Tese Jailma Moreira - ARTSANATO E RACHEL QUEIROZ
Tese Jailma Moreira - ARTSANATO E RACHEL QUEIROZ
Tese Jailma Moreira - ARTSANATO E RACHEL QUEIROZ
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGÜÍSTICA
O ARTESANATO DE SI:
uma leitura do devir matriarcal a partir de Rachel de
Queiroz
por
Salvador - BA
maio de 2008
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGÜÍSTICA
O ARTESANATO DE SI:
uma leitura do devir matriarcal a partir de Rachel de
Queiroz
por
Salvador - BA
maio de 2008
Biblioteca Central Reitor Macêdo Costa - UFBA
CDD - 869.909
CDU - 821(81).09
AGRADECIMENTOS:
À professora Dra. Doralice Alcoforado, Dora, como a chamávamos, pela orientação e pelas
lições de vida, de cuidado de si, durante os anos de convivência no período do mestrado e
doutorado;
Às professoras Dra. Gema Galgani Esmeraldo e Dra. Rachel Esteves Lima, pela preciosa
leitura de meu texto de qualificação;
À professora Dra. Rachel Esteves Lima pela disponibilidade em assumir, em última hora, a
orientação da tese, e pela leitura cuidadosa do texto em seu processo de bricolagem final;
Aos que acompanharam os bastidores do artesanato do meu texto: meu companheiro Osmar
Moreira, pela orientação intempestiva e solidária, pela proposta constante de anarquia
sígnica, pela lição de compromisso teórico-político; minha família, pelo apoio ao meu
processo de escrita-devir, pela compreensão na distribuição do espaço-tempo afetivo e pelo
envolvimento, também, no projeto de pesquisa;
Às mulheres que, de uma forma bastante singular, me ajudaram a tecer essa tese: Sônia
Lima, do Mulieribus, pela generosidade na abertura para o diálogo e empréstimo de seu
material bibliográfico; Alvaíza Cerqueira, do MOC, pela disponibilidade em falar do seu
trabalho e do MOC, ainda que em fim de expediente cansativo; Cecília Sardenberg e Ana
Alice Alcântara, do NEIM, pela concessão de um espaço, para entrevistas, em suas agendas
repletas de compromissos; e às mulheres do MMTR de Santa Luz – BA, entre elas
Jessicleide Nascimento, Sonete Silva, Célia Monteiro, Andréia Pereira, Simone Nascimento
e Valmira Lopes - estas duas últimas também do grupo Mulheres de Fibra, - pelo
acolhimento, pela parceria constante no engendramento de uma pesquisa-ação e no
reconhecimento do meu lugar intervalar de fala, visto que era percebida não só como
pesquisadora, mas também como mulher e ex-moradora de Santa Luz;
Aos professores do PPGLL, entre eles, as Professoras Dras. Eneida Cunha, Antônia
Herrera, Lígia Teles, Fátima Ribeiro, Florentina Souza e Rachel Lima pelas aulas, pelas
provocações e toques importantes para uma revisão do campo disciplinar da literatura,
contribuindo de forma decisiva para a minha formação como pesquisadora;
Aos meus colegas de curso; aos colegas da UNEB; aos companheiros e companheiras dos
encontros e seminários promovidos pelo NEIM, REDOR, Mulieribus, entre outros; aos
amigos e amigas de Santa Luz pelas ricas e diversas discussões, pelo compartilhamento de
propostas, inquietações, leituras e releituras;
À PPG, UNEB, pela bolsa PAC tão importante para as demandas materiais do trajeto de
pesquisa.
RESUMO
This study examines some images/metaphors of the fictional work of Rachel de Queiroz
and their impact on her authobiographical writings, on the judgements about a particular
literary critique and on some impass and conquers of feminist institutions such as the
Centre of Interdisciplinary Studies about the Woman and gender relations (Núcleo de
Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher e Relações de Gênero) (NEIM), the
Interdisciplinary Centre of Studies about the Woman and gender relation (Núcleo
Interdisciplinar de Estudos sobre a Mulher e Relação de Gênero) (Mulieribus), the Sector of
Gender of the Movement of Community Organization (Setor de Gênero do Movimento de
Organização Comunitária) (MOC) and the Movement of Rural Working Women
(Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais) (MMTR). Further to this experimental
work of transforming metaphors into concepts so as to expand the abovementioned esthetic
production, forgotten and faded by a literary system, this research also aimed to make a
network of women in movement visible, having Rachel de Queiroz, now seen as a
conceptual character, as a linking of articulation. The method used for this difficult and
challenging task encompassed bricolage and the confrontation of literary scenes,
theoretical and historiographical scenes, as well as interviews with feminist scholars and
other women in movement. Results show that no feminist fight against the patriarchate and
the integrated world capital is possible if the women writers do not proliferate the signs
anarchy, if illiterate women, from the countryside (sertanejas), do not make the handicraft,
still seen as discard of the capitalist production, a way of invention of themselves. The
upcoming of the matriarch in Raquel de Queiroz’s work is therefore the lesson that without
experimenting, going through anarchy, falsifying and playing, no subjective political
culture is possible, in the same way that spontaneity and daily life cannot be regarded as a
political practice of transformation.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO…………………………………………………………………...……….01
CONCLUSÃO....................................................................................................................181
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................192
1
INTRODUÇÃO
Rachel de Queiroz
Cadernos de Literatura Brasileira
1
Cf. SOUZA, Eneida Maria de. O não-lugar da literatura. In: Crítica Cult, p.84.
2
O X encontro da REDOR foi realizado em Salvador – BA, em conjunto com o VII Simpósio Baiano de
Pesquisdoras(es) sobre a Mulher e Relações de Gênero, de 29 de outubro a 01 de novembro de 2001, e ambos
tiveram como tema: Feminismo, ciência e tecnologia. Já o XI encontro da REDOR realizou-se em Aracaju –
SE, de 29 de outubro a 01 de novembro de 2002, e teve como temática: Feminismo, desenvolvimento e
direitos humanos.
3
como a literatura enquanto pensamento, enquanto arte de pensar o impensado, como disse
Guacira Louro3 em recente simpósio do NEIM, era excluída por certos estudos de gênero,
por certas teóricas feministas, da mesma forma que mulheres foram excluídas do espaço
científico, foram consideradas incapazes de raciocinar, vistas somente como objetos de
contemplação e de certo prazer.
Ficamos a refletir e decidimos, nessa pesquisa, ativar ainda mais a potência do
texto, da linguagem, da escrita, para além de um simples raciocinar, provocando a volta do
pensamento, unindo a razão à desrazão, fazendo a linguagem sair da linguagem, como nos
diz Eliane Moraes4, na esteira de um Foucault literato, amante da palavra insensata. Um
conceito de literatura, de Rachel de Queiroz, enquanto força nômade, que nos faça mostrar
seu imbricamento com a produção subjetiva, com o movimento alavancado por essas
mulheres que encontramos. Um pouco na linha do que nos diz Rose Braidotti: “precisamos
aprender a pensar de maneira diferente... precisamos nos reinventar”5. Sobre isso Gilles
Deleuze6 também nos ajuda quando diz que o devir, o paradoxo, destrói o bom senso
enquanto sentido único, bem como o senso comum enquanto designação das identidades
fixas.
Assim, dessa etapa anterior de pesquisa retivemos o incômodo e resolvemos nessa
tese melhor mapear isso: as formas da literatura se fazendo presentes, o seu não lugar, as
formas de esta ser percebida e rechaçada, e assim divulgada, inclusive por críticas
feministas literárias, na sua proposta de transformar a realidade de mulheres, as
representações sobre elas. Com isso fizemos Rachel de Queiroz circular de outras formas
não costumeiras e já rechaçadas em seu teor político. Fizemos Rachel de Queiroz politizar,
com a ajuda dessas mulheres, o olhar já politizado, convidando o ausente a se perceber na
cena da mediação e também a ativar o movimento de atribuição de outros sentidos.
3
Tal fala de Guacira Louro constitui-se em um trecho de sua explanação na mesa redonda “Transversalização
de gênero na educação” do XIII Simpósio Baiano de Pesquisadoras(es) sobre a Mulher e Relações de Gênero,
realizado pelo NEIM de 29 a 31 de outubro de 2007, em Salvador- BA. Nessa explanação a pesquisadora e
professora enfatizava a formação subjetiva, as tradições disciplinares, a percepção da diferença, bem como
suas estratégias teóricas, a prática de grupos de estudos na universidade em que trabalha e a importância da
literatura, da arte, nesse processo de intervenção.
4
Cf. MORAES, Eliane Robert. A palavra insensata. In: REVISTA CULT. S.m.r
5
Cf. BRAIDOTTI, Rose. Diferença, diversidade e subjetividade nômade. In: Labrys: Estudos Feministas;
Études Feministes, n. 1-2, jul.-dez 2002 (http://www.unb.br/ih/his/gefem), p. 12, acessado em agosto de 2007.
6
Cf. DELEUZE, Gilles. Primeira série de paradoxos: do puro devir. In: Lógica do sentido, p. 3.
4
7
É essa dinâmica de reinvenção de si que estamos chamando de devir matriarcal. Devir enquanto abertura de
práticas de sentido, matriarcal enquanto abertura de possibilidades para si, realizada por mulheres,
configurando formas de autogoverno, de contradiscursos, de modos de vida. Assim, o matriarcal será pensado
seguindo uma linha antropológica diferencial, associado ao devir e lido através de uma perspectiva filosófica
e cultural, implicando no “vir a ser”, no processo de reinvenção de mulheres, na sua economia do desejo.
5
8
Cf. SARTRE, Jean-Paul. Marxismo e existencialismo. In: Crítica da Razão Dialética: precedido por
Questões de método, p. 19-39.
6
Nessa linha, como nos sugere Eneida Leal Cunha9 em Literatura comparada e
estudos culturais: ímpetos pós-disciplinares, a proposta foi de ouvir os sujeitos com os
quais estávamos nos interrelacionando, de ampliar os nossos canais de escuta para
percebermos os embates, os impasses, as demandas, bem como os gritos, o movimento
fora-dentro do Movimento, as estratégias, as ressignificações, a escrita de si, o devir. De
ouvir o movimento dessas mulheres, movimento contraditório, complexo, a nos exigir uma
percepção das várias camadas textuais que o compunham. Ouvir o que esse movimento, o
entrecruzar das linhas textuais do devir dessas mulheres queria-teria a nos dizer.
Nesse sentido, o movimento pareceu-nos ser, e é assim que o transcrevo, um convite
diferencial dentro da diferença, como a lei revolucionária de mulheres zapatistas10
requerendo também igualdade no Exército de Libertação Nacional do qual fazem parte, ou
como a fala de Maria Conceição Borges Ferreira11 no I Fórum Estadual de Cultura,
9
Cf. CUNHA, Eneida Leal. Literatura comparada e estudos culturais: ímpetos pós-disciplinares. In: ANTELO
et al. (orgs.) Leituras do ciclo.
10
A lei revolucionária de mulheres zapatistas transcrita pela jornalista Laura Greenhalgh no texto Chiapas,
sudeste mexicano: vítimas da miséria cotidiana, as mulheres indígenas rompem com um passado de
subordinação e partem para a luta, exibe nos seus dez artigos reivindicações não só para com o Governo,
com relação a trabalho, salário justo, educação, alimentação e saúde, bem como para com os seus
companheiros do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) no que diz respeito ao questionamento
de uma cultura patriarcal que ocultava repetições de cerceamento na sua própria organização da luta
cotidiana. Já no primeiro artigo elas reivindicam o direito de participar do movimento revolucionário, no
quarto, o direito de tomar parte nos assuntos da comunidade, no terceiro e sétimo, respectivamente,
reescrevem uma tradição ao se afirmarem com direitos de decidir sobre o número de filhos que podem ter e
cuidar e de eleger seu parceiro, não sendo obrigadas por força a contrair matrimônio. Para um maior
conhecimento do movimento revolucionário do EZLN, muitos textos podem ser indicados, dentre eles o de
YÚDICE, George. A globalização da cultura e a nova sociedade civil. In: ALVAREZ, Sônia E., DAGNINO,
Evelina, ESCOBAR, Arturo (orgs) Cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos, p 427-464.
Também a título de maior conhecimento pode ser visitado o site http://www.ezln.org.mx/index.html, mas para
nós fica a sugestão de um rastreamento do movimento diferencial de mulheres no cerco da revolução,
indicado também em artigos contidos na referência final desta tese.
11
Tal intervenção de Maria Conceição B. Ferreira ocorreu após explanação, feita por um representante do
Ministério da Cultura (Minc) do Governo Federal, do projeto Mais Cultura, em um dos momentos de
finalização da Conferência Estadual de Cultura da Bahia, realizada na cidade de Feira de Santana em
novembro de 2007. Juca Ferreira, representante do Governo, expunha os dados estatísticos de exclusão e
invisibilidade cultural ao tempo em que demonstrava propostas do Governo através do Minc e de outros
ministérios e parcerias para atender aos princípios conceituais de cultura como bem simbólico, como direito a
acessibilidade, a cidadania e como vetor econômico. Com isso, Ferreira explicitava propostas do Governo, via
o Programa Mais Cultura, para concretizar as relações entre cultura e renda, cultura e cidadania enfatizando a
perspectiva de uma cidade cultural através de qualificação de bairros, de espaços de multiuso e de favelas, por
exemplo, com vistas a atender uma população em situação diversa de vulnerabilidade social, de baixa renda,
uma população de mulheres, de trabalhadores, dentre outros, a fim de se romper com uma centralização da
cultura. Após essa proposta diferencial, que se coadunava com o próprio evento, uma conferência para ouvir o
que as pessoas têm a dizer sobre cultura, Maria Conceição Ferreira, do lugar conquistado na mesa, enquanto
integrante do grupo de mulheres trabalhadoras rurais da região, lembrava que o campo não podia ser
desligado da cidade, dizia sentir falta de uma ênfase para o rural, para as mulheres e homens do campo, e
7
alertando para o esquecimento da mulher rural no novo plano arrojado, intitulado Mais
Cultura, do Ministério da Cultura do Governo Federal. Convite à escuta do movimento
sutil, sorrateiro e ao mesmo tempo radical dessas mulheres.
Para seguirmos as trilhas desses movimentos, seus imbricamentos, seus embaraços e
desembaraços, para cartografarmos linhas do devir matriarcal em Rachel de Queiroz, e
também nas mulheres dos estudos feministas, do NEIM, do Mulieribus, do MOC, do
MMTR, tendo em vista o processo de mediação, de engendramento de outro sujeito
feminino, para respondermos às inquietações que moveram a pesquisa, buscamos, além do
já dito em termos de metodologia, fazer um levantamento bibliográfico que atravessou
vários campos e que nos exigiu um não esquecimento dos nossos objetivos com a tese, bem
como do potencial literário-cultural que estávamos e estamos ativando.
Buscamos também ler folderes, manifestos, cartilhas, agendas, estatutos, sites, fazer
entrevistas, questionários, contatos por telefone, por e-mail, assim como acompanhar os
movimentos dessas mulheres através de participação em Congressos, Seminários,
Simpósios, encontros avaliativos, reuniões, feiras, eventos preparativos e comemorativos
para o 8 de março, acampamentos, marchas, visitas às comunidades na zona rural, atos na
câmara de vereadores, dentre outras atividades, que só nos levavam a expandir o texto
literário, considerando-o cultural.
Nessa pesquisa de campo, na observação de outras textualidades, dos dados
levantados, pudemos perceber a forma como se configura, como é tecida, a rede entre essas
mulheres: do site bem elaborado do MOC e de outras instituições, dos incipientes e sem
informações ou com estas não atualizadas, passando pelos encontros e projetos
articuladores dos grupos de estudos sobre mulheres e de assessoria às mesmas, como o
NEIM, o Mulieribus e o setor de gênero do MOC, até os contatos através de um orelhão
que atende a toda comunidade ou graças aos velhos carros a gás que as mulheres rurais do
Miranda, povoado em Santa Luz, fretam para chegar, pelos caminhos de terra seca, à sede e
aos encontros do MMTR. Uma rede literalmente esburacada, bem precária em alguns
pontos, mas tecida pela vontade de participar, de fazer movimentar o movimento, de
afirmar a potencialidade do sujeito feminino, de pôr em prática o devir matriarcal.
lembrava, por fim, após parabenizar aquela política diferencial, da auto-estima, do fator humano, como base
para o desenvolvimento.
8
Foi também nessa linha, de tessitura singular de rede, que buscamos articular
Rachel de Queiroz com essas outras mulheres em movimentos. Fazê-las se encontrar, para
provocar, talvez, outros encontros, rompendo uma formação disciplinarizada, um
analfabetismo que ronda não só as mulheres trabalhadoras rurais, que nos solicita também
um desaprendizado. Dessa forma, Rachel de Queiroz se faz presente no primeiro capítulo,
no qual procuramos cartografar linhas do seu devir matriarcal, selecionar e reter traços do
seu texto-vida, bem como nos demais, enquanto personagem conceitual, que, como nos
dizem Gilles Deleuze e Félix Guattari12, subsiste, funciona como personagem-pensamento-
ação a produzir movimentos subjetivos.
Com isso, podemos dizer que Rachel de Queiroz faz vibrar as linhas textuais da
tese, fomentando pensamentos, ressignificações, devires. Funciona como mediadora, junto
às mulheres aqui reunidas, através de cenas e trechos do seu movimento de escrita de si que
trazemos para provocar reflexão, ou mesmo através da sua força deslocadora aliada à
potência da literatura enquanto não-lugar, como aqui já dito, enquanto pensamento-ação
nômade a suspender os sentidos.
Com Rachel de Queiroz, então, assim configurada, pudemos metaforizar os
conceitos e conceitualizar as metáforas, produzir um texto que quer, ao relatar os
movimentos diversos, contraditórios, radicais, de mulheres, também movimentar, também
provocar na leitora, no leitor, o devir; e por isso pergunta, insiste em questionar,
provocando o pensar do pensar, a suspensão das naturezas, dos papéis de leitor, de
escritor... afinal, como sempre nos lembra Deleuze, “escrever é um caso de devir”13. Sendo
assim, ao perguntar, procuro fazer com que o leitor também se pergunte, confundindo os
textos, intercalando-os, confrontando-os de forma que outros acontecimentos, subjetivos,
teóricos, possam daí emergir.
Nessa proposta de escrita, dividimos a tese, O artesanato de si: uma leitura do devir
matriarcal a partir de Rachel de Queiroz, em três capítulos, cada um contendo tópicos que
podem ser lidos de uma forma independente, ainda que seguindo a linha, a força nômade, a
rede de articulação que estabelecemos.
12
Cf. DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Os personagens conceituais. In: O que é a filosofia, p.81-109.
13
Cf. DELEUZE, Gilles. A literatura e a vida. In: Crítica e clínica, p.11.
9
mais valia simbólica, para o segredo do artesanato, para o domínio do domínio, para o
espelho patriarcal disseminado, para a liberdade de criar outros modos de existência, de
tomar a si e à vida, como um livro, um artesanato, uma obra de arte.
O tópico I desse capítulo, A reinvenção de sertanejas: movimentos de mulheres,
trata do processo de mediação realizado pelo setor de gênero do Movimento de
Organização Comunitária (MOC) e pelo Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre a Mulher
e Relação de Gênero (Mulieribus) da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
junto às mulheres do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR) de Santa
Luz, no semi-árido baiano. Tal processo revela as inquietações, a não unilateralidade, as
especificidades, a militância diversa, a relação com os saberes na dinâmica das trocas
subjetivas, do olhar para si através do outro, no movimento diverso e uníssono que rasura
uma sintaxe, uma linguagem patriarcal-global homogeneizadora.
Já o tópico II, Arte, mercado e cultura: lições das Mulheres de Fibra(s) trata do
movimento subjetivo de mulheres trabalhadoras rurais de Santa Luz, que fazem artesanato
de sisal e compõem o grupo Mulheres de Fibra. Nesse tópico buscamos observar como
essas mulheres lidam com as diversas forças discursivas que as atingem, desde planos
internacionais e nacionais de governo, de Estado, até os comportamentos que os seus
maridos têm e esperam-prescrevem para elas. O tópico enfoca as relações de forças e as
formas como as mulheres de fibras as potencializam através de uma rede de articulações, de
uma economia cultural solidária que encenam contra um capital patriarcal mundial. O
artesanato de si nessas mulheres aponta para a arte da sobrevivência, para a vontade de uma
outra inclusão, para a subumanidade nesse mundo, bem como para pontos singulares nesse
trançado que nos envolve a todos.
Os segredos desse artesanato de si, os pontos criativos, os nós, se disseminam em
todo o texto, em trilhas entrecruzadas, não perceptíveis, que nos levam a pensar o devir
matriarcal em Rachel de Queiroz, a possibilidade de inversão nos moldes patriarcais, os
impasses, as perspectivas, a importância da mediação, inclusive para o mediador. Levam-
nos a perguntar pelas lições que podemos aprender com Rachel de Queiroz, com essas
mulheres, essas fibras discursivas aqui reunidas. Assim, a tese, como já dissemos, é um
convite à escuta, ao encontro, ao devir matriarcal em diferença.
CAPÍTULO I
1
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. É importante enfatizar que, propositalmente,
neste tópico apenas destacamos Alfredo Bosi como um representante e seguidor de uma linhagem crítica
sociológica que será aqui mostrada na sua possível contradição reativa, na sua cena genealógica de
interpretação de outras interpretações, no seu engajamento político tão necessário, mas na sua pouca
atividade metacrítica, ainda possível de ser repetida. Para um maior conhecimento de linhagens críticas
sobre a escrita de Rachel de Queiroz indicamos o texto que fizemos, denominado “O fato estético e o
multicultural: complexificando a leitura de Rachel de Queiroz” e incluso em nossa dissertação de
mestrado, tópico III do capítulo II, registrada na referência final desta tese.
2
MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. A sagrada família ou Crítica da Crítica crítica contra Bruno Bauer
e seus seguidores. Este livro, escrito em 1844, é tomado como elemento fundamental do nosso jogo
desconstrutor nesse tópico. O mesmo traz, em meio à discussão sobre problemas franceses, pontos iniciais
de um materialismo histórico que Marx depois iria desenvolver e que em tal livro se expressa na crítica
que faz ao espírito absoluto, abstrato e transcendental da perspectiva crítica de Bruno Bauer e demais
jovens hegelianos que o seguem nessa linhagem. Perspectiva crítica esta que foi publicada, na época, em
fascículos na Gazeta Literária Universal e foi resumida por Marx como incapacidade de especulação, ou
sua reprodução caricatural. Para nós interessa, no ataque que os autores fazem a Bauer e outros jovens
hegelianos como, Edgar Bauer e Szeliga, a possibilidade de começar a refletir sobre a produção de pólos
opositivos, como transformação somente no plano das idéias ou somente no plano social, ou, dizendo
mais claramente, a separação que se faz-fez das idéias do plano social e a posição do sujeito, do crítico,
da literatura nesse complexo relacional. Outras pistas sobre essa questão e as idéias revolucionárias de
Marx e Engels neste livro, podemos encontrar, ainda que de forma rápida, em SANTIAGO, Silviano. O
trabalho do alfaiate. In. Ora (direis) puxar conversa! Nesse pequeno texto, no seu final, Santiago deixa-
nos uma instigação ao dizer que é a partir de A sagrada família e de resenhas de livros sobre a boemia
parisiense feitas por Marx e Engels, que Walter Benjamin vai articular a sua célebre leitura da poesia de
Baudelaire, a de um poeta lírico no apogeu do capitalismo. Santiago também nos incita a pensar sobre a
quebra de ingenuidade instaurada pela crítica cultural ao se distanciar do radicalismo oitocentista das
“belles lettres”. “O trabalho do alfaiate” ainda nos leva a refletir sobre o trabalho do sujeito(crítico), suas
impressões digitais nas idéias (re)produtoras de si e de outros sujeitos e con-textos.
14
3
Idem. Ibidem, p. 23.
15
4
Idem. Ibidem, p. 14.
5
Idem. Ibidem, p. 7
6
Idem. Ibidem, p. 7
7
MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. O Manifesto comunista.
16
Queiroz8. Por um bom tempo esta foi excomungada do plano literário, suas obras
deixaram de ser lidas e ainda hoje falar no assunto engendra certo “mistério” que logo
se resolve: a justificativa é simples, ela apoiou o golpe militar, ela é culpada. Parece
uma retórica evangélica, cujas alternativas já pré-determinadas são somente duas: culpar
ou inocentar. Para fugir dessa herança de poder absoluto que ronda a crítica que se diz
mais crítica, tentemos analisar o movimento de vida da escritora, de outras formas,
estranhas visto que diferentes, e para isso recorreremos ao tão conhecido Marx.
Primeiro, poderíamos pensar numa espécie de aura que cobre os artistas, os
grandes autores. Rachel de Queiroz quando começou sua carreira, com o romance O
quinze, foi considerada um “fenômeno,” e enquanto tal talvez se esperasse que essa
vivesse num plano que não fosse o terreno, o material. Entretanto, quando essa tem uma
ação prática notória, quando se desvincula de uma luta contra a exploração dos
trabalhadores para se juntar àqueles que seriam contra a revolução-transformação de
uma ordem social vigente no Brasil, isto não passaria despercebido por uma crítica
radical.
Segundo, poderíamos pensar novamente numa espécie de separação, que, feito
disjunção de corpo e alma, espírito e carne, desvincula texto e vida, expressão-
representação via linguagem no plano aberto do papel e no plano talvez mais fechado do
cotidiano. Criam-se categorias como autor e escritor que, embora unidas são vistas em
separado. Dessa forma, sua literatura, seus romances, suas idéias-representação de
mundo, de homens e principalmente de mulheres rebeldes, revolucionárias, portanto
anti-reacionárias, foram eclipsadas. Sua literatura permaneceu num plano inacessível,
plano das idéias, que não se mistura com o social. Assim, ou não era vista, como já dito,
porque sua prática, num momento dita anti-revolucionária, fez com que estranhássemos
qualquer outra possibilidade de revolução em seus textos ficcionais, ou, quando vista,
era para justamente reafirmar a conformidade com o social, mesmo quando dava
visibilidade ao movimento revolucionário de tantas personagens femininas, ou para se
lamentar-corroborar o hiato: uma ótima narradora, mas uma inimiga do movimento
revolucionário de transformação do social.
Foi seguindo esse espírito crítico que Alfredo Bosi9, na sua sociologia crítico-
literária, afirmou ser Rachel de Queiroz uma corroboradora do status quo devido a sua
trajetória curvilínea, seu movimento ideológico contraditório que a fez passar do
8
Cf. HOLLANDA, Heloisa Buarque de. O ethos Rachel, In. Cadernos de literatura brasileira.
9
Cf. BOSI, Alfredo. Op. cit.
17
10
QUEIROZ, Rachel. Lampião. In: Obra reunida. Vol. 5.
11
Cf. HALL, Stuart. Notas sobre a desconstrução do popular. In: Da diáspora, p. 263.
12
Cf. SANTIAGO, Silviano. Prosa literária atual no Brasil. In: Nas malhas da letra, p. 35-36. Também
como sugestão para se pensar a posição do intelectual nas malhas do poder, a sua vontade de dar
consciência perante aqueles que não a teriam, e mesmo a noção de teoria enquanto prática e vice-versa, o
texto de Foucault já se tornou um clássico imprescindível: FOUCAUL, Michel. Os intelectuais e o pode.
In: Microfísica do poder. No mais, fica ainda como pista, na linha sugerida por Marx, e ampliada por nós,
de produzirmos releituras ativas, a provocação de repensarmos, na materialidade discursiva deste autor,
os conceitos por ele empregados, por exemplo, o de consciência.
18
Nessa linha, o alerta serve, a nós nesse momento, para perguntarmos pelos
revolucionários de hoje, lembrando Marx, pelos outros sentidos de uma cópia
caricatural do método hegeliano e marxista, na medida em que se efetiva uma leitura
reativa, redutora da capacidade de intervenção13. Leitura possível de se perceber em
certos olhares, certa militância política, mesmo que como uma espécie de vacilo, de
repetição do que se quer combater. Assim, se há um ranço revolucionário, inclusive
herdado de certo hegelianismo, que se sacralizou entre nós como base para uma luta
política, é preciso repensá-lo. Observar se este ranço revolucionário não aponta para
uma linhagem crítica e transformadora que investe numa vontade de dar consciência,
que acaba por considerar o outro como totalmente ingênuo, inerte ou acéfalo. E, mais
uma vez lembrando Marx, de como tal postura, ainda possível de ser seguida hoje,
acaba por revelar um sujeito crítico dotado de um poder absoluto, de uma racionalidade
transparente, ou transcendente, incapaz de qualquer desvio, embaralhamento na rede
social, de qualquer necessidade de repensar essa vontade, esse grau de liberdade na
(sua) consciência.
Em nosso contexto, poderíamos dizer que foi buscando essa linearidade, essa
racionalidade retilínea no movimento dos sujeitos no cotidiano, no movimento do povo,
na linguagem da massa, certamente, que Bosi questiona o movimento curvilíneo de
Rachel de Queiroz. Para uma família de críticos que seguem nessa linhagem talvez
Marx dissesse hoje o que afirmou em ironia contra os Bauer:
...a linguagem popular não pode permanecer incompreensível à Crítica crítica. Ela
mostra que o caminho do homem letrado permanece necessariamente tortuoso se o
indivíduo engajado não possui força suficiente para estabelecer uma linha reta; por isto,
naturalmente, ela atribui operações matemáticas ao escritor14.
13
Na linha de produção de uma leitura ativa de Marx, seguindo a via de uma especulação não caricatural,
visto que não distanciada de uma realidade atualizada, das suas (im)possibilidades, Stuart Hall nos dá as
seguintes pistas a partir de sua experiência: “trabalhar na vizinhança do marxismo, sobre o marxismo,
contra o marxismo, com ele e para tentar desenvolvê-lo”. Cf. HALL, Stuart. Estudos culturais e seu
legado teórico.In: Da diáspora, p. 203.
14
MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. A sagrada família, ou Crítica da Crítica crítica contra Bruno Bauer
e seus seguidores, p. 10.
19
15
Cf. QUEIROZ, Rachel. QUEIROZ, Maria Luiza de. Tantos Anos. As informações, aqui descritas, sobre
Rachel de Queiroz e sua rede de amizades podem ser encontradas em tal livro.
