Modernidade Urbana e Flexibilidade Tropical
Modernidade Urbana e Flexibilidade Tropical
Modernidade Urbana e Flexibilidade Tropical
A
cidade moderna é um inconstante escombros do velho burgo colonial, as feiras-li-
mosaico de territorialídades. A co- vres assistirão paulatinamente à invasão de agen-
existência de tempos, agentes e tes e práticas populares, a erodir uma fria ceno-
processos os mais díspares confere à vida metro- grafia planejada e a fermentar um ambiente mes-
politana grande diversidade e riqueza de possi- tiço e de alegre rebuliço.
bilidades. Nela, os espaços públicos são lugares Enquanto espaço público arquitetado pela
privilegiados para o embate dos diferentes inte- modernidade, a feira-livre não deixou de sofrer
resses e necessidades em jogo, pois a modernida- o assédio dos excluídos. Ao que parece, aliás,
de urbana maximiza o duelo entre os setores he- mostrou-se gradualmente receptiva aos invaso-
gemônicos e os amplos segmentos margina li7a- res, reterritorializando-os num palco privilegia-
dos: os primeiros formatam e normatizam, ao do para o exercício da extrema diversidade que
seu interesse, os espaços da vida pública; os de- caracteriza as cidades brasileiras. Tais conflitos
mais, quase sempre, se recusam a (ou são impe- de territorialidade, que têm como arena as ruas
e praças de um Rio de Janeiro que se moderniza,
SKP
didos/incapazes de) participar desta coreografia
e recriam à sua maneira a vida cotidiana, apro- são o eixo central de nossa preocupação. Antes,
priando-se' inconvenientemente dos espaços pú- algumas palavras sobre essa tal modernidade se
blicos, ali instaurando, ainda que muitas vezes fazem necessárias.
precária e brevemente, uma territorialidade alheia O conceito de modernização, quase sempre
ao projeto elitista da modernidade. atrelado ao de modernidade, se move na litera-
O presente artigo procura verificar a presen- tura geográfica com grande fluidez e diversidade
ça desta faceta de dualidade da modernidade ur- de acepções. SANTOS (1994:71) chega mesmo
bana nas feiras-livres cariocas. Criadas oficial- a sugerir que não existe uma única modernida-
mente em 1904, em pleno bojo da Reforma Pas- de, mas várias, e, portanto, existiriam moderni-
sos, elas representam a culminância de um lon- zações sucessivas. Restringindo nossa reflexão ao
go processo de intervenção do poder público âmbito da modernidade na cidade, poderíamos
sobre o comércio varejista popular, desterritori- adentrar pelo universo discursivo do urbanismo,
alizando-o brutalmente. Concebidas (assim su- onde a modernidade urbana somente começa
pomos) para simbolizar a higiene, a ordem e a com a obra de Le Corbusier e as realizações da
europeização da cidade radiosa que emerge dos Bauhaus, no pós-primeira guerra mundial, ba-
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seada sobretudo na abolição da rua (CHOAY, cionais se diluem numa paisagem inconstante.
1992:20). Neste sentido, o modelo de cidade Modernidade assim definiria este ambiente pro-
modernista em HOLSTON (1993), por exem- piciador de imensas possibilidades, enquanto a
plo, é Brasília, enquanto o Rio de Janeiro apenas modernização poderia ser concebida como a par-
conserva, no aparato conceitual do autor, as es- ticular via burguesa de lidar com esta moderni-
truturas urbanas pré-modernas. Holston, aliás, dade, resolvendo suas profundas contradições
não difere cidade moderna de cidade modernis- com drásticas reformas urbanas e investimento
ta, deixando implícita a possível condição de em melhoramentos técnicos, conforme nos
palavras sinônimas. O modernismo, enquanto aponta BARBOSA (1990:48-9), baseado em
movimento estético de amplo alcance, seria a Berman e Lefebvre. Tal modernização não se
matriz das experiências de modernização urba- detém no aspecto técnico-material, mas incor-
na. Preferimos porém concordar com HARVEY pora e realça uma face de dominação, através da
(1993:34), que situa o urbanismo modernista explícita segregação sócio-espacial e do severo
mais como conseqüência do que causa da mo- controle disciplinar no trabalho, nas vilas operá-
dernidade urbana, tomando-a como o ambiente rias e nos espaços públicos, preocupação aliás
concreto de perplexidades, que se manifesta na presente em diversos trabalhos, dos quais gosta-
experiência urbana como crise fomentadora de ríamos de dest2rar BRESCIANI (1982), ROL-
fecundas reflexões urbanísticas. Com efeito, a NIK (1988), RAGO (1985), CHALHOUB
modernidade se instala na vida urbana antes (1986) e BRITO (1991).
