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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ

INSTITUTO DE HISTÓRIA – IH

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA – PPGHC

THIAGO DE AZEVEDO PORTO

O PAPADO, OS DOMINICANOS E AS INSTITUIÇÕES DE


BOLONHA NA CANONIZAÇÃO DE DOMINGOS: uma análise
comparativa

Rio de Janeiro

2018
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ

INSTITUTO DE HISTÓRIA – IH

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA – PPGHC

Thiago de Azevedo Porto

O PAPADO, OS DOMINICANOS E AS INSTITUIÇÕES DE BOLONHA NA


CANONIZAÇÃO DE DOMINGOS: uma análise comparativa

Tese de doutorado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC)
do Instituto de História (IH) da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Andréia Cristina Lopes


Frazão da Silva (UFRJ/PPGHC)

Linha de Pesquisa: Poder e Instituições

Rio de Janeiro

Março/2018
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ

INSTITUTO DE HISTÓRIA – IH

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA – PPGHC

CIP - Catalogação na Publicação

Porto, Thiago de Azevedo


P839p O papado, os dominicanos e as instituições de Bolonha
na canonização de Domingos: uma análise comparativa /
Thiago de Azevedo Porto. -- Rio de Janeiro, 2018.
243 f.

Orientador: Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva.


Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Instituto de História, Programa de Pós Graduação em História
Comparada, 2018.

1. canonização. 2. poder. 3. papado. 4. dominicanos. 5.


Bolonha. I. Silva, Andréia Cristina Lopes Frazão da, orient. II.
Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a)
autor(a).
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Thiago de Azevedo Porto

O PAPADO, OS DOMINICANOS E AS INSTITUIÇÕES DE BOLONHA NA


CANONIZAÇÃO DE DOMINGOS: uma análise comparativa

Tese de doutorado submetida ao Programa de


Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC)
do Instituto de História (IH) da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como pare dos
requisitos necessários à obtenção do título de
Doutor em História Comparada.

Aprovada por:

.
Prof.ª Dr.ª Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva (PPGHC/UFRJ)

.
Prof.ª Dr.ª Leila Rodrigues da Silva (PPGHC/UFRJ)

.
Prof. Dr. Paulo Duarte Silva (PPGHC/UFRJ)

.
Prof.ª Dr.ª Ana Paula Lopes Pereira (UERJ)

.
Prof.ª Dr.ª Carolina Coelho Fortes (UFF)

Rio de Janeiro
Março/2018
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DEDICATÓRIA

Dedico esta tese de doutorado à Dayane Martins Porto e a Vicente Martins Porto,
duas pessoas fundamentais na minha vida. A ela por ser a mulher que eu amo, com quem
decidi construir uma família e que nos últimos anos esteve sempre ao meu lado me
apoiando e compartilhando comigo os projetos, as dificuldades e as conquistas que a vida
me proporcionou até agora. A ele por ser o primeiro fruto desse amor, o projeto conjunto
que modificou profundamente a nossa vida e que abrilhantou nossa família, a força que nos
move a querer um mundo melhor.
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AGRADECIMENTOS

Ao Programa de Estudos Medievais, por ser uma porta aberta aos estudantes e
pesquisadores que decidem se dedicar aos estudos sobre a Idade Média no Brasil, por
oferecer estrutura e acompanhamento acadêmicos que ajudam a pavimentar o caminho e a
concretizar os sonhos de muitos jovens que por lá passam.
À Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva, por ter seguidas vezes apostado no meu
potencial, por ter me aberto muitas portas, por confiar no meu trabalho, por ter
pacientemente ajudado na minha formação, apesar de todas as dificuldades que a vida e eu
mesmo criamos para ela.
À Leila Rodrigues da Silva, por compartilhar com a Prof.ª Andréia Frazão a
coordenação do Programa de Estudos Medievais e por ter contribuído com a minha
caminhada acadêmica, sempre incentivando o meu crescimento.
A todos os professores com quem eu convivi e que me ajudaram a construir uma
base educacional, também fundamental para a carreira que eu escolhi e para todos os meus
projetos de vida.
Aos familiares que estiveram sempre ao meu lado, apoiando os meus projetos e me
ajudando nos momentos mais difíceis: Alonso Ferreira Porto (meu pai), Maria Elisabete
Barbosa de Azevedo (minha mãe), Gustavo de Azevedo Porto (meu irmão), Simone
Almeida Porto (minha irmã) e Isabel Cristina Martins (minha sogra).
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RESUMO

PORTO, Thiago de Azevedo. O papado, os dominicanos e as instituições de Bolonha na


canonização de Domingos: uma análise comparativa. Rio de Janeiro, 2018. Tese
(Doutorado em História Comparada) – Instituto de História, Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

Estudo comparativo sobre as articulações políticas e as iniciativas institucionais que


foram realizadas como parte da causa de canonização de Domingos de Gusmão, primeiro
mestre geral da Ordem dos Frades Pregadores. A partir dos conceitos de poder e de
discurso, tais como aparecem nos escritos de Michel Foucault, e da exploração do corpus
documental selecionado ao longo da pesquisa de doutorado, foram analisadas as dinâmicas
de poder entre as instituições e as relações de poder entre as autoridades que se envolveram
mais diretamente no projeto coletivo de construção da santidade e de estabelecimento de
um culto para Domingos na cidade de Bolonha. As análises realizadas nesta tese de
doutorado apontam o papado de Gregório IX como centro de coordenação das iniciativas
tomadas por representantes da Igreja romana e da Ordem dos Frades Pregadores no ano de
1233, apontando o desenvolvimento de um projeto devidamente compartilhado por tais
instituições e que permitiu não só o fortalecimento de ambas, mas uma recomposição das
relações de poder entre as instituições locais de Bolonha por meio de um acordo de paz.

Palavras-chave: canonização, poder, papado, dominicanos, Bolonha.

Rio de Janeiro
Março/2018
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA – PPGHC

ABSTRACT

PORTO, Thiago de Azevedo. O papado, os dominicanos e as instituições de Bolonha na


canonização de Domingos: uma análise comparativa. Rio de Janeiro, 2018. Tese
(Doutorado em História Comparada) – Instituto de História, Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

Comparative study on the political articulations and institutional initiatives that


were carried out as part of the canonization cause of Dominic Guzman, first master general
of the Order of Friars Preachers. From the concepts of power and discourse, as they appear
in the writings of Michel Foucault, and explorating the documentary corpus selected
during the doctoral research, were analyzed the dynamics of power between the institutions
and the relations of power between the authorities who became more directly involved in
the collective project of building holiness and establishing a cult for Dominic in the city of
Bologna. The analyzes carried out in this doctoral thesis point out the papacy of Gregory
IX as a coordinating center for the initiatives taken by representatives of the Roman
Church and the Order of Friars Preachers in the year 1233, pointing out the development of
a project duly shared by such institutions and which allowed not only the strengthening of
both, but a recomposition of the relations of power between the local institutions of
Bologna through a peace agreement.

Keywords: canonization, power, papacy, Dominicans, Bologna.

Rio de Janeiro
Março/2018
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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................................................................p. 11

CAPÍTULO I – As canonizações no século XIII e a santidade de Domingos de Gusmão....................p. 44

Ordenando para governar: o direito e as formas jurídicas a serviço de um projeto papal.......p. 46

Reconhecimento da santidade e política de canonização: os mendicantes e o papado..............p. 55

“Fons sapientie verbum patris”: apontamentos e reflexões de uma análise do discurso..........p. 67

CAPÍTULO II – Três projetos de poder concorrentes na Península Itálica do século XIII: o papado, o
império e as comunas......................................................................................................................p. 85

Poder e autoridade: concepções e iniciativas a serviço de projetos políticos............................p. 87

Direito, legislação e justiça: fundamentos para o exercício do poder na Itália.........................p. 95

Religião e espiritualidade: modelos cristãos, práticas religiosas e controle eclesiástico........p. 105

Religião e repressão: o combate às heresias como estratégia e instrumento de poder............p. 118

CAPÍTULO III – Bolonha nas primeiras décadas do século XIII: os grupos e as instituições locais em
meio aos interesses do papado e do império..................................................................................p. 130

A Comuna de Bolonha: grupos, corporações, governo e pretensões políticas.........................p. 131

A Igreja bolonhesa: as controvérsias locais e as relações de poder........................................p. 144

A universitas scolarium Bononie: as controvérsias locais e a lógica de intervenção papal....p. 154

Os dominicanos em Bolonha: uma sede para a Ordem e para o culto a Domingos................p. 163
CAPÍTULO IV – O papado e os dominicanos na canonização de Domingos: as iniciativas e as etapas
de construção da santidade...........................................................................................................p. 178

A magna devotio de 1233: o papado e os dominicanos no território da espiritualidade.........p. 179

A translatio corporis de Domingos: os preparativos locais e as relações de poder.................p. 188

O inquérito em Bolonha: as práticas e as formas jurídicas como exercício de poder.............p. 199

A causa de canonização de Domingos: uma construção da santidade por etapas...................p. 211

CONCLUSÃO – A Pax Dominici: o papado, os dominicanos e as instituições bolonhesas em um amplo


acordo de paz................................................................................................................................p. 221

BIBLIOGRAFIA..........................................................................................................................p. 232
11

INTRODUÇÃO

O reconhecimento oficial da santidade pela Igreja romana na Idade Média é uma


prática histórica que já foi amplamente explorada na historiografia ocidental. Nem por isso
o tema em questão foi esgotado em todos os seus aspectos e continua a ser aprofundado
pelos historiadores, dentre outras possibilidades, através de estudos de casos. Tal como
esta pesquisa realizada no doutorado em História Comparada (PPGHC/UFRJ), que aqui se
apresenta no formato de uma tese.
A canonização de Domingos de Gusmão,1 em 03 de julho de 1234, pelo papa
Gregório IX,2 é em si mesmo um acontecimento histórico, que já foi alvo de diversas
reflexões e análises historiográficas. Esta tese de doutorado partiu do princípio que o
referido evento ainda não foi explorado em todas as suas perspectivas e possibilidades de
análise, por isso propõe uma releitura de alguns trabalhos já realizados, assim como o
acréscimo de reflexões e de conclusões que ainda não foram feitas por outros autores.
Para começar é importante esclarecer que o objeto de investigação desta tese de
doutorado não é propriamente a canonização daquele pregador mendicante que foi
apontado como fundador da Ordem dos Frades Pregadores. Mas sim as iniciativas e as
decisões que foram tomadas nos anos anteriores ao referido ato do pontífice romano, de
modo a identificar os grupos e as instituições envolvidas nesta causa dominicana. Não
apenas identificar, como analisar comparativamente as forças que atuaram na canonização

1
Domingos de Gusmão nasceu por volta de 1170, na cidade de Caleruega, Reino de Castela, e morreu em
1221, na cidade de Bolonha, localizada na região da Emilia-Romagna, na Península Itálica. Ele teve uma
trajetória inicial de formação e de atuação religiosa na diocese de Osma, na Península Ibérica. Depois,
acompanhando o bispo de Osma, ele atuou como pregador em diferentes cidades do sul do Reino da França.
Domingos foi apontado pelo papado e por uma corrente dominicana como o fundador da Ordem dos Frades
Pregadores, uma tradição histórica que começou a ser desenvolvida na década de 1230, de forma associada às
iniciativas para a sua canonização pela Igreja romana.
2
Gregório IX foi pontífice romano de 1227 a 1241. Ele se chamava Hugolino, era filho do conde de Segni e
sobrinho do também papa Inocêncio III. Antes de se tornar papa, ele atuou como clérigo na corte pontifícia,
tendo desempenhado a função de legado papal na região da Lombardia (na Península Itálica) durante o
pontificado de seu antecessor, o papa Honório III. Gregório IX foi o papa que canonizou Francisco de Assis,
Antônio de Lisboa/Pádua e Domingos de Gusmão.
12

de Domingos, bem como os interesses que mobilizaram tais grupos e instituições na


direção daquele empreendimento coletivo de santidade.
Portanto, nesta pesquisa de doutorado partiu-se do pressuposto que o ato da
canonização de Domingos foi apenas a última etapa de um projeto coletivo que tinha como
propósito alcançar um reconhecimento oficial de santidade para aquele pregador
mendicante, bem como estabelecer as bases de um culto na cidade de Bolonha. Por isso, o
esforço de investigação realizado nesta tese voltou a sua atenção para os anos anteriores,
de modo a percorrer as diferentes etapas desta construção de santidade e analisar
comparativamente as ações realizadas e os interesses que mobilizaram a referida causa de
canonização.
Também é importante ressaltar que a cidade de Bolonha não foi único espaço em
que ocorreram ações e decisões referentes a este empreendimento coletivo de santidade,
que também foram verificadas nas cidades de Roma e de Toulouse (esta última localizada
no sul da França). De acordo com os propósitos estabelecidos previamente para esta tese
de doutorado, se optou por não explorar as iniciativas que ocorreram naquela cidade
francesa, tal como o inquérito pontifício que lá foi realizado. Partiu-se do pressuposto que
Roma e Bolonha foram os centros decisórios para este projeto, concentrando a maior parte
dos grupos e das instituições que alavancaram e sustentaram um processo de canonização
para Domingos de Gusmão.
Não foi por acaso que Roma serviu como base institucional de legitimação para o
estabelecimento de um culto oficial de santidade que ficou sediado em Bolonha, mais
precisamente no convento dominicano que foi renomeado em homenagem ao primeiro
mestre dos Frades Pregadores. Assim sendo, é no contexto italiano da primeira metade do
século XIII que se encontram as principais chaves para se compreender o desenvolvimento
daquele empreendimento coletivo de santidade, bem como as articulações institucionais e
as dinâmicas de poder que o mobilizaram para uma conclusão exitosa.



Como assinalado, a canonização de Domingos de Gusmão já foi alvo de reflexão e


de análise por uma série muito diversificada de trabalhos acadêmicos e publicações. A
seleção de textos e de autores aqui apresentada não teve o intuito de sintetizar tudo o que já
13

foi feito neste campo de investigação, ou de fazer um amplo balanço historiográfico. Mas
sim o objetivo de explorar algumas tendências de abordagem, de análise e de interpretação
veiculadas na historiografia, de forma a esclarecer os caminhos que já foram percorridos
por outros autores e apresentar novas possibilidades historiográficas a partir das escolhas e
das reflexões feitas nesta tese de doutorado.
Por isso mesmo optou-se por apresentar os comentários na parte final, reunindo os
trabalhos em grupo, de forma a demarcar comparativamente as tendências de abordagem,
de análise e de interpretação entre os autores selecionados, para depois apontar as escolhas
feitas nesta tese. Tais escolhas demarcam a originalidade das reflexões e dos argumentos
desenvolvidos ao longo dos capítulos, e que surgiram principalmente da análise do corpus
documental que foi explorado no decorrer da pesquisa de doutorado.
Os trabalhos selecionados e aqui apresentados não seguiram um critério específico
de seleção. Em grupo eles formam uma amostragem parcial das abordagens e das análises
que já foram desenvolvidas na historiografia acerca da canonização de Domingos de
Gusmão. Quanto à organização desta apresentação, seguiu-se uma lógica de reunir os
trabalhos pelo tipo de texto (trabalhos em atas de evento acadêmico, artigos publicados em
periódico, capítulos de livros e, por fim, livros), de maneira a equilibrar a comparação
entre os mesmos e os principais argumentos destacados.
O primeiro texto a ser aqui explorado é o de Pierre Kerbrat, publicado em 1995,
como parte das atas do colóquio “La religion civique à l’époque médiévale et moderne
(chrétienté et islam)”, com o título de Corps des saints et contrôle civique à Bologne du
XIIIe siècle au début du XVIe siècle.3 O trabalho em questão focaliza o controle cívico
exercido em Bolonha, entre os séculos XIII e XVI, aos corpos de santos mantidos naquela
cidade e que eram alvo da devoção popular.
Inicialmente o autor destaca a importância do corpo para o culto cívico praticado
em Bolonha, a tal ponto que o exercício do direito de guarda e conservação de um sepulcro
colocava em contradição as instituições religiosas e civis daquela cidade: afinal, quem
tinha esse direito? A questão não era meramente de cunho religioso, pois envolvia o direito
de jurisdição praticado por estas instituições e pelas autoridades citadinas. Segundo o

3
KERBRAT, Pierre. Corps des saints et contrôle civique à Bologne du XIIIe siècle au début du XVIe siècle.
In: COLLOQUE “LA RELIGION CIVIQUE À L’ÉPOQUE MÉDIÉVALE ET MODERNE (CHRÉTIENTÉ
ET ISLAM)”, 1993, Nanterre. Actes... Rome: École Française de Rome, 1995. p. 165-185.
14

autor, o poder comunal estabelecido em Bolonha não queria ter uma posição subalterna em
relação às demais instituições promotoras do culto cívico.4 Para Kerbrat o primeiro caso a
apontar iniciativas diretas da Comuna de Bolonha para se associar ao culto de relíquias foi
justamente o de Domingos de Gusmão.
O autor também destaca a resistência inicial dos frades do convento de Bolonha,
frustrando o desenvolvimento de um culto junto ao sepulcro daquele que foi apontado
como o fundador dos dominicanos. Tal quadro teria se alterado no início da década de
1230, quando os partidários da aclamação de um culto chegaram a uma nova decisão por
conta do estado deplorável em que se encontrava o local de sepulcro do antigo líder. Com
isso, a translatio corporis,5 ocorrida em 23 de maio de 1233, figurou como um prelúdio ao
processo de canonização.6
O crescimento do fervor popular ao culto de Domingos, associado ao movimento
religioso da magna devotio7 e às pregações de João de Vicenza,8 assim como a
movimentação de autoridades eclesiásticas no convento dominicano e o segredo em torno
da translatio corporis de Domingos, teriam despertado a atenção do poder comunal. Por
isso, o podestá9 de Bolonha, devidamente acompanhado por uma tropa, se fez presente ao
referido evento, para assegurar que aquele “corpo santo” permaneceria em seu território e
que não seria transferido para outro convento da Ordem dos Pregadores.

4
Ibid., p. 166 et seq.
5
Trata-se de uma expressão em latim que aparece com recorrência nos documentos que se relacionam com a
canonização e com o culto a Domingos de Gusmão. A referida expressão faz referência à trasladação do
corpo de Domingos que foi realizada no convento de San Nicolò delle Vigne (localizado em Bolonha), sendo
transferido de um sepulcro comum para o altar de uma capela da nova igreja que foi construída naquela
comunidade dominicana.
6
KERBRAT, op. cit., p. 169.
7
A magna devotio, também conhecida como Alleluia, foi um movimento religioso que se difundiu por
diferentes cidades italianas no ano de 1233, e que ficou marcado pelas grandes procissões de penitentes e de
flagelantes realizadas nos espaços urbanos, bem como pelas pregações feitas por frades mendicantes. Tal
movimento será melhor explorado no capítulo IV desta tese. Cf., infra, p. 168 et seq.
8
João nasceu por volta de 1200, na cidade de Vicenza, e morreu por volta de 1265, na região da Puglia
(ambas na Península Itálica). Ele era filho de um advogado de nome Manelino que atuava na administração
citadina de Vicenza. João desenvolveu estudos jurídicos em Pádua, onde teve seu primeiro contato com
Domingos de Gusmão, por volta de 1220, por meio das pregações que o Mestre Geral dos Frades Pregadores
realizava naquela cidade. Posteriormente ingressou na Ordem dos Pregadores e ocupou o cargo de prior do
convento de San Agostino (em Pádua) por volta de 1230. Ele foi um dos líderes religiosos do movimento da
magna devotio e atuou, paralelamente, como delegado papal no ano de 1233, arbitrando diversos conflitos
comunais como representante de Gregório IX.
9
Podestá é um termo que aparece em alguns documentos explorados ao longo desta pesquisa de doutorado e
serve para identificar o principal magistrado da Comuna de Bolonha, aquele que era o primeiro representante
do governo citadino, responsável por executar as decisões emanadas dos conselhos citadinos, por zelar pelo
cumprimento dos estatutos comunais e pelo exercício da justiça local.
15

Assim sendo, duas lógicas de direito se confrontaram no caso envolvendo a guarda


e a conservação do corpo do primeiro mestre geral dos dominicanos; uma universal,
representada pela Ordem dominicana (e pelo papado), e outra local, representada pela
atuação do poder comunal, que não teria sido previamente planejada, e sim surgido como
uma reação aos fatos.10
Outro trabalho debatido em um evento e que aborda a canonização de Domingos é
o de Maura O’Carroll, que foi publicado em 2005, nas atas do Congresso histórico
internacional “Domenico di Caleruega e la nascita dell'Ordine dei Frati Predicatori”. O
texto intitulado The cult and liturgy of St. Dominic se dedica a explorar o estabelecimento
histórico do culto e de uma liturgia própria para o primeiro santo dominicano.11
Esta autora também refletiu sobre o comportamento inicial dos frades de Bolonha
quanto à possibilidade de um culto para Domingos de Gusmão, argumentando que o ideal
de pobreza que caracterizava a Ordem dos Pregadores teria motivado a resistência daqueles
dominicanos. Pois eram amplamente conhecidos os exemplos de outras instituições que
abraçaram projetos de santidade e que, em decorrência disso, atraíram consideráveis
recompensas materiais. Além de destacar o contexto histórico que explica a movimentação
do mestre geral Jordão da Saxônia12 e de outros líderes da Ordem, ao manterem uma
cooperação estreita com a Igreja, em especial com o papado, por conta do apoio recebido
constantemente pelos dominicanos para os seus projetos.13
Quanto às iniciativas tomadas em 1233 para a canonização do líder dominicano, a
autora destacou: a pregação de João de Vicenza sobre a santidade de Domingos; o
crescimento do movimento popular, e o consequente apoio das autoridades citadinas e dos
frades dominicanos; mas, sobretudo, aponta a necessidade de ampliação da comunidade

10
KERBRAT, op. cit., p. 170 et seq.
11
O’CARROLL, Maura. The cult and liturgy of St Dominic. In: CONVEGNO STORICO
INTERNAZIONALE “DOMENICO DI CALERUEGA E LA NASCITA DELL’ORDINE DEI FRATI
PREDICATORI”, 41, 2004, Todi. Atti... Spoleto: Centro italiano di studi sull'Alto Medioevo, 2005, p. 567-
611.
12
Jordão nasceu por volta de 1190, em Dassel (no Ducado da Saxônia), na região da Vestfália, e morreu em
1237, vítima de um naufrágio na Costa da Síria. Ele era filho do conde de Oberstein e se formou como
teólogo na Universidade de Paris. Em 1219 teve seus primeiros contatos com Domingos de Gusmão, que
costumava pregar aos estudantes universitários de Paris. No mesmo ano Jordão ingressou na Ordem dos
Frades Pregadores, também por influência de Reginaldo de Orleans, que era frade dominicano e professor
daquela universidade. Em 1221 ele participou do primeiro Capítulo Geral da Ordem e foi indicado para o
cargo de Prior Provincial da Lombardia. No ano seguinte foi eleito Mestre Geral da Ordem, cargo que ele
ocupou até a sua morte em 1237.
13
O’CARROLL, op. cit., p. 570 et seq.
16

dominicana em Bolonha. Tais aspectos teriam motivado novas reflexões sobre o sepulcro
do fundador da Ordem, evoluindo para o evento da translatio corporis, que teria
evidenciado uma mudança de atitude dos frades em relação ao culto para Domingos. 14
Maura O’Carroll ainda acrescenta que a canonização de Domingos de Gusmão
tornou aceitável tanto o seu culto quanto a sua Ordem, estendendo para aquela instituição
religiosa o prestígio conferido ao seu fundador. De tal forma que os frades dominicanos
ficaram mais confiantes para explorar a vida e os milagres de seu antigo líder, resultando
nos primeiros textos sobre as origens dominicanas.15 Além disso, o reconhecimento papal
também abriu o caminho para a composição de uma liturgia associada à celebração
daquele culto, a começar pelos dez sermões atribuídos a Pelagius Parvus, que teriam sido
elaborados e pronunciados entre 1233 e 1244.16
Entre os artigos selecionados para esta reflexão historiográfica está o de Luigi
Canetti, intitulado Rito, narrazione, memoria. Primi racconti sulle ‘origini’ dei frati
Predicatori, que foi publicado em 2003, no âmbito do periódico “Mélanges de l’École
française de Rome. Moyen Âge”.17 O texto aborda os primeiros relatos elaborados sobre a
origem da Ordem dos Frades Pregadores, explorando a construção da imagem do santo
fundador e da própria ordem religiosa como partes de um mesmo processo.
Ao analisar os relatos em questão, o autor identifica uma caracterização ascética e
martirial do ideal de perfeição cristã associado à santidade fundadora de Domingos. Para
ele isto evidencia uma estilização discursiva comum a variados documentos sobre a origem
da instituição dominicana, o que apontaria a existência de um núcleo ideológico-narrativo
embasando a elaboração daqueles escritos. A utilização da categoria martirial naquelas
narrativas chega a ser paradoxal, pois representava naquela conjuntura um modelo de
santidade popular e, por isso mesmo, condenado pela alta hierarquia eclesiástica. Mas foi
utilizado nos textos fundadores como forma de propaganda ideológica a serviço da causa
político-eclesiológica do papado, de forma que aquela categoria fazia uma ligação da
santidade de Domingos com a tradição histórica daqueles que morreram em defesa da fé.18
Outra estilização discursiva apontada por Luigi Canetti nos referidos relatos é

14
Ibid., p. 571 et seq.
15
O’CARROLL, op. cit., p. 574.
16
Ibid., p. 575 et seq.
17
CANETTI, Luigi. Rito, narrazione, memoria. Primi racconti sulle ‘origini’ dei frati Predicatori. Mélanges
de l’École française de Rome. Moyen Âge, Roma, t. 115, n. 1, p. 269-294, 2003.
18
Ibid., p. 277 et seq.
17

aquela que procura associar um caráter profético à santidade de Domingos, cuja atuação é
comparada ao ardor metafórico das palavras de Elias nas escrituras sagradas do
cristianismo. Tal articulação foi feita em um texto de Estevão de Salanhac que se referia à
pregação/profecia realizada por um frade dominicano na vigília da festa de são Domingos,
que estava recém-canonizado.19
Segundo Canetti, a mitologia discursiva criada pelos dominicanos foi se
desenvolvendo através das constantes reescritas dos textos formadores da vida e da
santidade de Domingos, que foi alçado à posição de santo fundador daquela instituição
religiosa e de patrono do Ofício Inquisitorial, a partir dos acontecimentos relacionados à
sua canonização pela Igreja romana.20 Por fim, o autor destaca que a luta contra os hereges
foi convertida naquele contexto histórico em guerra santa, de forma que a ordem política
que se visava legitimar era aquela de uma cristandade comandada pelo papa.21
Outro artigo selecionado é o de Beatrice Borghi, intitulado Una ciudad, un santo,
una orden: Bolonia, Domingo de Caleruega y la Orden de los Frailes Predicadores. Entre
la vocación al estudio y la custodia de las sagradas prendas,22 que foi publicado no
periódico “Medievalismo” em 2015. Nele a autora explora a relação entre a cidade de
Bolonha, a Ordem dos Frades Pregadores e a devoção a são Domingos naquela localidade.
No referido artigo a autora defende com veemência a existência de uma devoção
popular a Domingos de Gusmão naquela cidade. Para Borghi a construção de uma nova
basílica para receber os despojos mortais do fundador dos dominicanos e a trasladação
realizada em maio de 1233 seriam efeitos desta devoção popular, que teria vencido a
resistência dos frades de Bolonha e alavancado as iniciativas favoráveis à canonização.23
Ao abordar o evento da translatio corporis de Domingos, Borghi destacou os
graves problemas econômicos que afetavam o convento dominicano naquele contexto, a tal
ponto que o evento foi realizado com as demais construções em andamento, e só a igreja
tinha sido concluída para aquele ritual solene. Ela também ressalta a apropriação do culto

19
CANETTI Rito, narrazione, memoria..., op. cit., p. 281 et seq.
20
Ibid., p. 270.
21
CANETTI Rito, narrazione, memoria..., op. cit., p. 281 et seq.
22
BORGHI, Beatrice. Una ciudad, un santo, una orden: Bolonia, Domingo de Caleruega y la Orden de los
Frailes Predicadores. Entre la vocación al estudio y la custodia de las sagradas prendas. Medievalismo,
Madrid, n. 25, p. 13-54, 2015.
23
Ibid., p. 36 et seq.
18

de são Domingos, que foi convertido em patrono daquela cidade italiana.24


No contexto da construção da basílica e da realização da translatio corporis de
Domingos em Bolonha, em maio de 1233, foi justamente quando se realizou um encontro
entre João de Vicenza (pregador dominicano), Enrique della Fratta (bispo de Bolonha), o
papa Gregório IX e representantes da Ordem dos Pregadores e do Estudo Geral daquela
cidade.25 Ao registrar esse suposto encontro a autora identifica quais seriam as instituições
e os grupos que, de forma organizada, tomaram as iniciativas para a abertura de um
processo de canonização para Domingos de Gusmão.
Entre os capítulos de livros selecionados para esta reflexão historiográfica sobre a
canonização de Domingos, encontra-se um intitulado “Militare per Cristo” contro gli
eretici, publicado em 1996, no livro Contro gli eretici de Grado Giovanni Merlo.26 Neste
texto o historiador italiano reflete sobre a formação e os usos da chamada militia Christi
pelo papado na passagem entre os séculos XII e XIII.
Segundo o autor, ao enfrentar o problema das heresias, a Igreja romana lançou mão
do uso da milícia cristã em um duplo sentido. O primeiro se desenvolveu através de uma
pastoral da palavra pelas Ordens mendicantes, que foram colaboradoras do papado no
enfrentamento das heresias. Para Merlo esta colaboração não se deu apenas através do
engajamento dos frades em campanhas de pregação promovidas pelo papado, mas também
com a utilização dos santos mendicantes como forma de propaganda.27
Grado Merlo destacou também que não existia uma real diferença entre coerção e
persuasão à ortodoxia. A reconquista da hegemonia religiosa da Igreja romana no Ocidente
passava pelo entrelaçamento de práticas violentas e de instrumentos ideológicos
multiformes, resultando no uso da santidade como estratégia de combate às heresias.28
É assim que se construiu o sentido da canonização de Domingos de Gusmão para
este historiador italiano. Para ele o reconhecimento oficial da santidade do fundador dos
dominicanos encontrou sua justificativa teológica e histórica na conjuntura do ativismo
anti-herético manifestado no pontificado de Gregório IX, de forma que a canonização foi
utilizada como forma de propaganda do combate às heresias, ao mesmo tempo em que

24
BORGHI, op. cit., p. 23 et seq.
25
BORGHI, op. cit., p. 24 et seq.
26
MERLO, Grado Giovanni. “Militare per Cristo” contro gli eretici. In: . Contro gli eretici. La
coercizione all’ortodossia prima dell’Inquisizione. Bolonha: Il Mulino, 1996, pp. 11-49.
27
Ibid., p. 20 et seq.
28
MERLO, op. cit., p. 46 et seq.
19

sancionou a missão inquisitorial conduzida pelos agentes pontifícios, boa parte deles
formada por frades da Ordem dos Pregadores.29
Já Roberto Paciocco dedicou um capítulo intitulado Verso l’apice, que foi
publicado em 2006, como parte do livro “Canonizzazioni e culto dei santi nella
christianitas (1198-1302)”, para tratar da consolidação dos procedimentos e das regras
desenvolvidas para as canonizações durante o pontificado de Gregório IX.30
Ao tratar das canonizações dos dois principais líderes mendicantes (Francisco e
Domingos), o autor destacou a vontade daquele pontífice romano como a origem para
aqueles projetos de santidade, tornando possível o surgimento de dois novos centros de
culto na Itália, localizados em Assis e em Bolonha.31 Esta não seria a única “coincidência”
apontada por Paciocco, pois os temas da corroboração da fé e do enfrentamento às heresias
aparecem como base das argumentações desenvolvidas naquelas canonizações.32
Continuando com a comparação, Roberto Paccioco ressaltou que se para Francisco
de Assis o desenrolar (ou não) de um processo formal junto ao papado é um dado
significativo, para Domingos significativos são os eventos associados à sua translatio
corporis em Bolonha. Pois naquele contexto histórico toda trasladação de um novo santo
deveria ser precedida pelo ato de canonização, o que não foi verificado no caso do
fundador dominicano. Ao contrário, naquele caso, a translatio teria precedido o
reconhecimento oficial da santidade justamente como uma estratégia para difundir a fama
sanctitatis33 de Domingos de Gusmão, algo que era fundamental para a abertura de uma
causa de canonização no pontificado de Gregório IX.34
Para Roberto Paccioco, o que ressalta ainda mais a participação do papado na
canonização de Domingos é o fato de que a Ordem dos Pregadores não tinha ainda
demonstrado qualquer interesse pela santidade do seu fundador nos doze anos seguidos
após a sua morte. Sendo provável que entre os frades dominicanos tenha surgido alguma
resistência quanto à transformação da imagem de seu antigo líder em sentido taumatúrgico.
Portanto, ao inscrever Domingos no catálogo de santos da Igreja, o papa direcionou os
29
Ibid., p. 30.
30
PACIOCCO, Roberto. Verso l’apice. In: . Canonizzazioni e culto dei santi nella christianitas (1198-
1302). Assisi: Ed. Porziuncola, 2006. p. 55-98.
31
Ibid., p. 67.
32
PACIOCCO, op. cit., p. 69 et seq.
33
Esta expressão em latim também aparece com alguma recorrência em documentos explorados na pesquisa
de doutorado e significa fama de santidade.
34
PACIOCCO, op. cit., p. 72 et seq.
20

frades daquela ordem religiosa para a memória litúrgica e hagiográfica daquele mestre.35
Stefano Brufani foi outro autor a redigir um capítulo que interessa explorar no
quadro formado por esta tese de doutorado. Trata-se do texto intitulado I santi mendicanti,
que foi publicado em 2012, como parte do livro “Forme e modelli della santità in
Occidente dal Tardo Antico al Medioevo”. Seguindo a lógica da obra em que ele se insere,
o autor explorou os exemplos dos santos mendicantes para tratar de modelos de santidade
que foram estabelecidos no século XIII.36
Para Brufani foi com o papa Gregório IX que a Igreja romana passou a oferecer aos
cristãos modelos de santidade “modernos”, que seriam mais coerentes com os movimentos
religiosos e com os ideais de comunidade que vigoravam naquele tempo.37 Por exemplo, o
modelo de santidade que valorizava a pobreza e a vida evangélica só se tornou viável a
partir das canonizações dos mendicantes no século XIII, na medida em que aquela Sede
apostólica assimilou estas novas ordens religiosas como expressão da própria renovação da
Igreja, reconhecendo assim os valores dos quais eram portadores.38
Por outro lado, o autor defendeu não existir um modelo de santidade unitário para
os fundadores mendicantes, mas sim de uma função de santidade comum entre os dois,
exercida em favor do sustento da Igreja romano-católica.39 Pois Francisco e Domingos
evidenciaram dois modelos de caráter diferente, sendo o primeiro associado a uma vida
laica e evangélica, e o segundo relacionado a uma proposta clerical e reformadora.40
O historiador italiano também destacou o fato de que, no caso de Domingos, a
proposição de uma vida religiosa como modelo de santidade e o estabelecimento de um
culto não se seguiram imediatamente após a morte ocorrida em 1221. Ele faz referência à
demora ocasionada na promoção de um culto para o fundador dos dominicanos, por conta
do comportamento dos frades de Bolonha. Foi propriamente por considerar a comum
vantagem de todos que, Gregório IX, os dirigentes da Ordem e da Comuna de Bolonha
teriam se articulado para alavancar a canonização de Domingos entre 1233 e 1234.41

35
Ibid., p. 75 et seq.
36
BRUFANI, Stefano. I santi mendicanti. In: BASCETTI, Massimiliano; DEGL’INNOCENTI, Antonella;
MENESTÒ, Enrico (Orgs.). Forme e modelli della santità in Occidente dal Tardo Antico al Medioevo.
Spoleto: Centro italiano di studi sull'Alto Medioevo, 2012. p. 57-96.
37
Ibid., p. 69 et seq.
38
BRUFANI, op. cit., p. 71 et seq.
39
Ibid., p. 76.
40
BRUFANI, op. cit., p. 90.
41
Ibid., p. 83 et seq.
21

Também para Brufani o papa Gregório IX teria desempenhado um papel central nos
acontecimentos que viabilizaram a canonização de Domingos, sendo a familiaridade e a
amizade desenvolvida pelos dois ainda em vida, elementos determinantes no sucesso final
da causa do fundador dominicano. Apesar disso, a solicitude pastoral do pontífice romano
na canonização do antigo líder dos dominicanos teria sido fruto do momento particular de
dificuldades do papado e tendo como objetivo a vantagem geral da Igreja militante.42
O autor também destacou, como característica inovadora, o envolvimento do
papado nas canonizações dos fundadores mendicantes, participando de todas as etapas
necessárias para o estabelecimento do culto e sua posterior promoção litúrgica. Mas não
deixou de sublinhar que estas etapas não teriam sido exitosas sem a cooperação direta das
ordens religiosas criadas por Francisco e Domingos.43
Entre os livros selecionados para ser debatidos está o de Marie-Humbert Vicaire,
que foi publicado em 1957, com o título de Histoire de Saint Dominique.44 A obra em
questão, publicada em dois tomos, dedica-se a explorar a história de vida de Domingos de
Gusmão. A parte que mais interessa para as reflexões aqui realizadas está no tomo II, pois
existe um capítulo específico para tratar da canonização do fundador dominicano.
A argumentação de Vicaire destacou o papel fundamental do interesse popular, ou
da própria Igreja romana, para sustentar uma canonização naquele contexto do século XIII.
No caso de Domingos, embora ele não tivesse na data de sua morte a mesma notoriedade
que Francisco de Assis ou Antônio de Pádua, já existia um culto sendo desenvolvido junto
à sua sepultura no convento dominicano de Bolonha. Porém, os frades da comunidade
além de não encorajarem aquela devoção espontânea, trataram de sufocá-la em sua origem,
de forma que o culto ao líder dominicano acabou caindo no esquecimento.45
Marie-Humbert Vicaire ressalta que a chegada do movimento religioso Alleluia na
cidade de Bolonha, criou uma base para a canonização de Domingos.46 Principalmente
graças à atuação do frade João de Vicenza nesse movimento, fazendo pregações sobre a
vida e os milagres do fundador dominicano, e atuando também na pacificação da cidade de
Bolonha, de modo que se formou uma atmosfera de fervor popular que foi canalizada para

42
BRUFANI, op. cit., p. 84.
43
Ibid., p. 70.
44
VICAIRE, Marie-Humbert. Histoire de Saint Dominique. Au coeur de L’Église. Paris : Du Cerf, 1957.
45
Ibid., p. 340 et seq.
46
VICAIRE, op. cit., p. 339 et seq.
22

o estabelecimento de um culto em favor do fundador dos dominicanos.47


Quanto às iniciativas tomadas para a canonização, o autor destaca um misto de
circunstância e atuação dos dirigentes da Ordem para vencer aquela resistência inicial no
convento de Bolonha. Pois, em decorrência das obras de ampliação daquela comunidade, a
sepultura de Domingos acabou ficando a céu aberto, exposta às intempéries, o que levou o
prior provincial da Lombardia (Estevão48) e as autoridades do convento a tomarem a frente
das iniciativas para transportar o corpo a um local mais adequado, e assim a ideia de uma
canonização foi ganhando corpo e adeptos na instituição.49
Como a consulta ao pontífice romano não era necessária para a realização de uma
translatio, Vicaire ressaltou que esse recurso pode ter sido uma estratégia para provocar
uma reação do pontífice romano e desarmar o ânimo dos frades que resistiram ao
desenvolvimento de um culto. A rápida canonização dos santos franciscanos pode ter
despertado o corporativismo e a atenção dos dominicanos, que teriam então se mobilizado
para alcançar o mesmo reconhecimento para o fundador de sua ordem.50
Outro livro que foi selecionado para a discussão aqui realizada é aquele de Elio
Montanari, intitulado Litterae encyclicae annis 1233 et 1234 datae e publicado em 1993.51
A obra em questão dedica-se a apresentar edições críticas das cartas encíclicas que foram
atribuídas por uma tradição, e pelo próprio autor, a Jordão da Saxônia. Antes disto o autor
fez um debate sobre as iniciativas e os eventos que antecederam a canonização do fundador
dominicano e, portanto, sobre a própria elaboração daquelas cartas encíclicas.
A primeira questão explorada na argumentação de Elio Montanari diz respeito aos
primeiros indícios de uma devoção popular ao antigo líder dos frades pregadores, pois para
ele existem evidências de que esta devoção teria surgido logo após a morte de Domingos.
Mas o comportamento dos frades dominicanos do convento de San Nicolò teria frustrado o
desenvolvimento de um culto inicial junto à tumba do fundador dominicano, de maneira

47
Ibid, p. 344 et seq.
48
Estevão era oriundo da Península Ibérica, mas não se sabe ao certo sua cidade natal e a data do nascimento.
Em 1219 estava na cidade de Bolonha como mais um estudante na universidade local e por meio das
pregações conheceu Domingos de Gusmão, ingressando na Ordem dos Pregadores pouco tempo depois. Ele
foi o sucessor de Jordão da Saxônia no cargo de Prior Provincial da Lombardia. Também atuou como legado
papal naquela mesma região pouco antes da canonização de Domingos. Por volta de 1238, Estevão foi
nomeado arcebispo de Torres por decisão do papa Gregório IX.
49
VICAIRE, op. cit., p. 341 et seq.
50
Ibid., p. 342.
51
MONTANARI, Elio. Litterae encyclicae annis 1233 et 1234 datae. Spoleto: Centro italiano di studi
sull'Alto Medioevo, 1993.
23

que ele teria caído em esquecimento.52


O autor em questão também aponta o contexto do movimento religioso Alleluia e a
atividade pregadora do dominicano João de Vicenza como responsáveis pelo renascimento
de uma devoção popular a Domingos na cidade de Bolonha.53 Apesar das atividades
daquele frade terem canalizado o entusiasmo e o fervor da população local para a santidade
daquele líder dominicano, alguns dirigentes da Ordem dos Pregadores teriam ficado
desconfiados dos métodos utilizados por ele, de forma que sua atuação sofreu uma espécie
de censura interna, ao não ser mencionada nos textos de Jordão da Saxônia.54
Sem dúvida, um dos aspectos mais relevantes da argumentação desenvolvida por
Montanari diz respeito ao acontecimento da translatio corporis de Domingos de Gusmão,
que para ele não foi o resultado de uma decisão de última hora, mas sim de um projeto
previamente planejado no âmbito da Ordem e que teria a finalidade de renovar a atenção
do povo para o fundador dominicano, criando o fundamento de um culto local e, ao mesmo
tempo, atendendo ao requisito básico para a abertura de uma causa de canonização.55
Após identificar os grupos que participaram ativamente do planejamento e da
execução do projeto da translatio corporis, com destaque para os líderes da Ordem dos
Pregadores, para o papa Gregório IX e para as autoridades da Comuna de Bolonha, 56
Montanari ressalta ainda que aquele acontecimento e os seus efeitos (sobretudo os relatos
de milagres que lhe foram associados) formaram a base fundamental para as iniciativas que
conduziram à canonização de Domingos de Gusmão.57
Por fim o livro L’invenzione della memoria. Il culto e l’immagine di Domenico
nella storia dei primi frati Predicatori, publicado por Luigi Canetti em 1996. Tal obra
parte da canonização do fundador para defender a tese de uma construção deliberada da
memória dominicana associada à santidade de seu antigo líder, como forma de legitimar
institucionalmente aquela Ordem, garantindo seu futuro nos quadros da Igreja romana.58
Para Luigi Canetti as atividades desenvolvidas pelo frade João de Vicenza em