16
O romance João Miguel foi publicado em 1932.
20
17
O fato de grifarmos o nome Rachel de Queiroz, por vezes, sem o sobrenome, deve-se ao movimento de
fluidez de fronteiras que esta tese encena. Este argumento também é válido, em toda a tese, para a
demarcação da nossa escrita, entre a primeira pessoa do singular e a primeira do plural, expressando as
nossas marcas singulares, bem como a nossa configuração enquanto agente coletivo de enunciação.
21
esse tipo de crítica, ao contrário de uma identidade imanente, enxerga ali um sujeito
histórico, uma identidade sociológica vinculada a estruturas sociais18.
Esta seria a prática interpretativa do pensamento de Marx, quando em forma de
acontecimento libera toda a transcendência do sujeito. Entretanto, como tantos outros
interpretaram a sua frase célebre, afirmando os homens como aqueles que escrevem a
sua história, mas sob condições históricas? Frase que, inclusive, engendrou a práxis-
teórica do materialismo histórico?19 Ou ainda: como Rachel de Queiroz é vista sob
condições históricas, condições materiais, relações de forças? Talvez totalmente
aprisionada, condicionada, cooptada, sem nenhuma possibilidade de trabalho criativo.
Até porque seu trabalho, considerado artístico, ficcional, é aprisionado a uma
impotência revolucionária.
Entretanto, pelo relato de vida de Queiroz, pelas formas de sua inserção-
funcionamento nos movimentos citados, como ignorar o teor político-revolucionário do
seu trabalho literário? Nesse sentido, por que um de seus romances foi vetado? Por que
Rachel foi transformada em arma escritural pelos movimentos de militância política no
País? Nesse raciocínio, se a escrita criativa de Queiroz, por vezes é considerada
impotente, despolitizada, voltando para a cena originária dos baixos começos,
poderíamos nos perguntar: Quem separou a potência do sujeito-linguagem do que ela
pode, a ponto de Marx bradar por uma revolução sem frases?20 Depois dessa reflexão,
mas ainda tendo-a como linha, poderíamos ainda prolongar as perguntas: Qual o papel
revolucionário da fraseologia de Rachel? Poderíamos pensar em uma frase-ação, que
funciona, inclusive, para conter a ação das frases, escondendo seu jogo constituinte de
forças discursivas ?
Os traços que indicam o retorno dessa crítica idealista metafísica não estariam
justamente nessa crença em certas separações, no desligamento, por exemplo, entre
representação e subjetividade? É seguindo as pistas de Balibar21, ao reafirmar a
preocupação de Marx para com o idealismo, que nos perguntamos pelo sujeito das
idéias. Sujeito que fica neutralizado por um absolutismo crítico-científico, uma ciência
burguesa, um poder transcendental que o isola do plano material. É nesse sentido que
18
No livro A identidade cultural, de Stuart Hall, encontramos um mapeamento de formas de percepção da
identidade aliadas a forças de pensamento como o de Marx, Freud, Foucault, Saussure e de teóricas do
movimento feminista, que ajudam a desconstruir noções de sujeito, apontando para uma identidade móvel
pós-moderna.
19
Cf. MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã.
20
Cf. Idem. Ibidem.
21
Cf. BALIBAR, Etiene. A filosofia de Marx.
22
nos reportamos novamente a Bosi como membro dessa família de críticos críticos: onde
fica a sua autoconsciência? Onde fica a consciência de que esta é também formada nas
relações sociais transindividuais? É também cooptada, aprisionada? Ou não seria o
crítico um sujeito histórico-sociológico? Como, inclusive, aprender na textualidade
múltipla de Rachel, nas suas personagens, no seu jogo textual, outras formas de luta, de
reinventar o mundo e a si mesmo, relativizando a fixidez de uma identidade? Aliás,
assumir uma perspectiva político-transformadora não implicaria se assumir também
como possibilidade de mudança no encontro-confronto social?
Dessa forma, revolução aqui se diferencia de edificação, de alinhamento, implica
movimento, desalinhamento, tensão na relação, e diz da própria materialidade que
engendra e é engendrada. Nesse sentido, tratando-se de uma crítica que se quer crítica,
talvez fosse necessário, ao analisar Rachel, recuperar o olhar estranho, visto que não
mais miraculoso, ao se familiarizar com seu texto-vida. Recuperar a múltipla Rachel de
Queiroz, as várias Rachéis em confronto apontando para a viabilidade de outra seleção,
para a revolução subjetiva, para os modos de fazer devir ativo o reativo, enfim, para as
possibilidades criativas de afirmação-transformação ou negação das ficções sociais, do
texto-vida, do sujeito que se quer distanciado dessas relações curvilíneas, conflituosas,
prático-discursivas. Recuperar a Rachel múltipla implica também na possibilidade de se
lançar um outro olhar para a literatura.
22
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira, p. 396.
23
QUEIROZ, Rachel. Lampião. In: Obra reunida. Vol. 5.
24
HOLLANDA, Heloisa Buarque. O ethos Rachel, In: Cadernos de Literatura brasileira, n. 4.
25
DELEUZE, Gilles. Do puro devir, In: Lógica do sentido, p. 5-12.
24
26
Cf. Entrevista com Rachel de Queiroz, In: Cadernos de Literatura brasileira, n. 4.
27
QUEIROZ, Rachel. Caminho de Pedras, In: Obra reunida, vol. 1.
28
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?, p. 83-109.
25
aptidão do pensamento...”29. Com isso a literatura nos leva a pensar o pensar, pensar a
própria noção de literatura ou a representação literária, a condição do autor e a
personificação, assim como as vias possíveis nesse processo. Alertam-nos tais filósofos:
“o personagem conceitual nada tem a ver com uma personificação abstrata, um símbolo
ou uma alegoria, pois ele vive, ele insiste”.30
De início, já temos uma outra percepção para com a linguagem e a crítica. A
crença na insistência da vida, no movimento afirmativo de quem manobra a linguagem,
(esse “quem” aponta para os sujeitos, os críticos...) assim como a percepção não de um
distanciamento reativo introjetado na noção de abstração, alegoria ou símbolo. Isso nos
lembra novamente o título do romance: Caminho de pedras, não como uma vontade de
eliminá-las iludindo-nos com uma harmonia, mas no sentido de lidar com elas, as
pedras, as fixações, a complexidade, o imbricamento discursivo e suas relações de
poder, atentando para outras vias possíveis nessa linguagem, que também aprisiona,
retém o distanciamento ou o jogo de aproximação, ambos possíveis de serem
considerados ativos.
Noemi fica seduzida com a possibilidade de um outro mundo que o curso de
política tornou-lhe visível. Começou a participar das reuniões do Bloco Operário,
freqüentava rotineiramente tal curso mesmo a contragosto do marido, um ex-envolvido
no movimento, um desiludido para uns, um covarde-traidor para outros, como
sentenciavam os membros do Bloco Operário. Rachel de Queiroz, enquanto outro nome
de Noemi, movida pela sua linha desejante, se interessa pela luta comunista a favor do
proletariado. Esta seria sua causa política. Como já dito, traduz textos dos
correspondentes estrangeiros, repassa as informações, participa das reuniões no Rio de
Janeiro e, em São Paulo, abre as portas da sua casa para tramar a fundação do Partido
Comunista no Ceará. Para Rachel de Queiroz, sua família sempre a apoiou nessas
empreitadas; para nós, o impasse, gerado pelo marido de Noemi, nos faz lembrar das
pedras, dos pré-conceitos, das representações assimiladas. Faz-nos lembrar dos
assujeitamentos, das possibilidades de captura do desejo que aflorara. Faz-nos lembrar
da militante Rachel que passa a agir como militar. Momento em que confabula com os
generais da época e o seu sonho de revolução passa a se chamar de golpe, cerceamento
da liberdade. Liberdade que seria o brilho nos olhos de Noemi, a força transcrita nas
29
Idem Ibidem, p. 86.
30
Idem Ibidem, p. 86.
26
Era apenas uma alma livre, ouvindo a história de outras almas livres. Fugira do seu
centro habitual de gravidade, perdera a noção do pão nosso de cada dia. Naquele
momento nada era moral nem imoral, nada proibido nem permitido; não havia hora, não
havia espaço: só a embriaguez do momento de revelação, das possibilidades de
libertação31.
31
QUEIROZ, Rachel de. Op. cit., p. 36.
32
Essas e outras informações, relatos e argumentos de Rachel de Queiroz com relação ao seu trânsito
comunismo-trotskismo-militarismo-anarquismo podem ser conferidos nos seguintes textos: 1) Entrevista
de Rachel de Queiroz, In: Cadernos de literatura brasileira. 2) QUEIROZ, Rachel de. QUEIROZ, Maria
Luiza de.Tantos anos.
27
33
Cf. SCOTT, Rudin. FOX, Robert. As horas.
34
Cf. BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização, p. 194-245.
35
Cf. QUEIROZ, Rachel de; QUEIROZ, Maria Luiza de. Op cit., p.39-42.
28
desilusão para com o Partido Comunista. O seu livro João Miguel teria sido censurado
por líderes do partido, visto que Rachel teria configurado para um pobre, ou operário,
um crime, um assassinato por conta de bebida, além de ter desenhado uma personagem
feminina, em certo sentido, liberta de possíveis compromissos com seu companheiro,
que fora preso.
Uma mulher que trai uma representação para si, um pobre que trai uma
“unidade” de caráter e a dignidade da classe. Diante disso, não seria possível aprovar a
publicação do romance a não ser que fossem feitas mudanças na constituição desses
personagens de modo a seguir as representações recomendadas. Assim também, para
Rachel, vetando a sua criatividade, sua liberdade criadora, sua manobra com a
linguagem, não seria possível permanecer no partido.
A militância pareceu assumir tons de cerceamento, nos fazendo lembrar a
vontade de conscientizar outros, tão expressa em Caminho de Pedras, quando trata dos
questionamentos dos operários “politizados” para com a “ação” dos intelectuais. A ação
de conscientização, de ditar o que se deveria fazer, agora parecia ser inversa. Parecia,
para nós, que ficava de fora outros modos de luta, por vezes já rechaçados enquanto
representação literária. Têm ficado de fora outras possibilidades literárias. Tem ficado
de fora a complexidade de um voltar-se sobre si mesmo, de uma desintegração.
A atuação militar de Rachel, aqui já conjecturada não como vontade de
encontrar uma verdade, mas como vontade de refletir sobre concepções, práticas e
representações nela instaladas, nos leva a pensar numa promessa que parece encontrar
acolhida num espaço de desilusão aberto pelo cerceamento do Partido Comunista.
Entretanto, antes de aliar-se ao militarismo, encontramos uma Rachel envolvida pelo
trotskismo, envolvida pela possibilidade de revoluções a todo instante, como define
estrategicamente, quando tem o apartamento do colega Livio Xavier, junto ao seu,
invadido pelos caça-comunistas declarando-lhes voz de prisão36. Nesse movimento,
poderíamos dizer que os traços de uma Noemi são percebidos no engajamento de
Rachel nas arenas de luta organizada, na vontade de mudança, de revolução constante,
de afirmação de uma liberdade que, decisivamente, não a cerceie.
Entretanto, a armação do golpe de 64 traz, como já dito, o reconhecimento
familiar, o reconhecimento afetuoso do seu nome, da sua contribuição enquanto autora
consagrada. O curso político, então, seria dado de outra forma, mais sutil, nos moldes de
36
Idem. Ibidem, p. 63-66.
29
representações, encena outras, percorre diversos lugares ainda não familiarizados para a
figura feminina, como a Academia Brasileira de Letras. Torna-se escritora, participa de
grupos de literatos, de políticos, viaja sozinha por várias cidades, casa e descasa,
afrontando a moral que tanto discriminou Noemi. A família parece sempre apoiá-la,
segundo seus relatos. Entretanto, é, às vezes, na ilusão desse apoio familiar que se deixa
desejar por outrem, que incorre numa espécie de apoio moralizador da “família
brasileira,” que se assume outra noção de revolução.
A escritora de si, a defensora da liberdade criadora contra todo tipo de
cerceamento, passa a ser autorizada a escrever. Os mecanismos de reconhecimento, de
familiarização e legitimação apontam também para uma via de enquadramento,
disciplinarização ou regularização discursiva. Rachel de Queiroz passa a ser enquadrada
no movimento regionalista, aquele que, grosso modo, valorizaria as tradições. Sua
escrita é apreciada conforme parâmetro da época, domínio da linguagem, através de um
estilo extremamente enxuto. Linguagem de homem, para Graciliano, já que a escrita
feminina “teria” outros moldes. Um parâmetro água com açúcar, diria-nos Rachel de
Queiroz 37, reforçando a via complexa da sua defesa do feminismo, reforçando a sua
rejeição a essas formas tidas como “femininas”. Como estratégia de inclusão, assumiria
o parâmetro masculino-legitimado.
Nesse sentido, se a escrita nos aponta outras vias com Noemi, é a atividade de
escritora que nos leva a pensar nas possibilidades de assujeitamento de Rachel, na
Rachel enquanto autora imbricada nas relações patriarcais, de poder, que também
atravessam o cânone literário. A nominação de Rachel enquanto persona literária,
enquanto fenômeno, aponta para uma familiarização ou reconhecimento de sua
textualidade dentro dos parâmetros literários de uma época. Contrapondo o já dito, o
que mais sua linguagem, além da expressividade via estilo direto e enxuto, teria a nos
dizer? O que tem a nos dizer, a nos fazer pensar seus personagens conceituais?
Se Rachel de Queiroz, enquanto regionalista, afirma as tradições, que outra
tradição feminina, tradição de humanidade ela reinventa? Com isso, que outra noção de
tradição entra em cena? Que afrouxamento há no termo que parece ter se fixado numa
temporalidade distanciada, num “tornou-se” asfixiado a um passado imóvel? A Noemi
aponta certamente para uma linhagem não familiar, não reconhecida pela sociedade nos
37
Cf. Entrevista com Rachel de Queiroz. Op cit. Nessa entrevista a escritora fala tanto das suas estratégias
de inserção na arena literária, como dos modos de recepção do seu romance, O quinze, por Graciliano
Ramos.
31
moldes desse tradicionalismo fixado. Aponta para uma política dentro da política. Uma
percepção de que um outro mundo é possível partindo da constatação de que os dois
homens que com ela caminhavam “eram homens, apenas. Nada os separava; ao
contrário, a grande humanidade os unia” 38.
Novamente uma tentativa de voltar à linha do marco zero: a humanidade. A
humanidade representada por sexos, por gêneros, por classes, por categorias. A
humanidade representada, criada , engendrada. Uma vontade de retorno ao processo da
humanidade em seleção. Talvez a afirmação de um devir animal para que outra
humanidade se invente. Um tipo de política que passa pela linguagem, pela literatura,
pelas representações. Uma vontade de anarquizar as significações, logo, anarquizar a
anarquia. Uma política dos signos, do movimento do pensar e de situar as coisas, as
pessoas no mundo. Um certo domínio da escritura. A sensação política de Noemi. O
sujeito se fazendo em Rachel. O movimento de Noemi bifurcando-se na trajetória de
Rachel. A Rachel escrevendo personagens conceituais (para si).
O ângulo é de uma mulher que sabe da fixação do “ser mulher”, o ângulo diz de
uma singularidade que aponta para um corte nos modos de luta já serializados: a linha
divisória da política de classes, a linha divisória entre o real, com todas as suas
possibilidades de ação, e o ficcional, com todas as suas possibilidades vetadas pela
(noção de) abstração. A sedução de uma mulher pela possibilidade de participar do
curso de política, a sua micropolitica do pensar, do refazer a política ensinada, do
representar, do sentir, do escrever apontando para uma outra coisa: uma fulguração, a
imagem de um acontecimento, um ruído nos modos de percepção.
Onde estaria o ruído de Noemi na Rachel de Queiroz militarizada? Onde estaria
a Rachel de Queiroz politizada pelo comunismo, depois da não separação dos homens
em classe, na categoria da humanidade? Como, entretanto, não perder de vista a
parcialidade de Noemi-Rachel de Queiroz, enfrentando as representações do feminino,
para não cairmos nessa imagem da humanidade, enquanto unificação apagando as
diferenças, as singularidades enquanto processos criativos? Como repensar, também,
nessa humanidade apontada por Rachel de Queiroz, um outro modo de pensar o
feminismo? Como não perder de vista o devir animal aí instalado?
Onde estaria a Rachel de Queiroz? A Rachel de Queiroz familiarizada? A grande
autora Rachel de Queiroz? O nome Rachel de Queiroz? Rachel de Queiroz parece ter se
38
QUEIROZ, Rachel. Caminho de Pedras, p 36.
32
esvaído, talvez na marca de uma humanidade requisitada por Noemi. Rachel de Queiroz
poderia ser qualquer uma, qualquer um de nós, sujeitos a assujeitamentos, a termos os
nossos desejos, nossa vontade de liberdade, capturados. Rachel de Queiroz seria
estrategicamente restituída ao anonimato, como meio de resgatarmos certa potência
típica dos anônimos, potência não visualizada por conta do engodo (necessário, como
forma de reconhecimento) da necessidade-vontade de nomeação, de se fazer, nesses
moldes, existir.
Não importa quem tenha escrito Caminho de pedras, não importa se é Rachel de
Queiroz ou Noemi, ou Maria ou João. Não importa quem fala. Esse seria o princípio da
indiferença, que segundo Foucault39 apontaria para o princípio ético-estético, que
poderíamos visualizar na escrita contemporânea. Para Foucault, nesse sentido, a escrita
não deve ser vista como simples meio de expressão, ou arte de escrever apontando para
um fetichismo. Seria na escrita que poderíamos encontrar o sujeito se refazendo. Esse
refazer-se teria uma ligação com a morte; a morte que seria rejeitada por certa tradição
literária, já que mesmo quando se mata o grande herói seria para afirmar a imortalidade
da obra, do autor. Um outro exemplo dessa imortalidade nos dado por Foucault seria o
gesto sôfrego de Xerazade, para evitar a morte, as mil e uma histórias para que ela não
venha. No caso da morte na escrita, enquanto atividade ética, esta se faria pela
constatação do sacrifício da própria vida inerente a esse movimento. Movimento que se
manifestaria no apagamento dos caracteres individuais.
Em Caminho de pedras, não encontramos uma heroína Noemi, mas um sujeito
em transmutação, morrendo e vivendo, apagando e se refazendo. Uma mulher que sofre
com uma destinação, ao mesmo tempo que luta contra ela. Uma mulher que resiste a um
caminho de pedras, a um apagamento dos que estavam ao seu lado, seja o marido que
vai embora, seja o companheiro do Bloco, que é preso, mas que acima de tudo gravita
vida, vangloria-se com a possibilidade, nas páginas finais, de poder gerar vida, carregar
vida em si.
Sendo assim, trata-se de uma mulher que se agarra à vida, na sua intensidade
provisória, aprendendo a lidar com a morte. Morte em que nunca havia pensado, que lhe
toma a cabeça, e que se faz marcante na culminação da doença do seu filho. Morte de
um casamento, de um cotidiano, de uma Noemi conhecida por todos, pelo patrão, pela
companheira de trabalho, pelo marido, pela comadre que a ajudava nas tarefas do lar,
39
Cf. FOUCAULT, Michel. O que é um autor?, p. 34-37.
33
pela sociedade dita como tradicional. Morte de uma mulher que seguia as
representações atribuídas para mulheres, que aprendera a não ter certos sonhos, desejos,
porque aprendera que era pecado, aprendera que afrontaria uma moral.
Em Noemi a morte de uma certa mulher; em Rachel de Queiroz a morte de uma
certa militância militar; em caminho de pedras o sujeito, liberando-se do nome, matando
certa representação de si, refazendo-se. A escrita enquanto maquinaria desejante, a
cena-acontecimento de Noemi enquanto fulguração, reserva ilimitada da/na linguagem,
enquanto sujeito outro, sem nome, que aparece no seu esconderijo. A cena-desejo de
Noemi, então, aponta para a cena da escrita, aponta para o grau zero que implica
também numa morte, a morte de representações fixadas, e a refeitura dos seres, dos
movimentos ou reengendramento de representações. Um processo criativo ou um
distanciamento na cena da escrita que aponta para uma outra percepção da atividade do
escrever ou da escritora, enquanto criadora de si e de outros mundos, partindo do
morticínio de representações, de modos de pensar e de saber moralizadores do sujeito.
Rachel de Queiroz, que já afirma certa anarquia não se submetendo a
representações para mulher enquanto filha, enquanto esposa, enquanto mulher nos anos
trinta, sem tanta liberdade de perambulação, nos leva a repensar essa morte que é vida,
reencenação e escritura. Essa vida que é morte, possibilidade de captura. Dessa forma,
esse esconder-se e mostrar-se, como política da significação alimentada pela reserva
imaginária que se assentou no literário, nos leva a pensar um movimento subjetivo via
signos, via representação-criação-encenação, quebrando parâmetros clássicos para a
política, para a representação, para o literário. O movimento de Noemi, o movimento de
Rachel de Queiroz consideradas, enquanto sujeitos-personagens femininas, podem ser
vistos também como forma de luta contra certa nomenclatura.
Nesse sentido, as perguntas típicas “quem fala”, “de onde fala” ou “para quem
fala”, nos fazendo lembrar do “direito exclusivo de quem fala”, “o tabu do objeto” e o
“ritual da circunstância,” problematizados por Foucault40, enquanto necessidade de
averiguação da ordem discursiva, parecem ajustar-se a esse movimento contra algo que
um desejo Noemi-Rachel de Queiroz faz irromper. A possibilidade de contradição
desses parâmetros em relação ao princípio de indiferença também apontado por
Foucault, enquanto princípio ético-estético, pode ser revista atentando-se sempre para o
mundo de representações e de regulações que encenamos e com as quais convivemos.
40
Cf. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso.
34
Perguntar por quem fala, sobre o que fala e as circunstâncias relativas ao espaço
e ao tempo dessa fala implica tornar visível esse mundo de representações e de
regulações; implica também visualizar modos singulares, criativos, de transgressão
dessas representações, modos correlacionados de fuga, afirmação de desejos contra algo
que oprime, cerceia, captura. A indiferença talvez esteja bastante ligada a essa atividade
sígnica, essa política subjetiva que a maquinaria desejante da escrita encena, cria,
quando faz acontecer um movimento distanciado, um engendramento, por exemplo, de
personagens conceituais.
A política subjetiva aqui, então, é feminina e não é. Aponta para um
questionamento dos lugares estabelecidos para mulheres assim como para uma
problematização acerca do ato de estabelecimento dos lugares, aponta para lugares
fluidos, ou para a abolição dos tempos e lugares fixados, como diria Noemi. Ela
participa do curso de política ministrado pelo movimento comunista, mas tem outra
fulguração política, para além das classes, das categorias, ao ponto de visualizar a
humanidade já representada e que precisaria ser reengendrada, refeita.
Rachel de Queiroz desconfia da unidade desse partido, como se já alertasse para
as possibilidades de captura já ali naquele espaço, desconfia de um outro meio de
opressão, o cerceamento da criatividade ou do movimento de uma personagem feminina
fora de um estilo de representação não questionado por tal política. Com isso um outro
tipo de politização entra em cena. Aliás, se observarmos a trajetória política de Rachel
de Queiroz, via esse outro parâmetro de politização, encontraremos muito mais um
movimento disruptor. Por esse critério, se observarmos Caminho de pedras, a noção de
política, de luta, também se amplia, fraturando as fronteiras da classe, perfurando
unidades, sinalizando modos de captura, ampliando o grupo de trabalhadores contra os
meios de exploração de si.
Nesse sentido, se a luta de uns é para tomar certo poder estatal, se a luta de
outros é para cercear outros poderes e garantir o Estado enquanto única forma de poder,
talvez devêssemos, retomando outras vias dos caminhos de pedras, da trajetória de
Rachel de Queiroz, atentar para os micropoderes, micromovimentos, desvios possíveis
do significado, fulgurações, ou levantamento da cortina, mostrando que no fundo do
palco tudo também é encenação, que se espraia nos diversos auditórios.
Micropoderes não enquanto tipos de indiferença para com o poder estatal, no
sentido de não considerar seu grau de sedução, o alcance das suas possibilidades.
Micropoderes, subjetivos como os de Rachel de Queiroz-Noemi, enquanto forma de
35
_ E então?
_ Então, o quê?
_ As memórias!
_ Você sabe que eu não gosto de memórias. Nunca pretendi escrever memória
nenhuma. É um gênero literário (...) onde o autor se coloca abertamente como
37
personagem principal e, quer esteja falando bem de si, quer confessando maldades, está
em verdade dando largas às pretensões do seu ego – grande figura humana ou grande
vilão. Mas grande de qualquer modo. O ponto mais discutível em memórias são as
confissões, gênero que sempre abominei, pois há coisas na vida de cada um que não se
contam. (...) Vamos fazer um acordo: não vou falar espontaneamente. Você terá que
me extorquir as lembranças do passado, as coisas que testemunhei, as pessoas que
conheci. Se quiser conto, se não quiser não conto. Prometo apenas não mentir, fugindo
ao perfil clássico e invertido de ‘memórias’.41
Para Rachel de Queiroz o gênero memória seria refutável pelo fato de terminar
numa construção de uma grande figura humana ou um grande vilão. Um ou outro, o
certo é que seria grande de qualquer modo, ou seja, sempre uma celebração. Rachel de
Queiroz ainda nos diz que outro fator que condena no gênero seria a propensão, nele
imbutida, para confissões. Portanto, já de início, no atrito literário com a irmã, afirma
que a condição para o livro sair seria a sua liberdade para contar o que quisesse e para
não contar o que não quisesse, limitando-se, entretanto, na contramão do que se
visualiza no perfil clássico e invertido do gênero, segundo ela, a uma certa fidelidade ao
ocorrido.
Do que nos diz Rachel sobre o gênero memória, sobre as formas de lidar com o
tempo passado fica a sua recusa ao maniqueísmo: vilão ou mocinho ou, em termos mais
enfáticos, à elevação do sujeito louvada por ele mesmo. Também fica, nesse primeiro
registro, a contradição de quem quer fugir das confissões e promete não mentir. Dito
isso, Rachel de Queiroz, provocada por sua irmã, retoma o passado, suas histórias.
Entretanto, para o que já foi dito, podemos confabular sobre essa possível recusa de
Queiroz em escrever suas memórias.
Ficamos pensando como ela esteve vinculada a isso. Sua escrita enquadrada num
movimento literário denominado de regionalismo parecia significar já de imediato uma
valorização das tradições, dos modos e tempos de viver locais, interioranos,
ultrapassados para aqueles que se instituíam na luta a favor do progresso e da
modernização do país. Maniqueísmo aqui vira forte dualismo, modo de ver
dicotomizado. Talvez com Rachel de Queiroz já pudéssemos quebrar certas oposições.
Heloísa Buarque de Hollanda42, ao entrar no seu apartamento no Rio teve a
sensação de estar entrando numa fazenda nordestina já que as acomodações, os móveis,
a decoração, todo o ambiente era uma refeitura daquele outro espaço. Para Heloísa,
portanto, Rachel de Queiroz, na contramão de um movimento atual, seria uma outra
41
Cf. QUEIROZ, Rachel de; QUEIROZ, Maria Luiza de. Tantos anos, p. 11.
42
Cf. HOLLANDA,Heloisa Buarque de. Ethos Rachel.
38
espécie de migrante, aquele que não sai do seu lugar mesmo quando sai, que, mesmo de
fora, fala de dentro do seu espaço de origem, promovendo um encontro, ou confronto,
entre temporalidades diversas.
A nós interessa pensar na possibilidade de ampliar os sentidos, os modos de ver,
de situar e temporalizar. Talvez devêssemos, para a rígida separação - o que é regional
ou local e o que não é - complexificar essas distâncias. Buscar na metrópole um traço
local. Buscar no espaço local vestígios de uma cidade global, ou melhor, buscar, em
ambos, os traços de uma cidade subjetiva singular, as marcas de uma seleção das
imagens, do tempo, da memória.
Ao invés do saudosismo, da reminiscência, da preservação de um passado
atribuído à regionalista, queremos pensar Rachel de Queiroz de uma outra forma, como
ela mesma nos sugere em entrevista concedida aos Cadernos de Literatura: como uma
não típica regionalista. O que dizer das suas personagens, e dela enquanto personagem
feminina que atravessou o século XX e adentrou no XXI? Acaso teríamos nessas
imagens de mulheres uma réplica do retrato de um tempo em que às mulheres eram
negados direitos, voz e vez?
O que percebemos é uma Rachel de Queiroz enfrentando a vida, quando, por
exemplo, aos dezoito anos, já professora, fora chamada pelas alunas para representá-las
junto ao diretor autoritário. O que encontramos na escrita de Queiroz são personagens
destemidas: Santa de João Miguel, com sua resistência política, Conceição em O quinze
questionando o casamento e interessando-se pelo estudo e não-estudo da população
sertaneja, Maria Bonita afrontando Lampião em sua peça de mesmo nome43, entre
outras da galeria que constrói, encenando outras possibilidades de produção de si. Com
isso, temos o traçado de mulheres que retracejam o seu destino, que falam, gritam e se
fazem ouvidas.
Quando reconta a história das mulheres que conhecera, das mulheres da sua
família, em geral o que vem à tona, quando destaca a potência de todas elas, o fazer e o
não fazer, uma certa liberdade, é a imagem da matriarca. Uma ilha de matriarcas no
sertão, na linha da escrita, da leitura e do recontar de Rachel de Queiroz, diria Heloísa
Buarque de Hollanda.44 Para nós, analisando a textualidade de Queiroz, seu texto-vida,
sua vida-texto, seus modos de lidar com o recontar, fica a encenação de um devir para
as mulheres, um devir matriarcal.
43
Cf. livro Tantos Anos, já citado, e a Obra reunida de Rachel de Queiroz.
44
Cf. HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Op cit.
39
Uma certa liberdade percebida na sua primeira cena pública, com o seu romance
O quinze, aos dezenove anos45. A escrita deveria ser burilada, enxugada, cortando todos
os penduricalhos que poderiam denotar um estilo feminino água com açúcar, para que
pudesse ser aceita no rol daquela escrita masculinizada. Talvez o gesto quisesse dizer:
não aquilo que fizeram do feminino, mas sim ao estilo considerado masculino de
escrever como estratégia para ser aceita. E nessa luta, contra o que fizeram do feminino,
talvez tenha irrompido a escrita de Rachel, bastando lembrar da não vitimização, da não
fragilidade de nenhuma de suas personagens.
