Itinerário Oracional, Vida Ascética e Crescimento Espiritual em Teresa de Jesús

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Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

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Vieira Ferreira
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Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

Itinerário oracional, vida ascética e


crescimento espiritual em
Teresa de Jesús

Rui Ferreira

I. Introdução

O presente estudo é o nosso “trabalho final” relativo ao Seminário


Temático de Teologia sobre a “Espiritualidade e mística em Santa Teresa
de Ávila nos quinhentos anos do seu nascimento”1. O seu principal objec-
tivo é aprofundar o tema que estudámos e apresentámos no decurso deste
seminário investigação – “Vida Ascética II” em As Moradas ou Castelo
Interior2 III-IV –, articulando-o com, pelo menos, quatro temas apresentados
por outros colegas.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

1
Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa – Centro Regional
do Porto. Tanto o Seminário, como o trabalho foram orientados pelo professor Alexandre
Freire Duarte.
2
Cf. Teresa de Jesús – As Moradas, in Idem – Obras Completas. Tradução de Vasco
Dias Ribeiro. Revisão de Texto, Introdução e notas de Tomás Álvarez, Paço de Arcos: Edições
Carmelo, 2000, 517-689. De ora em diante, citaremos As Moradas simplesmente como M.

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Ao longo do semestre, fomos adquirindo uma familiaridade e uma


proximidade crescente em relação a Teresa de Jesús. A sua vida, a sua obra e,
principalmente, o seu testemunho geralmente exercem um enorme fascínio
e atracção pelos que dela se aproximam (pelo menos, dificilmente alguém
fica indiferente). Como tal, no progressivo descobrimento da sua pessoa e
da sua obra surgiram várias ideias e hipóteses de investigação. Apesar do
entusiasmo crescente, admitimos que ficámos abismados com o universo
teresiano, isto é, com a infindável quantidade de estudos sobre Teresa de
Jesús e sobre a sua obra, provenientes dos mais variados sectores. Como
tal, rapidamente percebemos que o nosso trabalho seria, necessariamente,
superficial.
No entanto, desde o início que o itinerário de vida de Teresa de Jesús
suscitou o nosso interesse, designadamente, a sua determinação deter-
minada em crescer espiritualmente e, em continuamente, se converter
cada vez mais a Deus. De igual modo, também o seu percurso oracional
chamou a nossa atenção, especialmente, o facto do mesmo se basear numa
intensa relação de amizade com Deus. Outro aspecto que despertou a nossa
curiosidade foi o carácter mistagógico na vida e nos escritos de Teresa, na
medida, em que, a experiência por ela vivida, foi igualmente transmitida
com mestria, em ordem a conduzir o maior número de irmãos e irmãs para
Deus. Por último, descobrimos em Teresa uma harmoniosa conciliação
entre mística e missão, prova da autenticidade da sua relação com Deus.
Qualquer um dos tópicos anteriormente referidos daria matéria sufi-
ciente para uma tese. Porém, perante os limites que se nos colocam e por
uma questão de pragmatismo metodológico, focalizaremos o nosso estudo
no itinerário oracional teresiano, mais concretamente, na vida ascética e
na passagem da oração predominantemente ascética para a oração pre-
dominantemente mística, com especial incidência, nas quartas moradas
do Castelo Interior. É arriscado – e impossível – separar a oração da vida.
Como tal, sempre que seja possível e se justifique, faremos alusão à relação
entre oração e missão, assim como, à mistagogia teresiana.
Pela sua pertinência e relação com o nosso trabalho, decidimos incluir

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Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

os seguintes temas: 1) “Os Fundamentos de Teresa”, em Livro da Vida3


1-10, devido ao seu interesse para a compreensão do seu itinerário vital e
da sua maturação espiritual; 2) “Os Inícios da Oração Teresa De Jesús” (V
11-17), devido à sua relação com o itinerário oracional e com a mistagogia;
3) “A Oração Mais Avançada e a Humanidade de Cristo” (V 18-22), pelos
mesmos motivos que o anterior; 4) “As Virtudes Evangélicas e Noções
sobre a Oração e Pai-Nosso” em Caminho de Perfeição4 4-24, por causa
da sua pertinência para a relação entre oração e vida; 5) finalmente, a “Vida
Ascética I” (M I-II), pela sua ligação imediata com o nosso tema e pela
sua relevância para se compreender a vida predominantemente ascética.
Para cumprir os objectivos propostos, debruçar-nos-emos sobre alguns
dos escritos teresianos relevantes para as questões levantadas. A partir da sua
leitura e análise, procederemos ao seu comentário, em ordem a chegarmos a
uma síntese. Sempre que necessário, recorreremos a obras e autores que nos
ajudem a desenvolver, enriquecer e clarificar a nossa investigação pessoal.
O trabalho apresentará a seguinte estrutura: primeiro, apresentaremos
uma súmula biográfica de Teresa de Jesús. De seguida, realizaremos um
enquadramento em que procuraremos descortinar alguns pontos de conver-
gência entre o itinerário oracional teresiano, a importância da vida ascética
na sua maturação espiritual e a redacção das Moradas. Posteriormente,
analisaremos os temas escolhidos, por ordem cronológica, de modo a res-
peitar o itinerário vital e oracional da autora. Na conclusão, daremos conta
daquilo que a nossa investigação permitiu concluir e teceremos algumas
considerações finais.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Cf. Teresa de Jesús – Livro da Vida, in Idem – Obras Completas, 25-355. O Livro
3

da Vida será citado simplesmente como V.


4
Cf. Teresa de Jesús – Caminho de Perfeição, in Idem – Obras Completas, 357-515.
O Caminho de Perfeição será citado simplesmente como C.

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II. Itinerário de vida de Teresa de Jesús: alguns dados biográficos

Teresa Sánchez de Cepeda y Ahumada nasceu a 28 de Março de 1515,


numa quarta-feira, aos primeiros alvores do dia5. Foi a única filha de sete
irmãos varões – seu pai tinha já um filho e uma filha do casamento ante-
rior – muito ligada ao pai e à mãe, ao irmão Rodrigo, ao seu tio paterno
Pedro, e ao seu primo, filho de outro tio paterno: Francisco6. Após a morte
prematura da mãe, com apenas treze anos, pediu à Virgem Maria que a
substituísse: “supliquei-lhe, com muitas lágrimas, que fosse minha Mãe”
(V 1,7). Começou nesta altura a ler obras de cavalaria e a ter preocupações
mundanas como qualquer jovem da sua idade (cf. V 2,1-2). Na adolescên-
cia, “preencheu a sua orfandade com a companhia de amigos e amigas que
arrefeceram os seus fervores da infância” e experimenta os seus “primeiros
amores”7 (cf. V 2,3-4). O pai decidiu, por isso, interná-la no convento de
agostinhas em Ávila (cf. V 2,6).
Em Santa Maria da Graça, despertou a vocação de Teresa para vida
religiosa e começou um período de lutas interiores, caraterístico da dinâmica
vocacional (cf. V 3). Após a leitura das Cartas de São Jerónimo (cf. V 3,7),
ganhou coragem e fugiu da casa paterna para professar como carmelita no
mosteiro da Encarnação de Ávila com vinte anos, onde encontrou outro
mundo não tão santo quanto sonhara. Viviam lá quase 200 monjas, segun-
do a regra carmelita mitigada. À semelhança de outras jovens fidalgas,
Teresa pôde conservar os seus apelidos. A clausura era pouco observada,

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Cf. Auclair, Marcelle – Santa Teresa de Ávila: a dama errante de Deus. 3ª ed.,
5

Braga: Livraria Apostolado da Imprensa, 1990, 13.


6
Cf. Kristeva, Julia – “La pasión según Teresa de Ávila”, in Quaderns de la
Mediterrània 12 (2009), 186.
7
Maroto, Daniel de Pablo – “Santa Teresa de Jesus. Breve perfil”. In Livro do
peregrino – V centenário de Santa Teresa de Jesus 1515-2015. Inspirado no “guía del
peregrino” cedido pela comissão de preparação do «V Centenario del nacimiento de Santa
Teresa de Jesús», Ávila, 2014, 8.

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Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

muitas monjas nobres tinham criadas e existiam classes sociais: nobres e


plebeias, etc…8.
Entretanto, Teresa adoece e vê-se obrigada a abandonar o mosteiro
(cf. V 4,5). Em Hortigosa, lê o Tercer Abecedario Espiritual de Francisco
de Osuna – que lhe fornece um método – e Morais em Job de São Gre-
gório Magno. Entregue a uma curandeira, a sua saúde piora; Teresa quase
sucumbe, passando quatro dias aparentemente morta (cf. V 5,9; 6,1), o que
lhe deixou sequelas para o resto da vida. Esteve cerca de quatro anos quase
paralisada na enfermaria da Encarnação (1539-1542; cf. V 6,2). Segundo
a própria, por devoção e intercessão de São José, obteve a cura (cf. V 6,6-
8). No seu itinerário vocacional, o diálogo com um sacerdote tíbio fê-la
perceber que a sua vocação não passaria somente por ser monja.
Teresa inicia então uma nova luta interior: viver uma vida entre o amor
de Deus e o amor do mundo (cf. V 7,17; 8,2-3)9. Deus triunfa com uma con-
versão em dois actos: primeiro, diante duma imagem de um “Cristo muito
chagado” (cf. V 9,1) e através da leitura das Confissões de Santo Agostinho
(cf. V 9,7-8), e a definitiva, por um dom do Espírito Santo, que lhe deu a
capacidade de amar sem apegos nem dependências, numa plena liberdade
interior (1556)10. Este voltar-se para Deus abriu Teresa às experiências
místicas e “preparou-a para as suas duas grandes e importantes obras”: ser
fundadora da reforma da Ordem Carmo e ser uma escritora incontornável
em espiritualidade e mística cristã11.
A reforma teve início com a fundação do convento de São José de
Ávila (24 de Agosto de 1562) e continuou pelos seus últimos vinte anos de

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Cf. Ibidem.
8

“Por uma parte, me chamava Deus; por outra, eu seguia o mundo. Davam-me grande
9

contento todas as coisas de Deus; traziam-me atada as do mundo. (…) queria juntar estes
dois contrários, tão inimigos um do outro (…) Passei assim muitos anos” (V 7,17).
10
Cf. Maroto, Daniel de Pablo – “Santa Teresa de Jesus. Breve perfil”, 9.
11
Cf. Ibidem.

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vida (1562-1582), terminando em Burgos. Foi um empreendimento notável,


principalmente à época, para uma mulher, que se tornou inclusivamente
reformadora de homens. Às dezassete fundações de conventos femini-
nos, devemos adicionar quinze de conventos dos frades descalços, com
a colaboração de João da Cruz (1568-1581)12. Com determinação, Teresa
superou-se, superando todas as adversidades. “Morreu entre as nove e as
dez horas da noite, numa quinta-feira, dia de São Francisco de Assis, de
1582, em Alba de Tormes”13.

III. Itinerário oracional, ascese, maturação espiritual e Moradas

No presente enquadramento, pretendemos rever possíveis relaciona-


mentos entre o itinerário vital (e oracional) de Teresa de Jesús, a importância
da vida ascética no seu percurso de maturação espiritual e a redacção d’As
Moradas. Na mensagem dirigida ao Bispo de Ávila, por ocasião do quinto
centenário do nascimento de Teresa, o Papa Francisco indicou a imagem do
caminho como uma nota dominante e definidora da identidade de Teresa:

“A imagem do caminho pode resumir muito bem a lição da sua vida e da


sua obra. Teresa entendia a vida como um caminho de perfeição, ao longo
do qual Deus conduz o homem, de morada em morada, até chegar a Ele e,
ao mesmo tempo, põe-no a caminho dos outros homens”14.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

12
Cf. Ibidem, 9-10.
13
Ibidem, 10-11.
14
Francisco – Mensagem do Papa Francisco por ocasião do quinto centenário do
nascimento de Teresa de Ávila (Vaticano, 15 de Outubro de 2014). In http://w2.vatican.va/
content/francesco/pt/messages/pont-messages/2014/documents/papa-francesco_20141015_
messaggio-500-teresa-avila.html (consultado em 27-03-2015 18:40). Na Mensagem do Papa
Francisco, podemos vislumbrar, desde logo, a dupla dimensão da mística: 1) a vertical,
relacionamento com Deus; 2) e, a horizontal, em direcção ao próximo. Quem origina ambos
os movimentos é Deus.

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Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

Tendo em conta a dimensão “andarilha” de Teresa, as Moradas15


podem, ao nível literário, ser consideradas como a meta de chegada da sua
peregrinação. Segundo Tomás Álvarez, elas constituem a “lição magistral”
de Teresa de Jesús, composta na sua fase de maturidade espiritual. Comple-
tando as obras anteriores – Vida e Caminho de Perfeição – apontam para a
plenitude da vida cristã e constituem um tratado de oração e de vida espi-
ritual, entrelaçado com autobiografia, dirigido às monjas e a todos quantos
desejam alcançar uma profunda união com Deus. Após doze anos de fortes
experiências e da redacção de Vida, Teresa ganhou uma nova compreensão
do seu itinerário vital e, portanto, uma capacidade reforçada para elaborar
esta síntese teológica16.
Mas em que consiste mais concretamente o crescimento espiritual? E
qual a sua relação com a vida de oração?
Por exemplo, José-Damián Gaitán associa o crescimento espiritual
com a maturidade espiritual, porque, na sua opinião, o termo maturidade
– ou maturação – expressa mais adequadamente a dinâmica da vida es-
piritual do que o de perfeição17. O conceito de amadurecimento aplicado
à vida espiritual, por analogia com o amadurecimento pessoal, pressupõe
que o crescimento espiritual não passa tanto pela perseguição de um ideal
de perfeição em si mesmo; o amadurecimento pode passar inclusive pelo
reconhecimento e pela aceitação dos próprios limites e imperfeições18, em
vista à sua integração na própria vida espiritual.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

15
Excepto indicação em contrário, neste enquadramento, o que dizemos sobre
As Moradas é inspirado na introdução de T. Álvarez a esta obra. Cf. Álvarez, Tomás –
“Introdução às Moradas”. In Teresa de Jesús – Obras Completas, 519-527.
16
“E, ainda que em outras coisas que escrevi, o Senhor me tenha dado algo a entender,
creio que algumas não as tinha entendido como de então para cá, em especial as mais
dificultosas” (M I 2,7).
17
Cf. Gaitán, José-Damián – “Crecimiento espiritual y ascesis”, in Teresianum, 52
I/II (2001), 777-787.
18
Cf. Ibidem, 778.

