182234-Texto Do Artigo Completo-539910-1-10-20220209

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doi: http://dx.doi.org/10.11606/issn.1679-9836.v101i1e-182234 Rev Med (São Paulo). 2022 jan-fev;101(1):1-7.

Artigo Original

Onde trabalham os médicos formados na Faculdade de Medicina da


Universidade de São Paulo? Um estudo transversal observacional

Where do doctors graduated from the Medical School of the University of São
Paulo work? An observational cross-sectional study

Alexandre Santos Schalch1, Alicia Matijasevich2, Mario César Scheffer3

Schalch AS, Matijasevich A, Scheffer MC. Onde trabalham os médicos formados na Faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo? Um estudo transversal observacional / Where do doctors graduated from the Medical School of the University of São Paulo
work? An observational cross-sectional study. Rev Med (São Paulo). 2022 jan.-fev.;101(1):1-7.
RESUMO: Conhecer a inserção e a atuação dos profissionais ABSTRACT: Understanding the insertion of health professionals
de saúde depois de formados contribui para o aprimoramento after graduation contributes to the improvement of educational
das instituições formadoras e para o planejamento de políticas institutions and planning of public health and education policies.
públicas de educação e saúde. O objetivo do presente estudo The objective of this study is to evaluate the insertion in the job
é avaliar a inserção no mercado de trabalho e no sistema de market and in the healthcare system of University of São Paulo
saúde dos médicos formados pela Faculdade de Medicina da Medical School alumni graduated in 1999, 2000, 2009 and 2010.
Universidade de São Paulo nos anos de 1999, 2000, 2009 e
The database from the Brazilian Medical Demographic study was
2010. Para as características demográficas e de formação dos
médicos foi utilizada a base de dados do estudo Demografia used to collect individual data of the subjects. Their employment
Médica no Brasil. Os dados sobre vínculos de trabalho foram bonds were extracted from four digital platforms, which were
extraídos de 4 plataformas digitais, e permitiram caracterizar a effective in characterizing their work insertion: Lattes platform,
inserção dessa população: Plataforma Lattes, Cadastro Nacional National Registry of Health Institutions, LinkedIn and Doctoralia.
de Estabelecimentos de Saúde, LinkedIn e Doctoralia. Dos 602 Of the 602 doctors analyzed, 63.1% were men, the mean age was
médicos estudados, 63,1% eram homens, com idade média 44.7 years and the majority worked both in the public and private
de 44,7 anos; a maioria trabalhava em dupla prática pública e health sectors, while a minority worked exclusively at the Unified
privada, enquanto uma minoria, apenas no Sistema Único de Health System. The most common workplace were hospitals and
Saúde. O vínculo mais frequente foi com hospitais e houve baixa there was a low percentage of doctors in Primary Health Care.
frequência de médicos na atenção primária. Manter a capacidade Maintaining the ability to train specialists in key areas while also
de formar especialistas em áreas fundamentais, além de fomentar promoting careers in primary care, which are essential to the
vocações para a atenção primária, essencial ao sistema de saúde,
healthcare system, is a curricular and institutional challenge that
é um desafio curricular e institucional a ser repensado. O estudo
pode ser reproduzido para acompanhar a inserção profissional needs to be tackled. This study may be reproduced to monitor the
e o retorno social dos recursos humanos em saúde egressos de professional insertion and the social return of human resources
instituições de ensino. for health among health institution’s alumni.

Palavras-chave: Recursos humanos em saúde; Mercado de Keywords: Health workforce; Job market; Health systems;
trabalho; Sistemas de saúde; Educação de graduação em medicina. Education, medical, undergraduate.

1. Graduando em medicina, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. https://orcid.org/0000-0002-0212-3931. E-mail: alexandre.schalch@
fm.usp.br.
2. Professora Associada, Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. https://orcid.org/0000-0003-
0060-1589. E-mail: [email protected].
3. Professor Doutor, Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. https://orcid.org/0000-0001-8931-
6471. E-mail: [email protected].
Endereço para correspondência: Alexandre Santos Schalch. Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo. Av. Dr. Arnaldo, 455, 2° andar, sala 2166. São Paulo, SP. CEP: 01246-903. E-mail: [email protected].