Essa liberdade incerta aponta para esse enredamento nas malhas culturais, esse
depender do outro, esse fazer-se e refazer-se em relação ao outro. Essa subjetividade
social, esse sujeito em certo sentido sujeitado a forças que o capturam, que o produzem,
que tomam as rédeas da sua contra-narrativa. Assim percebemos Rachel de Queiroz na
época do golpe militar: numa sujeição a um querer outro que se tornara seu. Assim
também percebemos certos comportamentos de mulheres e de homens que se sujeitam a
modelos construídos, a modos de pensar que interiorizam, a saberes que foram
naturalizados. Talvez devêssemos com a escritora desconfiar do maniqueísmo desses
saberes, desconfiar das memórias que repetiram esses saberes. Desconfiar, também com
Rachel de Queiroz, dos perigos reativos das estratégias masculinizadas de inserção,
perceber a diferença, sem desconsiderar o risco, entre mover-se estrategicamente e ser
capturada por uma tática que apontava para outra perspectiva, outra práxis-teórica. Ou
seja, perceber a repetição – como uma espécie de inversão - somente como
provisoriedade, como estratagema criando um tempo de diferenças, mas desconfiar
sempre do perigo do mesmo na repetição, ou de uma diferença que não faz diferença.
Retomar a retomada que Rachel faz da sua vida em tantos anos é estar atenta a
isso: a esse sujeito insubordinado e subordinado que se esboça, esse sujeito Rachel que
é escritor e personagem ao mesmo tempo. Esse sujeito diverso, múltiplo, contraditório e
sempre em via de fazer-se e refazer-se. Rachel de Queiroz, no seu livro Tantos Anos,
reencena, sem procurar confessar culpas, seu devir reativo no cenário da ditadura, assim
como encena o seu devir ativo no contexto do Estado Novo. O desejo da escritora,
também personagem de um cenário de luta e restrição, de fazer publicar seu romance
João Miguel, sem modificar, por exemplo, o retrato da personagem feminina, como
queria o líder do Partido Comunista que fora obrigada a consultar, contrapõe-se a uma
45
Cf. Cadernos de literatura brasileira, já citado, edição dedicada integralmente á escritora.
41
outra Rachel que faz repetir um desejo de um grupo com o qual ela interage no período
de um golpe militar.
A vontade de fidelidade, portanto, revela o seu perigo: a repetição pode ser de
uma memória imposta ou capturada, de práticas de sentido que sobrepujam o devir
ativo, o desejo, a desconfiança, amortecendo o corpo e a vida. Suas personagens
também carregam essa contradição discursiva, essa subjetividade (en)gendrada. A
Maria Bonita, da peça Lampião46, já no primeiro ato irrompe contra todo o constructo
de fragilidade e passividade atribuído a mulheres, mas recai no modelo de subjetividade
produzida para homens sertanejos quando solicita do seu primeiro marido um estatuto
de coragem e valentia já fixado em Lampião.
Dessa forma, para a vontade de fidelidade de Rachel de Queiroz, talvez
devêssemos lembrar da sua infidelidade ao Partido Comunista, quando este impusera os
caminhos da sua narrativa, o delineamento da sua personagem feminina. Esquecer da
fidelidade, também em nós instituída, talvez insurja como uma questão de saúde ou,
então, deveríamos lembrar de não esquecer dessa vontade de fidelidade interiorizada
como sintoma de que se deve ter desconfiança, como signo de um capital cultural
mundial integrado, um capital patriarcal colonizador, que incessantemente reestabelece
seus meios de captura das subjetividades. O não-mentir postulado no início, como nos
mostra uma das Rachéis, deve obedecer, portanto, a um desejo singular, que se torna
infiel a um outro ponto de vista que cerceie o seu modo de ver, um ponto de vista que,
feito lei factual, tem fixado a mulher num lugar e tempo pré-determinados.
Com Rachel de Queiroz no ato de escrever sobre si, de retomar seus tantos anos,
de criar suas tantas personagens, que são como máscaras para ela, que também é uma
personagem, assim como escritora, percebemos a multiplicidade de sujeitos ou o sujeito
uno em sua multiplicidade, a subjetividade em contradição e produção pelas linhas
subordinadas e insubordinadas de quem escreve, lê e reescreve. O tecido da memória é
como página em branco, ou bloco mágico, como diria Freud47, feito superfície
sobremarcada, de cera ou resina, que se faz recoberta por folha fina sempre pronta a ser
sulcada, e que ao ser levantada possibilita junto à resina mnemônica visibilizar as
marcas e remarcas que apagam e se acendem.
Nesse ponto, pensando na forma de retomar as linhas de tempo e de vida de
Rachel de Queiroz, pensando nos seus relatos de tempo-vida de mulheres, nos relatos
46
QUEIROZ, Rachel de. Lampião. In: Obra reunida. Vol. 5.
47
Cf. FREUD, Sigmund. O bloco mágico.
42
que fazemos sobre as nossas vidas, talvez devêssemos nos perguntar que traços dessa
superfície queremos desrecalcar e com que propósito? Que traços queremos delinear? O
que lembrar? O que esquecer? Por que desconfiar desses conceitos? Que estratégias
saudáveis buscar nesse jogo de linguagem que reconstitui quem fomos como passo para
buscar o que queremos ser? Como lidar com essa significação sobre os sujeitos estando
atenta a uma fixidez dos saberes, a uma fluidez das práticas de reterritorialização, a uma
racionalidade que quer ditar o traçado da escrita e temporalizar as relações que temos
com o tempo?
Talvez experimentar ler Rachel de Queiroz, seu ato de releitura, seu corpo
transfigurado, extenuando comportas temporais e sempre aberto a outras significações,
nos ajude a pensar nessas questões. Podemos, inclusive, no seu ato de seleção das
marcas que quer ativar, nos perguntar que outros saberes Rachel de Queiroz engendra
sobre si, sobre as mulheres, sobre os homens, sobre o mundo. Por enquanto, talvez
pudéssemos ter como resposta a possibilidade, que ela torna visível, de engendramento
de outros saberes, neste caso, através da obra de arte, a qual mesmo fugindo de uma tal
infidelidade, inscreve outras óticas, outras significações para mulheres, na cultura.
Uma espécie de saber narrativo e dramático se esboça em e com Rachel. Saberes
que, segundo Eneida Maria de Souza48, na esteira de Lyotard e Barthes, apontam para
uma desmitificação das metanarrativas legitimadoras da ciência e da integridade ilusória
do sujeito. Nesse sentido, segundo Souza, Barthes privilegia o saber da escritura como
enunciação, colocando-o em desacerto com o saber da ciência, enquanto que Lyotard,
valendo-se da metáfora do relato, denuncia a inoperância confirmada dos grandes textos
circunscritos a projetos totalizantes e autoritários. A literatura é enfatizada nas suas
maquinarias desejantes e traduziria, na sua estrutura dramática, o inconsciente e a
linguagem. O texto, a escritura ou o saber dramático suplantando o saber
epistemológico, operando nos interstícios da ciência, promoveria uma reflexão
incessante sobre o saber ao tempo em que efetivaria a encenação de subjetividades, o
distanciamento e simulação do sujeito-ator na cena enunciativa.
Assim, o sujeito é percebido enquanto bloco, escrito e reescrito, marcado e
remarcado; a escrita de sua vida, sua biografia, como biografema49, uma imagem
sempre fragmentada contra o estereótipo insustentável da totalidade e da fidelidade.
Nessa linha, para o sujeito cognoscente teríamos, então, o sujeito como texto, ser de
48
Cf. SOUZA,Eneida de. Tempo de pós-crítica e Notas sobre a crítica biográfica, este in: Crítica cult.
49
Idem. Notas sobre a crítica biográfica. In: Crítica cult, p.113.
43
papel, ser de linguagem que se dilui e surge na escrita que o substitui e o suplementa.
Para Rachel de Queiroz teríamos a força da sua enunciação dizendo já de início da sua
necessidade de seleção dos traços. Contra certos esquecimentos que recalcaram
mulheres, suas perspectivas, suas inquietações, suas contradições discursivas, parece
rememorar, perlaborar, inventar suas personagens de forma que, por vezes, não
separamos a escritora de si e a personagem que se apropria da história, feito Maria
Bonita na peça Lampião50, a personagem que toma pé do seu discurso; a mulher que
aproveita o espaço da escrita, espaço sobremarcado como o da memória, para
reinventar-se, para reinventar-nos, utilizando então, já de uma forma ativa, a estratégia
do esquecimento.
O esquecimento que, como nos alerta Deleuze, relendo Foucault, não se opõe à
memória pois ela é sempre esquecida para se refazer. Essa memória do futuro “é o
verdadeiro nome da relação consigo, ou do afeto de si por si.51” Como diria o próprio
Foucault52, a memória-esquecimento estaria na releitura da escrita pessoal, de modo a se
reatualizar o que contém, a fazer um exame das riquezas nela depositadas, lançando um
olhar retrospectivo sobre a própria vida, transvalorando, esquecendo, apagando, como
diria Freud.
Nessa linha de seleção de imagens, de marcas e, com isso, de possibilidade de
esquecimentos ativos, seu texto também tem caráter de relato pela rasura que faz a um
saber oficial, por deixar a porta aberta para uma estética que aponta para outras
possibilidades, assim como para a necessidade de uma ética, de uma politização que
fuja da moral, da consciência, da culpa, da coerção sorrateira, da fidelidade que,
tornando-se infiel, ativa as maquinarias desejantes da literatura dramática do
inconsciente, que deve repercutir no social. Perguntar por quem rememora, quem
escreve, o que quer e o que pode com essa escrita; que peso atribuímos a ela perante os
discursos biológicos, matemáticos, historiográficos e tantos outros que, pautados por
uma cientificidade ou legitimidade cotidiana, negaram a mulheres o seu direito de se
expressar dizendo o que elas deveriam ser, é questão chave em Rachel de Queiroz.
Para isso, talvez devêssemos reter a fala-imagem da escritora que aponta para
um certo domínio de si: “Se quiser conto, se não quiser não conto”. Reter a sua
inquietação em retomar o passado e sua história. Retomar afirmando-se enquanto sujeito
50
QUEIROZ, Rachel de. Lampião. In: Obra reunida. Vol. 5.
51
Cf. DELEUZE,Gilles. Foucault, p.115.
52
Cf. FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. In: Resumo dos cursos do Collége de France, p.
129.
44
Dessa forma, se nesse momento temos uma Rachel de Queiroz ativa, senhora da
sua escrita de vida, que fora apagada por uma percepção crítica que se isola das relações
de forças contextuais, que não se considera sujeita a tais forças, é retomando o que essa
crítica ignorou enquanto potência literária, que fizemos Rachel de Queiroz devir ativa,
que restituímos suas múltiplas possibilidades, inclusive a de militante, já aberta também
para ampliações.
Uma perspectiva crítica literário-sociológica, que se alinha ao marxismo, mas
que acaba incorrendo naquilo que Marx mais condena no socialismo, que se intitula
crítica crítica, dos irmãos Bauer: o absolutismo crítico, a sua transcendência. Os irmãos
Bauer rejeitam a perspectiva de transformação no social, afirmam-na somente no plano
das idéias. A crítica que apaga Rachel de Queiroz desconsidera o potencial
revolucionário, as reservas criativas, libertárias, das suas idéias ficcionais, visto que as
condiciona ao seu movimento de vida, no sentido de considerá-las despolitizadas, ou
seja: Rachel de Queiroz tornou-se de militante comunista e trotskista a adepta do golpe
militar no Brasil, logo, seus textos também acompanharam sua trajetória curvilínea.
Alfredo Bosi, enquanto autor dessa crítica sobre Rachel de Queiroz, vai enfocar
o social como objeto, arena política de transformação, e separar o texto ficcional dessa
45
Vivemos na ambivalência.
1
Cf. HOLLANDA, Heloísa Buarque. Políticas da Teoria. In. HOLLANDA, Heloísa Buarque (org.) Pós-
modernismo e política, p. 7-14.
49
2
Cf. HOLLANDA, Heloísa Buarque. Feminismo em tempos pós-modernos. In. Cf. HOLLANDA, Heloísa
Buarque (org.) Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura, p. 7-19.
50
da produção literária que centram suas reflexões numa suposta e natural especificidade da
linguagem e/ou escrita feminina ou ainda na afirmação de uma identidade feminina.
Heloísa Buarque de Holanda visualiza uma flexibilização no feminismo que segue
em direção a uma radical crítica da cultura. Para ela as teorias críticas feministas sofreram
uma revitalização com os estudos sobre os processos de construção da subjetividade
feminina nos países periféricos. E é justamente essa politização da subjetividade que nos
sugere a teoria pós-colonial e a filosofia pós-moderna, ao contrário da noção problemática
de identidade. A linguagem então, nesse outro olhar, nesse outro modo de interpretar, tem
um outro sentido: não está deslocada das forças sociais, presa a uma pureza ou centralidade
que só revela uma não abertura à mobilidade dos signos culturais.
Se há um enfoque, dessas teorias, na linguagem é porque se descobre que ela tem
uma performatividade na nossa vida, nos nossos atos, no nosso cotidiano, nas relações de
opressão. O teórico Homi Bhabha3, nos seus estudos pós-coloniais, verifica o quanto o
discurso do colonizador, na sua estratégia estereotípica de identificação e de conhecimento,
produziu e nomeou seres deformados, cuja diferenciação recebia, nas relações de forças
textuais, a marca do inferior. Daí se pensar numa escrita que nomeava, e tomava posse da
terra e da mulher, fazendo repetir um eterno feminino, é um passo. Dessa forma, a nossa
luta é com e contra a linguagem, ou como diria Heloísa Buarque de Holanda: “a realidade
pós-moderna apresenta-se assim como realidade tática cuja eficácia é diretamente
proporcional à sua luta contra a linguagem e ao seu compromisso com a desarticulação dos
vários e sutis sistemas de dominação ainda hegemônicos”4.
Portanto, como vimos, precisamos pensar em termos táticos, mas, eficazes. A
propósito, necessitamos também repensar o conceito que temos sobre linguagem e texto,
porque volta e meia fazemos leituras ainda marcadas por uma estabilidade que nos remonta
a estereótipos discursivos que queremos combater. É o que vai nos dizer Jane Flax5 quando
afirma sua preocupação em “pensar o pensar”, ou, pensar mais como pensamos acerca das
relações de gênero ou de quaisquer outras relações sociais.
3
Cf. BHABHA, Homi K. A outra questão: o estereótipo, a discriminação e o discurso do colonialismo. In: O
local da cultura, p. 105-128.
4
Cf. HOLANDA, Heloísa Buarque de. Políticas da teoria. In: HOLANDA, Heloísa Buarque de (org.) Pós-
modernismo e política, p. 14.
5
Cf. FLAX, Jane. Pós-modernismo e relações de gênero na teoria feminista. In: HOLANDA, Heloísa
Buarque de (org.) Pós-modernismo e política, p. 217-250.
51
Nesse intuito, Jane Flax se propõe a rever o movimento teórico dos estudos
feministas. A princípio demonstra ainda operar com a dicotomia teoria e prática, já que
afirma que, sem as ações políticas feministas, as teorias permaneceriam inadequadas,
ineficazes. Em seguida, agenciando uma metateoria, como contribuição da filosofia pós-
moderna, se propõe rever os embates, as tensões e as respostas que as teóricas feministas
têm sugerido para as questões levantadas.
Segundo Jane Flax, a teoria feminista tem uma afinidade com a análise das relações
sociais e com a filosofia pós-moderna. Aliás, para ela, a teoria feminista seria um tipo de
filosofia pós-moderna, visto que os filósofos pós-modernos procuram colocar em radical
dúvida crenças provenientes do Iluminismo como: a existência de um eu estável e coerente,
o império da razão universal e transcendental, a ciência como exemplo do uso correto da
razão, como paradigma para todo conhecimento verdadeiro, e a linguagem como vetor de
transparência do real, ou seja, a idéia de uma correspondência entre palavra e coisa , como
se os objetos não fossem lingüisticamente (ou socialmente) construídos, mas apenas
trazidos à consciência pela nomeação e pelo uso correto da linguagem. Segundo Jane Flax,
“as feministas, como outros pós-modernistas, começaram a suspeitar que todas essas
afirmações transcendentais refletem e reificam a experiência de umas poucas pessoas -
predominantemente homens brancos ocidentais”.6
Nesse contexto tático e desconstrutor, a fixação do natural e do metafísico é uma
barreira comum, que faz com que repensemos as coordenadas de nossas questões: o gênero
não pode mais ser tratado como fato simples e natural e ao focarmos a mulher como nossa
problemática deveríamos ter o cuidado para, ironicamente, não privilegiarmos o homem
como não problemático ou livre das relações de gênero; em outras palavras, deveríamos
pensar mais na questão das relações.
Os estudos das relações de gênero, então, conforme Jane Flax, parecem ter dois
níveis de análise: o gênero por vezes é tratado como uma construção ou categoria do
pensamento que nos ajuda a entender histórias e mundos sociais particulares e, noutras
vezes, (ou concomitantemente, podemos admitir) como uma relação social que entra em
todas as atividades e parcialmente as constitui. Nessas linhas, para Jane Flax, as teóricas
feministas têm procurado, para o estudo das relações de gênero, causas e explicações
6
Idem. Ibidem., p. 224.
52
7
Cf. SCOTT, Joan. Igualdade versus diferença: os usos da teoria pós-estruturalista. In: Debate feminista, p.
203-222.
8
Idem. Ibidem., p. 205.
9
Idem. Ibidem., p. 205.
10
Idem. Ibidem., p. 206.
54
11
RICHARD, Nelly. Diferença sexual, gênero e crítica feminista. In: Intervenções críticas: arte, cultura,
gênero e política, p. 142-172.
55
12
Cf. SCOTT, Joan. História das mulheres. In: BURKE, Peter (org). A escrita da história: novas
perspectivas, p. 63-95.
57
13
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Feminismo em tempos pós-modernos. In: HOLLANDA, Heloísa
Buarque de (org.) Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura, p. 7-19.
58
Como a crítica literária feminista tem lidado com uma ausência-presença do sujeito?
Pretendemos, nesse tópico, levantar algumas questões sobre e para a critica literária
feminista ao tempo em que destacamos e rastreamos um ponto nevrálgico das suas
solicitações. Referimo-nos ao desejo feminista de visibilidade, ou melhor, de conferir uma
identidade às mulheres, de fazer com que estas sejam vistas como sujeitos, de criar
estratégias para que suas falas e/ou os discursos críticos feministas sejam ouvidos,
recebendo legitimidade das instituições científicas e comunidades interpretativas.
Referimo-nos, mais especificamente, a uma noção de sujeito operada por uma crítica
feminista, a um atrelamento desta ao projeto iluminista, à modernidade, sendo que contra
eles se declara.
Nesse sentido, algumas questões impulsionam o nosso pensamento: como tem agido
a crítica literária feminista? Com que olhar se debruça sobre o texto literário? Como se
caracteriza, nesse meio, o projeto de conferir visibilidade, identidade, autonomia às
mulheres, seus discursos, suas experiências? Considerando um movimento da crítica
literária em direção a uma perspectiva cultural, como nos afirma Santiago1 ao apontar o
declínio da arte e a ascensão da cultura, desde fins da década de 70 e início dos anos 80,
como se situa o pensamento acadêmico feminista frente os deslocamentos do olhar crítico
literário? Que importância teve ou teria, inclusive, um pensamento feminista para esse
1
Cf. SANTIAGO, Silviano. A democratização no Brasil (1979-1981) Cultura versus arte. In: O
cosmopolitismo do pobre.
59
movimento da crítica literária à cultural? Como percebemos isso, ou, como não percebemos
isso?
Para Rachel Lima2, que rastreou os passos de uma crítica literária desde a sua
configuração nos rodapés até o espaço catedrático, situando a busca de especialização e de
autonomia que se vislumbrava adquirir com o adentramento desta na universidade, com um
estudo menos impressionista, mais científico, sistemático sobre o literário e sua
literariedade, o que se percebe na cena acadêmica contemporânea, nos estudos literários,
nas teses e dissertações, portanto, na crítica literária, é o retorno, em diferença, do sujeito.
Entretanto, afirmar a volta em diferença do sujeito para muitas das teóricas e críticas
feministas talvez ainda seja algo problemático. A questão é que, como nos diz Cecília
Sardenberg3, as mulheres sempre foram vistas como objetos e, ainda, desqualificados;
portanto, sua maior luta seria mostrar-se como sujeito tão capaz quanto aquele que a
objetificava e a inferiorizava através de um discurso considerado universal e neutro,
racional, filtrado pela ciência e instituído como verdade absoluta.
A luta, portanto, de certas mulheres, por conta dessa ordem de verdade, implicaria
numa necessidade destas, sempre relegadas ao plano da emotividade e da imaginação,
demonstrarem possibilidade de raciocínio e, numa escala de valores instituída, capacidade
de imparcialidade científica, logo, capacidade de comprovar suas teses, de defender seus
objetos de pesquisa. Essa era a escada, cheia de tropeços, a seguir.
O impasse se dava nos moldes de um segundo assujeitamento, visto que, se o
primeiro se dava pela invisibilidade e indiferença atribuídas às muitas mulheres e suas
problemáticas, este segundo assujeitamento se efetuava através da solicitação de um auto-
apagamento da produtora daquele saber “outro” que tanto lhe dizia respeito, tanto estava
atrelado a sua luta cotidiana. Ou seja, para as mulheres que estavam ali para falar da
história das mulheres, de questões até então somente vistas por uma ótica, ou até mesmo
nem vistas, de questões que a elas diziam respeito, do recalcamento que sofreram, como
cobrar uma não intromissão daquela que falava naquilo que estava sendo falado? Teriam,
2
Cf. LIMA, Rachel Esteves. Tendências teóricas da crítica contemporânea. In: Revisitações.
3
Cf. SARDENBERG, Cecília Maria Bacelar. Da crítica feminista à ciência a uma ciência feminista? In:
COSTA, Ana Alice Alcântara; SARDENBERG, Cecília Maria Bacelar. (orgs). Feminismo, Ciência e
Tecnologia.
60
elas mesmas, que tratar seus assuntos, suas temáticas, a mulher em questão, como objetos
de pesquisa, esquecendo, novamente, numa via inversa e perversa, o seu traço sujeito ali
demarcado, ali conquistado?
Era preciso ser neutra para fazer ciência, e já que não se podia dizer quem falava,
muitas mulheres, ou melhor, uma certa perspectiva feminista começou a perceber que
aquela neutralidade científica tinha nome: logocentrismo, fonocentrismo, falocentrismo.
Algumas mulheres adentraram esse espaço, marcado por uma vontade de verdade
universal, e carregaram com elas todos esses questionamentos sobre a separação
“imparcial” entre sujeito e objeto de conhecimento, entre questões cotidianas “do lar ou do
privado” e as questões acadêmicas e se caracterizaram, como nos diz Stuart Hall4, num dos
movimentos que mais imprimiu rachaduras nessa identidade científica cartesiana, então
fincada nessa noção de neutralidade e de objetividade.
Além desse movimento que implodia esse teto unificado da razão, que descentrava
essa identidade estável e coerente iluminista ou mesmo aquela noção de identidade suturada
numa estrutura social, outros sismos, como diz Hall, também foram responsáveis pelo abalo
dessa instituição de poder, entre eles as releituras de Marx, que vão pôr em questão a
autonomia dos agentes da história; a lingüística de Saussure, afirmando a instabilidade ou
não autonomia dos enunciados; o inconsciente tematizado por Freud, que ganha cena
enquanto linguagem que age e desbanca a plena autoridade da consciência; e os estudos de
Foucault, a nos chamar atenção para uma microfísica do poder.
Se todos esses abalos, que apontam para uma outra ótica, se o feminismo no seu
desejo de conferir um valor científico aos discursos de mulheres, relevância para as suas
temáticas, acabam rasurando essa ordem já localizada, mas considerada universal, aí então
é possível falar em um outro sujeito que volta à cena. Em termos literários, esse sujeito se
apagava na entidade abstrata do autor, que na sua autoridade se garantia como gênio e
guardava o segredo do texto. Para isso, uma noção de hermenêutica, não associada ao
pensamento nietzschiano com relação à interpretação, postulava o desvelamento de uma
idéia através de um olhar que buscava na profundidade do literário um já dito talvez jamais
dito.
4
HALL, Stuart. Identidade Cultural.
61
5
Cf. LOVIBOND, S. Feminismo e pós-modernismo. Apud. QUEIROZ, Vera. Crítica literária e estratégias
de gênero, p. 118.
62
6
Cf. HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Feminismo em tempos pós-modernos. In: HOLLANDA, Heloísa
Buarque de (Org.). O feminismo como crítica da cultura.
63
7
Cf. HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século
XX. In: SILVA, Tadeu Aguiar da. ( Org.). Antropologia do ciborgue.
64
8
Cf. HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Op. cit., p.18.
65
9
Idem. Ibidem, p. 14.
66
10
Idem. Ibidem., p. 15.
67
11
FLAX, Jane. Pós-modernismo e as relações de gênero na teoria feminista. In: HOLLANDA, Heloísa
69
12
RICHARD, Nelly. Intervenções críticas: arte, cultura gênero e política, p. 127-141.
71
13
Idem. Ibidem., p. 130.
72
apagarem sua indignação em nome de uma suposta neutralidade que em geral sempre as
tinha recalcado, sempre as tinha impedido, inclusive, de adentrar nos meios literários. Para
isso, a proposta então seria: contra a “neutralidade” masculina, a parcialidade feminina. Em
termos mais arrojados, a proposta seria a constituição de um sistema de propriedade-
identidade do feminino que seria a base de um outro saber independente.
Se não se queria ser cooptada pela pretensão de neutralidade e universalidade
masculina, a propensão seria para uma separação, para a afirmação da vontade de uma
outra identidade, trabalhando, portanto, somente com duas óticas também já fixadas, a
masculina e/ou feminista.
O problema, portanto, seria a não abertura para o relacional, a crença em uma não
contaminação, a apropriação reativa de uma política masculina, a efetivação de um texto
enquanto categoria, já que não se observa a sua tessitura. O privilégio, em via inversa, do
feminino sobre o masculino, a separação de ambos da cena complexa da cultura, como se
isso fosse possível, como se essa cena não emaranhasse esses elementos. Se novamente
voltarmos àquela questão sobre o que seria o feminino, a escrita feminina, todas as
respostas, as limitações, apontam para o complexo, para a consideração do masculino, para
a possibilidade do feminino no masculino, do eu no outro ou vice versa.
Os estudos sobre linguagem, textualidade e cultura, não mais na perspectiva dualista
de alta e baixa cultura, apontam para a ambivalência, o intertexto, a relação de forças
fazendo emergir outros acontecimentos. Se se recalca isso, pode-se, contra a normatização,
reafirmá-la novamente. E é justamente nesse plano, do texto enquanto relação de forças,
que se pode produzir, revertendo, uma outra coisa, assim como o feminismo tem feito. O
que não se quer é que se apague essa possibilidade de abertura para outras possibilidades. A
via de escape, portanto, não seria abrir uma porta e fechar as janelas.
Para Nelly Richard, relendo Ludmer e Kristeva, a escrita feminina não deve ser
vista como categoria masculina ou feminina, visto que “enquadrar a linguagem na chave
monosexual seria restringir o potencial transimbólico (transgenérico) da criação, como
fluxo e transbordamento da identidade e do sentido”14. Ao invés de uma escrita feminina,
uma subjetividade criativa a combinar várias marcas de identidade num processo flutuante
de significação e desorganização dos pertencimentos de gênero. A escrita, portanto, como
14
Idem. Ibidem., p. 132.
74
falar, qualquer que seja o gênero sexual do sujeito biográfico que assina o texto, de uma
feminização da escrita: feminização que se produz a cada vez que uma poética, ou uma
erótica do signo, extravasa o marco de retenção/contenção da significação masculina com
seus excedentes rebeldes, para desregular a tese do discurso majoritário15.
É uma produção que não se faz em separado, que atenta para os excedentes da
significação masculina, que ativa esses excedentes, expõe seus limites enquanto
liminaridade. Dessa forma, qualquer literatura que se pratique como dissidência da
identidade da cultura masculino-paterna, qualquer escrita que se faça cúmplice da
ritmicidade transgressora do feminino-pulsátil, que se faça pronta para alterar as pautas da
discursividade masculina/hegemônica, levaria o coeficiente subversivo, contradominante, o
“devir minoritário” de um feminino como forma de desterritorialização.
Mais uma vez é preciso dizer que essa liminaridade emerge na contradição, na
relação de tensão entre mais de um. O que permitiria, como nos diz Nelly Richard, levando
em conta os estudos de Kristeva sobre as duas margens que bordeiam a fala, a inferior
(feminino) do psicossomático e a superior (masculino) do lógico conceitual, às quais não
são margens que se excluem rigidamente mas fronteiras que se cruzam, compreender a
idéia de contradição móvel, entre pulsão e conceito, fluxo e segmentação que marca a
oposição entre masculino e feminino.
Dessa forma, somente desfazendo-se da coincidência natural entre determinante
biológico (ser mulher) e identidade cultural (escrever como mulher) é que se poderia
visualizar o feminismo, nas brechas da travessia da escrita, no entrecaminho da experiência
do gênero (o feminino) e sua representação enunciativa, como uma política dupla entre
subjetividade minoritária (enquanto margem sexuada desafiadora das normas hegemônicas)
15
Idem. Ibidem., p. 133.
75
disso, Nelly Richard sugere refazer a velha pergunta: ao invés de se buscar o que seria o
próprio de uma escrita - “mulher”- como se o texto fosse veículo de expressão de atributos
pré-determinados pelas razões de gênero, ignorando a realidade da literatura - buscar
“como textualizar as marcas do feminino, para que a diferença genérico-sexual se torne
ativo princípio de identificação simbólico-cultural”16.
Nessa vontade de intervenção, de buscar uma feminização da escrita, de textualizar
as marcas do feminino, aponta-se para um deslocamento do que foi significado, dos
conceitos, do feminino, da literatura, da crítica, do sujeito. E a escrita passa a ser a arma e o
lugar desse deslocamento.