52
Ibid, p. 3 et seq.
53
MONTANARI, op. cit., p. 8 et seq.
54
MONTANARI, op. cit., p. 12 et seq.
55
Ibid, p. 6 et seq.
56
MONTANARI, op. cit., p. 15-18.
57
Ibid., p. 28.
58
CANETTI, Luigi. L’invenzione della memoria. Il culto e l’immagine di Domenico nella storia dei primi
frati Predicatori. Spoleto: Centro italiano di studi sull'Alto Medioevo, 1996. (Biblioteca de Medioevo Latino,
19).
24

Bolonha, constituem o principal elo para identificar os grupos que participaram dos
preparativos para a canonização de Domingos, bem como para explorar os interesses que
eles manifestavam nessa causa. A começar pela cúpula da Ordem dos Pregadores e por seu
mestre geral, Jordão da Saxônia, que deram apoio e legitimidade às ações promovidas em
Bolonha pelo frade João de Vicenza. O autor destaca que as atividades daquele frade
coincidem com os preparativos realizados para a translatio corporis de maio de 1233 e que
ele teria chegado naquela cidade a convite do mestre geral dominicano.59 A licença especial
concedida àquele pregador e a natureza de suas atividades (político-diplomáticas) indicam
que os dirigentes da Ordem criaram uma exceção ao seu caso, como estratégia para
alcançar o consenso citadino para viabilizar a canonização de Domingos.60
Por outro lado, o autor ressalta que o papa Gregório IX enviou seguidas cartas ao
frade João felicitando-o pelo sucesso de sua pregação, o que apontaria um persistente
interesse do pontífice romano naquela atividade, inclusive assistindo e tutelando o que
estava sendo feito.61 A própria atuação do papa, como áuspice e promotor daquela solene e
canônica translatio, antes mesmo da abertura de um processo formal de canonização para
Domingos (o que também contrariava as normas vigentes), seria indicativo do apoio papal
àquela causa, a ponto de usar a cerimônia como estratégia de propaganda para cimentar
uma devoção considerada requisito para o início de um processo na cúria.62
Luigi Canetti também aponta a participação da autoridade comunal e de outros
representantes da cidade de Bolonha nos preparativos da translatio corporis e nas
iniciativas posteriores para a abertura de uma causa de canonização em favor do líder
dominicano, o que seria compatível com a atuação de João de Vicenza como árbitro do
conflito entre o bispo local e a Comuna, sendo o acordo final favorável a esta última.63 Para
o historiador italiano existe uma série de iniciativas tomadas pelo poder comunal naquele
contexto que apontam o pleno apoio das instâncias citadinas à causa dominicana.64
Canetti conclui que o silêncio inicial e a ausência de um culto após a morte de
Domingos seriam o resultado de sua escassa celebridade em Bolonha, embora a falta de
interesse dos frades tenha também contribuído para a perpetuação desse quadro. A partir da

59
Ibid., p. 69 et seq.
60
CANETTI, op. cit., L’invenzione della memoria..., p. 82 et seq.
61
Ibid., p. 75 et seq.
62
CANETTI, op. cit., L’invenzione della memoria..., p. 76 et seq.
63
Ibid., p. 83 et seq.
64
CANETTI, op. cit., L’invenzione della memoria..., p. 84 et seq.
25

campanha de pregação e pacificação conduzida pelos dominicanos em 1233, sobretudo


com as atividades do frade João, foi possível revigorar a ideia de um culto para o antigo
líder. Desta maneira, os dominicanos tiveram a habilidade de canalizar o entusiasmo do
movimento chamado Alleluia para uma ordenada devoção ao seu fundador, catalisando o
consenso popular para o reconhecimento da santidade de Domingos de Gusmão.65
Ao explorar os trabalhos selecionados para esta reflexão historiográfica sobre a
canonização de Domingos de Gusmão, algumas questões levantadas e argumentadas pelos
autores, permitem apontar temas prioritários na análise daquele objeto de investigação,
bem como delinear tendências de abordagens e de interpretação.
Um dos temas priorizados nos textos aqui explorados é a questão da formação de
uma base devocional ao antigo líder dos dominicanos. Para a maioria dos autores referidos
anteriormente, existem evidências que apontam o desenvolvimento de um culto inicial
antes mesmo da translatio corporis de 1233 e da canonização de 1234. Sendo este o
posicionamento manifestado nos trabalhos de Pierre Kerbrat, Maura O’Carroll, Beatrice
Borghi, Marie-Humbert Vicaire e Elio Montanari. Para esses autores após a morte de
Domingos de Gusmão existiu uma prática de devoção popular associada ao local de
sepultura no convento de San Nicolò, em Bolonha. E esta manifestação inicial de devoção
teria sido abafada/frustrada através do comportamento dos frades daquele convento, que
teriam feito um movimento de resistência ao estabelecimento de um culto público para o
fundador da Ordem dos Frades Pregadores.
Posicionamento diverso deste destacado acima é aquele expressado nos textos de
Roberto Paciocco, Stefano Brufani e Luigi Canetti, para os quais não existiu um culto
inicialmente formado logo após a morte de Domingos, por conta da sua pouca notoriedade
junto à população de Bolonha e da indiferença manifestada pelos frades dominicanos de
San Nicolò quanto à possibilidade de um culto. Exatamente por isso teria sido necessário
aproveitar o contexto religioso da magna devotio para sedimentar junto à população local
uma fama sanctitatis para Domingos de Gusmão, através da campanha de pregação e de
pacificação do frade João de Vicenza, canalizando para o antigo líder da Ordem dos
Pregadores o fervor popular existente no âmbito daquele movimento.
A tese aqui defendida caminha entre estas duas tendências apontadas acima. Para

65
Ibid., p. 115 et seq.
26

começar os documentos aqui explorados permitem evidenciar o desenvolvimento de uma


devoção a Domingos que é anterior aos eventos de 1233 e 1234, portanto não relacionada
às iniciativas tomadas em favor da sua canonização. Mas o comportamento coletivo de
resistência dos frades do convento de San Nicolò, ao longo do tempo, teria contribuído
para uma diminuição daquela devoção inicial, dificultando o estabelecimento de um culto
oficial para o primeiro mestre geral dos Frades Pregadores. Por isso, as ações realizadas em
123366 tiveram o intuito de canalizar o fervor popular da magna devotio para o culto de
Domingos de Gusmão, de forma a derrotar aquela resistência existente no convento de
Bolonha e atender aos requisitos necessários para a abertura de uma causa de canonização
em Roma.
Os trabalhos aqui abordados também fazem referência a grupos e instituições que
teriam atuado diretamente para favorecer a canonização do primeiro mestre geral dos
dominicanos. Com destaque para a perspectiva de uma convergência de forças na
sustentação daquela causa, reunindo principalmente o papado, a Ordem dos Frades
Pregadores e a Comuna de Bolonha. Nesta linha de pensamento encontram-se os textos de
Luigi Canetti, Beatrice Borghi, Roberto Paciocco, Stefano Brufani e Elio Montanari, com
algumas diferenças entre si, pois Canetti e Montanari tendem a exaltar mais a participação
dos dominicanos no planejamento e na execução das iniciativas. Enquanto o papel central
desempenhado pelo papado nos preparativos da canonização aparece com maior destaque
nos textos de Roberto Paciocco e Stefano Brufani.
Já a perspectiva de uma divergência/disputa entre as diferentes instituições foi
abordada no trabalho de Pierre Kerbrat, que ressaltou em sua análise o confronto de duas
lógicas diferentes de direito sobre a tutela do corpo santo, uma expressada nas ações da
Ordem dos Pregadores e outra nas iniciativas da Comuna de Bolonha. Evidenciando uma
possibilidade de abordagem que explore a dinâmica de poder entre as instâncias que se
afirmavam como representantes de projetos de cunho universal e/ou local.
A lógica da convergência de forças para a causa de canonização de Domingos de
Gusmão é devidamente adequada para a análise realizada nesta tese, mas não sem
problematizar as possíveis divergências entre as diferentes instituições e mesmo no interior

66
Tais ações foram exploradas nos capítulos III e IV desta tese de doutorado, e apontam a mobilização das
instituições locais de Bolonha e dos representantes do papado para criar as bases de um culto para Domingos
de Gusmão.
27

dos grupos atuantes naquele processo de reconhecimento de um culto público. Pois a


ordem criada para alavancar, sustentar, aclamar e difundir a santidade daquele líder
dominicano não era desprovida de conflitos, o que demanda uma revisão das análises e das
reflexões historiográficas já realizadas.
A tese aqui defendida vai sustentar que esta convergência de forças não ocorreu
espontaneamente, por conta dos interesses próprios das instituições envolvidas naquela
causa de canonização, mas sim como resultado de uma concórdia que foi conduzida pelo
papado, ao atuar como um poder mediador sobre as divergências e os conflitos existentes
na península italiana, e mais precisamente na cidade de Bolonha. Nesse sentido é como se
a canonização de Domingos fosse o símbolo de um acordo de paz entre os grupos políticos
que disputavam entre si prerrogativas e posições de poder no âmbito daquela comuna. Um
acordo celebrado sob a condução política e religiosa da Igreja romana.
Por fim a atribuição de um sentido histórico para a canonização do primeiro mestre
geral dos Pregadores. A perspectiva de uma legitimação da Ordem dos Frades Pregadores
por meio da santidade de Domingos, garantindo a perpetuação institucional dos
dominicanos e o futuro de suas atividades após a morte de seu fundador, é defendida nos
textos de Maura O’Carroll, Roberto Paciocco e Luigi Canetti. A ideia de uma propaganda
anti-herética e de uma legitimação da Inquisição pontifícia associadas àquela canonização
aparece como argumento nos trabalhos de Grado Giovanni Merlo e de Luigi Canetti,
destacando a apropriação daquela santidade realizada pelo papado. Além da proposta de
afirmação de um culto cívico e de sua captação em favor do poder comunal de Bolonha, tal
como foi apontado no texto de Pierre Kerbrat.
Sem negar por completo tais perspectivas, a tese aqui defendida pretende colaborar
com uma nova visão historiográfica sobre o sentido histórico da canonização de Domingos
de Gusmão e sobre a articulação de forças que alavancaram e sustentaram uma causa de
santidade para o primeiro líder dos dominicanos.
Parte relevante da originalidade deste trabalho se deve a consideração da existência
de diferentes dinâmicas de poder atuantes na Península Itálica na primeira metade do
século XIII, bem como das disputas políticas evidenciadas no contexto mais específico da
referida campanha de canonização (a cidade de Bolonha nos primeiros anos da década de
1230). Assim sendo, o sentido histórico da canonização do primeiro mestre geral dos
Pregadores se situa na encruzilhada das dinâmicas de poder e dos projetos políticos que se
28

manifestaram mais amplamente na península italiana e mais especificamente na cidade de


Bolonha.



Para realizar a pesquisa de doutorado sintetizada nesta tese foi selecionado um


corpus documental que permitiu investigar a atuação dos grupos e das instituições
envolvidas na causa de canonização de Domingos de Gusmão. Tratam-se de documentos
produzidos e conservados pela Igreja romana e pela Ordem dos Frades Pregadores; alguns
se relacionam mais diretamente com o reconhecimento oficial da santidade do primeiro
líder dos dominicanos, e outros com a dinâmica administrativa e com as decisões tomadas
no âmbito destas instituições.
As fontes selecionadas referentes ao papado na primeira metade do século XIII
foram as seguintes: o livro de registro das bulas emitidas pelo papa Gregório IX (o Incipit
Liber Regestrorum) e alguns documentos integrantes do processo de canonização de
Domingos de Gusmão (o mandato papal enviado aos comissários de Bolonha, e depois
repassado aos subcomissários de Toulouse, as atas do inquérito realizado naquela cidade
italiana e a bula de canonização). Este primeiro conjunto documental permitiu mapear os
principais projetos pontifícios e as preocupações manifestadas nos anos de 1233 e 1234, de
forma articulada com o reconhecimento da santidade do fundador dos dominicanos, para
evidenciar as relações institucionais e os interesses mobilizados na direção daquela causa.
O Incipit Liber Regestrorum do pontificado de Gregório IX é um registro oficial de
natureza administrativa que foi editado no final do século XIX, mais precisamente em
1896, por Lucien Auvray, sob o título de: Les Registres de Gregoire IX. Recueil de bulles
de ces pape d’après les manuscrits originaux du Vatican.67 Tal edição foi publicada em
latim (preservando a linguagem original dos manuscritos medievais), reunindo decisões e
ações institucionais daquele pontífice, no período de 1227 a 1241, na forma de bulas e
decretos papais. Tudo organizado cronologicamente com a indicação de dia, mês e ano da
publicação, bem como informação dos registros nos quais estes documentos encontram-se
arquivados no Vaticano.

67
AUVRAY, Lucien. Les Registres de Gregoire IX. Recueil de bulles de ces pape d’après les manuscrits
originaux du Vatican. Paris: Librairie Thorin et Fils, 1896.
29

A leitura e análise desta documentação administrativa permitiu a identificação de


ações e decisões da Igreja romana no contexto histórico em que se deu a canonização de
Domingos de Gusmão, bem como a observação das relações político-institucionais
mantidas com as instituições e os grupos envolvidos naquela causa de santidade. Além de
ter possibilitado um mapeamento dos interesses e das demandas do papado naquela
conjuntura, tal documentação permitiu visualizar a movimentação dos representantes do
pontífice romano, bem como as orientações expressas que eles receberam. De modo que
ficou bastante evidente o envolvimento do papa Gregório IX e os interesses da Igreja de
Roma naquele reconhecimento oficial da santidade de Domingos.
Os demais documentos pontifícios acima identificados (e que se relacionam à causa
de canonização de Domingos de Gusmão) foram publicados em uma edição crítica da
Monumenta Ordinis Fratrum Praedicatorum Historica de 1935, tendo sido editados em
latim por Angelus Walz e reunidos sob o título de Acta Canonizationis S. Dominici.68
Entre eles está o mandato papal que foi enviado à comissão de Bolonha ordenando
a abertura formal do processo de canonização de Domingos,69 por meio da realização de
uma inquisitio70 naquela cidade italiana. Este documento foi redigido na forma de uma
carta, apresentando as expectativas do papa Gregório IX quanto àquela causa, e repassando
poderes e orientações aos clérigos que foram nomeados pelo pontífice romano para aquela
tarefa de investigação. Outro documento com a mesma característica foi enviado pelos
comissários bolonheses aos subcomissários de Toulouse,71 delegando poderes e repassando
as orientações papais para que os designados realizassem também um inquérito naquela
cidade francesa.
Tais documentos integram o processo de canonização de Domingos de Gusmão e se
caracterizam como mandatos pontifícios, configurando atos administrativos e jurídicos da
Igreja romana no exercício de suas prerrogativas quanto ao reconhecimento da santidade,
designando e nomeando representantes locais para que atuassem em nome do papa.

68
WALZ, Angelus. Acta Canonizationis S. Dominici. In: Monumenta Ordinis Fratrum Praedicatorum
Historica, tomus XVI. Romae: Institutum Historicum FF. Praedicatorum, 1935. p. 89-194. Deste ponto em
diante a referência a esta coletânea organizada e editada por Angelus Walz será feita apenas como Acta
Canonizationis S. Dominici, seguida da identificação das páginas correspondentes ao documento referido no
corpo do texto.
69
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 114-117.
70
Termo latino que pode ser traduzido por inquisição. Faz referência à prática de inquirir pessoas como parte
de um inquérito, de uma investigação.
71
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 168-172.
30

Através destas fontes foi possível identificar a mobilização do papado e de outras


instituições para o sucesso daquela causa de canonização, bem como o juízo favorável
manifestado pelo pontífice romano antes mesmo do processo de investigação ser realizado.
Entre as fontes selecionadas para análise também constam as atas do inquérito
conduzido em Bolonha (em agosto de 1233),72 que se caracterizam como documentos de
natureza administrativa e jurídica, reproduzindo os testemunhos de nove frades da Ordem
dos Pregadores que foram tomados naquela cidade italiana pela comissão nomeada pelo
papa Gregório IX. Tais relatos foram fundamentais para avaliar o perfil de santidade
construído para Domingos de Gusmão, mas também permitiram analisar relações de poder
e projetos institucionais do papado e da referida ordem mendicante, que se manifestaram
através destes testemunhos.
Vale ressaltar que as atas do inquérito conduzido na cidade de Toulouse não foram
analisadas nesta tese de doutorado, o que deve ser feito em trabalhos futuros. Pois o
propósito estabelecido para esta pesquisa era o de avaliar comparativamente as iniciativas e
os interesses de instituições e de grupos que se mobilizaram em território italiano para
alavancar, sustentar, aclamar e difundir um culto para o fundador dos dominicanos.
Bolonha, segundo parte da historiografia73 apresentada no item anterior, foi a principal base
deste projeto de santidade e do culto estabelecido oficialmente para Domingos de Gusmão,
que acabou se tornando patrono daquela cidade. Por isso o foco de análise e o esforço de
investigação foram direcionados para aquela cidade italiana, bem como para as relações
políticas e institucionais mantidas com a Igreja romana.
Finalizando este primeiro conjunto documental que foi selecionado para a tese de
doutorado chega-se à bula Fons sapientie,74 que foi publicada em 03 de julho de 1234, na
cidade de Rieti, na Itália, tornando pública e formal a canonização de Domingos de
Gusmão pela Igreja romana. O texto tem o formato de uma carta aberta que desenvolve um
discurso oficial sobre a santidade fundador dos dominicanos, e aponta como destinatários
as autoridades eclesiásticas e religiosas, os sacerdotes e os cristãos em geral.
Este documento foi o ponto de partida para esta pesquisa de doutorado. As análises
realizadas anteriormente na bula Fons sapientie apontaram as questões que aqui foram

72
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 123-167.
73
CANETTI, op. cit., L’invenzione della memoria...; BORGHI, op. cit.; KERBRAT, op. cit.; PACIOCCO,
op. cit.
74
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 188-194.
31

aprofundadas, sobretudo em relação ao perfil de santidade construído para Domingos de


Gusmão e a sua articulação com ideais de perfeição e de espiritualidade cristã que
dialogam com a conjuntura italiana da década de 1230. No referido texto também ficou
evidente o sentido histórico atribuído à canonização do primeiro mestre dos dominicanos,
articulando as demandas e os projetos da Igreja romana com a atuação religiosa da Ordem
dos Frades Pregadores.
A outra parte do corpus documental selecionado para a pesquisa de doutorado é
formada por textos produzidos e conservados no âmbito da Ordem dos Frades Pregadores.
Por esse motivo, entende-se que são documentos de natureza institucional e que servem de
base para avaliar questões internas dessa ordem mendicante, bem como as possíveis
relações com o papado no período em que foram produzidos e os esforços direcionados
conjuntamente para a causa de canonização de Domingos.
O primeiro deles é o Libellus de principiis Ordinis Praedicatorum,75 uma crônica
redigida por Jordão da Saxônia e que foi a primeira iniciativa para sintetizar a história da
Ordem dos Frades Pregadores. Tal obra também foi a primeira a abordar a trajetória
pessoal e religiosa de Domingos de Gusmão, a sua morte e o comportamento inicial dos
frades e dos demais cristãos em relação ao sepulcro do primeiro mestre dos dominicanos.
A versão aqui utilizada está disponível na Monumenta Ordinis Fratrum Praedicatorum
Historica de 1935, tendo sido editada em latim por Angelus Walz.
O Libellus foi redigido entre 1231 e 1233, sendo um documento de caráter literário
e historiográfico, que busca forjar a origem histórica da Ordem dos Pregadores, bem como
a trajetória particular de Domingos e de outros frades pregadores que atuaram ao seu lado
no início do século XIII. Nos últimos capítulos o livro foca na morte do primeiro mestre,
nos relatos de milagres e nas primeiras evidências de uma devoção popular, assumindo
características de uma primeira hagiografia dominicana. Por isso, a crônica de Jordão da
Saxônia foi importante para avaliar os primeiros esforços de construção da santidade de
Domingos, assim como os problemas iniciais em relação ao seu sepulcro no convento de
San Nicolò delle Vigne.
Além do referido livro, o mestre geral da Ordem dos Frades Pregadores também

75
WALZ, Angelus. Libellus de principiis Ord. Praedicatorum auctore Iordano de Saxonia. In: Monumenta
Ordinis Fratrum Praedicatorum Historica, tomus XVI. Romae: Institutum Historicum FF. Praedicatorum,
1935. p. 25-88.
32

redigiu muitas cartas, entre as quais algumas foram conservadas e publicadas em edições
críticas. É o caso das epístolas que Jordão da Saxônia redigiu no período entre 1222 e
1236, sendo a maioria delas correspondências que ele trocava com as religiosas do
convento de Santa Inês, que estava sob o controle material e espiritual dos dominicanos.
Tais cartas foram editadas em latim por Angelus Walz e publicadas na Monumenta Ordinis
Fratrum Praedicatorum Historica de 1951, com o título de Beati Iordani de Saxonia
Epistolae.76
Estas correspondências que Jordão manteve com as religiosas de Santa Inês e com
alguns subordinados seus na Ordem dos Pregadores dão uma noção do seu perfil de
liderança e das prioridades por ele estabelecidas para os Frades Pregadores. Também
foram importantes para esta tese porque evidenciam problemas na hierarquia dominicana
naquele período após a morte de Domingos, inclusive com contestações abertas ao poder
exercido por Jordão da Saxônia. De forma que este conjunto documental permitiu apontar
uma dinâmica de relações de poder no âmbito da referida ordem religiosa.
Ainda da autoria de Jordão da Saxônia é a carta encíclica redigida em 1234 e
direcionada aos frades da Ordem dos Pregadores,77 apresentando um relato oficial para o
evento da translatio corporis de Domingos de Gusmão, realizada no convento de San
Nicolò delle Vigne em maio de 1233. Esta carta foi editada em latim por Elio Montanari e
publicada em 1993 no livro intitulado Litterae Encyclicae annis 1233 et 1234 datae.
A referida carta encíclica também foi importante para a análise realizada nesta tese
de doutorado, pois o evento da trasladação de Domingos foi uma das etapas realizadas para
estabelecer um culto oficial na cidade de Bolonha e para alavancar um processo de
canonização junto à Igreja romana. O relato de Jordão aborda as iniciativas tomadas
naquele contexto, aponta os problemas anteriores em relação ao sepulcro do fundador dos
dominicanos, além de identificar grupos e autoridades que se mobilizaram para a
realização daquela cerimônia religiosa. Portanto, trata-se de um documento relevante para
avaliar as relações de poder e institucionais mobilizadas para aquele acontecimento.
Por fim, mas não menos importante, aparecem os documentos do convento de San

76
WALZ, Angelus. Beati Iordani de Saxonia Epistolae. In: Monumenta Ordinis Fratrum Praedicatorum
Historica, v. XXIII. Romae: Institutum Historicum Fratrum Praedicatorum, 1951. p. 1-69.
77
JORDÃO DA SAXÔNIA. Litterae Encyclicae anno 1234. In: MONTANARI, Elio. Litterae Encyclicae
annis 1233 et 1234 datae. Spoleto: Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, 1993. p. 255-261.
33

Nicolò, que foram editados em latim e compilados por Venturino Alce,78 sendo publicados
no Archivum Fratrum Praedicatorum de 1972. Tratam-se de contratos de compra, venda e
doação de terrenos e imóveis, mandatos e diplomas, que registram parte da história daquele
convento dominicano e das relações mantidas com autoridades locais e de outras regiões.
Tais documentos evidenciam a ampliação territorial e patrimonial daquela
comunidade bolonhesa no período posterior à morte de Domingos, e foram relevantes na
análise para apontar a articulação cronológica deste crescimento material com as
iniciativas tomadas para estabelecer um culto para o fundador dos dominicanos. De forma
que a análise permitiu problematizar a questão da pobreza entre os frades de Bolonha,
como um dos motivos para o comportamento de resistência de alguns deles em relação à
possibilidade de um culto estabelecido naquela comunidade.
A seleção deste corpus documental da Igreja romana e da Ordem dos Frades
Pregadores, que aqui foi apresentado, bem como o cruzamento das informações e a
articulação das análises produzidas a partir destes documentos, constituem parte da
originalidade desta tese de doutorado. Pois permitiram avaliar as iniciativas e as decisões
tomadas nos anos anteriores a 1234, por parte dos grupos e das instituições diretamente
envolvidos naquela causa de canonização, de uma forma que não foi feita por outros
autores.



O corpus documental apresentado anteriormente foi a base principal desta tese de


doutorado. Mas esta base não teria sido devidamente explorada sem um arcabouço teórico
e metodológico que permitisse apontar um caminho e uma perspectiva de análise para o
desenvolvimento da argumentação. Desde o início desta pesquisa a História Política foi a
modalidade historiográfica que mais se adequou aos propósitos e às questões que foram
levantadas a partir da canonização de Domingos de Gusmão.
Dentre os caminhos possíveis que foram estabelecidos na historiografia ocidental,
sobretudo a partir da década de 1970, a História Política voltou a sua atenção para o(s)
poder(es) e suas manifestações na experiência humana, não mais entendidos somente como

78
ALCE, Venturino. Documenti sul Convento di San Domenico in Bolonha dal 1221 al 1251. In: Archivum
Fratrum Praedicatorum, Volumen XLII. Roma: Istituto Storico Domenicano di S. Sabina, 1972. p. 5-45.
34

reflexo da atuação do Estado sobre a sociedade. Mas problematizados a partir das diversas
relações e das instituições presentes nas diferentes sociedades: “os poderes, os saberes
enquanto poderes, as instituições supostamente não políticas, as práticas discursivas”.79
Estas foram apenas algumas das contribuições analíticas e conceituais do filósofo
Michel Foucault para os historiadores. Um dos principais resultados desta aproximação da
historiografia com os estudos foucaultianos pode ser observado no redimensionamento da
noção de política, não mais entendida somente na esfera do Estado e de suas ações, mas
identificada e analisada nas suas diferentes manifestações em sociedade. Nesse sentido,
relações, práticas e discursos presentes nas diversas instituições sociais passaram a ser alvo
da análise dos historiadores, porque foram entendidos como manifestações do poder e da
política no cotidiano.
Ao investigar a canonização de Domingos de Gusmão foi possível observar a
movimentação de instituições diversas no sentido de propiciar o estabelecimento de um
culto oficial para o primeiro mestre dos dominicanos, um culto sediado na cidade de
Bolonha e devidamente reconhecido pela Igreja romana. As iniciativas e as decisões
tomadas nesta direção foram aqui interpretadas como manifestações políticas, pois
apontam interesses contextuais destes grupos que se articularam em um empreendimento
coletivo de santidade.
Em um primeiro olhar, o reconhecimento da santidade aparece como uma prática
tipicamente religiosa, em que as instituições e populações cristãs tornam pública a decisão
de prestar culto a um santo. Mas as pesquisas e os trabalhos já publicados na historiografia
apontam aspectos que vão muito além dessa perspectiva inicial. A começar pela própria
prática de reconhecimento institucional da santidade, que foi transferida dos fiéis aos
bispos (na passagem da antiguidade para o medievo) e depois dos bispos locais ao
pontífice romano (ao longo Idade Média, principalmente entre os séculos XI ao XIII),
numa trajetória histórica que reservou ao bispo de Roma o direito pleno de canonizar, ao
ponto do próprio termo canonização passar a significar reconhecimento oficial da
santidade pelo papa.80
Neste processo histórico de centralização do reconhecimento oficial da santidade

79
FALCON, Francisco. História e Poder. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.).
Domínios da história. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. p. 68.
80
VAUCHEZ, André. La sainteté en Occident aux derniers siècles du Moyen Âge. D’après les procès de
canonisation et les documents hagiographiques. Rome: École Française de Rome, 1988. p. 25-37.
35

em Roma, um dos principais diferenciais estabelecidos pelo papado para a aclamação de


um novo santo e o oficialização de um culto público foi a criação de um procedimento
inquisitorial próprio para esta finalidade. Desde o século XII, os papas tentaram estabelecer
os processos de canonização como norma para o reconhecimento da santidade, o que foi
concretizado apenas nas primeiras décadas do século XIII. Para Michel Foucault, a
modalidade de inquérito aplicada pela instituição católica neste período (não só para as
canonizações), tornou possível à Igreja romana definir formas e condições de possibilidade
de saber.81
Se para o papado o estabelecimento destes novos procedimentos significava a
garantia da verdade nas investigações e na aclamação da santidade, Foucault apontou que a
delimitação da verdade está em relação direta com o saber e o poder nas práticas daquela
instituição. Neste sentido, o inquérito, modelo de investigação utilizado pela Igreja romana
nos processos de canonização, pode ser entendido, por um lado, como uma forma de
gestão técnica e administrativa que torna possível a autenticação da verdade e define as
condições gerais do saber na referida instituição, e por outro lado, como uma modalidade
política (uma forma de governo) que permite o exercício do poder, constituindo-se em um
exemplo daquilo que o filósofo francês definiu como saber-poder.82
Esta foi a perspectiva de análise adotada quanto ao inquérito conduzido na cidade
de Bolonha, como parte integrante do processo de canonização de Domingos. Ao abordar
as atas dos testemunhos que foram colhidos naquela cidade italiana, bem como o mandato
papal que deu abertura aquele procedimento de investigação, foi possível apontar a
articulação entre saber e poder na construção da santidade daquele líder dos frades
pregadores. De um lado, o pontífice romano e os seus representantes delimitaram a forma
da inquisitio e condicionaram o que deveria se saber sobre aquela santidade, de outro,
exercitaram a prerrogativa e o poder de reconhecimento oficial da santidade através do
processo de canonização, utilizando o inquérito como um instrumento de intervenção do
papado.
Além de propiciar a observação das práticas e das relações como partes integrantes
das manifestações de saber e de poder na História, os estudos foucaultianos também
evidenciaram o discurso como um elemento fundamental para a compreensão dos

81
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2011. p. 62-63.
82
Ibid., p. 78.
36

fenômenos históricos. Para o filósofo francês o discurso não é um elemento secundário no


convívio social, ou uma prática subjetiva que não pode ser decodificada. Ele é um
acontecimento social e histórico, pois é alvo das disputas pelo poder e dos conflitos entre
grupos divergentes por determinadas posições, por conseguinte, ele é, ao mesmo tempo,
objeto a ser conquistado e arena para as lutas do cotidiano.83
No tocante ao discurso e suas apropriações, três contribuições de Michel Foucault
se relacionam mais de perto com a análise desenvolvida nesta tese de doutorado: o discurso
como jogo estratégico; o discurso como espaço articulador entre saber e poder; e os
procedimentos (controle, seleção, organização e redistribuição) que operacionalizam a
produção desse discurso gerador de poder.84 Partindo destas perspectivas de observação e
de análise, o que mais interessou nas reflexões de Foucault sobre o discurso foram as suas
funcionalidades e relações como prática social.
Portanto, a análise do discurso que foi utilizada nesta tese de doutorado não
caminhou na direção do estruturalismo, considerando as propriedades formais da língua, as
estruturas internas e as normas de organização do texto, tomando o próprio texto como
fenômeno linguístico que se basta por si só como objeto de estudo nas ciências humanas.
Mas sim uma análise do discurso que enfatizou a inteligibilidade histórica do mesmo, que
o considerou em seu contexto de produção, objetivando desvendar os seus sentidos e as
suas relações na conjuntura em que os seus autores se encontravam ao produzirem estes
textos.85
Esta perspectiva conceitual de discurso e os caminhos de análise apontados nos
estudos foucaultianos foram apropriados nesta pesquisa de doutorado e utilizados na
abordagem dos documentos selecionados, com o intuito de apontar as articulações e os
interesses circunstanciais das diferentes instituições naquele projeto coletivo de santidade.
A conjuntura italiana e a cidade de Bolonha (ambos na década de 1230) foram
consideradas como contextos geral e específico para a produção dos discursos expressados
no referido corpus documental da pesquisa. Desta forma a análise do discurso realizada
procurou compreender as construções discursivas como partes integrantes das dinâmicas

83
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de
dezembro de 1970. 21 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011. p. 10.
84
BRANDÃO, Helena H. N. Introdução à análise do discurso. 2. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp,
2004. p. 37.
85
CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa qualitativa em ciências humanas e sociais. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2010. p. 121.
37

de poder e das relações político-institucionais manifestadas nos contextos macro


(península) e micro (cidade) da canonização de Domingos.
Tal configuração teórico-metodológica dialoga de perto com a perspectiva de
História Comparada que foi exercitada nesta tese de doutorado. Pois aponta para um duplo
campo de observação86 do quadro político-institucional que vigorava naquela conjuntura
italiana da década de 1230. De um lado o quadro mais amplo em que o papado, o império e
as comunas disputavam entre si a hegemonia política e a possibilidade de comandar
cidades ou regiões inteiras na península italiana. De outro lado o quadro mais específico
das disputas político-institucionais evidenciadas na cidade de Bolonha, onde grupos se
organizavam para ocupar posições de comando e definir os rumos daquela comuna da
Emilia-Romagna em conformidade com os seus interesses e projetos.
Quais eram as dinâmicas de poder que atravessavam aqueles dois quadros (macro e
micro) político-institucionais na Itália? Estas dinâmicas também atravessaram a causa de
canonização de Domingos de Gusmão? A possibilidade de examinar comparativamente e
sistematicamente estas questões em realidades distintas delimita a análise realizada nesta
tese em uma escala problematizadora,87 que permitiu identificar e avaliar uma articulação
entre aqueles dois quadros contextuais no reconhecimento de santidade que foi prestado ao
fundador dos dominicanos em julho de 1234.
A perspectiva de análise comparativa desenvolvida nesta tese caminha em acordo
com as reflexões do historiador Jürguen Kocka, para quem “comparar em História
significa discutir dois ou mais fenômenos históricos sistematicamente a respeito de suas
singularidades e diferenças de modo a se alcançar determinados objetos intelectuais”. 88 Os
fenômenos problematizados na pesquisa de doutorado aqui sintetizada são as dinâmicas de
poder e as articulações político-institucionais que mobilizaram a causa de canonização de
Domingos de Gusmão, que foram explorados e analisados na conjuntura mais ampla da
Península Itálica, e no contexto mais específico da cidade de Bolonha.
Ao comparar tais fenômenos históricos a partir de um único caso (a canonização de
Domingos) foi possível “identificar questões e problemas que se poderiam de outro modo

86
BARROS, José D’Assunção. História Comparada – Um novo modo de ver e fazer a História. Revista de
História Comparada, v. 1, n. 1, p. 1-30, Julho de 2007. p. 24.
87
Ibid., p. 27-28.
88
KOCKA, Jürguen. Comparison and beyond. History and Theory, n. 42, p. 39-44, 2003. p. 39.
38

perder, negligenciar ou apenas não inventariar”,89 justamente em decorrência da


funcionalidade e do caráter heurístico dessa perspectiva de História Comparada. A título de
exemplo, a dinâmica de poder que na conjuntura italiana propiciou uma aproximação entre
o papado e a cidade de Bolonha, não é exatamente a mesma verificada no contexto mais
específico daquela cidade, onde as instituições locais se confrontavam por conta de seus
projetos particulares e de suas pretensões políticas.
Portanto a comparação está na base da abordagem historiográfica desenvolvida
neste trabalho, sendo um elemento fundamental para as escolhas que foram feitas e
exercitadas nos campos da teoria e da metodologia da História. Sem o recurso às
metodologias comparativas não teria sido possível apontar a articulação entre os contextos
macro e micro na causa de canonização do primeiro mestre dos dominicanos, bem como
analisar as forças atuantes e os interesses que estavam em jogo naquele empreendimento
coletivo de santidade.



