Lições de Abismo Gustavo Corção
Lições de Abismo Gustavo Corção
Lições de Abismo Gustavo Corção
Gustavo Corção
16ª edição — julho de 2018 — CEDET
Copyright © 2018 Herdeiros de Gustavo Corção
1ª edição: Lições de abismo. Agir, 1950.
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Editor:
omaz Perroni
Capa & Diagramação:
Gabriela Haeitmann
Preparação do texto:
Gabriel Buonpater
Ilustração da capa:
Oswaldo Goeldi
Posfácio:
Roberto Mallet
Conselho Editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo
F C
Corção, Gustavo.
Lições de abismo / Gustavo Corção — Campinas, SP: VIDE Editorial, 2018.
ISBN: 978-85-9507-034-9
1. Literatura brasileira — Romance.
I. Autor II. Título.
CDD — B869.93
Í C S
1. Literatura brasileira — Romance — B869.93
I. A visita anunciada
II. No consultório do Dr. Aquiles
III. Ivan Ilitch, vendo que ia morrer, desesperava-se
IV. Mortes antigas
V. Entre Goethe e Voltaire
VI. Estarei descobrindo a imortalidade?
VII. Quanto mais demonstrarem, menos creio
VIII. O Pedreira está acabando o livro
IX. Life is but a walking shadow
X. Catarina, onde você botou minha infância?
XI. O encontro no Campo de Santana
XII. Luciana existe
XIII. Num Adriático de sonho
S P: O B
I. As minhas rosas
II. As rosas do general
III. O mundo atomizado
IV. Cômicos equívocos
V. Ciúmes mortos
VI. A moça do café em pé, de marré deci
VII. Merry Christmas!
VIII. Os meus Júlio Verne
IX. No sangue
X. Os brincos de Gertrud
T P: V T
N R
P P: K
I
11 de novembro.
Contam que Rilke, depois dos primeiros versos que o vento lhe ditou
nas altas penedias de Duíno, viveu doze anos com aquele germe, em
viagens, em mudanças, em desperdícios, em guerras, até o momento
de realizar, em quatro dias, como quem morre, as suas elegias
perfeitas. Não será sempre assim? Não será a própria vida uma longa e
desarrumada atividade dos bastidores para uma fugaz apoteose? Estou
sozinho. Dois ou três meses passam depressa; e nesta quadra do ano,
se minha ausência for notada, hão de supor que fui às águas. Eunice,
creio que está em São Paulo, Raul já não me escreve há muito tempo, e
pelo que dizia a última carta não tem projetos de sair de Belo
Horizonte. Receberá a notícia.
Mas não quero deter-me no que pensarão e sentirão minha ex-esposa
e meu ex- lho. Agora estou sozinho. A casa, evidentemente, é grande
demais; mas isto me permitirá um isolamento mais perfeito. Fico no
quarto de Raul. Trouxe uma poltrona, algumas estantes de livros, a
mesa de trabalho, e a pequena jarra de opalina em que três ou quatro
rosas sempre me farão companhia.
Desde menino eu assistia a essa luta surda entre o homem que espera
e a mulher que se atrasa. Meu pai e minha mãe saíam todas as noites, e
todas as noites eu presenciava a mesma cena: meu pai andando na
sala, de um lado para outro, dando estalos com os dedos:
— É da idade…
Disse eu, há pouco, que está nela, na mulher, em algo de seu segredo
profundo, a necessidade de fazer-se esperada. Por outro lado, porém,
sou forçado a reconhecer que o problema se complica e se arma em
paradoxo. Se é verdade que a mulher é versátil, é também evidente — e
basta observar a mãe de família cheia de lhos ou a freira
enclausurada — que a mulher é um gigante de estabilidade. Em regra
geral é ela quem espera. Na maioria das situações é ela quem
permanece numa espera brutal, que passa as nossas medidas, que
escapa à nossa imaginação.
Parsifal, o moço perdido, que não sabe quem é, deixa-se enlear pelas
mulheres- ores:
Não ouvia ele o seu grito doloroso quando o menino se perdia longe,
muito longe, dentro da noite? Ah! e o riso, o grande riso de amor
quando en m o achava, a venturosa! Não lhe faziam medo os seus
beijos? Mas um dia Parsifal não voltou. Ela esperou dias e noites, até
que tudo se extinguisse, que o queixume se calasse, que o sofrimento a
corroesse: até o desejo da morte silenciosa. E então a dor partiu-lhe o
coração… “Leid das Herz”. E Herzeleide morreu. “Und — Herzeleide
— Starb”.
Lá estão nos armários os dorsos imóveis das dez mil testemunhas que
ouvi. Que me dissestes vós, ó gregos? Que me contastes vós, ó homens
inquietos de meu tempo? Corro os olhos: lá vejo um título que me traz
à memória uma análise austera, com cifras, com neologismos, leis,
teoremas, corolários, para me provar que o homem vive de pão; acolá,
duma lombada com letras de ouro, sai uma voz a dizer-me que não só
do pão vive o homem. Economistas, profetas, historiadores, lósofos
que continuam a dizer que viram mais longe, porque subiram em
ombros de gigante, e lósofos que se obstinam em dizer que mais
longe chegaram porque das bagagens antigas se alijaram; humoristas
que choram escondidos, poetas que escondidos se riem; hagiógrafos,
exegetas, hermeneutas, psicólogos, ensaístas; vozes pausadas, vozes
ardentes, vozes minuciosas, vozes entrecortadas; quem de vós, quem
se eu gritar me responderá, ó aprendizes angélicos!? Dez anos.
Debruçado. E agora, quando ainda me curvo sobre um amarelado in-
fólio de lendas esquecidas — “over many a quaint and curious volume
of forgotten lore” — ouço o corvo a dizer-me “never more”.
II
13 de novembro.
— Três meses atrás eu pesava 58, que já é pouco para a minha altura.
Tenho um metro e setenta e oito.
— Já teve impaludismo?
— Não, senhor.
— E então, doutor?
— Bobeou…
— Não. Nunca pude realizar esse desejo. Pode ser que um dia… se
esse exame de sangue me der licença.
— Não… isto é, para lhe falar com franqueza, eu não sei exatamente
o que sou. Fui educado em colégio de padres, era o melhor aluno de
catecismo e gostava de ajudar à missa. Os padres julgavam que eu
tivesse vocação; mas logo deixei o colégio, esfriou-me o fervor, e
depois… depois, a vida foi-me um atropelo constante. Casei-me cedo,
tive um lho, e cheguei onde estou, com este sangue, sem saber quem
sou e quem é Deus. Mas por que pergunta isto? Quererá o senhor
receitar-me um milagre? Quererá dizer-me que meu caso está nas
mãos de Deus, e que só Ele poderá salvar-me? Será para entrar neste
assunto, para facilitar a conversa, que o senhor tem ali na parede o
cruci xo, espécie de lugar-comum silencioso, que prepara os outros
inevitáveis lugares-comuns eloqüentes?
— Menos de um ano?
— É por isso que lhe pergunto, doutor, e que lhe peço a verdade, pelo
amor de Deus…
Seus olhos eram quase duros; seus bifocais mais cientí cos do que
nunca. Mas logo mudou-se a expressão de seu rosto, e, levantando-se
com uma agilidade que eu não lhe supunha, trouxe-me um copo
d’água em que pingara algumas gotas.
— Está melhor?
— Há perigo de contágio?
— Nenhum.
— Ela quem?
— Quer dizer então que o senhor está vendo a tal coisa com a mesma
nitidez desta mesa e daquela balança?
— Exatamente.
— Bem. Então… não quero mais tomar o seu tempo. Lá fora estão
outras pessoas.
III
17 de novembro.
A mim mesmo, que tinha essas idéias, custava-me crer que aquilo
fosse o Ferraz. Parecia-me que havia um embuste, uma misti cação, e
que de repente íamos todos rir da farsa. Mas não; era ele mesmo, o
Ferraz, que ali estava morto e bem morto. Mais morto do que os
pregos do caixão, como diria Dickens.
Outra coisa que observei nesse enterro do Ferraz foi que as pessoas
vão ao defunto como a um juiz. Apresentam-se para serem julgadas
nesse estranho tribunal em que o magistrado ca imóvel e silencioso.
Ele não precisa acusar; os vivos se acusam. Os vivos esbarram na
evidência das omissões. Ainda ontem era possível uma palavra, um
gesto, um sorriso. Hoje é tarde; o defunto está ali para lembrar o que
poderíamos ter feito, e não zemos. E os vivos, que contam sempre
com a inde nida oportunidade, cam agora perplexos. Quereriam
dizer qualquer coisa, mas esbarram no obstinado mutismo do defunto.
Sim, é isto que me dói, e como dói! Há pessoas que falam quase
sempre de um modo caloroso, com indignação fácil e cólera pronta. A
qualquer injustiça cerram os punhos e desatam a generosa paixão dos
sangüíneos. Gosto de vê-los; mas em geral co alheio ao tom maior de
suas indignações. A mim o que mais fere, o que mais dói são os
equívocos que vejo no mundo. Essa é a minha triste dominante: uma
exasperação do senso do ridículo. E só quem já viveu essa experiência
é capaz de avaliar a dor aguda, penetrante, glacial, que
permanentemente me faz companhia. Falam de um inferno de fogo;
eu penso às vezes num inferno de gelo.