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Schalch AS, et al. Onde trabalham os médicos formados na FMUSP? Um estudo transversal observacional

INTRODUÇÃO complementar, por meio da venda e prestação de serviços


ao sistema público, seja de forma suplementar através de

O s recursos humanos em saúde, entre eles


os médicos, precisam estar disponíveis em
quantidade suficiente e de maneira bem distribuída para
planos e seguros de saúde privados. Embora 71,5% dos
brasileiros usem exclusivamente o SUS, enquanto 28,5%
da população tem algum tipo de plano de saúde privado10,
bem atender à população. É essencial, também, que estes há mais médicos concentrados no setor privado do que no
profissionais tenham formação adequada e competências público, considerando o tamanho da população dos dois
apropriadas para prestar serviços de saúde de qualidade e subsetores8.
contribuir positivamente com a melhoria de indicadores Há lacunas na literatura sobre fatores que possam
de saúde1,2. determinar a inserção dos médicos no mercado de trabalho
O desequilíbrio entre a oferta de médicos e as e no sistema de saúde, como as escolhas pessoais, a escola
necessidades dos sistemas de saúde e das populações é de graduação, a idade, o tempo desde a formatura, sexo e
um fenômeno mundial que, para sua melhor compreensão, especialidade. Este é o propósito do presente artigo, ao
exige padronização e comparabilidade de dados sobre abordar o caso específico dos egressos da Faculdade de
características sociodemográficas, formação e inserção Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), fundada
desses profissionais no mercado de trabalho3. há 108 anos, reconhecida como centro de excelência de
Os sistemas de saúde, assim como a profissão pesquisa e ensino de graduação e Residência Médica11.
médica, passam por constantes transformações. Um bom
termômetro para conhecer e acompanhar as dinâmicas que MÉTODOS
orientam essas mudanças é o estudo do mercado de trabalho
em saúde3, que é influenciado pelas políticas de saúde, A presente pesquisa é um estudo exploratório,
pela disponibilidade de profissionais e pelas demandas observacional, de tipo transversal. Foram incluídos os
do sistema de saúde convertidas na oferta de postos e médicos graduados na FMUSP nos anos de 1999, 2000,
oportunidades de trabalho. 2009 e 2010. Optou-se por esse recorte temporal visando
Inseridos neste contexto, a escolha dos médicos contemplar dois grupos distintos de médicos, formados há
acerca da especialidade ou área de atuação e dos locais de aproximadamente duas décadas (1999/2000) e uma década
domicílio e trabalho pode ser entendida como multifatorial. (2009/2010), portanto com graus variados de exposição ao
A distribuição geográfica e entre as especialidades depende mercado de trabalho.
de elementos como expectativas de renda, condições de Durante o seu planejamento, o estudo estabeleceu
exercício profissional, fatores sociodemográficos e gênero, orientações para a coleta, uso e consolidação de dados
bem como características individuais e de formação, dentre secundários oriundos de fontes heterogêneas e não
outros aspectos4-7. integradas disponíveis publicamente na internet. Realizou-
O Brasil atingiu em 2020 a marca de meio milhão se um levantamento prévio de fontes existentes sobre
de médicos, o que corresponde a 2,4 médicos por mil atuação ou inserção profissional de médicos das quais foram
habitantes8, taxa semelhante às da Coreia do Sul, México, utilizadas quatro: Plataforma Lattes (currículo e trajetória
Polônia e Japão, porém abaixo da média de 3,5 médicos por acadêmica), Cadastro Nacional de Estabelecimentos de
mil habitantes dos países que compõem a Organização para Saúde – CNES – Datasus (médicos vinculados a serviços
a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)9. de saúde), LinkedIn (rede social profissional) e Doctoralia
Mesmo com o aumento do número de médicos, resultado (médicos que atuam em consultórios privados). A escolha
da abertura de novos cursos de medicina, no Brasil faltam do número de plataformas levou em consideração a
profissionais em diversas localidades, em serviços e factibilidade de coleta manual das informações, e a tentativa
em determinadas especialidades médicas, além de os de maximizar a obtenção de informações sobre vínculos
profissionais estarem mal distribuídos geograficamente profissionais de diferentes naturezas.
(entre regiões urbanas, periféricas e rurais) e no sistema de A partir disso, dois pesquisadores consultaram e
saúde (entre os setores público e privado, entre serviços de cruzaram os dados secundários através da execução de
saúde e entre os níveis de atenção primária, ambulatorial roteiro de extração de maneira independente, visando
e hospitalar)8. críticas e maior confiabilidade das informações. Os
O mercado de trabalho médico no Brasil é percursos e dados foram revistos por um terceiro
influenciado por escolhas e trajetórias profissionais, mas pesquisador que atuou como supervisor de coleta e
também pela organização e pelo funcionamento do sistema qualidade.
de saúde. Há mais de três décadas, em 1988, a Constituição Após a obtenção das informações disponíveis para
Federal instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS) que cada indivíduo, as inserções e vínculos profissionais dos
prevê acesso público e universal da população, mas também médicos foram classificadas em: 1) vínculos públicos, que
permitiu a participação do setor privado, seja de forma foram subdivididos em 1a) hospital público (considerou-se