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Como tal, Gaitán nota que já João da Cruz prevenia para os perigos de
nos prendermos em demasia a esquemas rígidos que concebem o caminho ou
o progresso espiritual como uma busca do ideal, em termos de um antes e de
um depois19. Na realidade, muitas vezes, acontece que uma etapa que já se
julgava ultrapassada volta a suceder a um outro nível20. Neste sentido, seria
preferível afirmar que não existe um momento único na iniciação espiritual,
mas sim vários momentos de iniciação e reiniciação em níveis distintos,
segundo o ritmo próprio de cada um21. Assim, numa dinâmica vivencial de
crises e superação das mesmas, de modo análogo ao que acontece com o
desenvolvimento psicológico, a vida espiritual vai-se maturando22.
Sobre o conceito de maturidade, este autor considera que ele não
diz respeito apenas ao momento final ideal da evolução da pessoa; nem
se refere somente à posse das características mínimas, segundo as quais
alguém pode ser considerado uma pessoa madura23. A maturidade diz
respeito ao grau de evolução considerado adequado a uma dada pessoa,
segundo a etapa da vida em que essa mesma pessoa se encontra24. Gaitán
considera ainda que a maturidade nunca chega a ficar consolidada de uma
vez para sempre. Pode até acontecer que alguém que já tinha atingido um
certo grau de maturidade o perca25. Finalmente, defende que para se viver
esta maturidade é exigida uma contínua tensão ascética ao longo de todo
o caminho espiritual, sendo, por isso, preferível falar de um processo de
maturação do que de uma maturidade já acabada26.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

19
Cf. Ibidem, 782-783.
20
Cf. Ibidem, 783.
21
Cf. Ibidem, 783.
22
Cf. Ibidem, 784-785.
23
Cf. Ibidem, 785-786.
24
Cf. Ibidem, 786.
25
Cf. Ibidem, 786.
26
Cf. Ibidem, 786.

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Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

Entre as várias perspectivas possíveis, salientamos também a que en-


cara o crescimento espiritual como “descoberta”, discernimento e realização
da nossa vocação. Neste âmbito, a vocação pode ser vista como o caminho
para a autenticidade, para aquilo a que Deus me chama, para a minha vo-
cação pessoal, em suma, um caminho em direcção ao “eu” verdadeiro. De
acordo com Vasco Pinto de Magalhães, “vocação é aquilo que eu quero,
depois de tirados os obstáculos, à luz do Espírito”27. No fundo, vocação
é aquilo que verdadeiramente quero – mesmo sem o saber – porque, na
verdade, é aquilo que Deus quer para mim. É ser quem realmente sou. É o
caminho para a autenticidade.
Segundo James Martin, em New Seeds of Contemplation, Thomas
Merton afirmou que: “para mim, ser santo, significa ser quem sou. Portanto,
a questão da santidade e da salvação [a plenitude da vocação cristã] é, de
facto, a questão de descobrir quem sou e de descobrir o meu verdadeiro
eu”28. “Só quando me abro à graça de tirar os obstáculos do meu «eu», a
semente que lá está pode surgir e florescer e mostrar-me quem sou. Aquilo
que Eu Sou é expressão da vontade de Deus em mim”29. Podemos ler a
vida de Teresa de Jesús neste sentido, ou seja, enquanto caminho para a sua
verdadeira vocação, para a autenticidade, para o seu eu verdadeiro, isto é,
para descobrir e realizar a vontade de Deus para si. Quando a descobriu,
procurou com determinada determinação pô-la em prática.
Por seu lado, o itinerário oracional, à semelhança do crescimento
e amadurecimento espiritual, pode ser descrito como um caminho feito
de “flutuações, retrocessos e avanços, uns perceptíveis outros não, num

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Magalhães, Vasco Pinto de – Vocação e vocações pessoais. 2ª ed., Braga:


27

Apostolado da Oração, 2005, 47.


28
Martin, James – Torna-te aquilo que és: da imitação à autenticidade. O verdadeiro
eu em Thomas Merton e outros santos contemporâneos. Tradução de Maria do Rosário
Pernas, Prior Velho: Paulinas, 2009, 7.
29
Magalhães, Vasco Pinto de – Vocação e vocações pessoais, 48.

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constante recomeço e aprofundamento”30. Teresa percorreu o caminho


da oração como meio de aprofundamento da sua amizade com Deus. Nas
Moradas, Teresa “apresenta-nos um caminho para chegar a essa morada
«central» e «principal», «onde se passa as coisas mais secretas entre Deus
e o homem», que é a transformação deste em Deus”31. “Precisamente a
oração para Teresa está sujeita a um processo, é um caminho, se quereis,
uma história de amizade, que culmina na oração de união”32.
O tema central das Moradas é a vida espiritual, compreendida como
mistério do homem (capax Dei) e do seu relacionamento com Deus (ca-
pax hominis) que nele habita. Estruturalmente, as três primeiras moradas
ocupam-se da vida ascética e as três últimas da vida mística. A morada
intermédia, a quarta, faz a ponte entre a vida predominantemente ascética
e a vida predominantemente mística.
As Moradas resultam numa interpretação do mistério da vida cristã
com as seguintes características: a) possuem uma base antropológica,
segundo a qual é afirmada a dignidade do homem, que no seu interior pos-
sui uma alma capaz de Deus; no núcleo da alma, está o espírito, sede do
Espírito e da Trindade; b) compreendem uma fase cristológica assente na
plenitude do mistério pascal e na “cristificação”; c) culminam num ponto
de chegada Trinitário baseado numa experiência profunda de Deus que,
pela Sua presença, eleva o homem em favor dos outros e da Sua Igreja.
Esta obra apresenta, como tal, uma dinâmica de interiorização que
paradoxalmente conduz a um descentramento e a um transcender de si
mesmo (para o outro e no Outro)33. O ponto de partida teresiano é a pre-

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Duarte de Almeida, A. – O erguer das nossas mãos vazias. Coimbra: Gráfica de


30

Coimbra, 1989, 300.


31
Vechina, Jeremias Carlos – “A novidade teresiana da oração”, in Revista de
Espiritualidade, 86 (2014), 116.
32
Ibidem, 116.
33
“«Moradas» são, na linguagem de Santa Teresa, os diferentes modos de viver do
homem em relação a Deus. (…) Assim, a oração é concebida como um movimento de

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Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

sença de Deus no homem – no mais íntimo do seu íntimo (intimior intimo


meo34) – e o ponto de chegada é a união a Deus. A força para percorrer este
itinerário está na oração como atitude teologal, conjugada com uma vida
virtuosa: amar com determinação, ou seja, com obras.

IV. Os fundamentos (V 1-10)

Bento XVI lembrou que o Livro da Vida, uma “autobiografia espiri-


tual” de Teresa, significativamente foi intitulado Livro das Misericórdias
do Senhor35. Nele, Teresa narra o seu “percurso biográfico e espiritual,
escrito, como afirma a própria, para submeter a sua alma ao discernimento
do «Mestre dos espirituais», São João de Ávila”36. O seu principal objectivo
“é evidenciar a presença e a acção de Deus misericordioso na sua vida: por
isso, a obra cita com frequência o diálogo de oração com o Senhor. É uma
leitura que fascina, porque a santa não só narra, mas mostra que revive a
profunda experiência da sua relação com Deus”37. O texto como que pro-
longa a vivência mística.
Podemos apontar uma dupla motivação para a composição de Vida.
Por um lado, obedecer ao mandato de expor “o modo de oração” e as graças
concedidas pelo Senhor (cf. V prólogo, 1-2). Por outro lado, a necessida-
de de confessar e transmitir a acção salvífica de Deus na sua vida, para

interiorização, já que o homem pode viver na superfície ou na interioridade. O encontro


mais profundo de Deus e do homem vai realizar-se, precisamente, nesse núcleo interior do
castelo, a sétima «morada»”. Duarte de Almeida, A. – O erguer das nossas mãos vazias, 301.
34
Agostinho de Hipona – Confissões III, 6, 11. Tradução e notas de Arnaldo Espírito
Santo, João Beato e Maria Pimentel. Edição bilingue, 2ª ed., Lisboa: Imprensa Nacional-
Casa da Moeda, 2004, 100.
35
Cf. Bento XVI – Audiência Geral (Sala Paulo VI, 2 de Fevereiro de 2011). In
http://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/audiences/2011/documents/hf_ben xvi_
aud_20110202.html (consultado em 29-03-2015 21:59).
36
Cf. Ibidem.
37
Ibidem.

59
R u i F e rr e i r a

melhor a examinar, compreender e discernir38. Como tal, cruzam-se, neste


escrito, vários planos: a narração biográfica e auto-hagiográfica, que dá
“profundidade e unidade ao relato” e segue uma dimensão vertical, pois
nela intervém de forma decisiva a misericórdia do Senhor, que lhe con-
fere um ritmo e uma melodia próprias, com a qual Teresa canta as graças
místicas que lhe foram concedidas; este plano é entrecruzado com outro, o
mistagógico39, o qual explicita a importância da oração – e não só – como
meio de transformação da vida e de união com Deus40.
Em Vida, Teresa revela de modo particular a sua vocação mistagó-
gica, segundo a qual “quem penetrou na experiência da fé há-de iniciar,
acompanhar e ajudar a crescer nela quem se encomenda ao seu magistério
espiritual”41. Por outro lado, a mistagogia manifesta, em si mesma, uma
tensão missionária, pois a experiência mística impulsiona a partir e a pro-
clamar. Teresa pretende atingir um público o mais alargado possível. A
sua verdadeira intenção é revelada antes de começar a expor o quarto grau
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Cf. Álvarez, Tomás – “Introdução ao Livro da Vida”. In Teresa de Jesús – Obras


38

Completas, 27.
39
Cf. Bento XVI – Audiência Geral (Sala Paulo VI, 2 de Fevereiro de 2011).
Mistagogia é um termo grego, presente na cultura clássica, composto pela junção de
mystes (mistério) – derivado do verbo myo (cerrar os olhos e a boca) – e do verbo ago
(conduzir). Etimologicamente significa conduzir/introduzir alguém no conhecimento de
uma verdade oculta e nos ritos significativos para a mesma. No cristianismo, adquiriu
uma nova importância, pois o próprio Jesus, por meio de parábolas e símbolos, introduziu
os discípulos nos mistérios do Reino. Na Igreja Antiga, a mistagogia foi um método para
introduzir os catecúmenos nos mistérios da fé cristã. Na experiência mística, a mistagogia
adquire particular relevância como meio para uma progressiva introdução na experiência
do amor de Deus. Cf. Pesenti, G.G. – “Mistagogia”, in L. Borriello – E. Caruana – M.R.
del Genio – N. Suffi (dir.) – Dizionario di mistica. Città del Vaticano: Libreria Editrice

Vaticana, 1999, 820-823.


40
Cf. Álvarez, Tomás – “Introdução ao Livro da Vida”. In Teresa de Jesús – Obras
Completas, 28.
41
Martín Velasco, Juan – “Ser místico em situação de crise de Deus”, in Igreja e
Missão, nn. 204-206 (2007), 81.