IV
20 de novembro.
Não falando dos muitos enterros e das muitas missas que não nos
tocam de perto, foram poucas as minhas experiências de morte. E a
primeira, justamente a morte de meu pai, foi uma experiência
frustrada. Não vi o corpo; e só muito mais tarde vim a conhecer, por
acaso, a história do jogo e do suicídio.
— E mamãe?
— Está com o Eduardo, mas ele não pode receber visitas… Não vi o
corpo; e a morte de meu pai, roubada de seu aparato visível, cou-me
com o sabor de uma escamoteação.
Fui à casa da família ver o morto, cumprir meu último dever, como
dizem; e mal acabava de fechar o portão ouço passos precipitados, e
vejo o cunhado, bom moço, descendo a escada com a face em
transtorno.
— Ele chegou!
V
28 de novembro.
Hoje a casa está vazia; o traço de luz ca rígido e imóvel até que o dia
o reduz a uma secundária e medíocre amarelidão. E eu co acordado,
esticado, olhando a fresta da porta. Às vezes apalpo as pernas, o peito
e, pensando no monstro líquido que me devora, sinto-me
in nitamente abandonado.
VI
30 de novembro.
Volto hoje ao nó que ontem não consegui desatar. O claro-escuro da
morte é agora o problema capital de minha vida, se vida se pode
chamar esse resto, esses quarenta dias que me concede a decomposição
de meu sangue. Mas o número de dias não importa; o que importa,
soberanamente, é resolver o cruciante problema. Pois, se não
conseguir resolvê-lo, a minha morte será tão casual, tão acidental,
como foi até agora minha vida. O câncer, na sua inconsciência, me
atira de angústia em angústia. Como Eunice, na inconsciência dela, me
jogava de a ição em a ição. Eu não serei autor de nada. Nada, nem
um minuto de minha vida, nem o minuto de minha morte, terão a
minha assinatura. E é isto que me parece intolerável!
Caio então em mim e corrijo, já com uma nota de respeito: não, ali
vai um homem. Esta agora é a visão essencial, com que se tecem os
silogismos, as frases grandiloqüentes, e as a rmações catedráticas. Mas
cuidado! cuidado, ó minh’alma. Não vês que essa visão não agüenta
uma certa xidez? Não vês que há nela não sei quê de irrequieto, de
misterioso, que a faz oscilar? Se não, consideremos. Ponha ali na
cadeira o bom Dr. Aquiles, que não sabe mentir sem modi car o corte
da boca. E pergunte-lhe se é lícito matar aquele homem para extrair
dele o seu baço perfeito, na hipótese de estar localizada nesse órgão a
minha enfermidade. Eu teria tanta coisa interessante que fazer e dizer,
se me dessem o baço do soldado! O Dr. Aquiles dirá logo que não é
lícito dispor da vida de um homem. Mas por quê? Pelo fato de ser
animal racional, bípede implume ou que outra de nição lhe atribuam?
Não. Basta dizer “uma vida de homem”, para que sintamos na alma
uma particular ressonância. A menos que ande no ar um vício
profundo, todos sabem que uma vida de homem é algo de sagrado.
Mas por quê? Procedamos com cautela, prestemos atenção, toda a
atenção às ressonâncias que as palavras despertam em nossa alma. Eu
disse há pouco: ali vai um homem. Mas essa realidade tem dois lados.
O indivíduo que agora dobra a esquina não é o homem-em-geral. É
um homem. Um. Resta saber que sentido tem este um. Se numérico, o
objeto de minha percepção entra nas estatísticas, e a de nição
emagrece. Mas se dou a um o sentido de único, de concreto, de
completo, de particular, de substancial, de excepcional, de separado, de
total, então a minha visão essencial se alarga e eu me surpreendo a
indagar: quem é aquele homem? E eu sei, e todo o mundo sabe, antes
de car possuído de delírio coletivista, que essa é a pergunta
fundamental que uma alma inteira, com leucemia ou tuberculose no
corpo, pode formular, quando vê na calçada fronteira um ser ereto,
que se move contra todas as recomendações de estabilidade mecânica,
e que às vezes, como aquele que vejo — agora um civil — ainda se
permite a fantasia de coçar a perna com o outro pé, enquanto os
braços no ar resolvem uma tríplice integral que restabelece o equilíbrio
comprometido, enquanto lá no alto dessa absurda torre de ossos e
carne o gajeiro vigilante dirige duas objetivas castanhas para a silhueta
de uma moça que passa… Ai que me perdi de novo! Escorreguei nas
impressões.
VII
1 de dezembro.
Que quer isto dizer? Terei eu um ceticismo que me leva a descrer das
operações da inteligência, e que pre ra a penumbra à claridade, como
parece que seja o gosto de um Heidegger, e mesmo de Kierkegaard?
Não. Não é bem essa a di culdade. Se realmente me repugna a
iluminação crua do cartesianismo, não me atraem as obscuridades dos
lósofos germânicos. Mas o fato é que não consigo vencer a distância
que me separa daquela hipótese tão cômoda e tão indicada para a
minha leucemia. Fico também frio diante da demonstração metafísica
onde se vê que o homem espiritualiza o que apreende pelo
conhecimento, e de onde se deduz que, sendo espiritual a apreensão,
espiritual será a potência, e espiritual será a própria alma, concluindo-
se daí a incorruptibilidade, e portanto a imortalidade.
VIII
3 de dezembro.
Naquele dia em que dei um soco na mesa e gritei para Eunice “estou
farto! vai-te embora!” o ar entrou em vibração. Em ondas concêntricas
evolou-se minha ira, saiu pela janela, como pássaro tonto, esbarrou ali
no muro, contornou acolá o tronco da amendoeira, e ganhou as
alturas. Continuam as moléculas o seu jogo, cada vez mais tênue, e
cada vez mais misturado com os outros movimentos, com os outros
acasos, até o dia, dentro de dez anos, de mil anos, em que um resto de
frêmito volte a passar, de leve, trazido por uma brisa do entardecer,
nos nos cabelos de uma jovem pensativa, que nunca, nunca poderá
saber adivinhar, que dentro daquela carícia do vento vem escondido o
último queixume, dinamizado, molecular, de um pobre coração
apaixonado.
Que cará das palavras que eu disse, com ternura ou com furor? Que
cará dos gemidos que escondi, dos gestos, dos passos, das idéias, dos
projetos… ah! que cará dos projetos que z? Pois convém notar que
eu z mais projetos na vida que o Pedreira no seu livro. Sonhei uma
ordenação dos capítulos, perdi-me em variantes, cancelei, retomei,
rasurei, emendei, corrigi, e agora? agora chego à tipogra a com as
mãos cheias de pó; ou ainda pior, a sobraçar com a circunspeção dos
doidos um invisível e imponderável manuscrito. Ou então, reduzo
tudo a três palavras de epitá o, que entrego ao marmorista, como o
insensato escritor que chegasse à editora, e com gestos misteriosos
tirasse do fundo do bolso dois centímetros de papel dobrado com a
palavra FIM.
Por que não posso trazer para a vida essa idéia, sem logo chegar ao
absurdo, ao heterogêneo, ao ridículo? Por que, na vida, esse
despotismo do acidental? Disse o mesmo Heidegger que o homem, em
qualquer situação, está sempre maduro para a morte. Eu, porém, o
contesto: a morte é sempre acidental, e colhe sempre a vida no meio. É
uma interrupção sem sentido. Compreendo que o lósofo queira
reduzir todo o problema do homem a um só absurdo, o da morte. Mas
na verdade são dois: o da vida e o da morte.
Não. Nem eu, com todo o meu câncer, poderei gabar-me de ter sido
infeliz. Pelo que dizem o poeta e o ensaísta, ainda é prematuro
qualquer julgamento; e assim como Príamo foi desventurado depois de
uma longa vida venturosa, pode acontecer comigo o contrário. Nesses
trinta ou quarenta dias poderei eu descobrir o segredo que autorize o
Dr. Aquiles a me passar no mesmo papel o atestado de óbito e o de
felicidade.
IX
6 de dezembro.
X
7 de dezembro.
Estava a mamãe nos seus onze anos, e ainda brincava com boneca,
quando tia Dulce se enamorara do lânguido Tancredo contra a
vontade dos pais, que o suspeitavam de ter mais caraminholas na
cabeça do que dinheiro no bolso. Corria à boca pequena que era
poeta; não podia dar bom marido. E efetivamente não deu, como se
viu muito mais tarde, embora por motivos outros, em que eram
inocentes as musas. Tancredo revelou-se o que naquele tempo se
chamava um traste. Grosseirão, indolente, cortejador de criadas, fez da
vida de tia Dulce o martírio, que cou estampado no seu rosto até o
dia em que eu, já nascido, já encarnado, já concretíssimo, comecei a
descon ar dos disparates que andavam nos corações da gente grande.
Mas naquele tempo eu não existia. Minha mãe brincava com boneca.