do advento do urbanismo de inspiração mo- Considerando-se as enormes lacunas docu-
dernista. mentais que o tema apresenta, não podemos no
Nesta linha, há uma corrente de estudiosos momento ir além de um trabalho de natureza
da história da cidade e do urbanismo onde as mais ensaística e exploratória que propriamente
noções de modernização e modernidade urbana um relato de caráter mais ou menos definitivo.
se aplicam às intervenções que diversas cidades Aproveitamos o estado incipiente da tematiza-
brasileiras sofreram a partir de meados do sécu- ção para arriscar um vôo que sugere alguns no-
lo passado, tendo seu ápice na Reforma de Pe- vos nexos. Não obstante, acreditamos que assim
reira Passos2 . A modernização conviveria com mesmo o presente trabalho se reveste do mérito
modelos urbanos pretéritos numa mesma cida- de lançar breves olhares sobre zonas até então
de, eliminando, neste caso, definições absolutas pouco iluminadas pela pesquisa acadêmica.
de cidade moderna ou pré-moderna.
A noção de modernização urbana aqui toma- A CRIAÇÃO DAS FEIRAS—LI—
da (e conseqüentemente a de cidade moderna) VRES: UM ORNAMENTO DA PE—
vai ao encontro das reflexões de BERMAN DAGOGIA CIVILIZADORA?
(1987), que as desenvolve no sentido da con- No momento em que Pereira Passos assume
cepção marxista de moderna sociedade burgue- a gestão da cidade, esta apresentava um cenário
sa. Um quadro alarmante composto por extre- complexo no tocante à estruturação e distribui-
mos contrastes materiais de condições de vida, ção espacial do pequeno comércio, herdado de
envolvendo a experiência inédita das multidões, séculos de um longo passado colonial. Quando
a laicização / profanação do sagrado, confluindo o prefeito inicia seu tão famoso bota-abaixo, re-
num ambiente urbano onde as referências tradi- modelando a área central do Rio de Janeiro não
2 Esta é a posição majoritária dos estudiosos que participam dos encontros periódicos sobre história urbana
organizados pela ANPUR (ver, por exemplo, FERNANDES & GOMES, 1992). Este nosso trabalho
compartilha desta posição.
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apenas na fisionomia, mas sobretudo nas práti- de Janeiro. Por outro lado, BENCHIMOL
cas sociais (expulsando os deselegantes, arcaicos (1990: 280-5) apresenta todo um conjunto de
e promíscuos usos populares), os espaçós públi- intervenções públicas radicais neste universo,
cos do centro da cidade estão majoritariamente eliminando das áreas centrais, confinando e re-
animados em seu cotidiano pelas formas mais gulamentando crescentemente tais atividades,
rudimentares de mercadejar (CARVALHO, sobretudo no contexto da Reforma Passos, sob
1994). Entende-se facilmente a razão pela qual alegações de defesa da higiene e circulação pú-
não são poucos os autores de época que compa- blicas. Consultas aos códices de abastecimento
ram o Rio de Janeiro a uma cidade árabe (BAR- do Arquivo da Cidade nos permitem afirmar que
BOSA, 1990). PARGA (1996:16-7), em seu es- desde pelo menos 1880 já se esboça este conjun-
tudo sobre o pequeno comércio no Rio de Ja- to de medidas de restrição. Contudo, somente
neiro do século XIX, afirma que os vendedores na gestão remodeladora da cidade é que estas
ambulantes "estendiam-se por todas as ruas e serão aprimoradas e mais efetivamente cumpri-
caminhos da cidade, (...) desde os aguadeiros até das. Também os velhos quiosques, pontos de
os mascates que vagavam pelos logradouros com concentração de trabalhadores pobres, foram
suas malas repletas de quinquilharias e gritos reconhecidamente alvo fatal da fúria civilizado-
escandalosos característicos". ra de Pereira Passos.