60
Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

de oração: “a minha intenção é de engulosinar as almas com um tão sumo


bem, [não dizendo] coisa que não tenha experimentado muito” (V 18,8).
Agraciada com o dom do amor de Deus (cf. V 10,2-4), Teresa sente
a necessidade de comunicá-lo ao maior número possível de pessoas, para
as fazer entrar em intimidade com Deus que, com amor, transforma. Neste
sentido, Vida revela uma série de características próprias da linguagem
mística. Desde logo, o seu carácter experiencial e auto-referente, assim
como o difusivo e o missionário42.
Igualmente importante é a dimensão performativa, através da qual
Teresa pretende implicar os leitores, levando-os a realizar uma experiência
análoga à sua. Isto torna-se perceptível a partir do artifício literário empre-
gue por Teresa: o acentuar da sua ruindade e pecado (cf. V prólogo,1; 1,1;
4,10; 5,10; 7,1-3.9.18-19.22; 8,4.8; 9,1.8; 10,5-9; 18,4) em contraponto com
a misericórdia de Deus. Ao lermos, não podemos deixar de nos perguntar:
Teresa era mesmo tão ruim e pecadora? Não obstante a própria consciência
de pecado e desamor – própria de alguém com uma consciência fina – este
artifício é mais retórico que biográfico e serve um objectivo principal:
acentuar a total gratuidade e primazia do amor de Deus (cf. 1Jo 4,19).
Na verdade, esta técnica visa veicular a principal mensagem da autora:
a sua vida, tão ruim e miserável, foi transformada e salva pela misericórdia
do Senhor. O que Deus fez com Israel, com Madalena, com Paulo, com
Agostinho43 (e com Teresa!) … pode fazer com qualquer um. Irrompendo
na nossa existência, o Deus-Amor, pode transformá-la por completo44.
Numa época de desesperança, em que a Reforma começou a veicular uma

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

42
Cf. Duarte, Alexandre Freire – “Notas sobre a mística cristã e a sua linguagem
ferida: equívocos coevos sobre a mística”, in Theologica, 46, 1 (2011), 131-133.
43
Ver, por exemplo, V 9,7: “Nos santos que, depois de o terem sido, o Senhor voltou
para si, achava eu muito consolo, parecendo-me que neles havia de encontrar ajuda; e assim
como o Senhor lhes havia perdoado, podia fazer a mim.”
44
Recordamos aqui as palavras iniciais da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium:
“A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com

61
R u i F e rr e i r a

antropologia negativa, inserindo um princípio de incerteza na salvação, e a


Inquisição, de modo análogo, fechava e dificultava o acesso à misericórdia
salvífica de Deus, Teresa contrapõe uma antropologia optimista, assente
na misericórdia divina, porque há mais alegria no céu por um só pecador
que se arrependa do que por noventa e nove justos que não precisem de
conversão (cf. Lc 15,7).
Nos primeiros dez capítulos, Teresa narra a sua vida e conta a sua
agonia ou luta (cf. V 7,17). Teresa sentiu a pena de uma vida vivida entre
Deus e o mundo (cf. V 8,2-3). Esta batalha ganhou-a Deus. Ganhando
Deus, ganhou Teresa. O segredo da vitória esteve na oração; na oração
perseverante e fiel (cf. V 7-8). O papel da oração é (e será) sublinhado,
pois com a oração Teresa entendia melhor as suas faltas e era atraída por
Deus (cf. V 7,17). Orar é essencial, pois é “frequentar com amizade, por-
que frequentamos face a face Aquele que sabemos que nos ama (V 8,5)”45.
Neste sentido, “mais do que uma pedagogia da oração, a de Teresa é uma
verdadeira «mistagogia»: ao leitor das suas obras ensina a rezar, orando
ela mesma com ele; com efeito, frequentemente interrompe a narração ou
a exposição para irromper em oração”46.
Podemos concluir, notando que os fundamentos de Teresa colocam
em evidência a importância da oração para o crescimento e maturação
espiritual. A oração constitui o ponto de encontro que potencia a nossa
abertura à vontade de Deus e do seu plano para nós. De igual modo, só
através da oração é que a vida nova em Cristo se conseguirá sustentar e
perseverar no tempo.

Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio
interior, do isolamento” (EG 1). Francisco – Exortação Apostólica Evangelii Gaudium.
Braga: Editorial Apostolado da Oração, 2013, 5.
45
Bento XVI – Audiência Geral (Sala Paulo VI, 2 de Fevereiro de 2011).
46
Cf. Ibidem.

62
Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

V. Os inícios da oração (V 11-17)

Na continuação dos fundamentos, Teresa apresenta um tratado sobre


oração (cf. V 11-21), seguido de um “Apêndice” sobre a Humanidade de
Jesus (cf. V 22). Sabendo por experiência própria a importância da oração
perseverante e fiel, Teresa deseja partilhar a sua sabedoria para “engulosinar
as almas com um tão sumo bem” (V 18,8), porque sente grande lástima
dos que se vêem sós, sem saber o que fazer, e, por outro lado, os muitos
livros que leu explicam muito pouco (cf. V 14,7). Vendo e vivendo a oração
como uma relação de amizade entre Deus (cf. V 8,5) e o homem, na qual a
primazia é de Deus47, a autora apresenta, de forma alegórica, um itinerário
oracional em quatro graus (cf. V 11,6-7).
Alegoricamente, Teresa descreve quatro modos diferentes de regar
uma horta: 1) tirar água de um poço, à custa de grande trabalho; 2) utilizar
uma nora e alcatruzes para tirar mais água, com menos trabalho; 3) tirar
a água de um rio ou arroio, encaminhando-a directamente para a horta,
a terra fica muito mais farta, com muito menos trabalho do hortelão; 4)
finalmente vem a chuva, rega o Senhor sem trabalho nenhum nosso e é sem
comparação muito melhor48. De seguida, apresentaremos os três primeiros.

1º Grau: tirar com esforço água de um poço. Teresa fala, em primeiro


lugar, sobre aqueles que começaram a ser servos do amor, determinando-se
a seguir o caminho de oração como uma relação íntima com Aquele que
tanto nos amou49. Para tal, inspira-se na imagem de um horto, estabelecendo
uma comparação com a vida de oração. Desde logo, quem se decide a fazer
uma horta – ou jardim – tem que arrancar as ervas más e plantar as boas.
Esse trabalho fá-lo Deus50. Quando uma alma se determinou a ter oração,
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Cf. Ibidem.
47

Cf. V 11,7.
48

49
Cf. V 11,1.
50
Parece-nos que, com esta afirmação, Teresa indica a primazia do dom de Deus e a
sua presença desde o início, como veremos mais adiante.

63
R u i F e rr e i r a

este trabalho já está iniciado. Com a graça de Deus, o bom hortelão deve
ter o cuidado de regar as plantas para que estas cresçam51.
Aqueles “que começam a ter oração” são os que tiram água do poço,
com o seu próprio esforço52. Nesta etapa, prevalece o entendimento que é,
precisamente, o tirar água do poço53. De certa forma, no entender de Teresa,
este período de maior aridez faz parte da pedagogia divina, que prova “os
amadores” para saber se estes são dignos da cruz e dos seus tesouros54.
Quem começar por aqui, assenta o edifício em firme fundamento55. Esta
etapa, classicamente identificada como via purgativa, exige uma maior
colaboração do orante.
Teresa sublinha que convém muito não procurar subir mais acima,
por si mesmo, se Deus não lho concede56. Não vale pena procurar obter
pelo próprio esforço aquilo que só Deus pode gratuitamente oferecer. Este
dado é fulcral, porque a rocha, a verdadeira pedra angular, onde deve
assentar o edifício da relação com Deus, é a humildade57. Teresa insiste
vigorosamente que, nos inícios, é muito prejudicial “levantar o espírito, se
o Senhor não o eleva”58.
Ao longo do capítulo treze, a autora previne para algumas ciladas do
demónio que comummente ocorrem nesta fase. A melhor resposta é, com
humildade, reconhecer a nossa miserável natureza e ter grande confiança
na misericórdia divina59. Para melhor enquadrar estas advertências sobre
o demónio, convém recordar a antropologia espiritual e a cultura do séc.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

51
Cf. V 11,6.
52
Cf. V 11,9.
53
Cf. V 11,10.
54
Cf. V 11,11.
55
Cf. V 11,13.
56
Cf. V 12,1.
57
Cf. V 12,4.
58
V 12,7.
59
Cf. V 13,1-2.

64
Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

XVI espanhol, segundo a qual, aquilo que acontece no homem pode ter
várias origens: o bom espírito (Espírito Santo), o mau espírito (diabo)60
ou a minha natureza (o meu próprio espírito)61. A Inquisição e o ambiente
cultural fomentavam nas mentes um escrúpulo excessivo sobre as ciladas
do diabo. Isto verifica-se também com Teresa e com os seus confessores
e/ou censores.
Outro dado relevante sublinhado por Teresa é o de que, aconteça o que
acontecer, custe o que custar, não se deve abandonar a oração. Com uma
certa ironia, afirma que até compreende que mulherzitas como ela, fracas e
com pouca fortaleza62 se queixem da falta de consolação na oração, agora
“que servos de Deus, homens de tomo, de letras, de entendimento, façam
tanto caso como vejo fazer, de que Deus não lhes dá devoção sensível”63,
já não. É imperativo perseverar com determinação na oração, frequentado
com amizade face a face com Deus, principalmente, quando não há outra
recompensa senão estar com Aquele que tanto nos ama.

2º Grau: água mais abundante por meio de uma nora e de alcatruzes.


No capítulo catorze, Teresa inicia a exposição do segundo modo, no qual,
por meio de uma nora e alcatruzes, o hortelão consegue mais água e com
menos esforço. Neste modo, Deus já é mais activo e o orante mais passivo,
de modo que, a alma toca já em coisa sobrenatural, porque recebe aquilo
que por si mesma é incapaz de alcançar. As potências já se recolhem no
interior do orante, não se perdem nem ficam adormecidas64.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Actualmente, diríamos o meu “ego”, no sentido pejorativo.


60

Cf. Inácio de Loyola – Exercícios Espirituais: Tradução do autógrafo espanhol.


61

Tradução por Vital Pereira. Organização e notas por F. de Sales Baptista. 3ª ed., Braga:
Livraria Apostolado da Imprensa, 1999, nn. 32,3; 314,3; 315,2-3; 318,2; 333,4; 335; 336,4.
62
Cf. V 11,14.
63
Ibidem.
64
Cf. V 14,1-2.

65

5
R u i F e rr e i r a

A potência predominante é a vontade. Teresa aconselha a ter cuidado


com as outras duas potências que ajudam a vontade: a memória e a imagi-
nação65. Neste grau de oração, em que o entendimento se suspende por si
mesmo66 muito frequentemente, “predominam os afectos da vontade sobre
os discursos da inteligência”67; por isso, pode também chamar-se oração
afectiva. A oração vai-se lentamente transformando em diálogo amoroso:
“o conhecimento torna-se mais intuitivo, mais vivencial, os sentimentos e
os afectos são o principal veículo da comunicação com Deus.” Desta forma,
“a oração afectiva aponta já para o início da vida iluminativa”68.
Este tipo de oração, segundo Teresa, causa grande gozo e consolo,
originando lágrimas de gozo69. Ela faz crescer nas virtudes e aspirar às
coisas do alto70. Nesta fase, as árvores começam a dar fruto e as flores a
exalar o seu perfume. A oração de quietude torna-se perceptível pela sa-
tisfação e paz que infunde, com o contentamento e sossego das potências.
Porém, não depende do orante trazer a si mesmo este bem, nem depende
de si detê-lo71. Muitas, muitas almas chegam a este estado, mas poucas
passam adiante, adverte Teresa. É de capital importância que os que aqui
chegam tomem consciência da enorme graça que Deus lhes concede, pois
é grande desventura voltar atrás nesta fase72. Se, à semelhança de Teresa,
alguém cair nesta etapa e não voltar à oração irá de mal a pior73. Porém, se
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

65
Cf. V 14,2-3.
66
“Pelo” sujeito, pelo dinamismo próprio da alma.
67
Almeida, A. Duarte de – O Erguer das Nossas Mãos Vazias, 325.
68
Ibidem, 326.
69
Cf. V 14,4.
70
Cf. V 14,5.
71
Cf. V 15,1.
72
Cf. V 15,2.
73
Na oração de quietude, o sujeito já “entrevê” a cruz e compreende que não há vida
cristã sem cruz, portanto, abandonar a oração nesta etapa é grave porque equivale a recusar
a cruz. Como tal, aqueles que aqui abandonam a relação de amizade com Deus são inimigos
da cruz de Cristo (cf. Fl 3,18).

66
Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

perseverar, compreenderá o mal que fez e receberá de Deus fortaleza para


se tornar a levantar74.
Esta oração é já uma amostra do amor de Deus e da sua predilecção por
alguém que Ele designou para grandes coisas75. Nos tempos desta quietude,
a alma deve deixar-se levar por Deus e não fazer “ruído”. Teresa aplica esta
expressão aos esforços do orante que apenas perturbam a quietude dada
por Deus e aconselha o orante a não fazer caso deste maçador76. O perigo
aqui subjacente é o facto de surgirem ilusões que tentem justificar o dom
absolutamente gratuito de Deus77.
Neste modo de quietude, importa abandonar todo o género de con-
tentamentos e procurar unicamente servir o Senhor, ajudando-O a levar a
Sua cruz com determinação78. Por isso, muitos afirmam que a verdadeira
oração começa precisamente quando não há consolação. Assemelhando-se
a Deus, o orante ora somente para estar com Aquele que ama.

3º Grau: água de rio ou de fonte que basta encaminhar. No terceiro


grau, a água proveniente de um rio ou de uma fonte é encaminhada pelo
hortelão para a horta. Neste tipo de oração, o Senhor é o jardineiro que
faz quase tudo. É um sono das potências que não se perdem totalmente,
mas também não se compreende como operam. O gozo e o deleite são in-
comparavelmente maiores do que nos graus anteriores79. Teresa confessa
que não entendia muito bem o que se passava, pois ficava desatinada e
embriagada de amor80.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

74
Cf. V 15,3.
75
Cf. V 15,4-5.
76
Cf. V 15,6.
77
Cf. V 15,7.
78
Cf. V 15,11.13.
79
Cf. V 16,1.
80
Cf. V 16,2.

67
R u i F e rr e i r a

Neste grau, as potências estão praticamente todas unidas entre si, mas
não ao ponto de deixarem de operar, pois conservam ainda a capacidade
de se concentrarem todas em Deus. Nesta oração reina o louvor, fruto da
santa loucura celestial, na qual o orante desejaria permanecer81. Quem aqui
chega não pode não amar a cruz82. Teresa deseja que todos sofressem desta
enfermidade e desta santa loucura do amor de Deus83.
Aqui chegado, o orante só tem que, com a sua vontade, permitir que
Deus lhe conceda graças, colocando-se inteiramente à Sua mercê. A “alma”
deve abandonar-se totalmente nas mãos de Deus que a conduzirá. Maravi-
lhado com a acção de Deus, o sujeito é tomado de espanto e passividade84.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

81
Cf. V 16,3-4.
82
Cf. V 16,5.
83
Cf. V 16,6.
84
O Dicionário da vida espiritual lembra que o vocabulário espiritual não é rígido,
variando de autor para autor. Contudo, os vários autores concordam que a contemplação
propriamente dita, denominada mística ou passiva, caracteriza-se por uma passividade
diante da acção de Deus. Por um lado, a contemplação mística funda-se na possibilidade
de Deus agir directamente sobre a alma. Por outro lado, assenta na possibilidade de
realizarmos uma operação simples de tipo intuitivo e afectivo, operação própria da alma.
Todos os autores místicos admitem dois níveis de operações próprias da alma: a) um nível
comum que engloba operações de conhecimento racional e discursivo; b) um nível superior
em que Deus se faz presente através de um modo simples de conhecimento e adesão. O
conhecimento contemplativo é, como tal, inseparável da experiência da presença de Deus. É
um conhecimento em modo de co-presença, no qual temos consciência de conhecer e amar
um amigo presente. Deus é livre de suscitar maior ou menor consciência da Sua presença. A
alma recebe esta liberdade divina de forma passiva. Como tal, em primeiro lugar, passividade
significa que a alma não exerce qualquer “operação”, a não ser a adesão à iniciativa de Deus
que se torna presente. Em segundo lugar, ela envolve uma simplicidade do olhar que não
exige grande esforço e produz uma alegria profunda; por isso, a contemplação é também tida
como uma forma de repouso. No estado passivo, saboreia-se a gratuidade do amor de Deus,
o qual se revela quando quer e como quer. O fruto principal deste tipo de contemplação é o
aprofundamento da realidade de Deus. Com efeito, Deus é objecto de um desejo profundo
e muitas vezes doloroso. Cf. Bernard, Charles-André – “Contemplation”, in Stefano de
Fiores – Tullo Goffi (dir.) – Dictionaire de la vie spirituelle. Adaptation française par
François Vial. Paris: Cerf, 1983, 180-181.