É com e nas reservas da linguagem que se visualiza o feminino enquanto metáfora
ativa da marginalidade limítrofe e, enquanto tal, o fim da linha, a finitude, a fronteira se
abrindo a outras significações, outras vozes, outros saberes, outros olhares sobre o mesmo.
É o que nos ensina a psicanálise quando afirma que o sujeito do inconsciente sexual
jamais coincide consigo mesmo devido à diferença masculina/feminina que o atravessa
enquanto contradição interna, assim como a feminilidade não se realiza por completo
devido não a uma vacância castradora mas a uma potência que, baseando-se na
inadequação do consenso sociomasculino, rearticula o feminino enquanto menos (défict
simbólico) e/ou mais (excedente pulsátil) em relação às fronteiras de pertencimento-
pertinência das configurações de identidade social.
Portanto, se a luta de mulheres passa por uma vontade de serem consideradas
sujeitos pensantes, é preciso construir, tomando por base as próprias irrupções que essa luta
provocou, uma outra noção de sujeito. Enquanto pensamento contemporâneo, ou filosofia
pós-moderna, como afirma Flax, encarar a propalada morte do sujeito no sentido de morte
de uma concepção de sujeito enquanto ego transcendental da racionalidade metafísica, e
repensar a sua identidade sexual não como auto-expressão de um eu unificado “mas como
uma dinâmica tensional, cruzada por uma multiplicidade de forças heterogêneas que a
mantêm em constante desequilíbrio”17.
Do atrelamento à modernidade, e aqui pensando numa modernidade estética, talvez
se devesse reter a experiência limite da linguagem operada pelas vanguardas, operada
também pelo abalo sísmico das reivindicações conceituais-culturais feministas. Ou seja,
16
Idem. Ibidem., p. 137.
77
17
Idem. Ibidem., p. 138.
18
LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In. HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.) Tendências e
impasses: o feminismo como crítica da cultura.
78
sistema próprio, como essa linha para com o outro tem se voltado sobre nós mesmas como
imposição de auto-reflexão, como estamos, dentro das instituições, criando as nossas redes
solidárias, que tipo de saberes estamos produzindo, como estamos agenciando uma
mediação, que imagem coletiva estamos (re)produzindo, como estamos lidando com o
ressentimento, que leitura estamos fazendo da marginalidade, a partir de nós mesmas.
Como, nesse mundo de interpelações, estamos assumindo a marca do gênero sexual?
Talvez daí pudéssemos pensar na feminização da escrita, na escrita como devir, na
textualização do feminino, na análise feminista literária radicalmente cultural, na força da
subjetividade múltipla, na potência da multidão, incapaz de ser representada a não ser em
sua parcialidade, contra as armas da identidade pessoal e institucional.
79
1
Cf. DELEUZE, Gilles. Foucault e DELEUZE, Gilles. Conversações.
80
2
Cf. DELEUZE, Gilles. Foucault, p. 127-128.
82
3
Cf. RAGO, Margareth. Feminismo e subjetividade em tempos pós-modernos. In: COSTA, Cláudia de Lima;
SCHMIDT, Simone Pereira (orgs.). Poéticas e Políticas Feministas.
4
Idem. Ibidem., p.31.
83
direitos deixou de ser atribuída, por exemplo, à imagem estereotipada de velha e feia, “mal
amada e sapatona”. Portanto, outras imagens da feminista, da mulher enquanto oradora
avessa ou não à maternidade, necessariamente sem desejo sexual, parecem ter ficado para
trás.
Entretanto, nesse campo minado, hoje, o maior incômodo de Margareth Rago diz
respeito ao redesenho da figura da “coronela,” que tem percebido na cena atual, nas
instituições, nos escritórios, nas escolas, nas ongs... Um tipo de imagem que tem sido
reproduzida do espelho patriarcal que tanto se combate. Para Rago, essa noção de coronela
acompanha o rastro do homem cordial, definido por Sergio Buarque, em Raízes do Brasil, e
interpretado por ela enquanto poderio expandido do espaço privado no espaço público que
deveria ser de compartilhamento. Estratégia de masculinidade que não cabe em tempos
atuais, visto que a própria (noção de) masculinidade já não se sustenta, já vem sendo
questionada.
Margareth Rago encerra o seu texto falando da contribuição de Foucault e Deleuze
para pensarmos o movimento do nosso pensamento-ação. Citando Rose Braidoti, afirma
uma subjetividade nômade como uma desconstrução permanente do falologocentrismo
europeu. Por fim, solicita uma auto-avaliação constante das subjetividades que o feminismo
promove, impedindo a ação de forças reterritorializantes.
Pensando nesses impasses, repetições, o que destacar, enquanto forças
reterritorializantes nos modos de existência, nos corpos, nos espaços que o NEIM tem
produzido? Quais as linhas da sua cartografia? Quem é que é o NEIM? Como ele se
(auto)representa?
O NEIM, conforme consta no seu site5, foi criado em 1983 por um grupo de
pesquisadoras baianas. Primeiro como um programa da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da UFBA, e depois, em 1995, tornou-se órgão suplementar dessa mesma
universidade. Por conta da sua ligação com a academia, suas ações são muito em cima do
tripé que a sustenta: pesquisa, ensino e extensão. Para a professora Elizete Passos,
coordenadora do NEIM em 1997, o núcleo surge impulsionado pelos “movimentos
reivindicatórios feministas daquele período, centrados principalmente no questionamento
5
Cf. www.neim.ufba.br/ Acesso em maio de 2005.
84
acerca da divisão social do trabalho e nos papéis sociais definidos para homens e
mulheres”6; entretanto, mais distanciados das acirradas brigas que envolviam essa questão,
núcleos como o NEIM decidem partir para o campo da investigação.
O início da década de 1980 também, conforme Ana Alice Alcântara7, coordenadora
atual do NEIM, é um momento em que feminismos provindos das articulações dos seus
grupos autônomos adentram a academia, partidos políticos, sindicatos e meios de
comunicação. Eles assumem novas estruturas organizacionais, assim como chegam ao
aparelho de Estado com a criação de Delegacias Especiais de Atendimento às mulheres
vítimas da violência, Conselhos Estaduais e Municipais da Condição Feminina e em 1985
chegam a criar o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, órgão do Ministério da
Justiça.
A época também era de fim de um regime militar, de abertura para a visibilidade de
organizações, de lutas que eram travadas numa certa clandestinidade. As instituições
abriam tímidas portas para uma pressão feminista, assim como linhas nítidas pareciam
caminhar rumo a um imbricamento, bem como a uma rejeição do mesmo.
Segundo dados do seu sítio na internet, o NEIM é formado pelos lugares
epistemológicos destinados a Educação, Ciência Política, Antropologia, Enfermagem,
Literatura, Sociologia e História. Ativando cada uma dessas áreas de formação
encontramos pesquisadoras e, por conseguinte, linhas de pesquisa que perpassam questões
como gênero e educação; gênero, geração e envelhecimento; mulher e literatura; mulher e
política; mulher, saúde e sexualidade; relações de gênero, família e trabalho. Suas
publicações refletem o trabalho desenvolvido nessas linhas, além de uma articulação com
outras pesquisas. Seu “compromisso seria contribuir com o processo de superação das
desigualdades de gênero e com a formação de uma consciência crítica acerca da
importância da mulher na sociedade”8.
Além disso, encontramos listados como seus objetivos mais específicos o estímulo à
realização de estudos e pesquisas interdisciplinares sobre a questão da mulher e relações de
6
Cf. PASSOS, Elizete Silva. Apresentação, In: Catálogo de pesquisas e pesquisadoras(es) sobre mulher e
relações de gênero na Bahia, p. 7.
7
Cf. COSTA, Ana Alice Alcântara.Trajetória e perspectivas do feminismo para o próximo milênio. In:
PASSOS, Elizete; ALVES, Ívia; MACÊDO, Márcia. Metamorfoses: gênero nas perspectivas
interdisciplinares, p.30.
8
Cf. página,já citada, do NEIM na internet.
85
Ao longo de seus dezenove anos de existência, o NEIM tem promovido uma série de
eventos nacionais, regionais e locais, com o intuito de incentivar o avanço dos estudos
feministas, articulando espaços para o debate e intercâmbio entre profissionais da área.
Nessa perspectiva, em 1995, reconhecendo a necessidade de estreitar os laços entre essas
9
Cf. Site já citado.
86
10
COSTA, Ana Alice Alcântara; SARDENBERG, Cecília Maria Bacelar. Introdução, In: COSTA, Ana Alice
Alcântara; SARDENBERG, Cecília Maria Bacelar (orgs.). Feminismo, Ciência e Tecnologia, p 13.
11
Idem. Ibidem., p. 13.
12
Idem. Ibidem., p. 14.
13
Cf. ÁLVARES, Maria Luzia Miranda; SANTOS, Eunice Ferreira. Introdução, In: ÁLVARES, Maria Luzia
Miranda; SANTOS, Eunice Ferreira (orgs.). Olhares e diversidades: os estudos sobre gênero no Norte e
Nordeste.
87
14
Idem. Ibidem., p. 10.
15
Assembléia que aconteceu no Seminário Internacional – Enfoques Feministas e o século XXI: Feminismo e
Universidade na América Latina – realizado no XII Encontro da REDOR em conjunto com o XI Simpósio
Baiano do NEIM em Salvador, de 6 a 9/12/2005.
88
militância para criar tempo e espaço de encontros, para manter tais grupos temáticos
mesmo quando situados em instâncias de exclusão, como afirma Elvira Barreto do NTMC,
Núcleo Temático Mulher e Cidadania da Universidade Federal de Alagoas, por ocasião do
VI Encontro da REDOR, realizado em Maceió:
Não é exagero explicitar que a manutenção da maioria dos Núcleos Temáticos se realiza em
condições pouco favoráveis e muitas vezes hostis em algumas instâncias e espaços da
academia, o que vai emprestar a tudo isso um caráter de militância. Esse caráter militante
tomou conta do VI REDOR como condição de realização16.
16
Cf. BARRETO, Elvira. Celebração de um banquete. In: ALVARES, Maria Luiza; SANTOS, Eunice
Ferreira (orgs.). Olhares e diversidades, (contracapa do livro).
89
Continuando nessa linha de buscar espaço, dois anos depois, em 2005, o NEIM
conseguiu institucionalizar o primeiro programa de pós-graduação (mestrado e doutorado)
em gênero no Brasil. A sua força-tarefa parece ser rumo a uma produção diferenciada de
conhecimento, visto que articulada às questões feministas de gênero, rumo a uma formação
de novas pesquisadoras nesse campo da ciência. Para isso, força a abertura de espaços,
produz lugares de discussões e de engendramento de outros sujeitos. Lugares que se
expressam nos vários espaços articulados para os cursos de capacitação e assessoria que
oferece, seja em fábricas, acampamentos, associações, comunidades populares; lugares de
produção de subjetividades como os vários grupos de estudos, pesquisa e extensão,
semelhantes ao NEIM, que este ajudou a formar; lugares, por fim, como os espaços que o
NEIM, através dos seus Simpósios Baianos e Encontros da REDOR, tem promovido.
É nessa perspectiva de invenção de espaços, de produção de lugares de auto-
afecção, assim como de reconhecimento, que poderíamos retomar para discussão a
perspectiva de Margareth Rago quanto à necessidade de cuidado, de auto-avaliação, em
paralelo a um auto-questionamento constante dos lugares, dos sujeitos que ajudamos a
produzir e que nos ajudam em nossa reelaboração de nós mesmas. Os lugares, portanto,
enquanto invenção de outras possibilidades, outras subjetividades via diagrama
foucaultiano aqui reencenado pelo NEIM nas suas estratégias de produzir, forçar um
adentramento institucional de um outro saber-poder. Lugares inventados enquanto espaços
de desterritorializações, mas, também sujeitos a reterritorializações.
Logo, na perspectiva de Margareth Rago, a mulher consegue adentrar num espaço
que antes para ela não seria permitido, já que para muitas mulheres o espaço seu de destino
era o considerado privado, o recesso do lar. Nesse sentido, elas adentram o espaço público,
mas têm levado consigo um ranço do seu aprisionamento ao espaço do lar, ou têm sido
reaprisionadas por um tipo de cerco que tanto combatiam. Nessa linha, a coronela
percebida por Rago nos dias atuais não consegue lidar com a perspectiva de
17
Cf. SARDENBERG, Cecília. In. XI Simpósio Baiano de Pesquisadoras(es) sobre mulher e relações de
gênero. Seminário Internacional: o feminismo acadêmico em debate. Salvador, 25-28/11/2003. Livro de
resumos. Salvador: NEIM, 2003. Apresentação.
90
compartilhamento que o espaço público deveria sugerir, portanto privatiza-o, exerce, sobre
o mesmo, uma perspectiva de autoridade que tem sentido de cerceamento.
Nessa linha, para Heloísa Buarque de Hollanda18, a escritora Rachel de Queiroz ao
inventar, em suas narrativas, outros lugares para mulheres sertanejas, outro regime de
visibilidade e dizibilidade acerca das estratégias de poder, do senso político feminino,
configura para nós a imagem da matriarca, a qual define como aquela que busca por um
“espaço de domínio próprio”. Nessa perspectiva, ao explorar o perfil das matriarcas
viventes no Ceará do século dezenove, sua busca de espaço de domínio próprio, seu
domínio da economia doméstica e o alargamento dessa, seus poderes restritos e sua
ampliação passa, para Heloísa Buarque, a impressão de ter existido uma ilha matriarcal em
pleno sertão oitocentista.
Nesse sentido de busca de espaço e de reengendramento de sujeitos, nos interessa
pensar as suas reterritorializações, visto que já os percebemos enquanto estratégias prático-
teóricas de produção de desterritorializações. Dessa forma, pensar as reterritorializações
solicita-nos rachar as palavras e repensarmos as práticas que repetimos com elas, pensar as
suas múltiplas possibilidades de sentido. Assim sendo, se o espaço público pode ter o
sentido de privado, pode ser privatizado, a que prática de sentido a definição de matriarca
de Rachel de Queiroz nos remete, para pensarmos a possibilidade de uma repetição reativa
desse traço em mulheres?
O perigo reativo da busca de um espaço de domínio próprio, perfil da matriarca
desenhada por Rachel de Queiroz, segundo Heloísa Buarque de Hollanda, estaria no
elemento que aponta também para a sua produtividade. Ou seja, o termo “próprio”, visto
que este tanto parece designar algo singular, uma forma, um espaço de domínio diferencial,
como também parece apontar para um sentido de apropriação enquanto privatização,
cerceamento, um sentido de propriedade.
Nesse ponto, nos perguntamos: como pôr em relação essas definições de espaços e
de sujeitos femininos com o movimento de busca de espaço coordenado pelo NEIM? Que
relações podemos fazer entre essas práticas? Como, retendo as repetições reativas nessas
definições, visualizar possíveis reterritorializações nos espaços articulados pelo NEIM?
18
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. O ethos Rachel. In: Cadenos de literatura brasileira.
91
A propósito, retomemos tal busca por esse espaço sempre articulado para trocas,
discussões, várias falas num movimento interdisciplinar. Espaço, talvez devêssemos
primeiramente dizer, de corte numa série científica instituída. Corte contra uma serialização
do saber, do conhecimento, das práticas científicas. Desnaturalização dessas práticas.
Válvula de escape contra forças paralisantes. Dessa forma, o NEIM emerge contra as
formas de poder doentias, apodrecidas, existentes na academia, contra um certo
isolacionismo entre universidade e comunidade, como nos diz Ana Alice Alcântara19, ao
avaliar, no XI Simpósio do NEIM, os desafios do feminismo acadêmico, tomando por base
a experiência desse Núcleo.
O NEIM, portanto, parece emergir contra certos separatismos, a exemplo do
distanciamento entre sujeito e objeto de pesquisa. Aproxima-se desse objeto de formas
diversas como, por exemplo, através dos múltiplos tentáculos que estende, da formação
rizomática de grupos e pesquisadoras(es) fazendo-se chegar de um ponto a outro do Norte-
Nordeste, estabelecendo linhas de conexão dos igarapés à caatinga, como já foi dito, neste
texto, por uma das pesquisadoras enredadas pelo NEIM, via REDOR.
É assim que acontece na região Nordeste da Bahia, no semi-árido sisaleiro. Nessas
plagas o NEIM chega via MULIERIBUS, grupo de estudos de gênero da Universidade
Estadual de Feira de Santana, o qual se articula àquele seja através dos Simpósios Baianos,
seja via REDOR, nas parcerias das atividades realizadas, como produção de seminários, e
principalmente no fato de que a capacitação, o engendramento de novas pesquisadoras em
gênero, articulado pelo NEIM, também afetou o MULIERIBUS, visto que no histórico de
formação de suas pesquisadoras constam marcas de um projeto de ensino diferencial
disseminado pelas integrantes do NEIM, nesse caso, pelas suas fundadoras como Ana Alice
Alcântara e Cecília Sardenberg, via cursos, orientação e participação em bancas de pós-
graduação.
O NEIM, como foi dito, se estende, busca espaço, chega junto ao seu objeto de
pesquisa: mulheres diversas, mulheres rurais e suas relações de gênero. Mas como retorna
sobre si? Que imagem traz do outro tão aproximado de si mesmo? Que diferenças são
ativadas, que repetições, distanciamentos são reativados?
19
Depoimento de Ana Alice Alcântara Costa, na mesa-redonda “Desafios do feminismo acadêmico” inclusa
na programação do XI Simpósio do NEIM já citado.
92
20
Informações obtidas na entrevista de campo realizada em novembro/2005.
93
dizem. Os cursos ministrados por ela teriam, então, certo princípio de esclarecimento para
aquelas mulheres no que diz respeito a tal questão.
Nesse sentido, a pergunta contra possíveis reterritorializações recairia sobre a noção
de capacitação, sobre certa vontade de esclarecimento. Quais os perigos reativos na
capacitação que por vezes praticamos? Qual o traço nocivo que pode se assentar em nossa
vontade de ensino e esclarecimento, de forma a se ficar atenta quanto ao seguimento
daquilo que achamos correto? Como atentar para as transgressões, traições daquilo que
passamos e do que recebemos enquanto possibilidade ativa? Como, não atentando para
isso, estamos considerando o outro e como, nesse jogo, estamos nos denominando? Como
estamos sendo capturadas e quais forças cercam o nosso olhar, de modo a não perceber
outras possibilidades, outros modos de lutas, outros feminismos fora de um centro que, por
vezes, legitimamos, inclusive refixando-o em outra zona regional?
Nesse sentido, teríamos novamente uma separação entre teoria e prática? Mesmo
quando nas definições, nos ensinamentos do NEIM, já se anuncia uma união entre teoria e
práxis feminista? Até que ponto não há nessas práticas-teóricas possibilidades de repetições
reativas? Sônia Maluf, ao discutir sobre as produções teóricas feministas, a práxis
acadêmica, as publicações sobre mulheres e relações de gênero no espaço da Revista de
Estudos Feministas constata que, ao cabo, não se trata de uma separação dicotômica entre
“teoria e prática, mas entre diferentes práticas acadêmicas confrontadas a diferentes práticas
militantes, e entre diferentes saberes e teorias acadêmicas, confrontados a diferentes teorias
e saberes militantes e locais”21. Para além da consideração de outros lugares de produção de
práticas-teóricas, estamos falando aqui da consideração de outros lugares de práticas
teóricas feministas para além da academia, dos lugares de capacitação e disciplinamento.
Acompanhando questionamentos atuais, o princípio de gênero parece trazer novas
reflexões, aberturas, mas também cerceamentos. Enquanto gênero, parece ter sido aceito
como operador das lutas feministas porque aponta para um avanço no sentido de uma
abertura para o processo relacional e cultural na construção de sujeitos, como homens e
mulheres; de outros ângulos, o trato com o gênero enquanto categoria operacional tem
levantado outras percepções.
21
Cf. MALUF, Sônia Weidner. Os dossiês da REF: além das fronteiras entre academia e militância. In:
Revista de Estudos Feministas. Vol 12, p. 241.
94
22
ALVAREZ, Sônia E. A “globalização” dos feminismos latino-americanos. In. Alvarez, Sônia E.,
DAGNINO, Evelina, ESCOBAR, Arturo (orgs.).Cultura e política nos movimentos sociais latino-
americanos: novas leituras, pp. 383-426.
23
Reflexão sobre o feminismo acadêmico feita por Ana Alice Alcântara Costa em mesa e Simpósios já
citados.
95
nesse processo. Um certo cuidado, que, aliás, é perceptível em algumas ações discursivas
que rastreamos.
O NEIM se afirma enquanto núcleo interdisciplinar, assim como se configura na
esteira dos novos movimentos sociais. Engendra uma ong, que é a REDOR, atua no ensino
e pesquisa acadêmicos (graduação e pós-graduação) bem como na extensão, realizando
parcerias com movimentos populares, com empresas, representantes do poder público,
como deputadas e vereadoras, entre outros agentes e instituições. Nesse sentido, na busca
de políticas públicas, de legitimação de espaços, investe numa atividade de pressão e de
cuidado de si, seguindo firme em seus propósitos, abrindo e construindo espaços.
Nessa linha, investe numa proposta de questionamento constante contra a ciência e a
própria busca de espaço. Lança, como fez Cecília Sardenberg, a pergunta: “Da crítica
feminista à ciência a uma ciência feminista?”24. Elege a questão do feminismo acadêmico,
da ciência e da tecnologia, da relação do feminismo com a universidade, como temas dos
seus Simpósios. Convida o poder público, representado por mulheres, não só para
pressioná-lo acerca dos compromissos com a causa feminista como também para saber de
suas trajetórias de luta naqueles espaços. Alia-se às reivindicações de mulheres de grupos
populares diante de legislações que não contemplam suas necessidades, seus desejos. Nesse
sentido, falando de dentro de uma instituição, parece se colocar contra a instituição em suas
diversas representações, ou, ao menos, se colocar na posição de pressão, de reivindicação,
de autocrítica perante suas malhas reativas e reterritorializadoras.
É nessa perspectiva que encontramos Ana Alice Alcântara, ao historicizar a
trajetória do feminismo, nos alertando para as dificuldades de articulação entre Estado e
feministas. Dificuldades que confirmam a defesa da autonomia por grupos de mulheres que
se recusavam, na década de 1980, a essa relação, mas que na sua visão trouxe resultados
positivos. A percepção do terreno escorregadio, do poder gregário é expresso na reflexão de
Alcântara:
Apesar das conquistas obtidas, resultantes dessa parceria, não tem sido muito fácil a
convivência do feminismo com esses organismos estatais de promoção feminina que, em
função dos hábitos e práticas autoritárias comuns ao Estado brasileiro, fazem com que o
24
Cf. SARDENBERG, Cecília. Da crítica feminista a ciência a uma ciência feminista? In: COSTA, Ana
Alice Alcântara; SARDENBERG, Cecília Maria Bacelar (orgs.) Feminismo, ciência e tecnologia.
96
movimento esteja sempre atento para impedir as tentativas desses órgãos e/ou suas
dirigentes, de coordenar ou até mesmo dirigir, as lutas feministas no país25.
Nessa mesma linha de alerta e de pressão para com o poder público, encontramos
novamente Ana Alice Alcântara reivindicando, em nome da atuação do NEIM junto ao
Centro da Mulher Suburbana e à Comissão de Mulheres da Federação das Associações de
Bairros, a manutenção de creches pelo Estado. Creches que foram (re)estruturadas através
do trabalho investigativo do NEIM, mapeando as condições de funcionamento e as
características principais da clientela das mesmas, que resultou em subsídios para a
proposta de emenda popular sobre o assunto, entregue à Câmara Municipal de Salvador
quando da elaboração da Constituição Municipal. Para aqueles que acham que a sociedade
civil organizada, articulada em parcerias, está sendo totalmente cooptada, comandada pelo
Estado, que se vê desobrigado das suas ações diante da atuação daquela, o convite feito ao
NEIM pelas mulheres de bairros populares, serve de reflexão, e o alerta de Ana Alice
Alcântara, ao analisar e registrar a tradução dessa luta, confirma, de certa forma, o
movimento de pressão e de atenção do NEIM, frente às armadilhas dos poderes instituídos:
25
Cf. COSTA, Ana Alice Alcântara. Trajetória e perspectivas do feminismo para o próximo milênio.In:
PASSOS, Elizete; ALVES, Ívia; MACÊDO, Márcia. (orgs.) Metamorfoses: gênero nas perspectivas
interdisciplinares, p.31.
26
Cf. COSTA, Ana Alice Alcântara. Introdução. In: COSTA, Ana Alice Alcântara (org.) Creche
comunitária: uma alternativa popular, p.14.
97
seria proveitoso nesse campo porque ao invés de homem e de mulher, ele estaria falando do
sujeito humano.
Por que Margareth Rago, defensora da atividade político-estético-subjetiva do
feminismo, lida tão bem com essa prerrogativa foucaultiana? Por que para outras militantes,
como Ana Alice Alcântara Costa, refutar certa abordagem de gênero e talvez certa noção de
sujeito humano é garantir que a mulher não seja esquecida? Que tipo de esquecimento ou
que tipo de memória diferencial ambas estão praticando? Que tipo de domínio de si nesse
jogo é perceptível? Que memória-esquecimento está sendo reterritorializada? Como não
esquecer, de acordo com Costa, as dores, as exclusões por que passaram mulheres, como
vetor de direcionamento da luta feminista, mas ao mesmo tempo, já em parceria com Rago,
como esquecer ativamente essa história, como possibilidade de saúde, possibilidade de
efetivar uma memória do futuro, memória diferencial que redireciona estrategicamente a
luta?
Quais são os impasses que reterritorializam a busca de espaço de domínio próprio,
espaço que se quer articulado interdisciplinarmente? Qual seria o devir matriarcal do
NEIM? Quais forças ou saberes-poderes que ainda regulam, dentro de um modo já
conhecido de luta grupal, o pensar teórico-prático do NEIM? Como pensar a ciência
feminista, apontada por Sardemberg, na linha de uma perspectiva feminista como sugere
Ana Alice Alcântara, esquecendo-se das polaridades e afirmando tal perspectiva não como
“uma exclusividade das mulheres”?27 Como rever os nossos esquecimentos ativos e
reativos? Como radicalizar a nossa autocrítica passando, como nos sugerem Deleuze e
Foucault, pela linha do fora?
Para Sônia Alvarez28, que também participou desse encontro nos 22 anos do NEIM,
o desafio passaria justamente pela perspectiva de uma radicalização dos feminismos
acadêmicos em paralelo aos movimentos locais, como o de mulheres rurais. Para Alvarez o
feminismo acadêmico deveria reforçar interfaces com outros países, outras culturas, com
movimentos de mulheres produtoras de um conhecimento alternativo. Nesse sentido,
27
Cf. COSTA, Ana Alice Alcântara. Trajetória e Perspectivas do feminismo para o próximo milênio. In:
PASSOS, Elizete; ALVES, Ívia; MACÊDO, Márcia. (orgs.) Metamorfoses: gênero nas perspectivas
interdisciplinares, p. 26.
28
Sônia Alvarez, participou, em conjunto com Ana Alice Alcântara, da mesa “Desafios do feminismo
acadêmico”. Sua fala, nessa mesa, foi por ela assim intitulada: Disciplinamento ou radicalização dos
feminismos latino-americanos no séc. XXI: lições dos movimentos.
100
deveria procurar alianças com outros conhecimentos inter, trans ou não-disciplinares e não
só lutar pelo reconhecimento disciplinar.
Dessa perspectiva, nos perguntamos: como tem sido o diálogo com esse outro tipo
de conhecimento alternativo, que inclusive essas mulheres inseridas na rede traziam e agora
parece subsumido a uma uniformização do saber diferencial? Seria esse o perigo da
institucionalização: uma visibilidade que também oculta? Uma fixidez, um
disciplinamento? Como retomar o movimento do espaço intervalar característico da inter-
relação, do interdisciplinar?
Nessa linha é que retomamos a pergunta sobre como se dá a relação do NEIM com
o outro, inclusive em si mesmo, nessa busca por articulação e institucionalização de
espaços. Como representa, vê outros sujeitos e, por conta dessa inter-relação, vê-se a si
mesmo? Como dosar, dobrar ou olhar de viés para a vontade de capacitação? Como
mulheres, tomadas como objetos de pesquisa, mulheres distanciadas geograficamente de
centros de produção de conhecimento, marcam a perspectiva institucional do NEIM,
ganham a cena dos seus encontros, mesmo quando esse, enquanto mediador, coloca-se ao
lado dessas mulheres na luta em prol de seus direitos e de políticas públicas que as
contemplem?
Nesse sentido, ao invés de somente mapear as realidades distanciadas de tais
mulheres e traduzir em números percentuais que apontam para taxas de avanço e retrocesso
na discriminação sexual, por exemplo, como também aprender com elas? Tomá-las
potencialmente, e ao mesmo tempo, como sujeito de conhecimento não deixando fechado o
cerco propício a reterritorialização, via malhas da institucionalização e do disciplinamento?
Nessa dinâmica, é necessário tomar a si, também, como objeto constante de auto-avaliação
radical efetivando uma forma de ser sujeito de si.
Como deixar a porta aberta de modo que o “próprio” na busca de espaço matriarcal
aponte sempre para singularidades e que a coronela seja aqui reinventada na medida
positiva de um domínio das forças que tentam nos dominar? Como explorar o espaço de
compartilhamento gerado nas articulações dos encontros propostos pelo NEIM de forma a
explorar o interdisciplinar e o contradisciplinar promovendo choques ou crises produtivas?
O XI Simpósio do NEIM é rico para se falar sobre isso. Primeiro, na sua articulação
já se encontra o propósito de Silvia Lúcia Ferreira, Ana Alice Alcântara e Cecília
101
29
Cf. FERREIRA, Silvia Lúcia; COSTA, Ana Alice Alcântara; SARDENBERG, Cecília. I Seminário
Internacional: Enfoques feministas e o séc. XXI: feminismo e universidade na América Latina, p. 5. Livro de
resumos.
102
30
Cf. PASSOS, Elizete. Impacto da perspectiva de gênero e dos estudos sobre mulher na Universidade
Federal da Bahia. In. PASSOS, Elizete et al. (orgs.). Metamorfoses: gênero nas perspectivas
interdisciplinares, p. 42.
31
SWAIN, Tânia Navarro. Identidade nômade: heterotopias de mim. In. RAGO, Margareth; ORLANDI,
Luiz; VEIGA-NETO, Alfredo (orgs.). Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas, p. 325-
341.