Se por hipótese alguém lhe gritasse ao ouvido o meu nome: José
Maria! José Maria! ela não teria nenhum sobressalto materno. Eu não
era. Nem havia necessidade que fosse. O ar do mundo não tinha o
menor frêmito que me denunciasse e que me anunciasse. Não havia
um papel caído no chão de que pudessem dizer: foi o José Maria. Não
havia um livro esquecido numa cadeira de que pudessem a rmar: é do
José Maria. Nada. Nada. Um nada branco, transparente, inocente,
indolor. Um não ser de que ninguém se poderia lastimar, de que
ninguém se poderia espantar… Espantava-me eu. Olhando para trás,
eu tinha vertigens. Eles não; aqueles personagens do tempo do
Império, por mais que olhassem para a frente, não sentiam nada que
me dissesse respeito. É claro que mamãe, brincando com boneca,
pensava nos lhos que teria; mas era nos lhos-em-geral que ela
pensava, e não em mim, José Maria, único no gênero, como lá diz o
Miguel Unamuno de si mesmo, e com muitíssima razão. Se o Tancredo
fosse efetivamente poeta, como suspeitavam meus avós, deduzindo o
estro das barbas frisadas do pelintra, ele poderia ter dito da mamãe o
que Michelet disse da futura mãe do Príncipe Condé: via-se no olhar
da moça um fulgor de Rocroy. No olhar manso de minha mãe,
Tancredo, poeta, não veria clarões de batalha; mas bem poderia
vislumbrar a lividez de meus ciúmes e de minha leucemia mielóide
aguda… Mas para isso era preciso, além da hipótese da poesia, uma
outra hipótese mais grandiosa: a de que houvesse no mundo uma
imperiosa necessidade que eu fosse. Mais tarde, quando perdi o senso
metafísico da infância, e me extraviei no mundo dos fenômenos,
pareceu-me que o universo era um maquinismo sem acasos. Cheguei a
pensar que já havia alguma coisa de mim na primitiva e ardente
nebulosa. Consignei a idéia em soneto. Era mister que fosse, antes de
ser. Estava na ordem do mundo, na obrigação da ordem do mundo,
que eu nascesse. Havia empenho, nas moléculas, nos átomos, nos
eléctrons, de se agruparem disciplinadamente no corpo do menino
que ia nascer no dia 13 de março, no m do século, durante a semana
santa.
Mas aos doze ou treze anos este determinismo ainda não me surgira e
hoje o que dele subsiste é cinza e confusão. Ficava-me então, como
hoje me ca, com agravo de angústia, esse sentimento de desamparo,
onde o meu nascimento tem qualquer coisa de inaugural, de
imprevisto, de gratuito, que muito mais ainda do que a idéia de morte
me deixa a consciência boquiaberta.
A morte dos mais velhos — tia Dulce, mamãe, papai, tio Afonso —
amortece muito em nós essa idéia de ter surgido quando já ia em meio
essa tumultuosa conversação, que é a história do homem. Lembro-me
da a ição em que quei quando vi fecharem-se os olhos da última
testemunha de minha infância, a velha Catarina, que criara a mamãe, e
que se obstinava em sobreviver. Morreu com oitenta e sete anos,
velhinha, sequinha, e eu me achei despegado de tudo o que cara para
trás. Nunca me senti tão adulto, e tão só.
Naquele tempo eu não sabia (juro que não sabia!) que estava dentro
dela um mundo imenso, um mundo de prodígios — um mundo que
não era este mundo — em que eu continuava criança a correr numa
lembrança inextinguível. Um mundo fora e dentro deste mundo.
Andando pela casa. Varrendo. Indo e vindo. Familiar. Ao meu alcance.
Catarina! Eu chamava, e vinha um mundo. E atrás, um mundo ainda
maior! O mundo anterior; em que eu não fui. O mundo em que eu não
era…
XI
9 de dezembro.
Tendo acordado hoje um pouco mais bem disposto, não sei por quê,
resolvi dar um pulo ao Ministério da Guerra, onde está um papel, há
mais de mês, à espera de minha assinatura. Tomei por engano um
bonde que me deixou na rua Visconde do Rio Branco, e achei-
-me diante de toda a largura do Campo de Santana. Como estivesse
fresca a manhã, resolvi vencer a pé a distância que me separava do
ministério. E entrei no jardim. Ia pensando mais na maçada do papel
estampilhado do que nas árvores e na relva; mas logo aos primeiros
passos, libertado da confusão da rua e do susto dos veículos, a paz do
jardim me envolveu. Retardei a marcha. Respirei com prazer. E decidi
comigo mesmo tomar férias de meus cuidados naquela curta travessia.
Concluí que era bom ter um jardim no trajeto da burocracia. Todos os
ministérios deviam ser assim, cercados de bosques, para que a alma se
orvalhasse antes de chegar ao deserto de papel. Nos próprios
corredores das repartições — se me dessem uma pasta por um mês —
eu mandaria espalhar avenças e samambaias em vasos rústicos, com
cheiro de terra.
Olhei então para as curvas. Subi com os olhos por um tronco. Dividi
a atenção pelos galhos. Perdi-me nas folhas inumeráveis. E a árvore, de
repente, levantou-se diante de mim como um bizarro monstro imóvel
e gesticulante. Saía da terra, do chão, à beira do caminho, para a rmar
uma nova unidade. Separava-se do chão, das coisas; mas separava-se
mal, não logrando disfarçar a nodosa humilhação das raízes, e a
caprichosa leviandade das ramas com que o vento brincava. Ainda
estava à mercê da terra e do céu, pesadamente encarcerada, levemente
submetida.
Mal dei conta da tese nacionalista que o meu homem com tanto
ardor sustentava. Já tenho observado que os bêbedos são quase sempre
nacionalistas. Não sei por quê. No momento, aliás, o problema do
petróleo pareceu-me insigni cante. O que me prendia toda a atenção
era o choque, o susto, a admiração de ver, de repente, num relance, a
espantosa duplicação do que eu acabara de ver com os olhos fechados.
Era o espetáculo daquela coisa, a mais separada, a mais arrancada, a
mais desgarrada, a mais terrivelmente isolada do mundo, era um eu,
um outro eu, um não-eu que era um eu e que, por mais tonto que
estivesse, levava atrás de si, de arrastão, um universo vassalo.
XII
11 de dezembro.
XIII
12 de dezembro.
Onde estou? Que lugar é este onde cheguei? Que tarde quieta e única
é esta, dourada no céu e verde no mar? Estamos chegando. Passo a
passo, com extrema fadiga, aproximo-me da beira do abismo. Estou só.
O mundo cou para trás. O vento trouxe ainda pedaços do mundo,
notícias soltas e rasgadas que dançam no ar. Ouço apenas o bulício, o
frêmito do mundo efervescente dos vivos, que cou para trás. Os
pedaços rasgados que o vento carrega colam-se às penedias do basalto
úmido; e eu leio as últimas notícias truncadas. Dizem que há uma
guerra; que há incêndios; que moços caem como folhas; que
ministérios se reúnem; que exércitos recuam. Há produtos
farmacêuticos que anunciam a felicidade. Há sorrisos de aluguel
impressos nos cartazes do mundo.
Le roi est mort, vive le roi: verdade para os tronos e para as jarras de
opalina. Desde que me instalei neste planeta fechado, com cinco
metros de diâmetro, as rosas têm passado como passam as dinastias,
os ponti cados e os regimes, nesse outro vaso maior, mais rústico e
confuso, que parece estar a um canto do universo, esquecido dos
deuses.
Ah! a mais bela das belas adormecidas não tem movimento de braço
que se encurva como asa de ânfora, não tem suavidade de colo que
suspende num arfar de surpresa feliz a oscilação monótona do sono,
não tem delicadezas de pálpebras maravilhadas que descerram o
segredo das corolas azuis, não tem as ousadias, o pudor, as harmonias
destas minhas silenciosas dançarinas! Imagina, ó minh’alma, um rosto
amado que levasse doze horas a desatar um único sorriso, para depois
morrer. E o que me confunde, nessa dança das rosas, e nesse ritmo
fora de nosso ritmo — como se o comandasse lá do alto um coração
gigante, metrônomo das estrelas e das rosas — o que me espanta,
deixando-me perdido em cogitações sem o, é a obscuridade, a
autonomia, a gratuidade desse espetáculo sem espectador.
II
16 de dezembro.
III
18 de dezembro.
Qual dos dois será pior, o egoísmo que se isola ou o egoísmo que se
congrega? É difícil decidir. Será pior aquele de que o mundo se cansou;
será melhor aquele de cujos incômodos o mundo se esqueceu. E assim
vamos, como o viajante sem cabine, que passa a noite na ponta escassa
de um banco a jogar com sua anatomia, a mudar de posição,
encontrando um fugaz alívio nas mesmas atitudes que já lhe deram
cãibras. E assim vamos, de contorção em contorção, de alívio em
alívio, e o que ainda é pior, de entusiasmo em entusiasmo.
IV
19 de dezembro.
Minha janela é um camarote; a sala do ministro, no palacete fronteiro,
um teatro. Essa é a impressão que me dão os cavalheiros e as damas
que daqui observo. Eles estão representando. Cada um obedece à
seqüência de uma peça de sua própria invenção; cada um evolui, anda,
ri, gesticula e fala, de acordo com as secretas indicações de um ponto
interior. Cada um fabricou para si mesmo uma personalidade, e assim
já não admira que seja tão insípida a peça e tão ridícula a sua
presunção à harmonia.