68
Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

É que, neste grau, o Criador da água, dá-a sem medida; aquilo que a alma
por si só jamais poderia alcançar é dado por este Hortelão celestial85.
Com tamanhas graças, as virtudes ficam ainda mais fortalecidas, prin-
cipalmente a humildade, porque o orante percebe claramente que esta água
é puro dom de Deus. A união com Deus é muito maior, a alma encontra-se
já unida a Deus; porém, o Senhor concede que as potências entendam e
gozem muito do que se passa86. É tão grande a glória e o descanso da alma,
que também o corpo participa nele, ou seja, a oração envolve realmente a
pessoa toda87.

VI. A oração mais avançada e a humanidade de Cristo (V 18-22)

Abordaremos agora a oração mais avançada – quarto grau – e a


importância da Humanidade de Cristo em Vida, capítulos dezoito a vinte
e dois. Como vimos até aqui, neste livro, Teresa propõe um itinerário ora-
cional progressivo, recorrendo para isso à alegoria do hortelão, do horto e
das diferentes formas de regar o horto, que são os vários graus de oração.
Nesta perspectiva, o esforço do orante é inversamente linear ao aumento
da graça de Deus, de modo que o progresso na vida de oração equivale a
um progresso na passividade.

4º Grau: a água que vem do alto dos céus. Na quarta água, segundo a
experiência teresiana, dá-se a pura fruição do dom de Deus, o qual se goza
sem entender. Ela encerra todos os bens e ultrapassa toda a compreensão,
porque a acção de Deus envolve todos os nossos sentidos – que gozam sem
entender o que gozam – e todo o nosso ser88. Teresa confessa-se incapaz de

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

85
Cf. V 17,1-2.
86
Cf. V 17,3.
87
Cf. V 17,8.
88
Cf. V 18,1.

69
R u i F e rr e i r a

dar a entender em que consiste esta oração a que chamam de união, preten-
dendo apenas declarar aquilo que vive quando a alma se sente nesta união89.
Antes de começar a descrição, a autora afirma que este dom é fruto
da liberalidade e magnanimidade do Senhor90, o qual distribui as Suas
graças conforme lhe apraz, independentemente dos méritos de cada um91.
Como já referimos, um dos objectivos de Teresa é partilhar e difundir as
graças que lhe foram concedidas, para que aproveitem as muitas almas92,
engulosinando-as com o sumo bem que a própria experimentou93.
Teresa fala em elevação de espírito ou junção com o amor celestial
94
, talvez para tentar distinguir o início da união com Deus (elevação de
espírito – terceiro grau) da união ou junção com o próprio amor celestial
(quarto grau)95. Outra comparação que Teresa utiliza é a da diferença entre
um pequeno fogo e um grande fogo: num pequeno fogo, um pedaço de ferro
demora muito tempo para ficar em brasa, enquanto que, num grande fogo,
um pedaço muito maior fica imediatamente incandescente96. A autora procu-
ra, assim, dar a entender os detalhes que separam o terceiro do quarto grau.
Em Vida 18,9, Teresa inicia a descrição dos efeitos desta água que
vem do Céu. Com deleite grandíssimo e suave, a alma como que desfa-
lece, e todos os sentidos ficam concentrados em Deus97. Segundo Teresa,
num breve tempo, todas as potências ficam suspensas98. A autora admite a
incapacidade para traduzir em palavras aquilo que sabe, mas que não pode

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

89
Cf. V 18,2.
90
Cf. V 18,3.
91
Cf. V 18,4.
92
Cf. Ibidem.
93
Cf. V 18,8.
94
Cf. V 18,7.
95
Cf. Ibidem.
96
Cf. Ibidem.
97
Cf. V 18,10.
98
Cf. V 18,12.

70
Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

entender e muito menos dizer99. Segundo a sua experiência pessoal, Deus


apropria-se totalmente dela: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que
vive em mim” (Gal 2,20). Apesar da certeza e do sentimento da presença
de Deus100 – que fica impressa no sujeito – a autora não compreende o que
entende, pelo que é um não entender entendendo101.
Teresa fala da grandíssima ternura e da extrema sensibilidade resul-
tante desta união, ao ponto de derramar lágrimas de gozo102. Estas lágrimas
serão melhor compreendidas, se tivermos em conta aquilo que é narrado de
seguida e que podemos identificar como lágrimas de compunção. Segundo
Luís Rocha e Melo, compunção – compungere em latim – quer dizer picar,
ferir ou trespassar103. É “o estado espiritual próprio de quem se deixou tocar,
ferir ou trespassar pelo amor do Pai que se manifesta como é, em pureza
e gratuidade, em misericórdia e perdão, e revela os «lábios impuros» do
profeta (Is 6,5). É por isso que fere ou humilha. Mas humilha docemente o
coração do humilde”104. Devemos, contudo, ter presente, a distinção entre
“humilhar” e “humildificar”, assim como, entre a compunção purgativa –
pena por não se amar como se reconhece que Deus merece – e a compunção
unitiva ou agápica – felicidade por já se começar a amar como Deus merece.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

99
Cf. V 18,14.
100
Cf. V 18,14-15.
101
Cf. V 18,14. Ou seja, trata-se de um modo de conhecimento diferente, do meramente
racional e intelectivo.
102
Cf. V 19,1.
103
Cf. Rocha e Melo, Luís – Se tu soubesses o dom de Deus: ensaio sobre oração.
3ª ed. Braga: Apostolado da Oração, 2006, 164. O Dicionário de Mística diz-nos que
compunção deriva do latim compunctio, tendo entrado a partir do séc. IV no vocabulário
cristão para exprimir a dor pungente pelo próprio pecado, diante da misericórdia de Deus.
Por outro lado, fala também, ao nível do monacato, de uma “tristeza segundo Deus” que
leva ao gáudio e à paz. Cf. Posada, M.E. – “Compunzione”, in L. Borriello – E. Caruana
– M.R. del Genio – N. Suffi (dir.) – Dizionario di mistica, 320-321.
104
Rocha e Melo, Luís – Se tu soubesses o dom de Deus, 164.

71
R u i F e rr e i r a

Parece-nos que é neste sentido que Teresa fala. Assim se compreende


que, após esta profunda união que a faz derramar lágrimas de gozo, afirme
que a alma se decide a promessas e determinações heroicas, a começar
a aborrecer o mundo e a ver muito claramente a sua vaidade. Ganhando
consciência de que pouco ou nada pode, cresce na humildade, tendo em
conta a sua vida passada, e, consolada com a grande misericórdia de Deus
(cf. V 19,2), procurando repartir estes tesouros com os outros (cf. V 19,3).
Por outro lado, Teresa adverte para as ciladas do demónio neste grau,
que procura por todos os meios fazer com que a alma abandone a oração
(cf. V 19,4-5.10-14). Teresa confessa: “não sei como se não me parte o
coração” (V 19,5), perante a misericórdia do Senhor, abismo sem fundo, e
a minha ruindade (cf. V 19,15).
No capítulo vinte, Teresa procura fazer compreender a diferença entre
união e arroubamento. O arroubamento é, para Teresa, mais vantajoso que a
união: os seus efeitos são maiores e as operações diferentes105. Nesta forma
de êxtase, “o Senhor colhe e levanta a alma (…) toda e leva-a consigo e
começa-lhe a mostrar coisas do reino que lhe tem preparado”106. Por esta
descrição, podemos supor que, para a autora, o levantamento da alma é
como que antecâmara do Céu. Nestes arroubamentos, não há nada a fazer,
é impossível resistir107.
O primeiro efeito da oração extática é a humildade porque manifesta
o grande poder do Senhor108. Segue-se-lhe um grande desapego das coisas
da terra109. O terceiro é a pena por estar ausente do Bem que em Si possui
todos os bens110. Este último efeito é paradoxal, pois nesta experiência
intensa da presença de Deus, a alma sente a pena da Sua ausência. Existe

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

105
Cf. V 20,1.
106
V 20,2.
107
Cf. V 20,3-4.
108
Cf. V 20,7.
109
Cf. V 20,8.
110
Cf. V 20,9.

72
Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

um aumento do desejo e do extremo de soledade – solidão com Deus111.


Dá-se também um duro martírio saboroso, porque o orante vive crucificado
entre o céu e a terra112. Sente uma grande ânsia de morrer, de ver Deus e
estar na Sua companhia113. Esta pena purifica a alma como ouro no crisol114.
Teresa prossegue a descrição dos arroubamentos115, associando-os a
este tipo de oração extática. Neste levantamento de espírito, segundo Teresa,
os sentidos estão suspensos; e, quando abertos, não se atina nem adverte o
que vê116. As potências estão todas concentradas nos louvores de Deus117.
Contudo, o efeito mais importante é a entrega total à vontade do Senhor;
quem experimenta esta oração, dá ao Senhor as chaves da sua vontade118.
Independentemente dos perigos, das dificuldades e das honras humanas
e terrenas, entrega-se ao apostolado do Amor119. Teresa assevera que não
se tratam de desejos apenas, porque Deus concede forças para os pôr em
obra120. “Tudo é nada, a não ser contentar a Deus”121.

A Sagrada Humanidade. No capítulo vinte e dois, Teresa fala da


importância da humanidade de Cristo para a vida espiritual e para a ora-
ção contemplativa. Indirectamente, pela referência aos livros que falam
do embaraço da humanidade de Cristo para a mais perfeita contemplação,
percebemos que Teresa terá contactado com livros da mística renana, en-

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

111
Cf. V 20,10.
112
Cf. V 20,11.
113
Cf. V 20,13.
114
Cf. V 20,16.
115
Cf. V 20,18 e seguintes.
116
Cf. V 20,19.
117
Cf. V 20,20.
118
Cf. V 20,22.
119
Cf. V 20,22-29.
120
Cf. V 21,5.
121
Ibidem.

73
R u i F e rr e i r a

cabeçada por Eckhart. Para Teresa, é impossível não ter em consideração


a verdadeira humanidade de Jesus122.
Teresa fundamenta a sua posição com duas razões: a primeira é a
humildade123 e o perigo de alguém querer elevar-se por si mesmo a Deus
na oração; por outro lado, considera que a vida de Jesus é o grande modelo
de santidade124:

“Com tão bom amigo presente, com tão esforçado capitão, que foi o primei-
ro no padecer, tudo se pode sofrer. É ajuda e dá força; nunca falta; é amigo
verdadeiro. E vejo eu claramente e vi depois que, para contentar a Deus e
para Ele nos fazer grandes mercês, quer que seja por mãos desta Humanidade
Sacratíssima (…); por esta porta temos de entrar, se queremos que a soberana
Majestade nos mostre grandes segredos” (V 22,6).

O segundo grande motivo pelo qual, para Teresa de Jesús, devemos


trazer diante de nós a Sacratíssima Humanidade é a nossa própria huma-
nidade e condição terrena125. É que “não somos anjos, temos corpo”126.
Como tal, a humanidade de Cristo serve-nos de companhia127. Abraçar a
cruz, venha o que vier, é grande coisa128.
Teresa sublinha uma vez mais “que todo este edifício da oração vai
fundado em humildade e, quanto mais se abaixa uma alma na oração, mais
a levanta Deus”129. À semelhança do que já tinha feito anteriormente, Teresa
alerta para os perigos de forçar o levantamento de espírito pelas próprias

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

122
Cf. V 22,1.
123
Cf. V 22,5.
124
Cf. V 22,7.
125
Cf. V 22,9.
126
V 22,10.
127
Cf. Ibidem.
128
Cf. Ibidem.
129
V 22,11.

74
Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

forças130. Teresa conclui com uma expressão bela, bela: “Sempre que pen-
sarmos em Cristo, lembremo-nos (…) do amor que Ele nos tem, pois amor
gera amor”131. Se tivermos este amor sempre presente, tudo é possível.