Para uma melhor compreensão deste trabalho é importante abordar, mesmo que
brevemente, a divisão de capítulos que foi realizada. A tese de doutorado aqui apresentada
foi organizada em quatro capítulos, além desta introdução e da conclusão disposta ao final
do texto.
O capítulo I, intitulado As canonizações no século XIII e a santidade de Domingos
de Gusmão, foi dedicado ao tema das canonizações papais na primeira metade do século
XIII. Primeiramente, se buscou explorar a perspectiva historiográfica da centralização do
reconhecimento oficial da santidade pela Igreja romana, avançando sobre prerrogativas e
práticas que anteriormente não eram uma exclusividade do pontífice romano. O recurso ao
Direito (e suas formas jurídicas) foi uma estratégia fundamental para este projeto, assim
como a implantação de uma série de procedimentos e trâmites burocráticos que
direcionavam os pedidos de oficialização de novos cultos de santidade à cúria romana.
Depois a argumentação foi direcionada para a prática de canonização de religiosos
mendicantes, que foi um padrão observado no pontificado de Gregório IX, o mesmo papa

89
KOCKA, op. cit., p. 40.
39

que oficializou o culto estabelecido para Domingos de Gusmão. O que permitiu apontar
um padrão de reconhecimento da santidade recorrente no governo daquele pontífice,
valorizando os candidatos relacionados às Ordens Mendicantes e fortalecendo o vínculo
institucional da Igreja romana com aquelas ordens religiosas através das canonizações.
Na parte final do primeiro capítulo foi realizada uma análise do discurso a partir da
bula Fons sapientie, documento pelo qual o papa Gregório IX decretou a inscrição de
Domingos no catálogo de santos da Igreja romana. Tal análise procurou evidenciar a
ordem do discurso elaborado para legitimar a santidade atribuída ao primeiro mestre da
Ordem dos Frades Pregadores, de modo a esclarecer e apontar o perfil de santidade que foi
construído para o referido pregador mendicante, bem como levantar indícios sobre as
instituições e os grupos envolvidos naquele ato de reconhecimento oficial.
No capítulo II, sob o título Três projetos de poder concorrentes na Itália do século
XIII: o papado, o império e as comunas, a argumentação da tese foi direcionada ao
contexto mais amplo da Península Itálica na primeira metade daquele século, tendo como
foco de reflexão e de análise o quadro político-institucional de disputas entre o papado, o
império e as comunas.
A primeira parte do capítulo procurou explorar as articulações entre poder e
autoridade no âmbito daquelas instituições que disputavam entre si a hegemonia política
sobre cidades e regiões da península italiana. Neste sentido, foram comparadas concepções
de poder e iniciativas práticas que foram tomadas com o intuito de legitimar as posições
políticas e o exercício de autoridade de parte do papado, do império e das comunas naquela
conjuntura histórica.
Na parte seguinte a atenção foi direcionada para o campo do Direito, da legislação e
da justiça, de forma a compreender a legitimidade construída por aquelas instituições para
ampliar o seu exercício de poder sobre diferentes territórios italianos. O recurso ao campo
jurídico foi uma estratégia amplamente utilizada pelo papado, pelo império e pelas
comunas como forma de legitimar seus projetos e ampliar suas prerrogativas de poder, o
que também se fez presente na causa de canonização de Domingos, que primeiro foi
submetida a uma lógica local de reconhecimento para depois se alinhar à disciplina
estabelecida pela Igreja romana.
Já nas duas últimas partes do segundo capítulo o objetivo era explorar o campo
religioso e suas articulações com as dinâmicas de poder existentes entre aquelas três
40

instituições na Itália do século XIII. Em um primeiro momento o foco foi direcionado para
o tema da espiritualidade e de suas manifestações como parte das práticas religiosas e dos
valores cristãos observados na península italiana. Posteriormente a atenção foi voltada para
as estratégias de repressão religiosa, que apontam a mobilização daquelas instituições para
o enfraquecimento de seus adversários e o fortalecimento de seus projetos de poder.
Este segundo capítulo tem o propósito principal de explorar o quadro político-
institucional de disputas entre o papado, o império e as comunas na Itália do século XIII,
de forma a identificar e avaliar dinâmicas de poder entre estas instituições. A análise deste
quadro contextual foi importante para subsidiar as reflexões em torno da causa de
canonização de Domingos, pois o papado e a comuna de Bolonha atuaram de maneira
conjunta naquele empreendimento de santidade que tornou possível o estabelecimento de
um culto oficial para o fundador da Ordem dos Frades Pregadores.
Uma das conclusões parciais aqui apresentadas é justamente a de que a dinâmica de
poder entre as cidades e imperador Frederico II, verificada no âmbito do contexto político
mais amplo da península italiana, acabou propiciando uma aproximação institucional do
papado com a Comuna de Bolonha e a articulação de projetos em comum, tal como a
canonização de Domingos.
O capítulo III, por sua vez, foi direcionado a explorar o contexto histórico da cidade
em que se estabeleceu o culto oficial a Domingos de Gusmão, tendo recebido o título
Bolonha nas primeiras décadas do século XIII: os grupos e as instituições locais em meio
aos interesses do papado e do império. As diferentes partes deste capítulo foram dedicadas
a uma comparação das instituições bolonhesas que participaram das iniciativas locais para
alavancar o reconhecimento da santidade do primeiro mestre dos dominicanos.
Tais instituições locais tinham projetos próprios e procuravam naquele contexto
legitimar as suas ações. É o caso da comuna de Bolonha, que tinha surgido no século
anterior e continuava em busca de se consolidar no comando político daquela cidade da
Emilia-Romagna. Os dirigentes citadinos estiveram presentes na trasladação de Domingos
e exerceram um poder de tutela sobre o sepulcro e o corpo daquele pregador mendicante,
de forma a garantir que o culto não seria transferido para outro local. A atuação no campo
religioso era uma maneira de conferir legitimidade ao governo comunal perante a
população citadina e suas demandas de espiritualidade.
Já a Igreja bolonhesa enfrentava um período de sérias dificuldades no início da
41

década de 1230, sendo profundamente afetada pelos avanços territoriais e jurídicos do


poder comunal, além de ter sido submetida a seguidas intervenções pontifícias, o que
contribuiu para diminuir a autoridade do bispo local. Nem por isso a diocese de Bolonha
esteve ausente das ações favoráveis àquele empreendimento de santidade, mas o titular do
episcopado não foi alçado a uma posição de destaque, sendo inclusive substituído pelo
arcebispo de Ravenna e pelo arcediago bolonhês em funções que lhe caberiam por
prerrogativa eclesiástica.
Por sua vez, a universidade local e seus representantes também se envolveram nas
iniciativas favoráveis àquela causa de santidade. O Studium90 de Bolonha era uma
instituição prestigiada dentro e fora da Itália, atraindo mestres e estudantes de diferentes
partes da Europa para aquela cidade. Nas primeiras décadas do século XIII, a universitas
scolarium Bononie ainda estava em busca de consolidar sua autonomia institucional e
despertava a atenção do papado, do império e da comuna por conta do seu potencial
intelectual, que seria importante naquela conjuntura para legitimar os projetos e as
pretensões políticas daquelas instituições.
Por fim os dominicanos, que se estabeleceram naquela cidade na segunda década
do século XIII e que fizeram do convento de San Nicolò a principal sede de governo da
Ordem dos Frades Pregadores. Alguns dirigentes daquela ordem mendicante se
mobilizaram a favor do culto a Domingos, enfrentando as dúvidas e as resistências
internas, além de trabalharem para divulgar ao máximo a santidade de seu primeiro líder
entre as diferentes populações.
As relações de poder e as disputas existentes entre as instituições locais de Bolonha
no período anterior à canonização de Domingos não apontavam para a conjunção de forças
que se formou naquelas iniciativas locais. Por isso, este capítulo foi dedicado a avaliar
aquele contexto bolonhês de confrontos político-institucionais, procurando evidenciar os
interesses do papado e do império naquela cidade, bem como as escolhas feitas por tais
instituições locais em meio aos avanços daqueles poderes que se pretendiam universais.
Outra conclusão parcial aqui defendida é a de que o papado atuou como principal força a

90
Nos documentos explorados nesta tese studium e universitas aparecem muitas vezes como sinônimos,
indicando instituições de ensino e de formação intelectual existentes em diferentes localidades da península
italiana. Contudo, cabe ressaltar que a universitas naquele contexto histórico representou a formação de uma
corporação entre mestres e estudantes em busca de maior autonomia institucional e organizativa, algo que
nem sempre se verificava no âmbito dos studia, instituições de ensino mais antigas e na maioria das vezes
vinculadas a alguma autoridade local.
42

mobilizar aquelas instituições locais para participarem conjuntamente da causa de


santidade em favor do primeiro mestre dos dominicanos.
No IV capítulo, que foi intitulado O papado e os dominicanos na canonização de
Domingos: as iniciativas e as etapas de construção da santidade, a argumentação se
voltou para a atuação conjunta dos representantes do papado e dos dominicanos naquele
projeto coletivo de santidade. Buscou-se principalmente identificar e analisar iniciativas
que propiciaram o êxito daquela causa de canonização, comparando diferentes etapas de
construção da santidade do fundador da Ordem dos Frades Pregadores.
A primeira das etapas analisadas foi o movimento da magna devotio, ocorrido na
cidade de Bolonha a partir de abril de 1233, e a sua apropriação pelos representantes da
Igreja romana e da Ordem dos Frades Pregadores, como parte da estratégia de difusão de
uma fama de santidade para Domingos e de direcionamento do fervor popular para aquela
causa de canonização. A ocorrência deste movimento religioso teria formado uma
atmosfera ideal para as iniciativas daquele empreendimento coletivo de santidade.
Pouco tempo depois de iniciado aquele movimento, foi realizada a translatio
corporis de Domingos de Gusmão no convento de San Nicolò, mais precisamente no final
de maio daquele mesmo ano. Tudo indica que o fervor popular associado à magna devotio
tinha sido, pelo menos em parte, direcionado para a causa dominicana, contribuindo para
conferir um caráter popular para a cerimônia religiosa realizada no convento bolonhês. A
referida trasladação foi mais uma etapa importante na sustentação daquela causa de
canonização, pois além de criar requisitos fundamentais para o processo formal em Roma,
apontou a reunião de forças locais para aquele reconhecimento da santidade e formou as
primeiras bases de um culto na cidade de Bolonha.
Por fim, a própria realização de um inquérito pontifício, que foi iniciado em julho
de 1233, com a nomeação dos comissários que iriam conduzir a investigação na cidade de
Bolonha. Se por um lado, a iniciativa de abertura do processo de canonização foi atribuída
tradicionalmente àquelas instituições locais da cidade emiliana, por outro lado, não
restaram dúvidas de que os representantes do papado e da Ordem dos Frades Pregadores
foram os condutores daquela ação que subsidiou a cúria romana com todos os requisitos
essenciais para a conclusão daquela causa de canonização.
Ao explorar as diferentes etapas de construção da santidade de Domingos de
Gusmão, o capítulo IV da tese foi o espaço utilizado para a articulação das ações realizadas
43

para a canonização do primeiro mestre dos frades dominicanos. Neste sentido, foi possível
defender a hipótese de uma coordenação papal para aquelas iniciativas tomadas em 1233
pelos representantes da Igreja romana e da Ordem dos Frades Pregadores, apontando o
desenvolvimento de um projeto devidamente compartilhado por tais instituições e que
permitiu não só o fortalecimento de ambas, mas uma recomposição das relações de poder
entre as instituições locais de Bolonha por meio de um acordo de paz.
Por toda a argumentação que foi desenvolvida ao longo dos capítulos, baseada
principalmente em uma análise do discurso realizada sobre o corpus documental
selecionado na pesquisa doutorado, mas também na comparação das dinâmicas de poder e
das articulações político-institucionais evidenciadas naquela causa dominicana, a tese aqui
defendida apresenta reflexões e conclusões originais sobre a canonização de Domingos de
Gusmão.
44

CAPÍTULO I

As canonizações no século XIII e a santidade de Domingos de Gusmão

Para analisar em profundidade as iniciativas e as etapas que antecederam o


reconhecimento oficial da santidade de Domingos de Gusmão pelo papado, é fundamental
inserir este caso específico em um quadro mais amplo das canonizações pontifícias na
primeira metade do século XIII. Desta forma será possível criar subsídios para a análise
das regularidades encontradas na aclamação do fundador da Ordem dos Frades Pregadores,
que dizem respeito a uma conjuntura mais ampla e, também, das especificidades da sua
causa de canonização, que apontam para o contexto local na qual ela esteve inserida.
Do final do século XII às primeiras décadas do século XIII ocorreu na Europa um
processo de centralização das canonizações pela cúria romana. Utilizando-se do Direito
como saber e de suas formas jurídicas como prática, o papado estabeleceu uma nova
disciplina eclesiástica para o reconhecimento oficial da santidade pela Igreja de Roma.
Este é propriamente o tema explorado na primeira parte deste capítulo, sobretudo por meio
do recurso a uma historiografia especializada no campo das canonizações pontifícias.
Abertura de um processo formal de canonização em Roma, realização de inquérito
papal sobre a vida e os milagres do candidato, avaliação pela cúria romana das atas e dos
documentos anexados à causa, e, enfim, a decisão final emanada pelo pontífice romano.
Este foi o trâmite burocrático e jurídico estabelecido canonicamente pelos papas ao longo
do período apontado acima, para que uma santidade fosse oficialmente avaliada no âmbito
da Igreja romana.
Ao estabelecer novos critérios, procedimentos e regras para o reconhecimento
institucional da santidade, o papado avançou sobre prerrogativas que, tradicionalmente,
eram exercidas por todas as dioceses no âmbito de uma estrutura eclesiástica ainda não
totalmente centralizada. Portanto, tal disciplina pontifícia para as canonizações não foi
organizada sem alguma resistência e com os devidos limites.
Paralelamente a essa mudança jurídica e administrativa na aclamação da santidade,
a Igreja romana acolheu favoravelmente algumas causas de canonização que envolviam
45

candidatos oriundos ou relacionados às Ordens Mendicantes. Existiu alguma relação entre


os dois processos históricos? De um lado a centralização das canonizações em Roma e de
outro a priorização dos santos mendicantes? A segunda parte deste capítulo avança sobre
essas questões, explorando a historiografia que analisou as canonizações de Francisco,
Antônio, Domingos e Elisabete.
A terceira e última parte deste capítulo foi dedicada a uma análise do discurso
presente na bula Fons sapientie, que foi emitida em 03 de julho de 1234 para tornar
pública a canonização de Domingos de Gusmão pelo papa Gregório IX. Tal análise foi
realizada incialmente a partir de argumentos historiográficos e levando em consideração os
resultados da investigação aqui apresentada. Posteriormente, com base nos pressupostos
teóricos e metodológicos que foram estabelecidos por Michel Foucault, foram aplicados
alguns procedimentos e conceitos daquele filósofo francês para uma análise genealógica do
discurso.
A análise daquele documento pontifício permitiu identificar uma ordem do discurso
elaborada com o intuito de criar uma versão oficial para a canonização de Domingos de
Gusmão. A construção discursiva da santidade daquele pregador mendicante no texto de
1234, por sua vez, apresenta marcas que apontam para os grupos e para as instituições que
participaram da sua campanha de canonização, e também para o público que se pretendia
captar para o culto estabelecido na cidade de Bolonha.
Por fim, cabe ressaltar que este capítulo não representa ainda uma avaliação plena
das instituições e dos grupos envolvidos na causa de canonização de Domingos, bem como
das decisões e das iniciativas realizadas, o que é propriamente o resultado final da tese de
doutorado aqui defendida. Este capítulo configura o ponto de partida de uma investigação
historiográfica e se dedica a explorar a última etapa do reconhecimento oficial daquela
santidade pelo papado, como parte integrante de um empreendimento coletivo
compartilhado e mobilizado por forças atuantes nas cidades de Bolonha e de Roma.
Assim sendo, é necessário partir da aclamação realizada pela Igreja romana para
depois analisar as demais camadas anteriores que lhe serviram de base, de maneira que se
identifique o início da construção realizada e suas diferentes etapas, em diálogo com as
dinâmicas de poder e com os interesses político-institucionais que se manifestaram ao
longo desse processo.
46

Ordenando para governar: o Direito e as formas jurídicas a serviço de um projeto papal

Reconhecer a santidade em um cristão e autorizar o estabelecimento de um culto


pela comunidade local são atos que integravam o conjunto de prerrogativas e poderes
exercidos pelos bispos da Igreja, pelo menos, desde o século V. Contudo, a partir do final
do século XII, iniciou-se na Europa um processo histórico que visava transferir ao papa um
direito exclusivo sobre a canonização, transformada em uma reserva pontifícia e cercada
de critérios, procedimentos e regras que reforçavam a autoridade institucional do papado e
da cúria romana no âmbito da hierarquia eclesiástica. 91
As bases jurídicas para legitimar esse processo tinham seu início ainda mais longe,
mais precisamente no pontificado de Alexandre III (1159-1181), autor de uma epístola
endereçada ao rei Kol da Suécia, na qual manifestava claramente o seu poder de interdição
no tocante à santidade, pois caberia somente à Igreja romana reconhecer e autorizar o culto
aos santos.92 Algumas decisões tomadas, no âmbito do papado, da última década do século
XII até meados do século XIII, em um período de cerca de 60 anos, ajudam a reforçar esta
perspectiva historiográfica.
Tal projeto papal de centralização do direito de reconhecimento universal da
santidade e de sistematização dos procedimentos de canonização foi intensificado ao longo
do pontificado de Inocêncio III (1198-1216). Posteriormente este projeto foi desenvolvido
e aprofundado com os seus sucessores, a partir de processos de canonização abertos e
avaliados pela cúria romana, seguindo o mesmo modus operandi daquele conhecido
pontífice romano, defensor de uma supremacia papal sobre as demais instituições.93
O processo de canonização de Homobono (1199) já registrava a atuação do papado
no sentido de orientar as etapas de um inquérito e disciplinar a recepção dos testemunhos,
pois o próprio pontífice interrogou em Roma uma delegação vinda da cidade de Cremona,

91
VAUCHEZ, André. La sainteté en Occident aux derniers siècles du Moyen Âge. D’après les procès de
canonisation et les documents hagiographiques. Rome: École Française de Rome, 1988. p. 25-37.
92
MATZ, Jean-Michel. Contrôle et discipline du culte des saints au moyen âge. In: LE GUERN, Philippe
(dir.). Les cultes médiatiques: Culture fan et oeuvres cultes. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2002.
p. 46. Disponível em: <http://books.openedition.org/pur/24168>. Acesso em: maio de 2016.
93
KLANICZAY, Gábor. The Power of the Saints and the Authority of the Popes. The History of Sainthood
and Late Medieval Canonization Processes. In: SALONEN, Kirsi; KATAJALA-PELTOMAA, Sari (Eds.).
Church and Belief in the Middle Ages. Popes, Saints, and Crusaders. Amsterdam: Amsterdam University
Press, 2016. p. 117-140, p. 126.
47

sob a liderança do bispo Sicardo, que era o promotor daquela causa.94 Posteriormente, ao
publicar a bula de canonização, Inocêncio III defendeu a importância do comportamento
virtuoso e das ações milagrosas como os principais sinais a apontar a santidade de um
cristão, argumento que foi retomado no ano seguinte em outra bula de canonização, aquela
da imperatriz Cunegundes (1200).95 Neste mesmo documento papal a reserva do direito de
canonizar foi afirmada, de forma solene e oficial, como um privilégio exclusivo do
sucessor de Pedro, uma espécie de prerrogativa associada à plenitudo potestatis do bispo
de Roma.96
A causa de canonização de Gilberto de Sempringham foi mais uma oportunidade
para o papa exercer sua autoridade e disciplinar a hierarquia da Igreja para a implantação
do novo percurso processual como único caminho para o juízo sobre a santidade. Por meio
da bula Licet apostolica sedes (1201), Inocêncio III refutou o procedimento inicial dirigido
pelo arcebispo de Canterbury, que tinha enviado por escrito uma síntese dos testemunhos
colhidos localmente, destacando a importância dos testemunhos diretos para a avaliação da
cúria romana.97 Uma nova fase de investigação foi realizada, algumas testemunhas foram à
Roma para fazer seus relatos diretamente aos integrantes da cúria, e o papa, finalmente,
confirmou o culto de São Gilberto, bem como a trasladação de suas relíquias.98
O avanço pontifício sobre as prerrogativas episcopais tomou a forma de legislação
eclesiástica com a realização do IV Concílio de Latrão (1215), fazendo do papa o árbitro
supremo no tocante à santidade e no uso litúrgico das relíquias, a partir de decretos que
davam fundamento jurídico para a expansão da autoridade papal e aprofundavam restrições
à jurisdição episcopal de uma só vez.99 Tal como no decreto 38º daquele concílio, que,
mesmo não se referindo explicitamente às canonizações, tinha admoestado os prelados a
registrar as várias etapas processuais de um inquérito e a elaborar um processo verbal mais

94
VAUCHEZ, La sainteté... op. cit., p. 44.
95
GOODICH, Michael. Vita perfecta: the ideal of sainthood in the thirteenth century. Stuttgart: Hiersemann,
1982. p. 23 et seq.
96
VAUCHEZ, La sainteté... op. cit., p. 31 et seq.
97
PACIOCCO, Roberto. Le canonizzazioni papali nei secoli XII e XIII. Evidenze a proposito di “centro”
romano, vita religiosa e “periferie” ecclesiastiche. In: ANDENNA, Cristina; BLENNEMANN, Gordon;
HERBERS, Klaus; MELVILLE, Gert. Die Ordnung der Kommunikation und die Kommunikation der
Ordnung. Zentralität: Papsttum und Orden im Europa des 12. und 13. Stuttgart: Franz Steiner Verlag, 2013.
Band 2, p. 277-299, p. 279 et seq.
98
GOODICH, Vita perfecta... op. cit., p. 24.
99
Ibid., p. 25-27.
48

completo.100 E também com o decreto 62º, que proibia oficialmente a veneração de “novas
relíquias” sem a autorização prévia do pontífice romano, reforçando a prerrogativa de
poder e exclusividade do bispo de Roma no que concerne ao culto dos santos.101
As características mais marcantes do processo de canonização que se tornou regra
no século XIII (como procedimento inquisitorial pontifício), já estavam presentes na Itália
do final do século XII. Nesse período já se reconhecia o valor do ato notarial como
instrumento público, o que faltava era conferir ao inquérito uma forma jurídica mais
precisa e depois difundir o modelo criado pelo resto da Europa, tarefa assumida ainda no
pontificado de Inocêncio III. Foi também em seu governo que a sede romana passou a
equiparar a vida (virtudes e obras) e os milagres na avaliação da santidade, contrariando a
tradição expressada até então nas aclamações vox populi,102 em que a santidade se definia
essencialmente como um conjunto de poderes sobrenaturais, fazendo do milagre o critério
fundamental do juízo popular. Desta forma, o referido papa passou a submeter a crença na
santidade a um exame e a um juízo exercidos a partir de procedimentos e critérios
estabelecidos em Roma, sob a forma de um processo judiciário.103
Durante o pontificado de Honório III (1216-1227) novas regras de canonização
foram surgindo e sendo acrescentados à base estabelecida por seu antecessor. Nesse
sentido, as petições de abertura da causa tinham que ser apresentadas em Roma,
acompanhadas de um dossiê na forma de uma Vita et Miracula,104 que serviria para
embasar a avaliação feita pela cúria romana. Afirmou-se, cada vez mais, a necessidade de
evidências judiciais válidas para o início do processo, por isso o papa se reservou o direito
de solicitar um novo inquérito caso as testemunhas ouvidas não estivessem sob juramento
e os seus relatos não fossem consignados por um notário, conferindo publicidade e
oficialidade aos atos praticados.105

100
PACIOCCO, Le canonizzazioni... op. cit., p. 279 et seq.
101
MATZ, op. cit, p. 46.
102
A expressão latina vox populi aparece associada à prática de aclamação popular de uma santidade na Idade
Média, em que a voz/vontade de uma população seria o principal critério para o estabelecimento de um culto.
103
VAUCHEZ, La sainteté... op. cit., p. 42 et seq.
104
A expressão latina Vita et Miracula faz referência a um tipo de livro/texto que representa uma modalidade
do gênero hagiográfico na Idade Média. Seria um livro que contrói uma trajetória de vida para um (ou mais)
personagem(ns), finalizando com a sua morte e com os milagres que lhe são atribuídos. Sobre o gênero
hagiográfico na Idade Média e suas articulações com a santidade, conferir: SILVA, Andréia Cristina Lopes
Frazão da (Org.). Hagiografia e História: reflexões sobre a Igreja e o fenômeno da santidade na Idade
Média central. Rio de Janeiro: HP Comunicação, 2008.
105
GOODICH, Vita perfecta... op. cit., p. 35 et seq.
49

Além disso, foi também no pontificado de Honório III que passou a ser comum
nomear as partes diretamente interessadas na causa, os chamados postuladores, para
servirem na comissão de investigação que faria o inquérito preliminar. Tais processos
informativos, conduzidos em âmbito diocesano, tinham a finalidade de dar ciência à
instância julgadora sobre os méritos do candidato, sobretudo assegurando que ele(a) já
gozava de uma fama sanctitatis local, suficiente para que o seu caso pudesse ser avaliado
pela sede romana.106
Uma vez cumpridos os requisitos iniciais, o pontífice autorizava a realização de um
inquérito nos moldes romanos, registrado nos textos de época a partir dos termos processus
ou informatio in partibus. Nesta segunda fase de investigação, os trabalhos eram confiados
a três comissários nomeados diretamente pelo papa, e o bispo local geralmente coordenava
os atos. As tarefas associadas a esse mandato eram definidas com precisão na bula de
nomeação, destacando-se em geral a necessidade de se informar sobre a vida e os milagres
atribuídos ao candidato, bem como registrar os testemunhos colhidos, que deveriam ser
transmitidos a Roma, acompanhados de um relatório sobre o desenrolar do processo.107
Embora os aspectos característicos da vida do candidato (a virtus morum e a virtus
signorum) tivessem se valorizado desde o pontificado anterior, Honório III deu maior
atenção aos testemunhos referentes a milagres nas causas de canonização. Provavelmente
porque mesmo considerando que as virtudes eram indício de santidade, a elaboração de
uma listagem delas no âmbito do processo era considerada uma tarefa complexa, um
posicionamento que refletia a relação problemática entre virtudes e milagres para a
definição da santidade.108
No decorrer do pontificado de Gregório IX (1227-1241) novas iniciativas jurídicas
apontaram para o avanço da autoridade pontifícia sobre a prerrogativa da canonização,
entendida como uma reserva exclusiva do bispo de Roma. Sem dúvida, o movimento
principal nessa direção foi a inserção do texto do papa Alexandre III, sob o título de
Audivimus, na coleção de decretais elaborada pelo dominicano Raimundo de Peñafort, obra
que ficou conhecida como Liber Extra, publicada pelo pontífice romano em setembro de
1234. O longo período de imprecisão jurídica no tocante a esse direito chegava ao fim,

106
VAUCHEZ, La sainteté... op. cit., p. 49 et seq.
107
Ibid., p. 50 et seq.
108
PACIOCCO, Roberto. Canonizzazioni e culto dei santi nella christianitas (1198-1302). Assisi: Ed.
Porziuncola, 2006. p. 59 et seq.
50

com o uso explícito do direito canônico para legitimar o exercício da autoridade romana
sobre as demais dioceses e sobre a sociedade, ficando estipulado que somente ao papa
cabia o direito de canonizar um cristão e de autorizar a trasladação das relíquias, que era
entendida como um prolongamento litúrgico do primeiro ato.109
É importante destacar que a forma textual dada ao Liber Extra expressava uma
vontade de se aplicar tal direito ao culto dos santos em geral, sem nenhum tipo de distinção
entre o âmbito público e outro que não o seria. Algo bem diferente da tradição a qual se
vincula o texto alexandrino em sua redação original, pois apontava uma diferença entre
dois níveis diferentes de veneração, abrindo algum espaço para o culto de santos não
canonizados por Roma.110
Além de esclarecer e reafirmar o direito pontifício sobre as canonizações, as
decretais gregorianas deram um novo formato para os procedimentos de investigação,
reunindo avanços processuais das últimas décadas e criando um modelo de inquérito
amparado na legislação canônica. A experiência dos trabalhos realizados nas causas
investigadas e avaliadas desde o início do século XIII, sobretudo as de Antônio de
Lisboa/Pádua (1232), Domingos de Gusmão (1233) e Elisabete de Turíngia (1232), muito
próximas à publicação do Liber Extra (1234), foi fundamental para o estabelecimento do
novo protocolo de investigação.111
Casos específicos ocorridos nos processos de canonização realizados no pontificado
Gregório IX evidenciam a implantação desse protocolo de investigação antes mesmo da
publicação das decretais. Tal como registrado em uma carta, datada de 1232, enviada pelo
papa a Conrado de Marburg, confessor de Elisabete de Turíngia e principal postulador de
sua causa: orientava os investigadores sobre as perguntas específicas que deveriam ser
feitas às testemunhas que relatavam milagres, advertia os legados a buscarem informações
independentes e complementares àquelas registradas pelos testemunhos, no sentido de
confirmar ou não as narrativas, além de reafirmar a importância dos notários e, até mesmo,

109
MATZ, op. cit, p. 46.
110
PACIOCCO, Canonizzazioni e culto... op. cit., p. 56.
111
KLANICZAY, Gábor. Proving sanctity in the canonization processes (Saint Elizabeth and Saint Margaret
of Hungary). In: . (Dir.). Procès de canonisation au Moyen Âge: aspects juridiques et religieux. Rome:
École Française de Rome, 2004. p. 117-148, p. 125.
51

de intérpretes, caso necessário, de forma que o registro dos relatos fosse o mais fiel
possível aos fatos.112
O processo de Hildegarda de Bingen (1233) é outro que aponta para a disciplina
aplicada aos novos procedimentos, pois o papa ordenou a realização de um novo inquérito,
focando em tópicos específicos sobre milagres, conduta, reputação e ações virtuosas,
porque os investigadores tinham enviado a Roma apenas um sumário na forma de uma Vita
et Miracula, ao invés de um registro completo das audiências realizadas com as
testemunhas.113
Algumas variações de procedimentos inquisitoriais também foram acrescentadas,
nesse período, às experiências de investigação acumuladas nos pontificados anteriores.
Desta forma, foram instruídos procuradores para atuar nas causas de canonização,
coordenando as iniciativas para a abertura dos processos em Roma, acompanhando e
orientando as testemunhas nas audiências conduzidas pelos comissários papais, e, até
mesmo, redigindo os articuli interrogatorii ou capitula generalia.114 Outra variação na
prática processual corrente foi a determinação de não enviar imediatamente para Roma, ou
seja, assim que finalizados os trabalhos, retendo até segunda ordem as averbações dos
inquéritos conduzidos pelos comissários, orientação que já foi aplicada nas causas de
Elisabete de Turíngia (1232) e Domingos de Gusmão (1233).115
No tocante aos critérios utilizados para o juízo papal sobre a santidade, observa-se
no contexto em questão uma atmosfera de entusiasmo religioso manifestado a partir de
movimentos coletivos, sobretudo nas cidades, que valorizavam a pobreza e a penitência,
algo que se refletiu também nas causas de canonização.116 Não somente com o papado
assumindo tais valores nas canonizações realizadas, mas também no sentido inverso,
utilizando a sua autoridade institucional e o seu poder de controle sobre o conteúdo das
devoções para refutar a candidatura de personagens suspeitos de “exagerar” em suas
expressões de ascetismo e de penitência, julgadas excessivas pela Sede romana.117

112
KLANICZAY, The Power... op. cit., p. 127.
113
GOODICH, Vita perfecta... op. cit., p. 32.
114
Articuli interrogatorii ou capitula generalia eram esquemas de interrogatório que ajudavam a organizar e
a dar sentido aos depoimentos. Cf.: VAUCHEZ, La sainteté... op. cit., p. 54.
115
PACIOCCO, Canonizzazioni e culto... op. cit., p. 63 et seq.
116
GOODICH, Vita perfecta... op. cit., p. 4.
117
MATZ, op. cit, p. 47.
52

A devoção à humanidade de Cristo e o comportamento da imitatio Christi também


são marcas da espiritualidade cristã no século XIII, que levaram muitos, leigos, religiosos e
sacerdotes, a espelhar suas práticas cotidianas no calvário do “Salvador” e a buscar
expressar sua religiosidade por meio do sofrimento voluntário. Entretanto, o olhar
institucional do papado e a necessidade de uma atuação que salvaguardasse os cristãos
reconhecidos oficialmente como santos de práticas consideradas “perigosas” (pela
possibilidade de ensejar desvios de comportamento nos fiéis), levaram a uma valorização
da espiritualidade evangélica no seu sentido estritamente apostólico nos momentos de
definir o juízo sobre a santidade e de justificar as escolhas nas bulas de canonização.118



O direito, com suas formas e práticas jurídicas, constituíram a principal base para o
avanço da autoridade pontifícia sobre as canonizações desde o século XII. No entanto, foi
ao longo do século XIII que se deram as principais iniciativas do papado para exercer uma
primazia de comando sobre o juízo universal da santidade na Igreja romana. O
estabelecimento de procedimentos inquisitoriais e de critérios para avaliar a santidade, bem
como a exclusividade do pontífice romano na condução das causas de canonização, são
movimentos que refletem o mesmo projeto de governo: a questão não era somente a
hegemonia sobre o culto dos santos, e sim o quanto ela permitiria ao bispo de Roma
exercer poder, ao mesmo tempo, sobre a hierarquia eclesiástica e a sociedade.
O contexto em questão, de transição entre os séculos XII e XIII, foi propriamente
marcado pela valorização do Direito como principal instrumento de organização da
sociedade e da Igreja, legitimando hierarquias e autoridades a partir de iniciativas/ações de
diferentes instituições (dentre elas o papado, o império e as comunas) que se apropriaram
deste saber e de suas formas para desenvolver projetos de governo nas diferentes regiões
da Península Itálica. Em um capítulo específico da tese este tema será retomado, com o
intuito de debater estes projetos e seus efeitos na conjuntura italiana. Nesse momento é
oportuno focar na sede eclesiástica romana e na articulação que foi realizada no tocante à
santidade.

118
VAUCHEZ, La sainteté... op. cit., p. 450 et seq.
53

Ao estabelecer uma lógica universal para o reconhecimento da santidade e ao


delimitar os procedimentos jurídicos e inquisitoriais próprios para esta finalidade, o papado
ampliou sua área de jurisdição e sua capacidade de interferir em diferentes regiões da
Europa, utilizando o culto aos santos como instrumento para as suas estratégias regionais.
Partindo de uma perspectiva universalista, os pontífices do século XIII utilizaram as
canonizações como meio para uma ação pastoral e normativa, alinhando as devoções e os
cultos às diretrizes estabelecidas em Roma, conferindo homogeneidade e identidade a
instituições eclesiásticas e/ou religiosas, a grupos sociais diversos e mesmo a cidades
inteiras.119
Principalmente a partir da década de 1230, os poderes citadinos italianos atuaram
cada vez mais nas causas de canonização, tomando iniciativas para a abertura de
investigações em Roma e dando sustentação às campanhas que pretendiam alavancar um
candidato local ou de regiões próximas.120 O que reafirma a importância estratégica daquela
ampliação da jurisdição papal, bem como a dinâmica de relações com os poderes locais,
ora se aliando a determinados grupos para alavancar um candidato em comum, ora
negando reconhecimento oficial a um candidato não alinhado com os interesses e as
concepções romanas.
Tal dinâmica de relação com os poderes citadinos envolvia também uma questão de
autoridade hierárquica dentro da organização eclesiástica. Pois a centralização do direito de
canonizar em Roma foi feita em detrimento das demais autoridades diocesanas. Para isso
basta relembrar dos decretos do IV Concílio de Latrão e da publicação das decretais de
Gregório IX referidos anteriormente. Ao criar e impor novos procedimentos de inquérito, o
papado concorria diretamente com as práticas tradicionais do episcopado, gerando um
conflito de autoridade e, ao mesmo tempo, lançando as novas bases para a supremacia
pontifícia.121
Para além de uma questão meramente de hierarquia eclesiástica, o exercício do
direito de canonizar, estabelecer cultos e oficializar relíquias apontava também para fora da
Igreja romana, mais precisamente para a disputa política e territorial travada entre papado e
império ao longo do século XIII. Nesta conjuntura, obter o apoio do representante maior da

119
PACIOCCO, Canonizzazioni e culto... op. cit., p. 289.
120
VAUCHEZ, La sainteté... op. cit., p. 48.
121
KLANICZAY, The Power... op. cit., p. 119; MATZ, op. cit., p. 45 et seq.
54

cidade (seja ele o bispo local ou o podestá) era estratégia utilizada por ambos (papado e
império) no sentido de consolidar posições de governo. Diante deste quadro o controle
sobre o culto aos santos era um importante instrumento para legitimar projetos políticos,
sobretudo recompensando os aliados por meio das canonizações. E o papado usou esta
prerrogativa para se fortalecer na Itália, em detrimento do império e de seus aliados
(muitos dos quais, bispos) nas diferentes cidades italianas.
Até mesmo por vislumbrar o potencial das canonizações para a ampliação das áreas
sob o comando e/ou influência direta do papa, o objetivo da Igreja romana era controlar o
processo de reconhecimento oficial de uma ponta a outra, dos procedimentos aos critérios,
permitindo ao pontífice romano exercer um juízo supremo e impor uma concepção de
santidade à sociedade. A disciplina implementada pela sede romana no culto aos santos, tal
como na imposição de um protocolo de investigação próprio (desenvolvido no âmbito da
cúria), visava exercer um direito de controle sobre a natureza e o conteúdo das devoções
cristãs, no sentido de impedir que tais aspectos pudessem evoluir livremente a partir das
manifestações de fervor popular, ou que o seu controle fosse exercido localmente pelas
autoridades diocesanas.122
Apesar da valorização do Direito pela Igreja romana e do desenvolvimento de
procedimentos inquisitoriais próprios para as causas de canonização, nem sempre os
documentos papais daquele contexto refletiam as regras e as diretrizes estabelecidas em
Roma. A preservação e a transmissão de bulas de canonização do século XIII revelam
menções gerais aos milagres realizados por santos oficialmente reconhecidos, sem maiores
detalhes ou exemplos específicos, criando padrões genéricos que se repetiam nos
documentos em questão. Desta forma, se pode afirmar que os resultados apresentados pelas
comissões inquisitoriais, na forma de atas de testemunhos, não foram amplamente
utilizados na produção das bulas de canonização, que não poucas vezes citavam revelações
divinas ou intervenções sobrenaturais como razões principais para a decisão de canonizar
um cristão.123
A presença dos legados papais nas localidades definidas para a inquisitio in
partibus era um fator de atração para as pessoas, que de bom grado procuravam se

122
MATZ, op. cit., p. 46; VAUCHEZ, La sainteté... op. cit., p. 67.
123
GOODICH, Michael. Reason or revelation? The criteria for the proof and credibility of miracles in
canonization processes. In: KLANICZAY, Gábor (Dir.). Procès de canonisation au Moyen Âge: aspects
juridiques et religieux. Rome: École Française de Rome, 2004. p. 181-197, p. 192.
55

aproximar dos locais de sepultura, não apenas para dar testemunhos, mas esperando algum
milagre. De forma que as comissões inquisitoriais, mesmo munidas de orientações e
procedimentos, ao buscar “os fatos” acabavam participando de um processo circular, em
que ajudavam a gerar justamente o que procuravam registrar em seu trabalho de
investigação: relatos de milagres.124
Tomando como referência o papel das crenças e devoções populares no culto aos
santos, os processos de canonização do século XIII acabavam realizando um “popular
referendum” ao buscar e registrar as experiências (individuais e coletivas) para caracterizar
e autenticar os sinais de santidade no âmbito de um inquérito. Desta maneira, apesar da
instituição dos processos de canonização, com seus procedimentos e critérios, o tradicional
princípio vox populi continuou sendo levado em consideração no juízo sobre a santidade
cristã realizado pelo papado,125 mesmo que o seu papel naquele contexto histórico não
fosse mais o de aclamar a santidade e sim o de legitimar as decisões tomadas em Roma.

Reconhecimento da santidade e política de canonização: os mendicantes e o papado

Durante o pontificado de Gregório IX (de 1227 a 1241) foram abertos quatorze


processos inquisitoriais com vistas ao reconhecimento da santidade (Hildegarda de Bingen,
Francisco de Assis, Osmund de Salisbury, Virgílio de Salzbourg, Luca Banffy, Antônio de
Lisboa/Pádua, Elisabete de Turíngia, Domingos de Gusmão, Benvenuto de Gubbio, João
de Montmirail, Bruno de Wurzburg, Odo de Novara, Ambrósio de Massa e Eystein
Erlendsson), dos quais apenas cinco resultaram em canonização pelo mesmo pontífice: três
frades mendicantes (Francisco de Assis, Antônio de Lisboa/Pádua e Domingos de
Gusmão), um bispo (Virgílio de Salzbourg) e uma leiga (Elisabete de Turíngia). Ao
comparar tais números com os de seus antecessores, percebe-se primeiramente o
incremento da atividade papal no campo das canonizações por parte de Honório III (de
1216 a 1227) e Gregório IX, visto que no pontificado de Inocêncio III (de 1198 a 1216),
foram iniciados e avaliados apenas seis processos.126

124
KLANICZAY, Proving sanctity... op. cit., p. 135.
125
KLANICZAY, The Power... op. cit., p. 134.
126
Tais números podem ser conferidos na tabela disponível em: VAUCHEZ, La sainteté... op. cit., p. 295-
297.
56

Para além do número de processos abertos e julgados pelos referidos pontífices


romanos, observa-se também um direcionamento no perfil dos candidatos canonizados ao
longo desse período. No pontificado de Inocêncio III destaca-se a variedade dos candidatos
cujas causas foram acolhidas em Roma, bem como naqueles casos que resultaram em
canonização: três leigos (Homobono, Cunegundes e Caradoc), um cônego regular (Gilberto
de Sempringham), um bispo (Wulfstan) e um monge (Procópio), dos quais apenas Caradoc
não foi canonizado. Já no governo de Honório III percebe-se uma preferência pela
santidade episcopal, manifestada tanto na abertura de processos (dos treze abertos, oito
foram direcionados a candidatos bispos: Guilherme de Bourges, Bertrand de Comminges,
Hugo de Lincoln, Estevão de Deus, Guilherme de York, João Cacciafronte, Laurent
O’Toole e Raniero de Furcona) quanto nas canonizações realizadas (das cinco, quatro
foram de bispos: Guilherme de Bourges, Hugo de Lincoln, Guilherme de York e Laurent
O’Toole).
Os números aqui apresentados e relacionados ao governo de Gregório IX podem
dar algumas indicações sobre a sua política de canonização. 127 A primeira delas é que a
abertura de uma causa não era, naquele período, sinônimo de êxito na empreitada, pois das
quatorze que foram iniciadas durante o seu governo, somente cinco resultaram em
canonização pelo mesmo pontífice, representando o maior grau de seleção entre os papas
citados.128 Portanto, ser canonizado por Gregório IX significava, literalmente, entrar para
um “supremo grupo de eleitos”.
Outro dado que chama atenção é que das cinco canonizações realizadas por aquele
pontífice, mais da metade (exatamente três delas) foi direcionada a integrantes das ordens
mendicantes. Isso sem contar o caso de Elisabete de Turíngia, que embora não fosse
formalmente vinculada àquelas instituições, mantinha com elas estreito contato religioso e
espiritual, o que aumentaria ainda mais o percentual de êxito das causas mendicantes no
pontificado de Gregório IX.
A preferência por candidatos mendicantes nas canonizações realizadas pelo papado
na primeira metade do século XIII não seria, em si, uma nova “descoberta” historiográfica,

127
Levando em consideração os propósitos estabelecidos para este capítulo e para a presente tese de
doutorado, o foco da argumentação foi voltado para a política de canonização desenvolvida no pontificado de
Gregório IX, por ser justamente o pontífice responsável pela canonização de Domingos de Gusmão.
128
Além dos seis que foram canonizados durante o pontificado de Gregório IX, outros dois foram
canonizados posteriormente: Osmund de Salisbury, em 1457, pelo papa Calixto III, e Hildegarda de Bingen,
em 2012, pelo papa Bento XVI.
57

pois o fato já foi amplamente apontado e debatido em publicações variadas de especialistas


em santidade medieval.129 Mas uma avaliação pormenorizada das canonizações realizadas
no referido pontificado é fundamental para compreender melhor o quadro geral no qual se
inseriu o reconhecimento da santidade de Domingos de Gusmão (em 1234), bem como
para explorar comparativamente os aspectos que caracterizaram a sua causa e o seu perfil
de santidade.
O caso de Francisco de Assis fornece os primeiros elementos para demarcar as
práticas e os critérios da política de canonização no pontificado de Gregório IX, que
assumiu a Sede romana apenas um ano após a morte do fundador franciscano. Antes de se
tornar papa, Hugolino dei Conti di Segni era o cardeal protetor da Ordem dos Frades
Menores e, portanto, já mantinha contato com o candidato e com a fraternidade por ele
criada, sendo o principal interlocutor daquele grupo religioso com o papado. Ao contrário
de se eximir de participar diretamente do processo, justamente pelo contato anterior e pela
familiaridade com Francisco, o papa Gregório IX atuou como um tipo de promotor da
causa franciscana: ordenou a redação da primeira vita sobre o líder franciscano e lançou
uma bula pedindo contribuições aos fiéis para a construção de uma basílica para receber os
despojos mortais do Poverello, inciativas que antecederam a própria abertura formal de
uma causa de canonização e, portanto, serviram de base para o estabelecimento do culto
ainda antes da aclamação oficial da santidade.130
Tudo indica que o reconhecimento da santidade de Francisco de Assis pelo papa
Gregório IX já estava decidido antes mesmo da abertura formal de uma causa de
canonização em Roma. Não existem traços ou evidências preservadas do suposto processo
de canonização do fundador franciscano. Provavelmente não existiu uma petitio dando

129
Conferir em: GOODICH, Michael. The politics of canonization in the thirteenth century: lay and
mendicant saints. In: WILSON, Stephen (Ed.). Saints and Their Cults: Studies in Religious Sociology,
Folklore and History. Cambridge: University Press, 1983. p. 169-187; PACIOCCO, Roberto. Il Papato e i
santi canonizzati degli Ordini mendicanti. Significati, osservazioni e linee di ricerca (1198-1303). In:
CONVEGNO INTERNAZIONALE “IL PAPATO DUECENTESCO E GLI ORDINI MENDICANTI”, 25,
1998, Assisi. Atti... Spoleto: Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, 1998. p. 265-341; VAUCHEZ,
André. Grégoire IX et la politique de la sainteté. In: CONVEGNO INTERNAZIONALE “GREGORIO IX E
GLI ORDINI MENDICANTI”, 38, 2010, Assisi. Atti... Spoleto: Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo,
2011. p. 353-377; BRUFANI, Stefano. I santi mendicanti. In: BASCETTI, Massimiliano;
DEGL’INNOCENTI, Antonella; MENESTÒ, Enrico (Orgs.). Forme e modelli della santità in Occidente
dal Tardo Antico al Medioevo. Spoleto: Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, 2012. p. 57-96;
FORTES, Carolina Coelho. As ordens mendicantes e a santidade na Idade Média. In: SILVA, Andréia
Cristina Lopes Frazão da; SILVA, Leila Rodrigues da (Orgs.). Mártires, confessores e virgens: o culto aos
santos no Ocidente medieval. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016. p. 115-145.
130
FORTES, op. cit., p. 136.
58

início aos trabalhos, tampouco foi formada uma commissio para o inquérito sobre a vida e
os milagres do Poverello de Assis. Foi o próprio pontífice que teria conduzido as diferentes
fases processuais, com o auxílio do colégio de cardeais, apresentando-se como garantia da
santidade de Francisco em razão da familiaridade que manteve com ele antes de sua morte,
sendo assim uma testemunha confiável: tal argumento encontra-se registrado na bula de
canonização e na Vita beati Francisci.131
Além de promover e conduzir a canonização do fundador franciscano, Gregório IX
empenhou esforços também para consolidar e difundir o culto a Francisco de Assis.
Primeiro atuou para conferir maior solenidade e sacralidade para a trasladação realizada
em 25 de maio de 1230, quando o corpo do Poverello foi transferido para a basílica de São
Giorgio: ao invés de enviar seus legados para a cerimônia, quis ele mesmo participar do
evento, mas foi impedido por demandas de seu ofício.132 Além disso, o santo franciscano
está entre os poucos que ganharam, ainda no século XIII, um ofício litúrgico próprio para a
celebração de seu dia,133 bem como foi o primeiro a receber indulgências papais associadas
ao desenvolvimento do culto,134 o que demonstra o apoio inequívoco do papado para a
ampliação de sua veneração pelos fiéis.
O envolvimento pessoal do pontífice romano em uma causa de canonização
também pode ser visto no caso de Antônio de Lisboa/Pádua, morto em junho de 1231 e
canonizado em menos de um ano (precisamente em 30 de maio de 1232). A abertura de um
processo formal de canonização para o pregador franciscano se deu por iniciativas tomadas
pela cidade de Pádua, que enviou delegação a Roma para solicitar o acolhimento daquela
causa pelo papado, cerca de um mês após o sepultamento do candidato. A canonização de
Antônio foi marcada pela publicação de duas bulas pontifícias, sendo a primeira datada de
1º de junho de 1232 (intitulada Literas quas pro). Nesse documento o papa Gregório IX
exortou os cidadãos paduanos a perseverarem na crença em Deus e na fidelidade à Sede
romana, em um contexto em que a cidade sofria com o avanço das tropas de Ezzelino da
Romano (aliado do imperador Frederico II).135 Esta bula configura uma espécie de
renovação da aliança do pontífice romano com a cidade de Pádua, que por se manter fiel à

