função do
garoto que olha para ela e a “salva”.

Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse


menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho,
grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos, de
confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem
falar. (LISPECTOR, 2016, p. 400)

O carnaval, como um espetáculo admirado, por conseguinte, aparece como uma


metáfora, a qual indica o desejo de ser notada, de mudar de função entre espectadora e
coisa admirada e o garoto como o espectador que ela tanto ansiava. Com ele, a menina
consegue encenar “o teatro” para o qual se planejara com os mínimos detalhes.
Retomemos então a figura maternal como impedimento à felicidade das filhas ou
ainda como essencial à sua infelicidade. Para além de uma análise primeira que poderia
classificar essas mães como narcisistas, é urgente uma leitura que entenda a maternidade
na materialidade das relações sociais e das cobranças por perfeição e idealização.
Elizabeth Badinter, em O amor conquistado (1985), por exemplo, discute a
idealização corrente em torno da figura maternal como supostamente a responsável
pela felicidade de suas filhas e filhos e os perigos que tal encenação (im)posta
parece esconder.

Graças à psicanálise, a mãe será promovida a "grande responsável" pela


felicidade de seu rebento. Missão terrível, que acaba de definir seu papel.
Sem dúvida, esses encargos sucessivos que sobre ela foram lançados
fizeram-se acompanhar de uma promoção da imagem da mãe. Essa
promoção, porém, dissimulava uma dupla armadilha, que será por vezes
vivida como uma alienação. Enclausurada em seu papel de mãe, a mulher
não mais poderá evitá-lo sob pena de condenação moral. Foi essa,
durante muito tempo, uma causa importante das dificuldades do trabalho
feminino. A razão também do desprezo ou da piedade pelas mulheres que
não tinham filhos, do opróbrio daquelas que não os queriam. (BADINTER,
1985, p.237)

A armadilha a que se refere Badinter (1985) assenta no fato de que ao enaltecer


sentimentos como nobreza, grandeza, e abnegação dos gestos maternais em favor da
felicidade alheia, acaba-se reduzindo a mulher à função compulsória da maternidade e
entendendo a própria maternidade como uma única forma de se realizar como mulher,
sem mencionar o fato de que isso mantém mulheres presas em um espaço doméstico.

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Em outras palavras, como se em um continumm, toda mulher devesse almejar ser mãe, e
só houvesse um modo correto de sê-lo, o qual anularia a própria personalidade desta
mulher, a fim de realizar-se pelo outro, pela felicidade do outro.
Desse modo, o que percebemos é uma categorização da maternidade que
encapsula uma série de estereótipos socialmente construídos que servem a reduzir
mulheres a uma missão/função reprodutora e cuidadora, a qual exclui outras formas de
ser mulher e mesmo de ser mãe. E como toda categorização é problemática, redutora e,
no caso da maternidade, projeta um ideal no qual não cabe, por exemplo, a sexualidade
da mãe no conto de Maria Lucia Medeiros ou mesmo a inversão de papeis quando a
protagonista de “Restos de carnaval” vê-se obrigada pelas circunstâncias a cuidar de sua
mãe e não mais ser cuidada por ela.

Fechadas nesse esquema por vozes tão autorizadas, como podiam as


mulheres escapar ao que se convencionara chamar de sua "natureza"? Ou
tentavam imitar o melhor possível o modelo imposto, reforçando com isso
sua autoridade, ou tentavam distanciar-se dele, e tinham de pagar caro por
isso. Acusada de egoísmo, de maldade, e até de desequilíbrio, àquela que
desafiava a ideologia dominante só restava assumir, mais ou menos bem,
sua "anormalidade". Ora, a anormalidade, como toda diferença, é difícil de
se viver. As mulheres submeteram-se, portanto, silenciosamente, algumas
tranquilas, outras frustradas e infelizes. (BADINTER, 1985, p. 137-138,
grifos nossos)

As autoras literárias que ora lemos nesse artigo criam personagens que
desmistificam esse ideal de mãe superprotetora, anuladas em sua personalidade e
desejos sem, com isso, colocá-las como inferiores, incompletas em sua maternidade
ou mesmo anormais, ou amando menos as filhas, apenas apresentam perfis em
desalinho com uma ideologia ainda dominante que as quer, mesmo que infelizes e/ou
frustradas, desempenhando um papel ideal de maternidade. Antes, são personagens
factíveis, frágeis, falíveis, e vão de encontro a uma pretensa “natureza” maternal,
forçando com que tanto as filhas quanto as leitoras e os leitores dos contos
confrontem-se com outras maternidades.
Importante ressaltar, por fim, que não é intencionalmente que a mãe de “Era uma
vez” expõe à filha a relação sexual – aliás, esta nem sabe que o fez –, tampouco é
intencionalmente que a mãe de “Restos de carnaval” fica doente às vésperas da festa que
a filha tanto esperava, obrigando-a a ser espectadora mais uma vez do carnaval que tanto
amava; mas os dois atos e seus desdobramentos na vida das protagonistas crianças são
modos de dar materialidade às mães como personagens femininas que dialoguem com
mulheres possíveis, com seres humanos falíveis e, que, mesmo alheio à idealização da
maternidade, são mães.
Isto posto, por serem de autoria feminina que comportem uma leitura crítica
feminista, os supracitados contos descortinam outras subjetividades, outros olhares,
colocam dramas vividos por personagens femininas verossímeis aos olhos do público