O caso de Mme. Bovary, a meu ver, foi simpli cado demais por seu
autor. A personalidade de empréstimo nunca tem a coerência, a
harmonia que se vê na personagem de Flaubert. Poderá ter xidez, isso
sim, mas uma xidez desconjuntada, heterogênea, que a aproxima do
autômato. Lembro-me aqui de umas páginas antigas que escrevi, numa
carta imaginária dirigida a Miguel, sobre a futilidade de Eunice,
quando a boa D. Alice, tentando defendê-la, dizia que ela era apenas
um pouco frívola.
Eis aí, Miguel, o que D. Alice acha pouco. E você? Sabe você o que é
isso, qual é a realidade dessa monstruosa deformação que merece
sorrisos de complacência e rápido perdão? Eu também não sabia, mas
hoje sei. E posso garantir-lhe que paguei bem caro esse conhecimento.
Conheci uma pobre moça que passou toda a vida, e muitos maus
pedaços, escorada num leitmotiv que viera provavelmente da
adolescência. Alguém, certo dia, em certa conjunção favorável de
astros, dissera: “Que bom gênio tem Fabrícia!” e desse dia em diante,
com a constância de uma vestal, Fabrícia guardara acesa essa divisa.
Fez questão de ser el a esse compromisso de acaso, conseguindo
mesmo, em certas situações mais difíceis, um verdadeiro heroísmo na
defesa do bom humor sistemático e de empréstimo. Lembro-me que
fui vê-la no dia em que o lho morreu atropelado. Chorava como toda
boa mãe, mas creio não me enganar muito se disser que vi, por detrás
das lágrimas honestas, um clarão que parecia telegrafar-me: “A vida é
assim; vou reagir, e vocês verão que bom gênio tem Fabrícia”.
Eu era um vivo, cuja alegria começava na sola dos pés. Tudo era bom.
Agora o universo envelheceu prodigiosamente, e se não me rio do
ridículo das estrelas, das nuvens, das árvores, é porque nem esse riso
encontro em mim.
E foi isso que fez de mim a futilidade, que D. Alice acha pouca coisa.
Foi isso que Eunice conseguiu fazer. Matou em mim o próprio desejo
de felicidade. Não sei se existe céu, mas inferno existe. Eu já estou no
inferno.
V
20 de dezembro.
Todos tinham pena da moça, mas eu pude veri car que ela não era
tão infeliz quanto supunham. Creio ter adivinhado que até se
comprazia no seu incômodo papel de tesouro.
Vê-se — eu via — essa aura que veste a mulher que passa e que lhe
empresta uma fabulosa imensidade. Eunice andando pelas ruas, não é
ela que anda, é a rua, é tudo. Passo de Copérnico a Ptolomeu, e xo
em Eunice imóvel o centro do universo.
Você não avalia, Miguel, os dias que tenho vivido com essa idéia a
trabalhar dentro de mim. Ainda ontem conversávamos sobre o caso da
Espanha. Você profetizava guerras e calamidades, e daí, deslizando,
das imposturas do General Franco, passamos a losofar sobre o
mistério da história e da vida. Nesse momento meti a mão no bolso.
Lembra-se? Não. Você decerto não se lembra; você não presta atenção
aos gestos insigni cantes; você não conhece o idioma dos gestos…
Pois é verdade, no momento exato em que você falava sobre o
universal anseio da fraternidade, eu meti a mão no bolso. E sabe você
o que tinha eu no bolso esquerdo do casaco, embrulhado em papel
cor-de-rosa? Uma chave duplicata do bureau de Eunice, que meia hora
antes fora buscar num chaveiro da Rua da Assembléia. Quer saber
mais? Quer que lhe diga as vezes que andei atrás dela nas ruas, como
um ladrão? Tudo isto é medonho, bem o sei. Poderia discutir comigo
mesmo, e provar por a + b que é a felicidade dela que estou assim
defendendo. Mas seria falso. E eu tenho certeza disto, porque nem
posso suportar a idéia de que alguém me visse, nos momentos em que
remexo as gavetas de Eunice à procura de um sinal. A você mesmo
não me atrevo a contar. Não. Há certos instantes em que a gente
precisa despedir a lembrança dos rostos antigos, para se sentir só,
muito só, e se permitir tudo.
Eis onde cheguei. E ela? Tem culpa de sua futilidade? Não sei. Todas
as relações humanas armam um problema moral, e nunca se conhece a
solução. O que sei é que sofro, enquanto ela passa risonha, atira para
trás os cabelos, e acende um cigarro com um jeito, com uma graça que
me leva ao paroxismo da irritação.
Creio ter dito que Eunice estava morta, e que seus movimentos são
puros re exos galvânicos. Não. Ainda não perdi as últimas esperanças.
Ainda ontem, com uma imprevista intensidade, senti-me inundado de
paz. Ela estava dormindo. Raul também. Eu andava de um lado para
outro, no escritório, mortalmente triste. Sentei-me no sofá, tentando
ler um livro. Como zesse calor, abri a janela, e logo entrou-me na sala
um aroma de jasmim. Um cão ladrou lá longe, no morro. A casa
dormia. Fechei os olhos e então… então, como num céu aberto, vi
nossa vida harmonizar-se. Teria sido exagero meu, mania de esmiuçar,
pesadelo. A vida estava diante de mim, oferecida. E a vida era Eunice.
O perfume de jasmim era Eunice. O céu aberto era Eunice. E nós
íamos andando, de mãos dadas, numa tarde tranqüila, por bairros
antigos onde meninas de tranças cantavam.
— Você tem alguma coisa? Está esquisito! Raul riu-se. O papai estava
esquisito. Eu ri amarelo, como pude. Eunice subiu para mudar o
vestido e no meio da escada declarou que não queria sair à noite, que
estava cansada. O jantar correu silencioso, apesar das tentativas de
Eunice para puxar conversa. Raul nos observava. Olhava ora um ora
outro. Parecia descon ado. Ou será cisma? Depois do jantar, enquanto
Eunice conversava com Raul, eu subi, dizendo que ia mudar a roupa.
Tinha uma idéia. Fechei-me em nosso quarto de dormir, e
cautelosamente, como um ladrão, abri a porta de comunicação,
fechando a do quarto dela, que dava para o corredor. Lá estava o
vestido escarlate, murcho, vazio. Onde se escondia o orvalho que
colhera andando quatro vezes a Avenida e a Rua do Ouvidor? Peguei-
o. Era levíssimo. Como é fraca a armadura delas! Levantei o vestido no
ar, de braços abertos, como um amoroso espantalho. Examinei-o.
Talvez guardasse algum sinal. Cheirei-o. Era o perfume de Eunice. E
mais nada. Nada.
— Esperem, disse eu, vamos dar nomes aos quatro lhos. O nome
ajuda a esclarecer o enunciado, Eunice, dê você quatro nomes para os
moços.
Eunice cou indecisa, como se fosse difícil achar quatro nomes, e por
m começou a dizer devagar os nossos nomes, como quem pisa com
cuidado, enquanto eu acompanhava o movimento de sua boca, de seus
olhos.
— José… Raul…
Então vejamos: Mário recebeu a terça parte… Não sei como agüentei
aquelas duas horas de serão familiar. Quem passasse na rua, e visse
pela janela a luz quente do abajur e as três guras debruçadas na mesa,
diria com seus botões, e talvez com inveja: ali está uma família feliz.
Agora estou calmo. Eunice e Raul subiram; estão dormindo. E eu estou
extraordinariamente calmo, andando no escritório, de um lado para
outro, devagar, amadurecendo as idéias. Pensam eles que sou eu o
enganado! Tristes fantoches, não sabem que são os meus bonecos,
ignoram que o meu olhar frio está lá do alto de uma lucarna a
examinar seus gestos. Aliás, nessas coisas não há muitas variações, por
mais que procurem inventar uma pobre novidade.
— Não… estou com sono… Na hora do almoço quis ainda certi car-
me: convidei Eunice para assistir a um lme na sessão da tarde. Eu
tinha hoje a tarde vaga; poderíamos até jantar na cidade.
Ah! ela vai telefonar para casa! Corri ao barbeiro que cava defronte
do edifício, e precipitei-me para o telefone. Disquei. Com imenso
alívio ouvi a voz de Maria. Ela disse: Alô! alô! alô! e vendo que
ninguém respondia, desligou. Mas eu tinha o número preso. Outra
grande invenção do século, a telefonia automática! Pus-me então a
falar com grande volubilidade, para que o o cial, que estava sentado à
espera do freguês, não descon asse. Eu falava com Eunice, uma Eunice
imaginária: “Mas lha, por que zeste isso comigo? Por quê?”. O o cial
pensava que era namoro. Olhava para mim apiedado, como quem diz:
“Está metido com saias, coitado!”.
— Moça eu não vi, mas no 402 tinha uma lá dentro, que deu um grito
quando o moço lhe deu o bilhete.
— Ora essa, o senhor estava aí a recitar poesias! Não é por nada, mas
o telefone do negócio não é para brincadeiras.
Ele estava de costas para mim, voltado para a janela. Por m, disse-
me:
VI
22 de dezembro.
Entrei no café e coloquei-me, como aspirante, atrás de um indivíduo
corpulento e suarento que já degustava a xícara arduamente
conquistada, exibindo no punho grosso um pesado bracelete de ouro,
e arqueando um pouco o tronco atlético, para não pingar café na
roupa de brim claro. Como tudo mudou! Antigamente o café era lugar
de passatempo vadio. Por um tostão alugava-se um camarote para o
espetáculo da rua, ou instalava-se por meia hora uma tertúlia literária.