VII. As virtudes evangélicas e noções sobre a oração e Pai-Nosso


(C 4-24)

Neste ponto, procuraremos explicitar a relação entre virtudes e oração


a partir do Caminho de Perfeição e a sua importância para o amadureci-
mento espiritual. Caminho é um livro de formação espiritual dirigido às
monjas de S. José de Ávila, o primeiro Carmelo reformado e fundado por
Teresa132. Perante as insistências das “suas filhas”, Teresa de Jesús decide
obedecer-lhes e escrever-lhes sobre oração133, uma vez que o Livro da Vida
lhes era inacessível134. É um livro redigido num tom coloquial e didáctico,
no qual Teresa dialoga com as monjas de S. José135, procurando contribuir
para uma salutar vida contemplativa em comunidade136. Teresa fá-lo com
amor e desejo de ajudar, recorrendo para isso à sua própria experiência137.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

130
Cf. V 22,11-13. “E tenho medo que assim nunca chegará à verdadeira pobreza de
espírito, que consiste não em buscar consolo e gosto na oração – que os da terra já estão
deixados –, mas sim em ter consolação nos trabalhos, por amor d’Aquele que sempre viveu
neles (…)” (V 22,11).
131
V 22,14.
132
Cf. Álvarez, Tomás – “Introdução ao Caminho de Perfeição”. In Teresa de Jesús
– Obras Completas, 359.
133
Cf. C prólogo,1.
134
Cf. Álvarez, Tomás – “Introdução ao Caminho de Perfeição”. In Teresa de Jesús
– Obras Completas, 359. A obra tinha sido confiscada pela Inquisição.
135
Cf. Ibidem, 360. Daí que se levante a hipótese deste livro ser fruto de um rescrito,
isto é, apontamentos de conferências tirados por uma monja, corrigidos e rescritos por
Teresa de Jesús.
136
Cf. C prólogo,2.
137
Cf. C prólogo,3.

75
R u i F e rr e i r a

As virtudes evangélicas. Teresa começa por revelar o principal objecti-


vo que presidiu à fundação do mosteiro de S. José, em Ávila: que ela própria
e as restantes monjas vivessem os conselhos evangélicos com a máxima
perfeição possível (cf. C 1,2). Esta fundação é concomitante com a derrocada
da cristandade europeia, devido ao progresso do protestantismo. Perante
um quadro de profundas convulsões – “o mundo está ardendo” – Teresa
exorta as suas monjas a viverem a sua vocação na fidelidade (cf. C 1,2-6).
Para Teresa, em primeiro lugar, as monjas deverão cultivar o despren-
dimento e colocar toda a sua confiança no Senhor. Não deverão ter rendas
nem medos, porque o Esposo as sustentará138. Teresa aconselha-as a serem
desapegadas, pois quanto menos possuírem mais livres serão139. Como tal,
aquilo que propõe é, na verdade, uma atitude e uma predisposição interior
que se deverá refletir na vivência da sua vocação. A pobreza verdadeira é
importante, porque anda de mãos dadas com a humildade140.
Teresa exorta as suas filhas a serem fiéis à sua vocação e aos votos
que professaram141. Acima de tudo, devem orar continuamente142, porque
foi para isso que foram chamadas143. De seguida, apresenta três princí-
pios fundamentais para que as monjas sejam efectivamente mulheres de
oração144. O primeiro é o amor fraterno: devem amar-se umas às outras,
tendo cuidado com as amizades particulares e com o perigo de se criarem

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

138
Cf. C 2,1-2.
139
Cf. C 2,3. Ver, por exemplo, o desapego pedido por Jesus aos Apóstolos, aquando
do seu envio em Mc 6,7-13.
140
Cf. C 2,4-6.
141
Cf. C 4,1.
142
Parece-nos que, no fundo, Teresa exorta as monjas a viverem constantemente numa
atitude de oração e louvor que preencha toda a sua vida, à semelhança daquilo que pede
Paulo aos Tessalonicenses: “Sede sempre alegres. Orai sem cessar. Em tudo dai graças.”
(1Ts 5,16-18a).
143
Cf. C 4,2.
144
Cf. C 4,3-4.

76
Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

partidos entre si145. Relativamente ao amor, Teresa distingue dois modos:


um, totalmente espiritual; outro, também espiritual, mas unido à nossa
sensualidade e fraqueza146.
Teresa admite a dificuldade de distinguir e de falar destes dois modos
de amor147, afirma que a diferença entre ambos é semelhante ao amor do
Criador e ao amor da criatura; um é eterno e o outro é sonhado148. O amor
verdadeiramente espiritual é desinteressado e busca o bem do outro (cf.
C 6,5-9). É um amor que se cultiva com lágrimas, penitências e oração,
desprendendo-se de si mesmo e do mundo para buscar as coisas do alto149.
Este amor aproxima-se do amor do Criador, na medida em que deseja dar
a vida pelos outros150.
No capítulo oitavo, Teresa aborda novamente a virtude do desprendi-
mento, demorando-se na importância e na dificuldade do desprendimento
dos parentes (cf. C 8,1-9,5). Porém, considera que o desprendimento de si
mesmo é o mais difícil151. Na sua opinião, aqui reside a verdadeira humilda-
de152. O desprendimento de si mesmo começa, quando alguém se decide a en-
tregar inteira e totalmente a Cristo153. Recordamos o Poema 2, quinta estrofe:

“Dai-me a morte, dai-me a vida, / dai-me saúde ou enfermidade, / honra ou


desonra me dai / dai-me guerra ou paz sentida / fraqueza ou força vivida:
que a tudo digo sim: Que quereis, Senhor, de mim?”154.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

145
Cf. C 4,5-9.
146
Cf. C 4,12.
147
Cf. C 6,1-2.
148
Cf. C 6,3.
149
Cf. C 7,1.
150
Cf. C 7,4.
151
Cf. C 10,1-2.
152
Cf. C 10,3.
153
Cf. C 10,5-8.
154
Teresa de Jesús – Poesias 2, in Idem – Obras Completas, 1085.

77
R u i F e rr e i r a

Notamos, neste aspecto, uma convergência com outro fundador e santo


espanhol coevo de Teresa de Jesús, Inácio de Loyola. No famoso Princípio
e Fundamento dos Exercícios Espirituais, Inácio refere que o homem se
deve fazer indiferente a todas as coisas criadas, de tal modo que não busque
mais a saúde que a doença, riqueza que pobreza, honra que desonra, vida
longa que curta155.
Em terceiro lugar, Teresa refere a mortificação adquirida pela perda
do amor-próprio nas doenças (cf. C 11) e prossegue discorrendo sobre a
importância desta guerra contra nós mesmos, que se vai ganhando nas coisas
pequenas, quando contrariamos as nossas vontades e apetites, abdicando
das nossas comodidades (cf. C 12,2-3). A verdadeira humildade cultiva-se
nesta batalha interior, que consiste em não procurar honras e vanglórias
(cf. C 12,6-7;13). Nesta luta, o Senhor favorece quem bem se determina
(cf. C 14,1).
Teresa sublinha o papel das virtudes, porque sabe a sua importância
para a fidelidade à vocação e à oração. A chave da oração é, no seu entender
– tal como já havia defendido no Livro da Vida – a humildade (cf. C 16,1-2).
Contudo, não pode “haver humildade sem amor nem amor sem humildade,
nem é possível haver estas duas virtudes sem grande desapego de todas as
coisas” (C 16,2)156. Para meditar não são necessárias virtudes; contudo, a
contemplação e o caminho para lá chegar são coisas distintas (cf. C 16,3-
5). Para Teresa, dificilmente haverá oração unitiva, se não nos esforçarmos
por adquirir e cultivar as grandes virtudes (cf. C 16,6)157. Exorta, por isso,
as monjas a entregarem-se a si mesmas com a mesma determinação com
que o Senhor se entregou por nós (cf. C 16,9).

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

155
Cf. Inácio de Loyola – Exercícios Espirituais, n. 23,5-6.
156
Estas virtudes, por serem inseparáveis, são como que três faces de uma única
realidade: a amizade. Notamos ainda que esta realidade – a amizade – é de suma importância
para a ética, desde Aristóteles.
157
Teresa ressalva que, por vezes, Deus dá-Se e une-Se àqueles que se encontram em
mau estado para os ajudar a sair desse mesmo estado.

78
Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

Teresa insiste na humildade, considerando-a o exercício principal da


oração. Aquele que é verdadeiramente humilde aceita quando o Senhor
se une a ele, mas aceita igualmente quando o não faz, nunca se julgando
superior por ter ou não contemplação158. Sabe que Deus nos conduz por
caminhos diferentes e que, a Seus olhos, nenhum deles é superior159. Teresa
previne que nem todas podem ser contemplativas, porque a contemplação
é dom de Deus160. A perfeição, a santidade e a salvação não dependem da
contemplação. É próprio do humilde aceitar a vontade do Senhor161. Por-
tanto, aconselha as monjas a andarem alegres e a servirem na obediência e
demais virtudes, quer sejam contemplativas ou não (cf. C 18,5-10).

Noções sobre oração e Pai-Nosso. No capítulo dezanove, Teresa co-


meça a discorrer sobre oração, recorrendo – uma vez mais – à simbólica da
água e estabelecendo uma distinção entre duas sedes: a natural e a das coisas
da outra vida162. De seguida, refere três propriedades desta água: 1) é refres-
cante e paradoxalmente extingue ou aumenta o fogo163; 2) purifica e limpa
o que está sujo164; sacia e tira a sede165. O Senhor chama e convida todos a
beber da Sua fonte166; porém, conduz-nos até ela por caminhos diferentes167.
O caminho para a fonte começa pela verdade, pela amizade e pelo
amor ao próximo168. Para chegar à fonte importa começar e prosseguir com

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Cf. C 17,1.
158

Cf. C 17,2.
159

160
Cf. Ibidem.
161
Cf. C 17,2-7.
162
Cf. C 19,2.
163
Cf. C 19,3. No nosso entender, esta água extingue porque sacia, porém, saciando
faz aumentar o desejo de Deus.
164
Cf. C 19,6-7.
165
Cf. C 19,8-10.
166
Cf. C 19,15;20,1.
167
Cf. C 20,1-2.
168
Cf. C 20,3-4.

79
R u i F e rr e i r a

“uma grande e muito determinada determinação de não parar até chegar a


ela, venha o que vier, suceda o que suceder”169. Esta citação ilustra a fibra
de Teresa de Jesús e os valores que tentou incutir naquelas que estavam sob
a sua direcção. Teresa assevera que o caminho para a fonte é a oração170;
seja ela mental e/ou vocal171, o importante é perseverar na oração. O único
perigo poderá ser a falta de humildade e/ou das outras virtudes172.
A oração mental não difere da vocal por ter a boca aberta ou fechada.
Teresa previne que podemos estar a dialogar com Deus de boca fechada,
unindo oração vocal e mental173. Pelo contrário, podemos estar a rezar o
Pai-Nosso e a pensar no mundo174. Sublinha também a necessidade da oração
mental e da sua preparação175. Todavia, vinca que a melhor preparação é a
humildade e pureza de um coração sincero, ainda que rude176.
Um aspecto fulcral é começar o caminho com firmeza e nele perseve-
rar fielmente, com toda a determinação (cf. C 23,1). No tempo que damos
à oração é imperativo que nos entreguemos totalmente (cf. C 23,2). Por
outro lado, perante uma determinação determinada o demónio pouco ou
nada consegue (cf. C 23,4).
Para os que não conseguem ou têm muita dificuldade em fazer oração
mental177, Teresa fala da importância do Pai-Nosso e da Avé-Maria e da
necessidade de os rezar bem178. Todo o cristão tem forçosamente que rezar
estas orações; porém, deve entender aquilo que reza, pois só compreendendo

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

169
C 21,2.
170
Cf. C 21,6-10.
171
Cf. C 21,7.
172
Cf. Ibidem.
173
Cf. C 22,1.3.
174
Cf. C 22,1.
175
Cf. C 22,1.3-4.7.
176
Cf. C 22,4.
177
Cf. C 24,1.
178
Cf. C 24,2.

80
Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

o que profere e a quem se dirige é que poderá amar179. A primeira condição


para rezar bem é estar a sós180.

Virtudes, vida e oração. Realçamos a importância das virtudes para


uma vida cristã madura e autêntica e a sua relação com a oração. Não é por
acaso que Teresa de Jesús insistentemente as associa. Timothy Radcliffe
apresenta uma perspectiva interessante sobre as virtudes, segundo a qual a
vida virtuosa ajuda-nos a seguir o caminho certo. À letra, «virtus» significa
«força»; é a força para caminhar segundo a vontade de Deus. As virtudes
cardeais e teologais abrem-nos, antecipadamente, as portas do que está para
vir. Na sua visão, a Igreja deve propor uma pedagogia da liberdade. Aquele
que é autenticamente virtuoso não age por causa duma imposição vinda do
exterior, mas sim a partir do seu ser mais profundo. As virtudes são, então,
vias para a liberdade, sendo que a nossa liberdade mais profunda é fazer
espontaneamente o bem181. Em suma, é amar.
Destacamos, de modo particular, a importância do desprendimento de
si mesmo, revelador da maturidade espiritual através de uma vida descentra-
da de si mesmo. Na sociedade contemporânea, marcada pelo narcisismo182,
onde o “eu individualista”, ego-látrico, se exalta, importa redescobrir a
beleza da humildade e da vida comunitária183. Seria interessante analisar a

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Cf. Ibidem.
179

Cf. C 24,4-5.
180

181
Cf. Radcliffe, Timothy – Ser cristão? Para quê?. Prior Velho: Paulinas Editora,
2011, 68-69.
182
Cf. Bianchi, Enzo – Porque rezar, como rezar. Tradução de Adérito Lourenço
Louro. Lisboa: Paulus Editora, 2011, 20.
183
Por exemplo, na perspectiva de Roger Schütz, fundador da Comunidade de Taizé,
a pequena comunidade é chamada a ser uma parábola de comunhão, um simples reflexo da
comunhão que é o Corpo de Cristo, a Igreja, e assim fermentar toda a humanidade. Cada
irmão participa nesta parábola de comunhão, onde as pequenas fidelidades quotidianas
preparam e sustentam as continuidades fortes de toda a vida. Cf. Irmão Roger de Taizé –
“Uma parábola de comunhão”, in Idem – O seu amor é como um fogo. Tradução de Isabel
Figueiredo e Silva. Lisboa: Edições Paulistas, 1990, 84-85.