103
em sua reflexão sobre o feminismo acadêmico em mesa já citada, que se coloca como
desafio um outro funcionamento acadêmico, institucional e teórico. E nessa empreitada
interventiva, de produção de outros saberes, de outros sujeitos femininos, assumir, como
nos sugere Margareth Rago, a subjetividade nômade, a auto-avaliação constante como
estratégia contra forças reterritorializantes que cercam o NEIM mesmo com toda sua
posição de alerta.
Nesse sentido, a teoria/prática, o sujeito/objeto, o local/global, o conhecimento
acadêmico/não acadêmico, a vontade de capacitação passam a ser revistos, assim como a
militância, a coordenação, o domínio próprio, a coronela, a matriarca passam a atuar no
campo da diversidade, das múltiplas possibilidades de sentidos, de práticas-teóricas, de
abordagens, de lutas, de feminismos. Com isso, a busca por espaço articulado, o desejo de
inclusão expresso no NEIM, pode apontar para outra noção de lugar, o entre-lugar, que diz
da vontade de que entrem quem está de fora, assim como da estratégia intervalar contra
polarizações. O entre-lugar também aponta para o interdisciplinar que, na sua radicalidade,
também é contra-disciplinar ao potencializar um não-lugar enquanto vetor que garante o
direito à variação subjetiva e ao nomadismo, alimentado pelo fora da linha, como antídoto
contra as reterritorializações.
CAPÍTULO III
Conceição tinha vinte e dois anos e não falava em casar. As suas poucas tentativas de
namoro tinham-se ido embora com os dezoito anos e o tempo de normalista; dizia
alegremente que nascera solteirona.
Ouvindo isso, a avó encolhia os ombros e sentenciava que mulher que não casa é um
aleijão...
– Esta menina tem umas idéias!
Estaria com razão a avó? Porque, de fato, Conceição talvez tivesse umas idéias; escrevia um
livro sobre pedagogia, rabiscara dois sonetos, e às vezes lhe acontecia citar o Nordau ou o
Renan da biblioteca do avô. Chegara até a se arriscar em leituras socialistas, e justamente
dessas leituras é que lhe saíam as piores das tais idéias, estranhas e absurdas à avó.
Acostumada a pensar por si, a viver isolada, criara para seu uso idéias e preconceitos
próprios, às vezes largos, às vezes ousados, e que pecavam principalmente pela excessiva
marca de casa.1
Na página 80 encontramos uma continuidade dessa mesma cena, que, aliás, tem o
tom que perpassa todo o romance:
Dona Inácia tomou o volume das mãos da neta e olhou o título:
– E esses livros prestam pra moça ler, Conceição? No meu tempo, moça só lia romance que
o padre mandava...
(...)
– De que trata? (...)
Conceição ante aquela ouvinte inesperada, tentou fazer uma síntese do tema da obra,
procurando ingenuamente encaminhar a avó para suas tais idéias:
– Trata da questão feminina, da situação da mulher na sociedade, dos direitos maternais, do
problema...
Dona Inácia juntou as mãos, aflita:
– E minha filha, para que uma moça precisa saber disso?... 2
1
Cf. QUEIROZ, Rachel de. O Quinze., p. 3-5.
2
Idem. Ibidem., p. 80.
107
que convida para uma subordinação, uma aceitação do destino, uma não possibilidade de
releitura, de reescrita, um definhamento das potencialidades humanas.
No sertão do sisal, em meio à falta de possibilidades para mulheres pobres do
campo, em meio a uma paisagem que também convida para uma naturalização da miséria e
das desigualdades sociais e de gênero, também se destacam as personagens do Movimento
de Mulheres Trabalhadoras Rurais. Podemos percebê-las tendo acesso a outros tipos de
leituras sobre si, rejeitando textos, ensinamentos, idéias já decoradas, normatizadas que,
nessa outra seleção de textos que fazem, nessa outra leitura que experimentam, se
desconfiguram enquanto norma a ser seguida, pois elas desobedecem-nas, visualizando
uma história que escondia no factual a potencialidade de narrar, que apagava as
possibilidades humanas do sujeito feminino.
Já de início poderíamos dizer da diferença de lugares dessas mulheres em um
cenário muito próximo. Conceição é uma mulher que estudou e tornou-se professora, o
contrário dessas mulheres trabalhadoras rurais, cuja escolaridade, aponta, em poucos casos,
no máximo, para a conclusão do nível médio. A maioria encontra-se no ensino fundamental
e algumas nem mesmo assinam o nome. Esse é o nível de escolaridade das mulheres a que
tivemos acesso, ressaltando-se que, mesmo aquelas que tiveram um estudo formal, muitas
vezes não têm habilidade para leitura-compreensão de textos escritos. Entretanto, apesar
dessa diferença marcante, que não deve ser esquecida, pelo contrário, deve nos levar a
posteriores reflexões sobre a noção de saber, de aprendizado e o papel das escolas, a leitura
e o texto que queremos enfatizar são outros e isso deve, inclusive, oxigenar a nossa possível
reflexão sobre essa diferença, já demarcada.
Conceição tem ao seu dispor uma estante para selecionar principalmente os textos
feministas e socialistas que gosta de ler e que faz com que tenha “idéias estranhas” e até
mesmo “absurdas” para a velha senhora, sua avó, que sentenciava para a neta, diante de sua
afirmação de não querer casar, que quem não casa é um “aleijão”. Mas, e as mulheres
trabalhadoras rurais, quem disponibiliza para elas uma estante para seleção? Como
visualizar uma prateleira cotidiana de possibilidades de leitura e escrita, que parecia
camuflada a um só livro-cartilha, ou catecismo, para lembrar dona Inácia, a impor os
passos, os comportamentos, os saberes de si? Quais idéias assimilam, quais elas estranham,
108
que textos decorados rejeitam, para qual noção de saber apontam, quais suplementos, quais
parcerias, que trocas podem estabelecer no mercado cultural?
Se a Conceição está “acostumada a pensar por si” e por isso até mesmo “a viver
isolada” que reflexões é possível tecer sobre isso, no âmbito das mulheres trabalhadoras
rurais, em específico de Santa Luz - BA? Como desconstruir essa imagem de isolamento?
Ao mesmo tempo, como levar em conta a pergunta de dona Inácia: “Pra que uma moça
precisa saber disso?” Saber de tais idéias? Como ampliar a resposta de Rachel-Conceição:
“criara para seu uso idéias”? Que sentidos atribuir para o “pecado da marca excessiva de
casa”?
Penso que a relação com os mediadores pode nos ajudar a pensar sobre tais questões
que alinham indagações do tipo: como essas mulheres rurais se posicionam diante de um
outro saber que se dispõe a reorientá-las? Como são vistas e como se vêem nesse processo?
Quais as inquietações, como se configura o movimento fora-dentro do Movimento? Quais
as trocas nesse processo? Como se desenham os movimentos de reescrita, de reinvenção de
sertanejas? Para tanto, selecionamos cenas ou enfoques da relação entre o setor de gênero
do MOC (Movimento de organização Comunitária), o Núcleo Interdisciplinar de Estudos
sobre a Mulher e Relação de gênero (Mulieribus) da Universidade Estadual de Feira de
Santana e o MMTR (Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais) da região do sisal, em
específico do município de Santa Luz.
Com relação ao MOC, poderíamos dizer que este foi selecionado pelo fato de ser o
principal potencializador do MMTR da região do sisal, logo, também do grupo de Santa
Luz. O MOC é uma organização não governamental, sediada em Feira de Santana - BA,
que, oriunda do trabalho social da Igreja Católica, foi fundada em 1967 e conseguiu sua
autonomia em 1970. Enquanto Movimento de Organização Comunitária, o MOC lida com
diferentes setores populacionais como trabalhadoras e trabalhadores rurais, agricultores e
agricultoras familiares, pequenos produtores urbanos, professores rurais, excluídos dos
meios de produção, organizações populares, crianças e adolescentes em situação de risco
social.
Na leitura dos seus múltiplos textos disponibilizados em relatórios anuais, boletins
informativos, acessíveis em seu site http://www.moc.org.br/, percebemos o MOC enquanto
um movimento arrojado e articulado com diversas parcerias, que tem provocado impactos
109
3
Cf. site do MOC, http://www.moc.org.br/, acessado em 20 de maio de 2006. Confira no site o item “O
MOC” e o subitem Metodologia, entre outros, como: Missão, Histórico, Público prioritário e Área de atuação.
110
No que diz respeito à primeira linha, o programa de gênero do MOC tem procurado
promover a autonomia e o empoderamento dessas mulheres, tanto do MMTR como das
secretarias ou coletivos de mulheres dos Sindicatos Rurais, através de assessoria na
definição de um estatuto e, logo, legalização e oficialização de alguns MMTRs de alguns
municípios; através de capacitações e formações para liderança, de modo que tais mulheres
possam participar nos espaços institucionais e não institucionais de tomadas de decisão,
4
Disponível em sítio do MOC, http://www.moc.org.br/, acessado em 15 de junho de 2007. Ver item
Publicações – Relatório 2006.
5
Loc cit.
6
Loc cit.
111
7
MOC - Um ano de mãos que trabalham - 12/06/2007. Disponível no sítio do MOC, já citado, no item
“Notícias – Arquivo 2007”. Acesso em 15/06/2007.
113
Todo esse trabalho que o próprio MOC descreve em seus relatórios e visibiliza em
seu sítio, é feito em um regime de parceria local, regional, nacional e internacional. Nessa
parceria encontra-se o Mulieribus da Universidade Estadual de Feira de Santana, que se faz
presente enquanto órgão também articulador, junto com o MOC e outras entidades, das
mulheres trabalhadoras rurais, principalmente nos momentos tradicionais de reunião e luta
dos Movimentos de mulheres: a caminhada do 8 de março juntamente com os seminários, a
feira solidária e demais atividades que integram a Semana da Mulher.
Em entrevista com uma das coordenadoras do Programa de Gênero do MOC,
Alvaíza Cerqueira8, podemos perceber melhor a dinâmica inter-relacional entre este setor, o
Mulieribus e as mulheres trabalhadoras rurais. Podemos perceber os impasses, as posições,
as questões colocadas e ao mesmo tempo a movimentação rizomática dessas mulheres e os
seus efeitos.
Conforme Alvaíza Cerqueira, a discussão sobre gênero, ainda que não levasse esse
nome, começou no MOC por volta de 1976-1977 e por intermédio da professora Sônia
Coutinho. O primeiro trabalho com as mulheres ocorreu por conta do processo que se
desenvolvia com os sindicatos de Feira de Santana, procurando garantir que estes
estivessem realmente nas mãos dos trabalhadores rurais. Ao mesmo tempo, se percebia a
não abertura também destes para as mulheres trabalhadoras rurais, ou seja, a ausência
destas mulheres naquele espaço e então começaram a luta para sindicalizá-las, tirá-las de
casa e até mesmo conseguir que estas chegassem à presidência de algumas destas entidades.
Mas Cerqueira reforça como foi árduo o trabalho para chegar a esse ponto, como foi
difícil o setor de gênero, as mulheres que atuam nele e, em conjunto, as mulheres rurais,
serem ouvidas e respeitadas no próprio MOC:
8
Como parte da pesquisa de campo realizamos as seguintes entrevistas, gravadas em fitas cassetes: 1) Com
Cecília Sardenberg e Ana Alice Alcântara (da coordenação do NEIM) em outubro/2007; 2) Com Sônia Lima
(do Mulieribus) em novembro/2005; 3) Com Alvaíza Cerqueira (do Setor de gênero do MOC) em maio de
2005; 4) Com mulheres integrantes do MMTR, de Santa Luz – BA, em janeiro de 2005; 5) Com mulheres do
MMTR pertencentes ao grupo Mulheres de Fibra e com alguns membros da comunidade do Miranda,
povoado em Santa Luz, onde elas residem e trabalham, em abril de 2006. Além das entrevistas orais foram
distribuídos, entre as mulheres trabalhadoras rurais, questionários que foram elaborados contendo, além dos
espaços para o preenchimento sobre dados de identificação, 3 perguntas que incidiam no sentido de saber
como elas se viam antes e depois do ingresso no MMTR e que questionamentos-sugestões faziam ao mesmo e
aos seus agenciadores. Com relação ao conteúdo das entrevistas orais, estas, realizadas em diversos espaços
como universidade, sede do MOC, residências e outros, tiveram o tom de conversa informal e buscavam
respostas, reflexões, para as inquietações da tese. Neste tópico trabalharemos com as entrevistas descritas nos
itens 2, 3 e 4, além dos questionários citados.
114
Quando a gente começava a falar das questões das mulheres, aí eles saíam da sala, não
ouviam a gente, faziam piadinhas: - Lá vem esse povo com essa história de mulher pra cá.
Ou pegavam coisas sem importância e davam para gente: - Bota isso para o povo que
trabalha com as mulheres! (...) Antigamente era terrível. Era uma coisa pavorosa você se
sentar com os técnicos para conversar sobre essas questões. Hoje já há uma aceitação, são
mais sensíveis. A gente já consegue operar essas questões9.
9
CERQUEIRA. Alvaíza. In: Entrevista já citada. (Ver nota 8)
115
Entre outras dificuldades, Cerqueira aponta uma oscilação, um certo retrocesso que
parece rondar as mulheres, quando cita o caso de uma militante que tanto fez por si no
Movimento e que vê uma filha grávida de 16 anos em casa, que sente a pressão de novo
sobre ela para não sair de casa, para deixar de participar do Movimento. Outra inquietação
que aponta é o fato de que muitas mulheres se ressentem pelo fato de o Movimento de
Mulheres Trabalhadoras Rurais ser hoje pouco lúdico e “mais político”. Ou seja, as
mulheres sentem falta do lúdico no Movimento, sentem falta, também, por conta da ampla
agenda de reuniões e encontros, de um tempo mais livre.
Com relação ao trabalho em parceria com o Mulieribus, Cerqueira informa que as
relações são mais “pontuais que seqüenciais.” Que o ponto chave é o 8 de março e que a
parceria forte com a UEFS é na área de Educação, visto que, inclusive, muitos técnicos do
MOC são professores desta universidade. Mas, com relação ao setor de gênero e o
Mulieribus, essa parceria poderia ser maior. Afirma que algumas vezes recorre à assessoria
de fora da região, por vezes nacional e às vezes internacional, por falta de uma maior
relação, nessa linha específica, com o Mulieribus da UEFS.
Da perspectiva de integrante do setor de gênero do MOC, e, inclusive, como ex-
estudante da UEFS, afirma Cerqueira: “A gente acha que as universidades são um lugar
privilegiado para construção de conhecimento e de um conhecimento que a gente necessita
também, mas as universidades não estão voltadas para o conhecimento dessa realidade”.
Continua relatando que, certa vez, precisava de “alguns dados sobre a violência da mulher
em Feira de Santana” e que não os encontrou, não encontrou uma atuação da universidade
nesse âmbito, ou não encontrou uma publicização disponível para movimentos sociais
como o MMTR e também o MOC. Cerqueira afirma que, na falta desse conhecimento
acadêmico importante, o próprio MOC teve que construir o conhecimento para trabalhar,
porque embora tivesse Centros de produção para tal, esses não tinham relações com a
realidade local.
Mais uma vez, de quem fala da perspectiva de trabalho com gênero, e considerando
as grandes parcerias vigentes com o Mulieribus nas atividades do 8 de março, bem como o
seu impacto, ela conclui: “Ou a gente constrói o nosso próprio conhecimento para atuar, ou
a gente sensibiliza a universidade. Mas é toda uma batalha já de algum tempo. A UEFS
demorou, mas já está começando a atuar.”
116
10
LIMA, Sônia. In: Entrevista citada. (Ver nota 8)
117
11
LIMA, Sônia. In: III Semana das Mulheres – Seminário do Mulieribus, realizados na Universidade Estadual
de Feira de Santana, no período de 06 a 09 de março de 2007. A III Semana apresentou a seguinte temática:
Territorialidade, Economia Solidária e Feminismos e o Seminário do Mulieribus, como parte da programação
da referida III Semana, foi denominado de Feminismos no Brasil: histórias e trajetórias.
118
gays, e a propor o Seminário sobre a Diversidade Sexual, que já faz parte do calendário do
Mulieribus, assim como o “8 de março”.
Nesse movimento, Sônia Lima situa o Mulieribus como um grupo aberto, inclusive
a pessoas de outras instituições e cita os exemplos de Railda Macedo Matos e Anna
Kaufman, que não são professoras da UEFS e integram o grupo, esta última com forte
vínculo com o NEIM e com o MST, atuando constantemente nos seus acampamentos
nacionais, seja no campus da UFBA, seja em outros espaços. Lima situa também a
dificuldade de manutenção do grupo. Afirma que houve uma época que, assim como o
NEIM, precisou capacitar seus membros, entrar em contato com outras estantes de livros,
outras idéias para criar as suas próprias, para lembrarmos a personagem Conceição em
Rachel de Queiroz. O Mulieribus teve, conforme Lima, que dar uma parada, por conta do
distanciamento de suas integrantes para fazer mestrados e doutorados: “ainda estamos
assim, umas saindo, outras voltando, teve uma época em que eu fiquei sozinha e o núcleo
foi segurado através da extensão”.
A manutenção do Núcleo reflete a dificuldade de romper com uma ciência
patriarcal, bem como com o sucateamento das universidades. A professora Acácia Batista12,
em Seminário já citado, em uma mesa que dividia as experiências do Mulieribus com
representantes do NEIM e do grupo responsável pela revista de Estudos Feministas em
Florianópolis, afirma que tal núcleo da UEFS passa por diversas dificuldades, por exemplo,
de meios digitais, o que seria fundamental para estar publicizando suas ações,
disponibilizando um acesso em rede. Batista ainda acrescenta que, para concretização de
certos projetos, o grupo tem recebido, da Reitoria, apenas a sugestão de que se busque
recursos externos.
Com isso, denuncia: “estamos vivendo dos bolsistas, mas precisamos também de
apoio para reestruturação. As teses, na biblioteca, estão com as páginas caindo”. Após
mapear diversas formas de atuação do Mulieribus, apontando para pesquisas, inclusive,
sobre a violência da mulher e as trabalhadoras rurais, bem como da UEFS e de seus outros
grupos voltados para questões como saúde feminina, a professora retoma a questão da falta
12
Os trechos da fala da professora Acácia Batista, transcritos neste tópico, foram registrados durante seu
relato sobre o Mulieribus no Seminário já citado, incluso na programação da III Semana das Mulheres,
também já referida.
119
sua própria agenda, “mas as ONGs estão nessa agenda. Elas têm uma autonomia relativa,
mas já é alguma coisa, é muita coisa”.
Quanto à questão do trabalho de orientação, Sônia Lima diz que atua sempre na
perspectiva de estar discutindo definições, que é muito mais fácil trabalhar com as pessoas
do campo e que tem observado que as mulheres do MMTR, “citam muitas palavras como
gênero, mas não sabem o que é”. Acrescenta que “a teoria social é muito difícil de
compreender”. E, continuando a referir-se ao conceito de gênero, repete que as mulheres
rurais “entendem o sentido, mas o que é, qual é a origem, não”. Assim, sentindo falta desse
saber “acadêmico” nas mulheres trabalhadoras rurais, Sônia Lima continua falando sobre o
que ouve dessas mulheres e o que mais percebe em seu Movimento.
No Seminário da III Semana das Mulheres na UEFS, aponta como dificuldades
entre os movimentos feministas e os sociais o adentramento na Academia, a reprodução
pelas próprias mulheres da ótica patriarcal, a masculinização das mulheres para serem
respeitadas e a dificuldade de compreensão por parte dos movimentos sociais. Na esteira
desse último ponto de impasse, acrescenta que tem escutado a seguinte frase das mulheres
rurais: “fale a nossa língua”, apontando, conforme sua constatação, para uma necessidade
de entendimento por parte destas. Com isso, se pergunta: “O que eu faço com a linguagem
acadêmica?” Ressalta que a linguagem funda o gênero, que ela é estruturante e estruturada.
E, na entrevista, reforça esse impasse, dizendo que não se trata de falar “errado”, mas, sim,
de “como transferir a linguagem da ciência para o senso comum”. Nesse sentido,
argumenta, finalizando: “o bom orientador tem que usar uma linguagem simples”.
Continuando essa linha de escuta para cartografarmos a perspectiva do MMTR de
Santa Luz e seu posicionamento frente a essa multiplicidade de leituras, textos, idéias, ou
seja, essa estante disponibilizada pelo MOC – em seu regime de parcerias diretas ou
indiretas com o setor de gênero, entre elas o Mulieribus - distribuímos alguns
questionários13 entre as participantes luzenses do Movimento, realizamos entrevistas e
participamos de alguns dos seus encontros e ações.
Nos questionários, para a pergunta feita a elas - “como você se via antes e depois de
participar do MMTR”? - obtivemos como respostas o sentido de transformação, de
mudança, atrelada, em sua grande maioria, à obtenção de informações, conhecimentos
13
Sobre o uso de questionários na pesquisa de campo, ver nota 8.
121
outros que apontam para percepção de direitos, para desinibição, coragem, principalmente
de falar, de enfrentar o público. Eis algumas das respostas que configuram essa visão de si
“antes” e “depois” da participação no Movimento:
Os depoimentos apontam para uma vontade de falar, uma fala que tem sentido de
enfrentamento da vida, que sugere coragem. Funcionam, tais depoimentos, como sintomas
de quem estava presa, reclusa, não se relacionava, não falava, vivia sozinha, não convivia
com o público, não tinha ou sabia dos seus direitos, nem mesmo dos deveres, que já deviam
ser naturalizados em uma exclusão da vida regida em sociedade. Apontam para o sentido de
uma vida antes, restrita ao espaço do lar, e uma vida depois de potencializar seu
movimento, uma vida com coragem de enfrentar o público, com a descoberta de que se é
guerreira, lutadora. Uma vida em movimento que questiona um suposto sedentarismo
anterior, que traz possibilidade de diversão, de aproveitamento do tempo, de se ver como
produtora, de se ver outra pessoa, com a possibilidade de ser outra, de se reinventar.
14
Mulheres que somente assinaram ou assinam o nome, ou nem isso fazem, preencheram os questionários
com a ajuda das colegas, que transcreviam suas respostas orais para o mesmo.
124
Tais depoimentos apontam para uma anulação de si no antes, “eu (...) não sabia de
nada”, para um conhecimento atrelado a uma melhoria de vida, um conhecimento atrelado
à vida. É nesse intento que assimilam as idéias outras a elas disponibilizadas, que
selecionam os livros da estante visibilizada. Nessa perspectiva de transformar, de melhorar
no sentido principal de poder cuidar de si, dos seus destinos, multiplicam esses outros
saberes, essas outras possibilidades nos locais em que vivem.
As mulheres do MMTR, do povoado Miranda em Santa Luz, têm sido convidadas
por outras comunidades para falar do outro conhecimento de si que estão experimentando;
têm, juntamente com mulheres de outras povoações, fomentado a criação de padarias
comunitárias e mesmo de um mercado em rede no próprio Miranda, a partir do momento
em que incitaram um acordo tácito entre os moradores, o qual reza que toda a produção ali
feita seja em parceria. Ou seja, isso se efetivaria comprando os materiais necessários à
feitura do produto no próprio local, dos próprios moradores dali, ao invés de ir buscar fora
da comunidade o que ali se tinha ou podia produzir. O regime de cooperativismo discutido
nos cursos era ali difundido e a possibilidade de parceria, a partir da descoberta de outros
papéis para as mulheres, era experimentada, divulgada.
Sobre essa multiplicação de saberes sobre si e de suas implicações na relação
homem/mulher, Sonete Silva15, uma integrante do MMTR de Santa Luz, relata: “Alguns
deles questionavam para gente: - Vocês estão indo para lá a fim de ensinar minha mulher a
aprender outras coisas? - E a gente dizia: - Não, a gente está indo para lá a fim de ensinar o
papel delas”. Frente à possibilidade de essencialização na expressão “o papel delas”,
preferimos pensar o emprego desta como estratégia de driblar uma fiscalização dos
maridos. “Ensinar o papel”, entre elas, pelo movimento que trilham, seria o papel da
abertura, da revisão das funções, da possibilidade de produção de conhecimentos sobre
outros papéis, e, logo, da criação-valoração de outras atividades, da percepção de que o
papel é um ensinamento, aprendizagem, construção que pode ser refeita ou abolida. Nesse
ensinamento multiplicado ou experimentação conjunta, de produção de outros papéis, a
avaliação de si emerge, como nos diz Sonete Silva:
15
Sobre entrevista com mulheres do MMTR, ver nota 8.
125
Elas sempre diziam que não faziam nada. Porque para elas, fazer um trabalho e não ter
dinheiro, não era nada. Então, com essa relação que a gente fazia, do papel do homem e da
mulher, é que elas viam que trabalhavam mais que o homem. Porque ela levantava cedo,
fazia café, preparava a marmita do marido, dava banho na criança, levava filho na escola...
E era de domingo a domingo. Por que a mulher faz uma atividade e desmancha: se varre a
casa, depois volta e desmancha de novo, torna a fazer de novo! (...) Também elas iam para
roça, para plantar feijão, colher milho, e tinha umas que diziam que o marido vendia e elas
não pegavam no dinheiro, não sabiam quanto tinha sido. (...) Elas mesmo se avaliam. (...)
Tem uma delas que citou que o marido falava que o Movimento estava ensinando demais as
mulheres, porque elas já estavam questionando, porque os maridos sempre diziam que elas
não faziam nada, aí elas já começaram a questionar: - Não faço? Faço sim, porque eu fiz
isso, isso e isso hoje16.
16
SILVA, Sonete. In: Entrevista citada, ver nota 8.
17
Encontro realizado na Associação de Moradores do Bairro Castro Alves, em Santa Luz-BA, em 09/01/2006.
126
ao imaginar e lutar por sociedades nas quais a exploração seja eliminada, ou pelo menos
drasticamente reduzida, as práticas e teorias críticas do capitalismo - acrescentadas a outras
18
Cf. GOHN, Maria da Glória. Movimentos sociais na atualidade: manifestações e categorias analíticas. In:
GHON, Maria da Glória. (Org). Movimentos sociais no início do século XXI: antigos e novos atores sociais,
p. 16-17.
128
cujo alvo são outras formas de dominação, como o patriarcado e o racismo - mantiveram
viva a promessa moderna de emancipação social19.
O problema é que, conforme alerta, ainda estamos pensando tal questão da mesma
forma que antes. A proposta, então, seria de reinvenção da emancipação social, o que,
segundo ele, essa globalização alternativa, contra-hegemônica, constituída de redes e
alianças locais-globais, tem feito emergir.
Essa perspectiva, de reinvenção da emancipação social, que aponta para uma
solidariedade de alianças, logo para um não “andar sozinho” “contra todos e tudo”, que
aponta ainda para uma luta contra formas de dominação, nos leva a refletir se nessa inter-
relação com o outro, nessa proposta de tornar as mulheres rurais autônomas, ou empoderá-
las, ou orientá-las, capacitá-las, estamos fazendo a devida revisão dos métodos com os
quais estamos pensando-efetivando essas questões, essas relações; se estamos realizando o
devido questionamento da marca excessiva de casa que atribuímos a certas idéias sem
estranhá-las.
Nessa linha, é oportuno retomar o alerta da professora Petilda Vazquez em uma
mesa de seminário intitulada: “Empoderamento das mulheres no mundo de trabalho”.20
Nessa mesa, enquanto se colocava a perspectiva de empoderamento para libertação,
emancipação, Vazquez afirmava, repetindo, que não era contra essa proposta, mas que era
preciso estranhá-la, era preciso desconfiar, sempre. Que, na sua pesquisa, quando perguntou
às mulheres por quem elas mais foram humilhadas, obteve como resposta a figura de uma
outra mulher. Isso a levava a refletir sobre as empoderadas de hoje, a perceber mulheres em
cargos de chefia repetindo um poder masculin(izad)o, um poder reativo.
Em nosso contexto, essa questão tratada por Vazquez também nos leva a pensar
sobre as possíveis ciladas em um curso para formar lideranças. Ou os sentidos patriarcais
fixados na noção de líder, pois sabemos que muitas das mulheres que participam de
determinados grupos populares não conseguem se ver como líderes, dizendo ter
dificuldades para se encaixar no perfil de tal posição, visto que não apresentam requisitos
19
Cf. SANTOS, Boaventura de Souza, RODRÍGUEZ, César. Introdução: para ampliar o cânone da produção.
In: SANTOS, Boaventura (org) Produzir para viver: os caminhos da produção não capitalista, p. 24
20
Esta mesa estava inclusa na programação do XII Simpósio Baiano de Pesquisadoras(es) sobre Mulher e
Relações de Gênero - Empoderamento das mulheres: construindo cidadanias – promovido pelo NEIM, em
Salvador, na Universidade Federal da Bahia (UFBA), no período de 30 de outubro a 01 de novembro de
2006.
129
como, por exemplo, uma fala grossa. Atributos pautados, portanto, em uma masculinização
da noção de liderança. Nesse ponto, é oportuno lembrar a fala da professora Sônia Lima
chamando a atenção para a masculinização como uma questão a ser considerada, visto que
esta tem sido utilizada por muitas mulheres como uma via para serem respeitadas. Uma via
que, quando não usada como provocação, estratégia provisória, ainda assim merecendo
uma atenção redobrada, vira uma segunda natureza, uma cilada.
Com isso, é preciso pensar em uma forma de autonomia, de liderança, de poder, que
aponte para uma autodeterminação na hora de lidar com vários interesses. Nessa linha, é
preciso ter em conta uma perspectiva não harmônica, mas solidária, de vivência, que quebre
com a idéia de que autonomia é acabar com os conflitos, com as tensões, ainda que para
isso o sujeito envolvido na trama tivesse que se isolar. Seria preciso perceber as tensões, o
não isolamento, como algo constante, que aponta justamente para o relacional, o encontro-
confronto, inclusive em si mesmo, fazendo emergir o acontecimento das idéias próprias. A
perspectiva de autonomia aponta, então, para a pergunta contínua de como lidar com o
outro, o outro em si mesmo, a imagem que recai sobre si. Autonomia enquanto certo
sentido de liberdade, talvez esse seja o “peixe” a ser pescado, para lembrarmos uma
inquietação de uma das integrantes do MMTR; autonomia enquanto criatividade, domínio
do domínio.