Ofício de quê? Que nome terá esse ofício de car oito horas em pé a
distribuir xícaras com gesto de autômato? Creio que não tem nome.
Receio que não tenha nome. Antigamente todos os ofícios tinham
nome. A moça pobre seria costureira ou orista, e as meninas
cantadeiras da Rua Santa Alexandrina cantavam assim nas noites de
verão:
— Tussa! Respire… Porque é evidente que não irá longe. Seu rosto
ainda tem força e vivacidade, deixando adivinhar o que seria, se lhe
tivessem dado licença de viver. Mas o peito vazio, a cinturinha
quebrada, e os braços chupados, indicavam uma quebra da harmonia
do seu tipo, uma desa nação brutal que só a proximidade da morte é
capaz de explicar. E eu vejo, isto é, via lá no café, enquanto esperava
que me servissem, que a minha rosa trigueira não irá muito mais longe
do que suas irmãs de minha jarra. Quem poderá rmar-lhe a haste
frágil? A orista da Rua Gonçalves Dias, quando a or é propensa ao
desmaio, passa-lhe um arame que ca fazendo as vezes de saúde.
Quem poderá rmar aquele corpinho de menina condenada a servir
de croupier desse esquisito jogo com chas e louças? Deve ser bem
esquisita a sua visão das coisas e do mundo. Ali no seu balcão, no seu
plantão, ela serve… vejamos quantas xícaras. Calculemos: três ou
quatro por minuto, vezes sessenta, vezes sete ou oito, digamos sete. Dá
mil cento e oitenta; digamos mil. Ela serve mil fregueses por dia! À
primeira vista parece que esse ofício é bem feminino. Não há sempre,
nos quadros de nossa infância, uma gura de mulher debruçada sobre
um serviço de mesa, a cortar pão, a distribuir café e leite? O romântico
Werther extasia-se, como diante do mais belo espetáculo do mundo,
quando vê Carlota a distribuir o pão para as crianças.
Mas seriam três crianças. Quatro. Digamos dez, o que ainda é muito
diferente. O número, quando passa certos limites, muda brutalmente a
natureza de tudo. Uma coisa é servir dez xícaras de café, e outra,
essencialmente diversa, é servir mil. Uma coisa é andar em volta de
uma mesa com um bule, e outra, in nitamente outra, é estar atrás de
uma pedra a ver chegarem desconhecidos, em ondas sucessivas. Serve-
se essa carreira, surge logo outra. Abate-se essa dúzia de inimigos que
aparecem na borda da trincheira, levanta-se logo do chão outra dúzia.
Dir-se-ia um assalto, uma abordagem renovada, de que tão exígua e
cansada tripulação já não dá conta. É verdade que esses piratas, que
aparecem aos oito, aos dez, na amurada do navio assaltado, são
benignos. Não exigem sangue, exigem café. Mas é tanto o café, e tão
freqüente a exigência — tão monótona, tão inexorável — que a
tripulação já não agüenta. No m é mesmo sangue que dão. É vida que
distribuem.
Tenho certeza disto. E por que não? Não é verdade que a gente vê no
rosto dos outros os traços das mais tênues paixões? Quando um amigo
se aborrece, ainda ligeiramente, não aparece logo no rosto o sinal de
sua contrariedade? Quando discorda, não se vê, antes mesmo das
palavras proferidas, o sinal da discordância? E assim vê-se a alegria,
vê-se a tristeza, vê-se o medo, vê-se a esperança. Vêem-se de cada
paixão a espécie, as subespécies, as variantes, as combinações. Quando
o Dr. Aquiles levantou um pouco o canto da boca, descobrindo a falha
do pré-molar, eu vi que ele estava mentindo; e quando Eunice, naquela
noite, me disse que tinha passado pela costureira, eu vi que estava
mentindo. Ah! a lucidez do ciumento! a penetração do olhar, a
rapidez, a exatidão com que interpreta a sombra que passa, o músculo
que se contrai, os cílios que tremem, as mãos em pânico que procuram
uma naturalidade nos cabelos… Um rosto tem mais ideogramas do
que a escrita chinesa. A questão é aprendê-los; mas quem colou grau,
como eu, nessa geogra a dos rostos, não se embaraça. Além disso, no
resto do corpo e não só no rosto, o homem é um semáforo eloqüente.
Quando eu vivia com Eunice, cheguei à perfeição de adivinhar-lhe
frases inteiras. Ela mexia-se na cadeira e eu sabia o que ia dizer.
Acertava às vezes na colocação das palavras dentro da frase. E logo
depois colhia, dessa experiência, a amarga recompensa de um tédio
mortal, quando acertava, quando adivinhava, porque então me parecia
que eu era o único vivo no meio de bonecos de corda.
VII
23 de dezembro.
Não digo que seja impossível uma alegria verdadeira, uma alegria de
criança, com um brinquedo truncado e pobre. Não. É claro que uma
alegria de criança pode nascer à toa; é claro que um pedaço
desconjuntado de celulóide pode fazer feliz uma criança; é claríssimo
que ainda não conseguiram secar, por mais que o tentem, as fontes
vivas da infância, as riquezas de um coração menino que com pouco
se contenta. Não. Continuem assim, por séculos e séculos, a enganar as
crianças e os pobres. Sempre haverá pobres; sempre haverá crianças.
Mas não é isso que mais me a ige. É também evidente que escolheram
o dia do nascimento de Jesus para in igir uma festiva humilhação à
pobreza. Basta pensar no Natal dos Pobres. As ruas se enchem de
miseráveis em las nos portões dos palácios. Se chove, ca ainda mais
perfeito o espetáculo. Mas não é isso, ó Dickens, que mais me dói.
Exijo uma outra alegria, apoiada sem dúvida nas coisas visíveis, no
celulóide se quiserem, porque os homens vivem de sinais visíveis. Mas
apoiada de leve, como convém às coisas do puro amor. Não é assim
que fazem os namorados quando guardam pequeninas lembranças?
Não seria melhor dar de presente pétalas de rosas, leves pétalas,
levíssimas hóstias de amizade perfeita? Chamou-me a atenção o
diálogo travado à porta de uma casa de brinquedos. A dama de azul,
majestosa e autoritária, discutia com o vendedor obsequioso, que já
dava mostras de impaciência. Passando de um para outro, ora nas
mãos pro ssionais do vendedor, ora nas mãos nas e cheias de anéis
da abastada freguesa, uma bonequinha preta de olho arregalado, e
com uma cestinha de bananas na cabeça, parecia alheia à discussão:
— É muito cara.
Quando eu passei, ele tentava pegar a chupeta caída nos trapos sujos
da mãe. Levava-a à boca, sem jeito, metendo os dedinhos nos lábios,
de onde corria uma saliva clara e inocente. A mãe, de braço estendido,
pedia uma esmola pelo amor de Deus. Seria mãe de verdade? Dizem
que se alugam crianças para mendigar. A mendiga é falsa. A criança é
falsa. A mãe é falsa. E dessa falsidade todo o mundo descon a.
A chupeta caía de novo e perdia-se no seio miserável. Nesse
momento, quando eu já me afastava, o menino olhou para mim. Seus
olhos pousaram em meus olhos. Sim, lá dos abismos de sua inocência
seus olhos subiram. E o menino sorriu. Para mim!
VIII
26 de dezembro.
Mas o presente de que até hoje me lembro é o da boa Dodô. Era uma
espécie de parenta pobre, mesmo sem ser parenta. Aparecia sempre
nos dias de festa. Há parentes pobres que se especializam em visitas
nos dias de a ição. Quando a casa está com suas hierarquias alteradas,
quando os orgulhosos estão amolecidos provisoriamente, chega então
a parenta pobre dessa melancólica espécie. O dia é dela; o clima de
desgosto é o seu ar habitual. Todos pressentem obscuramente que a
parenta pobre vem a ser parenta da doença, da desgraça e da morte.
Ela chega e se apodera das iniciativas. Instala um governo de
emergência, que dura enquanto houver telefonemas para a farmácia,
injeções, noites em claro, prognósticos sombrios.
— Você não faz idéia de como ele gostou, dizia mamãe mais tarde.
— Esse ele já tem… esse ele já tem… esse não, ele não tem.
— Adivinha o que é!
— Júlio Verne.
IX
29 de dezembro.
— Trinta contos de luvas! Não. Eu disse a ele: ca o dito por não dito,
nada feito. Trinta contos!
Ali estava, a meu lado, aquele rapaz, aquele desconhecido, com quem
meia hora antes eu cruzaria na rua, mal notando a ofuscante brancura
de seu terno panamá. Pois era dele, desse anônimo, desse homem-
qualquer que eu ia receber um bom meio litro de sangue universal e
jovem.
— Não, Alberto. Está tudo acabado entre nós. Não quero a sua
piedade e as suas explicações. Está tudo acabado! O invisível Alberto,
que eu imaginava de bigodinho negro e bem aparado, dizia com voz
conciliadora:
X
3 de janeiro.
— José Maria!