131
PACIOCCO, Canonizzazioni e culto... op. cit., p. 67-68.
132
Ibid., p. 75.
133
PACIOCCO, Il Papato e i santi... op. cit., p. 324.
134
PACIOCCO, Canonizzazioni e culto... op. cit., p. 212.
135
VAUCHEZ, Grégoire IX... op. cit., p. 367.
59

Sede apostólica e fazer resistência ao avanço de um adversário político do papado, recebeu


como recompensa a canonização daquele pregador franciscano, realizada em um
procedimento inquisitorial de rapidez incomparável.136
Já na bula Cum dicat Dominus (de 23 de junho de 1232), Gregório IX fez constar o
mesmo argumento de familiaridade utilizado no caso de Francisco de Assis, apreciando os
méritos e fazendo um elogio à capacidade de pregação de Antônio, que teria posto toda sua
cultura teológica a serviço da Igreja.137 A quantidade de versões originais dessa bula
conservadas nos arquivos da cidade de Pádua, ao todo cinco (datadas entre 1º e 18 de junho
de 1232), aponta o envolvimento direto do papado no estabelecimento e na difusão do
referido culto, marcado por uma forte dimensão cívica em decorrência dos eventos que
antecederam e permearam o próprio processo de canonização daquele pregador
franciscano.138
Por fim, o caso de Elisabete de Turíngia, princesa da Hungria que ficou viúva e foi
preparada pelo seu confessor, Conrado de Marburg, para se tornar um exemplo vivo do
novo tipo de espiritualidade mendicante, marcada por uma vida de humildade e
compaixão. Foi Conrado quem promoveu as primeiras inciativas para a canonização de
Elisabete, tendo redigido uma primeira compilação de seus milagres, narrados no
tradicional estilo hagiográfico, além de utilizar frequentemente seus exemplos nas
campanhas de pregação contra os hereges, contribuindo para difundir a fama religiosa
daquela princesa.139
Ao canonizar Elisabete, Gregório IX pronunciou um sermão (Vas admirabile)
destacando as virtudes e os méritos daquela santa. Além disso, publicou duas bulas de
canonização para informar a aclamação de sua santidade aos demais cristãos. Na primeira
delas (Gloriosus Deus in majestate), o pontífice romano delineou um retrato espiritual para
Elisabete, destacando sua insistência na via penitencial, bem como sua demonstração de
pobreza e o seu engajamento em defesa dos mais pobres. Na segunda bula (Jesus filius
Sirach), o papa em questão concedeu uma indulgência superior a um ano para aqueles que
visitassem a tumba daquela princesa na nova igreja erigida em sua honra pelo Teotônicos
na cidade de Marburg. Além de autorizar por meio de mandato a trasladação solene de suas

136
PACIOCCO, Le canonizzazioni... op. cit., p. 287, nota 30.
137
VAUCHEZ, Grégoire IX... op. cit., p. 366.
138
PACIOCCO, Le canonizzazioni... op. cit., p. 287.
139
KLANICZAY, Proving sanctity... op. cit., p. 122.
60

relíquias naquela cidade, o que ocorreu em 1º de maio de 1236, diante da presença do


imperador Frederico II, que escreveu uma carta a frei Elias (franciscano) sublinhando os
laços de parentesco que o uniam à santa de Turíngia.140
O processo de canonização de Elisabete de Turíngia, por conta do atendimento aos
procedimentos legais e do rigor na execução da investigação, acabou servindo de base para
a elaboração de um tratado redigido na cúria romana (provavelmente pelo dominicano
Raimundo de Peñaforte). Tal documento, que era incomum naquele contexto, enfatizava o
cuidadoso escrutínio com as provas da santidade de Elisabete no âmbito do processo de
canonização, servindo de modelo procedimental para as causas que foram realizadas
posteriormente pelo papado.141
Avaliando comparativamente os casos de Francisco de Assis, Antônio de
Lisboa/Pádua e Elisabete de Turíngia, um primeiro aspecto que se destaca é o
envolvimento direto do pontífice romano nas causas de canonização, a tal ponto que não
seria exagero algum afirmar que a vontade do papado foi o elemento basilar para essas
canonizações. Nos casos de Francisco e Antônio seria até possível apontar uma
canonização antecipada, nas quais os procedimentos formais de avaliação ou foram
ignorados, ou feitos às pressas, de forma que o processo de investigação não foi
efetivamente a base para a decisão final daquele papa.142
Nesses casos a vontade papal seria a própria fonte dos projetos de canonização,
tornando supérfluo, ou meramente formal, a espera do bom andamento dos processos para
depois apresentar a decisão final do pontífice romano.143 O envolvimento de Gregório IX
nas causas abertas em seu pontificado era muito superior ao demonstrado por seus
antecessores neste mesmo campo de atuação.
Algo que se nota, além dos aspectos já apontados anteriormente, pelas pessoas que
acompanhavam e promoviam as iniciativas supostamente necessárias para o êxito dos
processos em Roma: frei Elias no caso de Francisco, Giordano de Forzaté no caso de
Antônio, Conrado de Marburg (substituído após sua morte por Conrado de Hildesheim) no
caso de Elisabete e João de Vicenza no caso de Domingos de Gusmão.144 Eram todos

140
VAUCHEZ, Grégoire IX... op. cit., p. 372 et seq.
141
KLANICZAY, Proving sanctity... op. cit., p. 126.
142
VAUCHEZ, Grégoire IX... op. cit., p. 367.
143
PACIOCCO, Canonizzazioni e culto... op. cit., p. 67.
144
VAUCHEZ, Grégoire IX... op. cit., p. 359 et seq.
61

conhecidos por aquele papa e, portanto, poderiam garantir um diálogo constante com a
instituição romana e agir de acordo com as suas orientações.
Mesmo com essa marcada atuação e até interferência de Gregório IX nos casos aqui
apontados, não seria adequado defender o surgimento de um modelo mendicante único
para acomodar todos os que foram reconhecidos como santos neste pontificado. Melhor
seria destacar o surgimento de uma “identidade de função”, visto que as canonizações
foram associadas à prestação de bons serviços em favor da Igreja romana, em uma lógica
em que a santidade seria um instrumento para a sua sustentação.145
É como se um novo critério tivesse se afirmado neste período e sobrepujado os
demais na avaliação da santidade pelo papado: a utilidade que o recém-canonizado (e o seu
culto) poderia representar para uma instituição que enfrentava adversários poderosos e
passava por uma série de dificuldades, o que justificaria a urgência das decisões tomadas e
a flexibilização dos procedimentos e das regras para as canonizações pontifícias.146 Nesse
sentido, para o papa Gregório IX a santidade não era apenas um estado de perfeição
alcançado por um cristão e reconhecido pela Sede romana, mas, sobretudo, uma graça
divina concedida a pessoas excepcionais que se dedicaram ao sustento e ao bem da Igreja
católica.147
Um exemplo que evidencia essa lógica de pensamento era a importância atribuída
pelo papado à luta contra as heresias naquele contexto da primeira metade do século XIII,
o que ficou amplamente registrado nas bulas de canonização de Francisco de Assis,
Antônio de Lisboa/Pádua e Domingos de Gusmão. Nesses documentos há uma exaltação
dos serviços prestados nesse campo pelos referidos frades mendicantes, que, segundo a
argumentação realizada, teriam sido suscitados pela providência divina para extirpar do
mundo o erro das heresias, sendo esse argumento reproduzido posteriormente na tradição
hagiográfica associada a esses santos.148
Importante é também destacar que, naquele contexto histórico, era praticamente
impossível distinguir o combate às heresias dos demais movimentos papais para ampliar as
áreas sob o seu domínio político na península italiana, uma vez que qualquer oposição

145
BRUFANI, op. cit., p. 76.
146
VAUCHEZ, Grégoire IX... op. cit., p. 358 et seq.
147
Ibid., p. 375.
148
MIATELLO, André L. P. Escrita Hagiográfica Mendicante: pregação e culto cívico. In: TEIXEIRA, Igor
Salomão (Org.). História e Historiografia sobre a Hagiografia Medieval. São Leopoldo, RS: Oikos,
2014(a). p. 114-139.
62

obstinada contra a autoridade pontifícia poderia ser enquadrada como expressão de um


posicionamento herético.149
Assim, a atuação das Ordens mendicantes e a vinculação de seus santos a esta
batalha contra os inimigos da Igreja romana, para além de justificar as canonizações
realizadas no pontificado de Gregório IX, foram úteis aos projetos políticos do papado na
Península Itálica, servindo para conferir legitimidade às investidas feitas contra as
autoridades imperiais e citadinas. O que contribui para esclarecer a recorrência da temática
anti-herética nas canonizações realizadas neste período: o enfrentamento teórico e prático
das heresias não era apenas uma questão de emergência para a Sede romana, era também
uma questão de domínio e de hegemonia na conjuntura italiana do século XIII.
Portanto, não foi sem motivo e interesse imediato, que o papado se prestou a
legitimar teologicamente a existência das Ordens mendicantes nas bulas de canonização de
Francisco e Domingos, associando aqueles fundadores (e por decorrência, os demais
integrantes de suas instituições) a uma história da Salvação, 150 e conferindo um sentido
(teológico/histórico/religioso) para a atuação daquelas ordens. A associação dos
mendicantes com o combate às heresias, com a tarefa prioritária da salvação de almas na
Igreja católico-romana e, por fim, com as canonizações realizadas por Gregório IX,
favorecia o crescimento e a consolidação daquelas instituições no âmbito da hierarquia
eclesiástica, ao mesmo tempo em que criava as condições para a afirmação da supremacia
papal na península italiana.
A priorização dos candidatos mendicantes nas canonizações de Gregório IX
também possibilitou apresentar aos cristãos de sua época um modelo de santidade mais
“moderno”, ou seja, em sintonia com a espiritualidade propagada pelos movimentos
religiosos e pelas comunidades que procuravam pautar sua atuação no ideal apostólico.151
As canonizações de Francisco, Antônio, Domingos e também de Elisabete, permitiram ao
papado, portanto, atender demandas de espiritualidade que se manifestavam nas sociedades
europeias, no mínimo, desde o século anterior.

149
PACIOCCO, Canonizzazioni e culto... op. cit., p. 291.
150
PACIOCCO, Il Papato e i santi... op. cit., p. 295 et seq.
151
BRUFANI, op. cit., p. 69 et seq.
63

Ao valorizar a pobreza voluntária, a caridade urbana, o ensino e demais aspectos


característicos dos mendicantes nas canonizações realizadas,152 o papado legitimava o estilo
de vida religiosa daquelas ordens, ao mesmo tempo em que dialogava com tendências de
espiritualidade já manifestadas nas sociedades. Era uma forma de alavancar o crescimento
daquelas instituições e canalizar para a Igreja romana a atenção dos cristãos interessados
nas formas de vida evangélica e apostólica, colocando suas crenças e práticas dentro dos
limites estabelecidos pela Cúria.
O papado não foi a única instituição, naquele contexto do século XIII, a perceber o
potencial do culto aos santos para a mobilização dos cristãos e para o desenvolvimento de
projetos junto à sociedade. As próprias Ordens mendicantes se dedicaram com empenho à
tarefa de difundir e preservar os cultos oficializados pela Sede romana e associados aos
seus antigos integrantes, pois tinham a consciência de que a proposição de um modelo de
santidade mendicante aos fiéis poderia ser uma base importante para a consolidação da
identidade de cada ordem.153 Por isso apoiaram e sustentaram causas de canonização em
Roma, além de difundirem os cultos tão logo eram oficialmente aprovados pelo pontífice
romano, pois eram as próprias instituições que se beneficiavam com esse reconhecimento,
que a elas se estendia, levando consigo os fiéis em busca de milagres.
Fundamental lembrar que as primeiras décadas do século XIII constituíram
justamente o período de surgimento, estruturação e institucionalização das Ordens
mendicantes, que aparentemente não tinham ainda alcançado, no início da década de 1230,
uma estabilidade na hierarquia eclesiástica, bem como na atuação perante a sociedade. Não
foram poucos os questionamentos e as tentativas do clero diocesano para barrar a atuação
dos mendicantes em diferentes regiões da Europa e da Itália.154
Por isso, pode-se dizer que os mendicantes ainda buscavam estabilidade e
legitimidade para suas instituições no período em questão. De forma que a canonização dos
fundadores (Francisco e Domingos) e de outros integrantes foi encarada, senão por todos,
ao menos pelos dirigentes daquelas ordens, como uma boa oportunidade para guiar os

152
FORTES, op. cit., p. 123.
153
BRUFANI, op. cit., p. 70.
154
MIATELLO, André Luis Pereira. O pregador e a sociedade local: a luta pelo poder pastoral no seio das
cidades da Baixa Idade Média ocidental (séc. XIII-XIV). Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 7, n.
2, p. 112-131, julho/dezembro de 2014(b). p. 120 et seq.
64

rumos das instituições mendicantes, legitimando a sua atuação por meio dos santos
oficialmente reconhecidos pela Igreja de Roma.155
A mencionada disputa entre os integrantes do clero diocesano e os membros das
Ordens mendicantes tinha como foco a atuação no campo religioso e o atendimento às
demandas de espiritualidade que provinham da sociedade. Portanto o que estava em jogo
era a possibilidade de um controle espiritual das manifestações e das expressões de fé
urbanas, em que o estabelecimento de cultos de santidade desempenhava um papel central
para a manutenção da ordem social.
Este era um forte motivo para os mendicantes se engajarem nas campanhas de
canonização envolvendo os seus candidatos, além de atuarem para obstruir outros cultos
citadinos desenvolvidos sob a tutela do bispo e de seus cônegos, inclusive usando a
prerrogativa que tinham por atuarem na Inquisição pontifícia. A afirmação dos cultos de
mendicantes, em detrimento de outros já existentes nas cidades italianas (e associados com
instituições mais antigas), era uma estratégia para o exercício de um poder religioso pelos
conventos e para a defesa de seus novos santuários, de tal maneira que os frades não
olvidaram em usar a acusação de heresia para fazer prevalecer os seus santos.156
Do ponto de vista da Igreja romana as heresias eram menos consideradas como
conjunto de crenças heterodoxas e mais temidas pela possibilidade que elas abriam para
uma subversio ecclesticae libertatis, ou seja, pelo perigo de subverterem a ordem e a
hierarquia social que mantinha as autoridades eclesiásticas no topo das cidades. Por isso, o
recurso do papado às Ordens mendicantes e às práticas inquisitoriais foi uma forma
encontrada para atuar localmente nas diferentes regiões, impedindo que as tendências
heréticas servissem de base para alavancar uma autonomia dos poderes citadinos157 ou para
a consolidação de autoridades e de governos aliados ao poder imperial. O que não impedia
os mendicantes de atuarem em causa própria, utilizando o apoio e as prerrogativas papais
para tentar dominar as cidades a partir do culto aos santos, difundindo seu estilo de vida e
sua ética político-econômica.158
Se de um lado estavam o papado e as Ordens mendicantes atuando para controlar o
culto aos santos e o próprio espaço religioso nas cidades, não se pode ignorar a existência

155
FORTES, op. cit., p. 134.
156
MIATELLO, Escrita Hagiográfica... op. cit., p. 134 e 139.
157
VAUCHEZ, Grégoire IX... op. cit., p. 375.
158
MIATELLO, Escrita Hagiográfica... op. cit., p. 139.
65

de populações que mantinham práticas e crenças religiosas já amparadas em tradições


antigas, bem como de outras instituições citadinas (incluindo o episcopado local e outras
ordens religiosas) que atuavam no jogo político para implantar uma ordem social que lhes
favorecesse. Este quadro ajuda a esclarecer porque em algumas cidades as canonizações
papais não eram tão valorizadas, ao contrário das trasladações e da tutela dos corpos
santos, vistas como fundamentais para a atualização da religião cívica.
Nesse sentido, as canonizações eram muitas vezes vistas como instrumento da
interferência pontifícia nas cidades italianas, de forma que a sua ausência não impedia a
veneração de santos reconhecidos localmente, cujas santidades eram avaliadas pela
eficácia das intercessões por eles realizadas: até mesmo o critério citadino era diferente do
utilizado em Roma, pois o milagre, sobretudo o poder taumatúrgico, continuava a ser a
principal referencia para as escolhas citadinas.159
A atuação do poder imperial e de seus aliados neste contexto da primeira metade do
século XIII também não deve ser negligenciada. Se não existiu uma participação direta de
Frederico II nas causas mendicantes aqui brevemente exploradas, a sua simples presença
em cerimônias ou a movimentação de seus aliados em busca do domínio das cidades
pairavam como uma sombra sobre as iniciativas pontifícias, de maneira que as ações
papais apareciam como uma concorrência aos projetos imperiais.
No caso de Francisco de Assis a canonização se deu em um contexto em que o papa
Gregório IX se viu às voltas com uma revolta citadina contra o poder pontifício,
movimento social e político que foi incitado pelo próprio imperador.160 Já o processo de
canonização de Antônio, o mais rápido entre os mendicantes, teve como pano de fundo o
avanço das tropas comandadas por Ezzelino da Romano (aliado de Frederico II) em uma
tentativa de dominar plenamente a cidade de Pádua, derrotando as forças aliadas ao poder
pontifício. O confronto nesse caso foi tão claro que ficou registrado em bula papal o
reconhecimento àqueles que perseveraram e lutaram ao lado da Sede romana, tendo como
recompensa a oficialização do culto daquele pregador franciscano. 161 Por fim o caso de
Elisabete de Turíngia, cuja trasladação solene de relíquias na cidade de Marburg foi

159
MIATELLO, Escrita Hagiográfica... op. cit., p. 135 et seq.
160
VAUCHEZ, Grégoire IX... op. cit., p. 364 et seq.
161
PACIOCCO, Le canonizzazioni... op. cit., p. 287, nota 30.
66

acompanhada de perto por Frederico II, que registrou em carta enviada ao franciscano frei
Elias seus laços de parentesco com a santa recém-canonizada.162



Entre os séculos XIII e XIV, apesar do incontável número de cultos estabelecidos


na Europa, pouco mais de vinte candidatos foram oficialmente canonizados pela Igreja de
Roma. Ao selecionar tais pessoas em um universo tão amplo de venerações, o papado
guiava-se tanto por considerações religiosas quanto por motivações políticas. De maneira
que o êxito final em uma causa de canonização nesse período, para além dos atributos de
virtude e da realização de milagres exigidos no âmbito dos processos, dependia
diretamente da conformidade da candidatura apresentada com as necessidades mais
imediatas da Sede romana, com destaque para a política anti-imperial, a luta contra as
heresias e os avanços seculares sobre as liberdades eclesiásticas.163
Neste sentido, o pontífice Gregório IX, além de desenvolver a base jurídica para a
nova disciplina das canonizações e fundamentar o caráter universal do reconhecimento
papal, foi bastante incisivo no uso desta prerrogativa para exercitar sua autoridade sobre os
diferentes níveis da hierarquia eclesiástica, e para manter relações de força e poder com o
império e com as cidades no contexto italiano. Não satisfeito em apenas usar sua função de
juiz supremo para avaliar, em acordo com as regras e com os procedimentos por ele
estabelecidos, as causas de canonização abertas por demandas provenientes de diferentes
regiões, o papa em questão se arrogava o direito de decidir favoravelmente e aclamar o
culto daqueles candidatos cuja santidade o permitia enfrentar os problemas de seu tempo.164
Vale destacar que nem todos os candidatos mendicantes, que tiveram uma abertura
formal de causa de santidade em Roma, foram canonizados por Gregório IX, tal como
foram os casos de Benvenuto de Gubbio e Ambrósio de Massa. O reconhecimento oficial
do culto e da santidade pelo referido pontífice romano foi reservado àquelas figuras
marcantes cuja imagem pudesse ser associada ao movimento e às intenções de reforma da
Igreja romana, ajudando a difundir na hierarquia eclesiástica e na própria sociedade os

162
VAUCHEZ, Grégoire IX... op. cit., p. 373.
163
GOODICH, The politics... op. cit., p. 170.
164
VAUCHEZ, Grégoire IX... op. cit., p. 376.
67

ideais e os valores cristãos delimitados pela ortodoxia romana. Desta forma o papado
poderia exercitar a normatização das práticas cristãs, buscando também controlar o
significado da fé mantida pelos fiéis da Igreja.165
Se, por um lado, é importante destacar o desenvolvimento de uma efetiva política
de canonização no pontificado de Gregório IX, e que teve nos santos mendicantes a sua
consecução, por outro, não se deve esquecer que o culto aos santos continuou sendo alvo
de disputas e relações de poder manifestadas em nível local, nas diferentes regiões e
cidades italianas. As próprias canonizações realizadas por aquele pontífice romano
apontam para isso.

“Fons sapientie verbum patris”: apontamentos e reflexões de uma análise do discurso

Esta última parte do capítulo será dedicada a uma análise do discurso da bula de
canonização de Domingos de Gusmão, que ficou tradicionalmente conhecida pelo título de
Fons sapientie, tendo sido publicada em 03 de julho de 1234.166 Neste documento encontra-
se a argumentação e o parecer final do papa Gregório IX, sobre a causa de canonização que
foi aberta em julho de 1233, com o objetivo de avaliar a santidade do fundador
dominicano. A carta em questão apresenta em seu discurso os elementos que, na
perspectiva daquela Sede romana, justificam o reconhecimento universal da santidade e a
oficialização de um culto público em favor do antigo líder dos frades pregadores.
A análise do discurso aqui realizada parte de categorias, princípios e procedimentos
que foram estabelecidos por Michel Foucault no livro A ordem do discurso.167 Para aquele
filósofo francês o discurso não é um elemento secundário do convívio social, ou uma
prática subjetiva que não pode ser decodificada por meio da análise. Ele é um
acontecimento social e histórico, pois é alvo das disputas pelo poder e dos conflitos entre

165
PACIOCCO, Il Papato e i santi... op. cit., p. 322 et seq.
166
A versão aqui utilizada da bula Fons sapientie é uma edição crítica, em língua latina, disponível em:
WALZ, Angelus. Acta Canonizationis S. Dominici. In: Monumenta Ordinis Fratrum Praedicatorum
Historica, tomus XVI. Romae: Institutum Historicum FF. Praedicatorum, 1935. p. 190-194. Deste ponto em
diante farei referência a este documento apenas como Fons sapientie, seguida da identificação da página
correspondente à edição de Angelus Walz.
167
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de
dezembro de 1970. 21 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011(a).
68

grupos divergentes por determinadas posições. Por conseguinte, o discurso é, ao mesmo


tempo, objeto a ser conquistado e arena para as lutas do cotidiano.168
Foucault delineou naquele livro o método e os procedimentos de uma análise
genealógica, que teria como foco principal identificar as formas de regularidade atuantes
nas formações discursivas, permitindo ao pesquisador explorar o próprio processo de
formação do discurso.169 Portanto, as formas de regularidade, no contexto de uma análise
genealógica do discurso, acabam funcionando como um conceito operador, possibilitando
desvendar o processo de formação de um discurso em sua positividade, ou seja, em seu
caráter produtivo.
A leitura da bula Fons sapientie sob a perspectiva teórica foucaultiana permitiu
identificar uma estrutura textual dividida em três partes, que funcionam como núcleos
discursivos de argumentação: na primeira, o argumento desenvolvido pretende
fundamentar a decisão apresentada ao final do documento, construindo um saber e
traçando uma linha de raciocínio com o intuito de provar que a santidade de Domingos de
Gusmão é obra da divina providência, e não da Igreja romana, a qual caberia apenas
reconhecer oficialmente aquilo que é sagrado e que, portanto, deveria ser alvo de devoção
pelos cristãos; na segunda parte, volta-se o foco da argumentação para o pregador
dominicano, apresentando suas virtudes, sua obra de vida e seus milagres, como elementos
que sinalizam a sua santidade e que servem de base para a decisão final do pontífice; por
fim, o papa Gregório IX faz o seu pronunciamento final e, com base no direito exclusivo
de canonização e nos procedimentos de investigação realizados, decreta a inscrição do
fundador da Ordem dos Frades Pregadores no catálogo de santos da Igreja romana, além de
exortar os cristãos a celebrar a sua festividade todo dia 05 de agosto.
As primeiras linhas do texto em questão já introduzem a ideia que fundamenta toda
a argumentação: “Fons sapientie verbum patris dominus Ihesus Christus, cuius natura
bonitas, opus misericordia, redimens et renovans quos creavit, [...] sapienter signa propter
instabiles mentes innovat et mirabilia contra diffidentiam incredulitatis immutat”.170
Segundo o argumento utilizado naquele documento, a origem da sabedoria humana está em

168
FOUCAULT, op. cit., p. 10.
169
Ibid., p. 60 et seq.
170
Fons sapientie, p. 190. “A fonte de sabedoria, o Verbo do Pai, Nosso Senhor Jesus Cristo, cuja natureza é
bondade e a obra misericórdia, redime e regenera àqueles que criou, [...] renovando sabiamente as mentes
inconstantes e os milagres contra os perigos da incredulidade” [Tradução do autor].
69

Deus, que se expressou por meio de Jesus Cristo (Verbo do Pai). Nesse sentido, a Palavra
de Deus é o guia para a vida cristã na terra. Quando há uma falha na comunicação ou na
interpretação daquela Palavra, criam-se desvios ao caminho traçado nas sagradas
escrituras, que tornam necessária a intervenção da providência divina para renovar os
exemplos cristãos e os milagres como forma de enfrentar a incredulidade, redimindo
aqueles que se desviaram.
Portanto, logo no início do texto, constrói-se uma argumentação de caráter
teológico que articula a tríade Palavra/Deus/Providência. Tal articulação discursiva lança
as bases para a formação de um saber que pretende explicar e, ao mesmo tempo, justificar
o reconhecimento oficial da santidade de Domingos de Gusmão, objetivo final do discurso
manifestado naquele documento pontifício. A fundamentação teológica aqui apontada é
complementada e reforçada discursivamente, logo em seguida, pelo recurso à história da
Igreja e à tradição cristã ortodoxa, criando uma linha de raciocínio que liga a vida e a
atuação religiosa do fundador dos dominicanos aos supostos feitos e aos ícones do
cristianismo na versão romana.
Outra articulação de ideias desenvolvida no primeiro núcleo de formação discursiva
da Fons sapientie é aquela envolvendo os conceitos de história/teologia/evangelização, que
serve para delinear uma teologia histórica da militia Christi, entendida como o exército do
Senhor a serviço da evangelização do mundo. Neste argumento parte-se do princípio que a
história da Igreja é propriamente a história da evangelização do mundo, e que a Palavra de
Deus sempre enfrentou resistências e obstáculos, que aparecem de tempos em tempos, de
forma que a militia Christi foi acionada, em diferentes períodos, por interferência da
Providência, para atender as necessidades da Igreja e de sua missão evangelizadora.
Tal articulação entre história, teologia e evangelização fica patente naquele
documento pelo recurso discursivo a uma alegoria retirada de Zacarias (Zac 6, 1-2), que
indica o aparecimento de quatro quadrigas em meio aos montes: A primeira é uma
referência aos cristãos que a partir do martírio testemunharam a sua fé em Cristo e, dessa
forma, “hostiarum sanguine tingerent et in universam spatiosi maris faciem sagena
predicationis expansa”;171 a segunda quadriga era aquela formada pelos monges negros
que, sob a liderança de são Bento, teriam restabelecido uma rede de unidade no

171
Fons sapientie, p. 191. “tingiram com sangue as suas milícias e expandiram as redes de pregação pela
imensidão dos mares” [Tradução do autor].
70

cristianismo pelo reforço da vida comunitária;172 a terceira foi aquela carregada pelos
cavalos brancos, uma referência aos “fratribus Cisterciensis ordinis et Florensis”, que
liderados por são Bernardo teriam se unido as tropas cristãs já fatigadas por várias batalhas
com seus exemplos de penitência e caridade;173 a quarta quadriga, por fim, seria aquela
puxada pelos frades Pregadores e Menores, que “ei velut equo sue glorie prebens fidei
fortitudinem et fervorem divine predicationis innitum circumdedit collo eius”.174
Os termos e a linguagem utilizados nesta parte da argumentação da Fons sapientie
encontram fundamento bíblico, sobretudo no Velho Testamento, sendo repletos de imagens
militares/militantes que traçam um esquema quadripartido da história da evangelização do
mundo, que tem como característica central a atuação da militia Christi.175 Nesta história o
anúncio da Palavra de Deus é o tema principal, a partir da pregação realizada inicialmente
pelos mártires cristãos e perpetuada pela atuação dos monges beneditinos, cistercienses e
florenses, e depois pelos frades dominicanos e franciscanos. Chama atenção, neste caso, a
interpretação do apostolado da Palavra em uma dimensão de milícia cristã, conjugando em
um mesmo nível de atuação as tropas armadas e as desarmadas, o que seria resultado de
uma elaboração ideológica do papado no século XIII para conjugar os esforços da Igreja no
combate às heresias.176
Ainda no âmbito daquela formação discursiva sobre a história da evangelização,
justamente ao fazer referência ao surgimento dos frades Pregadores e Menores, ocorre
também o recurso argumentativo a uma parábola de Mateus (Mt 19,30 e 20,16). Nesta,
Deus teria suscitado a vinda de operários a soldo na undécima hora para trabalhar na sua
vinha, que “non solum vitiorum vepres et spine pervaserant, sed iam propemodum
vulpecule demolientes convertere in aliene vitis amaritudinem intendebant”, sendo
necessário “adversus infestissimam multitudinem, militiam adunare voluit promptiorem”.177

172
Fons sapientie, p. 191.
173
Fons sapientie, p. 191.
174
Fons sapientie, p. 192. “como a cavalo de sua glória, receberam a força e o fervor da fé, rodeando seu
colo com o clamor da divina pregação” [Tradução do autor].
175
MERLO, Grado Giovanni. Contro gli eretici. La coercizione all’ortodossia prima dell’Inquisizione.
Bolonha: Il Mulino, 1996. p. 30.
176
Ibid., p. 46 et seq.
177
Fons sapientie, p. 192. “não só estava repleta de espinhos e vícios maldosos, mas quase demolida pelas
zorras, que a tentavam converter em uma vinha amarga e estéril”, “congregar uma milícia mais valorosa
contra uma multidão infestada” [Tradução do autor].
71

A inserção desta parábola na argumentação é amplamente favorável aos frades


Pregadores e Menores, pois a interpretação é que eles teriam o direito à mesma retribuição
dada àqueles que, antes deles, trabalharam na vinha do Senhor, de forma que o papado
realiza uma legitimação teológica das duas instituições mendicantes representadas por
aqueles frades, inserindo-as na História da Igreja como protagonistas na missão de
salvação.178 O que no contexto de 1234 representava muito para aquelas ordens religiosas,
que não estavam totalmente consolidadas no quadro eclesiástico, ao contrário, ainda
buscavam legitimidade para a sua existência e atuação em sociedade, de forma que não
fossem identificadas com outros grupos religiosos não amparados e não reconhecidos pela
Igreja Romana.
Portando, o documento em questão apresenta uma argumentação de caráter
eclesiológico, atribuindo o aparecimento dos frades franciscanos e dominicanos a uma
intervenção da Providência Divina, que tinha o intuito de confirmar a fé em Deus e a
confiança dos cristãos na Igreja Romana naqueles tempos de dificuldade, representados
pela parábola da undécima hora e pela vinha repleta de espinhos e vícios de uma multidão.
Assim, o papado de Gregório IX reservou aos frades mendicantes um lugar privilegiado no
seio da Igreja de Roma e na história da salvação, ao reconhecer a atividade desempenhada
por aquelas ordens religiosas, associada à santidade de seus fundadores.179
Assim sendo, toda a argumentação desenvolvida no início da bula Fons sapientie,
na parte correspondente ao primeiro núcleo de formação discursiva, objetiva estabelecer o
fundamento e a forma de pensar de um saber que pretende explicar e justificar a
canonização de Domingos de Gusmão. Um saber que se pretende histórico e sagrado ao
mesmo tempo, já que procura nas origens do cristianismo e na tradição ortodoxa católico-
romana exemplos para as obras divinas, elaborando um discurso de base teológica (pois
coloca Deus na origem de todo saber humano), e com uma linha de pensamento histórico-
providencialista, já que o princípio básico para os acontecimentos ali narrados é a
interferência da Providência.
No segundo núcleo de formação discursiva, tal saber se materializa no discurso da
referida bula de canonização por intermédio de uma associação direta entre a vida do frade
Domingos de Gusmão e a trajetória histórico-salvacionista da Igreja católico-romana.

178
PACIOCCO, Canonizzazioni e culto... op. cit., p. 76 et seq.
179
Ibid., p. 77 et seq.
72

Relacionando a alegoria de Zacarias e a parábola de Mateus, chega-se à vida e a atuação


religiosa daquele frade pregador, que teria nascido como mais um dos prodígios realizados
por Deus com o intuito de proteger a sua Igreja e o seu povo.
Após apontar Domingos como um prodígio da divina providência, o documento
passa a elencar e a exaltar as virtudes e as ações atribuídas ao fundador dominicano quando
ainda era vivo. Tal quadro de exaltação o coloca como um cristão diferenciado, que
buscava a perfeição em suas ações e em seus pensamentos: maduro desde a infância;
mortificou a sua carne; consagrou sua vida à religião; foi diligente no magistério e no
ministério sagrado; subjugou a carne ao espírito, e a sensualidade à razão; dedicou-se à
contemplação sem descuidar da caridade ao próximo.180
Por um lado, a pregação, a contemplação e a caridade se associam na figura de
Domingos como reflexos de um ideal de vita apostolica assumido por ele e pela instituição
mendicante que ele liderou. Conforme já destacado anteriormente, o reconhecimento da
santidade era utilizado pela Igreja romana, entre outras razões, para oferecer à sociedade
modelos de perfeição religiosa coerentes com os protótipos de comunidade devidamente
aceitos e normalizados pelo papado. Assim, ao valorizar tais aspectos na atuação do
fundador dominicano, a Sede pontifícia aproveitava para propagandear e difundir um ideal
de vida religiosa em tudo conformado aos ditames daquela instituição, dando um exemplo
de disciplina a serviço do apostolado cristão a partir das virtudes e ações que lhe foram
atribuídas.
De outro lado, as práticas ascéticas e penitentes, também ressaltadas entre as
virtudes atribuídas a Domingos de Gusmão naquele documento, dialogam mais
diretamente com o contexto histórico local de Bolonha e geral da Península Itálica. Pois na
década de 1230, muitos foram os movimentos religiosos de inspiração popular que
tomaram aquelas práticas para si, por entendê-las como representativas de uma
espiritualidade que colocava a mortificação da carne como o principal caminho para a
perfeição cristã. Portanto, a menção a tais práticas na bula Fons sapientie demonstra que o
papado não ignorava as manifestações religiosas populares, pelo contrário, procurava
estabelecer modelos de santidade que permitissem algum diálogo com as formas religiosas
mais valorizadas em sociedade. Como se verá, em outro capítulo desta tese, estas práticas

180
Fons sapientie, p. 192.
73

religiosas estão registradas no inquérito realizado em Bolonha, como parte do processo de


canonização de Domingos, o que aponta que as vozes ali expressadas não foram
desconsideradas pela Sede romana no momento de elaborar um discurso oficial sobre a
santidade do antigo líder da Ordem dos Frades Pregadores.
Ainda naquela parte da bula de canonização sobre as virtudes e as ações associadas
com a vida religiosa de Domingos de Gusmão, aparece uma menção explícita à luta contra
as heresias: “Quo sagittante delicias carnium et fulgurante mentes lapideas impiorum
omnis hereticorum secta contremuit, omnis ecclesia fidelium exultavit”.181 Em outro texto,
argumentei que esta passagem constituía uma quebra no discurso elaborado na Fons
sapientie, pois pensava que ela rompia com uma sequência lógica de pensamento,
exaltando algo que não tinha se manifestado anteriormente na argumentação daquele
documento.182 Está em tempo de corrigir este equívoco de interpretação.
A exaltação da figura de Domingos por ele, supostamente, ter sacudido a seita dos
hereges e, com isso, regozijado os cristãos, encontra total sentido naquela articulação entre
teologia, evangelização e militia Christi que foi feita na primeira parte do documento
papal. A propósito, a valorização da milícia cristã como um instrumento pontifício na luta
contra as heresias foi um tema recorrente nas bulas de canonização publicadas, no mínimo,
desde o papa Inocêncio III. De tal forma que no pontificado de Gregório IX já estava
consolidado o atributo santoral da confusio haereticae pravitatis, que, portanto,
representava uma linha de política pastoral do papado voltada a recuperação para a
ortodoxia de fiéis vacilantes e mesmo de infiéis naquele contexto histórico.183
Ainda no segundo núcleo de formação discursiva, a Fons sapientie apresenta uma
versão para a cura animarum praticada por Domingos e apropriada pelos seus seguidores
na Ordem dos Pregadores: “quandoquidem inexplicabile gaudium de zelo concipiens
animarum ad eloquia Dei dedit animum et per evangelium Christi multos generans, in

181
Fons sapientie, pp. 192-193. “Afastando as delícias da carne e iluminando as mentes obcecadas dos
ímpios, sacudiu a seita dos hereges, exultando a Igreja dos fiéis” [Tradução do autor].
182
PORTO, Thiago de Azevedo. Canonização e poder no pontificado de Gregório IX: princípios, problemas e
reflexões. Revista de História Helikon, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 72-93, 2014. p. 89.
183
CANETTI, Luigi. L’invenzione della memoria. Il culto e l’immagine di Domenico nella storia dei primi
frati Predicatori. Spoleto: Centro italiano di studi sull'Alto Medioevo, 1996. (Biblioteca de Medioevo Latino,
19). p. 103 et seq.
74

conversione tam strenue multitudinis, evangelice dignitatis officium profitentis”.184 Usar a


pregação como forma prioritária de evangelização, expandindo o número de adeptos do
cristianismo e regenerando aqueles que porventura tenham se desviado da ortodoxia, tal é a
base da cura animarum atribuída ao fundador dos dominicanos.
Vale lembrar que no contexto da primeira metade do século XIII, o exercício da
cura animarum foi estabelecido pela Igreja romana como tarefa prioritária das Ordens
Mendicantes, de forma que o papado pudesse usar tais instituições para o próprio controle
da vita religiosa em diferentes regiões da Europa.185 Logo, é provável que Gregório IX
tenha aproveitado a argumentação daquela bula de canonização para reafirmar uma
estratégia pastoral importante para o seu pontificado, pois, ao mesmo tempo em que ele
legitimava a Ordem dos Frades Pregadores a partir da santidade de Domingos, ele também
vinculava tal instituição a seus projetos de governo.
Ao concluir a parte referente às virtudes e às ações realizadas, a mencionada bula
de canonização faz uma referência direta à Ordem dos Pregadores, que é apontada como
efeito direto daquela cura animarum praticada por Domingos de Gusmão e como sua
principal obra de vida: “Pastor et dux inclitus in populo Dei factus, novum Predicatorum
ordinem instituit meritis, ordinavit exemplis, nec miraculis confirmare desiit evidentibus et
probatis”.186
Antes da canonização de Domingos e da redação da Fons sapientie, é provável que
nem mesmo os frades Pregadores concebessem a formação de sua ordem religiosa como
sendo um daqueles pontos de virada decisiva na história da Igreja, pois existiam outras
comunidades religiosas mais tradicionais e mais valorizadas naquele contexto histórico,
como aquela formada pelos cistercienses.187 Mas a argumentação realizada no documento
de canonização do fundador dominicano coloca aquela instituição mendicante em outro
patamar, legitimando teologicamente a vida e a atuação religiosa de Domingos de Gusmão,

184
Fons sapientie, p. 193. “Tomando-lhe um gozo inexplicável pelo zelo das almas, consagrou-se à pregação
divina, regenerando a muitos pelo Evangelho de Cristo, e ao converter tão valente multidão, mereceu obter a
dignidade dos patriarcas” [Tradução do autor].
185
PACIOCCO, Le canonizzazioni... op. cit., p. 284 et seq.
186
Fons sapientie, p. 193. “Feito pastor e ínclito caudilho do povo de Deus, instituiu uma nova ordem de
Pregadores com seus méritos, ordenou-a com seus exemplos e não deixou de confirmá-la com milagres
evidentes e provados” [Tradução do autor].
187
VICAIRE, Marie-Humbert. Histoire de Saint Dominique. Au coeur de L’Église. Paris: Du Cerf, 1957. p.
353.
75

ao mesmo tempo em que reconhece na Ordem dos Frades Pregadores a perpetuação da sua
obra de santidade.
Não seria equivocado afirmar que a celebração da santidade de Domingos na Fons
sapientie, em grande parte, deve-se ao fato de ele ter fundado e liderado a Ordem dos
Frades Pregadores, que é exaltada por intermédio daquela alegoria de Zacarias como sendo
a quarta quadriga enviada pela Providência para defender a Igreja, a fé católico-romana e
seus fiéis em um período de grande dificuldade. Pode-se mesmo apontar uma alternância
entre a glorificação do fundador dominicano e a celebração de sua principal obra de vida,
no caso a ordem religiosa, que aparece como protagonista da evangelização cristã e da
história de salvação que é delineada pelo discurso daquela bula de canonização.188
Finalizando a argumentação do segundo núcleo de formação discursiva, aparece
pela primeira vez no texto daquela bula uma referência aos milagres atribuídos ao fundador
dominicano: “Nam preter opera sanctitatis et signa virtutis, quibus in carne positus claruit
diversorum curatis languoribus, loquela mutis, visu cesis, surdis auditu, gressu paraliticis
et sanitate pristina multarum generibus invalitudinum restitutis”.189 Portanto, ressalta-se
que além de obras de santidade e sinais de virtude, Domingos também realizou milagres, o
que só confirmava o seu status de santidade.
Contudo, chama atenção o fato de que os milagres atribuídos a Domingos de
Gusmão tenham sido elencados na bula Fons sapientie de forma sumária e genérica, sem
nenhuma exploração de exemplos ou de casos concretos, de modo que aquela listagem
apresentada pode ter sido retirada da própria tradição bíblica e/ou hagiográfica. Não seria
pela falta de registro deles que assim foi feito, pois os documentos apresentados para a
abertura da causa de canonização de Domingos e as atas dos inquéritos realizados nas
cidades de Bolonha e Toulouse apontam milagres em vida e após a morte. Qual seria o
motivo para o documento reservar tão pouca atenção aos milagres?
Uma primeira possibilidade diz respeito ao processo histórico de centralização das
canonizações como direito exclusivo do papa. Tal como foi argumentado anteriormente
neste capítulo, desde o início do século XIII os milagres vinham perdendo espaço como

188
CANETTI, op. cit., p. 12 et seq.
189
Fons sapientie, p. 193. “Ademais de obras de santidade e sinais de virtude, com os quais brilhou em vida,
também curou diversas enfermidades, restituindo a fala aos mudos, a visão aos cegos, a audição aos surdos, o
movimento aos paralíticos e devolvendo a prístina saúde a diversos gêneros de enfermos” [Tradução do
autor].
76

critério de aclamação da santidade basicamente por duas razões: a primeira porque estavam
associados às antigas práticas de reconhecimento da santidade, aquelas feitas em nível
local por meio do vox populi ou da atuação do bispo, o que seria um mecanismo de
avaliação bem diferente daquele que o papado se esforçava para fazer prevalecer; a
segunda porque o papado naquele contexto desconfiava que não se poderia registrar e
avaliar objetivamente os milagres no âmbito de um inquérito de canonização, de forma que
a política papal neste aspecto era extremamente cuidadosa e raramente citava os milagres
como prova de santidade.190
A outra possibilidade de explicação estaria vinculada ao caso particular de
Domingos, mais especificamente à campanha de pregação realizada em Bolonha pelo frade
João de Vicenza, pouco antes da abertura formal de um processo de canonização pelo
papado. Existem relatos que dão conta de uma prática suspeita no âmbito daquela pregação
realizada em 1233 no contexto do movimento Alleluia, pois o referido frade dominicano
estaria inserindo em suas pregações menções a milagres de Domingos que não foram
atestados por registros ou no próprio inquérito pontifício realizado naquela cidade. O fato
teria inclusive gerado desconfiança e desaprovação de parte dos dirigentes da Ordem dos
Pregadores, tal como em Jordão da Saxônia, que em seus escritos não faz sequer referência
às atividades de pregação do frade João, o que seria uma forma de condenar aquele caso ao
silêncio.191 Portanto, o incômodo e a suspeita que recaíram sobre aqueles relatos de
milagres em Bolonha podem ter levado o papado a não utilizar naquele documento de
canonização exemplos mais diretos, optando, ao contrário, pela estratégia da menção
genérica a milagres realizados.
O terceiro e último núcleo discursivo de argumentação volta-se propriamente para a
aclamação oficial da santidade de Domingos de Gusmão pelo papa Gregório IX, para o
estabelecimento de seu culto público e para a captação do interesse de devotos cristãos a
partir de uma estratégia específica. Interessante notar como justamente nesta parte final do
documento, o discurso ganha uma tonalidade personalista e, ao mesmo tempo, um caráter
político-institucional, que não apareceram nas duas primeiras partes do texto.