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aqueles hospitais que atendem ao SUS, independentemente RESULTADOS


de sua natureza jurídica), 1b) atenção primária à saúde
(UBS e ESF), 1c) atenção ambulatorial especializada
Foram inicialmente considerados 653 médicos,
(AMA, CAPS, DST/AIDS, dentre outros), 1d) docência ou
que representam a totalidade dos graduados em medicina
pesquisa em universidade pública ou 1e) outros vínculos
na FMUSP nos anos de 1999, 2000, 2009 e 2010. Destes,
públicos (gestão, atendimento pré-hospitalar); e 2) vínculos
após consulta às bases sobre inserção profissional, foram
privados, que foram subdivididos em 2a) hospital privado
excluídos 51 indivíduos, dos quais 13 encontravam-se
(que não atende ao SUS), 2b) consultórios ou clínicas
atuando no exterior, 22 não estavam cadastrados em
particulares, 2c) docência ou pesquisa em universidade
nenhuma das bases pesquisadas, 13 constavam nas
privada, e 2d) outros vínculos privados (serviços de
bases, porém não apresentavam descrição de vínculos no
diagnose e terapia , indústria farmacêutica).
momento da coleta de dados, e três atuavam em atividades
A coleta dos dados profissionais foi realizada entre
fora da medicina.
setembro de 2019 e julho de 2020, a qual se seguiu da
Após a exclusão destes 51 indivíduos, foram
inclusão das informações sobre sexo, idade e especialidade
analisados 602 médicos distribuídos da seguinte forma:
dos médicos, extraídas da base de dados do estudo
150 graduados em 1999, 147 em 2000, 163 em 2009 e 142
Demografia Médica no Brasil.
em 2010. A maioria dos médicos da amostra era formada
Os dados obtidos foram coletados no software
por homens (63,1%) e a frequência de sexos não diferiu
Microsoft Excel 2009 e comparados através dos métodos
significativamente entre os biênios analisados (1999-2000
estatísticos adequados pelos softwares IBM 25.0 SPSS e
e 2009-2010). A idade média foi de 44,7 anos com desvio-
Microsoft Excel 2009. Valores de p inferiores a 0,05 foram
padrão de 1,4 anos. A média de idade variou de acordo
considerados estatisticamente significativos.
com o ano de conclusão da graduação, sendo de 44,7 anos
Este estudo é parte do estudo da Demografia Médica
para aqueles formados em 1999 e 2000 e de 35,5 anos para
brasileira, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas da
aqueles formados em 2009 e 2010.
FMUSP (Resolução 797.424 em 09/03/2014).
Tabela 1- Descrição dos egressos quanto ao sexo e de acordo com o biênio de formação