— Temos brincos magní cos, magní cos, o doutor poderá ver. Faça
o favor… Passei a uma outra sala pequena onde havia, debaixo de um
lustre complicado e luxuoso, uma mesa com tampo de cristal e um
tamborete forrado de veludo carmesim. Sentei-me. O meu homem,
que havia desaparecido atrás de um reposteiro, voltava pouco depois,
trazendo uma bandeja de jóias.
— Quanto custam?
— Aqui está o cheque. Cento e vinte mil. E aqui está o meu endereço
e a minha carteira de identidade.
— Não, é casa.
— Própria?
— Própria.
— O cial de marinha.
— Chegará a almirante.
Ora, foi nessa ocasião que descobri Eunice e o amor. E descobri que
descobrira a chave da vida, a suma, a integralidade, a unidade, a
síntese, que em vão sonhara procurar nas aventuras e na glória. Eunice
era a totalidade. O amor era a síntese, a grande síntese da vida. Eunice
me daria tudo. Eunice era para mim a Divina Comédia sem assinatura.
Era a solução dos mistérios escondidos nos átomos. Era o mar, era a
terra. Queria eu viajar, correr países distantes de costumes exóticos?
Eu tinha em cada sorriso novo de Eunice a surpresa, a novidade das
ruas de Hong-Kong; tinha Singapura nos seus cabelos; Moscou, Paris,
New York nos seus braços. E quando mais tarde nos tornamos
amantes, na Rua Ipiranga, eu tinha em Eunice o continente de sonho
que o audaz descobridor vê surgir, entre as brumas, deitado no
horizonte.
Eu ia andando pelas ruas, sentindo no bolso a caixa dos rubis.
Parecia-me que conseguira galgar um monte de destroços
apodrecidos, e que reatava a absurda fé num absurdo amor, num amor
sem exigências, quase sem apoio, num amor que apesar de tudo me
vinha dizer que existe o amor, que existe a síntese da vida. Perdi
Eunice, perdi Raul, perdi o menino Jesus que outro dia me sorriu de
sua cátedra de miséria. Perdi a brancura de Luciana. Perdi o retrato de
Augusto. Perdi o sangue. Perdi tudo. Mas agora, eis que brilha uma
luz, eis que uma voz me diz que é assim, de repente, por uma brecha,
por um milagre, que se toma de assalto o misterioso mundo do amor,
e que tudo se salva. Que quer isto dizer? Como devo interpretar o que
borbulha em mim? Paro diante de uma vitrina onde minha esguia
gura re etida se superpõe a uma profusão de aparelhos elétricos.
Uma torradeira cromada brilha no lugar do coração. Um susto me
invade. É preciso resistir ao demônio interior que me suscita o furor
analítico de procurar, de esmiuçar, de decompor. Agarro-me com força
aos meus absurdos rubis.
I
12 de janeiro.
II
15 de janeiro.
Muito mais tarde descobri que eu era um eu, isto é, uma coisa muito
escondida, muito destacada, isolada, segregada do resto do universo.
Veio-me a confusa e inexprimível idéia de ter havido uma
extraordinária coincidência no fato de eu ser eu. Não que eu me
julgasse melhor ou pior do que os outros. Mais tarde vieram-me,
profusamente, esses julgamentos de valor; e devastaram-me a vida.
Mas naquele tempo o que eu descobri em mim era alguma coisa que,
por sua própria natureza, eu não podia atribuir a um outro. Era uma
categoria que se excluía de tudo e que se recusava a qualquer
comparação.
III
20 de janeiro.
-me a seguinte experiência: pensar num mundo sem cruzes, sem velas,
e sem imagens de Nossa Senhora. E registrei imediatamente o
primeiro impulso de minha alma: esse mundo seria horrível.
Que devo pensar dessa reação? Terei eu ainda a mesma fé, mais
enraizada do que pensava? Ou estarei a procurar nessas
reminiscências um remédio contra o medo da morte que me devora?
Torno a fazer a experiência e pergunto a minha alma: querias viver (ou
morrer) num mundo sem os sinais da passagem de Cristo? Tarda
agora a resposta. Minha alma prevenida, crispada, já não sabe se foi
sua, bem sua, a reação de minutos atrás. E é isso, precisamente isto que
me atormenta: poder distinguir o que é meu, realmente meu, do que
tentam inculcar-me, ou melhor, do que vivem todos a se inculcar uns
aos outros. Não digo que só possa aceitar as verdades de minha
própria fabricação. Houve tempo em que cheguei quase a considerar-
me um deus solitário, um deus exilado; e posso garantir que essa
experiência é assaz incômoda. Não: venha de fora, venha do céu ou da
terra, o que eu exijo da verdade, para ser minha verdade, é a
possibilidade de uma assimilação profunda, de uma união
transformante que a faça realmente minha. Quero uma verdade que se
transforme em meu sangue, em minha carne; e não uma verdade
mecânica e ortopédica. Tenho horror ao objetivismo tranqüilo das
almas carimbadas.
— A porta deve car mais para cá, senão não cabe o guarda-vestidos.
IV
24 de janeiro.
Foi sempre assim: o homem, quando quer saber onde pisa, olha para
o céu; quando quer regular seus movimentos, procura o imóvel.
Ai de nós! A raça de Pascal anda traída. Muitos andam por aí, ó astro,
a dizer que também somos acorrentados, que também somos apenas
um aglomerado de átomos que durante um certo tempo se demoram
em nossos limites, na esquina de cotovelo, no vértice de um nariz, nas
fugitivas pontas dos cabelos. Dizem, também que somos ocos, que
vivemos da casca que a sociedade nos empresta, ou das eructações que
nos vêm das experiências mal digeridas. Mas não te iludas com esses
detratores, ó astro. A insensatez dessa gente, por derrisão, é a
contraprova de nossa dignidade. Nós temos um imenso privilégio, que
é o avesso de nosso manto real; nós temos a glória do erro.
Mas eu não vou discutir contigo, estrela; não vou argumentar. Basta
que me apresente: eis aqui um homem. A luz que me chega à retina
não encontra um ser passivo e inerte, como uma placa recoberta de
bromureto, que recebe a imagem, que a revela no banho dos humores,
que a xa no hipossul to da memória, e em função desse impacto dos
fótons age, fala, dança e chora. Não. Pensar não é simplesmente
receber. É algo mais ativo, que vai ao encontro do objeto. Quando a luz
do astro me bate à porta dos sentidos, há em mim alguma coisa que se
ergue de um trono, que recebe o mensageiro, que examina a
mensagem, apossando-se dela, transformando-a, sutilizando-a — e
que diz ao coruscante vassalo do céu: “Tu és Sírius, Alpha Canis
Maioris”.
Não acho absurdo pensar que todo esse céu seja espetáculo para
nossos olhos. Tudo é nosso. O apóstolo Paulo, antes de Pascal,
exprimiu de outro modo o paradoxo de nossa miséria e de nossa
grandeza. “Somos como pobres, e tudo possuímos”. Omnia
possidentes. Bem sei que o apóstolo se coloca em outro plano; mas por
que não poderei eu trazer sua palavra para o domínio de nossa realeza
natural? Tudo é nosso. Agora, com visão mais ampla, não faço questão
de lotear o céu para destacar das outras as trinta mil estrelas que me
foram adjudicadas. Tudo é de todos e de cada um. Socializemos as
constelações.
V
28 de janeiro.
Além disso, acabo de ter uma horrível visão, a de uma aventura sem
regras. Vi um Amundsen existencialista, a me sorrir como um
sonâmbulo, a me acenar com gestos desordenados da amurada de sua
galera sem leme, sem sextante, sem mapas e sem compromissos.
VI
2 de fevereiro.
Além disso, cumpre notar que Jandira, como o viajante de que fala
Pascal, que só viaja para capitalizar assunto, quer também conquistar o
direito de dizer que foi, que andou, que dançou.
E nós, nós que não chegamos a Paris pelo último trem, nós que não
assistimos aos incêndios de Londres, qual de nós, nesse mesmo agosto
de 1939, diante das manchettes terríveis que anunciavam a Guerra, e
prenunciavam a Fome e a Peste, qual de nós, homens morigerados e
mansos, não sentiu, escondida como uma cobra, dentro da confusão,
da perplexidade e da a ição, uma estranha e inde nível satisfação?
Disse atrás que Pascal explica a maior parte das viagens pelo desejo de
buscar assunto e alimento para a vaidade. Viaja-se para obter um
diploma, como o de bacharel; ou para aumentar o reservatório de
temas. Viaja-se para voltar com carimbos na mala, e com vulcões na
memória. Posso imaginar o aventureiro retilíneo que faça exceção, mas
não duvido que o caso geral seja este de quem parte para voltar, para
trazer a personalidade engrossada.
Mas essa mesma idéia, como tudo que é do homem, tem duas faces.
Acho belíssima essa voracidade do homem, e essa capacidade de trazer
para casa, para a sala-de-estar, sob as espécies do assunto, as guerras,
os terremotos e os ciclones. Por outro lado, porém, acho lúgubre essa
avidez de engrossar por fora a ganga do eu, numa capitulação da maior
das aventuras, que é a conquista de si mesmo, a descoberta de sua
própria alma. Há duas iluminações na face de um Marco Polo: de um
lado o brilho ensolarado da boa aventura; de outro a verde lividez do
homem que foge de si mesmo.