Dada a natureza informal destas atividades, Merecem ainda destaque as populares qui-
que resulta em escassa documentação, dificil tandas (do quimbundo kitanda: mercado), re-
seria tentar mensurar e mapear este duplo con- gularmente presentes na cidade brasileira desde
tingente de mercadores, entre os ambulantes início do período colonial. Constituem aglo-
(aparentemente um grupo muito mais numero- merações de negras ao ar livre, acocoradas ou
so)3 e aqueles assentados precariamente em pon-
tos fixos nas vias públicas, exercendo seu oficio
dispondo de tabuleiros, situadas em pontos
preestabelecidos, para a venda de produtos da
E
1
de forma relativamente sedentária. Debret, Ru- pequena lavoura, da pesca e da indústria domés-
gendas e Chamberlain, para citar apenas alguns, tica. GUIMARÃES (1968), PARGA (1996),
deixaram-nos registros diversos desta modalida- BRUNO (1953) e muitos outros nos deixam
de de comércio através de aquarelas, estampas e vagas referências a esta modalidade de varejo que,
outras formas de expressão. Sabemos pois de sua na aparência de um arremêdo de feira (GUIMA-
existência notória e difusa, mas não podemos ir RÃES,. 1968:21), represente talvez a principal
muito além da mera constatação do fato.'. forma precursora das feiras-livres do início do
Obras como as de João do Rio (1991) e ED- século XX. No final do século XVIII, o Rio de
MUNDO (1938) nos remetem a um quadro Janeiro contava com o significativo conjunto de
panorâmico e pitoresco da heterogeneidade das 181 barracas de quitandeiras (BARRETO FI-
formas de comércio ambulante na cidade do Rio LHO & LIMA, apud AZEVEDO, 1992:65).
3 Saint Hilaire registra que na cidade do Rio de Janeiro predominam o escravos itinerantes, enquanto na cidade
de São Paulo são mais comuns as negras quitandeiras acocoradas nas ruas (GUIMARÃES, 1968:22).
4 Isto explica a opção de autores como PARGA (1996) em trabalhar quase estritamente com as formas de
pequeno comércio oficializadas e em estabelecimentos fixos, que figuram nos arquivos públicos e nos
almanaques. LAEMMERT (1990) salienta que, apesar de a maior parte das atividades cotidianas fundamentais
para o funcionamento das cidades brasileiras no século XIX (abastecimento alimentar e de água, iluminação,
transporte, escoamento de dejetos e limpeza urbana) ser desempenhada por negros escravos, são raros os
estudos que aprofundam as relações entre o escravismo e a estrutura e funcionamento de nossas cidades.
Consideramos que tal desconhecimento atinge não apenas as atividades desempenhadas por escravos, mas o
conjunto daquelas que se realizam em condições precárias, regidas por certa informalidade ou clandestinidade.
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O processo de territorialização destas moda- cana (..) Surge uma vasta legislação que
lidades populares de comércio se consumou atra- demanda documentos comprobatórios,
vés das muitas décadas de uma urbanização ace- atestados de visitas dos fiscais, regras de
lerada, porém baseada em muitos aspectos no salubridade(..).
modelo colonial. A manutenção de um traçado Expulsos os quiosques, as kitandas ou feiras
aparentemente irregular, próprio da colonização africanas, os ambulantes incompatibilizados com
lusitana' , repleto de ruas estreitas e dotado de os novos padrões de civilidade, enfim, todo um
poucos espaços amplos, resultou na configura- conjunto de meios de sobrevivência popular, o
ção de uma trama congestionada e ruidosa de que adveio em seu lugar?
pontos de comercialização varejista. Por outro Para substituir as tradicionais formas de dis-
lado, a presença numerosa de negros, e posteri- tribuição varejista de alimentos, a prefeitura do
ormente de grupos de imigrantes estrangeiros, Distrito Federal decidiu pela multiplicação dos
num quadro de baixa oferta de empregos, im- mercados cobertos, iniciativa que remonta a
puseram à cidade diferentes formas de compor- aproximadamente 1870, mas somente então ga-
tamento territorial na luta cotidiana pela sobre- nha efetivo incentivo governamental, incluindo
vivência, de forma tal que esta parece ter sido, a doação de terrenos públicos para sua constru-
na virada do século, um fantástico laboratório ção e exploração por empresas privadas6 . O ca-
de territorialidades populares. Laboratório este pital internacional também se utilizou desta prer-
que sofreu um choque desterritorializante com rogativa (BENCHIMOL, 1990:283-4). Tais
a Reforma Passos. Nas palavras de MOURA medidas representam não apenas a possibilidade
(1995:70): maior de fiscalização pública e controle das ati-
Com a reforma da cidade, são intensi- vidades varejistas agora confinadas em edificios
-1 ficadas todas as firmas de arrernAção para dotados de portões como uma fortificação. Sig-
suplementar o financiamento das obras nificam também mais um passo no sentido de
públicas, passando a se exigir com mais superar o tão criticado aspecto árabe da cida-
rigor as licenças para profissões autônomas de e remover da paisagem o passado escravis-
e para o pequeno comércio, o que atingi- ta-colonial, pela redução, afastamento ou mes-
ria em cheio o comercio paralelo dos ne- mo dissolução das aglomerações de negras qui-
gros. Essa taxação visava implicitamente tandeiras.