1999/2000 2009/2010 x2 valor-p Total

N (%) N (%) N (%)

Homens 194 (65,3) 186 (61) 380 (63,1)


0,27
Sexo Mulheres 103 (34,7) 119 (39) 222 (36,9)

Total 297 (100) 305 (100) 602 (100)

Tabela 2 - Caracterização dos egressos quanto ao sexo e de acordo com o biênio de formação

1999/2000 2009/2010 x2 valor-p Total

N (%) N (%) N (%)

<=35 anos 0 183 (60) <0,001 183 (30,4)

36-40 anos 0 118 (38,7) <0,001 118 (19,6)


Idade
41-45 anos 230 (77,4) 3 (1) <0,001 233 (38,7)

46+ anos 67 (22,6) 1 (0,3) <0,001 68 (11,3)

Total 297 (100) 305 (100) 602 (100)

As plataformas estudadas tiveram diferentes do Lattes foi mais frequente (p<0,001) entre os formados
níveis de adesão pelos egressos, sendo o CNES o mais em 2009 e 2010 (83%) do que entre os formados em 1999
frequentemente utilizado. No total, 88,9% dos formados e 2000 (66%). A tendência é inversa para o Doctoralia, em
possuíam informações no CNES, 74,6% na Plataforma que o uso foi mais frequente (p<0,001) nos formados em
Lattes, 54,8% no Doctoralia e 24,9% no LinkedIn. O uso 1999 e 2000 (74,1%) do que entre 2009 e 2010 (54,8%).

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Schalch AS, et al. Onde trabalham os médicos formados na FMUSP? Um estudo transversal observacional

Tabela 3- Frequência de uso das plataformas estudadas de acordo com ano de conclusão do curso
1999/2000 2009/2010 Total x2 p-valor
Plataforma
N (%) N (%) N (%)
Lattes 196 (66) 253 (83) 449 (74,6) <0,001
LinkedIn 76 (25,6) 76 (24,9) 152 (25,2) 0,85
CNES 256 (86,2) 279 (91,5) 535 (88,9) 0,039
Doctoralia 220 (74,1) 167 (54,8) 387 (64,3) 0,02
Total 297 (100) 305 (100) 602 (100)

Em relação à categorização dos vínculos constata-se que dentre os médicos formados no 2009/2010
empregatícios ou inserção profissional, a maior parte dos havia menor frequência de indivíduos trabalhando apenas
egressos trabalha tanto no setor público quanto no setor no setor privado em relação aos formados em 1999/2000.
privado (52,8%), enquanto uma minoria (10,1%) possuía Por outro lado, observando os indivíduos que trabalham
apenas vínculos públicos. Os 37,1% restantes possuíam exclusivamente no setor público ou que têm “dupla
apenas vínculos privados. Comparando os subgrupos, prática” (setores público e privado), há maior frequência
de formados entre as turmas de 1999 e 2000.
Tabela 4 - Distribuição das categorias de vínculos estudados de acordo com o ano de conclusão do curso
Ano de conclusão
Prática 1999/2000 2009/2010 Total x2 valor-p
N (%) N (%) N (%)
Dupla prática pública e privada 142 (47,8) 176 (57,7) 318 (52,8) 0,015
Apenas prática pública 21 (7,1) 40 (13,1) 61 (10,1) 0,014
Apenas prática privada 134 (45,1) 89 (29,2) 223 (37,1) <0,001
Total 297 (100) 305 (100) 602 (100)