E agora, quando mais não seja, por causa de meu estado, é o aspecto
sombrio que mais me impressiona. O que o homem procura pelos
continentes é o mesmo que Eunice procurava, andando pelas ruas, toc,
toc, toc, a se expor, a se oferecer aos ventos, aos fatores da humana
geologia, como a bola de neve que cai, que engrossa, que cresce por
fora, tendo no interior o quê? um seixo de acaso, um graveto de
circunstância, um nada! Venham pois as ilhas do Oriente vistas da
amurada de um navio que chega numa tarde azul; venham galerias de
gênios mortos nos corredores suaves dos museus; venham cenas de
rua nunca vistas, paisagens que surgem como um susto feliz, palácios,
orestas, catedrais — venha tudo ao meu encontro forrar-me, cercar-
me, proteger-me, descansar-me, para que meu eu que perdido como
uma bolha no centro de uma montanha de cristais.
Não iria à Europa agora, mas iria depois, isto é, faria sua viagem de
recreio como alma-do-outro-mundo. Desembaraçado do espesso
invólucro carnal que tão humildemente o trouxera cosido aos Feitos
da Fazenda, seu perispírito em férias percorreria alegremente os
museus de Paris e os palácios dos Doges de Veneza.
VII
7 de fevereiro.
VIII
8 de fevereiro.
Tive hoje uma boa surpresa: a visita do Dr. Aquiles. Estava eu lendo os
Solilóquios de Santo Agostinho, que encontrara lá embaixo com as
páginas ainda por cortar, quando ouvi três pancadas discretas na
porta. Era ele. Não sei de que hábeis recursos se valeu para contornar a
rígida Jandira. O fato é que ali estava, emoldurado pelos umbrais da
porta, tardo, corpulento, com seus bifocais cintilantes, e a costumeira
falta de jeito, que logo se traiu no falso pretexto de sua inesperada
visita.
— Assim como vê, esperando… Parece que Ela está atrasada. Não
fosse mulher! Instalado na cadeira de balanço, o Dr. Aquiles sorria
contrafeito, e fazia um mal disfarçado levantamento de meu quarto.
Parecia-me que ele se esforçava por evitar que seus olhos pousassem
em mim, no meu rosto, no meu peito magro que o pijama
desabotoado deixava descoberto, para que eu não sentisse a pressão da
curiosidade pro ssional. Achei que devia tomar alguma iniciativa, e
ofereci-lhe um cigarro. Debruçando-se para acendê-lo, notou o livro
que cara aberto na cama.
Mas eu não concordo com essa volta ao humano que ele me apontava
na psicanálise. Ao contrário, nesse mesmo psicologismo eu noto a
mesma extroversão a que o doutor aludia. O que há de curioso na obra
de Freud, a meu ver, é o seu completo desinteresse pelo centro do
homem. Suas admiráveis descobertas vieram revelar a diversidade, a
riqueza misteriosa de nosso organismo psíquico. Conclui ele então que
o homem é um pobre ser dilacerado e sem unidade. Ora, isto me
parece ilógico. A mim, quanto mais diferenciado e decidido se
evidenciar nosso psiquismo, mais forte se a rmará o princípio de
uni cação que apesar de tudo ainda consegue uma vitória, mais
penosa, mas por isso mesmo mais valiosa, por ser um domínio sobre
numerosos e dispersos elementos. Na doutrina de Freud, ao contrário,
a ilógica conclusão a que se chega, ou pelo menos aquela a que ele nos
convida com insistência, é a do enfraquecimento de nosso centro de
gravidade. Na estrutura que Freud propõe para o nosso psiquismo,
como já observou um moderno psicólogo, a parte principal do drama
se passa entre o id e o superego. O enredo interessante está todo nas
obscuras intrigas de nosso inconsciente e nas categóricas repressões
policiais da zona exterior do superego, cando no meio do palco,
anódino, inerme, com as mãos abanando, o Ego consciente. Vê-se pois
que essa psicologia, e suas derivadas, se caracteriza por um forte
extrinsecismo, disfarçado, porque chega muito perto do centro, e tanto
mais forte e resoluto quanto resiste com maior deliberação à poderosa
atração da proximidade. Ao que me parece, essa psicologia, com toda a
sua respeitável contribuição, é antes uma força de dissociação do
homem do que uma tentativa de descoberta do princípio que faz de
um eu a coisa mais una, mais separada, mais brutalmente segregada
do universo. Ela contraria, por curiosidade analítica, por dissociação, o
primeiro fato bruto da primeira experiência da alma. Ah! se eu
estivesse no começo da vida, pode ser que procurasse um psicólogo
avisado que me impedisse de escolher a carreira das armas num
momento de ardor cívico, ou a carreira do mar, como aconteceu com
meu desventurado primo Anísio. Se eu estivesse para casar-me, pode
ser que procurasse dar uma escovadela pré-nupcial no meu
inconsciente. Mas estando para morrer, eu devo descobrir a
signi cação completa e absoluta da vida, e devo encontrar-me comigo
mesmo, no que sou, no que verdadeiramente sou…
— Estou. Não sei bem por quê. Talvez lhe mostre… talvez rasgue.
— Mas não foi nesse dia que nós nos separamos. A violência tem em
si uma espécie de equilíbrio dinâmico. Conhecemos ainda horas de
delírio, como anos atrás na casa vazia da Rua Ipiranga. Foi mais tarde,
creio que dois anos depois, numa hora de tédio morno, que Eunice me
declarou que se ia embora, e eu admirei-me que já não tivesse ido há
mais tempo. Dei-lhe metade do que tinha, e quei com Raul. É
verdade, quei com o menino. Explique como quiser. O fato é que
quei com Raul. Nos primeiros tempos do abandono eu tinha crises
de afetividade que me faziam levantar à noite para ver se o menino
estava dormindo bem, para arrumar-lhe a coberta. Às vezes cava
olhando para ele longos minutos. Parecia-me que estaria perdido se
Raul me faltasse. Mas também tinha crises contrárias, quando sentia
falta de Eunice. O período da adolescência de Raul foi para mim um
inferno… Creio que até hoje ele não sabe. Será melhor que não
saiba… aliás, hoje somos dois estranhos. Ele casou-se com uma moça
gorda e mansa, de Belo Horizonte, que lhe dá um lho por ano. São os
meus pseudonetos.
Ficamos um tempo enorme em silêncio. O calor era sufocante.
Levantei-me para abrir a janela, pois o sol já se escondera atrás da casa
do general. Seriam cinco horas. Uma tênue aragem ergueu a cortina e
veio agitar de leve a rosa vermelha, uma rosa muito aberta, muito
franca, como um largo rosto de camponesa queimada de sol. Pus um
peso nas folhas de meu diário, e voltei a sentar-me diante do doutor.
— A vaidade!… quer que lhe diga? Fala-se hoje demais nos desajustes
econômicos e sexuais, mas o fundamental desajuste, que persegue o
homem até a beira da morte, está no foco de amor-próprio. É aí que se
falsi ca tudo. E quer que lhe diga aonde é, em que meio, em que grupo
de homens é mais visível a vaidade? Eu lhe digo: é nos grupos de
homens virtuosos, bem intencionados, bem comportados, que se
unem para salvaguardar a sã doutrina e os bons costumes. É na sua
Ação Católica, nas congregações religiosas, nas salas de capítulo. Lá
fora, os outros homens estão à vontade. A vegetação dos vícios é viçosa
e copada. Dominam o Dinheiro e o Sexo. O pecado é gordo e corado.
É folgazão, compreensivo, tolerante, simpático, e quase diria que tem a
beleza das coisas bem crescidas. Veja o homem que vitaliza indústrias,
que distribui esmolas, que tem largueza de vistas e amenidades de
maneiras. Dizem dele que tem duas ou três mulheres de aluguel.
Donde os moralistas e reformadores concluem que o Dinheiro e o
Sexo são as duas grandes forças que é preciso reti car, com novas
estruturas sociais e com novos métodos psicológicos. Eles não vêem,
debaixo da grossa enxúndia, a mesma raiz essencial de amor-próprio,
isto é, aquilo que torna o pecado não só odioso como também
ridículo. Mas nas salas de capítulo, nos claustros, nas associações
paroquiais, os homens se despojam dos vícios gordos e coloridos.
Destaca-se então a raiz; vê-se em toda a sua triste pureza, em toda a
sua desnutrida fealdade, essa coisa torcida, magra, lívida, mesquinha,
que é o amor-próprio. Desde o pobre leigo que se multiplica na ação
católica, até o monge que passa vestido de penitência, são esses os
verdadeiros especialistas da vaidade. Têm-na em estado puro. Sem os
guizos da futilidade. Sem os alardes do prestígio. Sem o dramático
interesse dos desencontros do amor. Vaidade essencial. Amor-próprio
com nervo exposto…
— Eu sei.
— Um padre.
O Dr. Aquiles pregou os olhos nos meus. Fez um gesto, mas deteve-
se. Calou o que ainda ia dizer. Estava ainda mais emocionado e
tolhido. Levantou-se então, bruscamente, e tomou o embrulho que
deixara em cima da mesa.
— Trouxe-lhe isto.
IX
10 de fevereiro.
— Sangue.
X
15 de fevereiro.