190
GOODICH, Reason or revelation... op. cit., p. 192.
191
MONTANARI, Elio. Litterae encyclicae annis 1233 et 1234 datae. Spoleto: Centro italiano di studi
sull'Alto Medioevo, 1993. p. 12 et seq.
77

A começar pela familiaridade que o pontífice romano assume ter tido com
Domingos de Gusmão quando ele ainda estava vivo, configurando uma espécie de quebra
do discurso manifestado até então na Fons sapientie, pois estabelece uma aproximação
pessoal ao caso: “Cum igitur ex multa familiaritate, quam nobiscum in minori constitutis
officio habuit, argumenta sanctitatis ipsius ex insignis vite testimonio constitissent [...], ut
cuius in terris solacium gratiose familiaritatis habere meruimus”.192 Iniciar a parte final da
bula de canonização com um argumento de familiaridade entre o papa e o santo a ser
reconhecido, no mínimo parece algo estranho à ordem discursiva que foi construída desde
o início do texto, além de, teoricamente, colocar em questão a suposta isenção dos critérios
e dos procedimentos aplicados aos processos de canonização.
Mas isso não deveria ser uma questão problemática naquele contexto histórico, e
nem neste tipo de documento pontifício, tampouco algo extraordinário ou escandaloso, já
que a menção aparece de maneira explícita e, inclusive, é afirmada uma segunda vez. Na
verdade, a familiaritate com o candidato avaliado era um argumento comum nas causas de
canonização que obtiveram êxito no pontificado de Gregório IX, pois também aparece nos
documentos referentes a Francisco de Assis, Antônio de Lisboa/Pádua e Elisabete de
Turíngia.193
O fato dessa familiaridade não ter sido simplesmente omitida na bula de
canonização aponta um contexto, um lugar de produção textual, no qual essa omissão não
passaria imperceptível para outras pessoas ou grupos. Pois esse aspecto, a relação pessoal
entre Domingos e Hugolino, é algo que ficou registrado ao longo do processo de
canonização e em outros documentos da Ordem dos Frades Pregadores (tal como na
crônica e nas epístolas atribuídas a Jordão da Saxônia).
No entanto, é importante frisar que a referida familiaridade entre Gregório IX e
Domingos de Gusmão foi evocada em um contexto de argumentação em que se ressaltam a
importância dos testemunhos e da hierarquia da Igreja romana na decisão final apresentada
pelo pontífice: “essetque postmodum de miraculorum veritate dictorum facta nobis per

192
Fons sapientie, p. 193. “Por conta da muita familiaridade que tivemos, quando eu ainda desempenhava
um ofício menor, constassem os argumentos de sua santidade pelo testemunho de sua insigne vida [...],
daquele que merecemos obter em terra o consolo gracioso de sua familiaridade” [Tradução do autor].
193
VAUCHEZ, Grégoire IX... op. cit., p. 359.
78

testes idoneos plena fides, [...] ipsum de fratrum nostrorum consilio et assensu ac omnium
tunc apud sedem apostolicam consistentium prelatorum cathalogo sanctorum ascribi”.194
Assim sendo, de um argumento pessoal se passa a outro de caráter marcadamente
institucional, assentando a autoridade pontifícia para o reconhecimento da santidade no
poder divino, do qual o papa é representante. Além de destacar o papel dos testemunhos
colhidos por meio dos inquéritos pontifícios e dos auxiliares papais (os cardeais da cúria,
por exemplo) no processo de avaliação e na decisão final de inscrevê-lo no catálogo de
santos da Igreja romana, de maneira que a canonização, em detrimento daquele argumento
de familiaridade inicial, não aparece como resultado de uma decisão pessoal do papa.
Finalizando o terceiro núcleo discursivo e o próprio texto da Fons sapientie, o papa
Gregório IX usa a sua autoridade e os direitos adquiridos para contribuir firmemente com a
celebração da santidade de Domingos, incentivando os cristãos a vivenciarem tal culto:
“Nos vero tanti confessoris venerabilem sepulturam, [...] Christiane devotionis honoribus
frequentari, vere penitentibus et confessis, [...] cum devotione ac reverentia debita
visitantibus [...] unum annum de iniuncta sibi penitentia misericorditer relaxamus”.195
Por um lado, a concessão de um ano indulgência para aqueles que frequentassem a
sepultura de Domingos de Gusmão no dia de sua celebração, agindo com a devida
reverência e devoção cristã, evidencia mais uma vez o apoio papal ao culto do fundador
dominicano. Pois, após reconhecer a sua santidade e estabelecer o dia de sua celebração, o
papa Gregório IX lançou mão de indulgência como forma de atrair devotos para o culto do
primeiro santo dominicano. A referência direta aos penitentes como possíveis beneficiários
daquela misericórdia pontifícia confirma que o papado estava atento aos movimentos
religiosos que se desenvolviam naquele período, inclusive usando estratégias para captar a
devoção daqueles cristãos aos cultos recém-aprovados. Afinal de contas, a remissão de
penas e pecados era um forte motivador das práticas penitentes naquela conjuntura.
De outro lado, o uso das indulgências para além do que foi estabelecido nas normas
canônicas, como foi o caso aqui exemplificado, demonstra que na prática não havia limites

194
Fons sapientie, p. 193. “E nos fosse dada plena fé da verdade de seus milagres por testemunhos idôneos,
[...] com o conselho e o assentimento de nossos irmãos, e de todos os prelados assistentes da sede apostólica,
decretamos a sua inscrição no catálogo de santos” [Tradução do autor].
195
Fons sapientie, p. 194. “Desejando que a venerável sepultura deste verdadeiro confessor [...] seja
frequentada pela honra de devoções cristãs, da parte de verdadeiros penitentes e confessos, [...] com a devida
honra e reverência dos visitantes, [...] perdoamos misericordiosamente um ano de penitência que pese sobre
eles” [Tradução do autor].
79

para a autoridade do pontífice romano, que podia ignorar as regras que ele mesmo criava
para impor disciplina à hierarquia eclesiástica. Desta forma, extrapolando a norma e
exercendo um direito exclusivo sobre as canonizações, Gregório IX redesenhava a
geografia do culto aos santos na Europa,196 aclamando as candidaturas de santidade que
mais se adequavam aos projetos de seu pontificado e criando novos centros de devoção
cristã em cidades de seu interesse, tal como na aclamação da santidade de Domingos e no
estabelecimento oficial de um culto público em Bolonha.



Qual é o perfil de santidade que emerge da bula Fons sapientie para Domingos de
Gusmão? Quais são as suas características? A qual (ou quais) instituição (ões) ele estaria
vinculado? Não existe uma resposta única que permita articular todas estas questões, o que
aponta o grau de complexidade da construção discursiva realizada naquele documento
pontifício, bem como a diversidade da própria imagem de santidade que foi oficialmente
elaborada para o antigo mestre geral dos Frades Pregadores.
Em uma primeira avaliação da ordem do discurso manifestada naquela bula de
canonização, percebe-se o delinear de três perfis de santidade para Domingos. A começar
por uma santidade militante, reflexo de uma teologia da milícia cristã argumentada no
documento e representativa da lógica do combate às heresias naquele contexto histórico.
Tal modelo é amplamente favorável ao papado e aos seus projetos na primeira metade do
século XIII, à medida que legitima as práticas persuasivas e coercitivas levadas a cabo por
aquela instituição no próprio contexto de redação da carta de canonização.
Mas tal perfil também é favorável à estabilidade institucional da Ordem dos Frades
Pregadores, que, precisamente na década de 1230, viu seus integrantes serem direcionados
pela Sede romana para a tarefa pastoral do ofício da inquisição. Portanto, a possível
legitimidade conferida ao combate às heresias e às práticas inquisitoriais que lhe eram
subjacentes, no âmbito do discurso elaborado na bula Fons sapientie, é representativo de
projetos compartilhados por aquelas instituições religiosas.

196
PACIOCCO, Canonizzazioni e culto... op. cit., p. 222.
80

Aparece também o perfil de uma santidade apostólica, caracterizada pela vida


cristã em comunidade e pelo recurso à pregação como principal instrumento de
evangelização do mundo. Tal modelo seria representativo, ao mesmo tempo, do papado e
da Ordem dos Frades Pregadores, pois valoriza um protótipo de comunidade religiosa
ancorado na própria história do cristianismo e normatizado pela Igreja romana, e que seria
justamente o que foi colocado em prática naquela ordem criada e liderada por Domingos
de Gusmão. Portanto, se por um lado, este perfil de santidade valoriza o estilo de vida
religiosa adotado pelos frades dominicanos, por outro, também estreita os laços daquela
ordem com a tradição cristã vinculada e difundida pelo papado.
Mas ele também dialoga com os ideais de espiritualidade vigentes nas sociedades
europeias daquele período, sobretudo com aquele ideal consolidado pelo conceito de vita
apostolica, que a tantos grupos atraiu na conjuntura do século XIII. Grupos interessados
em viver uma experiência religiosa coerente com a mensagem do Evangelho, que não a
viam totalmente espelhada na estrutura eclesiástica até então existente e tampouco no
comportamento do clero diocesano. Como se verá nos capítulos seguintes desta tese, este
ideal de vida religiosa animou o comportamento de grupos muito diversos e nem todos se
submeteram à autoridade da Igreja romana. Daí talvez a necessidade de se apropriar deste
estilo de vida na bula Fons sapientie e delimitar um exemplo claro aos cristãos, um
exemplo que estivesse devidamente enquadrado pelas diretrizes católico-romanas.
O terceiro e último perfil delineado pela ordem do discurso presente na bula Fons
sapientie é o de uma santidade ascético-penitencial, caracterizada principalmente pela
adoção de práticas de mortificação do corpo e por uma disciplina (de valores e de
comportamentos), que seria o caminho prioritário para a perfeição cristã, permitindo uma
ascese religiosa de seus praticantes e a consequente aproximação com o plano divino.
Tal modelo de vida religiosa é representativo dos eremitas (ou ascetas) cristãos,
abordados tradicionalmente pela literatura hagiográfica medieval e, devidamente,
cristalizados na mentalidade popular das sociedades europeias daquele período histórico.
Ele estaria representado na bula de canonização como uma estratégia de atração aos grupos
populares para o culto da santidade de Domingos de Gusmão, pois tal perfil revela uma
valorização de práticas que eram comuns aos movimentos de penitentes na Itália do século
XIII.
81

Assim sendo, este perfil de santidade ascético-penitencial, manifestado na bula


Fons sapientie, permitiu criar um ponto de convergência espiritual entre uma tradição
cristã vinculada à Igreja romana e as práticas religiosas que estavam sendo valorizadas
naquele contexto histórico, inclusive a partir de movimentos populares que despertaram a
atenção e o interesse do papado e das Ordens Mendicantes, como se verá nos próximos
capítulos. Isto demonstra que a prerrogativa de reconhecimento oficial da santidade
exercida pelo pontífice romano, naquele caso específico, não foi feita de forma autoritária
e desvinculada dos ideais de espiritualidade vigentes na península italiana e, mais
precisamente, na cidade de Bolonha.
Entre os três perfis de santidade apontados por uma análise do discurso da Fons
sapientie, o primeiro (a santidade militante) aparece como hegemônico na ordem do
discurso manifestada naquele documento. O que não gera nenhuma surpresa, visto que é o
mais representativo da linha de política eclesiológica e pastoral do pontificado de Gregório
IX, o que só evidencia a autoria institucional do papado naquela bula de canonização. Isto
não significa que os outros dois perfis sejam meramente complementares daquele primeiro.
Na verdade, o aparecimento deles no texto que elabora uma visão oficial para a santidade
de Domingos acaba por registrar a articulação de diferentes grupos/instituições na causa de
canonização do fundador dominicano. O que conduz ao segundo apontamento da análise
do discurso aqui realizada.
A análise genealógica do discurso manifestado na bula Fons sapientie permitiu
identificar o próprio processo de formação discursiva daquele documento. E um dos
aspectos que chama atenção neste processo é a assunção de uma vontade de verdade, que
na acepção foucaultiana é precisamente expressada “pelo modo como o saber é aplicado
em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído”.197
Nesse sentido, a vontade de verdade seria um sistema de exclusão aplicado ao discurso,198
um sistema que permitiria controlar os poderes atuantes em um discurso ao estabelecer
uma verdade, impedindo que outras versões possam assim ser caracterizadas.
Ao analisar o discurso e a sua formação na bula de canonização de Domingos,
observa-se a articulação de, no mínimo, três saberes diferentes na argumentação ali
realizada: a Teologia, a História e o Direito. O primeiro encontra sua expressão na teologia

197
FOUCAULT, op. cit., p. 17.
198
Ibid., p. 19.
82

da militia Christi e também na fundamentação elaborada no núcleo de argumentação


discursiva que inicia aquele documento, quando se recorre à ideia de que todo saber
humano deriva de Deus.
Já a História esteve representada no uso de um esquema quadripartido apontando
para a evangelização do mundo, mais precisamente no recurso a uma alegoria retirada de
Zacarias, o que permitiu estabelecer uma interpretação particular para a história da Igreja.
Entenda-se, uma história de cunho providencialista e salvacionista, pois coloca Deus como
agente supremo dos acontecimentos e a salvação dos cristãos como objetivo da própria
interferência divina.
E por fim o Direito, saber manifestado de forma inequívoca na última parte daquele
texto, quando o papa Gregório IX apresenta as bases jurídicas para a sua decisão final,
apontando o recurso feito aos testemunhos idôneos e ao auxílio dos prelados pontifícios, e
exerce a prerrogativa exclusiva – que foi juridicamente subtraída aos demais bispos – de
inscrever no catálogo de santos da Igreja romana o fundador dos dominicanos.
Assim sendo, pode-se apontar uma valorização destes três saberes no discurso
elaborado na bula Fons sapientie, além de uma aplicação bastante particular, que permitiu
articular interesses advindos do papado, da Ordem dos Frades Pregadores e, como se verá
oportunamente, da cidade de Bolonha. Tal articulação manifestou claramente uma vontade
de verdade relacionada à canonização de Domingos de Gusmão, à medida que construiu
uma versão oficial para explicar e justificar a sua inscrição no catálogo de santos da Igreja
romana, excluindo, por conseguinte, a assunção de outras possíveis versões.
A teologia da milícia cristã, por exemplo, permitiu apontar o surgimento dos frades
Pregadores e Menores como efeito da providência divina, de maneira que as instituições
mendicantes ali representadas foram devidamente legitimadas na estrutura eclesiástica,
dando sentido para as ações pastorais por elas realizadas em sociedade. Ao mesmo tempo
em que fundamentava o uso da pregação como um instrumento do combate às heresias, em
prol da sustentação da Igreja romana e da perpetuação de seus adeptos.
Da mesma forma, a história da Igreja traçada naquele documento, entendida como
uma história da evangelização do mundo, também permitiu articular as ações dos frades
pregadores com a missão salvacionista assumida como prioridade e razão de ser da Igreja
católico-romana. De modo que os interesses pastorais do papado se realizaram na própria
83

atuação religiosa de Domingos, sendo perpetuados pela Ordem que ele criou e liderou, a
começar por seu envolvimento nos projetos de evangelização da Sede romana.
Já o recurso ao Direito fundamentou o próprio ato praticado naquele documento,
tornando possível a canonização de Domingos de Gusmão pelo papa Gregório IX, algo que
era do interesse direto do papado, da Ordem dos Frades Pregadores e da cidade de
Bolonha, articulação que será mais explorada nos próximos capítulos desta tese de
doutorado. Portanto, a valorização e a aplicação destes saberes no discurso elaborado na
Fons sapientie manifestam uma vontade de verdade, que é propriamente a expressão de
uma complexa articulação de interesses dos grupos/instituições que participaram
diretamente do reconhecimento da santidade do antigo líder dos dominicanos.
Para finalizar a análise realizada neste capítulo é fundamental apontar ainda a
atuação de um princípio de rarefação na ordem do discurso presente na bula de
canonização de Domingos. Este princípio estaria atuando na própria autoria daquele
documento: “O autor, não entendido, é claro, como o indivíduo falante que pronunciou ou
escreveu um texto, mas o autor como princípio de agrupamento do discurso, como unidade
e origem de suas significações, como foco de sua coerência”.199
Nesse sentido, a bula Fons sapientie é aqui entendida como um documento
institucional, de caráter religioso e jurídico, cuja autoria é atribuída a Gregório IX e ao seu
pontificado. Com isso não se quer dizer que o papa tenha redigido literalmente a carta de
canonização de Domingos de Gusmão, mas que a sua autoridade e o seu governo atuaram
sobre aquele documento de forma a criar uma coerência interna e a controlar as suas
relações externas, contribuindo decisivamente para a elaboração daquele discurso.
A autoria de Gregório IX, no contexto da Idade Média, significava um indicador de
verdade para o conteúdo expressado naquela bula de canonização, algo que é assumido na
própria argumentação do texto quando se afirma que a familiaridade mantida pelo papa
com o antigo mestre geral dos Frades Pregadores era também testemunho daquela
santidade que foi oficialmente reconhecida. Com tal argumentação o documento imprime
uma espécie de selo de verdade ao que tinha sido apontado pelos outros testemunhos e
avaliado posteriormente pela cúria romana, de modo a fundamentar a decisão que foi
tomada pelo pontífice romano.

199
FOUCAULT, op. cit., p. 26 et seq.
84

Por tudo o que foi aqui apontado, é possível afirmar que na ordem do discurso
presente na bula Fons sapientie existe uma estreita relação entre saber, verdade e
instituição. De modo que a argumentação daquele texto recorre ao saber para instituir uma
verdade sobre a canonização de Domingos de Gusmão, e esta acaba por conferir
legitimidade às instituições que convergiram forças para aquele empreendimento coletivo
de santidade, que visava oficializar um culto para o fundador dos dominicanos.
Assim, fica faltando ainda identificar e explorar as circunstâncias históricas e os
interesses contextuais que mobilizaram o papado, a Ordem dos Frades Pregadores e a
cidade de Bolonha a atuarem conjuntamente para viabilizar a canonização do antigo líder
dos dominicanos, bem como as ações realizadas neste sentido. Para isso é importante
esclarecer melhor a conjuntura mais ampla (a Península Itálica na primeira metade do
século XIII) e o contexto local (Bolonha na década de 1230) nos quais se insere o
reconhecimento oficial da santidade de Domingos de Gusmão. O que necessariamente
conduz aos próximos capítulos desta tese de doutorado.
85

CAPÍTULO II

Três projetos de poder concorrentes na Península Itálica do século XIII:


o papado, o império e as comunas

A Península Itálica200 ao longo do século XIII, mais intensamente na primeira


metade do século, conviveu com as iniciativas de três entidades políticas que estavam em
busca de afirmação institucional e da realização de seus projetos de poder: 201 o papado, o
império e as comunas. Essa perspectiva é um pressuposto para as reflexões sobre as
instituições envolvidas na canonização de Domingos e sobre as ações desenvolvidas nessa
direção e encontra-se fundamentada na historiografia e na análise de parte dos documentos
selecionados para a pesquisa de doutorado.
O confronto entre papado e império, e a difusão do regime comunal pelas cidades
italianas naquela conjuntura histórica, já foram amplamente abordados pela historiografia
ocidental. Este quadro de disputas, enfrentamentos, alianças e, por vezes, até de confrontos
diretos entre aquelas instituições, constitui a conjuntura mais ampla em que se insere a
cidade de Bolonha na década de 1230, contexto mais específico da canonização do antigo
líder dos dominicanos.

200
Vale ressaltar que os termos Península Itálica, Itália e suas derivações foram utilizados ao longo do texto
apenas como demarcadores de uma espacialidade, que não estava definida naquele contexto histórico do
século XIII com os mesmos contornos territoriais e com o modelo político-administrativo da nação atual.
Além disso, é importante destacar que algumas epístolas papais e imperiais daquele período utilizam os
termos Italiae e Italiam para se referir àquela península. Cf.: AUVRAY, Lucien. Les Registres de Gregoire
IX. Recueil de bulles de ces pape d’après les manuscrits originaux du Vatican. Paris : Librairie Thorin et Fils,
1896. Reg. nº 1463, p. 814; Reg. nº 2223, p. 1195; Reg. nº 2335, p. 1234.
201
A perspectiva teórica foucaultiana dimensiona o poder como algo relacional, desconstruindo a perspectiva
de um centro decisório capaz de coordenar sozinho a complexa rede de relações que compreende o exercício
do poder em uma sociedade. Isto não significa que uma instituição, ou um grupo organizado, não possa
exercer um poder superior às demais, e sim que o exercício do poder encontra-se difundido pela sociedade,
entre vários grupos e instituições, que disputam entre si posições e projetos hegemônicos. A palavra chave
nessa perspectiva é o exercício, pois para Foucault o poder não é algo estável, não é algo que se detém, mas
está sempre em disputa como parte da dinâmica social. Por isso, neste capítulo, o papado, o império e as
comunas são abordados como instituições que exercitavam poder na Península Itálica e que disputavam entre
si posições de comando e projetos políticos. Cf.: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1979.
86

O papado e o império, no período em questão, tinham bases territoriais, financeiras,


burocráticas, operavam como Estado e efetivamente concorriam entre si pela hegemonia
política, embora tivessem projetos de poder mais amplos, que extrapolavam as fronteiras
daquela península. A comuna foi uma forma de governo citadino que surgiu no século XII
e se difundiu com muita rapidez pelas cidades centro-setentrionais do território italiano. A
Itália do século XIII foi o palco da afirmação dos governos citadino-comunais, que para se
consolidarem (financeiramente, juridicamente, territorialmente, politicamente, etc.)
tiveram que se afirmar diante de dois adversários mais poderosos e com projetos
universalistas.
No geral, as cidades não se acomodaram àquela realidade de confronto entre o
papado e o império, nem se mantiveram indiferentes a ela. Souberam entender aquela
conjuntura de embate entre duas entidades mais poderosas e tomaram decisões políticas,
ora apoiando um dos lados, ora se aliando ao outro, levando sempre em consideração a
composição sociopolítica local e as disputas regionais com outras cidades. Portanto, os
interesses locais e as disputas entre grupos no interior das cidades orientavam mais os
rumos da política citadina, que não se submetia simplesmente aos projetos pontifícios e
imperiais: compunha com eles à medida que tal iniciativa fosse favorável aos interesses
comunais ou do grupo que momentaneamente controlava o governo citadino.
O papado e o império, de seus lados, não ignoraram o fenômeno citadino dos
governos comunais, e disputaram avidamente entre si o controle ou simplesmente o apoio
das comunas, justamente porque perceberam a força e o potencial daquela instituição local
para a implantação de seus projetos na Itália. Cada cidade que entrava na esfera de
influência ou de domínio de um dos dois campos ajudava a projetar mais amplamente o
seu poder político, além de configurar uma base de crescimento econômico e fiscal.
Portanto, na conjuntura política italiana do século XIII, de um lado estavam as
comunas, em busca principalmente de conquistar ou de ampliar as suas liberdades (fiscal,
econômica, jurídica, militar, corporativa, etc.), e também de se consolidarem como uma
entidade política autônoma, que não pretendia ser uma mera projeção ou um simples
domínio daqueles dois projetos mais poderosos em disputa, pois elas tinham projetos
próprios (alguns até em escala regional); de outro estavam o papado e o império,
instituições historicamente mais antigas que as comunas, mas que ainda buscavam ampliar
87

os seus domínios na península italiana por meio de projetos universalistas, que viam na
Itália o campo principal de uma batalha pela liderança do Ocidente cristão.
O quadro em questão não é dos mais simples para se analisar, pois era
extremamente dinâmico naquele período, suscetível a alterações políticas sempre que
ocorria a substituição de um papa por outro, ou de um imperador por outro, ou quando se
dava alguma mutação na correlação de forças locais que servia de base aos governos
comunais. Em consideração ao propósito de análise estabelecido para a tese de doutorado,
não se pretende aqui realizar um longo histórico das relações políticas entre papado,
império e comunas na Itália do século XIII. Este capítulo pretende apenas abordar alguns
campos que, naquela conjuntura mais ampla, evidenciam as disputas, as iniciativas e o
desenvolvimento dos diferentes projetos, de forma a criar um quadro mais geral em que se
torne compreensível a participação ou não daquelas instituições no contexto mais
específico da canonização do primeiro mestre-geral da Ordem dos Frades Pregadores.

Poder e autoridade: concepções e iniciativas a serviço de projetos políticos

Na Itália do século XIII, assim como em outras conjunturas e épocas históricas, o


poder não era exercido apenas coercitivamente, por meio do uso da força armada de tropas.
Por isso o primeiro campo a ser abordado neste capítulo como arena de enfrentamento
entre o papado, o império e as comunas, é aquele espaço imaginário de construção das
ideias, das concepções, dos conceitos; e que tornava possível a uma instituição ou entidade
política forjar a sua legitimidade perante regiões e populações, de forma que o exercício do
poder por um governante (local, regional ou supraregional) se dava primeiramente pelo
reconhecimento de uma autoridade tida como legítima, o que o autorizava a exercer na
plenitude sua função de liderança/comando/chefia.
Não foi por acaso que o papado do século XIII se dedicou a forjar teoricamente a
legitimidade do poder exercido pelos pontífices romanos, recorrendo ao serviço intelectual
de teólogos, canonistas e juristas daquela época. A começar pela concepção que defendia a
primazia do poder espiritual (associado ao sacerdócio cristão e tendo o papa como primeiro
representante) sobre o poder temporal (relacionado aos governantes laicos). Se por um lado
a Igreja romana reconhecia o papel complementar dos governantes na condução dos
cristãos ao seu destino final (a salvação e a vida eterna, em uma lógica de pensamento que
88

tinha a religião cristã como base), por outro associava o exercício deste poder a uma
restrita submissão ao poder espiritual dos seus representantes, aos quais cabia o
reconhecimento dos soberanos legítimos (imperadores e monarcas): afinal de contas, não
eram os pontífices que por intermédio da unção sacra e da coroação confiavam a potestas
et dignitas regnandi aos soberanos?202
A construção teórica da primazia da autoridade espiritual sobre a temporal tinha o
intuito claro de fundamentar um poder superior aos papas, de tal forma que não pudesse ser
questionado ou submetido ao poder exercido pelos governantes laicos. Mesmo que a ideia
não tivesse origem no século XIII, tal teoria da plenitudo potestatis foi sistematicamente
defendida e disseminada pelos papas Inocêncio III, Gregório IX e Inocêncio IV, assumindo
posicionamentos públicos e tomando decisões práticas que afrontavam diretamente a
autoridade dos imperadores da família Staufen. Se estes pretendiam exercer seu poder
temporal com base nas tradições imperiais carolíngias, das quais se consideravam
continuadores, o papado não hesitou em lembrar que Carlos Magno tinha sido coroado em
Roma pelo papa, que seria assim o verdadeiro depositário daquele poder exercido por ele
no Império Carolíngio.203
Embora o projeto de hegemonia pontifícia avançasse sempre em detrimento do
poder imperial, não era a intenção inicial acabar com o império e sua representatividade
política. Existia um espaço devidamente reservado aos imperadores cristãos no projeto
papal: exercer as funções de sustento material e de braço armado da Igreja romana. Por
isso os papas insistiram na tese que fazia do imperador o miles Petri, por excelência, a
quem caberia legitimamente o uso da espada sempre que necessário e de acordo com as
orientações emanadas de Roma. Contudo, essa posição não parecia agradar aos
imperadores da família Staufen, que não estavam tão dispostos a exercer um papel
secundário na liderança do Ocidente cristão e nem a se submeterem plenamente à
autoridade dos pontífices romanos, principalmente nos períodos em que se fortaleciam nos
reinos sob o seu domínio direto (Germânia, Itália e Sicilia). Tais imperadores postularam e

202
VAUCHEZ, André. Chiesa, potere e società. In: . Storia del cristianesimo (volume 5): Apogeo del
papato ed espansione della cristianità (1054-1274). Roma: Borla/Città Nuova, 1997. p. 591-609. p. 595.
203
BARROS, José D’Assunção. Cristianismo e política na Idade Média: as relações entre o papado e o
império. Horizonte, Belo Horizonte, v. 7, n. 15, p. 53-72, dez. 2009. p. 68.
89

reclamaram igualdade de posições com o papa, aceitando no máximo serem apontados


como advocatus ecclesie.204
As disputas e os conflitos de autoridade entre papado e império se tornaram mais
intensos justamente no século XIII, quando os integrantes da família Staufen conseguiram
reunir sob seu domínio os reinos da Itália e da Sicilia, deixando o chamado Patrimônio de
São Pedro (os territórios do papado), situado na região central da Itália, encravado entre
dois reinos daquela família imperial. O temor da Igreja romana era claro: a possibilidade
de que aqueles reinos servissem de base para o avanço sobre os territórios pontifícios. Daí
a necessidade premente de afirmar a primazia do poder exercido pelo bispo de Roma e a
decorrente submissão do imperador à autoridade romano-pontifícia. Esta foi uma das
formas encontrada pelo papado para garantir, pelo menos em teoria, que os imperadores
não avançariam sobre aqueles territórios e nem sobre as prerrogativas papais.205
O processo de construção teórica de uma legitimidade para o poder de governo
também se deu do lado imperial. Se a Igreja romana, de sua parte, criou um discurso que
fazia o poder do pontífice descender de Jesus Cristo por meio do apóstolo Pedro,
garantindo a primazia de seu poder por meio de uma origem divina, os imperadores da
família Staufen recorreram ao mesmo expediente; contudo, de seu lado, fazendo referência
aos monarcas representados no Antigo Testamento, que exerceram poder e autoridade
também de origem divina.206 Desta forma, a potestas et dignitas regnandi por eles
exercitadas não dependeria do aval ou do reconhecimento público dos papas por meio de
cerimônia eclesiástica, pois a sua origem divina era independente do bispo de Roma e seria
passada por meio das próprias tradições imperiais de uma geração a outra.
A ascensão de Frederico II ao trono imperial, em 1220, marca um longo período de
disputas e confrontos entre papado e império, que só será encerrado com a sua morte em
1250. Ele foi, sem dúvida alguma, um dos governantes que mais se empenhou na tarefa de
fundamentar teoricamente o poder temporal e suas prerrogativas, mais precisamente a
autoridade exercida pelos imperadores da família Staufen.207 Mas nos primeiros anos da
década de 1230, período em que ocorreram as iniciativas e os eventos vinculados à causa

204
BARONE, Giulia. Federico II di Svezia e gli Ordini Mendicanti. Mélanges de l'Ecole française de
Rome. Moyen-Age, Roma, tome 90, n. 2, p. 607-626, 1978. p. 626.
205
VAUCHEZ, Chiesa, potere... op. cit., p. 594.
206
HOUBEN, Hubert. Federico II. Imperatore, uomo, mito. Bolonha: il Mulino, 2009. p. 34.
207
ABULAFIA, David. Federico II. Un imperatore medievale. Torino: Einaudi, 1993. p. 173.
90

de canonização de Domingos de Gusmão, as relações entre o papado e o império estavam


em um momento de menor tensão e enfrentamento, em decorrência de um acordo de paz.
Apesar disto, o confronto entre aqueles dois projetos universais (papal e imperial)
pela hegemonia política na Península Itálica não ficou paralisado, e se não determinou os
acontecimentos em escala local, certamente interferiu nas dinâmicas de poder das cidades
italianas, sobretudo na zona centro-setentrional da península. Pois o antagonismo crescente
entre papado e império no século XIII levou os dois lados a disputarem o domínio de cada
cidade, cada condado, cada povoado italiano, com o intuito de ampliar suas bases
materiais, bem como de projetar cada vez mais longe a sua autoridade. Diversas foram as
estratégias e as iniciativas desenvolvidas por ambas as entidades políticas na busca de
consolidar os seus projetos de poder, algumas direcionadas especificamente para as
realidades citadinas.
O imperador Frederico II chegou, por exemplo, a conceder privilégios especiais a
algumas cidades italianas, reconhecendo oficialmente direitos e liberdades que eram do
interesse das comunas em desenvolvimento, tais como as formas de autogoverno que já
tinham sido instauradas. Se não era possível reverter a situação política de governos
comunais já estabelecidos, melhor então era sancionar a realidade de fato, buscando
agradar líderes e famílias locais que poderiam guiar os governos em acordo com a política
imperial.208
Inseridas nesta conjuntura de intensificação das rivalidades entre papado e império,
as cidades da Itália centro-setentrional (bem como os grupos sociais em disputa naquelas
localidades) não puderam simplesmente ignorar aquele confronto de projetos universais no
século XIII. Por isso, as comunas mais fortes procuravam ampliar também suas zonas de
influência e exercer poder político para além de suas fronteiras citadinas, seja sobre os
condados ou sobre cidades vizinhas, na maioria dos casos se apoiando no papado ou no
império para a consecução de seus projetos regionais.
É o caso da rivalidade estabelecida naquele período entre as cidades de Milão e
Cremona, que disputavam a hegemonia política sobre a região paduana. Ambas
procuraram ampliar seus domínios oferecendo e apoiando seus próprios candidatos para
assumirem os governos comunais de outras cidades na condição de podestà, de modo que

FRANCESCHI, Franco; TADDEI, Ilaria. Le città italiane nel Medioevo (XII-XIV secolo). Bolonha: il
208

Mulino, 2012. p. 120.


91

se formaram verdadeiros circuitos diplomáticos rivais entre estas cidades: Milão, que em
diferentes períodos recebeu o apoio pontifício, fornecia governantes para suas aliadas
Brescia, Bolonha, Piacenza e Vercelli; enquanto a cidade de Cremona, historicamente
alinhada à política imperial na Itália, oferecia seus candidatos como podestà para as
comunas de Asti, Bergamo, Parma e Modena.209
A associação direta a um determinado projeto ou o apoio político circunstancial ao
papado e ao império não foram as únicas estratégias utilizadas pelas comunas para a
realização de seus próprios objetivos políticos e econômicos. Em meados do século XII e
nas primeiras décadas do século XIII, algumas comunas da Lombardia criaram uma
aliança política e militar com o intuito de enfrentar o império e suas pretensões naquela
região italiana. A chamada Societas Lombardiae, também conhecida como Liga Lombarda,
tinha chegado ao fim com a paz de Costanza (1183), em que as cidades aceitaram o
pagamento de um imposto ao império (o fodrum, arrecadado para campanhas militares) e
se mantiveram atreladas a uma estrutura que reconhecia a hegemonia política imperial
naquela área. Em troca, o império reconhecia a comuna como um ente político-
administrativo legítimo e juridicamente inserido na estrutura do Reino da Itália, permitindo
ao governo comunal o exercício das regalias que a doutrina jurídica tradicionalmente
atribuía à autoridade imperial.210
A atuação da Liga Lombarda no século XII foi extremamente exitosa para o
movimento comunal, que conseguiu conquistar frente ao império boa parte das libertas
civitatis requisitadas. Mas a sucessão imperial e a ascensão de Frederico II, na década de
1220, criaram problemas efetivos aos resultados conquistados anteriormente pelas cidades
italianas. Pois o referido imperador tinha um projeto de poder que almejava restaurar a
autoridade imperial sobre toda a Itália centro-setentrional, e o questionamento das
cláusulas acordadas na paz de Costanza foi um dos caminhos para a consecução deste
projeto. Tal objetivo foi mesmo anunciado como parte do programa de uma dieta imperial
convocada para ocorrer na cidade de Cremona, levando um grupo de comunas a

209
GILLI, Patrick. Villes et sociétés urbaines en Italie (milieu XIIe – milieu XIVe siècle). Paris: Sedes,
2005. p. 51-52.
210
FRANCESCHI; TADDEI, op. cit., p. 128.
92

reconstituir a Liga Lombarda em 1226, tendo as cidades de Milão e Bolonha como líderes
do movimento.211
O desenvolvimento institucional dos governos comunais e a consequente ampliação
de suas liberdades e prerrogativas na primeira metade do século XIII era uma realidade
difícil de ser contestada, ou modificada a força, mesmo por um projeto universal amparado
em entidades políticas tradicionalmente mais poderosas que as cidades, como o papado e o
império. As comunas desenvolveram estratégias de resistência que iam do enfrentamento
direto (com tropas citadinas) à composição política com uma daquelas forças (papado ou
império) quando o cenário se mostrava mais favorável. Portanto, os governos citadino-
comunais, mesmo não dispondo do mesmo arcabouço histórico do papado e do império
para argumentar uma possível origem divina para a sua autoridade, também realizaram
reflexões teóricas e iniciativas práticas para fundamentar a autonomia das cidades perante
aquelas entidades mais poderosas.
A defesa irrestrita de suas próprias formas de governo, bem como das instituições
que lhe eram decorrentes e das liberdades conquistadas, são exemplos do exercício teórico
e prático da política nas cidades italianas do século XIII. A formação de conselhos locais e
de colégios de eleitores, bem como a implantação de sistemas eleitorais que mesclavam a
escolha dos eleitores aptos com o recurso ao sorteio na nomeação dos magistrados e
reitores citadinos, são provas irrefutáveis dos esforços comunais para impedir uma
interferência direta do papado e do império na formação de seus governos locais.212



A legitimação de autoridade e o exercício de poder eram fatores inseparáveis para a


hegemonia política de uma instituição ou entidade sobre diferentes territórios na Itália do
século XIII. O papado e o império demonstravam ter consciência desta dinâmica, por isso
buscavam legitimar a autoridade de seus representantes perante diferentes populações,
como forma mais eficaz de garantir um exercício de poder que lhes fosse favorável. O
recurso à religião foi amplamente utilizado como forma de sedimentar uma autoridade para

211
GILLI, Villes et sociétés... op. cit., p. 21; FRANCESCHI; TADDEI, op. cit., p. 135-136.
212
GILLI, Patrick. As fontes do espaço político. Técnicas eleitorais e práticas deliberativas nas cidades
italianas (séculos XII - XIV). Varia Historia, Belo Horizonte, v. 26, n. 43, p. 91-106, junho de 2010. p. 99 et
seq.
93

o papa ou para o imperador, enunciando uma origem divina para o poder exercido por eles
sobre as populações.
A própria bula de canonização de Domingos de Gusmão pode apontar este aspecto
no caso do papado. Pois ao final da argumentação, na parte em que o pontífice Gregório IX
decretou a inscrição do fundador dos dominicanos no catálogo de santos da Igreja romana,
foi feita uma articulação entre a autoridade exercida pelo papa e suposta origem divina do
seu poder, já que ele se identifica como um servidor de Deus, e como alguém cujo poder se
exerce por sufrágio divino.213 Portanto, segundo o discurso expressado naquele documento,
ao canonizar o antigo mestre geral dos Frades Pregadores, o pontífice romano não agia por
força da posição que ocupava na hierarquia eclesiástica, e sim como um representante de
Deus na Terra.
Era justamente nesta posição de representante do poder divino que o referido papa
costumava se afirmar diante do imperador Frederico II, de forma a se fazer superior e a
colocar o imperador naquela posição inferior de miles Petri. Em uma epístola enviada a
Frederico II, em 03 de fevereiro de 1233, Gregório IX, como de costume, se refere a ele
como Imperador romano, reconhecendo a sua autoridade como legítima. Mas logo em
seguida, trata de adverti-lo para o papel que a Igreja esperava dele, exortando-o a agir “sem
demora” contra os infiéis que afrontavam a dignidade da Igreja e do Império nos territórios
vizinhos à cúria romana.214 Assim sendo, para o papado, naquele contexto conturbado da
Península Itálica no século XIII, o recurso à autoridade imperial era algo necessário para
garantir o respeito à instituição eclesiástica e ao patrimônio de São Pedro.