A análise dos vínculos públicos revela que a maioria especializada (serviços ambulatoriais, ambulatórios de
destes é concentrada na atenção hospitalar. Dessa forma, especialidades, Assistência Médica Ambulatorial – AMA,
85% dos indivíduos estudados que trabalham no setor Centros de Atenção Psicossocial – CAPS, hemocentros,
público estão inseridos em hospitais públicos, enquanto serviços de HIV-Aids, reabilitação,) com frequência de
apenas 5,3% estão na atenção primária à saúde. O 15,8%. Além disso, existem também vínculos públicos,
segundo vínculo mais frequente é na atenção ambulatorial que englobam atendimento pré-hospitalar, gestão pública
e perícias.
Tabela 5 - Frequência dos subtipos de vínculos públicos
1999/2000 2009/2010 Total
Categorias
N (%) N (%) N (%)
Hospital público* 142 (83,3) 180 (83,3) 322 (85,0)
Atenção primária 5 (3,1) 15 (6,9) 20 (5,3)
Atenção ambulatorial especializada 24 (14,7) 36 (16,7) 60 (15,8)
Docente ou pesquisador de universidade pública 19 (11,7) 7 (3,2) 26 (6,9)
Outros vínculos públicos 7 (4,3) 5 (2,3) 12 (3,2)
Total (pelo menos um vínculo público) 163 (100) 216 (100) 379 (100)
*Que atende SUS: público, filantrópico ou universitário

Observando os vínculos privados, há, novamente, esses vínculos. O trabalho em universidades privadas é
preponderância da atenção hospitalar, atuação de 72,3% exercido apenas por 4,4% dos profissionais que atuam no
dos que trabalham no setor privado. Em seguida, o setor privado. Além disso, descritos em “outros vínculos
trabalho em consultórios e clínicas particulares apresenta privados”, na Tabela 5, estão os trabalhos em serviços de
grande frequência, com 63,4% dos médicos ocupando diagnose e terapias e indústria farmacêutica.

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Tabela 6- Frequência dos subtipos de vínculos privados


1999/2000 2009/2010 Total
Categorias
N (%) N (%) N (%)
Hospital privado 186 (67,4) 205(77,4) 391 (72,3)
Consultório particular ou clínica privada 192 (70) 151 (57) 343 (63,4)
Docente de universidade privada 16 (5,8) 8 (3) 24 (4,4)
Outros vínculos privados 38 (13,8) 19 (7,2) 57 (10,5)
Total (pelo menos um vínculo privado) 276 265 541

Na comparação dos elementos que podem setor privado (p<0,001). Em relação ao sexo, não houve
influenciar a inserção profissional, observa-se que, quanto diferença estatística na inserção pública ou privada dos
mais jovem o indivíduo, é maior a frequência de trabalho médicos estudados. Por fim, nota-se que os indivíduos que
“misto” ou dupla prática (público e privado) (p=0.002) têm especialidades cirúrgicas, se comparados àqueles das
mas é menor a frequência de trabalho exclusivamente no demais especialidades, inserem-se, com mais frequência,
em dupla prática púbica e privada.

Tabela 7- Distribuição do setor de trabalho de acordo com idade, sexo e especialidade


Setor público e privado Apenas setor público Apenas setor privado
N x2 valor-p N x2 valor-p N x2 valor-p
<=35 105 19 59
36-40 71 18 29
Idade 0,002 0,146 <0,001
41-45 115 20 98
46+ 27 4 37
F 110 24 88
Sexo 0,219 0,674 0,313
M 208 37 135
Cirúrgicas 89 12 37
Especialidades* 0,008 0,882 0,008
Demais 221 39 168
*Houve médicos sem especialização, logo total dos indivíduos não coincide com as outras linhas