Por que não? Não seria mais generoso do que morrer na companhia
das rosas? Tenho ainda, ao que parece, uns quinze dias. Ora, em
quinze dias torno-me útil se pego em minha leucemia e saio por aí a
mostrar ao mundo essa coisa espantosa, que Voltaire achava tão
natural e Goethe tão antinatural: o homem-que-sabe-que-vai-morrer.
Os jornais cariam cheios de mim. O Presidente da República, a quem
eu pedira audiência para um projeto de elevada lantropia, levantar-
se-ia de sua cadeira presidencial quando visse entrar o personagem
que eu sou, a morte axiomática, o exemplo encarnado de um
silogismo, a certeza a que todo o mundo foge. E eu conseguiria verbas
extraordinárias, tão extraordinário é o fato de ser mortal; e eu poderia
prestar grandes serviços à comunidade: fabricar triciclos ao alcance de
todos; melhorar a condição de vida das moças que servem o café em
pé, de marré, marré, marré. E a minha morte seria a despedida de um
grande benfeitor. Eu partiria no meu navio fantasma, vendo o mundo
afastar-se devagar, como um cais com muita gente agradecida, com
muitos lenços.
— Chegamos…
XI
16 de fevereiro.
Sem pensar, achei-me diante do café. Olhei para dentro e vi logo que
Gertrud não estava. Fiquei indeciso; mas aproveitando uma folga no
balcão, dirigi-me ao rapaz louro e sardento, o mesmo que dias atrás
fazia a moça rir. Atrapalhei-me por não saber o nome dela; gaguejei e
mal consegui descrevê-la, sentindo o ridículo da situação e
adivinhando o que o rapaz estaria pensando de mim.
— Ela deixou a casa. Parece que cou doente. Não sei… Sei eu. É
claro que cou doente; é claríssimo que tenha deixado a casa. Que
relação pode existir entre um rendoso negócio e uma pobre moça que
bota sangue pela boca? Dirigi-me, agora em passos mais lentos, para o
mercado de ores. Apertara o calor. Parecia-me que a jovialidade dos
rostos dera lugar a um universal congestionamento. Iam todos suados,
acalorados, desabotoados. Do asfalto vinha um hálito de forno e o céu
tinha virado uma tampa metálica pintada de azul.
XII
20 de fevereiro.
— Ele chegou!
— Avia-te, Axel! Anda daí, despede-te! Vamos! Era a voz de meu tio.
Estamos na boca do vulcão, e começamos a descer uma escada natural,
em caracol, nas paredes da cratera. O ruído que vem agora das
profundezas do poço é diferente, mudou de caráter; é desconcertante,
bizarro, como se fosse o avesso dos sons. Havia vozes, risadas,
gemidos, e por detrás de tudo rugia um turbilhão wagneriano
colossalmente desa nado. Onde estava o meu tio? Agora eu descia
sozinho, agarrando-me às anfractuosidades da rocha. O mensageiro
veloz, embrulhado no manto escuro, tornou a passar por mim
gritando:
— Ele chegou!
— José Maria, ca! cantou então no ar uma voz de mulher, leve, pura,
de inaudita limpidez.
— Na pedra!
— Na noite!
— Não! Oh! Não! Oh! Oh! Oh! Ah! Ah! Ah! Ih! Ih! Ih! Não! E
enxugando os olhos, acrescentou, agora sério:
— Lá é muito diferente.
— Sabe quem é? Fiz sinal que sim, com a cabeça. Era André. E sem
conseguir conter-me, comecei a contar-lhe a triste história de André,
nossa amizade, Eunice, o primeiro beijo de traição e de amor…
— E eles?
— Já sei o que falta na sua história. É o am… Com um salto ele estava
em cima de mim a me apertar a garganta, a me tapar a boca com a
mão gorda e fria. E disse-me com raiva:
XIII
23 de fevereiro.
— Ele acordou.
— Então, como vamos? O Dr. Aquiles, debruçado sobre o meu peito,
que o pijama desabotoado deixava descoberto, fez um sinal para o
outro, que logo se acercou. E o Dr. Aquiles, correndo o dedo no meu
peito, disse:
— Petéquias.
— Veja, são rubis, rubis verdadeiros, dizia meu pai, correndo o dedo
no peito do Cristo.
— Petéquias.
Eu também tomei um café servido por Jandira, que ainda não teve
tempo de despir sua ofuscante fantasia. Fico sabendo por ela que
estamos na terça-feira gorda.
Falo ou não falo? Estão todos em torno da cama como lhos piedosos
que esperam as últimas recomendações do velho pai moribundo. O
padre, um moço alto e louro, com ar ingênuo e tardo, esboça um
sorriso embaraçado. Ele podia realmente ser meu lho… isto é, podia
pela idade, pela aritmética, mas não podia pela força da siologia.
Neste outro plano, mais concreto do que o dos números, ninguém
poderia ser meu lho. Eu, no entanto, sinto por esses cinco
personagens uma estranha ternura de pai adotivo ou de comandante
de navio que naufraga. Sim, são eles os meus primeiros e últimos
discípulos, são eles os herdeiros, os depositários de uma velhice que
sonhei fatigante e fecunda. Devo contentar-me com esse punhado de
recrutas, com esses personagens de acaso para o epílogo de minha
história. Sinto-me muito responsável. Falo ou não falo? Qual deles será
o primeiro? Falei. No princípio eles não me entenderam, ou pensaram
que eu estivesse a delirar. Foi preciso repisar, repetir: foi preciso que eu
me explicasse com geométrica clareza. O primeiro a compreender foi o
Homem-da-Alavanca.
O padre então levantou-se e explicou que era de fora, que não tinha
jurisdição para ouvir con ssões regulares, que só podia atender ao
doente. Em vão me esforcei por lhe explicar que no meu Asteróide não
havia ninguém mais robustamente vivo do que eu; em vão tentei
abalar a noção comum que ele trazia de doença e saúde. O padre
desculpava-se. E sugeria que Jandira e o Homem-da-Alavanca fossem
à paróquia, logo que a chuva passasse, acrescentando, sem vislumbre
de humorismo, que Jandira deveria despir sua fantasia de gaúcho… De
cossaco, padre.
Mas a chuva caía como uma cachoeira, e Eunice, que fora até a janela,
informava:
FIM
P
Abyssus abyssum invocat,
in voce cataractarum tuarum.
Salmo 41, 8
A reedição dos escritos de Gustavo Corção pela Vide Editorial deve ser
comemorada como um dos mais importantes acontecimentos
literários dos últimos anos no Brasil. Corção é um dos nossos grandes
prosadores. Seus escritos aliam um vasto e vário conhecimento a uma
re exão atenta e profunda, vazados numa linguagem poética e
rigorosa, lúcida e cristalina, que os tornam acessíveis a todo leitor de
boa vontade. Essa capacidade de aproximar-se generosamente do
leitor, de conduzi-lo com amor e cuidado através das sendas e dos
abismos do próprio pensamento, vem com certeza da vocação de
professor, descoberta e exercida já na sua meninice, quando lecionou
na escola criada por sua mãe, o Collegio Corção, redescoberta e
retomada já na meia-idade, quando converteu-se e passou a professar
a Verdade altíssima que encontrara, o próprio Verbo de Deus.
***
Era preciso, porém, criar uma tal relação com o público que este se
envolvesse profundamente com a personagem, acreditando que estava
realmente diante de um homem às portas da morte, não se
esquecendo, porém, de que estava diante de um ator que representa
poeticamente essa situação. Era preciso criar uma encenação em que o
público oscilasse constantemente entre estar assistindo a uma obra de
cção e estar assistindo a um testemunho real. A construção do
espetáculo leva assim o espectador a, numa moldura geral de empatia
artística, em vários momentos confundir-se, ora pensando: “É o Mallet
que está para morrer”, ora pensando: “Não, é a personagem...”. A
e cácia do espetáculo depende dessa oscilação, pois se alguém xar-se
no primeiro pensamento, terá sentimentos de dó e compaixão de mim
mesmo, da minha pessoa concreta, e a dimensão universal da situação
lhe escapará; se xar-se no segundo pensamento, perderá o sentimento
pungente da própria morte que só o confronto com um moribundo
nos dá.
Sempre aconselho a meus alunos: “Ao entrar em cena, pense que este
é o seu último espetáculo, e faça-o de todo coração, com toda a
generosidade, como se fosse o seu testamento, seu canto do cisne”.
Lições de abismo permite-me levar esse conselho ainda mais longe.
Além de lembrar que este pode ser o último espetáculo para cada um
dos presentes, procuro estar sempre consciente de que toda ação
realizada em cena é feita também diante dos anjos, de toda a corte
celeste e do próprio Deus.
Creio que esses apontamentos bastam para dar uma idéia da riqueza
temática e poética que este romance contém e de como ele já continha
em germe a dramaturgia de uma adaptação teatral. E também de como
ele me permitiu sintetizar os temas centrais do meu trabalho artístico
nesse espetáculo que considero o melhor e o mais signi cativo da
minha vida. Posso verdadeiramente dizer: “Este livro foi escrito para
mim”.
3 Gustavo Corção, Conversa em sol menor: memórias recolhidas. Campinas, SP: Vide
Editorial, 2018, pp. 180–181.
4 Gustavo Corção, Três alqueires e uma vaca. Rio de Janeiro: Agir, 1946, pp. 26–27.