213
A versão aqui utilizada da bula Fons sapientie é uma edição crítica, em língua latina, disponível em:
WALZ, Angelus. Acta Canonizationis S. Dominici. In: Monumenta Ordinis Fratrum Praedicatorum
Historica, tomus XVI. Romae: Institutum Historicum FF. Praedicatorum, 1935. p. 190-194. p. 193: “[...] nos
cum comisso nobis grege Domini confidentes, eius posse suffragiis per Dei misericordiam adiuvari, ut cuiús
in terris solacium gratiose familiaritatis habere meruimus, eius in celis potenti patrocinio gaudeamus, ipsum
de fratrum nostrorum consilio et assensu ac omnium tunc apud sedem apostolicam consistentium prelatorum
cathalogo sanctorum ascribi decrevimus”. Deste ponto em diante farei referência a este documento apenas
como Fons sapientie, seguida da identificação da página correspondente à edição de Angelus Walz e da
transcrição entre aspas, quando for o caso.
214
AUVRAY, Lucien. Les Registres de Gregoire IX. Recueil de bulles de ces pape d’après les manuscrits
originaux du Vatican. Paris : Librairie Thorin et Fils, 1896. Reg. nº 1068, p. 619: “Fridericum, Romanorum
imperatorem, monet et hortatur ut, ad deponendam superbiam protervorum qui tam Ecclesiae quam Imperii
dignitatem impetant, ad loca Curiae Romanae vicina se conferat sine mora et impiis resistat”. Deste ponto em
diante a referência aos Registros do papa Gregório IX na edição de Lucien Auvray será feita apenas como
AUVRAY, seguida pela identificação do número do registro e da página em que se encontra, além da
transcrição correspondente (entre aspas) quando for o caso.
94

Já as cidades, por sua vez pressionadas por adversários mais poderosos e seus
respectivos projetos de poder para a Itália, não aceitaram recuar em suas demandas de mais
liberdade e autonomia de governo. Pela falta de prerrogativas e de tradições para ingerir
diretamente nos assuntos religiosos, os governos comunais investiram inicialmente em
estratégias políticas e militares para resistir aos assédios do papado e do império, tal como
apontam as sucessivas formações da Liga Lombarda. Reunir lideranças e tropas foi um dos
caminhos encontrados para defender a autonomia citadina.
A autoridade conquistada e o poder exercido pelos dirigentes comunais também foi
reconhecido pelo papa Gregório IX em suas epístolas, inclusive manifestando suas
predileções políticas ao favorecer determinadas cidades em detrimento de outras. Em 29 de
abril de 1233, o referido pontífice escreveu uma carta direcionada ao podestà e ao populus
de Bolonha, solicitando que não impedissem a saída do frade João de Vicenza, que atuava
como legado papal e tinha sido direcionado para agir em outra cidade. 215 O pedido do papa
aponta o reconhecimento explícito daquela autoridade comunal, bem como do setor da
sociedade local que lhe dava base de apoio político. O pontífice romano não se daria ao
trabalho de escrever uma carta, com tal solicitação, a uma instituição/autoridade que ele
não reconhecesse como legítima.
Já na epístola redigida em 25 de agosto de 1233, direcionada ao mesmo frade
dominicano, Gregório IX orientou ao seu representante que concedesse o benefício da
absolvição aos cidadãos de Milão e de Bolonha,216 que tinham se envolvido em confrontos
com outras cidades. Tal correspondência papal e o pedido nela veiculado comprovam a
“boa vontade” do pontífice romano com estas cidades, que não por coincidência eram as
principais adversárias do poder imperial na Itália.
Portanto a legitimação de autoridade e o exercício do poder nas diferentes regiões
italianas, naquela conjuntura do século XIII, não apontava para uma hegemonia pura e

215
AUVRAY, Reg. nº 1268, p. 714: “Potestatem et populum Bononienses rogat et hortatur quatenus, si frater
Johannes, de ordine Praedicatorum, Senensem et Fiorentinam civitates, diabolica tentatione in tumultum
versas, personaliter visitare decreverit ad occurrendum tantae cladi, nullus cum impediat”. Vale ressaltar que
essa epístola papal e a que aparece na próxima nota foram retomadas na análise desenvolvida no capítulo IV
desta tese de doutorado. Mas naquele capítulo a análise caminha para outra direção, com o intuito de explorar
a relação construída entre o pontífice e o referido frade dominicano. Cf., infra, p. 83 et seq.
216
AUVRAY, Reg. nº 1504, p. 830: “Fratri Johanni de Vicentia, ordinis Praedicatorum, committit ut Milantio,
militi Bononiensi, beneficium absolutionis impendat, injuncto eidem Milantio quod, civibus Viterbiensibus
super quibus in eis tenebatur, satisfacto, in primo generali passagio per Sedem Apostolicam praefigendo, iter
arripiat eundi in subsidium Terrae Sanctae, per biennium vel triennium moraturus ibidem”.
95

simples de um daqueles projetos sobre os demais. As disputas por prerrogativas de governo


e os conflitos pelo domínio político daqueles territórios foram longos e dinâmicos,
permitindo conquistas e reveses do papado, do império e das comunas em diferentes
períodos. Por isso é importante explorar diferentes campos de atuação destas entidades
político-administrativas naquele contexto, como forma de compreender melhor seus
projetos e suas iniciativas.

Direito, legislação e justiça: fundamentos para o exercício do poder na Itália

O campo do direito, das leis e da justiça, foi alvo das disputas e dos conflitos entre
império, papado e comunas na conjuntura italiana do século XIII. A começar pela intensa
atividade legislativa desenvolvida por aquelas entidades político-administrativas, como
forma de organizar a sociedade e impor uma ordenação adequada seus aos respectivos
propósitos. Existiram efetivamente verdadeira concorrência e sobreposição de direitos, na
primeira metade daquele século, gerando uma série de questionamentos de parte a parte,
assim como de movimentos para definir e, se possível, ampliar as suas prerrogativas e
jurisdições.
No caso de Frederico II, a atividade legislativa começou paralelamente à sua
coroação imperial em Roma pelo papa Honório III (em 22 de novembro de 1220),
cerimônia que contou ainda com a participação do cardeal-bispo Hugolino de Ostia (futuro
papa Gregório IX), na mesma ocasião em que foi publicada a Constitutio in basilica Beati
Petri. Pode-se afirmar que a primeira ação legislativa do imperador, com a edição daquela
constituição, teve uma participação direta do papado na sua elaboração e nos esforços para
a sua implantação em território italiano, de modo que a referida legislação pode ter sido
obra da chancelaria pontifícia. Pois as leis expressas naquele documento estabeleciam uma
separação jurídica entre o reino da Sicilia e o império (enquanto a Igreja romana aceitava a
união das duas coroas sob a autoridade de Frederico II); e todas as decisões editadas
anteriormente nas comunas italianas e contrárias aos direitos eclesiásticos foram
suspensas.217

217
BENEDETTI, Marina. Gregorio IX: l’inquisizione, i frati e gli eretici. In: CONVEGNO
INTERNAZIONALE “GREGORIO IX E GLI ORDINI MENDICANTI”, 38, 2010, Assisi. Atti... Spoleto:
Centro italiano di studi sull'Alto Medioevo, 2011. p. 293-323, p. 312-313; MERLO, Grado Giovanni. Contro
96

A interferência mais direta da autoridade pontifícia nos afazeres das comunas


autônomas durante a década de 1220, ora solicitando o respeito citadino pelas constituições
conciliares da Igreja (como aquelas do IV concílio de Latrão, de 1215), ora atuando para
fazer prevalecer as constituições imperiais que também lhe eram favoráveis (como a de
1220), constitui um reflexo dos avanços realizados no século anterior com relação à
plenitudo potestatis exercida pelos papas.218 Pois tais movimentos do papado e de seus
representantes acabavam projetando nas sociedades e nas formas de governo atuantes na
Itália um poder que tinha se fortalecido no âmbito das estruturas eclesiásticas.
O reiterado interesse do papado na implantação daquela constituição imperial e na
sua aplicação nas cidades italianas foi também observado em outras atividades do cardeal-
bispo Hugolino de Ostia, quando ele ainda atuava como legado pontifício na região da
Lombardia. Acompanhado de pregadores mendicantes, entre eles o próprio Domingos de
Gusmão, aquele representante do poder papal se empenhou em reformar os estatutos
comunais de forma que eles absorvessem as leis imperiais de 1220, o que foi efetivamente
alcançado nas cidades de Bergamo, Mantova e Piacenza.219 Tal interferência do papado nas
legislações comunais ajuda a reforçar a tese da participação direta das autoridades romanas
na produção daquela constituição.
Por outro lado também pode ser vista como parte de uma estratégia de atuação
conciliatória em relação aos conflitos que se desenvolveram, desde o século XII, opondo as
autoridades imperial, monárquica e pontifícia aos avanços conquistados pelas comunas em
território italiano. Algo que pode ser observado na própria atuação eclesiástica de Hugolino
de Ostia, que tinha alguma experiência na intermediação daqueles conflitos por conta de
suas missões como legado papal (ocorridas em 1217, 1218, 1219 e 1221), assim como nas
relações políticas e diplomáticas mantidas com o império. Uma vez eleito papa em 1227,
assumindo o nome de Gregório IX, ele enviou reiteradas cartas aos dirigentes comunais
com o intuito de alertá-los para os problemas relacionados à contestação das liberdades
eclesiásticas e à difusão de grupos heréticos nas cidades da Lombardia.220

gli eretici. La coercizione all’ortodossia prima dell’Inquisizione. Bolonha: Il Mulino, 1996. p. 106 e 107;
VAUCHEZ, Chiesa, potere... op. cit., p. 602.
218
VAUCHEZ, Chiesa, potere... op. cit., p. 595-596.
219
VAUCHEZ, André. Une campagne de pacification en Lombardie autour de 1233. L'action politique des
Ordres Mendiants d'après la réforme des statuts communaux et les accords de paix. Mélanges d'archéologie
et d'histoire, Roma, t. 78, n. 2, p. 503-549, 1966. p. 523.
220
BENEDETTI, op. cit., p. 302-303.
97

No mesmo período em que o papado e o império se aproximavam para impor às


cidades italianas um conjunto de leis que reafirmavam aquelas autoridades em detrimento
dos poderes locais, as comunas também intensificaram suas atividades legislativas com o
intuito de resguardar e, se possível, ampliar suas prerrogativas de poder. Em diferentes
cidades da Itália setentrional os governos locais passaram a redigir e organizar seus direitos
e tradições na forma de documentos públicos, tais como os libri iurium e os estatutos.
Estes últimos correspondiam a um conjunto de normas que tinham força de lei para os
cidadãos e que remontavam a momentos distintos da atividade legislativa comunal.221 Já os
libri iurium, que eram redigidos por notários a serviço da administração citadina, se
configuravam em coletâneas de documentos (cartas, atas, diplomas, etc.) que serviam para
comprovar os direitos e os privilégios da comuna, sendo de fundamental importância para
legitimar a política expansionista dos governos comunais.222
Toda esta atividade legislativa e de organização dos documentos citadinos foi
verificada justamente no mesmo período de implantação de uma nova magistratura local,
aquela exercida pelo podestà, que alterou substancialmente a forma e a atuação dos
governos comunais na Itália centro-setentrional. Em determinadas cidades a invenção desta
nova magistratura marcava a ascensão política de grupos sociais até então marginalizados
no governo comunal, e que uma vez fortalecidos e alçados aos conselhos administrativos,
trataram de legislar e documentar esta conquista de poder.223 Em outras localidades, em um
sentido oposto, apontaria a atuação política urbana de senhores feudais interessados em
fortalecer suas posições de poder nas cidades. Estas, por sua vez, optavam por eleger como
podestà alguém que fosse, ao mesmo tempo, especialista em leis e experiente na arte do
combate, justamente para fazer frente aos desafios lançados pelas atividades imperiais e
pontifícias.224
A atividade legislativa da Igreja romana era historicamente intensa e vinha
crescendo desde o século XII, com a ascensão ao sólio pontifício de pessoas que tinham
formação jurídica anterior, ou que uma vez eleitas se cercavam de assessores especialistas
em leis, tal como observado nas trajetórias e nos pontificados de Inocêncio III, Honório III
221
GILLI, Villes et sociétés... op. cit., p. 54 e 55.
222
FRANCESCHI; TADDEI, op. cit., p. 134.
223
GILLI, Villes et sociétés... op. cit., p. 55.
224
FASOLI, Gina. Città e feudalità. In: COLLOQUE DE ROME “STRUCTURES FÉODALES ET
FÉODALISME DANS L’OCCIDENT MÉDITERRANÉEN (Xe-XIIIe SIÈCLES)”, 1978, Rome. Actes...
Rome: École Française de Rome, 1980. p. 365-385, p. 379.
98

e Gregório IX. Dentre os resultados alcançados por esta valorização do saber jurídico e da
prática legislativa na hierarquia eclesiástica romana, destacam-se a produção e a
sistematização das decretais e das constituições papais.
Estas últimas, que também eram chamadas de decretum, destinavam-se a promulgar
uma decisão pontifícia em absoluto, sem constituírem uma resposta específica a questões
formuladas e enviadas por outras autoridades a Roma. Geralmente, o formato utilizado
neste documento era aquele de uma carta encíclica, direcionada às principais autoridades
eclesiásticas do ocidente latino, como também às universidades.225 Desta forma, a
promulgação de um decretum conferia amplitude ao poder papal ao divulgar e tornar
obrigatória a obediência a uma decisão absoluta de um pontífice romano.
Já as decretais eram cartas emitidas pelos pontífices romanos como respostas
oficiais a demandas e a questões específicas (jurídicas ou não), que eram formuladas por
outras autoridades (eclesiásticas e também laicas) e enviadas a Roma. Desde o século XII,
os canonistas se dedicaram a organizar esses documentos na forma de uma coletânea,
reunindo as epístolas emanadas de um ou mais pontífices e conferindo ao material um
significado sobre o plano legislativo. Este trabalho de organização e de transmissão de
documentos realizado pelos canonistas contribuiu para criar uma nova base legislativa para
a Igreja romana, que se equiparava e até sobrepujava o antigo direito oriundo dos concílios,
servindo assim para fundamentar o direito canônico.226
Este direito eclesiástico-romano, por sua vez, era um concorrente na conjuntura
italiana de outras formas de direito, que não atendiam especificamente aos propósitos da
Igreja, tais como os direitos civil e criminal praticados nas cidades, ou o direito feudal
aplicado nos condados e nas áreas rurais. Não foi por acaso que os papas acima referidos
se dedicaram pessoalmente a organizar suas decretais na forma de coletâneas, ou ao menos
sancionaram as obras de juristas reconhecidos, o que constituía efetivamente uma atividade
legislativa que ajudava a projetar o poder dos pontífices romanos, ao mesmo tempo em que
criava a devida legitimidade jurídica para o exercício daquela autoridade.
Dentre as obras realizadas por especialistas de renome, o Liber Extra, organizado
por Raimundo de Peñaforte e publicado pelo papa Gregório IX em setembro de 1234,

225
BAGLIANI, Agostino Paravicini. L’apogeo del papato (1198-1274). In: . Storia del cristianesimo
(volume 5): Apogeo del papato ed espansione della cristianità (1054-1274). Roma: Borla/Città Nuova, 1997,
p. 553-590. p. 585 e 586.
226
Ibid., p. 581.
99

acabou se destacando como a principal base do direito canônico naquela conjuntura. Entre
outras coisas, porque reunia em uma única coleção legislativa decretais e constituições
pontifícias, abolindo as anteriores, que ficaram de fora daquela obra, e deixando de lado os
relatos de fatos para se concentrar apenas nas questões juridicamente essenciais.227
Também na década de 1230, Frederico II deu continuidade a suas ações legislativas
com o intuito de fundamentar e ampliar seus poderes em território italiano, por meio de
uma estratégia jurídica que reafirmava as prerrogativas imperiais no campo da justiça, em
detrimento do papado e dos poderes locais. Algo que se concretizou, em 1231, com o
lançamento de um novo código legislativo para o Reino da Sicilia, diante de súditos
reunidos na cidade de Melfi.
As chamadas constituições de Melfi, também conhecidas como Liber Augustalis,
continham mais de duzentas disposições legislativas que vinculavam a noção de ordem
social às ações legislativas e judiciárias realizadas pelo monarca (da Sicilia), apontado
como o único ser capaz de garantir a paz e o ordenamento, por ser ele a própria encarnação
da lei (lex animata). Daí a necessidade de submeter direitos e obrigações ao arbítrio do
soberano, que seria o único legitimamente autorizado a elaborar novas leis e aplicá-las aos
territórios e às populações sob a sua autoridade régia.228
O Liber Augustalis apresentava uma concepção de poder que apontava a monarquia
como a única forma de governo capaz de enfrentar o caos dominante, pois a autoridade do
soberano descendia de Deus, sendo uma garantia de justiça e de paz. Desta forma, atribuía
ao monarca um papel central na administração da iustitia, sem fazer qualquer referência
aos pontífices romanos como possíveis parceiros nesta tarefa, transformando assim a
justiça em um monopólio régio.229
Com a elaboração e a publicação das constituições de Melfi, Frederico II criou uma
base jurídica fundamental para a ampliação de seus poderes, inclusive avançando suas
prerrogativas em campos tradicionalmente religiosos e que seriam da alçada do poder
espiritual (exercido pelos papas e demais autoridades eclesiásticas). Como, por exemplo,
nas ações que visavam investigar e punir o crime de heresia (equiparado a um crime de

227
BAGLIANI, L’apogeo del papato... op. cit., p. 585 e 586.
228
ABULAFIA, op. cit., p. 169 e 179.
229
HOUBEN, op. cit., p. 41; ABULAFIA, op. cit., p. 173.
100

lesa majestade), que passaram a ser exclusividade de funcionários (laicos e eclesiásticos)


diretamente submetidos à autoridade régia.230
As comunas italianas também se dedicaram, na década de 1230, a consolidar suas
formas de governo e as liberdades conquistadas anteriormente, o que não eram objetivos
simples de se alcançar diante do projeto de restauração imperial (comandado por Frederico
II) e dos papas que trabalharam para estender sua plenitudo potestatis sobre as diferentes
regiões da Itália. A elaboração dos estatutos comunais e a sistematização dos libri iurium
formaram uma primeira base para que as cidades pudessem defender sua autonomia, bem
como expandir suas jurisdições sobre territórios eclesiásticos e condais.
Por isso, justamente, se deu amplo espaço nos estatutos para as questões referentes
à designação dos magistrados e dos oficiais que iriam assumir a tarefa de governo nas
cidades, exercendo as funções legislativas, executivas e judiciárias no plano local. Para
prevenir interferências externas (imperador, papa, monarca) na eleição das magistraturas,
bem como neutralizar as intrigas e as guerras de facção locais (envolvendo grupos e
famílias poderosas), algumas comunas desenvolveram um sistema de superposição dos
graus eleitorais: os eleitores aptos escolhiam representantes para formar conselhos; no
âmbito dos conselhos realizavam-se escrutínios secretos para designar os magistrados, de
forma que o primeiro eleitor não votava diretamente naquele que seria eleito. Todo o
sistema representava a desconfiança dos cidadãos com possíveis arranjos, interferências e
nomeações para as magistraturas urbanas.231 Tal preocupação não se dava sem motivos.



O caminho para aqueles distintos projetos políticos atuantes na Itália do século XIII
passava necessariamente pela legitimação da autoridade e pelo exercício constante do
poder. Por isso o Direito adquiriu importância central nas disputas entre o império, o
papado e as cidades, pois era a forma mais eficaz e menos traumática para alcançar tais
propósitos. Não foi por acaso que o saber jurídico e os especialistas em leis adquiriram
uma valorização crescente desde o século XII na península italiana. O campo jurídico era
um espaço adequado para o enfrentamento de forças e para a resolução de conflitos que

230
MACCONI, Massimiliano. Federico II. Sacralità e potere. 2 ed. Genova: ECIG, 1996. p. 45-46.
231
GILLI, As fontes... op. cit., p. 99 et seq.
101

não eram sempre resolvidos por meio da luta armada, porque nos confrontos armados as
vitórias eram geralmente desgastantes e de duração efêmera.
A atividade legislativa e o exercício da justiça estiveram no centro das disputas
travadas entre o imperador Frederico II e as comunas italianas, refletindo o confronto entre
dois projetos políticos bem diversos para a Itália: um que pretendia restaurar a autoridade
imperial e organizar aquela península por meio do modelo monárquico; outro que almejava
consolidar o autogoverno das cidades e ampliar as liberdades locais frente às instituições
que se pretendiam universais. Intermediando tais disputas, ora favorecendo um lado, ora o
outro, estava o papado, que se colocava estrategicamente em uma posição conciliatória e
superior, não sem aproveitar as oportunidades que surgiam com aqueles confrontos para
projetar suas prerrogativas de autoridade em territórios diversos, além de celebrar acordos
de paz que fossem favoráveis aos seus projetos políticos.
O exercício de um poder mediador pelo pontífice romano, procurando atuar para
conciliar as posições políticas do império e das comunas italianas, foi algo recorrente nos
anos anteriores à canonização de Domingos. No ano de 1233, por exemplo, Frederico II e
Gregório IX trocaram epístolas sobre este conflito. Em uma carta enviada pelo imperador
em 12 de julho daquele ano, ele anunciou ter recebido uma epístola contendo a decisão
arbitral do pontífice romano, além de aproveitar para transmitir imunidades e documentos
patenteados ao papa por meio de um representante.232
Pouco tempo depois o papa respondeu ao imperador com outra epístola, mais
precisamente em 12 de agosto de 1233. Na carta Gregório IX afirmou que Frederico II
tinha se queixado de sua decisão arbitral para aquele conflito, mas o pontífice romano
rejeitou sua argumentação, esclarecendo que a sua arbitragem tinha o único propósito de
preservar os direitos das partes em confronto. Além de aproveitar a oportunidade para
lembrar o imperador das promessas de compensação que ele tinha feito aos representantes
das comunas,233 e que provavelmente não tinham sido cumpridas.

232
AUVRAY, Reg. nº 1495, p. 826: “Fridericus, Romanorum imperator, Gregorio IX papae nuntiat se ejus
epistolam, in qua arbitrium de causa inter ipsum et Lombardos prolatum continebatur, recepisse, sed se
[Hermanni], magistri Theutonicorum, reditum praestolaturum esse, antequam litteras patentes mittat, quas
Sedes Apostolica usque ad festum beati Michaelis (= 29 sept.), juxta tenorem sibi transmissum, dirigi
postulaverat”.
233
AUVRAY, Reg. nº 1497, p. 827: “Friderici, Romanorum imperatoris, qui per litteras cardinalibus scriptas
nibil sibi de injuriis a Lombardis illatis satisfactionis praestitum fuisse conquestus erat, querelam rejicit,
eique exponit quomodo in hac provisione secundum justitiam et rationem egerit, addens negotium in statum
pristinum posse reduci, jure utriusque partis integro remanente”.
102

O confronto entre o império e as comunas italianas se apresentava ao papado como


uma oportunidade para exercitar um poder de conciliação, alçando o pontífice romano a
uma posição superior às partes em conflito e permitindo a ele produzir sentenças arbitrais
de acordo com as posições e os interesses da Igreja romana. Enquanto as autoridades
imperial e comunal se desgastavam em controvérsias infindáveis naqueles anos de 1230, o
papa Gregório IX se valia da posição de juiz supremo e das estratégias diplomáticas para
ampliar suas prerrogativas de poder, e para fazer valer os projetos papais nas cidades
italianas.
Neste mesmo sentido, mas com um modus operandi diverso, o papado lançou mão
dos frades mendicantes naquele período para interferir diretamente nas legislações
citadinas, adequando tais normativas às diretrizes romanas. Em uma carta enviada ao
dominicano João de Vicenza, em 05 de agosto de 1233, o pontífice Gregório IX passou
orientações sobre como ele deveria proceder quanto aos estatutos comunais e com relação
aos grupos que efetuavam alterações nestes documentos jurídicos. Segundo o referido
papa, o frade dominicano deveria excomungar todas as pessoas que introduziram normas
contrárias à liberdade eclesiástica naquelas legislações, além de garantir que tais
disposições fossem abolidas. Por outro lado, ele orientou aquele pregador a conceder o
benefício da absolvição para aqueles que recorreram à violência, mas que introduziram nos
estatutos sentenças promulgadas,234 provavelmente por representantes eclesiásticos.
Desta forma, o papado atuou por meio de seus representantes para interferir
diretamente nas legislações citadinas, reformando os estatutos comunais e criando uma
base jurídica que fosse mais conformada às normativas romanas. Assim sendo, por meio de
uma estratégia legislativa, a Igreja romana ampliava suas prerrogativas e projetava suas
diretrizes sobre diferentes cidades italianas, usando o Direito como um instrumento do
poder pontifício.
Já nas disputas envolvendo papado e império não era a forma de governo que
estava em questão, sendo a monarquia um consenso entre aquelas entidades. A questão era
de supremacia de uma autoridade sobre a outra, por isso a disputa por prerrogativas foi

234
AUVRAY, Reg. nº 1487, p. 823: “Johanni Vicentino, ordinis Praedicatorum, concedit ut illis qui pro
statutis editis vel consuetudinibus introductis contra ecclesiasticam libertatem, excommunicationem
incurrerint, recepta ab eis cautione quod statuta et consuetudines hujusmodi aboleant, et eis etiam qui pro
injectione manuum violenta in canonem inciderint sententiae promulgatae, absolutionis benefîcium
impertiatur”.
103

estendida ao campo do direito e da justiça. Tratava-se de garantir espaço, por meio das leis
e da sua aplicação, para o exercício de uma autoridade superior a todas as demais. Vale
lembrar que as decretais e as constituições do papa Gregório IX (inseridas no Liber Extra)
foram publicadas apenas três anos após o Liber Augustalis de Frederico II. Apontando uma
verdadeira concorrência legislativa entre as autoridades papal e imperial, que por meio do
expediente das leis pretendiam sobrepor-se uma a outra.
Até mesmo a forma de promulgação daquela coletânea pontifícia apontava para
esta concorrência com a autoridade imperial, pois Gregório IX enviou o seu volume de
decretais para uma universidade, de modo que fosse estudada e servisse de base jurídica
para a formação intelectual na área do Direito. O mesmo expediente era utilizado
recorrentemente no passado pelos imperadores, para que as novas leis fossem avaliadas por
especialistas em direito e ganhassem legitimidade, além de ampliar a sua difusão por meio
da atividade de mestres e estudantes universitários.
O pontífice romano enviou o Liber Extra, em 05 de setembro de 1234, para os
doutores e estudantes da universidade de Paris, tendo destacado a autoria intelectual do
frade Raimundo de Penhaforte,235 renomado especialista em direito canônico. Além de ter
exaltado as melhorias feitas pelo seu penitenciário papal, Gregório IX deixou bem claro em
sua carta que aquele volume passava a ser a única base jurídica legítima para o direito
canônico, devendo ser utilizado nas escolas e nos tribunais,236 em substituição às coletâneas
anteriores.
Assim, por meio da elaboração e da promulgação do Liber Extra, por um lado a
Igreja romana tentava homogeneizar a base jurídica da hierarquia eclesiástica, utilizando
aquela coletânea de decretais e constituições para fundamentar o exercício do poder pelo
pontífice e pela cúria romana sobre as demais dioceses e seus clérigos. E por outro lado,

235
AUVRAY, Reg. nº 2083, p. 1125: “Doctoribus et scholaribus Parisiensibus nuntiat se edidisse volumen
Decretalium, a fratre Raymundo [de Pennaforte] redactum, et praecipit ut hac tantum compilatione universi
utantur in judiciis et in scholis”.
236
AUVRAY, Reg. nº 2083, p. 1125: “[...] Sane diversas constitutiones et decretales epistolas predecessorum
nostrorum in diversa dispersas volumina, quarum alique propter nimiam similitudinem, et quedam propter
contrarietatem, nonnulle etiam propter sui prolixitatem, confusionem inducere videbantur, alique vero
vagabantur extra volumina supradicta, que tanquam incerte frequenter in judiciis vacillabant, ad communem
et maxime studentium utilitatem per dilectum filium fratrem Raymundum, capellanum et penitentiarium
nostrum, in unum volumen, resecatis superfluis, providimus redigendas, adicientes constitutiones nostras et
decretales epistolas, per quas nonnulla que in prioribus erant dubia, declarantur. Volentes igitur ut hac tantum
compilatione universi utantur in judiciis et in scolis, districtius prohibemus ne quis presumat aliam facere
absque auctoritate Sedis Apostolice speciali”.
104

procurava ampliar sua jurisdição sobre a sociedade, estabelecendo que aquela obra deveria
ser utilizada nas escolas e nos tribunais, em substituição às coletâneas anteriores, de modo
que o direito canônico fosse também considerado na formação universitária e na justiça
praticada nos territórios italianos.
O Direito e suas formas jurídicas também serviram de base para o reconhecimento
oficial da santidade de Domingos de Gusmão pelo papado, como destacado no capítulo
anterior. No final da bula Fons sapientie, justamente na parte em que se decreta a inscrição
do antigo líder dos dominicanos no catálogo de santos da Igreja romana, o discurso ali
produzido destaca a importância dos testemunhos idôneos para a comprovação dos
milagres, além do conselho dos prelados da cúria romana para a decisão final do papa
Gregório IX.237
Portanto, naquele documento existe uma referência implícita ao processo de
canonização e aos testemunhos que foram colhidos por meio de inquérito, como sendo uma
base de comprovação para os milagres que genericamente foram identificados na bula
Fons sapientie. O que destaca a importância daquele procedimento inquisitorial como um
fundamento para a decisão final do pontífice romano. De modo que a referência em
questão não só representa as formas e os procedimentos jurídicos adotados pela Igreja
romana no reconhecimento oficial da santidade, naquele contexto histórico, como também
valoriza a disciplina eclesiástica que o papado se esforçava para difundir desde o início do
século XIII.238
Já a menção feita aos assistentes do sólio pontifício, também como uma base de
apoio para aquela decisão de inscrever Domingos no catálogo de santos, aponta para uma
organização institucional que interferiu naquela decisão de canonizar o primeiro mestre dos
Frades Pregadores em 1234. Logo, segundo o discurso manifestado na Fons sapientie, o
papa Gregório IX não era o único representante da Igreja romana a conferir legitimidade
para aquele ato. Tal como argumentado anteriormente, o processo de canonização passava

237
Fons sapientie, op. cit., p. 193: “Cum igitur ex multa familiaritate, quam nobiscum in minori constitutis
officio habuit, argumenta sanctitatis ipsius ex insignis vite testimonio constitissent essetque postmodum de
miraculorum veritate dictorum facta nobis per testes idoneos plena fides, [...] ipsum de fratrum nostrorum
consilio et assensu ac omnium tunc apud sedem apostolicam consistentium prelatorum cathalogo sanctorum
ascribi decrevimus”.
238
Para uma melhor compreensão dos argumentos que aparecem neste e no parágrafo seguinte, vale conferir
o debate feito no capítulo I desta tese. Cf., infra, p. 35 et seq.
105

por uma avaliação da cúria romana, que emitia um parecer (favorável ou contrário) ao
pontífice antes de sua decisão final.

Religião e espiritualidade: modelos cristãos, práticas religiosas e controle eclesiástico

Assim como outras regiões da Europa no mesmo período, a Península Itálica do


século XIII foi um espaço fértil para a afirmação e a disseminação de ideais e práticas
religiosas, que não necessariamente se originavam ou se restringiam aos círculos
eclesiástico e monástico. Os leigos (religiosos ou não) e suas instituições também foram
influenciados e/ou tiveram suas vidas afetadas pela perspectiva religiosa, que tratava de ver
e entender os acontecimentos e o mundo a partir de suas ligações com o plano divino.
Nesse sentido, os conceitos de escatologia e de milenarismo, bem como os movimentos e
as expressões que eles ajudaram a desencadear, podem ser um campo interessante para se
explorar, inclusive porque foram objetos de apropriações pelo papado, pelo império e pelos
espaços urbanos.
A palavra escatologia (derivada do termo grego eschata, que significa as coisas
derradeiras), no período medieval, representava conceitualmente as coisas, as ideias e os
eventos relacionados ao fim do mundo, tendo sido associada pela tradição cristã à noção de
Juízo Final e ao Novo Testamento. Por tudo o que podia ser relacionado a este conceito e
pela diversidade de apropriações possíveis, as temáticas escatológicas foram amplamente
exploradas nos debates religiosos e nos embates de posicionamentos políticos tão presentes
no contexto italiano.239
Já o milenarismo seria uma derivação do conceito de escatologia, pois remete ao
estabelecimento de um reino de mil anos na Terra sob o comando de Cristo, algo que só
ocorreria na última fase da história humana e que antecederia o evento do Juízo Final.
Neste sentido, as correntes de pensamento milenaristas geralmente tinham uma visão mais
otimista sobre a vida humana na Terra, procurando antecipar a chegada daquele reino
celeste que duraria mil anos e que era a promessa de um futuro de paz e de justiça, de

239
BASCHET, Jérôme. Os limites da história e os perigos da escatologia. In: . A civilização Feudal: do
ano 1000 à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006, p. 326-336. p. 329; TÖPFER, Bernhard.
Escatologia e milenarismo. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do
Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. V. 1, p. 353-366, p.
353.
106

estabelecimento de uma ordem paradisíaca. A escatologia, ao contrário, esperava o fim dos


tempos e o Juízo Final, projetando este futuro paradisíaco no além, tendo assim uma visão
mais pessimista sobre a vida terrena, que seria marcada por perseguições e sofrimento.240
Apesar das diferenças, nos dois conceitos reserva-se um espaço central para a
espera de um futuro melhor, que seria anunciado e antecedido por uma série de eventos
catastróficos e dramáticos, por sua vez, signos que indicariam a chegada do Anticristo. Este
seria o personagem central para os pensamentos escatológico e milenarista, pois
antecederia necessariamente a instauração do reino da perfeição, estabelecido no além ou
aqui mesmo na Terra. Assim, as catástrofes naturais, as epidemias, as desordens, os
conflitos e as guerras, tanto no sentido escatológico quanto no milenarista, tendiam a ser
interpretados pelos cristãos como possíveis sinais a indicar aquele futuro aguardado por
eles.
Considerando o contexto político italiano da primeira metade do século XIII, as
teorias escatológicas e milenaristas deveriam animar crenças e comportamentos diversos
com alguma frequência, basta para isso pensar nas intermináveis querelas entre o papado, o
império e as cidades. Os conflitos de autoridade entre as três instituições e, em certos
períodos, os confrontos armados, principalmente entre as tropas imperiais e as citadinas,
criavam uma atmosfera de insegurança geral.
Desde o século XII, as controvérsias envolvendo o papado e o império inspiraram
alguns autores eclesiásticos a abordar a temática do final dos tempos, vendo naquele
embate entre as duas maiores autoridades universais do Ocidente latino um sinal
inequívoco da iminente chegada do Anticristo, tal como foi registrado na crônica do
alemão Oto de Freising.241 No século XIII italiano esta interpretação chegou a um patamar
diferente, pois foram as próprias autoridades imperial e pontifícia que assumiram o
discurso escatológico, fosse para legitimar as suas prerrogativas e valorizar as suas
próprias figuras junto aos cristãos, fosse para desqualificar o seu oponente.
Mais precisamente em 1229, o imperador Frederico II, em decorrência do comando
de uma cruzada no Oriente e de uma aliança de matrimônio que o fez desposar uma
herdeira do reino de Jerusalém, acabou se tornando também monarca daquele reino
oriental. O evento foi bastante explorado, difundido e amplificado pela propaganda

240
BASCHET, op. cit., p. 329 e 336; TÖPFER, op. cit., p. 353.
241
Ibid., p. 332; Ibid., p. 354-355.
107

imperial, que tratou de conferir a ele um sentido escatológico, sublinhando o feito daquele
monarca que era a própria encarnação de uma realeza sacra, um rex sacerdos, continuador
e herdeiro de Davi, um soberano escatológico destinado a dominar o mundo de um
extremo ao outro e a instaurar uma nova idade do ouro.242
Nos contextos italiano e europeu do século XIII corriam profecias e visões sobre
um imperador que pacificaria os conflitos e que unificaria Ocidente e Oriente sob a sua
autoridade. Tudo indica que Frederico II tinha conhecimento desses relatos e do impacto
que eles tinham na espiritualidade popular, por isso tratou de enquadrar a conquista do
Reino de Jerusalém no campo das expectativas escatológicas. Em um manifesto redigido
em 18 de março de 1229, o imperador se apresentava ao público como um instrumento da
divina providência, que tinha conseguido de forma pacífica a retomada daquela cidade
santa, algo que era almejado há décadas pelo Ocidente latino.243 Tal apropriação da
escatologia cristã por parte do império não passou despercebida pela Igreja romana, pois o
ato em si atribuía a Frederico II um papel destacado como guia espiritual da cristandade, o
que só poderia ser evidentemente feito em detrimento das prerrogativas pontifícias.
As reações do papado foram imediatas e diversas. Quando o imperador retornou a
Itália, encontrou parte de seus territórios ocupados por tropas aliadas do pontífice romano.
Além disso, Gregório IX também recorreu ao campo das crenças religiosas com o intuito
de desqualificar o seu opositor na liderança da cristandade, acusando de blasfêmia o
movimento cruzadista de Frederico II e o polêmico ato de sua autocoroação em Jerusalém
– algo que, dentre outros efeitos, usurpava uma prerrogativa central do poder espiritual
pontifício: reconhecer publicamente um monarca por meio de uma cerimônia de
coroação.244
As teorias de base milenarista também fundamentaram as ações propagandistas
imperiais e papais, principalmente as ideias cultivadas nos escritos do abade cisterciense
Joaquim de Fiore e que foram difundidas por seus discípulos e admiradores, por sua vez
inseridos em diferentes círculos intelectuais. As reflexões teológicas daquele religioso da
Calábria tomavam como base a tradicional visão cristã de uma história marcada pela

242
MACCONI, op. cit., p. 77 e 78.
243
DELLE DONNE, Fulvio. El Emperador y el Anticristo: la propaganda política en el siglo XIII. In: Res
Publica Litterarum. Documentos de trabajo del grupo de investigación Nomos. Madrid: Instituto Lucio
Anneo Séneca, 2005. p. 3-16. p. 10.
244
Ibid., p. 10.
108

tensão permanente do confronto entre as forças do Bem e do Mal. Mas ao contrário da


maioria dos seus predecessores, ele imprimia uma dinâmica evolutiva ao processo
histórico, em que as perseguições, as desordens e as desventuras do povo cristão seriam
apenas etapas sucessivas de uma caminhada em direção a um futuro promissor,245 que se
concretizaria ainda na Terra com o reino milenar e a redenção da humanidade.246
A perspectiva joaquimita da história era amplamente fundamentada em uma leitura
da Bíblia, pois imprimia à existência humana na Terra uma série de signos religiosos
(inclusive numéricos) que remetiam a passagens bíblicas conhecidas. Por exemplo, ele
dividia a história em três grandes status, que corresponderiam às pessoas da Trindade: o
primeiro tempo seria aquele expresso no Antigo Testamento e estava sob o comando do
Pai, durando até a vinda de Cristo a Terra; o segundo corresponderia ao período que vai do
nascimento de Jesus à época contemporânea (século XII) àquele teólogo calabrês, estando
sob o domínio do Filho; o terceiro, segundo os próprios cálculos de Joaquim de Fiore, se
iniciaria por volta do século XIII e marcaria o domínio do Espírito Santo. No âmbito desta
perspectiva histórica evolutiva, o abade cisterciense ainda inseria o princípio bíblico da
concórdia,247 por meio do qual o reinado do Espírito Santo na Terra se estabeleceria após a
ocorrência de sete perseguições à Igreja inaugurada com Cristo, em um paralelismo às sete
perseguições aos hebreus que foram narradas no Antigo Testamento.248
Como parte integrante deste esquema teológico-histórico a figura do Anticristo
desempenhava um papel de destaque, pois ajudava a representar as desventuras humanas e
as perseguições à Igreja cristã, sinalizando as passagens de uma época a outra. Mas no caso
da teoria joaquimita não se travava apenas de um Anticristo, mas de vários que se
manifestariam ao longo do tempo, tal como obstáculos a serem transpostos pelos cristãos
em sua caminhada em direção ao reino da ordem e da paz. Embora se reservasse um papel
principal ao último Anticristo, aquele que justamente antecederia a instauração do reino
milenar e que não foi identificado claramente nos escritos daquele abade calabrês, podendo

245
MIRANDA, Valtair Afonso. Uma nova igreja numa nova era: uma aproximação ao Praephatio Super
Apocalypsim de Joaquim de Fiore. Reflexus, v. VIII, p. 255-269, 2014. p. 266 e 267.
246
TRONCARELLI, Fabio. Gioacchino da Fiore e l’età dello Spirito. In: PASZTOR, Edith (Org.). Attese
escatologiche dei secoli XII-XIV. Dall’Età dello Spirito al “Pastor Angelicus”. Atti del Convegno
(L’Aquila, 11-12 settembre 2003). L’Aquila: Edizioni Libreria Colacchi, 2004. p. 33-41. p. 33 e 34.
247
A noção de concórdia nas reflexões de Joaquim de Fiore remete inicialmente a uma articulação possível
entre o Antigo e o Novo Testamento, sendo posteriormente projetada em uma organização esquemática da
História. Cf.: MIRANDA, Valtair Afonso. op. cit., p. 258.
248
TRONCARELLI, op. cit., p. 36 e 38.
109

ser encarnado por um imperador, por um falso papa, ou mesmo por outra pessoa que
desempenhasse uma liderança (ao mesmo tempo) espiritual e temporal.
Justamente esta abertura da teoria milenarista de Joaquim de Fiore foi amplamente
explorada em escritos desenvolvidos nas chancelarias papal e imperial, atribuindo ao
opositor o papel de Anticristo, enquanto resguardava para si aquele desempenhado pelo
Pastor Angelicus (o de pacificador e líder dos cristãos). A partir de 1239 os ataques se
intensificaram na esteira dos acontecimentos e dos conflitos italianos que opunham as
cidades à autoridade temporal de Frederico II, desta vez com o papado se posicionando ao
lado das comunas e incentivando abertamente a contestação do domínio imperial na Itália.
É o que se observa com a segunda excomunhão que o papa Gregório IX lançou sobre
aquele imperador, bem como nos escritos pontifícios que assimilavam Frederico II à besta
do Apocalipse, que o acusavam de ser o precursor ou o próprio Anticristo, e que teriam
sido produzidos pelo cardeal Raniero Capocci, assessor do papa e muito próximo a círculos
joaquimitas.249
Do lado de Frederico II também tinham escritores à serviço da propaganda imperial
e versados nas reflexões milenaristas de Joaquim de Fiore, que sabiam captar e se apropriar
das insatisfações e das manifestações populares contra uma organização eclesiástica
acusada de mundanismo e de excesso de riqueza. Por isso atribuíam ao imperador, por
meio de uma literatura antipapal, aquele papel de purificador da Igreja católico-romana
(que deveria ser pobre como Cristo) e de pacificador dos cristãos (que alcançariam a
promessa do reino milenar), direcionando ao pontífice Gregório IX as mesmas
representações depreciativas que a chancelaria papal elaborava para o imperador.250
Além da guerra de propagandas entre o papado e o império, a escatologia e o
milenarismo também influenciaram direta e indiretamente uma série de movimentos
religiosos e de ideais de espiritualidade manifestados no contexto italiano do século XIII.
Houve, de fato, aprofundamento, diversificação e difusão de concepções e manifestações
de religiosidade que tinham surgido no século XII, expressando demandas de fé e de
crença que não eram totalmente atendidas pela estrutura e pelas instituições vinculadas à
Igreja romana.