Nesse sentido, para além de falar bem em público, como aponta Alvaíza Cerqueira,
seria preciso perguntar-se: como lidar com uma imagem depreciativa sobre a mulher rural,
sem se deixar sugar por uma espetacularização homogeneizadora e interessada de
programas como os da Rede Globo? Como lidar com as forças de dominação também em
casa? Retomando imagens das apropriações e dos usos que as mulheres rurais fazem dos
outros saberes que selecionam, diria que é preciso se perguntar pelas estratégias, pelas
artimanhas. E ainda indagar: como lidar com as forças de dominação também entre
mulheres e mulheres, entre elas e os seus mediadores? Sobre esse propósito, para além de
posicionamentos diferenciados, a representante do MMTR que compôs a mesa do
Seminário Acadêmico na III Semana das Mulheres na UEFS, Maria José Araújo Silva21,
21
Os comentários feitos por Maria José Silva foram por nós anotados, durante sua explanação no Seminário
do Mulieribus, incluso na programação da III Semana das Mulheres, já citada.
130
encenava de outra forma estas perguntas, visto que chamava a atenção para a briga por
espaço de poder nos movimentos sociais, nos movimentos de mulheres.
Na perspectiva de mediação, de ajudar a reinventar mulheres, a proposta de
estranhar sempre, vai, no sentido de se pensar que, ao procurar empoderar, capacitar uma
mulher, pode se estar negando seus (micro)poderes, denominando-a de incapaz, negando-a
enquanto sujeito, repetindo um olhar que não percebeu, não considerou, o movimento
sempre existente das mulheres. Estranhar, então, aponta para a perspectiva de cuidado
conceitual, metodológico, teórico-prático; configura-se como um alerta, no sentido de
chamar a atenção para as ciladas, como nos confirma Alvaíza Cerqueira ao registrar que
“todo mundo escorrega”; como nos lembra Margareth Rago ao dizer que “as operárias eram
consideradas, até mesmo pelas feministas, como incapazes de produzir alguma forma de
manifestação cultural”22.
Dessa forma, atenta às ciladas, mas também às possibilidades de oscilações ativas
de sentido, de contrapoderes contra a fixação do mesmo, se posiciona Millie Thayer23. Na
esteira de Boaventura Santos, a autora também vai advogar em favor da inter-relação e,
com ela, de uma outra face da globalização caracterizada, no contexto de sua escrita, como
um feminismo transnacional. Vai falar dessa globalização produtiva, do potencial libertador
da migração transnacional de discursos e recursos dos movimentos sociais. Mas também
vai falar das ciladas, dos riscos a se correr com ela, bem como das possibilidades de
negociação, dos ruídos, dos estranhamentos, das apropriações, das artimanhas, apontando
para uma não passividade das mulheres trabalhadoras rurais em relações entre aliados,
relações pautadas por um misto de tensão e diálogo, conflito e colaboração.
Mais precisamente, Thayer discute os laços do MMTR-NE com entidades de
financiamento e com ONGs, enfocando a autonomia do primeiro na medida em que ele se
defende contra as imposições das agências de fomento, ao negociar o acesso a recursos e
transformar discursos políticos dentro do próprio contexto da organização rural. Thayer
informa-nos que o alcance da questão feminista é que permitiu essa cooperação
internacional, alcance que, inclusive, impulsionou a sociedade civil a pressionar fundações
22
Cf. RAGO, Margareth. Trabalho feminino e sexualidade. In: PRIORE, Mary Del (Org.) História das
mulheres no Brasil, p.591.
23
Cf. THAYER, Millie. Feminismo transnacional: re-lendo Joan Scott no sertão. In: Revista de estudos
feministas, p. 103-130.
131
ainda que bem intencionados, os diretores com poder de decisão nas agências internacionais
amiúde ignoravam as realidades locais, trabalhavam sobre pressupostos políticos derivados
de condições típicas dos Estados Unidos ou da Europa, e impunham suas próprias
exigências burocráticas24.
24
Idem. Ibidem., p. 117.
25
Idem. Ibidem., p.117.
132
26
Cf. TEIXEIRA, Elenaldo. O local e o global: limites e desafios da participação cidadã.
133
MMTR, quando comparam esse outro saber produzido no movimento, com aquele
vivenciado nas escolas, emitindo significações para ambos. Uma delas, Jessicleide
Nascimento, assim se expressa: “o que a gente aprende no Movimento, não aprende na
escola. Se aprende é de uma forma que não fica. Das coisas que eu aprendi: (...) às vezes a
gente está com o poder nas mãos e não sabe.” Outra integrante do MMTR, Sonete Silva,
suplementa: “O conhecimento que a gente adquire nele nunca vai acabar. A gente aprende e
pratica”.
Com isso, perguntaríamos: nas escolas e nos centros acadêmicos se aprende a
produzir ou a reproduzir conhecimentos? Qual a importância da pesquisa e da extensão
voltadas para a ação ou percebidas com um certo sentido de ação? No nosso trajeto com as
mulheres do MMTR, em Santa Luz, também notamos uma indiferença do saber escolar
para com o saber produzido por tal movimento, um distanciamento reativo, mesmo estando
algumas dessas mulheres nas salas de aulas dessas escolas. Em relação a isso, também a
professora Maria Helena Teixeira da Silva27, moradora da cidade, vai se inquietar e
pesquisar na comunidade local as formas de relacionamento do saber escolar com os
produzidos pelos movimentos sociais e por que, neste contexto, a forma de (não) relação
estabelecida não tem gerado uma ação articulada para transformação.
Nesse sentido, retomando os depoimentos de mulheres trabalhadoras, poderíamos
transformar em pergunta suas inquietações: Por que o saber aprendido em determinados
lugares não fica e por que o que se aprende no movimento nunca vai acabar? Elas mesmas
sugerem respostas: porque o do movimento se pratica, se vive, porque nos fazem perceber
com o poder nas mãos, ou seja, o poder de também produzir conhecimento, de perceber sua
provisoriedade. Na esteira de tudo que já foi dito, nos alerta Foucault28, ao falar do modo de
existência, em nós, desses discursos que podem afrontar o real: são conhecimentos que
devemos ter “à mão”, que seja possível de se recorrer aos mesmos quando precisarmos.
Isso nos ajuda a responder, também, à pergunta de dona Inácia. Resposta que pode
ser suplementada, contando com os primeiros depoimentos aqui transcritos sobre os modos
de as mulheres rurais se verem antes e depois de ingressarem no Movimento. Como vimos,
27
Cf. SILVA, Maria Helena Teixeira da. A (des)articulação entre escola e comunidade: as implicações para
o desenvolvimento local no município de Santa Luz.
28
Cf. FOUCAULT, Michel .A hermenêutica do sujeito. In: Resumo dos cursos do Collége de France (1970-
1982), p. 128.
134
a maioria responde, de diversas formas, que adquiriu conhecimento para melhorar a vida,
conhecimento para a vida, para se sentir melhor, conhecimento que lhe possibilita se dizer
melhor, se atribuir melhoria. Isso nos remete ao livro de Roberto Corrêa dos Santos29, que
já no seu título anuncia a especificidade da produção de modos de saber que são modos de
adoecer. Com isso, vai nos instigar a pensar em exterior, em arte, em signos e superfícies
contra uma prática de conhecer que aponta para uma vontade de verdade, vontade de
origem, de escavamento rumo a uma interiorização, a profundezas. Roberto Corrêa dos
Santos vai nos falar em seu livro de saber e saúde.
Nessa linha, contra a proposta platônica de reter a possibilidade de outra seleção-
produção de saberes definindo o original, Deleuze30 vai nos falar da potência do simulacro,
da invenção constante. Invenção, inclusive, por parte de Platão, que se escondia (escondia o
princípio de interpretância) na noção de origem. E é por isso que a pergunta de dona Inácia
pode ser pensada como uma provocação ativa de Rachel de Queiroz a ser constantemente
feita: para que saber disso? E novamente é a escrita outra dessas mulheres que nos leva a
responder, em tons nietzschianos, contra um saber disciplinante e um catecismo platônico:
para afirmar a vida!
Assim, o que está em jogo são os usos, os modos de saber. Para além de serem
generólogas ou não, o que está em jogo, para lembrar Sônia Alvarez31, quando discute os
feminismos nos movimentos, são as relações de poder-saber, poder e disputa pelo
conhecimento, prescrição do conhecer, criando divisões drásticas nos Movimentos, que,
quando não bem aproveitadas, enquanto tensão crítica, provocam auto-destruições,
dominação.
É nesse sentido que Margareth Rago, quando lembra as possíveis repetições reativas
do mesmo, de uma outra rejeição, exclusão, dominação, nas nossas inter-relações entre
mulheres, nos alerta: “As trabalhadoras pobres eram consideradas profundamente
ignorantes, irresponsáveis e incapazes, tidas como mais irracionais que as mulheres das
camadas médias e altas, as quais, por sua vez, eram consideradas menos racionais que os
29
Cf. SANTOS, Roberto Corrêa dos. Modos de saber, modos de adoecer.
30
Cf. DELEUZE, Gilles. Platão e o simulacro. In: Lógica do sentido.
31
Cf. ALVAREZ, Sônia. A ‘globalização’ dos feminismos latino-americanos. In: ALVAREZ, Sônia;
DAGNINO, Evelina; ESCOBAR, Arturo. (Orgs.) Cultura e política nos movimentos sociais latino-
americanos: novas leituras.
135
homens”32. Margareth Rago vai afirmar que “o discurso das feministas liberais afetava
muito pouco o conceito que elas próprias tinham das operárias e demais trabalhadoras
pobres”33, vistas sempre como “analfabetas. Excluídas por natureza”. É também nesse
sentido, que Sônia Maluf, ao tratar das fronteiras entre academia e militância, afirma:
um passo importante ainda a ser dado nessa discussão é analisar o quanto às diversas, e por
vezes antagônicas teorias feministas na academia, correspondem diferentes teorias “locais”
de gênero, contrapondo o senso comum de que só a academia é capaz de produzir teorias, e
de que só a militância e a experiência localizada são capazes de gerar ação34.
32
Cf. RAGO, Margareth. Trabalho feminino e sexualidade. In: PRIORE, Mary Del (org) História das
mulheres no Brasil, p. 589.
33
Idem. Ibidem., p.591.
34
Cf. MALUF, Sônia. Os dossiês da REF: além das fronteiras entre academia e militância. In: Revista de
estudos feministas. Florianópolis, v. 12, n. especial, p. 241, 2004.
35
Cf. PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil., p.11
136
36
Cf. Entrevista de Rachel. In: Cadernos de Literatura Brasileira.
37
Cf. PINTO, Céli Regina Jardim. Op. cit., p. 34
38
Cf. FOUCAULT, Michel. Op cit.
137
39
Cf. BIRMAN, Joel. Entre o cuidado e saber de si: sobre Foucault e a psicanálise.
40
FOUCAULT, Michel. Op. cit.
138
subjetivação de mão dupla, entre mediador e mediado, entre professora e aluna, para
restringirmos ao movimento de mediação entre, principalmente, mulheres. E entre estas e
as estantes outras que, transfiguradas em sujeitos e espaços, são questionadas, combatidas,
também desconstruídas por esse movimento subjetivo dessas mulheres a produzirem outros
saberes sobre si.
Saberes de si, saudáveis, pois não cerceadores de suas vidas. Conhecimentos que
rompem, por exemplo, como nos lembra Margareth Rago41, com um saber médico, que já
postulou, com suas bases científicas, que o crânio feminino, assim como toda constituição
biológica, fixava o destino da mulher: ser mãe e viver no lar, obrigatoriamente cuidando da
família.
Assim, é seguindo esse movimento diferencial rastreado nessas mulheres, que
queremos pensar a inquietação da professora Sônia Lima, que disse ouvir, das mulheres
rurais, em seus cursos, a frase-pedido: “fale a nossa língua!”. Para além de se pensar sobre
as formas de transfiguração de um discurso acadêmico em um discurso mais simples, sobre
as formas de uma proximidade com as mulheres rurais, com as mulheres também de ONGs
envolvidas em movimentos sociais, queremos suplementar tais inquietações sugerindo uma
forma mais radical de romper com certos fechamentos acadêmicos discursivos que, de
forma diversa, também estão formatados em diversos outros espaços e sujeitos.
Queremos pensar o “fale a nossa língua” como uma possibilidade de produzir
“idéias próprias sem isolamento”, como uma possibilidade de ir minando por dentro, de ir
contaminando os espaços, os sujeitos, as instituições, como fazem esses movimentos de
mulheres que, ao procurar reinventar outras se reinventam e reinventam seus espaços de
trabalho, o MOC, a universidade.
É assim que percebemos essa língua diferencial, intervalar, e seu vínculo com um
movimento subjetivo que também aponta para uma perspectiva antropofágica, como nos
sugere Sueli Rolnik, ao associar a subjetividade, nos moldes de Deleuze e Guattari,
implicada em uma crítica clínica, ao princípio constitutivo da subjetividade brasileira que,
conforme suas palavras, seria o princípio antropofágico:
41
RAGO, Margareth. Op. cit., p. 592.
139
42
Cf. ROLNIK, Sueli. Esquizoanálise e antropofagia. In: ALLIEZ, Eric (Org.) Gilles Deleuze: uma vida
filosófica, p.452-453.
43
Essa reinvenção, enquanto processo antropofágico de constituição de subjetividade, poderia também ser
associada ao pensamento de Oswald de Andrade, autor de o Manifesto Antropófago. Para o autor a utopia
caraíba seria no presente e estaria vinculada ao Matriarcado de Pindorama, o qual se configuraria na imagem
do bárbaro tecnizado. Com isso, poderíamos pensar nas mulheres do sertão tendo acesso a outros recursos e
discursos, a outras tecnologias, a outros conhecimentos, engendrando, com essa relação, um mercado das
trocas intersubjetivas, modos de intervenção, outros saberes, outra perspectiva de sujeito e de sociedade no
agora. No seu manifesto citado, Andrade ainda nos incita a pensar em um matriarcado não numa linha
antropológica, nem numa linha meramente inversiva de poderes, visto que o Matriarcado de Pindorama que
descreve, fundado no princípio antropofágico, que conforme já dizia, une a nós todos, insurge tanto contra o
Patriarcado quanto ao poder reativo da “mãe dos Gracos”; contra a propriedade privada e ao regime
matrilinear. Conforme o autor, o Matriarcado de Pindorama investe na experiência renovada, na revolução
caraíba enquanto unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem, contrapondo-se à memória
enquanto fonte de costume. É nessa linha, seguindo essas pistas, que buscamos visualizar um diferencial no
devir matriarcal que, nessas mulheres, rastreamos. Pistas de um matriarcado enquanto retorno em diferença,
enquanto devir e revolução permanente.
140
Uma coisa sou eu, técnica do MOC, tentar convencer Milton ou outro técnico, outra coisa
sou eu Alvaíza fazer esse processo e o Movimento de mulheres ir em uma reunião e lá
brigar, questionar... Então isso vai possibilitando um conjunto de mudanças. (...) Foi ele,
Milton, vendo o Movimento de mulheres que ele passou a respeitá-lo. Conversávamos aqui
e ele não cedia, foi vendo a importância do Movimento para que se conseguisse, em
determinado local, o Projeto 1 milhão de cisternas...44
Hoje a gente tem o nosso próprio orçamento para trabalhar. O orçamento era vinculado a
determinado programa, então dependia se aquele programa achasse aquilo interessante para
você realizar determinadas atividades. Existiram muitas dificuldades, mas houve muitas
mudanças45.
47
Como exemplo de Manifesto produzido conjuntamente, MMTR, Mulieribus, entre outros grupos e
entidades, podemos citar o “Manifesto 08 de março,” feito em 08/03/2005, durante a I Semana das Mulheres
– “Mulheres lutando por cidadania, em busca de crédito e geração de renda” – realizada em Feira de Santana-
BA.
48
Cf. CERTEAU, Michel de A invenção do cotidiano: artes de fazer, p. 242.
142
literatura menor, como nos sugere Deleuze49, e como também visualizamos a escrita de
Rachel de Queiroz e dessas mulheres. Tem sentido de feminização da escrita50 a se aliar
com o devir mulher do homem contra uma sintaxe universal e homogeneizadora, nos
moldes de um patriarcalismo, de um saber falocêntrico a (se) fixar (n)as estantes. Aponta
para a reinvenção dos outros e de si, para a produção de idéias próprias no confronto
antropofágico. Tem sentido, portanto, de anarquia sígnica-subjetiva, de movimento-grito
que não quer calar: Fale a nossa língua!
49
Cf. DELEUZE, Gilles Por uma literatura menor In: DELEUZE, Gilles; GUATARI, Félix. Kafka: por uma
literatura menor.
50
Sobre esse conceito confira RICHARD, Nelly. Intervenções críticas: arte, cultura, gênero e política, p. 127
-141.
143
1
Como parte da pesquisa de campo, fizemos, nessa visita realizada em abril de 2006, diversas entrevistas,
gravadas em fita cassete, com as integrantes do grupo Mulheres de Fibra, bem como com outros membros da
comunidade, a exemplo do Presidente da Associação de Moradores do povoado. Os relatos e os depoimentos
colhidos serão transcritos no decorrer do texto.
144
2
Cf. FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: O que é um autor, p.129-160 e, também de Foucault, A
hermenêutica do sujeito.
3
Intervenção oral de Gema Galgani Esmeraldo no debate ocorrido após a mesa-redonda: Trabalho feminino,
agricultura familiar e políticas públicas para as trabalhadoras rurais, do XIII Encontro da Rede Feminista do
Norte e Nordeste (REDOR), - Feminismo: políticas públicas, desenvolvimento e meio ambiente - realizado
em Recife-PE, de 22-24 de novembro de 2006.
145
atores sociais, como ONGs e outros parceiros mediadores. Para Maria Dolores Mota
Farias4, a questão é complexa se for considerado que o campo não é mais exclusivamente
agrícola e, logo, seria preciso vê-lo amplamente além das atividades tradicionais de
agricultura, pecuária e extrativismo. Ou seja, a organização econômica e social do campo,
recentemente, tem se diferenciado através da constituição de escolas, postos de saúde,
associações, sindicatos, cooperativas, comércio e serviços diversos que passam a adquirir
importância naquele contexto e a contar com muitas mulheres que desenvolvem, além do
trabalho agrícola, também a função de professoras, secretárias, artesãs, entre outras. Maria
Dolores Farias, que pesquisou a construção da coletividade de trabalhadoras rurais
enquanto unidade de identificação política, assinala que tal diversidade do trabalho
feminino no campo, acompanhado do seu desvalor, tem dificultado o reconhecimento da
identificação da trabalhadora rural tanto por elas mesmas, como pela comunidade e órgãos
governamentais.
Já Carmem Foro5 destaca, nessa constituição do “novo mundo rural,” os efeitos que
o modelo de desenvolvimento urbano-industrial implementado no Brasil, especialmente nos
anos 30-50, pautado na industrialização dos centros urbanos e na agroexportação para o
campo, provocou na zona rural quando acrescido do acelerado processo da globalização, no
final dos anos 80 e início dos 90. Para Foro os efeitos foram os seguintes:
4
Cf. FARIAS, Maria Dolores Mota. Sem medo de ser mulher: a experiência e a construção das mulheres
trabalhadoras rurais como categoria política, p. 14.
5
Cf. FORO, Carmem Helena Ferreira. As transformações na relação de trabalho e cidadania no campo:
produção, reprodução e sexualidade. In: LIMA, Maria Ednalva Bezerra de; et. al. (Orgs.). Transformando a
relação trabalho e cidadania: produção, reprodução e sexualidade, p.175-181.
146
6
Idem. Ibidem, p.176.
7
Cf. FALCI, Miridan Knox. Mulheres do sertão nordestino. In: PRIORE, Mary Del. (Org.) História das
mulheres no Brasil, p. 241-277.
8
FONSECA, Cláudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: PRIORE, Mary Del. (Org.) História das mulheres no
Brasil, p. 510-553.
147
contra a univocidade de uma imagem prescrita para a mulher. O contato com o limite, a
falta de condições mínimas para viver gera uma liminaridade que possibilita outras práticas,
brechas em um tecido regulamentado, em uma vivência naturalizada. Alguns textos9 já
sinalizam o movimento diferencial, em terras secas, de mulheres sertanejas como as com
quem estamos lidando; suas estratégias, bem como as formas de não reconhecimento dos
seus atos, de neutralização, de captura.
Portanto, o sertão é lugar onde a distribuição da riqueza não chega, onde o
patriarcalismo se assenta, tem lugar diverso na figura do coronel, do latifundiário, do
jagunço, do trabalhador, do pater poder enquanto prática ainda constante. Por conta disso,
as mulheres foram limitadas por um foco que recalcava, inclusive, as artimanhas das
matriarcas, suas linhas de fuga mesmo na repetição. Os estudos feministas reafirmam a
transversalidade de gênero em diversos espaços, homens e mulheres marcados por uma
construção perversa, por um sistema de exploração que é repetido entre os assujeitados por
ele, na exclusão da mulher, na sua invisibilização enquanto trabalhadora, também
produtora.
As mulheres do sisal de que estamos falando também enfrentam isso. Seu cotidiano
é demarcado por trabalho, geralmente não reconhecido como tal. Levantam por volta das
seis horas, arrumam tudo em casa, preparam a comida e seguem para a roça para trabalhar
no motor de sisal: foi o que me disseram quando perguntei pelo trabalho pré-identificado
como rural. Às vezes almoçam por lá mesmo, comendo com os maridos o que cedo ou de
véspera prepararam, a “bóia-fria” (como também já foram identificadas). Isso quando não
cozinham por lá em fogo aceso no campo ou quando não voltam no intervalo de meio-dia,
afinal também têm os filhos para cuidar.
Retornam definitivamente para casa às cinco horas da tarde para darem
continuidade aos trabalhos domésticos e irem para a escola, que é no turno da noite.
Entretanto, algumas estão sem estudar, porque não estão enxergando bem, o que sinaliza a
ausência, naquela comunidade, de políticas públicas sociais e de saúde adequadas, as quais
parecem estar condicionadas aos interesses eleitoreiros do poder oficial local. O Presidente
da Associação de Moradores onde elas estão desenvolvendo o artesanato, José Roberto S.
9
Cf. FISCHER, Izaura Rufino. A estrutura familiar e a seca. In: AMARAL, Célia Chaves Gurgel do, et. al.
Múltiplas trajetórias: estudos de gênero do 8o Encontro da REDOR, p. 169-192, e também BRANCO,
Adélia de Melo. Mulheres da seca: luta e visibilidade numa situação de desastre.
148
de Matos, esclarece que o povoado fica entre os municípios de Santa Luz e Araci e, como
tem eleitores de ambos, as responsabilidades sociais são jogadas de um para o outro,
ficando, por fim, como percebemos, o atendimento precário ou absolutamente inexistente.
Mas com relação ao dia de trabalho das mulheres, estas, ainda, se responsabilizam
pela agricultura familiar que ampara a subsistência. Nessa luta parece não se ter nenhuma
valia simbólica, nem renda suficiente para um sustento mais adequado. São reconhecidas,
às vezes por elas mesmas, como simples ajudantes dos maridos no campo, porque em casa
e adjacências, como, por exemplo, o quintal, a atividade é anulada por total, já que é
comum identificá-las como donas-de-casa que, como tal, não trabalham. Onilza Braga10
responde, contra essa anulação do trabalho desempenhado pela mulher em casa, com uma
lista enorme de funções, às quais, tendo em vista à realidade social em questão, como é o
caso do diverso cotidiano sertanejo, podem, ou não, contar com a ajuda de muitos dos
eletrodomésticos, que, aliás, no seu boom de lançamento, funcionaram como artifício para
prender a mulher no seu reino “natural”, o lar.
A região da qual estamos falando é conhecida pelo trabalho infantil no sisal, na
extração de pedras e por conta disso alguns projetos foram implantados, como o Programa
de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI). Programa que, associado ao “Bolsa Escola”,
atende a quase todas as integrantes do Mulheres de Fibras, conforme nos afirmou Valmira
Lopes, uma das componentes do grupo: “Só duas mulheres não recebem porque não têm
filho; a gente, que tem, recebe R$ 15,00”. Entretanto, a exploração e desumanização, como
produto do sistema capitalista, não ocorre somente com as crianças. O desrespeito ao
trabalhador e à trabalhadora do sisal, contribuindo para as suas condições mínimas de vida,
faz parte da lógica da dizimação capitalista. E no que diz respeito à mulher do sisal, a
desigualdade de gênero passa pela noção de complementaridade que é atribuída a sua força
de trabalho, invisibilizando, por fim, seu potencial de produção e sua dupla jornada de
trabalho.
A pesquisadora Gilza Lima11 nos ajuda a descrever a paisagem do trabalho com o
sisal na região, destacando a atuação das mulheres. O sisal, que veio do México e que tem
como nome científico Agave, se adaptou bem ao semi-árido, onde o índice pluviométrico
10
Cf. BRAGA, Onilza. Um dia como os outros, no “lar doce lar”. In: Rainha do lar? Uma ova!, p. 39- 43.
11
Cf. LIMA, Gilza das Mercês. O trabalho feminino na produção de sisal: complementar ou substituto?
149
anual é de 500 mm. Já teve seus tempos áureos na década de 60 e 70, quando foi
considerado “ouro verde do sertão” e, por conta da concorrência com as fibras sintéticas
que dominaram o mercado e fizeram o seu preço cair, decaiu nos anos 80. Entretanto, com
o crescimento da demanda por produtos naturais e ecologicamente corretos aumentou, nos
últimos anos, a procura pela fibra. Mas isso não mudou a situação econômico-social na
região. O preço continua baixo para o pequeno produtor, mais baixo para o dono do motor e
baixíssimo para o trabalhador. Os custos de produção elevados, uma dependência do
mercado externo interessado, como de costume, na matéria-prima e uma tecnologia
rudimentar (o motor) responsável por um batalhão de homens sem dedos, sem mãos e sem
braços na região.
O sisal passa por dois processos antes de chegar à indústria. Primeiro, são cortadas
as palmas da planta e estas são levadas no lombo de um jumento para serem desfibradas,
ainda no campo, no citado motor, também conhecido como “paraibana”. Depois, estas
fibras são estendidas em cercas que servem de varais para secagem. O segundo momento se
dá em uma “batedeira”, que é uma espécie de depósito-galpão com altura próxima de um
edifício de um andar, geralmente situada na cidade e de propriedade de alguém com mais
posses ou mesmo de um latifundiário. Neste local se firma o pagamento ao pequeno
produtor e/ou dono do motor, isto se a produção já não for do próprio proprietário da
batedeira, pelas fibras de sisal ali entregues, as quais serão escovadas e classificadas antes
de serem enviadas para a indústria.
As trabalhadoras e trabalhadores do sisal recebem do dono do motor pelo processo
feito no campo e a divisão sexual de trabalho se configura da seguinte forma: as mulheres
trabalham em quase todas as etapas, com exceção do desfibramento no motor, que é
considerado de risco e de grande esforço; entretanto, na disputa pelo trabalho, quando há
mais demanda por emprego que oferta, elas ou concorrem somente em funções que são
consideradas mais propícias para o feminino, pois não exigem força física, concorrem,
portanto, com outras mulheres, ou deixam de ser consideradas candidatas, visto que a
primazia é do homem que precisa sustentar a família, ficando estas livres somente para
cuidar da casa, seu atributo “natural.” As tarefas destinadas às mulheres lembram posturas e
afazeres típicos dos trabalhos domésticos. Assim, os homens geralmente são
transportadores, cevadores (desfibradores no motor), resideiros (que recolhe os resíduos do
150
tira R$ 20,00 por semana no motor, mas agora que o tempo tá difícil, com a seca, a gente
consegue R$ 10,00 por semana, quando consegue”.
As políticas voltadas para mulheres perfiladas por perspectivas de desenvolvimento
que, inclusive, apostam em uma redistribuição e na solidariedade, ainda são perpassadas
por contradições e ranços patriarcais. As questões de gênero ainda não são bem vistas, bem
assimiladas, como mostra Graciete Santos12, coordenadora da Casa da Mulher do Nordeste
e membro do Fórum de Economia Solidária, ao fazer um mapeamento dessas linhas
contextuais e propositivas.
Para Santos, da década de 1940 a 1960, passando de um enfoque no bem estar
social, no crescimento acelerado da economia e na modernização da agricultura como
perspectiva de desenvolvimento, esta ainda mantém uma matriz patriarcal da divisão sexual
de trabalho com programas voltados para as mulheres com enfoque em sexismo,
beneficiamento passivo, especificidade na área de nutrição, saúde, economia doméstica e
planejamento familiar. Tal perspectiva de desenvolvimento e tais programas foram
propostos em épocas marcadas pelo conceito de subdesenvolvimento, avanço e combate do
comunismo, difusão de classe como categoria útil de análise, guerra fria, golpe militar,
teorias da modernização e da dependência e mesmo uma retomada do movimento
feminista.
A partir da década de 1970 as perspectivas de desenvolvimento enfatizavam o
crescimento com redistribuição através da criação de emprego; e as propostas de programas
visualizavam não só o beneficiamento, mas também a resolução da pobreza e, com isso,
estimulavam as atividades produtivas femininas no sentido de complementar a renda
familiar; isso em uma década que ficou conhecida como a da mulher e em que já eram
introduzidos os primeiros estudos sobre o conceito de gênero.
Nos anos 80 o planejamento se pautava numa redução dos gastos do Estado com
políticas sociais através de uma proposta de eficiência econômico-produtiva e ajuste
estrutural, bem como no enfoque de Mulher e Desenvolvimento. Programas para a mulher
estimulavam a participação voluntária, a qualidade para o mercado e a dupla jornada em
um momento de crescimento do Movimento feminista e de promulgação da nova
12
Cf. SANTOS, Graciete. A insuficiência da política de produção e renda para as mulheres. In: SILVA,
Carmem; et al. Mulher e trabalho, p. 83-96.
152
13
Idem. Ibidem, p.87.
153
14
Cf. NOVAES, Maria de Lourdes. O trabalho da mulher na agricultura familiar. In: LIMA, Maria Ednalva
Bezerra de; et al. Transformando a relação trabalho e cidadania: produção, reprodução e sexualidade, p.
151-166.