a acabar, ou pelo menos afastar dó Cen- Uma outra forma de comércio estimulada,
tro, essa face da cidade que lhe dava, em aliás, concebida, pela moderna administração da
algumas partes, o aspecto de uma feira afri- cidade foi a feira-livre, criada em 13/10/1904.
5 A clássica comparação com o padrão tabuleiro de xadrez da América Espanhola é freqüente na LITERATURA
(REIS FILHO, GEIGER, AZEVEDO), quase sempre pautada na obra fundamental de HOLANDA (1948),
que atribuiu ao desleixo e descaso dos lusitanos a culpa pela suposta ausência de regulamentações urbanísticas
no Brasil colonial. ABREU (1996), baseado em ampla e atualizada revisão bibliográfica, apresenta uma
reinterpretação do problema, salientando que não faltou na empresa colonial portuguesa um amplo controle
sobre a vida urbana, sendo aliás este o principal motivo da fisionomia irregular de nossas cidades.
6 O período que se estende aproximadamente de 1850 a 1930 assinala no Brasil a fase predominante de
construção de mercados cobertos. Posteriormente, tal iniciativa foi considerada ultrapassada, por convincentes
preocupações de caráter sanitário. No Rio de Janeiro ainda encontramos resquícios desta época, como por
exemplo o Mercado São José, em Laranjeiras. Várias outras cidades conservam estas estruturas hoje reutilizadas
para fins de entretenimento e venda de produtos regionais típicos, como o Mercado Modelo (Salvador), os de
Porto Alegre, Belo Horizonte e Florianópolis, entre outros. Muitos foram demolidos, como os da Glória e da
Harmonia, no Rio de Janeiro. Outros, como os de Recife, perduram ainda com suas funções originais,
atendendo sobretudo aos setores pobres.
7 Supomos que tal adjetivação se explique pelo franco acesso de sitiantes e outros produtores da zona suburbana,
que, com a criação das feiras-livres, passaram a contar com uma forma organizada e legal de expor suas
mercadorias. Tal hipótese deriva da pista deixada por BARRETO (1953:11-12), que afirmou possuir a feira-
livre um caráter profundamente socialista, pois ela visa a eliminar o intermediário entre o produtor e o
consumidor. Tal 'acessibilidade franca poderia então justificar a denominação oficial de feiras ou mercados
livres. Outra hipótese, menos plausível porém não descartada, é o aspecto deste novo mercado, que se realiza
a céu aberto, ao ar livre, diferente das estruturas cobertas que predominam na época.
8 BENCHIMOL (1990), com seu estudo bastante minucioso, e, mais recentemente, PEREIRA (1996), em
seu belo trabalho, pretendem percorrer os mais variados aspectos da Reforma Passos, sem entretanto mencionar
a feira-livre. Também ABREU (1987), ROCHA (1983), CARVALHO (1989) e BARBOSA (1990), em obras
de maior alcance temático, omitem a existência da feira-livre.
9 Cabe informar que as revoltas populares contra a carestia dos alimentos, que culminaram com a Insurreição
Anarquista de 1918, formaram papel fundamental no processo. Por outro lado, a conjuntura da guerra majorou
os preços dos produtos alimentícios no mercado internacional, desviando para a exportação parte de nossa
produção interna, resultando, conseqüentemente, em redução da oferta e encarecimento dos produtos.