81

6
R u i F e rr e i r a

relação entre a contemplação (ver em profundidade fora de nós) e o desa-


pego de si mesmo. Será que a oração nos ajuda a sair de nós mesmos e a
ver as coisas com os olhos Deus, numa serena abertura contemplativa aos
outros que quebra o nosso egocentrismo?184.
Recorremos novamente a T. Radcliffe para salientar o papel da hu-
mildade. Desprezada no mundo antigo, a humildade cristã não consiste em
se considerar a si mesmo inferior ou desprezível em relação aos demais185.
“Consiste, sim, num respeito correcto por si mesmo”186. A humildade
liberta-nos da competição, porque nos faz sentir bem com aquilo que
somos. A verdadeira humildade cristã restitui-nos a coragem, porque nos
leva a compreender realisticamente quem somos – defeitos e qualidades
– e o que poderemos ser com a graça de Deus. A humildade é a libertação
da compulsão de ocupar o centro do palco, de querer brilhar à força. É
aceitar partilhar o protagonismo com os outros. Infelizmente, a verdadeira
humildade cristã tem sido ignorada e deturpada187. A humildade é um sinal
concreto de uma maturação espiritual. A humildade será a chave para a
oração autêntica, que nos levará à “luta de amar mais e melhor quem vive
ao nosso lado, dia após dia. (…) A oração é o nosso desejo de amor”188.

VIII. A vida ascética (M 1-3)

Seguidamente, procuraremos expor e analisar a três primeiras moradas


do ponto da vista da vida ascética e da sua relação com a oração.

Primeiras moradas. No início do livro, à semelhança de outras oca-


siões, perante dificuldades várias, Teresa invoca o auxílio divino e propõe

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

184
Cf. Radcliffe, Timothy – Ser cristão? Para quê?, 179.
185
Cf. Ibidem, 194.
186
Ibidem, 194.
187
Cf. Ibidem, 195-196.
188
Bianchi, Enzo – Porque rezar, como rezar, 114.

82
Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

aos seus leitores que imaginem a alma como um castelo de diamante ou


mui claro cristal, onde existem muitas moradas, tal como no Céu (cf. M I
1,1). A autora sublinha assim a dignidade do homem, criado à imagem e
semelhança do Criador. Teresa salienta também a importância de um autoco-
nhecimento humilde, particularmente no que diz respeito ao conhecimento
da própria alma e das suas moradas nucleares (cf. M I 1,2-3; M I 2,9-11). A
porta de entrada para este castelo é a oração e a reflexão (cf. M I 1,7)189. A
experiência é fundamental para se poder entender estas coisas (cf. M I 1,9).
Segundo Teresa, a dignidade humana radica em Deus e na capaci-
dade que o homem tem de se relacionar com Ele. Teresa acolhe os ideais
humanistas do renascimento que colocam o homem no centro; porém, no
centro do homem coloca Deus. A origem divina do humanismo teresiano
é defendida por Jeremias Carlos Vechina num recente artigo190. A pessoa
humana encerra em si mesma um duplo mistério: o do próprio homem e
o de Deus que nele habita. Como tal, para Teresa, a grande dignidade do
homem radica na sua vocação à união com Deus, que o transforma e renova
pela força do Espírito191. A oração constitui o caminho e concretiza esta
mesma união192.

Segundas moradas. Nas segundas moradas, Teresa destaca a impor-


tância da perseverança. Esta é a morada daqueles que já começaram a ter
oração; como tal, é fundamental a determinação, a perseverança e o desejo

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Realçamos que, no seguimento desta afirmação, Teresa coloca a oração mental e


189

a oração vocal em pé de igualdade. O mais importante, para Teresa, é ter em consideração


“com Quem se fala e o que se pede e quem é que pede e a Quem”. Porém, considera que
quando apenas se papagueiam palavras não há oração (cf. M I 1,7).
190
Cf. Vechina, Jeremias Carlos – “A novidade teresiana da oração”, 114-116. O autor
fundamenta a sua posição com o início de Moradas (M I 1,1.3).
191
Cf. Ibidem, 116.
192
Cf. Ibidem, 116.

83
R u i F e rr e i r a

de prosseguir em frente (cf. M II 2-3)193. Nestas moradas, a luta activa do


orante é essencial, ou seja, é uma fase predominantemente ascética que
pede uma colaboração pessoal decidida. Necessitamos de perseverança
para entrarmos em nós mesmos e penetrarmos no nosso castelo interior.
Como já foi referido, a chave da entrada para o castelo é a oração.
Entrando em nós mesmos, entramos em relação de amizade com Deus
que está no nosso interior. Com esta dinâmica de interiorização, entramos
também numa dinâmica de conversão194. Para Teresa, a grande preocupação
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

193
“Esta perseverança é aqui o mais necessário, porque com ela jamais se deixa de
ganhar muito” (M II 3).
194
Segundo o Dicionário da vida espiritual, o Antigo Testamento fala de conversão
(shûb), sobretudo, em termos de voltar para o caminho recto. Por seu lado, o Novo
Testamento (NT) propõe a conversão (metánoia) [e epistrephô = voltar, regressar] como uma
mudança radical de pensamentos, atitudes, sentimentos e acções. Neste sentido, conversão
implica uma renovação integral do “eu”. No NT, a conversão envolve também um abandono
total a Deus, um deixar-se transformar e abraçar por Ele e não somente uma purificação ou
abandono do pecado. A conversão conduz, por isso, a um estado de vida renovado.
Do ponto de vista neotestamentário, a conversão implica abandonar o pecado, por
um lado, e voltar-se para Deus, por outro lado. Como tal, por si só, o homem não é capaz
de realizar uma conversão total: a conversão é um dom e uma tarefa. A vida cristã é uma
contínua conversão que envolve não só a purificação do pecado e o progresso na via ascética,
mas caminhar sob o impulso do Espírito Santo para a plenitude da caridade e do mistério
pascal. No cristianismo, a dimensão do dom é, porventura, acentuada pelo facto de o próprio
Logos encarnado ter vindo ao nosso encontro (cf. Jo 1,14) e nos ter amado em primeiro lugar
(cf. Jo 15,16; 1Jo 4,10). “Nós amamos, porque Ele nos amou primeiro” (1Jo 4,19). Desta
perspectiva, a conversão genuinamente cristã é desde o início um dom do amor de Deus.
Há ainda autores que falam de uma segunda conversão, como Clemente de Alexandria.
Esta segunda conversão assenta numa entrega total de si mesmo em ordem à perfeição e
por uma vontade irrevogável de progredir na vida espiritual, a qualquer preço e sem olhar
a sacrifícios; ela consiste na busca de realizar somente aquilo que agrada ao Senhor. A
alma não se contenta com uma conduta meramente boa e honesta, ou em viver uma vida
medianamente virtuosa; procura avançar continuamente no caminho da perfeição. Na
segunda conversão, a compreensão e a experiência recebem uma nova luz que lhes concede
um sentido renovado e mais profundo das coisas de Deus. Como tal, a segunda conversão é

84
Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

de quem já começou a ter oração deve ser a de “trabalhar e determinar-se e


dispor-se, com quanta diligência puder,”195 para unir a sua vontade à vonta-
de do Senhor. Aparece-nos aqui um dos pontos fulcrais da espiritualidade
teresiana: a união de vontades. A autora garante que nisto “consiste toda
a maior perfeição que se pode alcançar no caminho espiritual. (…) Nisto
consiste todo o nosso bem”196. Como tal, a grande luta do orante deverá
centrar-se no esforço de unir a sua vontade à vontade de Deus, ou seja, em
não querer senão aquilo que Deus quer (e não querer o que Ele não quer)197.
Nisto reside o mais genuíno sentido de mortificação: morrer para a própria
vontade e para o egoísmo198.
Para atingir a união de vontades é fundamental perseverar e jamais
abandonar a oração199. Entrando no castelo pela oração, devemos conside-

uma iniciação à via mística. Cf. Goffi, Tullo – “Conversion”, in Stefano de Fiores – Tullo
Goffi (dir.) – Dictionaire de la vie spirituelle, 199-201.
195
M II 8.
196
Ibidem.
197
Cf. M II 7.
198
Notamos o paralelismo com a agonia mortificante de Jesus no Getsémani, na qual
submeteu e uniu totalmente a Sua vontade à do Pai (cf. Mc 14,36 e paralelos). A união
de vontades possui raízes profundas na espiritualidade cristã, desde Máximo Confessor,
sobretudo.
199
Cf. M II 9-10. O que notámos relativamente à dinâmica de conversão está
intimamente relacionado com a dinâmica de crescimento espiritual e ascese, particularmente
numa perspectiva místico-teologal de ascese, como nos mostra José-Damián Gaitán. No
sentido mais lato, a palavra ascese é sinónimo de esforço, tarefa, compromisso pessoal no
próprio crescimento e amadurecimento interior. Contudo, duma perspectiva genuinamente
cristã, segundo este autor, a ascese enquadra-se melhor na tensão positiva entre o desígnio
e o chamamento de Deus ao homem e a realidade concreta deste (criatura e pecador). Neste
sentido, à semelhança da conversão, todo o esforço e compromisso humanos são desde o
seu início permeados pelo dom de Deus, porque a acção divina tem sempre primazia sobre a
humana. Daí que a acção de Deus e o esforço ou compromisso do homem coincidem desde
o primeiro momento da conversão. Todavia, se existisse um antes seria sempre de Deus. Cf.
Gaitán, José-Damián – “Crecimiento espiritual y ascesis”, 772-773.

85
R u i F e rr e i r a

rar a nossa própria miséria e a vida de Jesus, aconselha Teresa, para que
possamos dar bons frutos200. Importa salientar que este processo é predomi-
nantemente afectivo, ou seja, está relacionado com a ordenação dos afectos,
implicando o reconhecimento em mim mesmo, no meu interior, das raízes
do meu pecado e do meu ego-ísmo para as poder extirpar.

Terceiras moradas. Teresa dirige-se aos que venceram o combate e


entraram com perseverança nas terceiras moradas (cf. M III 1,1). Feliz o ho-
mem que teme o Senhor (Sl 111,1), pois se não voltar atrás, com razão é cha-
mado bem-aventurado e segue seguro o caminho da salvação (cf. M III 1,1).
A luta espiritual continua presente nestas moradas. Aliás, Teresa adver-
te que a vida presente é um campo de batalha, com inimigos sempre à porta
(cf. M III 1,2). Como tal, temos que vigiar e pedir o auxílio do Senhor. A
perseverança e a fidelidade permanecem decisivas. Teresa alerta: ninguém,
particularmente nenhuma das monjas se fie em demasia no seu estado nem
nas suas próprias forças ou méritos. Tudo isso é bom, “mas não basta” (cf.
M III 1,3). Por isso, “feliz o homem que teme o Senhor” (Sl 111,1; cf. M
III 1,4). Geralmente, os que entraram nestas moradas desejam não pecar
e são amigos da penitência; recolhem-se para orar e utilizam o seu tempo
ao serviço de Deus e do próximo. Se perseverarem, têm condições para
chegar à última morada (cf. M III 1,5).
Porém, é necessário não querer só de boca, mas efectivamente com
“determinação determinada”. Teresa ilustra-nos com o exemplo do jovem
rico (cf. Mt 19,16-29 e paralelos; cf. M III 1,6). O nosso amor por Deus
tem que ser provado com obras: “Este amor, filhas, não há-de ser fabricado
em nossa imaginação, mas sim provado com obras” (M III 1,7). Ressalva,
contudo, que o Senhor olha mais à nossa vontade do que às nossas obras:
“não penseis que olha às nossas obras, senão à determinação da nossa
vontade” (Ibidem).

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

200
Cf. M II 11.

86
Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

Por maiores que possam parecer os nossos méritos e aquilo que já


fizemos, o principal é perseverar e não regredir, considerando-se a si mesmo
como um servo inútil (cf. M III 1,8). Das securas na oração devemos tirar
humildades (cf. M III 1,9) à semelhança do que diz S. Paulo: “quando sou
fraco é que sou forte” (2Cor 12,10).
Teresa termina o primeiro capítulo das terceiras moradas com o se-
guinte pedido: “Somos mais amigos de contentamentos do que da cruz.
Prova-nos, Senhor! Para que nos conheçamos” (M III 1,9). Encontramos
aqui o tema da prova em relação com o auto-conhecimento. No segundo
capítulo das terceiras moradas, Teresa fala-nos precisamente das securas
na oração e das provações. No seu entender, é comum os que se encontram
nestas moradas serem provados. Quando já se julgam “senhores do mundo”
vem a provação (cf. M III 2,1). Para Teresa, a prova revela-nos aquilo somos
(cf. M III 2,2), possibilitando-nos ir mais além e crescer.
O fundamental, diz-nos a autora, não é ter um hábito, mas sim exercitar
as virtudes e submeter a nossa vontade à de Deus em tudo (cf. M III 2,6),
de modo que se faça a Sua vontade e não a nossa. “Não tenhais medo que
se matem [com penitências], porque a sua razão está muito em si” (cf. M
III 2,7). O amor ainda não se sobrepõe à razão (cf. Ibidem). Teresa alerta
para o perigo da tibieza espiritual201 (cf. Ibidem) que impede o crescimento
e o progresso da união com Deus.
Na renovação espiritual típica destas moradas, chegamos à conclu-
são de que por mais que nos esforcemos, não conseguimos ir mais além
somente pelas nossas próprias forças. Porém, como nos ensina Teresa, é
preciso ousar e ter coragem de avançar: “deixemos a nossa razão e temores
em suas mãos” (cf. M III 2,8). O essencial, nesta fase, é ter a coragem de
entregar “as chaves da nossa vida” a Deus, i.e., de nos entregarmos a nós

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

A tibieza espiritual é magnificamente ilustrada pelo anjo da igreja de Laodiceia:


201

“Conheço as tuas obras: não és nem frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente! Mas,
como és morno, nem frio nem quente, vou vomitar-te” (Ap 3,15-16).