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leitor e, como salienta Susana Funck, invalidam “a premissa [...] de que qualquer coisa
especificamente feminina não pode representar a experiência humana” (FUNCK, 2016, p.
20), posto que são outras possibilidades tão universais – se é que haja algo de universal
na Literatura – quanto qualquer obra assinada por um autor canônico.

Considerações finais

“Restos de Carnaval” e “Era uma vez” são contos que recorrem ao recurso da
memória e revisitam o momento da infância de meninas em contextos distintos, com
histórias distintas, mas que se tocam na possibilidade de relatar uma infância perdida,
interrompida e brutalmente ceifada em função dos adultos que as rodeiam. Assim como
não idealizam a infância de suas protagonistas, Clarice Lispector e Maria Lucia Medeiros
não idealizam as personagens adultas, ou seja, as mães. Antes, preferem apresentar
personagens humanas e com dramas reais.
Abandonar a infância, frustrar-se e levar essa dor até a vida adulta não é
resultado de uma artimanha de antagonistas das meninas, nem de uma atitude deliberada
de suas mães, mas sim, fruto dos desdobramentos da própria vida, por isso, a
importância de ler outras possibilidades, outros perfis, outras subjetividades e, nesse
sentido, a Crítica Literária Feminista tem cumprido o papel de reler outras realidades para
além da ideia de um sujeito universal, canônico.
Em outras palavras, são contos em que as protagonistas se veem compelidas a
“abandonar” os sonhos de infância, ou pelo menos, o sonho de uma infância idílica e
protegida, tendo de direcionar-se rumo a uma prematura vida adulta e a dores que
figurarão na sua memória.
Seja o adultério da mãe, em “Era uma vez” ou a doença e o mal súbito da outra
mãe em “Restos de carnaval”, os problemas, as demandas e as necessidades da vida
adulta se apresentam às protagonistas de modo determinante, eliminando os sonhos dos
livros e dos festejos. É a realidade chocando-se e matando os devaneios pueris, os
desejos de fantasia.
Tanto em Clarice Lispector, quanto em Maria Lucia Medeiros, essa passagem da
infância à vida adulta, portanto, é marcada por um trauma, de modo quase abrupto, em
que as referidas personagens se chocam com dramas para além de suas compreensões
e contá-los, revisitá-los é, em certa medida, revivê-los. Quem sabe, curá-los.
O sonho em aproveitar o tão esperado carnaval não se sustenta até a própria
festa, visto que a menina não pode aproveitá-la em função da doença da mãe. E em “Era
uma vez”, Medeiros faz-nos ver as relações humanas pela ótica da menina que não sabe
ao certo definir o que sente ao ver a mãe em ato sexual com o tímido rapaz.
Dessa forma, retomar e aproximar vozes femininas aparentemente díspares, de
localidades e realidades distantes é importante ao exercício da crítica literária com
compromisso feminista na medida em que propõe uma revisão do cânone
majoritariamente masculino, centrado no eixo Rio-São Paulo, e expõe outras

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possibilidades textuais, outras subjetividades e rompe a ideia de uma objetividade
masculina como verdade absoluta.
A produção de Maria Lucia Medeiros e Clarice Lispector dialoga ao produzir uma
literatura centrada nas experiências femininas, mas especificamente, ao pensá-las a partir
de personagens crianças enfrentando questões pouco exploradas na literatura infantil. Por
fim, os contos corpus dessa leitura chamam a atenção ao ler o sujeito “menina/mulher” no
duplo filha/mãe com tramas que, ainda que diferentes, comportam uma aproximação
temática, dada as realidades que circundam as protagonistas para além do seu domínio e
da sua vontade.

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Recebido em: 28/06/2020 Aceito em: 28/06/2020

Referência eletrônica: VALENTE, Paulo; SANTOS, Rosana Cássia. Infâncias frustradas


e maternidades possíveis em Clarice Lispector e em Maria Lucia Medeiros, do era uma
vez aos restos de sonhos. Criação & Crítica, n. 29, p., mai. 2021. Disponível em:
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