DISCUSSÃO Teoriza-se que a dupla prática esteja relacionada à


tentativa de maximizar a renda14, mas esse fenômeno pode
Os resultados do presente estudo mostram que produzir impactos negativos nos serviços e sistemas de
os egressos da FMUSP das turmas selecionadas são saúde15. No Brasil, a dupla prática pode, em tese, diminuir
predominantemente homens, refletindo tendência histórica a força de trabalho de instituições públicas que atendem
observada pelo país8. Em relação à natureza da atuação pacientes e usuários do SUS.
profissional, em sua maioria (52,8%) os médicos trabalham Entre os médicos formados na FMUSP que
concomitantemente nos setores público e privado da saúde, compõem o presente estudo, apenas 10,1% deles trabalham
enquanto apenas 10,1% não tinham nenhum vínculo exclusivamente no setor público. No estudo de Mioto et
privado. al.13, 21,5% dos médicos do país atuavam exclusivamente
A simultaneidade de vínculos empregatícios no SUS. Inversamente, entre os formados na FMUSP, há
de médicos entre as esferas pública e privada, também maior frequência de médicos com vínculos exclusivamente
chamada na literatura de dual practice, é um fenômeno privados.
mundial associado a dinâmicas do mercado de trabalho Tal diferença entre as duas pesquisas deve ser
e a configurações dos sistemas de saúde12. O achado do vista com ressalvas, em função da menor participação, na
presente estudo é similar ao de estudo nacional de Mioto composição da população do presente estudo, de médicos
et al13 que identificaram a dupla prática pública e privada mais jovens e menos especializados, perfil comumente
em 51,5% dos médicos brasileiros. Embora naquele estudo associado à maior presença no SUS. Neste sentido, a
a dupla prática tenha sido mais frequente entre médicos do inserção de 63% dos graduados da FMUSP em serviços
sexo masculino, em nossa população estudada não houve públicos, porcentagem relacionada à soma daqueles com
diferença quanto ao gênero (p=0,674). atuação pública exclusiva e em atuação público-privada,

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Schalch AS, et al. Onde trabalham os médicos formados na FMUSP? Um estudo transversal observacional

indicaria importante contribuição da instituição para o a graduação da FMUSP, sobretudo a partir das diretrizes
Sistema Único de Saúde. curriculares nacionais dos cursos de Medicina, de 2014,
Há que se considerar que os médicos formados na podem ter repercussões futuras em escolhas profissionais
FMUSP tendem a se concentrar mais na capital e no estado ainda não captadas no recorte realizado.
de São Paulo17 depois de formados, locais onde há grande A investigação realizada neste estudo contribui
concentração de serviços privados e de usuários de planos e com a literatura em vários aspectos. Estudos já abordaram
seguros de saúde. A maior frequência de vínculos privados a expectativa em relação à profissão e ao mercado de
pode estar, assim, também relacionada à maior oferta de trabalho18-21 a partir de percepções de alunos de medicina
oportunidades no mercado de saúde privada. ou recém-formados. Aqui, buscou-se retratar a realidade
Ao estratificar os dados de acordo com o ano de da inserção profissional, vários anos após a graduação e
conclusão do curso, a prática exclusiva no setor privado em momentos distintos da carreira médica.
foi mais presente nas turmas formadas em 1999 e 2000, Outra contribuição foi a combinação de distintas
enquanto as turmas de 2009 e 2010 tiveram mais médicos bases de dados públicas, disponíveis online e que contêm
exclusivamente no setor público ou trabalhando nos dois informações sobre atuação profissional de médicos e outros
setores. Ou seja, quanto maior o tempo decorrido após a profissionais. O levantamento pode ser replicável para o
graduação, quanto maior a experiência e a especialização estudo de inserção profissional e mercado de trabalho de
profissional, maior a chance de os médicos passarem a atuar recursos humanos em saúde.
exclusivamente no setor privado. Além disso, este estudo enriquece a literatura já
Observou-se, entre os egressos da FMUSP, disponível acerca do perfil dos egressos da FMUSP17,
predomínio de atuação na atenção hospitalar e baixa podendo subsidiar ações institucionais e iniciativas de
inserção na atenção primaria. O maior número de avaliação e aprimoramento do ensino nesta instituição.
vínculos em hospitais pode estar relacionado a conteúdos Apesar das inovações trazidas, há limitações na
curriculares e formação mais próxima de um grande metodologia adotada, parte delas em função do caráter
complexo hospitalar, o Hospital das Clínicas da FMUSP exploratório, do período curto e da população restrita
(HCFMUSP). considerada. Além disso, ao realizar recortes de inserção
Além disso, o nível de atenção – hospitalar, dos indivíduos, não é possível identificar mudanças de
ambulatorial e básica – e o tipo de serviço nos quais o vínculos e empregos ao longo da carreira e a influência
profissional está inserido têm também relação com o do tempo de formado na inserção profissional, o que
perfil e o escopo das especialidades médicas e programas demandaria um estudo de coorte.
de residência médica cursados pelos médicos após a Há, ainda, limitações intrínsecas às características
graduação. e finalidades das bases consultadas, que podem conter
Uma suposta “vocação” institucional de formação dados incompletos ou desatualizados. A Plataforma Lattes é
de médicos voltados à prática hospitalar pode ser primariamente acadêmica, podendo excluir indivíduos que
considerada contribuição relevante ao sistema de saúde, que seguiram exclusivamente trajetória clínica. O LinkedIn,
também depende deste nível de atenção estratégico. Neste uma rede social profissional de grande alcance, contém
mesmo sentido, a especialização em áreas cirúrgicas, mais descrição vínculos profissionais autorreferidos, mas
frequente entre os egressos da FMUSP17, pode ser reflexo não é possível definir qual o grau de adesão de médicos
da tradição institucional combinada com a demanda desse à essa plataforma. O CNES/Datasus, alimentada por
perfil profissional no mercado de trabalho. empregadores, traz boas informações sobre vínculos
Por outro lado, a maior inserção na rede de atenção públicos de médicos, mas há subnotificação da inserção
primária do SUS seria desejável, considerando tratar-se de privada. Já o Doctoralia é uma empresa privada, cuja adesão
uma instituição pública, financiada por recursos públicos. dos médicos ou a consulta pelos clientes não requerem
O estudo pode incentivar a discussão sobre a eventual taxas, sendo subsidiada principalmente por anúncios;
necessidade de revisão dos processos de interação dos sendo focado em médicos que atuam em consultório
alunos de Medicina da FMUSP com a atenção primária, particulares, não alcança profissionais que trabalham no
permitindo maior atração ou impacto vocacional futuro SUS. A escolha e combinação de diversas bases de dados
por especialidades que atuam nesse nível de atenção do neste estudo surgiu, justamente, no sentido de tentar mitigar
sistema de saúde. A recente expansão do ensino médico tais limitações.
privado, com pouca proximidade de novas escolas médicas
com adequados campos de prática, lança ainda maior CONSIDERAÇÕES FINAIS
responsabilidade sobre as instituições públicas, que devem
assegurar a formação de médicos voltados às necessidades Os médicos formados pela FMUSP têm, em sua
estratégicas do SUS. maioria, atuação profissional no Sistema Único de Saúde,
Cabe ainda ressaltar que a ampliação de conteúdos embora a dupla prática público-privada seja a modalidade
e os esforços institucionais de maior foco na APS durante mais frequente entre os que atuam na rede pública. Novos