87
R u i F e rr e i r a

mesmos nas suas mãos, deixando que Ele seja verdadeiramente o nosso
Senhor e o Pastor que nos conduz202.
Acontece que os planos e os caminhos do Senhor estão tanto acima
dos nossos, como acima da terra está o céu (cf. Is 55,8-9). As promessas
de Deus são desconcertantes aos olhos do mundo (cf. 1Cor 1,17-2,14).
Perante o abismo – entre os nossos planos e pensamentos e os de Deus –
joga-se a nossa conversão. Diante disto, Teresa exorta-nos ao abandono
humilde e confiante a Deus: “deixemos a nossa razão e temores em Suas
mãos”203. Juntamente com a humildade, importa exercitar a obediência204
e a caridade205.

IX. Quartas moradas: a ponte

As quartas moradas são, como já referimos, as moradas intermediá-


rias entre a etapa predominantemente ascética e a etapa predominantemente
mística. A autora invoca o Espírito Santo, pois estas moradas começam a
ser “coisas sobrenaturais”206, isto é, infusas ou místicas. Como tal, é muito
difícil “dá-las a entender”. Ainda que, nesta fase da sua vida, Teresa tenha
mais “luz destas mercês”, continua a ser dificílimo “sabê-las dizer”207. Há,
nestas moradas, “coisas tão delicadas para ver e entender, que o entendi-
mento não é capaz” de o exprimir adequadamente, nem as conseguirão
compreender aqueles que não tenham experiência208. No entanto, Teresa

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

O essencial para Teresa é “procurar exercitar as virtudes em tudo e render a nossa


202

vontade à de Deus em tudo e que o concerto da nossa vida seja o que Sua Majestade dela
ordenar e não queiramos que se faça a nossa vontade mas sim a Sua” (M III 2,6).
203
M III 2,8.
204
Cf. M III 2,12.
205
Cf. M III 2,13.
206
Cf. M IV 1,1.
207
Ibidem.
208
M IV 1,2

88
Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

sublinha a total gratuidade do dom Deus: O Senhor dá os Seus bens quando


quer e como quer e a quem quer209.
De seguida, Teresa retoma a explicação da distinção – que já havia
anteriormente iniciado210 – entre contentamentos e gostos na oração (cf. M
IV 1,4)211. Os contentamentos são adquiridos com a meditação e petições
e procedem da nossa natureza, com a ajuda de Deus, sem a qual nada po-
demos! Nascem também da prática de obras virtuosas que nos esforçamos
por fazer. Têm origem na nossa natureza e acabam em Deus (cf. Ibidem).
Pelo contrário, os gostos têm a sua origem em Deus, sendo por nós sentidos;
goza-os a nossa natureza (cf. Ibidem)212. Os gostos – contrariamente aos
contentos – “dilatam o coração” (cf. Sl 118,32)213.
Segundo Teresa, o caminho para se chegar às moradas superiores não
passa por pensar muito, mas sim por amar muito (cf. M IV 1,7). Por isso, o
que mais nos despertar no amor é o que devemos fazer (cf. Ibidem). Porém,
o amor não está no maior gosto, mas sim na maior determinação de desejar

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

209
Cf. Ibidem. Recordamos a título de exemplo o encontro de Jesus com a mulher
samaritana, no qual Jesus, contra todas as expectativas e conveniências sociais, revela-Se:
1) a uma mulher, 2) samaritana e 3) adúltera (cf. Jo 4,1-42).
210
Cf. M III 2,9-10. No final das terceiras moradas, Teresa inicia a distinção entre
contentamentos e gostos (cf. M III 2,9-10), mas apenas a desenvolverá nestas moradas.
A autora explicitará também a diferença entre pensamento, imaginação e entendimento.
211
Teresa distinguirá ainda entre contentos e ternuras, sinónimos que significam
toda a espécie de experiências agradáveis (paz, satisfação, agrado) “não infusas”, mas
“adquiridas”; são psicologicamente semelhantes às experiências naturais, diferindo destas
por serem recebidas pela oração e pela prática das virtudes.
Gostaríamos de recordar a importância de algumas palavras que, em Teresa, adquirem
um significado próprio, como por exemplo: gosto, gozo, regalo, deleite e sabor. Teresa
atribui-lhes um sentido caseiro, não académico. Estes termos, em si mesmos e em Teresa,
são ambíguos. Talvez sejam utilizados propositadamente para expressar a complexidade e
a dificuldade de descrever aquilo que ela viveu. Realçam também a inseparabilidade entre
o sensual e o espiritual na experiência mística de Teresa de Jesús.
212
Os gostos são todas as experiências infusas, ou seja, não adquiridas; não são
comparáveis às naturais.
213
Cf. M IV 1,5.

89
R u i F e rr e i r a

contentar a Deus em tudo, procurando não O ofender e rogando-Lhe pelo


crescimento da glória de Seu Filho e da Igreja (cf. Ibidem). Para Teresa,
“estes são os sinais do amor” (Ibidem).
A acentuação do amor e da vontade de agradar a Deus parece-nos
essencial, constituindo aquilo que poderíamos denominar de primado do
amor na oração e na espiritualidade teresianas. Lembramos que, para Tere-
sa, a oração é fundamentalmente uma relação de amor com quem sabemos
que nos ama (cf. V 8,5). Como tal, a oração “fundamenta-se na fé ou na
convicção de que Deus nos ama, portanto, de é um «Deus amigo» e que
considera o orante «amigo de Deus»”214. Deste modo, é salientada a dimen-
são relacional e afectiva da oração enquanto encontro com Deus, em Cristo.
Daqui deriva também a importância atribuída à Humanidade de Cristo.
Enquanto amizade, a oração envolve e compromete toda a vida215, porque
aquilo que mais desejamos é fazer a vontade do nosso amigo e agradar-lhe
em tudo. Como nos recordou Bento XVI em Fátima, num discurso na Ba-
sílica da Santíssima Trindade, “a fidelidade no tempo é o nome do amor; de
um amor coerente, verdadeiro e profundo (…) isto supõe, evidentemente,
uma verdadeira intimidade com Cristo na oração (…)”216. Partindo da sua
experiência pessoal, Teresa procura guiar-nos no caminho da fidelidade.
Para Teresa, é deveras importante conhecer os dinamismos psico-
lógicos e espirituais do ser humano e a sua relação com a oração, porque
“todas as inquietações e trabalhos vêm deste não nos entendermos” (M IV
1,9). Daí, a sua preocupação em diferenciar gostos de contentamentos e
em explicar as distracções na oração.
Para tornar mais acessível a compreensão do que são os gostos de
Deus – que em outra parte designou de “oração de quietude”217 – Teresa

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Vechina, Jeremias Carlos – “A novidade teresiana da oração”, 121.


214

Cf. Ibidem.
215

216
Bento XVI – Bento XVI em Portugal, discursos e homilias. Prior Velho: Paulinas,
2010, 52.
217
Cf. Álvarez, Tomás – nota n.º 4, a M IV 2,2. In Teresa de Jesús – As Moradas,
in Idem – Obras Completas, 569.

90
Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

utiliza a alegoria das duas fontes e dos dois tanques (cf. M IV 2,2ss.). Mais
uma vez, a autora apela ao poder imaginativo dos seus leitores e utiliza
(novamente) o sugestivo símbolo da água:

Façamos de conta, para o entender melhor, que vemos duas fontes com dois
tanques que se enchem de água, que não acho coisa mais a propósito para
declarar algumas coisas de espírito que isto da água. (M IV 2,2).

Teresa passa, então, à explicação das diferenças:

Estes dois tanques enchem-se de água de diferentes maneiras; para um, [a


água] vem de mais longe, por muitos aquedutos e artifícios; o outro está feito
na mesma nascente de água e vai-se enchendo sem nenhum ruído. (…) Não é
preciso artifício; nem mesmo se acaba o edifício dos aquedutos, que sempre
está correndo dali água. (M IV 2,3).

Teresa ilustra as disparidades existentes entre estes dois modos. A água


que vem de longe por meio de aquedutos são os contentamentos, os quais
através da meditação trazemos até nós com pensamentos. Como provêm
dos nossos esforços, provocam ruído (cf. M IV 2,3). Por seu lado, a água
que jorra da própria fonte nasce de Deus, que é a nascente. Esta água, pro-
veniente da fonte das fontes, produz uma grande paz e quietude (cf. M IV
2,4). Ela “vai-se derramando por todas as moradas e potências, até chegar
ao corpo; (…) começa em Deus e acaba em nós” (Ibidem)218.
Esta fonte, segundo Teresa, está enraizada no mais íntimo do nosso
ser. Apesar de ter usado a expressão “dilatasti cor meum” (Sl 118,32), a

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Sem entrarmos aqui numa análise detalhada, notamos somente que a distinção de
218

Teresa assenta, basicamente, no que poderíamos denominar de um modo mais ascético – os


contentamentos, originados pelo nosso esforço – e de outro mais místico – em que o puro
dom gratuito jorra da fonte divina, ou seja, de Deus, não enchendo, mas dilatando.

91
R u i F e rr e i r a

autora considera que a origem desta fonte “deve ser o centro da alma. (…)
Certo é, vejo segredos em nós mesmos que me trazem espantada muitas
vezes. (…) E andamos por cá como uns pastorinhos tontos, parecendo-nos
que enxergamos alguma coisa de Vós e deve ser tanto como nada, pois em
nós mesmos há grandes segredos que não entendemos” (M IV 2,5). Teresa
vislumbra no núcleo da alma um segredo abismal que ultrapassa a nossa
capacidade de compreensão meramente racional219. Ao mesmo tempo
que a grandeza da alma fundamenta a dignidade humana, ela é também
fonte de humildade para o homem, uma vez que o mistério que a habita
transcende-a. Podemos, por analogia, entrever um certo paralelismo com
aquilo que a Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS) nos ensina sobre
a consciência humana220.
Todavia, o que mais chama a atenção de Teresa no Sl 118,32 é a dila-
tação. A autora diz-nos que, quando se começa a produzir em nós aquela
água celestial, “do profundo de nós mesmos parece que se vai dilatando e
alargando todo o nosso interior e produzindo uns bens que não se podem
dizer, nem mesmo a alma sabe entender o que é que aquilo ali se lhe dá.
(…) [Estes bens] penetram toda a alma e até bastantes vezes (…) participa
o corpo. (…) As potências não estão todas unidas (…) mas embebidas, [e]
olhando como espantadas o que será aquilo” (M IV 2,6).
Teresa fala do que sabe, com base na sua própria experiência. Pode
errar, mas não mentir. Neste momento da sua vida, fala a partir de uma

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Já o autor da Primeira carta de São João afirmava que “Deus é maior que o nosso
219

coração” (1Jo 3,20). Por seu lado, Hans Urs von Balthasar falou da presença no homem
“de um Mistério que é maior do que o seu coração”, cit. por Martín Velasco, Juan – “Ser
místico em situação de crise de Deus”, 71.
220
“No fundo da própria consciência, o homem descobre uma lei que não se impôs a si
mesmo. (…) O homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus; (…) A consciência
é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja
voz se faz ouvir na intimidade do seu ser”, in Igreja Católica: II Concílio Ecuménico do
Vaticano – Gaudium et Spes, 16, in Braga: Apostolado da Oração, 355.

92
Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

experiência de vida já amadurecida (cf. M IV,2,7)221. Este facto é muito


relevante, na medida em que mais que uma mestra, Teresa de Jesús é uma
testemunha do amor do Deus Trinitário. O testemunho de Teresa, baseado na
sua própria experiência e vida de oração, adquire especial relevo no mundo
actual, como bem nos lembrou o Papa Paulo VI: “o homem contemporâneo
escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres, ou então,
se escuta os mestres é porque eles são testemunhas”222.
Outro factor que sobressai no testemunho de Teresa é a íntima relação
que existe entre vida e oração, prova da união entre mística e missão. Teresa
afirma sem rodeios que as verdades da oração conhecem-se nos efeitos e
nas obras que se lhe seguem. Pois, a vontade do orante deve já, de certo
modo, estar unida à de Deus. Efectivamente, o crisol que prova a oração
são as obras (cf. M IV 2,8)223.
Com isto, chegamos a uma mística de olhos abertos (Johann Baptist
Metz) ou uma mística de compaixão. Segundo J. Martín Velasco, estas duas
expressões remetem para um traço presente nos místicos cristãos de todos
os tempos e também nos de outras tradições religiosas224. A antítese de
Metz, longe de ser uma exigência que a consciência cristã hodierna impõe
à experiência mística, é uma consequência que lhe é inerente, sublinhada
pelas espiritualidades contemporâneas225. Como tal, deve salientar-se a

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

221
“Em quase quinze anos desde que o escrevi, talvez me tenha dado o Senhor mais
claridade nestas coisas do que então entendia e, agora como então, posso errar em tudo mas
não mentir, que, por misericórdia de Deus, antes passaria mil mortes. Digo o que entendo”
(M IV 2,7).
222
Paulo VI – Discurso aos membros do Consilium de Laicis (em 2 de Outubro de
1974): AAS 66 (1974), 568.
223
Isto mesmo nos lembra a Primeira carta de São João, o amor a (e de) Deus
manifesta-se na justiça e na verdade: “não amemos com palavras nem com a boca, mas
com obras e com verdade” (1Jo 3,18).
224
Cf. Martín Velasco, Juan – “Ser místico em situação de crise de Deus”, 82.
225
Cf. Ibidem.