154
15
Cf. FOUCAULT, Michel, A escrita de si. In: O que é o autor?, p. 149-150. Neste texto o autor chama a
atenção para a correspondência, troca de cartas, funcionando como um adestramento de si próprio pela
escrita, entretanto, além disso, a correspondência se constituiria em uma certa maneira de cada um se
manifestar a si próprio e aos outros. A escrita seria, então, também uma forma de mostrar-se, de dar-se a ver.
No nosso contexto a troca de correspondências diz do jogo relacional, de como nesse entrelace, nessa
dinâmica, as mulheres rurais se vêem e são vistas, se fazem perceber, se mostram a si mesmas, se reinventam,
reinventam outros e outras, revitalizando suas vivências.
155
16
Cf. MMTR-NE. Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais da Bahia- MMTR-BA. In: Agenda – 2006-
20 anos MMTR-NE: Mulheres organizadas combatendo mentalidades de submissão. Neste documento
encontramos registrado o ano de 1986, período em que ocorreu o I Encontro da Mulher Trabalhadora Rural
do Nordeste, como a data em que se firmou a articulação de mulheres trabalhadoras rurais de micro-regiões
de Pernambuco (MMTR – Sertão Central) e Paraíba (MMTR Brejo) constituindo o MMTR – NE. Já na
Bahia, tal articulação de movimentos regionais de mulheres trabalhadoras (principalmente dos municípios de
Feira de Santana e Santa Maria da Vitória) constituindo o MMTR-BA, teria se estabelecido em 1992. Como
vimos, o Movimento de mulheres Trabalhadoras Rurais na região de Feira de Santana já existia, o que
confirma ser o trabalho do MOC, com tais mulheres, bem anterior a esta data, remontando `a década de 1980
e mesmo à segunda metade de 1970, quando dava seus primeiros passos nesse sentido, como relatou, no
tópico I deste capítulo, via entrevista, a coordenadora do seu Programa de Gênero Alvaíza Cerqueira.
17
Cf. MMTR-NE. Objetivos. In: Agenda – 2007 – Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste.
18
Cf. sítio do MOC, http://www.moc.org.br/, acessado em 20 de maio de 2006. Confira no sítio o item
“Programas” e o subitem “Gênero-Mulheres do campo”.
19
Cf. FARIAS, Maria Dolores Mota, op cit.
156
na comunidade onde mora a solicitante, por funcionário do INSS) que constate a atividade
agrícola exercida pela requerente. Tal pesquisa de campo, rumo a uma constatação da
identidade da trabalhadora rural de diversas formas, parece ser a mais comum, visto que a
maioria dessas mulheres não tem carteira de trabalho assinada, nem título de terra.
Farias ainda acrescenta que os funcionários do INSS usam como métodos nessa
avaliação, por exemplo, o testemunho de pessoas, através de conversas na comunidade, que
conheçam a pleiteante e que confirmem que esta trabalha na roça. A questão é que, como o
trabalho da mulher é considerado uma ajuda e esta ainda realiza outras atividades - como
costura, artesanato e trabalho doméstico e de fundo de quintal –, “normalmente ocorre uma
descaracterização da natureza do seu trabalho rural em razão dessas outras atividades que
ela realiza e que não são classificadas como agrícolas.20”
No encontro de trabalhadoras rurais21 (que contava inclusive com a presença do
MMTR de Santa Luz, com o grupo Mulheres de Fibras), em que se discutia previdência,
era comum ouvir-se as histórias que explicitavam a dificuldade por que as mulheres rurais
passavam para conseguir provar que eram trabalhadoras do campo. Relatos que apontavam
para tipos de testes comprobatórios que avaliavam, por exemplo, uma mobilidade física da
solicitante que o tempo duro de trabalho não deveria permitir, do tipo conseguir pegar uma
caneta no chão ou o estado das suas mãos, a serem vistas e/ou tocadas pelo avaliador.
Os relatos tinham tom de incredulidade e refletiam uma sensação de afronta irônica
pela qual essas pessoas tinham passado. Estavam ali, junto a um representante do INSS que
estava na mesa, reivindicando seus direitos. Reivindicando também, e seu trajeto de luta
nos faz perceber isso, uma maior percepção do seu movimento, de sua permanente
reinvenção de si e do cotidiano. Reinvenção que aponta para um cuidado de si, cuidado das
mãos, da sua saúde tão precariamente atendida, tão desconsiderada.
Até mesmo por conta de medidas exteriores, forças contextuais diversas, programas
de governo, de Estado, as mulheres se modificam, se reinventam e imprimem mudanças
também nesse conjunto de forças citadas. O movimento de fluxo-refluxo, de
correspondência, não poderia deixar estanque o sujeito dessa dinâmica, sujeito que pode ser
observador-participante, avaliador/INSS-trabalhadora rural, a não ser que tal sujeito seja
20
Idem. Ibidem., p. 63.
21
Encontro realizado na III Semana das Mulheres na Universidade Estadual de Feira de Santana, em 9 de
março de 2007.
157
apagado de/em tal dinâmica; que tal sujeito não perceba o jogo inter-relacional e a sua
possível participação nele. Ou seja: sua possibilidade de alterar os papéis, modificar as
regras, enfim, de ser jogador. Daí, por conta dessa falta de percepção, encontro mais um
motivo para se observar o artesanato das mulheres de fibras, também mulheres
trabalhadoras rurais. Mais um motivo para observar como tais mulheres percebiam a
importância de reivindicar políticas públicas, de criar estratégias unificadoras, ainda que se
defrontassem com o movimento enquanto sinônimo de diferença(s), de mobilidade. Ao
mesmo tempo estas mulheres no seu artesanato aglutina(va)m para mobilizar, para fazer
reconhecer as diferenças, reconhecer outros sentidos sobre si mesmas, para que esses
sentidos outros fossem-sejam vistos. Criam estratégias, o próprio MMTR é uma delas,
como nos diz o MOC a respeito do movimento no território do sisal22. Criaram campanhas,
as quais, como argumentávamos, incidiam e incidem também em um trabalho específico
com e entre elas, na medida em que as levam a reconhecer a sua força de trabalho, fazendo
com que estas sejam as primeiras a se auto-identificarem como trabalhadoras, e no caso
específico, trabalhadoras rurais.
Por conta disso, estas mulheres, com suas diversas parcerias, promovem encontros,
fóruns, grupos de estudo e de planejamento, diversos eventos articulados que apontam para
o seu posicionamento publicamente diferencial, bem como para o reconhecimento da
diferença, para sua junção com a eqüidade, ao invés da sua desvalorização. Além das
reuniões, utilizam como estratégias diversas dinâmicas participativas que mexem também
na forma já tradicional de se fazer política. Ao invés da seriedade repetida por algumas das
companheiras, muitas vezes transformadas em líderes, geralmente se observa um clima de
alegria e descontração aliadas à discussão de problemas cotidianos da trabalhadora. São
várias as artes de se apresentar e intervir em um cotidiano político-cultural-subjetivo.
Utilizam-se de cantos, cirandas, brincadeiras que, para além de serem apenas formas de
descontração, serem apenas formas de fugir ou adiar a pauta do dia, são modos de inserção,
de fala, de abertura de possibilidades de outra inclusão, que requerem um olhar mais
sensível, uma politização da percepção política. Logo, são modos de encontro e de
confronto.
22
Informações relacionadas ao MOC e MMTR disponíveis em http://www.moc.org.br/, acessado em 20 de
maio de 2006. Confira no sítio o item “Programas” e o subitem “Gênero-Mulheres do campo”.
158
Dos eventos que, em parceria com diversos outros atores e MMTRs, tais mulheres
realizam, e nos quais se mostra a potencialidade das articulações, destacam-se a insistência
do “8 de março” contra a fetichização do Dia da Mulher - dia de aglutinação para celebrar
as conquistas, reivindicar os direitos e mostrar que a luta contra a invisibilização é de todo
dia - e a “Marcha das Margaridas” - símbolo de luta contra o poder patriarcal unido ao
capital, homenagem a uma trabalhadora rural assalariada, Margarida Alves, que lutou em
defesa dos seus direitos e por isso foi assassinada, momento em que estrategicamente se
reúnem para bradar, na capital federal, junto ao presidente da república, o direito à inclusão.
Em 2007, a marcha, no seu terceiro ano, reafirma o lema móvel “2007 razões para
marchar”, e aponta para o acréscimo constante e atualizado da politização contínua das
subjetividades marcadas nas políticas públicas e nas vidas instituídas, tendo como pontos
em destaque: soberania e segurança alimentar e nutricional; terra, água e agroecologia;
trabalho, renda e economia solidária; garantia de emprego e melhores condições de vida
para assalariadas rurais; política de valorização do salário mínimo; defesa da saúde pública;
e educação no campo e combate à violência sexista23.
Para Carmem Foro24, a pauta entregue teve 107 questões, mas entre elas, 13 são
cruciais para as mulheres rurais e precisam ser respondidas com urgência. Dentre elas,
considerando as que já foram citadas acima, percebemos a reivindicação de direitos no
sistema previdenciário e a ampliação do Programa de Documentação da Trabalhadora
Rural. Esse programa, por sinal, já representa a política de documentação assumida pelo
Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), uma conquista do movimento que conta,
dentro deste setor, com o apoio do Programa de Promoção da Igualdade de Gênero, Raça e
Etnia (Ppigre-MDA).
Tal Ministério, em co-relação com o referido Programa, vem respondendo de
alguma forma aos direitos reivindicados pelas mulheres trabalhadoras rurais. Conforme
Andréa Butto, procurando ampliar o número de atendimentos do Programa de
Documentação, após reivindicação feita, “o Ministério está adquirindo 30 unidades móveis
para utilização durante os mutirões de documentação. São ônibus e barcos, estes últimos
23
Cf. MDA. Cassel reafirma a pauta da Marcha das Margaridas como um desafio positivo–25/07/2007.
Disponível em www.mda.gov.br/aegre/ Acesso em 02/08/2007.
24
Cf. MOC. Marcha das Margaridas: 2007 razões para marchar– 29/08/2007. Disponível em:
www.moc.org.br/ no item “Notícias – Arquivo 2007.” Acesso em 10/09/2007.
159
destinados à região Norte do país, que deverão chegar a todos os estados em 2008”25. Butto
ainda afirma que Pará, Piauí e Bahia serão os primeiros a receber as unidades móveis.
Como resposta também a todo esse movimento alavancado, desde a década de 1980,
pelas mulheres trabalhadoras rurais, que reivindicam um outro olhar para o campo, o
Ministro do MDA, Guilherme Cassel, anuncia para 2008 a I Conferência Nacional de
Desenvolvimento Rural Sustentável (I CNDRSS), cujo tema será: “Por um Brasil rural com
gente: sustentabilidade, inclusão, diversidade, igualdade e solidariedade”26.
O anúncio foi feito em Recife (PE), estado sede do MMTR-NE, em solenidade que
contou com diversas entidades e autoridades, entre elas o secretário de desenvolvimento
territorial, Humberto Oliveira, que, embora tenha afirmado que a Conferência será uma
releitura que se fará do que é o meio rural brasileiro, procurando tratar não apenas de
reforma agrária e agricultura familiar, mas também de saúde, educação, cultura, gênero,
juventude entre outros temas importantes para o meio rural, o grupo de trabalho de gênero
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CONDRAF), procurou
promover também, durante tal lançamento, a Campanha “Brasil Rural com Igualdade para
as Mulheres”. Isso seria uma forma de divulgar tal conferência junto às mulheres
trabalhadoras rurais e suas organizações e assegurar a presença ampla destas na preparação
e realização daquela, através de muitos debates prévios, inclusive sobre a ampliação da
participação e o controle social das mulheres nas políticas públicas de desenvolvimento
rural sustentável.
Seguindo essa linha da busca de interação, participação, intervenção e muita atenção
para o que tem sido proposto, ou não, para o âmbito rural, principalmente com promessas
de desenvolvimento, as mulheres trabalhadoras rurais, em toda sua rede de relações e inter-
composições têm percebido motivos para realizar suas marchas conjuntas, e têm percebido
também os frutos advindos delas.
Dessa forma, para Roselita Costa, agricultora integrante da coordenação executiva
da Articulação no Semi-Árido (ASA), é de grande importância estar se juntando a outras
mulheres agricultoras de todo o país, especialmente do semi-árido nordestino. Na sua fala
25
Cf. MDA. Ppigre reúne movimentos de trabalhadoras rurais – 03/10/2007. Disponível em
www.mda.gov.br/aegre/ Acesso em 05/10/2007.
26
Informações sobre o lançamento e preparação da Conferência disponíveis em: www.mda.gov.br/aegre/.
Acesso em 05/12/2007.
160
27
COSTA, Roselita. Acesso aos recursos naturais é reivindicado por mulheres na Marcha das Margaridas.
Entrevista realizada por Gleiceane Nogueira – 24/08/2007. Disponível em: www.asabrasil.org.br/ Acesso em:
25/08/2007.
28
Cf. SANTOS, Boaventura de Souza. Prefácio. In: SANTOS, Boaventura de Souza (Org.) Produzir para
viver: os caminhos da produção não capitalista.
161
29
Idem. Ibidem., p.16.
30
Cf. MARX, Karl. Abolição do sistema assalariado. In: Sindicalismo: Marx e Engels.
162
que funciona como um exército de reserva para o capital assegurar sua potência na luta
contra o trabalho. Quando os negócios vão mal, os desocupados morrem de fome; se vão
bem, o exército de reserva é usado para aumentar a produção. E enquanto houver
desempregado, os salários estarão comprometidos pela concorrência deste exército de
reserva, os salários serão mantidos, não aumentados, tendo como amparo o exército de
reserva criado.
Como terceiro ponto fundamental, Marx pergunta com que paga o capital os salários
“justos”. A resposta dada seria com o próprio capital. Mas Marx nos leva a refletir sobre o
fato de que o capital não produz valor, este seria fruto da terra ou do trabalho, únicas fontes
de riqueza. Dessa forma, o capital só é produto acumulado do trabalho. Por conseguinte, os
salários do trabalho são pagos com o trabalho do próprio operário; este é remunerado com o
produto do seu próprio trabalho. Assim, o salário do operário deveria corresponder à
totalidade do produto do seu trabalho, mas a Economia Política burguesa não considera isso
justo. Nessa linha, o capitalista se apropria do trabalho do operário e este recebe não mais
do que o estritamente necessário para subsistir. E o resultado é que o produto dos que
trabalham se acumula nas mãos dos que não trabalham e se converte na arma mais
poderosa para reforçar a escravidão dos que são os verdadeiros produtores. Marx conclui
que a justiça dessa Economia Política está de um lado só, o do capital, e conclama a todos
para uma apropriação dos meios de produção: a matéria-prima, as máquinas e as fábricas.
Para Isabele Guérin31, que investiga grupos de mulheres cooperadas na França e na
África, as invenções de uma outra economia que não privilegia o capital, e sim aquilo que é
o trabalho humano, ou melhor, o sujeito humano, têm assumido diferenças na relação Norte
e Sul, visto que, enquanto no primeiro espaço geográfico citado, se luta por um emprego
que não seja fonte de novas desigualdades, no segundo, a luta é pelo acesso aos direitos
econômicos e sociais básicos.
Enquanto Guérin dicotomiza, Paul Singer32 encara a nossa precariedade para extrair
dela a sua potencialidade. Parte do interesse por aqueles que nem no exército de reserva
estão. Ou seja, aqueles e aquelas que não têm (mais) o seguro desemprego para poder
sobreviver como desempregado, que não se encaixam nessa categoria, que há muito, para
31
Cf. GUÉRIN, Isabele. As mulheres e a economia solidária, p. 23-26.
32
Cf. SINGER, Paul. Globalização e desemprego: diagnóstico e alternativas.
163
33
Cf. MATOS, Sônia Missagia de. Artefatos de gênero na arte do barro: masculinidades e feminilidades. In:
Revista de Estudos feministas. Florianópolis, v. 9, n. 1, p. 56-81, 2001.
34
ROCHA, Ana Maria Santos. A necessária valorização do trabalho da mulher. Comunicação oral feita no
GT: Gênero, trabalho e movimentos sociais do XIII Simpósio Baiano de Pesquisadoras(es) sobre Mulher e
Relações de Gênero - Feminismo e transversalização de gênero -, promovido pelo NEIM-UFBA e realizado
em Salvador, nos dias 29, 30 e 31 de outubro de 2007.
164
lucro, pelo fruto de ambos? Para Rocha, depois de conseguir adentrar no mercado de
trabalho esta seria mais uma tática do capitalismo e toda sua rede de fatores conjugados
para fazer retornar a mulher ao espaço da casa. Diante dos imperativos das funções do lar
que o naturalizam em consonância com a mulher, Rocha pergunta, em sua finalização, pelo
papel do Estado nessa situação.
Com relação ao nosso contexto, guardando alguns questionamentos de Rocha,
talvez fosse importante esclarecer que, em nosso caso, não se trata de mulheres que não
estão no exército de reserva porque conseguiram uma estabilidade no mercado, logo
estariam acima dele, ou, por conta da instabilidade desse, se enquadram nessa categoria.
Embora sejam mulheres que vez ou outra ganhem salários trabalhando no motor de sisal,
estas estão muito mais próximas do que nos diz Singer, fora dessa reserva, procurando se
sustentar de outra forma.
É também preciso lembrar que, no tocante ao grupo Mulheres de Fibras, não são
mulheres que na informalidade tornam-se patroas severas de si mesmas, tentando
isoladamente sobreviver. O grupo, como já me referi, pauta-se em princípios da economia
solidária que, como nos diz Singer35, sempre esteve presente, de formas diversas, entre as
pessoas pobres, ressurgindo com mais força e sistemática em tempos de desindustrialização
e forte desemprego nas décadas de 1980-90. Diferentemente de um modo de produção
capitalista que tem como princípio o direito à propriedade individual aplicado ao capital e o
direito à liberdade individual, resultando, com isso, em competição e desigualdade, o modo
de produção da economia solidária elege como seus princípios a propriedade coletiva ou
associada do capital e o direito à liberdade individual, que resultaria em solidariedade e
igualdade, cuja reprodução exige mecanismos estatais de redistribuição solidária de renda.
Em termos sucintos, ao contrário do capitalismo, essa outra economia não separa
capital do trabalho e, contra a competitividade, elege a solidariedade alinhada por valores
de cooperação, democracia e autogestão. Nessa linha, as trabalhadoras criam o grupo
Mulheres de Fibras para desenvolver o artesanato confeccionando bolsas de sisal. Decidem
em conjunto quais os fios que devem ser usados, como fazer, como dividir as horas de
trabalho e o lugar para tal atividade. No início disseram-me que tinham dificuldade em
encontrar um espaço para trabalharem, buscavam ansiosamente um lugar até que a
35
SINGER, Paul. Introdução à economia solidária.
165
Associação dos Moradores foi cedida para elas. Decidiram que o dia para realizarem o
trabalho seria na segunda-feira, momento em que se encontram para trançar em conjunto e
consigo mesmas; nesse dia geralmente preparam um almoço ou lanche que é partilhado
entre elas em meio à troca de conversas.
Também em conjunto, procuram dividir os rendimentos. Tomam conhecimento de
todo o processo e, desenvoltas, viajam até a cidade vizinha para observar os fios fabricados
pela Associação de Pequenos Produtores de Valente (APAEB), na fábrica que integra o
complexo associativo que construiu e que se estende em inter-relações com diversos outros
gupos-agentes sociais, como o grupo de artesanato de Miranda. Decidem também como
fazer com a falta de um maquinário adequado para forrar as bolsas. Também contam das
suas estratégias para fazer render o forro, ou seja, utilizam um tom neutro de pano para
forrar muitas bolsas, a fim de não desperdiçar com cortes e retalhos, visto que o dinheiro é
pouco.
As integrantes do grupo também me falaram da luta constante para ter acesso ao
microcrédito junto ao SICOOB (Sistema Cooperativo do Brasil), Banco cooperativo de
Santa Luz e microrregião. Discutem e tomam as decisões em grupo, em regime
autogestionário e democrático sem a presença ou hierarquia de um chefe; pelo contrário,
contam com a parceria trabalhada entre elas e com seu maior agente potencializador, o
MOC, que procurou integrar essas diversas mulheres do território do sisal em uma rede,
chamada primeiro de Rede de Produtoras, e, mais tarde, quando oficializada a cooperativa,
COOPEREDE – Cooperativa da Rede de Produtoras da Bahia.
Na época da fundação da COOPEREDE, que abrange 32 empreendimentos
solidários em 17 municípios do interior do estado, em março de 2007, Valmira Lopes, do
Mulheres de Fibras, que atua como secretária na rede, dá o seguinte depoimento:
Foi um momento de muita alegria e festa, mas para nós, um momento marcado também por
muitos desafios. Agora é tocar os processos e buscar cada vez mais qualidade na produção
de todos os nossos produtos. Viemos para fazer a diferença e contribuir no desenvolvimento
da nossa região36.
36
Cf. MOC. Rede de Produtoras cria cooperativa – 28/03/2007. Disponível em: www.moc.org.br/ no item
“Notícias – Arquivo 2007.” Acesso em 05/04/2007.
166
As mulheres vão constituindo uma rede diferencial que abarca não só mulheres, mas
uma série de homens que, por meio dos organismos em que atuam, apóiam e assessoram o
movimento dessas mulheres, levando-os também a uma movência, ainda que pareça que a
festa (se a tomarmos enquanto transformação conseguida) seja somente delas. Assim
afirmou o secretário executivo do MOC, Naidson Baptista, também nesse momento: “Este
é um dia de festa para as mulheres que estão vendo a concretização do seu trabalho, mas
também é preciso estar em busca de uma certificação para dar mais garantia aos produtos
que são comercializados pela rede”37 .
No dia da fundação da COOPEREDE, que contou também com outras atividades,
entre elas a apresentação de um grupo de mulheres trabalhadoras rurais da região do sisal,
Grupo “Mulheres que cantam e encantam”, e um seminário sobre certificação de produção
ministrado pelo presidente da UNICAFES-Bahia (União das Cooperativas da Agricultura
Familiar e Economia Solidária), a fala de Valmira Lopes, bem como do secretário do MOC,
apontam para uma perspectiva de inserção no mercado, apostando na qualificação do
produto.
Isso nos faz pensar na proposta diferencial de mercado que a economia solidária
propõe, bem como nas discussões acerca da sua convivência com o capitalismo e sua
crença em transformá-lo. Enquanto estudiosos do assunto alertam, contra os mais
apressados, que a transformação de um modo de produção, do capitalismo para a economia
solidária, não se faz de forma instantânea,38 outros, como Singer39, sem tirar os pés do chão,
efusivamente apostam no seu potencial de mudança, sem deixar de levar em conta que
antes, até como estratégia, essa outra economia precisa conviver-competir-existir com/no
capitalismo. Ela precisa ser competente, ter qualidade; ela precisa ser solidária-cooperada-
associada, visto que isoladamente não se consegue existir perante o capital, afrontá-lo, e
isso não impede, pelo contrário, a criação do mercado alternativo que, com ela, se almeja.
Dessa discussão fica a sensibilidade de quem apóia primeiros passos, iniciativas
embrionárias ou problemáticas nessa nova maneira de gerir os negócios e as relações; fica o
alerta para o vírus capitalista destruindo talvez o mais forte nesse outro modo de produção
37
Cf. MOC. Rede de Produtoras cria cooperativa – 28/03/2007. Disponível em: www.moc.org.br/ no ítem
“Notícias – Arquivo 2007.” Acesso em 05/04/2007.
38
Cf. GAIGER, Luiz Inácio Germany. A economia solidária diante do modo de produção capitalista, p. 181-
211.
39
Cf. SINGER, Paul. Economia dos setores populares: propostas e desafios, p. 143-165.
167
40
Cf. MOC. Mulheres sertanejas inauguram sede em Feira de Santana – 17/10/2007. Disponível em:
www.moc.org.br/ no item “Notícias – Arquivo 2007”. Acesso em 20/10/2007.
168
isso Neide Santos, do MMTR de Retirolândia, também região do sisal, ressalta: “Agora que
estamos mais unidas, lutamos juntas pelo nosso espaço, pela dignidade da mulher e seu
crescimento financeiro e humano”41. Nessa cooperação, a rede se encarrega de divulgar os
produtos das cooperadas e recentemente teve seu trabalho escolhido em todo o país como
empreendimento que representaria o Brasil na X Expomundo Rural em Santiago, no Chile,
o que representou, para sua coordenadora, um reconhecimento; certamente mais um espaço
de inserção e visibilidade.
Com esse outro modo de vida e de trabalho inventado, já é possível nos
perguntarmos, novamente, pelo impacto provocado em um e em outro na inter-relação, pelo
artesanato de si, pelas produções subjetivas, os impasses ou conflitos no traçado e retraçado
dessas mulheres. Em conversa também com outras pessoas da comunidade, rastreamos os
ecos dessa poética sobre a paisagem local, as pessoas, o cotidiano.
Uma das primeiras questões que pensamos dizia respeito à relação em casa, com os
companheiros. Perguntei quem fazia os trabalhos domésticos naquele dia de segunda-feira
em que elas passavam ali juntas, bem como nos dias em que elas estavam participando das
feiras, das reuniões do MMTR, das marchas em Brasília, Feira de Santana, Santa Luz e
tantas outras cidades, e obtive a seguinte resposta de uma das integrantes chamada Simone
Nascimento: “No início foi difícil, mas eu fui jogando, dizia em casa: - Se vocês chegarem
e o feijão estiver queimando é porque eu estou no grupo, se vocês chegarem e o feijão
estiver cru é porque eu estou no grupo. Fui jogando, jogando...”
Mas Simone Nascimento complementa, afirmando que hoje a resposta é a seguinte:
“Eles se viram!” Diante de tal imperativo, após toda uma tática prévia, insisti na questão e
contando com o olhar atento do Presidente da Associação, José Roberto Matos, que
também marido de uma delas, participava da conversa, dirigi-me a ele querendo saber
como lidava com aquela condição circunstancial provocada pelo intempestivo “se vire”. O
mesmo, sob os olhos da esposa, afirmava que procurava “dar um jeito, com os meninos
pedindo comida, procurava fazer um macarrão”, o que a mulher completou: “grudento”. E
o mesmo retrucou: “A gente faz, a gente procura fazer”. Ele repetia a frase e nós
41
Cf. MOC. Mulheres sertanejas inauguram sede em Feira de Santana – 17/10/2007. Disponível em:
www.moc.org.br/ no ítem “Notícias – Arquivo 2007.” Acesso em 20/10/2007.
169
percebíamos que ele, incorporando a força prático-discursiva de Simone, “se virava”, era
levado, não sem nenhuma resistência, a “se virar”. Ainda que nos outros dias elas se
encarregassem das atividades domésticas, pensávamos naquele dia, bem como nessa malha
de atividades políticas, como uma possibilidade de rasura, um rasgo que se imprimia nesse
mundo cristalizado, nessa convivência naturalizada e cotidiana.
Com relação às crianças, os filhos, que por sinal nos acompanharam desde a
entrevista, na Associação, como na escuta-visitação da comunidade, elas diziam que o pai
cuidava, ou a avó, ou a vizinha, ou, como naquele dia, levavam consigo. Isso nos fazia
lembrar-ampliar a pergunta de Rocha42: qual o papel do Estado nessa situação, quem
sempre foi responsabilizada pelo cuidado dos filhos? Observávamos a ausência de políticas
públicas, como, por exemplo, a criação de creche.
Perguntamos também como os companheiros reagiam a esse movimento de suas
companheiras, discutindo, saindo constantemente, negociando, insistindo em estudar. Elas
me respondiam que uns apoiavam, outros não gostavam muito, mas elas saíam assim
mesmo. Simone Nascimento relatava que o marido perguntava o que ela iria fazer depois
daquele estudo, aquela série escolar, ao que ela assim respondia: “Não sei, vou continuar,
vou até o Japão!” A segurança, a afronta enquanto prova de destemor, o desejo de se
direcionar, de ultrapassar o que foi dado como limite de vivência de outras experiências,
ressoava na fala de Simone Nascimento e no desejo de outras quando afirmavam que iriam
continuar com o artesanato no grupo, quando afirmavam a importância de estarem no
movimento.
Apesar disso, perguntando por outras mulheres que saíram do grupo, e até mesmo
conversando com essas na comunidade, percebemos que o fator que as tinha motivado a
não continuar era o fato de o grupo não gerar lucro, não gerar renda suficiente. Isso
novamente nos levava a pensar na importância da geração de renda na vida dessas
mulheres, mas, acima de tudo, na importância de se pensar para além da renda: na
importância de se descobrir o ponto singular do artesanato das mulheres de fibras.
Pensando ainda na relação com outras mulheres, lembramos dos vários eventos
realizados no 8 de março em Santa Luz, dos quais participamos e não víamos a presença
das mulheres do Sindicato de Trabalhadores Rurais em meio a elas. Pelo contrário,
42
ROCHA, Ana Maria Santos. Op. cit.
170
ficávamos sabendo pelas mesmas que as atividades das “mulheres do sindicato”, como
chamavam, seriam em outro dia, diferente da data que elegiam para se reunirem em
manifestações. Perguntadas sobre o porquê dessa separação, respondiam que elas discutiam
outra coisa, que não debatiam gênero.
Isso nos leva a lembrar Farias43, quando rastreia a constituição do MMTR
detectando a força conjunta, apesar de diferenças, de mulheres trabalhadoras rurais
sindicalistas com mulheres dos MMTRs na potencialização do movimento de mulheres
trabalhadoras rurais em eventos, ocasiões estratégicas, importantes. E essa junção
potencializadora víamos, inclusive, em alguns encontros e em eventos como 8 de março,
Marcha das Margaridas, feiras, seminários, dentre outros, dos quais participava o MMTR
de Santa Luz, em outras cidades, como Feira de Santana.
Também pensávamos, com essa questão, na rasura que tais mulheres imprimiam no
sindicato, na dificuldade de serem aceitas naquele espaço, como seres capazes de fazer-
discutir política, como mulheres trabalhadoras, rasura que fez com que alguns sindicatos até
incorporassem o termo “trabalhadora” como compromisso com a linguagem performativa,
demarcando a percepção-abertura para uma existência. Com isso, alguns sindicatos
passaram a se denominar Sindicato dos Trabalhadores “e Trabalhadoras” Rurais. Por conta
disso, também sabemos da dificuldade de se discutir naquele âmbito a importância da
transversalidade de gênero, da percepção da supremacia da questão de classe sobre gênero,
considerando este, como nos confirma Paola Giulani44, como algo menor ou sem
importância política.