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Rev Med (São Paulo). 2022 jan-fev;101(1):1-7.

estudos são necessários, no sentido de identificar o tempo secundário e terciário, também imprescindíveis ao sistema
de dedicação ao SUS e ao setor privado, por parte dos de saúde.
médicos em dupla prática. A reprodução do estudo para o acompanhamento
A maior atuação hospitalar dos médicos egressos da inserção laboral de médicos e profissionais de saúde
da FMUSP, em que pese o necessário empenho da egressos de instituições de ensino pode ser uma ferramenta
adicional de planejamento e avaliação da educação em
graduação médica conducente à ocupação de postos de
saúde no Brasil. Ao fim, o que se espera, é compatibilizar
trabalho na atenção primária à saúde em expansão, revela o investimento público e social na formação com as reais
características compatíveis com o histórico e os esforços necessidades do SUS universal e em benefício de toda a
institucionais voltados à formação para os níveis de atenção sociedade.
Contribuição dos autores: Schalch AS: Coleta e análise dos dados dos dados, levantamento bibliográfico, escrita do artigo. Matijasevich
A: Desenho do estudo, coleta e análise dos dados, escrita do artigo. Scheffer MC: Desenho do estudo, coleta e análise dos dados, escrita
do artigo. Todos os autores concordaram com a versão final do artigo.
Agradecimentos: Schalch AS agradece a bolsa de iniciação científica PUB-USP e a orientação dos professores Matijasevich A e
Scheffer MC.

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