249
DELLE DONNE, Fulvio. Il papa e l'anticristo: poteri universali e attese escatologiche all'epoca di
Innocenzo IV e Federico II. Archivio normanno-svevo (ArNos), v. 4, p. 17-43, 2013/2014. p. 28 et seq;
DELLE DONNE, El Emperador... op. cit., p. 14.
250
DELLE DONNE, Il papa... op. cit., p. 40.
110

O evangelismo foi certamente um dos traços marcantes da espiritualidade do século


XIII italiano e que, desde o século anterior, já se manifestava dentro e fora das instituições
religiosas, com as sucessivas renovações e as reformas eremíticas e monásticas, e também
com os movimentos liderados por pregadores leigos nas cidades. Estes se caracterizavam
por um estilo de vida pobre e pela pregação do cristianismo, fazendo do Evangelho uma
filosofia de vida e da imitatio Christi uma prática a ser replicada em todos os lugares. 251
Foi nesta onda espiritual de movimentos evangélicos e de afirmação dos pregadores como
figuras de destaque nos centros urbanos que surgiram os grupos liderados por Francisco e
Domingos, posteriormente ordenados e organizados na forma institucional de Ordens
Mendicantes.
As diferenças de trajetórias religiosas, formas de liderança e princípios de
organização expressas na atuação daqueles dois pregadores e presentes nas instituições que
eles formaram (respectivamente, a Ordem dos Frades Menores e a Ordem dos Frades
Pregadores), são testemunhos da própria diversificação do evangelismo no século XIII.
Assim como a diversidade de movimentos que não se adequaram aos limites e às regras
estabelecidas pela Igreja romana e que, por isso mesmo, foram classificados como
heréticos, sendo alvo de constante controle e perseguição pelas instituições eclesiástica e
pontifícia.
A própria formalização dos grupos franciscano e dominicano nas primeiras décadas
do século XIII pelo papado e o seu direcionamento para as cidades do sul da França e do
norte da Itália, são indicativos da importância adquirida por eles no combate às heresias
praticado pelos papas desde o pontificado de Inocêncio III (1198-1215). A disseminação de
grupos de pregadores, desde o século XII atuantes em diferentes cidades europeias, que
contestavam a autoridade da Igreja romana e defendiam a aplicação do Evangelho como
único caminho para a salvação cristã, foi justamente um dos motivos para a instalação dos
mendicantes nos centros urbanos e para o amplo apoio que receberam do papado.252 Pois os
grupos formados por franciscanos e dominicanos, mesmo devidamente enquadrados pelo
papado, também eram adeptos da pobreza voluntária e da pregação do Evangelho, sendo

251
VAUCHEZ, André. A Espiritualidade da Idade Média Ocidental (Séc. VIII-XIII). Lisboa: Editorial
Estampa, 1995. p. 141-142.
252
LE GOFF, Jacques. As ordens mendicantes. In: BERLIOZ, Jacques. Monges e Religiosos na Idade
Média. Lisboa: Terramar, 1994. p. 227-241. p. 228.
111

um contraponto eficaz para o evangelismo praticado pelos grupos classificados como


heterodoxos.
Apesar do apoio pontifício, os frades mendicantes não estiveram livres de
polêmicas, acusações e conflitos com o clero secular no âmbito das cidades italianas. Ao
realizarem práticas sacramentais como a pregação e a confissão nos espaços urbanos,
franciscanos e dominicanos interferiram no campo pastoral que era parte integrante das
atribuições das dioceses e das paróquias locais, sem estarem devidamente submetidos aos
bispos, já que a sua obediência era direcionada à autoridade do papa. Por isso tiveram que
enfrentar ao longo do século XIII crescente resistência e reação do clero secular, que
acusava os integrantes daquelas ordens mendicantes de estarem usurpando prerrogativas,
práticas e, consequentemente, as contribuições que antes afluíam para as igrejas locais. 253
Não eram desprovidas de razão as reações do clero secular à atuação dos frades
mendicantes na Península Itálica. Pois a ligação que eles tinham com o papado era bastante
estreita e funcionava como uma proteção para as suas ações nas cidades.
As ordens mendicantes foram, de fato, convocadas a realizarem um programa
político e religioso nas comunas italianas, que se traduzia na defesa das liberdades
eclesiásticas, na pacificação interna das cidades, no combate às heresias e na reordenação
do monacato isento do controle episcopal. Em princípio, os papas argumentavam que a
atuação destes religiosos deveria servir como uma ajuda da Igreja romana às demais
dioceses, já que se tratavam de pessoas devidamente qualificadas e experientes para o
desempenho das tarefas para as quais eram direcionados. Esta era a base do argumento do
papa Gregório IX nas bulas que foram escritas logo após a sua eleição, em 1227, e
direcionadas para as comunas e para os bispos da Lombardia e da Toscana.254 Documentos
que criavam uma base legal para a atuação dos religiosos mendicantes nos espaços
urbanos, sem que eles tivessem que se submeter plenamente à hierarquia episcopal.
Apesar da estreita ligação com o papado e da atuação direta para a realização de
projetos pontifícios no âmbito das cidades, seria simplista ver nos mendicantes apenas a
representação de meros agentes papais. Mesmo antes da oficialização daquelas ordens

253
MIATELLO, André Luis Pereira. O pregador e a sociedade local: a luta pelo poder pastoral no seio das
cidades da Baixa Idade Média ocidental (séc. XIII-XIV). Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 7, n.
2, p. 112-131, julho/dezembro de 2014. p. 120 e 121; LE GOFF, op. cit., p. 228, 230 e 233.
254
ROSSI, Maria Clara. Gregorio IX, i frati e le Chiese locali. In: CONVEGNO INTERNAZIONALE
“GREGORIO IX E GLI ORDINI MENDICANTI”, 38, 2010, Assisi. Atti... Spoleto: Centro italiano di studi
sull'Alto Medioevo, 2011. p. 259-292. p. 264 et seq.
112

religiosas pela Igreja romana, Francisco, Domingos e seus respectivos discípulos já se


aproximavam de bispos, de cardeais, de legados pontifícios e dos papas com o intuito de
buscarem apoio e anuência para o desenvolvimento dos seus próprios projetos.255 De forma
que a atuação política e religiosa dos mendicantes nas cidades italianas, naquele contexto
do século XIII, não se deu por uma simples execução de ordens papais.
Os conventos e os frades mendicantes espalhados por toda a Itália tinham planos a
seguir e pretendiam dar a sua contribuição para a implantação de uma ordem cristã
naqueles territórios, por isso, adotavam posições e apoios políticos diversos no âmbito das
comunas, nem sempre sustentando os interesses pontifícios. Na maior parte das vezes,
procuravam se manter equidistantes do confronto entre império e papado, em algumas
circunstâncias se associavam aos dirigentes comunais, e em outras se colocavam ao lado
das populações em suas reivindicações contra as autoridades locais. 256 O que aponta que as
Ordens Mendicantes não tinham um posicionamento político pré-determinado ou uma
aliança institucional exclusiva com o papado, mas que tomavam decisões e iniciativas de
acordo com as realidades e as circunstâncias em que estavam inseridos, com vistas a
colocar em prática os seus planos e projetos.
A pobreza voluntária e a pregação do Evangelho, traços comuns à atuação dos
religiosos mendicantes na Itália do século XIII, não foram as únicas formas de
manifestação de espiritualidade evangélica que se afirmaram naquele contexto. Grandes
procissões de flagelantes, formação de confrarias urbanas reunindo penitentes e
disciplinati, são também evidências históricas de que o evangelismo tomou caminhos
diversos daquele encarnado pelos frades franciscanos e dominicanos nas cidades italianas.
Mas se as formas de manifestação não eram iguais, não se pode dizer o mesmo da
atmosfera religiosa e dos modelos de perfeição que animavam tais iniciativas de fé, assim
como da finalidade que atribuíam às suas ações.
Antes de tudo, é importante ressaltar a diferença entre flagelantes (disciplinati) e
penitentes. Os primeiros direcionavam suas iniciativas de fé para práticas de autopunição

255
ALBERZONI, Maria Pia. Dalla domus del cardinale d’Ostia alla curia di Gregorio IX. In: CONVEGNO
INTERNAZIONALE “GREGORIO IX E GLI ORDINI MENDICANTI”, 38, 2010, Assisi. Atti... Spoleto:
Centro italiano di studi sull'Alto Medioevo, 2011. p. 73-121. p. 112 et seq.
256
BARONE, Giulia. La propaganda antiimperiale nell’Italia federiciana: l’azione degli Ordini Mendicanti.
In: TOUBERT, Pierre; BAGLIANI, Agostino Paravicini (Orgs.). Federico II e le città italiane. Palermo:
Sellerio, 1994. p. 278-289. p. 279, 280 e 282; BARONE, Federico II... op. cit., p. 617; MIATELLO, op. cit.,
p. 130.
113

(ou de autoflagelação) que eram geralmente chamadas de “disciplina” (daí o nome usado
para identificar seus praticantes) e que poderiam levar ao uso do chicote e de outros
instrumentos (tal como o famoso cilício) no próprio corpo. Estes formaram um grupo
particular entre os penitentes italianos, que em sua maioria eram leigos que se reuniam em
grupo ou se encontravam em público para rezar e fazer penitência, mas que também
adotavam práticas particulares para marcar a sua espiritualidade, como o jejum e a
continência sexual. Tanto flagelantes quanto penitentes foram expressões (particulares e
públicas) de uma vontade penitencial que animou a religiosidade dos leigos nas cidades
italianas e que estariam associadas às tensões difusas existentes naquelas realidades, bem
como ao modelo de sofrimento representado na paixão de Cristo e nos seus relatos pela
tradição cristã.257
Tais práticas penitenciais ao serem realizadas em público acabavam expressando
uma aspiração coletiva pela concórdia, que pode ser traduzida nos clamores entoados por
“paz e misericórdia”, tão comuns nas procissões religiosas registradas em diferentes
cidades da Península Itálica durante o século XIII. Este comportamento religioso não era
propriamente uma novidade para os cristãos, já que a prática coletiva de oração e de
penitência (como últimos recursos perante uma tribulação) está entre as tradições judaicas
presentes no Antigo Testamento.258
A questão é o que levou ao surgimento e a difusão de tais práticas coletivas nas
comunas italianas. Certamente aquela conjuntura de conflitos de autoridade (entre império,
papado e comunas) e de guerras de facções (no interior das cidades, dilacerando laços
sociais e hierarquias tradicionais) contribuiu para a recorrência dessas manifestações
penitenciais, ao passo que tais acontecimentos eram frequentemente vistos como sinais de
que o fim dos tempos se aproximava (tanto na lógica escatológica, quanto na milenarista).
Por outro lado, no campo específico da espiritualidade cristã, tais práticas eram
também atestadas no âmbito da vida monástica (naquele século e nos precedentes) como
parte de um comportamento ascético, que via na mortificação do corpo um caminho para a
perfeição, algo que aproximaria os monges ao plano divino. De forma que os leigos, ao se
apropriarem destas práticas, poderiam estar apenas seguindo o modelo monástico, sem se

257
CASAGRANDE, Giovanna. Penitenti e Disciplinati a Perugia e loro rapporti con gli Ordini Mendicanti.
Mélanges de l'Ecole française de Rome. Moyen-Age, Temps modernes, Roma, t. 89, n. 2, p. 711-721, 1977.
p. 711 et seq.
258
VAUCHEZ, A Espiritualidade... op. cit., p. 164.
114

inserirem naquela estrutura de vida reclusa. Como também poderiam manifestar o desejo
(pessoal ou coletivo) pela imitatio Christi, comum a diversas práticas religiosas atestadas
naquele contexto italiano do século XIII. 259 Nesse sentido, a autoflagelação e as demais
formas de penitência seriam apenas um caminho para reviver o sofrimento de Cristo,
marcando de maneira explícita a identificação religiosa daquelas pessoas.
O envolvimento das ordens mendicantes nas práticas penitenciais dos leigos não se
limitou ao movimento da magna devotio de 1233.260 Daquele período em diante, os frades
franciscanos e dominicanos exerceram um papel de destaque na organização e no controle
das confrarias de penitentes que se formaram nas cidades italianas. Tais instituições leigas
tinham surgido de forma espontânea, influenciadas por outras iniciativas correlatas que
organizavam os cidadãos em associações fraternais (de profissão, de bairros) e que
visavam o apoio mútuo e, em alguns casos, a realização coletiva de práticas de caridade. 261
As confrarias eram assim parte de um fenômeno maior, de uma vontade de ordenação da
realidade que atingia também aos leigos, levando-os a formar associações diversas.
Não demorou muito para que o papado percebesse o potencial dessas instituições
para a organização dos leigos e para o devido direcionamento daquelas demandas e
expressões de espiritualidade, conferindo aos frades franciscanos e dominicanos um poder
para ordenar e controlar as confrarias urbanas. Tudo indica que a Igreja romana aprovou e
apoiou a atuação dos mendicantes naquela onda de fervor registrada em 1233, ampliando
posteriormente a sua ação junto às confrarias de penitentes, de forma que tais instituições
leigas não tivessem uma dinâmica de organização e de atuação que fosse independente da
estrutura eclesiástica. E que as ordens mendicantes, de sua parte, não perderam a
oportunidade de ampliar sua influência e sua ação político-religiosa no âmbito das cidades
italianas, assumindo de bom grado a direção espiritual daquelas instituições originalmente
leigas, que entre outras coisas garantia a elas um permanente afluxo material na forma de
doações.262



259
VAUCHEZ, A Espiritualidade... op. cit., p. 163.
260
Cf., infra, p. 168 et seq.
261
VAUCHEZ, A Espiritualidade... op. cit., p. 160 et seq.
262
CASAGRANDE, op. cit., p. 715 e 719.
115

As teorias escatológicas não tinham surgido no século XIII e nem na Itália, mas
naquele contexto histórico específico encontraram demandas e forças para se afirmarem e
se difundirem como parte da espiritualidade religiosa compartilhada pelas populações
italianas. Desta forma, passaram a ser com mais frequência utilizadas pelas chancelarias
papal e imperial, como parte de uma estratégia de legitimação de autoridade e de
desqualificação do outro, com base em crenças religiosas que vigoravam naquela
conjuntura. Por isso, os confrontos teóricos entre papado e império fizeram amplo recurso
aos temas escatológicos e milenaristas, pois existia uma realidade que dava sentido ao uso
destas imagens.
A bula de canonização de Domingos de Gusmão também apresenta indícios da
importância deste tema para a Igreja romana naquela conjuntura, ao ponto de ter sido
utilizado como uma das bases de argumentação daquele documento, que se dedicava a
fundamentar a santidade do primeiro mestre geral dos Frades Pregadores. O discurso
construído na Fons sapientie reflete a lógica escatológica do combate entre o Bem e o Mal,
bem como a ideia de que as perseguições sofridas pela Igreja e por seus fiéis, ao longo do
tempo, eram espécies de provações que deveriam ser superadas, não sem contar com o
importante auxílio da providência divina. Esta é a perspectiva de pensamento que permitiu
articular a vida de Domingos e a instituição por ele fundada como efeitos da providência
divina, que o teria enviado para lutar e defender a fé cristã perante seus inimigos. Nesse
sentido, os mendicantes são apontados no referido documento papal como a quarta milícia
enviada por Deus para proteger a Igreja, a fé cristã e os seus fiéis dos ataques das forças do
Mal.263
Leigos, religiosos e clérigos não estiveram indiferentes a esta perspectiva religiosa.
Muitos penitentes, sobretudo os flagelantes, viam na mortificação do corpo o caminho
espiritual para a salvação da alma, pensamento que ganhava sempre mais força em
períodos conturbados, de catástrofes naturais ou de conflitos mais intensos entre o papado
e o império. Não se pode ignorar a articulação histórica existente entre esta lógica de

263
Fons sapientie, op. cit., p. 191-192: “[...] occurente hora undecima, cum dies iam declinasset ad vesperum
et propter iniquitatis habundantiam, caritate plurimum frigescente, vergeret iustitie radius ad occasum, quia
vineam, ad quam paterfamilias operarios diversis temporibus denarii conductos conventione premiserat [...].
Et, sicut impresentiarum cernimus post trium signis differentium tirocinia quadrigarum, in quadriga quarta
equos varios et robustos, Predicatorum et Minorum fratrum agmina, cum electis ducibus simul in prelium
directurus, spiritum sancti Dominici suscitavit”.
116

pensamento/comportamento e as teorias escatológicas e milenaristas, que aceleravam o


tempo em direção a um desfecho para a vida humana na Terra.
Também neste aspecto a bula Fons sapientie dialogava com o contexto no qual ela
foi produzida, pois apontou em Domingos de Gusmão práticas e valores religiosos que
refletiam os ideais de espiritualidade valorizados pelos cristãos naquela conjuntura. A
prática de penitência e o ideal de mortificação da carne são aspectos registrados naquele
documento pontifício,264 identificando o fundador dos dominicanos com os movimentos
religiosos e as ondas de fervor que se manifestaram na década de 1230, até mesmo na
cidade de Bolonha.265 Desta forma, o discurso oficial sobre a santidade de Domingos,
produzido naquela bula papal, não deixou de criar elementos de identificação com as
crenças e as práticas cristãs mais popularizadas nas comunas italianas.
A crença cristã no final dos tempos mobilizava comportamentos pessoais e
coletivos naquela conjuntura italiana do século XIII. O movimento da magna devotio e a
sua amplitude nas cidades não foi um fenômeno isolado de 1233, tendo se repetido em
décadas posteriores por meio de outras grandes procissões de penitentes. Assim como a
participação dos religiosos mendicantes para canalizar aquele fervor popular, dando a ele
uma orientação espiritual devidamente adequada à ortodoxia romana, constituiu um padrão
de atuação que se repetiu muitas vezes na Idade Média e não só na Itália. Mas naquele
contexto específico, o envolvimento dos frades franciscanos e dominicanos naquele
movimento permitiu fortalecer as bases de sustentação das ordens mendicantes, além de
ampliar as possibilidades de interferência na política local e na organização social das
comunas onde atuavam.
A atuação dos dominicanos na magna devotio e os seus efeitos na organização das
comunas italianas são fatores também evidenciados nos documentos sobre a canonização
de Domingos, mais precisamente nas atas do inquérito realizado na cidade de Bolonha. O
testemunho prestado pelo prior provincial Estevão é bastante esclarecedor neste ponto, ao
afirmar que as cidades situadas na Lombardia e nas Marcas colocavam seus estatutos nas
mãos dos frades dominicanos, para que eles os reformassem segundo a sua vontade, além

264
Fons sapientie, op. cit., p. 192: “[...] Qui gerens a pueritia cor senile ac in mortificatione carnis eligens
vivere [...], carnem spiritui et sensualitatem subiciens rationi”.
265
Este aspecto será melhor explorado no capítulo IV desta tese. Cf., infra, p. 168 et seq.
117

de os permitirem atuar com liberdade na resolução de conflitos e na celebração dos acordos


de paz.266
Tal relato acaba por testemunhar a estratégia e o modus operandi do papado em sua
ação conjunta com os mendicantes nas cidades italianas, pois partia de um prior provincial
dominicano que atuou como legado papal naquela conjuntura. Nos meses de abril e maio
de 1233, o frade Estevão foi por seguidas vezes convocado pelo pontífice Gregório IX para
atuar na reforma material e espiritual de mosteiros cistercienses em território italiano,
agindo como representante direto do poder pontifício e seguindo orientações expressas
daquele papa.267 Portanto, o seu relato no processo de canonização de Domingos não deve
ser tomado apenas como o de mais um frade da Ordem dos Pregadores a testemunhar
naquele inquérito, pois meses antes ele estava atuando em diferentes missões como legado
papal.268
Mas nem todas as crenças e teorias cristãs foram “canalizadas” ou “controladas”
por meio da atuação dos frades mendicantes naquele contexto italiano do século XIII. As
próprias reflexões do abade Joaquim de Fiore foram contestadas dentro da Igreja por um

266
WALZ, Angelus. Acta Canonizationis S. Dominici. In: Monumenta Ordinis Fratrum Praedicatorum
Historica, tomus XVI. Romae: Institutum Historicum FF. Praedicatorum, 1935, pp. 89-194. p. 158 e 159:
“[...] Et fere omnes civitates Lombardie et Marchie facta sua et statuta ordinanda et mutanda ad voluntatem
fratrum tradunt in manibus eorum, ut radant, addant, minuant et mutent, secundum quod eis visum fuerit
expedire. Et hoc etiam faciunt de guerris extirpandis et pacibus faciendes et componendis inter eos. Et de
usuris et male ablatis reddendis et confessionibus audientis et multis aliis bonis, que longum esset enarrare”.
Deste ponto em diante a referência ao processo de canonização de Domingos na edição de Angelus Walz será
feita apenas como Acta Canonizationis S. Dominici, seguida da identificação da página e da transcrição
correspondente (entre aspas), quando for o caso.
267
AUVRAY, Reg. nº 1224 [12 de abril de 1233], p. 695: “Episcopo Brixiensi et fratri S.[tephano], priori
provinciali Lombardiae, ordinis Praedicatorum, mandat quatenus in monasterium Sancti Alexandri,
Parmensis dioecesis, ad Romanam Ecclesiam nullo medio pertinens, propter malitiam habitantium in eodem
in spiritualibus et temporalibus adeo graviter collapsum, quod nulla spes erat de cetero ut reformari in ordine
suo posset, prout visitatorum litterae papae exhibitae continebant, monialibus ibidem degentibus in aliis locis
sui ordinis collocatis, fratres de Campaniola inducant”; Reg. nº 1280 [29 de abril de 1233], p. 718-719:
“Episcopo Parmensi et archipresbytero de Saxo, — cum episcopo Placentino et fratri Stephano, priori
provinciali fratrum Praedicatorum in Lombardia, ipse papa mandavisset quatenus, ad monasterium Sancti
Stephani de Cornu, Laudensis dioecesis, in spiritualibus et temporalibus collapsum, personaliter accedentes
ac ibidem visitationis officium impendentes, ipsum de monachis Cisterciensis ordinis reformarent [...].”; Reg.
nº 1288 [04 de maio de 1233], p. 722: “Episcopo Parmensi et fratri Stephano, priori provinciali fratrum
Praedicatorum in Lombardia, mandat quatenus abbatissae et monialibus monasterii Sancti Syri de
Fontanellis, Cisterciensis ordinis, Parmensis dioccesis, cum ipsarum pax multipliciter impediretur, et ejusdem
monasterii officinae ruinam, propter priorum Nigri ordinis monialium negligentiam, comminarentur,
licentiam concedant monasterium in locum qui earum religioni congruat, transferendi”.
268
A atuação política e religiosa de frade Estevão no âmbito da Ordem dos Pregadores e como representante
papal é também explorada nos capítulo IV desta tese, primeiro abordando as relações de poder na hierarquia
da instituição dominicana e depois o seu envolvimento nas iniciativas que integraram uma causa de
canonização para Domingos de Gusmão. Cf., infra, p. 184 et seq.
118

período e serviram de base para comportamentos religiosos que contestavam a base


doutrinal romana e/ou a estrutura eclesiástica. De forma que o papado passou a adotar cada
vez mais práticas persecutórias e punitivas em relação aos grupos que não se adequavam à
ortodoxia romana, embora não tenha de todo abandonado a estratégia da palavra e do
exemplo com os pregadores mendicantes.

Religião e repressão: o combate às heresias como estratégia e instrumento de poder

O enfrentamento aos grupos e as doutrinas cristãs apontadas como desviantes do


pensamento religioso tido como correto, por isso, chamadas de heterodoxas, esteve
presente em diferentes períodos do cristianismo. Mas isso não significa que o termo heresia
tivesse assumido ao longo do tempo sempre o mesmo valor histórico, assim como as
práticas que foram classificadas de heréticas e as formas desenvolvidas para a sua
repressão. No contexto italiano tudo indica que a heresia foi cada vez mais associada a uma
perturbação da ordem estabelecida, do status quo, um dissenso religioso cujos efeitos eram
sentidos em todos os campos da sociedade.
Visto que a religião era um elemento essencial e fundante da organização social
naquela conjuntura, ajudando a estabelecer e a legitimar autoridade, o dissenso religioso
colocava em risco o sistema como um todo, tanto no campo eclesiástico, quanto no laico,
suscitando reações nas duas esferas de hierarquia e de relações de poder.269 De forma que a
heresia foi amplamente considerada no espaço da política e das disputas pelo domínio da
Itália no século XIII, sendo alvo de reflexões e de ações tanto de parte da Igreja romana,
quanto da parte imperial.
Por um lado, a dissidência religiosa era uma das formas encontradas por grupos
marginalizados, ou descontentes com a organização existente (social, política, econômica,
religiosa, etc.), para expressar suas diferenças e suas críticas à ordem estabelecida. De
outro lado, tornava-se uma poderosa ferramenta de exclusão, mecanismo integrante dos
conflitos utilizado para enfraquecer ou atacar os grupos opositores a um poder em

269
PAOLINI, Lorenzo. Gli Ordini Mendicanti e l'Inquisizione. Il comportamento degli eretici e il giudizio sui
frati. Mélanges de l'Ecole française de Rome. Moyen-Age, Roma, tome 89, n. 2, p. 695-709, 1977. p. 696
et seq.
119

exercício ou a uma autoridade já reconhecida.270 Nesse sentido, a acusação de heresia e as


iniciativas que lhe eram seguidas, permitiam identificar publicamente um adversário a ser
neutralizado, banido, ou eliminado.
Do ponto de vista da Igreja romana, o herege era aquele sujeito que questionava ou
violava as regras de um sistema que tinha a própria igreja como base, de tal forma que a
perseguição institucional era direcionada àqueles que atentavam contra a libertas ecclesiae
e que descumpriam os mandata ecclesiae, constituindo-se assim em opositores da estrutura
eclesiástica.271 Ainda no final do século XII, o papado começou a tomar iniciativas para
desqualificar publicamente os hereges e criar bases legais para a sua perseguição e
punição, tirando a heresia da esfera de uma escolha interior (pessoal e íntima) para
qualificá-la como um crimen publicum, algo que ofenderia a coletividade e que, por
consequência, lesaria o bem público e o bom ordenamento cristão.272 Esta mudança de
valor permitiu equiparar os hereges aos ladrões, de forma que se pudesse dispensar a eles o
tratamento jurídico adequado aos transgressores da ordem.
As reflexões e as iniciativas pontifícias para o enquadramento e a perseguição aos
hereges acabaram por movimentar as iniciativas imperiais. Pois se o herege com sua ação
deturpava a fé e corria os fundamentos cristãos (do ponto de vista da Igreja romana), por
consequência ele também atentava contra o regimen imperii, que tinha no ordenamento
divino cristão a sua base de sustentação.273 Por isso, Frederico II passou a associar heresia e
rebelião, como sendo duas faces de um mesmo delito, de modo que caberia ao imperador
(em uma concepção sacralizada de Estado) se levantar contra qualquer ofensa praticada à
majestade divina, da qual ele próprio era um representante.274
As ações pontifícias e imperiais desenvolvidas ao longo do século XIII culminaram
no projeto da inquisição. Mas antes da perseguição sistemática e da aplicação de penas
graves, houve um intenso período de atividade legislativa, iniciado no final do século XII,
que criou as bases jurídicas legitimadoras dos processos inquisitoriais. Basta lembrar que o
III concílio de Latrão (1179), por meio do cânone Sicut ait beatus Leo, já indicava aos
“príncipes cristãos” o uso da punição corporal como um “salutar remédio”. Esta linha de

270
MIATELLO, op. cit., p. 125.
271
MERLO, op. cit., p. 105.
272
PAOLINI, Gli Ordini... op. cit., p. 698-699.
273
MERLO, op. cit., p. 107.
274
MACCONI, op. cit., p. 44.
120

pensamento foi reafirmada no encontro entre o papa Lucio III e o imperador Frederico I,
ocorrido na cidade de Verona em 1184, levando à publicação da decretal pontifícia Ad
abolendam, que apresentava uma lista de hereges e lançava a excomunhão sobre todos os
governantes locais que não se empenhassem na repressão às heresias. Outra iniciativa
fundamental veio com a decretal Vergentis in senium (1199) do papa Inocêncio III, o que
permitiu enquadrar definitivamente os hereges nos âmbitos disciplinar e político, uma vez
que equiparava a heresia ao crimen lesae maiestatis, criando uma base legal para a ação do
poder temporal.275
A linha de pensamento persecutória e punitiva no combate às heresias, inaugurada
com as atividades legislativas conciliares e pontifícias no final do século XII, foi
prolongada no século seguinte e serviu de base para as ações imperiais. As leis elaboradas
e publicadas no governo de Frederico II, ao longo das décadas de 1220 e 1230, acabaram
refletindo e se apropriando de elementos que apareciam anteriormente na estrutura jurídica
eclesiástica. A Constitutio in basilica Beati Petri (1220) é um exemplo claro, pois além de
elencar nomes de heresias certamente tirados dos cânones eclesiásticos, também agregou o
tratamento dispensado aos hereges pelo papado, transformando a heresia em crime comum,
portanto passível de punição pelos governantes.276 O que se viu naquele período foi um
avançar da autoridade imperial no terreno do combate às heresias, ora se apropriando da
linha de pensamento e dos elementos retirados dos documentos eclesiásticos, ora
exercitando um aumento da prerrogativa do imperador nas ações antiheréticas.
Principalmente na década de 1230, houve uma verdadeira concorrência entre o
papado e o império, que elaboraram leis paralelas e desenvolveram ações práticas de
combate às heresias. Frederico II, por exemplo, usou a sua autoridade no Reino da Sicilia
para criar uma base jurídica e exercitar seu poder no enfrentamento aos hereges. O que foi
feito com a promulgação do Liber Augustalis em 1231, permitindo ao imperador restringir
as intervenções do papado ao reservar ao soberano o direito de nomear os oficiais para
conduzir a inquisitio em território siciliano, o que causou algum escândalo em Roma. O
laboratório siciliano levou o imperador a tentar ampliar suas bases de poder, estendo a

275
BENEDETTI, op. cit., p. 297-298.
276
PAOLINI, Lorenzo. Papato, inquisizione, frati. In: CONVEGNO INTERNAZIONALE “IL PAPATO
DUECENTESCO E GLI ORDINI MENDICANTI”, 25, 1998, Assisi. Atti... Spoleto: Centro italiano di studi
sull’Alto Medioevo, 1998, p. 179-204. p. 180-181; BENEDETTI, op. cit., p. 313; PAOLINI, Gli Ordini... op.
cit., p. 701.
121

outras regiões da Península Itálica, em 1233 e 1234, a prerrogativa de nomeação e a


iniciativa da inquisição para funcionários imperiais, tentando assim restringir o campo de
atuação dos representantes pontifícios na luta contra os hereges.277
O papado, por seu lado, não demorou a entender a estratégia política daquelas
iniciativas imperiais e agiu deliberadamente para limitar o poder exercido por Frederico II
no campo do combate às heresias. O imperador estava replicando o modelo inquisitorial
pontifício em todos os sentidos, inclusive utilizando a acusação de heresia para golpear
aqueles que se rebelavam contra a sua autoridade (alguns foram condenados ao fogo em
1233), enquanto utilizava as leis para restringir as interferências papais. O papa Gregório
IX reagiu rapidamente aos avanços imperiais, acusando o imperador de fazer uso político
do combate às heresias ao confundir aqueles que atacavam a autoridade régia com aqueles
que atentavam contra o cristianismo.278
Além das censuras realizadas ao imperador Frederico II, o papado também tomou
iniciativas práticas para fundamentar suas bases de atuação e ampliar a sua interferência
nos territórios italianos, utilizando o combate às heresias como instrumento de exercício da
autoridade pontifícia. Logo após aquelas iniciativas imperiais, o papa Gregório IX
publicou o Liber Extra (em 1234), uma coleção de constituições e decretais oriundas de
diferentes papas, que foi transformado na principal base jurídica do direito canônico e que
reunia uma legislação antiherética sob a tutela da Igreja romana. 279 Com esta obra
legislativa o papado, entre outras coisas, tratou de resguardar suas prerrogativas de poder e
de autoridade no enfrentamento aos hereges, deixando aos representantes do poder
temporal um papel de auxiliares da Igreja romana.
Paralelamente a esta disputa de prerrogativas de poder entre papado e império no
combate às heresias surgiram as ordens mendicantes. Desde o momento em que foram
formalmente reconhecidos e inseridos na estrutura religiosa vinculada ao papado, os frades
franciscanos e dominicanos foram convocados a atuar no enfrentamento aos hereges. Em
pouco mais de quinze anos de existência, os religiosos mendicantes foram alçados a
posições chaves em diferentes instituições, justamente por terem se tornados especialistas
na defesa da ortodoxia e por serem rigorosos no respeito à hierarquia pontifícia. A atuação

277
MACCONI, op. cit., p. 45-46; BENEDETTI, op. cit., p. 320.
278
MERLO, op. cit., p. 118 e 119.
279
BENEDETTI, op. cit., 320.
122

dos frades menores e pregadores no combate às heresias foi diversificada, não se


restringindo a uma única função, mas seguiu uma evolução que permitiu o fortalecimento
material e institucional das ordens fundadas por Francisco e Domingos.
Atuando na sombra de uma proteção papal, que com documentos legais garantia a
independência dos frades mendicantes em relação aos episcopados e seus representantes
locais, franciscanos e dominicanos difundiram-se pelas cidades italianas, abalando a
estrutura eclesiástica vigente que enquadrava e controlava as pessoas por meio de suas
ligações com as dioceses e as paróquias. Sob o pretexto de auxiliar o clero local em suas
tarefas pastorais e sacramentais, franciscanos e dominicanos realizavam pregação e
confissão em diferentes cidades, configurando verdadeira concorrência ao clero diocesano
e paroquial.280 Parcela importante desta atuação foi direcionada para a identificação e a
correção de práticas e pensamentos heterodoxos, tal como orientado pela Igreja romana.
As práticas de pregação e de confissão foram certamente importantes na pastoral
antiherética dos frades, que se tornaram experientes e especialistas na confrontação aos
hereges e na defesa doutrinária da ortodoxia. Não foi por acaso que assumiram papel de
destaque como intelectuais na estrutura da Igreja romana e de outras instituições,
assumindo cátedras nas universidades e redigindo livros (tratados, sumas e manuais) que
justificavam a repressão às heresias por meio de elaborações teóricas sobre o cristianismo e
sobre a fé em Deus.281 A proteção (e o apoio) do papado e a experiência pastoral nas
cidades cimentaram as bases para o crescimento e a consolidação das ordens mendicantes
no século XIII, sendo o combate às heresias uma via de mão dupla que ligava os projetos
mendicantes aos projetos pontifícios: ambos se fortaleciam com o avanço das ações
inquisitoriais.
Os mendicantes também desempenharam um papel importante para a disseminação
de dispositivos legais nas cidades italianas, tornando juridicamente legítima a perseguição
e a punição aos hereges. De sua parte, as comunas não estavam muito dispostas a acolher
iniciativas que representassem maior poder para as autoridades eclesiásticas locais, contra
as quais elas se levantaram justamente para garantir liberdades e autonomia ao governo
comunal. A atuação pastoral e sacramental dos mendicantes nas cidades, diferenciada
daquela realizada pelo clero local, permitiu que eles angariassem o apoio das populações

280
MIATELLO, op. cit., p. 129.
281
PAOLINI, Gli Ordini... op. cit., p. 704.
123

para os seus projetos e despertassem o interesse (ou no mínimo o temor) dos dirigentes
comunais. Desta forma, os frades menores e pregadores conseguiram atuar para inserir nos
estatutos comunais disposições mais rigorosas contra os hereges e que obrigavam os
representantes do poder civil a reprimirem os grupos considerados heterodoxos. Tal
estratégia de combate às heresias começou a ser praticada pelos mendicantes ainda em
1221, no ano seguinte a promulgação da constituição imperial de Frederico II e que
transformava a heresia em um delito comum.282
Em um período inicial, de mais de dez anos de atuação, os religiosos mendicantes
parecem ter exercitado uma equidistância perante os conflitos de autoridade envolvendo
papado e império. Na verdade, chegaram a desempenhar missões inquisitoriais que
contavam com o apoio do papa e do imperador ao mesmo tempo, em uma conjunção de
forças para enfrentar as heresias em territórios imperiais. Isso ocorreu, por exemplo, em
1231, quando frades dominicanos de Ratisbona (na Germânia) receberam uma bula do
papa Gregório IX (intitulada Ille humanis generis) que conferia a eles competência
disciplinar (inclusive o poder de excomunhão) para atuar na inquisitio a ser realizada em
território germânico. Poucos meses depois, Frederico II ratificou aquele mandato papal aos
dominicanos, declarando a proteção imperial para os frades destinados para aquela tarefa
inquisitorial.283
Mas, por algum motivo, aquela reunião de forças no combate às heresias, que tinha
produzido missões e ações conjuntas na Itália e na Germânia, começou a se desfazer e a se
tornar uma concorrência aberta pelo monopólio da inquisição e pela ampliação das
interferências nas cidades. Tudo indica que a atuação dos frades mendicantes no
movimento da magna devotio (de 1233) se tornou mais um ponto de discórdia entre o
papado e o império. Pois deste ano em diante o que se verificou foi a intensificação das
rivalidades e dos confrontos de autoridade entre o papa Gregório IX e o imperador
Frederico II, inclusive no tocante à atuação dos frades mendicantes nos territórios italianos.
O movimento da “grande devoção” tornou possível uma composição política, até
então difícil, entre as comunas e o papado, tendo as ordens mendicantes como a “ponte”
que uniu os dois lados. Ao atuar para inserir disposições específicas nos estatutos
comunais, os frades mendicantes cumpriram um programa político-religioso idealizado em

282
VAUCHEZ, Une campagne... op. cit., p. 523.
283
PAOLINI, Papato, inquisizione... op. cit., p. 185 et seq.
124

Roma e que ampliou as forças do papado na luta contra as heresias e na defesa da libertas
ecclesiae. Ao tolerar e, em alguns casos, apoiar as ações dos religiosos franciscanos e
dominicanos, os dirigentes comunais encontraram um meio de se adequar ao programa
pontifício sem contribuir para o fortalecimento das autoridades episcopais locais, com
quem disputavam jurisdições e prerrogativas de poder nos espaços citadinos e nos
condados. Por fim, os próprios mendicantes se beneficiaram deste quadro, pois
legitimaram sua atuação pastoral e sacramental nas cidades, com o apoio do papado e dos
dirigentes comunais.284
Então, o que se deu no âmbito daquele movimento foi uma convergência de
projetos que concorreu para o estabelecimento de um consenso, ao mesmo tempo, religioso
(com base na perseguição aos hereges e no monopólio da ortodoxia romana) e político
(entre o papado e as comunas centro-setentrionais, em detrimento das pretensões políticas
imperiais e das prerrogativas religiosas episcopais).
Por outro lado, as ações mendicantes naquele movimento e os seus desdobramentos
para o ordenamento das comunas, interferindo diretamente nos conflitos políticos locais e
nas lutas de poder, levaram a um afastamento e a uma crise nas relações daquelas ordens
religiosas com o imperador.285 Pois ficou claro que os frades franciscanos e dominicanos
agiam para a implantação de um programa pontifício nas comunas italianas que não era
apenas religioso. As atuações do dominicano João de Vicenza e do franciscano Leone da
Perego, por exemplo, despertaram contrariedade em Frederico II, que escreveu ao papa
Gregório IX apontando os efeitos políticos danosos ao império e seus aliados decorrentes
da interferência daqueles dois frades mendicantes nas comunas.286
Já para os religiosos mendicantes o envolvimento no movimento devocional de
1233, teve resultados amplamente favoráveis à consolidação institucional e material das
ordens religiosas fundadas por Francisco e Domingos. Em primeiro lugar, a atuação como
pregadores e pacificadores nas cidades da Itália centro-setentrional, permitiu aos frades
ampliar suas bases de apoio populares e entre os dirigentes comunais, tendo como um de
seus resultados a construção de igrejas e conventos com a ajuda dos devotos e o apoio
financeiro das comunas. Uma vez passado aquele momento mais agudo de fervor popular,

284
VAUCHEZ, Une campagne... op. cit., p. 524-525; PAOLINI, Papato, inquisizione... op. cit., p. 190-191.
285
MERLO, op. cit., p. 116-117.
286
VAUCHEZ, Une campagne... op. cit., p. 519, 539, 542 e 543.
125

os frades continuaram a exercer influência nas decisões comunais por meio das confrarias,
congregações e associações que foram formadas na esteira daquele movimento, e que
passaram a ser controladas pelos mendicantes. Tais instituições leigas, como a Sociedade
da Virgem (em Bolonha) e o Consorcium Sancte Mariae Populi (em Parma), reuniam
pessoas que se colocavam a serviço das causas cristãs, sendo orientadas espiritualmente
pelos franciscanos e dominicanos. Direcionados para atuar em defesa da fé, da libertas
ecclesiae e na luta contra os hereges, seus integrantes apoiavam politicamente os
partidários do papado e interferiam nas decisões tomadas nos conselhos comunais.287
Outro exemplo específico de associação leiga cristã a serviço da luta contra as
heresias, tendo como nexo a defesa da fé romana e da libertas ecclesiae, pode ser visto na
formação da Militia Iesu Christi de Parma. Neste caso uma milícia leiga surgida no
contexto do movimento do Alleluia (em 1233) e em decorrência da atuação do frade
dominicano Bartolomeu de Vicenza. Mais uma vez um frade mendicante contribuía para
formar uma instituição leiga a serviço do programa pontifício que estava em execução nas
cidades italianas. Os integrantes daquela militia colocavam-se à disposição para empunhar
armas toda vez que a ortodoxia romana estivesse ameaçada e que fossem convocados pelo
papa, pelo bispo ou pelo seu magister. Nos anos seguintes, em 1234 e 1235, o papado se
dedicou a regular a atuação da Militia Iesu Christi, emitindo bulas específicas para isso,
aprovando um estatuto feito por seus membros e confiando a Jordão da Saxônia (mestre
geral dos dominicanos) a tarefa de formação religiosa daqueles milites.288 Tudo indica que
Gregório IX não pretendia mais contar com o apoio de Frederico II e de suas tropas
imperiais na luta contra os hereges, por isso a formação de uma milícia cristã (ou de várias,
em diferentes cidades) era fundamental para o desenvolvimento do projeto pontifício.