Também pensando nessa (não)relação entre as mulheres do sindicato e as Mulheres
de Fibras do MMTR de Santa Luz, procuramos saber sobre o tipo de parceria que se
estabelecia com a Associação dos Moradores, para além do uso daquele espaço para o
desenvolvimento do artesanato. O Presidente, José Roberto Matos, prontamente pôs-se a
falar que a associação procura apoiar o trabalho das mulheres. Sobre a participação destas
na associação, inclusive com relação à divisão de funções, este diz que elas ainda não
ocupam os cargos de chefia, que as mulheres (do grupo) participam falando com liberdade -
o que todas confirmam em alto som - e algumas delas, ele continua, ocupam cargos como
43
FARIAS, Maria Dolores Mota. Op cit.
44
Cf. GIULANI, Paola Cappellin. Os movimentos de trabalhadoras e a sociedade brasileira. In: PRIORE,
Mary Del (Org.) História das mulheres no Brasil, p. 640-668.
171
Movimento, forçando-o a “revirar-se” em casa, a ter que lidar com serviços domésticos,
como fazer a comida.
Na relação, de uma forma geral, com a comunidade, percebemos um certo
fetichismo para com o movimento das mulheres, que se traduz nos eventos do 8 de março,
quando ocupam a Câmara Municipal e os vereadores e vereadoras fazem discursos
elogiosos ou prudentes, tentando transparecer uma atenção dispensada. No entanto, quando
somamos os marços em que ali elas estiveram, quando iniciamos o outro dia, o outro mês,
parece que toda a encenação ficou restrita ao “Dia da Mulher”. A impressão é que não
houve uma escuta devida, não houve uma inter-relação. Essa é a sensação que também
tivemos em algumas conversas com os moradores do povoado.
Ainda que nos tivéssemos deixado guiar pelas mulheres do grupo, bem como pelo
Presidente da Associação, indicando-nos algumas pessoas a serem entrevistadas,
percebíamos que tais pessoas, quando indagadas sobre a importância do grupo no povoado,
a importância daquele trabalho, daquele artesanato, enunciavam falas do tipo: “É uma
conquista delas!”, “É importante para elas!” Ainda que o grupo tenha sido importante na
luta para se conseguir os serviços de instalação de energia e telefone no povoado, parece
que a atividade delas não interfere na comunidade, logo, “a conquista” é somente “delas”, o
artesanato somente as envolve. Mais uma vez pensamos em uma (não)relação, em uma não
atenção ao trabalho diferencial dessas mulheres, em uma não escuta desse rumor que
atravessa a poética de Valmira Lopes: “Viemos para fazer a diferença”.
Diante de tais percepções podemos nos perguntar: Quais os empecilhos para que
essa diferença, de fato, faça a diferença e para que as portas realmente estejam abertas?
Quais as demandas para um artesanato sustentável? Que lições ativas e reativas destacar do
movimento dessas mulheres? Na conversa com os membros da comunidade, nessa linha de
reflexão, uma fala nos chamou a atenção: o depoimento de um ex-integrante, homem, José
Reis dos Santos, do grupo. O mesmo afirmou que participou do trabalho em conjunto com
aquelas mulheres, aprendeu a fazer o artesanato, já estava produzindo peças, mas, depois de
determinado tempo, saiu. Quando perguntei o porquê de tal saída, primeiro ouvi um
silêncio, mas, diante da minha insistência com a pergunta, depois de algum tempo, ele
respondeu: “o pessoal ficou zoando, os companheiros, dizendo que eu estava fazendo
artesanato, bolsa de artesanato, que era coisa de mulher, então eu sai”.
173
Isto nos remete à pesquisa de Matos45 com as artesãs do Vale de Jequitinhonha, suas
especificidades, os sentidos marcados nas práticas e a ressignificação refixando lugares,
funções, sujeitos. No Vale, o grupo de mulheres começou a prosperar com o trabalho de
artesanato, ganhou reconhecimento na região e dinheiro suficiente para fazer com que os
homens, precisando sobreviver, adentrassem no artesanato antes considerado só feminino,
“coisa de mulher”. Ao fazerem-no, ao invés de neutralizar-apagar a prescrição “artesanato é
coisa de mulher”, redistribuem as funções no ofício, agregando às suas atividades, a seus
produtos, maior valor simbólico e comercial.
Ou seja, na produção artesanal do Vale, às mulheres ficou restrito o artesanato
principalmente de panelas, que passou a ser considerado “coisa de mulher”, de menor valor,
enquanto que os homens, quando entraram, procuraram fazer somente esculturas (figuras),
contribuindo, em parcela significativa, na fixação da marca de gênero, do sentido-valor
superior na palavra-ser homem e seus considerados correlatos, como essa tipologia de peça.
Ficou perceptível o arte-fato de gênero, a produção dessa marca constituindo naturezas em
objetos, sujeitos, existências. Também perceptível é a artimanha da refixação enquanto
renaturalização, nos levando a pensar nos impasses para se chegar ao humano para além
das marcações de classe, gênero, geração, raça-etnia; nas estratégias de intervenção; em um
outro sentido-potencial do artesanato como oposição à naturalização impressa pelo
patriarcado e sua reificação capitalista.
Lembrando da imagem trazida por uma das co-organizadoras das feiras solidárias de
mulheres produtoras, a respeito de se ter rompido com o medo do espaço público, de as
feiras não mais acontecerem em espaços fechados, retivemos essa figuração do espaço
público fechado e o imenso desafio que isso implica em termos de abertura subjetiva
associada às transmutações sociais. E, com isso, podemos fazer algumas reflexões-
constatações a respeito do artesanato, sobre o qual já comentamos, no Vale e no território
do sisal descrito.
Nessa proposta de reflexão, podemos dizer que as portas abertas do artesanato das
mulheres do Vale fizeram com que homens adentrassem no grupo e as fechassem,
redividissem as portas. O grupo Mulheres de Fibras também deixa as suas portas abertas e
um homem adentra, mas sai, pois não suporta, não sabe como lidar com os valores-sentidos
45
Cf. MATOS, Sônia Missagia de. Op cit.
174
atribuídos às práticas, aos comportamentos, aos sujeitos, a si, ao trabalho de artesanato com
mulheres, e sua tessitura com as fibras do sisal. Com isso, as portas, abertas, ganham o
sentido prático de fechadas. A imagem, que nos inspira a partir da fala da co-organizadora
da feira e que aqui reaparece, é a do espaço-público cerceado. Quais os desafios a se
romper? Como lidar com esses signos que nos constituem? Qual a nossa parcela (enquanto
homens, mulheres, mediadores...) nesse artesanato? Como descobrir com as Mulheres de
Fibras o ponto autosustentável, singular, do seu trançado?
Nessas linhas de desnaturalização, fruto de inter-relação, de uma certa
correspondência, com diversas forças prático-discursivas oriundas de diversos lugares,
percebemos, observando o artesanato das mulheres de fibras, que os impasses, os conflitos,
as estratégias, as negociações, os tempos diferenciados constituem as trilhas. Foi com esse
raciocínio que recebemos a notícia, já no final da tese, de que as mulheres do grupo, enfim,
tinham conseguido, depois de tantas reivindicações, um ponto na feira, no mercado
municipal situado na sede, em Santa Luz, para vender as bolsas de sisal, levando o nome de
cada uma delas naquele trançado, levando a proposta de um outro consumo, de um bem
simbólico para além do sentido de mercadoria e seu fetichismo. Também ficamos sabendo
que conseguiram provocar um incipiente mercado, no povoado, contra um capital global
patriarcal, na medida em que tinham compactuado-estimulado todos e todas a comprarem
entre si, ao invés de adquirirem os mesmos produtos de outros compradores externos. Na
medida em que elas tomavam a cena naquela inter-relação, provocavam uma
correspondência mais solidária entre os membros da comunidade.
Com isso, mesmo considerando os impasses, as repetições do mesmo pelas próprias
mulheres, as demandas, nos convidando, acima de tudo, a uma ampliação dos nossos canais
de escuta, procuramos, também nessa linha, destacar os saldos produtivos, a desconstrução,
o artesanato inclusive do próprio termo artesanato, que aqui emerge com outros sentidos.
Para o artesanato visto como oposição à grande arte, tomada como criação original
e aquele como cópia de segunda categoria, procuramos pensar o artesanato enquanto arte,
também criação, como nos sugere Bartra46, na sua pesquisa sobre as recriações de Frida
Kahlo feitas por artesãs, as quais, a princípio, desvalorizadas por serem consideradas
cópias, passam a ter outras percepções-sentidos, na medida em que se começa a observar
46
Cf. BARTRA, Eli. Arte popular y feminismo. In: Revista de Estudos Feministas, p. 30-48.
175
diferenças naquela repetição, uma traição do modelo, da memória que se faz esquecida.
Começa-se a perceber outras Frida Kahlos, o movimento artístico-criativo-diferencial no
trabalho das artesãs. Também aqui começamos a perceber outras mulheres rurais no
trabalho de si, na re-criação do seu artesanato: essa atividade das mãos que tecem em
conjunto a si mesmo e o outro em relação, para além, portanto, de uma certa noção de arte
que institui a contemplação e o conformismo, as marcas de classe e a cultura do gosto e se
naturaliza enquanto mera representação da barbárie.
Para essa imagem artesanal de uma mulher rural impedida de circular no espaço
público por uma moral excludente que lhe atribuía conotações de perdição, prostituição,
temos uma outra mulher rural que afronta esse fantasma, circula em diversos espaços,
inclusive procurando modificar seus sentidos moralistas e falsamente democráticos,
politizando o cotidiano e a própria política.
Para a imagem memorizada, como norma a ser seguida, de que dinheiro não era
coisa de mulher e sim de homem, de que quem, do seu meio, negociasse era mal vista, de
que lugar da mulher era na cozinha, no lar, somente cuidando dos afazeres domésticos e das
funções consideradas reprodutoras, temos, assim, uma outra imagem em movimento dessas
mulheres afirmando-se como produtoras, com capacidade de comercializar, gerenciar,
inclusive de forma diferenciada, seu empreendimento.
Para uma mulher rural vista como isolada, atrasada, alienada, por vezes como sexo
frágil, sem capacidade de decidir, passiva, indefesa, sem direitos, sem existência enquanto
trabalhadora, emergem mulheres rurais articuladas com diversos atores-forças locais,
regionais, globais; que buscam estudar, cientes das relações entre saber e poder; que lutam
por seus direitos, inclusive como trabalhadoras, no sentido de serem reconhecidas como tal
em suas diversas funções, em sua outra configuração de trabalhadoras rurais.
Foi com Maria de Lourdes Conceição Santos, de Inhambupe, que aprendemos a
olhar de outra forma as mulheres de fibras. Dela ouvimos: “eu não sei ler nem escrever,
mas sei a arte de sobreviver47”. Foi buscando a arte da sobrevivência que encontramos a
escrita do corpo dessas mulheres, nas suas trilhas os signos da arte que, como nos alerta
47
Ouvimos tal fala de dona Maria de Lourdes Conceição Santos em Inhambupe – BA, em setembro de 2006,
durante um dos encontros preparatórios para o I Fórum de cultura microrregional – Criatividade popular e
transformação social - que o Núcleo de Estudos da Subalternidade (NUES), do qual sou vice-coordenadora,
realizou na Universidade do Estado da Bahia (UNEB) – Campus II – Alagoinhas- BA, em dezembro de 2006.
176
48
Cf. DELEUZE, Gilles. Proust e os signos.
49
GUÉRIN, Isabelle. Op cit., p.16-23.
177
50
OLIVEIRA, Adriana Lucinda de. A trajetória de empoderamento de mulheres na economia solidária, p.
157-177.
178
fazem, o modificam, inventando, com isso, um outro mundo, uma outra paisagem subjetiva
e social. Movimentam-se nesse entremeio, nesses entre-pontos, o que configura uma
estratégia intervalar, assim como manifesta-se Silviano Santiago a respeito do discurso
ativo e revolucionário latino-americano: “artelatina manifesta também uma estratégia de
inserção. Não é origem nem fim, é entre51”. Ou seja, a arte latina é uma questão de entre(!)
Um entre-lugar, enquanto deslocamento, e uma busca de lugar, no sentido de uma certa
inclusão.
Trata-se daquela reinvenção de lugar configurada na fala de Gema Esmeraldo52,
quando relata essa necessidade de sair de casa que envolve as mulheres num assentamento
do MST, aquela necessidade de se construir um galpão para o desenvolvimento de outras
atividades que não as naturalizadas. Nessa linha, uma das fundadoras do MMTR-NE, Maria
Auxiliadora Cabral, afirma, quando perguntada pela maior conquista do movimento: “a
maior conquista foi tirar a mulher do fogão53”.
Também no MMTR de Santa Luz, nas Mulheres de Fibras, mulheres da Rede de
Produtoras, percebemos a busca de espaço para a sede, para negociar, para se encontrar,
busca de espaço de reconhecimento, que para nós, agora, lembrando do cenário do
artesanato consigo após trançarem com as outras fibras, vai se complexificando. Como diria
a personagem Conceição, do romance O Quinze de Rachel de Queiroz, vista por dona
Inácia como aquela que rejeita certos papéis destinados à mulher, se pondo a “torcer a
natureza”: “A gente precisa criar seu ambiente, para evitar seu excessivo desamparo... (...) é
preciso criar seu ambiente... (...) É tão complexo isso de ambiente...54”
A complexidade sugerida por Conceição nos ajuda a perceber os sentidos que fazem
funcionar esse tal ambiente no artesanato das mulheres de fibras. É desse lugar, intervalar,
que Valmira Lopes nos fala, que se trança, se pensa diante do confronto com forças
mediadoras que projetaram, em praça pública de uma cidade vizinha, a sua imagem no
Movimento: “eu nunca tinha me visto antes, só no espelho!”. Nesse sentido, a relação
51
Cf. SANTIAGO, Silviano. Artelatina (Manifesto). In: MARQUES, Reinaldo; VILELA, Lúcia Helena.
(Orgs.). Valores: arte, mercado, política, p. 59.
52
ESMERALDO, Gema Galgani. O MST sob o signo de uma economia subjetiva: o assentamento José
Lourenço.
53
CABRAL, Maria Auxiliadora Dias. Entrevista com Maria Auxiliadora Dias Cabral, uma das fundadoras do
Movimento de Trabalhadoras Rurais do Nordeste. Entrevista realizada por Allana Coutinho – 08/03/2007.
Disponível em: www.asabrasil.org.br/ Acesso em: 20/03/2007.
54
Cf. QUEIROZ, Rachel. O Quinze, p. 81-82.
179
especular era transferida do espelho de casa, para o telão em praça pública. Era aquela tela
que assumia a função de espelho, que, enquanto cópia, seria sempre um simulacro, como
também o é o original. É a imagem disforme do espelho que é mostrada na tela. Assim, a
tela teve essa função de mostrar o simulacro, a imagem daquela mulher em movimento, a
possibilidade de simulação, naturalizada, congelada pela força de um espelho diverso que
repete o mesmo. Espelho que quer deixar de ser espelho, espelho que só foi possível em
outra tela que ressaltava o movimento e que permitia a relação deslocada consigo já
deslocando-se.
Por isso a admiração de Valmira Lopes. É como se ela tivesse dito: eu nunca tinha
me visto antes como possibilidade de ser outra, de movimentar-me, de transformar-me, de
ver-me transformada, reinventada. Nesse sentido, nunca tinha se visto antes, porque o antes
apontava para o mesmo. E o sujeito Valmira Lopes, que se expressa nessa frase-constatação
de vida, é o sujeito como subjetivação, movimento. Por isso, mais uma vez repito, esta
nunca tinha se visto antes, pois só via antes o mesmo, o inerte, a cópia ignorada na sua
diferença, o espelho sem sua função de espelho. A relação especular só pôde ser ativada
diante da imagem que ressaltava o movimento, visto que somente assim, com o
movimento, poderia haver o deslocamento para a configuração do si, e, com isso, somente
com o movimento, repito, poderia se ver não o ser, mas o sendo, o vir a ser, o devir.
Nesse ponto, talvez pudéssemos insistir na pergunta que ecoa: que lições podemos
selecionar no artesanato de Mulheres de Fibras? De qual matéria prima elas se apoderam?
De quais meios de produção? Nessa economia cultural, qual a mais-valia simbólica que
queremos juntamente com elas enfatizar? O tempo da segunda-feira, o espaço da
associação, como lugar-momento de fazer o artesanato, lugar saudável, de amparo e auto-
sustentabilidade, onde, para além de se pensar na geração de renda, no trabalho estipulado,
se troca conversa com as outras, consigo, é símbolo do espaço-tempo subjetivo, tão
necessário, que as Mulheres de Fibras nos ensinam. Espaço–tempo subjetivo que se
configura como ponto deslocado de emergência delas próprias, apropriação das fibras
discursivas que as constituem, ponto de acabamento do artefato criativo da vida como obra
de arte, ponto singular desse artesanato de si.
No final da minha visita elas ainda fizeram questão de me lembrar-retificar,
dizendo: “o nome do grupo é Mulheres de Fibra! Por que nós somos fortes, nós podemos!”
180
Bem, essa lição nós já tínhamos aprendido, ela se (des)embaraça na escrita de si dessas
mulheres, na sua poética, como ponto de entrada e de saída desse artesanato nos fazendo o
tempo todo pensar: Mulheres de Fibra(!): de personagens conceituais a sujeitos concretos
nos convidando a assumir e a partilhar essa arte de tecer um outro sentido para a potência
de criar!
181
CONCLUSÃO
teórico-práticas, não relação com outras mulheres, com outros feminismos, na exclusão de
outros saberes, do movimento fora do Movimento, de outras vozes, outras epistemologias
evitando a tensão ativa, e, logo, outros acontecimentos.
Alerta-nos para o perigo da coronela. O perigo da mesma coronela sob diversas
capas. A liderança masculinizada, a militar da linguagem, a coronela do conhecimento, a
generóloga hierarquizando suas subalternas, a matriarca capitalista, a patroa severa de si
mesma, a poderosa que empodera as sem poder, a capacitada que capacita as incapazes. A
repetição de um poder reativo, dominador-anulador-explorador de outras mulheres, de uma
imagem da matriarca, na linha do patriarca, que tanto é combatida por essas próprias
mulheres.
Mas, acima de tudo, Rachel de Queiroz nos ensinou a lutar contra as forças
patriarcais, militares. Deu-nos o antídoto, nos ensinou que é possível reinventarmo-nos.
Suas armas são exibidas: a literatura, a linguagem, a escrita. Ainda que estas sejam, por
vezes, vistas sem potencial de transformação prático, basta ampliar seus sentidos, observar
o movimento textual dessas mulheres para percebermos o quanto elas se fazem presentes:
são modos de desconstruir, de ressignificar as práticas institucionais, a realidade semiótico-
discursiva, a memória prescrita, o sujeito (feminino) demarcado.
Por isso, quando ouvimos de Rachel de Queiroz: “minhas mulheres são danadas,
não são? Talvez seja ressentimento do que não sou e gostaria de ser”, é como se, no seu
estilo controverso, na contradição discursiva do sujeito, isso funcionasse como um convite
para percebermos seu intertexto, para melhor analisarmos seu texto-vida, para percebermos
o grau de liberdade, de domínio de si que esta se exigia. A vazão disso na sua força criativa.
Força que nos ensinou a suspender os sentidos e visualizar também a possibilidade de uma
coronela ativa, aquela que busca, contra todas as forças, a liberdade, que luta contra as
forças que dominam, que busca dominar o domínio.
Nesse sentido, com Rachel de Queiroz, pensamos em estratégias. Por exemplo, sua
estratégia de adentramento no campo das letras, de reconhecimento como escritora,
estratégia que, por vezes, joga com a inversão, mas também combate o essencialismo
feminino, a escrita típica feminina nos deixando vê-la como produção. Suas estratégias nos
fazem pensar, como já dissemos, no perigo reativo que as circunda, mas também na
potência que engendram. Fazem-nos pensar em outras estratégias, as das mulheres aqui
184
reunidas. As estratégias dos núcleos de estudos sobre mulheres, das teóricas feministas
inserindo na cena científica questões antes relegadas, a estratégia de produção de um saber
diferencial, de investimento em ensino, extensão e pesquisa nesse campo, abrindo uma
outra tradição, diferencial, na academia. Estratégia primeira do NEIM em investimento em
um mestrado e doutorado no País, na área de estudos de gênero e seus correlatos. Estratégia
de outra formação para pesquisadoras(es) sobre o assunto e de publicização das pesquisas
na Bahia através do seu centro de documentação. Estratégia de articulação dessas
pesquisadoras do Norte e Nordeste, através da REDOR, como forma de romper com o
isolamento que as abatia, de garantir outros saberes e uma interlocução com os centros do
sul e do sudeste. Modos de inserção, de reconhecimento, de visibilidade, de diferenciação.
Estratégia de criar-potencializar movimentos organizados, como o das trabalhadoras
rurais, a fim de se garantir os direitos mais básicos, a fim de que sejam consideradas pela
Constituição brasileira, pelo poder público brasileiro, como gente, como cidadãs.
Campanhas estratégicas para isso, marchas, mobilizações. Criações de cooperativas, de
rede de produtoras com o propósito não só de serem inseridas no mercado, de competir com
o capital patriarcal que as excluía do mundo da produção, do exército de reserva, mas como
forma de experimentar, solicitar, vivenciar, um mercado diferencial, um mundo mais
solidário, mais eqüitativo.
As mulheres trabalhadoras rurais de Santa Luz criam o grupo Mulheres de Fibra,
criam o artesanato, criam artimanhas para lidar com a vigilância militar dos maridos,
assumem o jogo como estratégia-arte da sobrevivência. Nas suas atividades de
multiplicação rizomática com outras mulheres da comunidade, jogam com o sentido do
“papel” prescrito para elas e esperado pelos maridos, ensinando, estimulando outras
funções para as mesmas, insuflando uma abertura. Jogam para sair de casa, para
conseguirem se desligar do fogão, para conseguirem, taticamente, que aquela função,
naturalizada para elas, cozinhar, fosse também compartilhada pelos companheiros. Usam
da ironia, recorrem à afronta, quando percebem a importância da escola, quando percebem
que podem continuar ou voltar a estudar.
Fazem parcerias, acordos, não só entre elas, mas principalmente com os vários
movimentos de mulheres, grupos, núcleos, secretarias... de modo que a estratégia da
articulação force outras estruturas a democratizarem mais os seus espaços, seus
185
essas mulheres relemos Rachel de Queiroz, também a reinventamos, não nos ausentando da
cena. Reaprendemos e desaprendemos com elas.
Com essas mulheres de fibras aprendemos que o devir é uma produção coletiva, que
exige uma maquinaria, um artesanato, uma desnaturalização, uma anarquia sígnica. Logo,
aprendemos a percebê-las enquanto texto, artesanato, trançado e retrançado, produção,
subjetivação. E, enquanto tal, percebemos sua marca genérico-sexual revelando o ativo
princípio de identificação simbólico-cultural, revelando as marcas de uma hegemonização
cultural masculina dominante, os traços desse operativo de violência sociomasculino na
linguagem, nas normas culturais, jogando por terra qualquer idéia de neutralidade e de
transcendência. Percebemos, na poética dessas mulheres, as marcas de uma feminização da
escrita extravasando a retenção da significação masculina, desregulando a tese do discurso
majoritário.
Nesse sentido, observando suas camadas textuais, percebemos os traços se
entretecendo, os apagamentos, as rasuras, a subjetivação: mulheres na academia,
conquistando espaços, provocando aberturas nesse âmbito, encenando uma outra imagem
para a intelectual, mulheres sendo reconhecidas como teóricas, como militantes, como
pensantes, mulheres saindo de casa, ganhando o espaço público, sendo percebidas como
produtoras, como trabalhadoras, com direitos a direitos, mulheres negociando, em auto-
gestão, liderando processos cooperativos, incitando outros modos de produção, outros
modos de relações sociais, mulheres perdendo o medo, mulheres sendo ouvidas,
ensinando, afetando outros, selecionando saberes, aprendendo com outras... Diferentes
mulheres em movimentos de trocas subjetivas, reinventando a si e a outras(os).
Percebemos, assim, mulheres se apropriando das fibras discursivas que as
constituem, tomando pé do seu destino ou trazendo à mão, no corpo, as armas, os
conhecimentos que lhes interessam, internalizando uma verdade que lhes faz bem, que lhes
restitui a auto-estima. Dessa forma, percebemos, acima de tudo, a visão de si, a imagem que
constroem para si: “Somos mulheres de fibra, porque somos fortes, nós podemos!”
Imagem-linguagem que se transfigura nos atos, nos movimentos, no corpo, como outros
modos de fala, como linhas intertextuais.
Por conseguinte, observamos a restituição dessa potência do-no sujeito feminino.
Potência que foi e é apagada, recalcada pelas forças militares que podem se diferenciar:
187
1
Cf. DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica, p. 163.
188
Uma politização da política apontando para a mais-valia simbólica nessa economia cultural,
para a matéria-prima subjetiva como ponto primaz dessa política, como necessidade de um
devir revolucionário nas pessoas. Inclusive para se pensar de outra forma a autonomia.
A política como “a luta das forças imperceptíveis, forças em nós e em nossa volta,
forças em conflito contínuo”2, nos diz Elizabeth Grosz; a política como a liberdade, como
nos sugere Hannah Arendt3; como possibilidade de lidar com as forças de dominação, as
forças militares, de uma liberdade falsa, contra as imagens projetadas para a mulher, e
também para o homem, por um mercado global homogeneizador; possibilidade de lidar
com as forças de dominação, transformando o espaço de domínio próprio, em um espaço de
relação consigo, um espaço próprio para conter o domínio, que de formas sorrateiras busca
vetar o devir matriarcal em diferença.
Isto também nos levou a pensar na demanda da mediação, na necessidade de nos
percebermos em relação. O artesanato nos alerta para isso, as cenas dos diversos trançados
nos convocam para isso: percebermo-nos no artesanato, percebermo-nos como produção e
produtor, sujeito e artefato. Percebermo-nos, nessa inter-relação subjetiva, que podemos
ajudar a fazer algo por nós mesmos, que somos marcados por forças bem próximas e bem
distantes, forças de organismos internacionais, forças internalizadas no modo que por vezes
usamos para combatê-las, forças imperceptíveis. O sentido de mediação que emergiu nesse
encontro-confronto de mulheres apontou para isso: o mediador não como aquele que,
distanciadamente, abre espaço para o outro.
No caso do NEIM, o mediador que, ao falar de outras mulheres, em certo sentido
também fala de si. No MOC e Mulieribus fica mais perceptível a troca subjetiva com o
MMTR, o aprendizado mútuo, o processo subjetivo antropofágico. Da relação com os
colegas de trabalho, com os companheiros, os maridos, fica mais perceptível o apoio, a não
declarada aprendizagem, mas a mobilidade do discurso, do corpo, forçado, por partículas
lançadas, a um “revirar-se.” Revirar-se de um texto, como de Rachel de Queiroz, que,
antifeminista, inventa personagens (para si) de tamanha abertura para épocas e contextos.
Rachel de Queiroz que, aqui, também vira mediadora. Tudo isso, é bom lembrar, com
limitações, ritmos e graus diversos, em um complexo de resistências.
2
Cf. GROSZ, Elizabeth. Futuros feministas ou o futuro do pensamento. Labrys: Estudos Feministas/Études
Feministes. n.1-2, jul.-dez. 2002. ( http://www.unb.br/ih/his/gefem) Acesso em: 15 de junho de 2006.
3
Cf. ARENDT, Hannah. O que é política?, p. 38.
189
4
Cf. CERTEAU, Michel de A invenção do cotidiano: artes de fazer, p. 242.
5
Cf. GROSZ, Elizabeth. Op cit.
6
Cf. MORAES, Eliane Robert. A palavra insensata, p. 49.
190
7
Cf. SANTIAGO, Silviano. Artelatina (Manifesto). In: MARQUES, Reinaldo; VILELA, Lúcia Helena
(Orgs). Valores: arte, mercado, política, p. 58.
191
Esse é um trecho de uma das músicas que funciona, pelo fato de ser bastante
cantada, como um hino do MMTR. Hino que aqui pode ser estendido a essas outras
mulheres em movimentos. Hino que aponta para uma estratégia sinuosa, perfilando os
espinhos de um essencialismo, mas, que, observando a contranarrativa radical dessas
mulheres, funciona como potência anárquica, como enfrentamento da significação fixada
em-de suas vidas. Nesse sentido, ensinam-nos que, contra o signo patriarcal, contra uma
institucionalidade escriturística, rondando, se fixando, aprenderam, nas relações de forças,
na relação com os mediadores, a ter coragem de enfrentar o “ser mulher”, desconstruí-lo,
desmistificá-lo, desnaturalizá-lo, reivindicando reciprocidade, políticas públicas que as
contemplem, seus trabalhos, suas demandas, suas propostas, participando de esferas de
decisão, movimentando-se, liberando o devir, e com isso, uma outra possibilidade de
sociedade.
Contra os perigos dessa outra humanidade visualizada - enquanto desejo dessas
mulheres na linha-pensamento de Noemi, como potência de reinvenção, como grau zero da
escritura, sem divisões, demarcações -, não se tornar uma mera inversão da humanidade
patriarcal, não se tornar uma ilha de matriarcas, perdendo a possibilidade de devir ativo,
ensinam-nos a importância do cuidado de si, não no sentido de um retorno ao
individualismo, mas no sentido de uma outra modulação, guiada por esse parâmetro, na
relação com os outros.
Ensinam-nos a importância da relação consigo, no espaço-tempo subjetivo, de
dobrar a linha do fora, no espaço-tempo do artesanato de si. A importância da politização
constante da subjetividade, da radicalidade da autocrítica, do distanciamento ativo, da
releitura constante de si, enquanto livro-caderno de notas, de memorizações, de
esquecimentos, de reescritas, enquanto possibilidade de, afirmando o aqui e o agora, dispor
do futuro e devir matriarcal em diferença.
Por fim, depois desse encontro, um desejo-grito meu: mulheres de fibra(s), desuni-
vos, distribuí-vos!
192
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