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ra elitista do autor, revelam sempre "algo de amplo de apropriações diversas, em reação ao
imaginoso entre os rudes" (SILVA, 1936:8). Cita modelo elitista uniformizante, que se revela in-
diversas piadas que considera obscenas (emiti- compatível com uma sociedade culturalmente
das principalmente por lusitanos, "que adoram heterogênea e marcada por fortes contradições
as filhas coloridas do País) e que são dirigidas às de classe. PEREIRA (1996) nos traz exemplos
moças morenas (nunca lhes atribui a cor negra), formidáveis:
criadas (empregadas domésticas) a circular em
Toda a população tem a esperança que
ofício pela feira-livre, transportando sacolas.
a Avenida (Central) concorra para modi-
Toma tais momentos como transgressões, o que
ficar certos costumes; mas se não se evitar
nos sugere a referência possível a um ambiente
desde já que eles penetrem, será depois
pretérito predominantemente austero no tempo
muito 4ficil corrigi-los. Já hontem os ven-
de Pereira Passos. Cita ainda a presença de uni
dedores fixos de jornaes assentaram acam-
violeiro nordestino, sentado sobre um caixote de
pamento ao pé dos postes da iluminação
madeira, a entoar "trovas brejeiras, aglomerando
electrica e instalaram o seu caixãozinho à
pessoas de mesma categoria, rindo e emitindo
guisa de tamborete. Amanhã ou depois o
opiniões maliciosas" (op.cit.p.36). Neste momen-
poste estará amarrado a cordas e cordões
to, passa um bonde (estamos na praça Sezerde-
enfeitado de todos os jornaes da cidade.
llo Correa, em Copacabana) e um "moreno" pen-
Os postes vão ser o centro desse mercado
durado no estribo grita para a turma: "Vamos
original. (Jornal do Commercio, 1905,
ver, negrada!".
apud PEREIRA, 1996:199)
A cena revela não apenas a presença de ele-
mentos populares no cotidiano de uma feira-li- A Avenida Central, eixo monumental da Re-
36 no bairro mais sofisticado da cidade de en- forma Passos, o nosso eminente boulevard, via-
tão. Mostra também a possibilidade destes ele- se já em 1905 sob o risco indesejado de conta-
mentos re21 iza rem encontros festivos no interi- minar sua nobreza e elegância com as improvi-
or da feira, exercendo espontaneamente formas sadas estratégias populares de sobrevivência.
de sociabilidade que possivelmente não seriam Alheios ao projeto civilizador da avenida, os ele-
admitidas no período de Pereira Passos, marca- mentos marginalizados apenas buscam cotidia-
do pelo conhecido elitismo segregador. Consi- namente o seu sustento material. Os vendedo-
derando-se como válida tal hipótese, estaríamos res de jornal vêem naquela maravilhosa e larga
diante de um processo de incorporação à feira- via a possibilidade de exercer com sucesso seu
livre de práticas comportamentais distintas da- ofício, sem talvez compreender o quanto a sua
quelas para as quais foi concebida. Práticas que presença comprometia a cenografia do lugar. O
apontam para o exercício de formas de sociabili- trecho acima demonstra com clareza a expecta-
dade alheias ao projeto civilizador vigente e que, tiva pedagógica do projeto da avenida, em ree-
de certa forma, resgatam um pouco do ambien- ducar os costumes da população. Vejamos outro
te informal das velhas quitandas e dos quiosques. exemplo similar, decorrido no ano seguinte:
Tal movimento de desvirtuamento dos ide- Num dos últimos domingos vi passar
ais civilizadores da belle e'poque certamente não pela Avenida Central um carroção atulha-
estaria circunscrito unicamente ao universo da do de romeiros da Penha; e naquele amplo
feira-livre. Diversos outros espaços arquitetados boulevard esplêndido (..)o encontro do
pelo projeto de modernização do Distrito Fede- velho veículo, em que os devotos bêbados
ral sofreram alterações significativas quanto ao urravam, me deu a impressão de um mons-
uso previsto. Isto significa um movimento mais truoso anacronismo: era a ressurreição da
10 BENCHIMOL assinala o amplo leque de segmentos do capital envolvidos na Reforma Passos, "desde o
capital bancário internacional, de onde provieram os empréstimos para o financiamento da reforma,
passando pelas grandes companhias empreiteiras, especuladores e construtores, até as diversas frações
do capital comercial, financeiro e industrial que puderam permanecer ou vieram se instalar nas áreas
remodeladas" (op. cit. p. 3 18-9).
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