93

7
R u i F e rr e i r a

convergência e a complementaridade entre mística e ética226, entre mística


e profecia, entre mística e razão, a fim de superar velhos preconceitos,
assim como o “eclipse da mística” a partir do séc. XVIII, no seio do pró-
prio cristianismo, com o “divórcio entre a teologia e a mística” (hoje já
parcialmente superado)227.
Relativamente aos gostos, Teresa salienta o seu carácter absolutamente
gratuito; por outro lado, afirma a necessidade manter uma predisposição
receptiva e humilde para os poder acolher. Os gostos são da exclusiva von-
tade e responsabilidade de Deus! Ao orante resta colocar-se à Sua inteira
disposição e permanecer humilde (cf. M IV 2,9). Para permanecer humilde
é necessário, desde logo, não se julgar merecedor das “mercês e gostos do
Senhor” (cf. Ibidem).
Teresa vai mais longe neste aspecto, advertindo que não devemos
procurar os gostos, porque: a) devemos amar a Deus sem interesse (o ver-
dadeiro amor é desinteressado); b) é falta de humildade julgar que pelas

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

226
Uma das autoras citada por Juan Martín Velasco, para fundamentar a ligação entre
a mística e a ética, é precisamente Teresa de Jesús: “E Santa Teresa ao longo do seu livro
Castelo Interior repete uma e outra vez: «No aquém, o Senhor só nos pede estas duas coisas:
amor de sua Majestade e do próximo; é nisso que temos de trabalhar» (M V 3,7). «Não,
irmãs;» acrescenta um pouco depois: «obras quer o Senhor, e se vires uma doente a quem
possas dar algum alívio, não te importes de perder essa devoção e compadece-te dela …»
(M V 3,11). Mais adiante, insiste a Santa, advertindo as suas irmãs: «Não pensemos que
está tudo feito com o muito chorar: antes deitemos mãos às muitas obras e virtudes» (M
VI 6,9). «Para isso é a oração, minhas filhas; para isto serve este casamento espiritual: para
que nasçam sempre obras, obras» (M VII 4,6).” Cf. Ibidem, 84.
227
Cf. Ibidem. Neste estudo, Juan Martín Velasco propõe várias pistas para esse efeito.
Sobre a separação entre oração/mística e teologia Karl Rahner afirmou o seguinte: “se a
tua teologia deixa de ser uma teologia de joelhos – no sentido que deve ser a teologia de
um homem que reza – para se perder nos caminhos do intelectualismo, degradar-se-á no
diletantismo de burgueses atrasados”. Rahner, Karl – Serviteurs du Christ. Mame, 1969,
126. Citado por Lafrance, Jean – Reza ao Pai no teu íntimo. Braga: Editorial Apostolado
da Oração, 1988, 62.

94
Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

nossas obras os merecemos; c) a verdadeira preparação é desejar “padecer


e imitar o Senhor e não ter gostos”, sabendo-nos pecadores; d) Deus não é
obrigado a no-los conceder, são um dom gratuito (Ele sabe melhor que nós,
aquilo que precisamos); e) é inútil preocuparmo-nos com isso. Por mais
que nos esforcemos, Deus só concede gostos a quem quer e, muitas vezes,
estando a alma descuidada (cf. Ibidem).
Como tal, conclui Teresa, coloquemo-nos inteiramente à Sua dispo-
sição, humilhemo-nos e desapeguemo-nos de verdade (cf. M IV 2,10). O
caminho do amor que devemos seguir é o de servir a Cristo crucificado,
não lhe pedindo gostos, nem os desejando; pelo contrário, suplicando-Lhe
que não no-los conceda nesta vida – devemos procurar amar gratuitamente:
“Amai-vos como Eu vos amei” (Jo13,34)228.
No capítulo terceiro das quartas moradas, Teresa aborda a oração
de recolhimento, os efeitos dos gostos e a oração de quietude. A oração de
recolhimento, muitas vezes, começa antes da anterior. Teresa afirma aqui
que esta oração também lhe parece sobrenatural, ou seja, considera-a já uma
oração infusa/mística (cf. M IV 3,1)229. A autora explica que “não é estar

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

228
Num livro sobre a famosa oração da paz, de autoria desconhecida, atribuída a São
Francisco de Assis, Leonardo Boff apresenta a seguinte oração do beato Egídio de Assis,
discípulo de Francisco que aqui reproduzimos: “Se amares, serás amado; / Se venerares,
serás venerado; / Se servires, serás servido; Se tratares bem dos outros, serás também bem
tratado. / Entretanto, / Bem-aventurado aquele que ama sem ser amado, / Bem-aventurado
aquele que venera sem ser venerado, / Bem-aventurado aquele que serve sem ser servido,
/ Bem-aventurado aquele que trata bem de todos sem ser bem tratado.” Para L. Boff, esta
oração espelha a força do amor incondicional, ou seja, amar por amar, “pelo valor intrínseco
do acto de amar, sem esperar qualquer retribuição.” Esse é o amor que Deus tem para com
todos os seus filhos e filhas, bons e maus, justos e injustos. Cf. Boff, Leonardo – A oração de
São Francisco: uma mensagem de paz para o mundo actual. Adaptado da edição brasileira.
Cascais: Pergaminho, 2007, 18-19.
229
Devemos referir que a própria Teresa não é unânime quanto à nomeação dos
graus de oração. Tanto fala de “recolhimento não infuso” – último grau de oração não
mística – como de “recolhimento infuso” – primeiro grau de oração mística. Como tal, não

95
R u i F e rr e i r a

às escuras nem cerrar os olhos”, nem algo de exterior, mas “sem artifício”
se prepara caminho para a oração de quietude (cf. Ibidem). Como tal, este
recolhimento constitui como que uma antecâmara para a oração de quietude.
Para Teresa, nesta oração os sentidos e as potências – a gente do castelo
(cf. M I 2,4.12.15) – foram dispersas, “saíram para fora e andam com gente
estranha, inimiga do bem deste castelo, dias e anos” (cf. M IV 3,2). Então,
Deus que habita no interior decide, por Sua grande bondade, chamá-los a
Si para voltarem para a Sua morada (cf. Ibidem). E afirma Teresa que a
atracção do Senhor “tem tanta força” que deixam “as coisas exteriores” em
que se encontravam e “se metem no castelo” (cf. Ibidem). Para encontrar
“a Deus no interior da alma” é grande a ajuda do Senhor (cf. M IV 3,3).
Segundo Teresa, isto não é adquirido, ou seja, é infuso. Não depende do
nosso querer, mas sim do dom de Deus. Deus toca-nos e faz-nos desejar,
ou melhor, desejá-Lo (cf. Ibidem).
Perante este chamamento irresistível de Deus, Teresa aconselha o
orante a não discorrer e a permanecer atento ao proceder de Deus na alma
(cf. M IV 3,4), porque: a) “quem menos pensa e quer fazer, é quem faz mais”
(M IV 3,5); b) como é paz infusa, qualquer esforço nosso é prejudicial.
Devemos, por isso, abandonar-nos nas mãos de Deus e deixá-Lo actuar
(cf. M IV 3,6); c) o próprio esforço de não pensar suscita pensamento, isto
é, ruído (cf. Ibidem); d) devemos esquecer-nos de nós mesmos, para nos
focarmos na glória de Deus (cf. Ibidem).
Em suma, perante o dom de Deus, Teresa aconselha a maior passivi-
dade e receptividade possíveis: “sem nenhum esforço nem ruído, procure
atalhar o discorrer do entendimento, mas não suspendê-lo, nem ao pensa-
mento, [lembrando-se] que está diante de Deus e Quem é este Deus” (M IV
3,7). Não procure entender porque é puro Dom. Deixe-se levar e procure
gozar (cf. Ibidem). Esta oração tem muito menos gostos, mas é um meio para
chegar à quietude. A vontade (afecto) está assente em Deus (cf. M IV 3,8).
Os principais efeitos ou sinais da oração de quietude são os seguintes:
1º) a dilatação ou alargamento da alma; 2º) um maior empenho e liberdade
de espírito colocados ao serviço das coisas de Deus; 3º) a perda do temor,

96
Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

enquanto medo, e um aumento da fé/confiança de que, em Deus, tudo é


possível; 4º) a graça da perseverança nas dificuldades e sofrimentos; 5º)
um maior desejo e conhecimento das “grandezas” de Deus e consequente
desinteresse pelas coisas do mundo, consideradas como lixo (cf. M IV 3,9).
“Enfim, em todas as virtudes fica melhorada e não deixará de ir cres-
cendo, se não volta atrás (…)” (Ibidem). Contudo, para Teresa, é muito peri-
goso uma alma ofender a Deus e abandonar a oração nesta fase: “irá de mal
a pior (…), porque muito mais faz o demónio por uma alma destas do que
por muitas e muitas a quem o Senhor não fizer estas mercês” (M IV 3,10).
Teresa termina sublinhando a importância das quartas moradas:
“alonguei-me muito nesta morada, porque é nela que creio entram mais
almas. E, como também entra o natural juntamente com o sobrenatural, o
demónio pode fazer mais dano;” (M IV 3,14).

X. Conclusão

Para terminar, iremos rever sinteticamente o que o nosso trabalho


permitiu averiguar quanto às questões inicialmente levantadas. Estamos
conscientes de que não iremos concluir nada de original ou inovador. Con-
tudo, de um modo geral, as hipóteses que colocámos verificaram-se através
da análise que realizámos. Em primeiro lugar, conseguimos descortinar uma
íntima ligação entre o itinerário oracional, a vida ascética e o crescimento
espiritual. Como afirmou o Papa Francisco, a imagem de caminho sintetiza
a vida de Teresa230.

devemos sobrevalorizar nem absolutizar a nomenclatura proposta por Teresa. Cf. Álvarez,
Tomás – nota n.º 1, a M IV 3,1. In Teresa de Jesús – Obras Completas, 573. Fruto de várias
circunstâncias, Teresa ter-se-á enganado e quereria ter falado da oração de recolhimento
antes da oração de quietude. Devido a este lapso, irá debruçar-se agora sobre a oração de
recolhimento.
230
Cf. Francisco – Mensagem do Papa Francisco por ocasião do quinto centenário
do nascimento de Teresa de Ávila (Vaticano, 15 de Outubro de 2014).

97

7
R u i F e rr e i r a

Para Teresa, a oração teve uma importância decisiva. De modo


semelhante, a vida ascética, enquanto desejo de contínua progressão e
crescimento espiritual em ordem à perfeição, também foi fundamental.
No entanto, acima de tudo, esteve o amor. Como tal, podemos concluir
que nem a oração nem a ascese eram para Teresa um fim, mas somente um
meio para amar a Deus e ao próximo com gestos e com obras. A grande
luta de Teresa neste mundo consistiu no desapego de si mesma. A oração e
a ascese foram, portanto, um meio para o crescimento espiritual em ordem
ao serviço de Deus e dos homens, na Igreja.
Relativamente à mistagogia, Teresa através de símbolos e alegorias
utilizou-a com inspiração, de modo a conduzir outros à união com Deus. Por
outro lado, falou sempre a partir da sua própria experiência. Por um lado,
a sua obra está fortemente marcada pela sua experiência pessoal, pelo que
devemos ter algumas reservas em universalizar o seu itinerário oracional.
Por outro lado, isto confere-lhe a autoridade de uma testemunha que falou
e escreveu sobre aquilo que viveu.
Ao nível do relacionamento entre mística e missão, Teresa defendeu-a
e viveu-a. Como vimos, o verdadeiro crisol da oração para ela são as obras
e o amor. A oração torna-nos conscientes dos nossos limites e das nossas
fraquezas; ao mesmo tempo, potencia o exercício das virtudes e da acção
apostólica. Tanto a oração como a prática das virtudes nos conduzem à
união com Deus. Na medida em que o orante progride na união a Deus,
progride também na prática das virtudes, porque a oração deixa as suas
marcas. A primeira delas é a humildade e a amizade para com aqueles que
estão ao nosso lado. Isto alcança-se através do abandono incondicional a
Deus, procurando agradar-lhe e realizando a Sua vontade em tudo.
Num futuro trabalho, seria interessante aprofundar o tema da união
entre mística e missão, nomeadamente explorando as fundações e a acção
apostólica de Teresa. Seria igualmente importante explorar a mistagogia
teresiana como uma vocação e missão. Finalmente, será pertinente pros-
seguir com o estudo do itinerário oracional e do crescimento espiritual nas
moradas predominantemente místicas.

98
Itinerário oracional, vida ascética e crescimento espiritual em Teresa de Jesús

Por último, salientamos a insistência na perseverança e na fidelidade


à oração. Teresa de Jesús soube por experiência própria a importância de
cuidar da relação com O amigo, pois somente com o Seu amor é que se
poderá crescer no amor e amar o outro como Ele nos amou. Por isso, para
Teresa, a oração nunca foi “um modo de fugir, nem de se colocar dentro
de uma bolha, e nem sequer de se isolar, mas de progredir numa amizade
que quanto mais cresce, tanto mais põe em contacto com o Senhor, «amigo
autêntico» e fiel «companheiro» de viagem, com o qual «tudo pode ser
suportado», porque Ele sempre «nos infunde ajuda e coragem, e nunca nos
abandona» (V 22, 6)”231. Como tal, a sua experiência mística infundiu-lhe
os dons necessários para realizar a sua verdadeira vocação.

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231
Ibidem.

99
R u i F e rr e i r a

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