O combate às heresias adquiriu importância crescente nas ações e nos projetos


papais e imperiais na passagem do século XII ao século XIII. A busca por uma
convergência de forças entre aquelas entidades, observada nas primeiras atividades

287
PAOLINI, Papato, inquisizione... op. cit., p. 706 e 707; VAUCHEZ, Une campagne... op. cit., p. 548 e
549.
288
MERLO, op. cit., p. 37 et seq.
126

legislativas (até a década de 1220), na imposição de dispositivos jurídicos nos estatutos


comunais e nas missões mendicantes, apontam para isso. A repressão aos hereges permitia
o fortalecimento de ambas autoridades (papal e imperial) sobre a Itália, pois legitimava
uma ingerência irrestrita daqueles poderes supra-regionais nas realidades locais (cidades e
condados italianos).
O potencial político do processo inquisitorial foi logo captado naquela conjuntura
histórica pelo papado e pelo império, que trataram de utilizar a luta contra os hereges como
uma estratégia para fortalecer seus aliados e atacar seus adversários. Aos aliados eram
reservadas a proteção da ortodoxia e as funções inquisitoriais, aos adversários a persecução
penal e a punição exemplar. De forma que o combate às heresias foi instrumentalizado
politicamente na Itália do século XIII, servindo de mecanismo para interferir nos contextos
locais e desequilibrar as disputas de poder. Isto não significa que os significados religiosos
que orientavam aquela repressão ortodoxa tinham desaparecido, mas sim que passaram a
ser manejados de forma articulada com os projetos de poder que pretendiam se assenhorear
do território italiano.
Cartas trocadas entre o papa e o imperador demonstram que aquelas instituições,
nos primeiros anos de 1230, estavam agindo de forma conjunta no combate às heresias,
tanto na Península Itálica quanto nos territórios imperiais. Em 11 de junho de 1233,
Gregório IX enviou uma epístola a Frederico II, solicitando que ele mobilizasse os seus
aliados na Alemanha para que redigissem dispositivos contrários aos hereges nas
constituições locais.289 Poucos dias depois, mais precisamente em 15 de junho daquele ano,
foi o imperador que escreveu ao pontífice romano, pedindo autorização para “queimar” os
hereges de seu reino e solicitando que o papa orientasse os prelados daquele reino na
condução das inquisições locais, além de pedir o auxílio do papado no combate às heresias
na Itália e no Império.290
Apesar de procurar e de contar com o apoio da autoridade imperial no combate às
heresias, com o intuito de propiciar a hegemonia da fé católico-romana nos mais diversos

289
AUVRAY, Reg. nº 1393, p. 782: “Fridericum, Romunorum imperatorem, rogat et obsecrat ut universis et
singulis principibus et aliis fidelibus suis per Alamaniam constitutis ferventer scribat et praecipiat ut tam
nefandam haereticam pravitatem de massa conspersionis dominicae expurgent”.
290
AUVRAY, Reg. nº 1463, p. 814: “Fridericus, Romanorum imperator, Gregorio IX papae scribit se
haereticos regni sui manifeste convictos incendio tradisse, et cuilibet justitiario mandasse ut eum uno praelato
de statu regionum inquirat; rogat papam quatenus suum contra ceteros haereticos Italiae et Imperii
propositum efficaciter adjuvet”.
127

territórios, o papado não deixou de exercer um poder de controle e de fiscalização sobre as


iniciativas de Frederico II neste campo. Exatamente um mês após aquela epístola imperial
que pedia orientações e o auxílio do papa para as questões de heresia nos territórios
imperiais, Gregório IX enviou uma carta para Frederico II (em 15 de julho de 1233)
advertindo-o para que não avançasse contra os fiéis da Igreja romana sob o pretexto de
lutar contra os hereges em seu reino.291 A mensagem era bastante clara: o imperador estava
justificando a perseguição aos seus opositores como combate à heresia e o pontífice
romano não deixou passar em branco o episódio, fazendo uma advertência à autoridade
imperial.
Por sua vez, os frades mendicantes foram frequentemente convocados para missões
inquisitoriais, assumindo funções investigativas e julgadoras nas comissões formadas para
esta finalidade. Mas a atuação desses religiosos na “grande devoção” de 1233 rompeu com
a equidistância que tentavam manter entre aquelas duas forças maiores em disputa, pois
assumiram mais abertamente um posicionamento favorável ao papado e aos seus projetos
nas comunas italianas. O que levou a autoridade imperial a restringir ao máximo a atuação
daqueles frades nos territórios sobre o seu domínio, procurando conferir a clérigos e leigos
de sua confiança as atividades inquisitoriais.
A utilização dos frades pregadores e da Ordem fundada por Domingos no combate
às heresias é algo que também está devidamente registrado em parte dos documentos
explorados por esta pesquisa de doutorado. A começar pelo registrum das bulas e das
epístolas do papa Gregório IX. Naquele mesmo ano de 1233, mais precisamente em 06 de
outubro, o pontífice romano escreveu ao mestre geral dos Pregadores, Jordão da Saxônia,
solicitando que os seus frades pregassem o Evangelho na Teotônia, de forma a combater a
perfídia dos Pruscianos e introduzir os preceitos e os textos cristãos naquela região.292 Tal
correspondência papal ao mestre geral dominicano demonstra também que a estratégia do
uso da palavra contra as heresias não tinha sido totalmente abandonada, mesmo com o
avanço da inquisição e da perseguição sistemática aos hereges.

291
AUVRAY, Reg. nº 1464, p. 815: “Fridericum, Romanorum imperatorem, rogat ut, sub praetextu
haereticorum, fideles qui forte ipsum offenderint, non perdat. id quod jam non sine multorum scandalo
acciderit”.
292
AUVRAY, Reg. nº 1534, p. 846-847: “Jordanum, magistrum generalem ordinis Praedicatorum, rogat et
obsecrat ut fratres sui ordinis ad proponendum ex animo in Theutonia aliisque provinciis verbum crucis
contra Prutenorum perfidiam litteris et praeceptis inducat”.
128

Já o testemunho dado pelo prior provincial Estevão no processo de canonização de


Domingos também evidencia a atuação dos frades pregadores no combate às heresias,
atividade desenvolvida no âmbito da magna devotio de 1233. Segundo o referido prior, as
campanhas dominicanas nas cidades da Lombardia teriam levado uma multidão de hereges
a serem queimados naquela região italiana, além de ter permitido a conversão de milhares
de pessoas que estavam em dúvida antes se aderiam à Igreja romana ou se ficavam ao lado
dos hereges.293 Tal relato indica que não foi só a pregação o instrumento de convencimento
utilizado pelos frades dominicanos envolvidos na magna devotio, que teriam assim aderido
àquela lógica papal de perseguição sistemática e de uso da força no combate às heresias.
Vale lembrar ainda que o prior Estevão também apontou a prática de reforma dos estatutos
comunais pelos frades dominicanos,294 que atuavam para conformar as bases legislativas
citadinas às normas e às diretrizes católico-romanas, inclusive no tocante às heresias.
Logo o campo religioso, mais uma vez, foi transformado em arena para as disputas
de poder que envolviam os projetos imperial, papal e comunal na Itália do século XIII.
Desta vez o objeto disputado era o combate às heresias, por todo o potencial que esta
prerrogativa demonstrava ter para a legitimação de autoridades e para um constante
exercício de poder, seja na esfera local ou regional. De maneira que aquelas entidades
procuraram salvaguardar seus próprios interesses por meio de uma atuação religiosa que
permitisse fortalecer suas posições e, se possível, enfraquecer a de seus concorrentes.
Tal conjuntura de disputa de poder e de instrumentalização política do combate às
heresias, sem dúvida, ajuda a compreender a vinculação da santidade de Domingos de
Gusmão com esta temática. Na argumentação da bula Fons sapientie existe uma passagem
que exalta a atuação religiosa de Domingos contra os hereges, pois além de vencer a luta
contra os prazeres da carne, ele teria iluminado a mente dos ímpios, contribuindo para
estremecer as seitas heréticas e para exultar os fiéis da Igreja com o seu comportamento
exemplar.295 Portanto, a bula de canonização exalta o fundador dos dominicanos como um

293
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 158: “[...] sicut patet per effectum in civitatibus Lombardie,
in quibus maxima multitudo hereticorum est combusta, et plusquam centum millia hominum, qui nesciebant
ultrum ecclesie Romane na hereticis deberent adherere, ad catholicam fidem Romane ecclesie per
predicationes fratrum predicatorum ex corde sunt conversi. Et hoc scit quia illi conversi hereticos, quos
primo defendebant modo persecuuntur et abhominantur”.
294
Cf., infra, p. 116-117 [Nota 266].
295
Fons sapientie, op. cit., p. 192-193: “[...] Quo sagittante delicias carnium et fulgurante mentes lapideas
impiorum omnis hereticorum secta contremuit, omnis ecclesia fidelium exultavit”.
129

vitorioso no combate às heresias, como um santo que honrava a Igreja romana e que servia
de exemplo de perfeição aos demais fiéis cristãos.
Frade Juan, um dos companheiros mais antigos de Domingos a testemunhar no
inquérito de Bolonha, também registrou a sua atuação contra as heresias e as disputas em
que ele se envolvia para derrotar os hereges e, se possível, convertê-los à fé da Igreja
romana, quando eles ainda viviam na Hispânia.296 Este testemunho registrado no processo
de canonização certamente era importante para o papado e seus projetos, pois ajudava a
comprovar que aquela vinculação da imagem de Domingos com o combate às heresias não
seria uma invenção pontifícia, mas somente o reflexo de sua vida religiosa, antes e depois
de se estabelecer na Itália com seus frades pregadores.
Mas o fato é que esta articulação de uma santidade antiherética projetava seus
efeitos naquela realidade de 1234 e dos anos seguintes, em que os frades dominicanos
continuaram sendo utilizados pelo papado para a tarefa do combate às heresias, conferindo
legitimidade para aquela Ordem mendicante ao mesmo tempo em que vinculava a sua
atuação aos projetos de poder da Igreja romana para a Península Itálica.

296
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 145: “[...] Item dixit, quod omnibus divitibus, pauperibus,
iudeis et gentilibus, quorum multi sunt in Yspania, se prebebat amabilem, et, ut vidit, ab omnibus amabatur,
exceptis hereticis et inimicis Ecclesie, quos in disputationibus et predicationibus suis insequebatur et
convincebat”.
130

CAPÍTULO III

Bolonha nas primeiras décadas do século XIII: os grupos e as instituições


locais em meio aos interesses do papado e do império

A cidade de Bolonha nas primeiras décadas do século XIII era um dos locais para
os quais convergiam as atenções do papado e do império naquele contexto histórico.
Situada estrategicamente em uma zona de contato entre as regiões central e norte da
Península Itálica, esta cidade conheceu um longo período de crescimento e de consolidação
de suas instituições, em um processo que se iniciou ainda no século XII.
Ao longo deste capítulo serão abordadas as instituições locais bolonhesas que se
envolveram na causa de canonização de Domingos, bem como as iniciativas e as decisões
tomadas como parte daquele projeto coletivo de santidade, primeiramente a partir de uma
síntese com base na historiografia, e depois por meio da análise de uma parte do corpus
documental selecionado na pesquisa de doutorado.
A Comuna de Bolonha surgiu no século XII e se afirmou no seguinte como a
instituição política que assumiria o comando daquela cidade. O que não foi realizado de
forma pacífica, mas por meio de uma série de confrontos com os representantes do império
e do episcopado local, e de ações (políticas, jurídicas e militares) que visavam ampliar e
consolidar os direitos exclusivos daquela entidade coletiva.
A Igreja bolonhesa foi seriamente atingida por este processo de afirmação do poder
comunal. Territórios, jurisdições, bens e privilégios, que foram secularmente transferidos
para a diocese de Bolonha, passaram a ser contestados naquelas décadas iniciais do século
XIII, a partir de ações dos dirigentes comunais. Não bastasse isso, o titular daquela diocese
ainda teve que conviver com as seguidas interferências do papado, que, de ato em ato,
contribuiu para esvaziar a autoridade do bispo Enrico della Fratta.
Já a universitas scolarium Bononie também foi uma das instituições atingidas pelos
eventos e pelos confrontos políticos deste período. Mas não se pode dizer que teria saído
enfraquecida deste processo. Ao contrário, a universidade de Bolonha encontrou apoios
que lhe permitiram consolidar ainda mais a sua fama como centro de formação intelectual
131

e ampliar a atração que ela exercia sobre mestres e estudantes que para lá se direcionavam,
vindos de diferentes regiões da Europa.
Esta capacidade de atração foi justamente um dos principais fatores que levaram os
dominicanos a se estabelecerem naquela cidade da Emilia-Romagna. Nela encontraram um
“terreno fértil” para a sua atividade de pregação evangélica e formaram uma comunidade
dominicana na área central de Bolonha, em estreito contato com a universidade e com as
demais instituições citadinas. Em pouco tempo o convento de San Nicolò delle Vigne se
tornou uma das principais sedes da Ordem dos Pregadores, reunindo os seus dirigentes e
conselheiros de dois em dois anos nos capítulos gerais que lá foram realizados.
Todas estas instituições, de alguma forma, estiveram envolvidas na canonização de
Domingos de Gusmão. O que torna a cidade de Bolonha, nas primeiras décadas do século
XIII, uma realidade fundamental para se compreender as relações de poder e as
mobilizações que desenvolveram as iniciativas favoráveis àquele empreendimento coletivo
de santidade, alavancando e sustentando um processo de canonização junto ao papado.

A Comuna de Bolonha: grupos, corporações, governo e pretensões políticas

Um dos fatores centrais para compreender a composição dos diferentes grupos


sociais e a organização dos mesmos para a defesa de seus interesses em Bolonha, no
período de 1200 a 1240, está na formação de Societatis. Tratavam-se de corporações que
reuniam grupos de cidadãos, geralmente trabalhadores de uma mesma atividade, em uma
associação coletiva, com regras e deveres definidos em estatutos. As primeiras notícias
sobre este tipo de instituição naquela cidade remetem à metade do século XII e os estatutos
mais antigos preservados são de meados do século seguinte,297 podendo-se apontar neste
intervalo de tempo o período de formação e consolidação destas sociedades.
Na passagem do século XII ao XIII, o crescimento econômico de Bolonha e o
incremento das atividades de produção e de troca tinham proporcionado o fortalecimento
material e a ascensão social de determinados grupos ligados ao artesanato e ao comércio.
Tais grupos desempenhavam atividades fundamentais para a vida citadina e passaram a se
organizar para defender seus interesses, principalmente com relação a uma participação

297
PINI, Antonio Ivan. Città, comuni e corporazioni nel medioevo italiano. Bolonha: CLUEB, 1986. p.
244.
132

mais adequada nos cargos e nos conselhos do governo comunal.298


Este contexto econômico favorável criou a oportunidade para que estes grupos se
organizassem na forma de sociedades de Arti, associações de praticantes de determinada
arte (no sentido de trabalho manual) que se reuniam sob os princípios de solidariedade e
assistência mútua, além de regularem o próprio exercício da atividade (tempos, modos e
custos) e o acesso às mesmas corporações.299
Também em vias de formação, desde meados do século XII, estavam as sociedades
ou as companhias de armas, que eram associações voluntárias e juradas que reuniam os
habitantes de uma mesma ou de várias paróquias vizinhas (de qualquer forma, com uma
base territorial) que, mesmo exercendo regularmente algum trabalho não tinham o título ou
o direito de ingressar nas sociedades de artes. Estes cidadãos percebiam a importância de
fazer parte de uma corporação e não queriam deixar de se organizar para participar do
governo comunal, ou ao menos contribuir com a administração da vida pública e da cidade,
mesmo que fosse para auxiliar o funcionamento das instituições locais, ao mesmo tempo
em que se garantiam proteção e assistência mútua.300
Tais sociedades, com o intuito de incrementar sua importância militar e política na
vida citadina, costumavam ser mais flexíveis com as regras estatutárias e aceitavam o
ingresso em suas fileiras de trabalhadores que não podiam se organizar nas corporações de
artes.301 A sua formação também aponta para os frequentes tumultos e enfrentamentos de
forças na cidade de Bolonha, levando pessoas de diversos níveis sociais a se associarem
com o intuito de garantirem a defesa de suas famílias e dos quarteirões onde residiam. Em
pouco tempo a própria Comuna de Bolonha passou a incentivar a organização dos cidadãos
nas companhias de arma, obrigando os homens que tinham idade entre 18 e 60 anos a se
alistarem naquelas sociedades e, desta forma, garantindo um contingente de tropas cada
vez maior a sua disposição.302
Mesmo com a formação das sociedades de armas e o seu recrutamento bastante
diversificado, alguns trabalhadores continuaram impedidos pelas autoridades comunais de

298
FASOLI, Gina. Bolonha nell’età medievale (1115-1506). In: FERRI, Antonio; ROVERSI, Giancarlo.
Storia di Bolonha. Bolonha: Edizioni ALFA, 1978. p. 152.
299
DONDARINI, Rolando. Breve storia di Bolonha. Pisa: Pacini, 2007. p. 68-69.
300
GRECI, Roberto. Bolonha nel Duecento. In: CAPITANI, Ovidio. Bolonha nel medioevo. Bolonha:
Bononia University Press, 2007. p. 544; FASOLI, op. cit., p. 153.
301
PINI, Città, comuni... op. cit., p. 252.
302
DONDARINI, Breve storia... op. cit., p. 67.
133

ingressar ou de organizar algum tipo de corporação. Tratam-se dos funcionários


diretamente responsáveis pelo transporte, ou pelo aprovisionamento, ou pela fiscalização
de atividades produtivas consideradas essenciais para a vida citadina, geralmente
identificados pelo nome do posto que ocupavam (iscarii). A estes a comuna proibia
expressamente que se organizassem ou se associassem por temor que isto levasse a uma
alteração dos preços praticados nos gêneros alimentícios e nos demais subsídios
elementares à sobrevivência. O que poderia representar um sério risco à ordem local em
uma cidade universitária, cujo principal motor da economia era justamente o alojamento e
a alimentação de uma população de mestres e estudantes vinculados ao Studium de
Bolonha. 303
Apesar da formação das corporações e da organização dos diferentes grupos sociais
em sociedades, as duas primeiras décadas do século XIII praticamente não registram
alterações fundamentais na forma de governo em Bolonha e na composição dos grupos que
formavam os conselhos comunais e ocupavam os principais cargos. Os integrantes de uma
aristocracia local comandavam a cidade desde a formação da comuna no século anterior e
dividiam entre si os assentos e os cargos mais importantes da administração citadina. O
exclusivismo aristocrático no governo e nas magistraturas da cidade passou a ser
contestado justamente por meio da atividade política dos demais grupos e das suas
societatis. A repartição dos tributos, os abusos na administração da justiça e na apropriação
de bens e rendas comunais, além das desordens e das rixas familiares na luta por mais
espaço na comuna, foram fatores que mobilizaram os demais grupos sociais a postularem
participação política efetiva no governo local.304
O período entre 1217 e 1219 marca uma primeira fase em que os líderes das
sociedades de artes e de armas conseguiram ingressar nos conselhos comunais, mas
acabaram sendo excluídos novamente por uma reação dos grupos aristocráticos, que
permitiram a conservação de assentos nos conselhos apenas aos líderes dos mercadores e
dos banqueiros. Mesmo que temporária essa breve mudança institucional representou a
primeira participação do populus na Comuna de Bolonha. Populus era o termo usual para
identificar uma diversidade de categorias sociais e profissionais vinculadas às atividades de
produção e de troca, que não eram desempenhadas por pessoas nobres de nascimento, e

303
PINI, Città, comuni... op. cit., p. 247 et seq.
304
FASOLI, op. cit., p. 151 et seq.
134

que no decorrer do século XIII acabaram se constituindo coletivamente em uma força


política naquela cidade, ao ponto de questionar a estrutura de governo e alterar a sua
composição.305
Pouco menos de dez anos após aquelas primeiras iniciativas para participar do
governo, o populus voltou a se destacar no cenário político de Bolonha com mais força,
desta vez por meio de uma revolta que conduziu a mudanças significativas na comuna.
Mais precisamente em fevereiro de 1228, após uma derrota das tropas daquela cidade para
o conde da Romagna, as sociedades de artes se reuniram em uma frente única e cobraram
do podestà (principal magistrado da cidade) a realização de um consilium generale (uma
assembleia com uma composição mais ampla). Diante da resposta negativa daquela
autoridade citadina, grupos invadiram o palácio comunal, arrebentaram os armários e
colocaram fogo nos estatutos e nos registros de bando.306 A destruição dos documentos era
um ato representativo dos anseios políticos e das insatisfações acumuladas pelo populus
nas décadas anteriores, pois aqueles arquivos representavam justamente a ordem que se
queria transformar.
Não se pense que aquele ato de destruição representasse algum tipo de posição
política que pretendesse abrir mão dos registros na administração citadina. Ao contrário,
pretendia instaurar um novo regime de registro e de controle do governo comunal, desta
vez com a participação efetiva daqueles grupos que foram excluídos por décadas dos
conselhos e das principais decisões da cidade. As exigências do populus de maior
publicidade na repartição dos encargos fiscais, de ampliação da composição dos conselhos
e de uma correta administração da justiça local, podem ser vistos nas alterações e nas
decisões tomadas nos anos de 1230, quando o condado foi dividido em quarteirões e as
circunscrições urbanas foram reorganizadas, quando se sistematizou os livros de bando e
os registros econômico-financeiros.307 Tudo isso apontava para uma nova ordem local
sendo construída a partir da ascensão social, econômica e política daqueles grupos
identificados vulgarmente como populus.
A nova ordem política estabelecida em Bolonha com a ascensão do populus
também levou a adoção de práticas sistemáticas de repressão e de exclusão por parte do

305
GRECI, op. cit., p. 502-503 e 542.
306
MILANI, Giuliano. L’esclusione dal comune. Confliti e bandi politici a Bolonha e in altre città italiane
tra XII e XIV secolo. Roma: Istituto Storico Italiano per il Medioevo, 2003. p. 97.
307
Ibid., p. 99.
135

governo comunal, devidamente associadas ao exercício da justiça local. É o que se pode


ver com a aplicação do “bando” nos anos de 1230, um instrumento jurídico utilizado pela
comuna para forçar qualquer cidadão a cumprir uma decisão judicial. Toda vez que alguém
era convocado em juízo e não comparecia, ou era condenado e não cumpria as punições
estabelecidas, ou um grupo/comunidade não realizava as tarefas determinadas/acordadas
com a comuna, recorria-se ao “bando” daquele cidadão como forma de ameaça e de
restituição da ordem.308
Usada como garantia da justiça, a exclusão da vida citadina era um instrumento que
também tinha caráter político e permitia a perseguição e a marginalização daqueles grupos
que, por algum motivo, entrassem em contraste ou conflito com as autoridades comunais.
Uma vez banido da cidade, o cidadão só era autorizado a retornar e a recuperar seus bens e
direitos quando acertava suas “pendências” com a Justiça local.
Mas aquele crescimento econômico e produtivo, bem como as transformações
políticas e institucionais vivenciadas em Bolonha na primeira metade do século XIII, e que
alavancaram a ascensão do populus ao governo comunal, não eram decorrentes apenas de
fatores locais. Neste mesmo período, a cidade desenvolveu uma política externa voltada
para a ampliação de seus limites territoriais e para a consolidação de seus projetos de
domínio sobre as regiões vizinhas, entrando frequentemente em conflito com outras
cidades, e consequentemente afrontando interesses do papado e do império.
Um primeiro elemento de discórdia nas pretensões externas da comuna bolonhesa
(contra os interesses do papado e do império) diz respeito aos territórios abarcados pela
herança da condessa Matilde de Canossa, que se tornou alvo de disputa entre os papas e os
imperadores que se sucederam no início do século XIII. De um lado, o império justificava
suas pretensões argumentando a origem imperial daqueles bens, de outro, o papado se valia
de sua antiga prerrogativa sobre o exarcado de Ravenna para contestar sua parte naquela
herança, enquanto a Comuna de Bolonha se apossava dos territórios em litígio, anexando-
os e estendendo sobre eles a sua jurisdição. Até então a cidade tinha conseguido avançar
em suas pretensões por meio de confrontos diretos com Imola, Modena e Pistoia, sem uma
intervenção direta daquelas potências. Mas a situação se alterou por conta dos projetos

308
MILANI, Giuliano. Prime note su disciplina e pratica del bando a Bolonha attorno alla metà del XIII
secolo. Mélanges de l'Ecole française de Rome. Moyen-Age, Roma, tome 109, n°2, p. 501-523, 1997. p.
504 et seq.
136

imperial e papal, que não eram compatíveis com aqueles avanços bolonheses.309
Do início do século XIII até 1219, a Comuna de Bolonha esteve envolvida em uma
série de conflitos territoriais com o papado e seus aliados. Como na questão da posse das
cidades de Medicina e Argelato (na região da Emília), cedidas como feudo do papa ao
senhor Salinguerra, e que foram ocupadas e contestadas por Bolonha, levando Honório III
a lançar excomunhão sobre a cidade. A mesma dinâmica se repetiu no caso de Sambuca e
outros territórios vizinhos disputados com a cidade de Pistoia. Ambas as situações só
foram resolvidas com a atuação do cardeal diácono Hugolino de Ostia (futuro papa
Gregório IX), que atuava como legado papal para a Lombardia e que intermediou acordos
para retirar a excomunhão lançada pelo papa e encerrar os conflitos entre as cidades
envolvidas.310
Nos primeiros anos de 1220, os movimentos externos de Bolonha continuavam a
avançar na direção da Romagna, em busca de uma hegemonia política nesta região que era
fundamental para garantir as pretensões mercantis de alguns grupos devidamente
representados naquela comuna. Neste período, os avanços bolonheses se chocaram
diretamente com os projetos imperiais naquela região, pois não interessava a Frederico II
permitir que Bolonha se tornasse um ponto de referência e contato para todas as comunas
que lhe faziam oposição nas regiões da Romagna, da Emília e da Lombardia, por isso
tratava de apoiar as cidades que poderiam representar algum obstáculo àquela expansão.
Daí os sucessivos problemas da comuna bolonhesa com o condado de Imola, e os
movimentos políticos do imperador para aproximar as cidades de Reggio e Modena da
zona de influência exercida por Cremona, que era o principal bastião da política imperial
naquelas regiões.311
Em meio a estes conflitos, o cardeal diácono Hugolino de Ostia continuava
atuando, ora como legado papal, ora como plenipotenciário imperial, intermediando
acordos que permitissem equilibrar os interesses do papado e do império com aqueles
manifestados pelas comunas, em especial os de Bolonha, de cujos mercadores ele esperava
contribuições substanciais para a manutenção das atividades da Igreja romana na Terra
Santa. Como se verá oportunamente, esta mesma posição continuou a ser exercida por ele

309
HESSEL, Alfred. Storia della città di Bolonha. Bolonha: Edizioni ALFA, 1975. p. 87; FASOLI, op. cit.,
p. 155.
310
HESSEL, op. cit., p. 86, 92 et seq.
311
GRECI, op. cit., p. 542; HESSEL, op. cit., p. 103.
137

quando foi eleito pontífice romano em 1227, assumindo o nome de Gregório IX. Pois o
crescimento das comunas na Itália centro-setentrional e a consequente expansão de seus
territórios se mostrou uma dinâmica permanente também nos anos de 1230, desencadeando
sucessivos conflitos entre as cidades, e atingindo a hegemonia exercida pelos poderes
imperial e papal na península italiana.
Em 1230 e 1231, as cidades favoráveis ao império pareciam estar ganhando força e
revertendo as conquistas e os avanços da Societas Lombardiae (da qual Bolonha era parte),
que tinha renovado sua aliança intercitadina (desde 1226) contra as pretensões imperiais na
Itália centro-setentrional. Principalmente porque o imperador Frederico II tinha se
reconciliado com o papa Gregório IX, situação que perdurou por alguns anos e permitiu
alianças entre o papado e o império para enfrentar o desafio político ocasionado com o
crescimento das comunas. De uma parte as cidades de Ravenna, Forli e Rimini firmaram
aliança para defender seus interesses e as pretensões imperiais, se posicionando com outras
cidades aliadas ao imperador (Cremona, Parma, Pavia, Reggio e Modena). De outra parte,
os projetos expansionistas de Bolonha podiam contar principalmente com o apoio de Milão
e de Faenza, mas também de Brescia e Como.312
Nos dois anos seguintes, 1233 e 1234, o papa Gregório IX atuou intensamente, de
forma pessoal e por intermédio de seus representantes, para celebrar um acordo que
encerrasse os confrontos entre a Societas Lombardiae e o imperador Frederico II. Mas seus
planos foram frustrados pela dinâmica de rivalidade entre as cidades e pela forte resistência
oposta ao poder político do imperador naquelas regiões. Nem mesmo o acordo imposto
pelo papa, ao propor um armistício de cinco anos, conseguiu promover um período de
tréguas naqueles confrontos, pois em pouco tempo foi desrespeitado pelas comunas. A
própria cidade de Bolonha contribuiu para isso ao acertar uma ação conjunta com Milão
contra as cidades aliadas do imperador, em um momento em que Frederico II estava mais
ocupado com a rebelião de seu próprio filho Enrico, rei da Germânia.



312
VASINA, Augusto. Bolonha e la IIª lega lombarda. In: DEPUTAZIONE DI STORIA PATRIA PER LE
PROVINCE DI ROMAGNA. Federico II e Bolonha. Bolonha, 1996 (Documenti e Studi, vol. XXVII). p.
183-201. p. 197 e 198; GRECI, op. cit., p. 565.
138

Os registros do pontificado de Gregório IX, que reúnem bulas, decretais e epístolas


deste papa, permitem ilustrar e aprofundar a dinâmica de relações de poder entre o papado,
o império e a Societas Lombardiae (da qual Bolonha era parte), nos anos de 1233 e 1234,
ou seja, antes e depois da canonização de Domingos de Gusmão.
De junho a agosto de 1233, por exemplo, existem quatro registros diretamente
relacionados ao conflito entre as comunas e Frederico II. Em 05 de junho, Gregório IX
escreve uma epístola ao imperador orientando-o a escolher o árbitro para a discórdia
surgida entre ele e as Sociedades da Lombardia, da Marca e da Romagna, além de
conclamar as partes envolvidas a reconhecerem esta arbitragem e a perdoarem as injúrias
trocadas anteriormente. Por fim, estabelece uma espécie de multa para aquelas Sociedades,
que deveriam subsidiar as atividades da Igreja romana na Terra Santa por dois anos,
custeando os gastos de uma tropa de quinhentos milites que para lá foram enviados.313 A
mesma epístola foi enviada aos reitores das Societatis Lombardiae, Marchiae et
Romaniolae,314 para que tomassem conhecimento também daquelas orientações do
pontífice romano.
Em 12 de julho, Frederico II escreve ao papa Gregório IX anunciando ter recebido
aquela epístola contendo orientações para a causa com os Lombardos. Além disso, informa
que o mestre dos Teotônicos, identificado por ele como Hernanni, estaria se encaminhando
para a Sede Apostólica como um enviado do imperador, portanto cartas patenteadas e
transmitindo as imunidades conforme solicitado pelo pontífice romano.315
Em 12 de agosto, o papa escreve novamente ao imperador, o conteúdo da epístola
revela que Frederico II tinha se queixado da arbitragem realizada por Gregório IX, por
meio de carta enviada anteriormente. O pontífice lembra que o imperador tinha feito
promessas de compensação aos Lombardos, para encerrar aquela discórdia, além de
aproveitar a oportunidade para rejeitar as queixa de Frederico II. O papa explica que a sua

313
AUVRAY, Reg. nº 1356, p. 761: “Friderico, Romanorum imperatori, mittit arbitrium suum de discordia
inter ipsum et Societatem Lombardiae, Marchiae et Romaniolae orta, eique notum facit se sic duxisse
ordinandum, ut imperator Societati omnem rancorem et injurias remittat eamque in gratiae suae plenitudinem
recipiat, Societas autem det pro subsidio Terrae Sanctae per biennium quingentos milites in expensis propriis,
ituros in termino quem Ecclesia Romana praefigerit”.
314
AUVRAY, Reg. nº 1357, p. 761.
315
AUVRAY, Reg. nº 1495, p. 826: “Fridericus, Romanorum imperator, Gregorio IX papae nuntiat se ejus
epistolam, in qua arbitrium de causa inter ipsum et Lombardos prolatum continebatur, recepisse, sed se
[Hermanni], magistri Theutonicorum, reditum praestolaturum esse, antequam litteras patentes mittat, quas
Sedes Apostolica usque ad festum beati Michaelis, juxta tenorem sibi transmissum, dirigi postulaverat”.
139

decisão foi tomada com base na justiça e na razão, com único objetivo de restaurar a ordem
anterior e proteger os direitos de cada parte envolvida.316 Tudo indica que o imperador não
tinha cumprido a sua parcela do acordo e que não concordou com a arbitragem inicial feita
por Gregório IX.
Esta sequencia de epístolas trocadas entre o papa e o imperador permitem concluir
que neste período existiam relações institucionais regulares entre aquelas duas autoridades.
Aparentemente não existia um clima de hostilidade entre Gregório IX e Frederico II, que
se tratam com a devida reverência. Além disso, vale destacar que a função desempenhada
pelo papado naquele conflito entre o império e as Sociedades da Lombardia, da Marca e da
Romagna era correspondente a de um juiz mediador/conciliador, alçando o papa a uma
posição superior que pairava acima das partes envolvidas e procurava celebrar um acordo
que permitisse reordenar aquelas relações.
Nem por isso, o pontífice romano deixou de ter a sua decisão questionada pelo
imperador, que claramente esperava uma arbitragem que lhe fosse mais favorável. Não foi
identificado nenhum registro que apontasse a resposta daquelas Societatis envolvidas no
conflito, mas tudo indica que não houve uma solução final naquele período, pois o
imperador voltou a escrever ao papa em 1234, pautando a mesma questão.
Em abril de 1234, Frederico II escreve a Gregório IX afirmando ter esgotado todos
os seus meios para o negotium da Lombardia e identificando o bispo de Sabina e o cardeal
diácono de Sancti Georgii como seus conselheiros neste assunto. Foi adotada uma medida:
a retenção de regalias por conta de excessos cometidos no passado, provavelmente fazendo
menção aos direitos exercidos pelas comunas e que por tradição estavam vinculados ao
regnum ou ao imperium. Claramente o imperador solicita uma interferência do pontífice
neste negócio, declarando confiar na provisão da Igreja romana.317
Em 04 de maio de 1234, Gregório IX escreve aos reitores da Societatis Lombardiae
anunciando que o imperador tinha confiado ao papa a ordenação daquele negócio existente
entre eles e perguntando se eles não teriam a mesma vontade. Além disso, rogou a eles que
316
AUVRAY, Reg. nº 1497, p. 827: “Friderici, Romanorum imperatoris, qui per litteras cardinalibus scriptas
nibil sibi de injuriis a Lombardis illatis satisfactionis praestitum fuisse conquestus erat, querelam rejicit,
eique exponit quomodo in hac provisione secundum justitiam et rationem egerit, addens negotium in statum
pristinum posse reduci, jure utriusque partis integro remanente”.
317
AUVRAY, Reg. nº 1889, p. 1029: “Fridericus, Romanorum imperator, universis significat se, ad
consilium Johannis, Sabinensis episcopi, et Petri de Capua, Sancti Georgii ad Velum Aureum diaconi
cardinalis, negotium illorum de Lombardia, Marchia Tervisina et Romaniola, tam super detentione regalium
quam de praeteritis excessibus, provisioni Summi Pontificis et Ecclesiae Romanae commisisse”.
140

não turbassem o imperador e os seus aliados, em uma tentativa clara do pontífice de evitar
que as rivalidades se acirrassem ainda mais.318
Em 21 de maio do mesmo ano, o papa volta a escrever aos reitores da Societatis
Lombardiae, insistindo para que aquele negócio entre eles e o imperador tivesse a sua
ordenação confiada à Igreja romana. O pontífice informou ainda que uma tropa de milites
oriunda da Teotônia estaria se deslocando para encontrar o imperador em missão de paz,
por isso pediu aos reitores lombardos que permitissem o seu livre trânsito, identificando
que junto com eles estaria o capelão papal.319
As correspondências trocadas entre o imperador, o papa e os representantes da
Societatis Lombardiae permitem concluir que aquela primeira tentativa de arbitragem em
1233 não avançou para encerrar o confronto existente entre as partes em litígio. Conforme
apontado anteriormente, as rivalidades entre as comunas e delas com a autoridade imperial
na Itália não cessaram naqueles anos de 1230. Desta vez o próprio imperador escreveu ao
pontífice Gregório IX solicitando a sua intervenção naquele negotium, o que foi feito pelo
papa, ao procurar um diálogo com os reitores da Lombardia e ao insistir que eles, tal como
o imperador tinha feito, confiassem a ordenação daquela causa à Igreja romana.
Tudo indica que naqueles anos (1233 e 1234), fundamentais para se compreender
os eventos e as forças atuantes na canonização de Domingos de Gusmão, os principais
conflitos regionais não eram resultado de um enfrentamento direto entre o papado e o
império, ambos em busca de ampliar sua hegemonia na Península Itálica, tal como foi
verificado nas décadas e no século anterior. Parece que tais autoridades tinham chegado a
uma trégua em suas relações de oposição a partir de 1230 e que, desde então, procuravam
se auxiliar em questões maiores envolvendo a realidade italiana.
Os confrontos mais relevantes para o macro cenário político estavam ocorrendo
entre as comunas da região centro-setentrional da Itália, que se organizavam em Societatis
para defenderem interesses em comum e lutar contra seus adversários. Nesta configuração,
a cidade de Bolonha era integrante da Societatis Lombardiae (desde 1226) e, portanto,
318
AUVRAY, Reg. nº 1901, p. 1039: “Rectoribus Societatis Lombardiae nuntiat imperatorem totum
negotium quod inter ipsum et homines Lombardiae, Marchiae et Romaniolae vertebatur, ordinationi
Ecclesiae commisisse: eis mandat quatenus, si idem velint, hoc sibi intiment, eos rogans et hortans ut ipsum
imperatorem et suos non turbent”.
319
AUVRAY, Reg. nº 1901, p. 1039: “Rectores Societatis Lombardiae rogat quatenus, cum Fridericus,
Romanorum imperator, totum negotium quod cum eis habeat, ordinationi Ecclesiae commiserit, milites qui
de Theutonia ad eumdem imperatorem pacifice accedant, libere transire permittant; ad eos J., capellanum
suum, archidiaconum Norwicensem, destinat”.
141

fazia parte de uma aliança intercitadina que se opunha tenazmente à autoridade imperial,
aos seus projetos e aos seus aliados (representantes diretos do poder imperial e um grupo
de cidades lideradas por Cremona).
O papa Gregório IX tinha uma longa experiência na mediação daqueles conflitos
regionais e na celebração de acordos entre as partes, que permitissem cessar as hostilidades
e os confrontos diretos. Desde 1219, como já ressaltado, vinha atuando nestas causas como
legado da Sede Apostólica para a Lombardia e, também por um curto período, como
plenipotenciário imperial, antes da coroação de Frederico II (em 1220). Quando Hugolino
de Ostia foi eleito ao sólio pontifício em 1227, continuou a desempenhar esta mesma
função, certamente com maior autoridade.
O papado procurava equilibrar os interesses das partes em conflito, de acordo com
os valores e a doutrina defendida pela Igreja romana, mas também levando em
consideração os projetos em desenvolvimento e que muitas vezes dependiam do auxílio
e/ou do subsídio daqueles mesmos grupos em confronto. Naquela causa envolvendo o
imperador Frederico II e a Societatis Lombardiae isso fica muito claro, pois o papa
frequentemente recorria a ambas as partes envolvidas naquele confronto para manter as
atividades missionárias e cruzadistas na Terra Santa, tal como ficou registrado naquela
epístola que ele escreveu ao imperador em 05 de junho de 1233.320
Em relação a Bolonha, observa-se a mesma dinâmica de ação mediadora e a mesma
preocupação em relação aos projetos em desenvolvimento. É o que se pode notar em uma
epístola que Gregório IX enviou ao dominicano João de Vicenza em 25 de agosto de 1233.
Nela o papa orientou o frade a conceder o benefício da absolvição a Milão e aos milites
bolonheses, provavelmente por eles terem quebrado aquele primeiro acordo celebrado
entre as comunas e o imperador por meio da arbitragem pontifícia realizada no mesmo ano
(e que estabelecia um armistício entre as partes envolvidas). Na mesma epístola, ele
orientou o frade João a atuar para recolher subsídios em favor das atividades na Terra
Santa, tal como tinha sido determinado em sua passagem pela Sede Apostólica.321
Este é mais um documento papal que registra a mesma relação entre o conflito

320
Cf., infra, p. 138 [Nota 313].
321
AUVRAY, Reg. nº 1504, p. 830: “Fratri Johanni de Vicentia, ordinis Praedicatorum, committit ut
Milantio, militi Bononiensi, beneficium absolutionis impendat, injuncto eidem Milantio quod, civibus
Viterbiensibus super quibus in eis tenebatur, satisfacto, in primo generali passagio per Sedem Apostolicam
praefigendo, iter arripiat eundi in subsidium Terrae Sanctae, per biennium vel triennium moraturus ibidem”.
142

envolvendo as comunas (e delas com o imperador) e a manutenção das atividades da Igreja


romana na Terra Santa. Desta vez o papa atenuava o fato das comunas de Milão e Bolonha
terem quebrado o acordo inicial, pedindo ao frade dominicano que os absolvesse. Parece
bastante evidente nesta epístola pontifícia a lógica entre a concessão do benefício da
absolvição e o recolhimento de subsídios para as atividades no Oriente. Vale destacar que
João de Vicenza atuava, naquele período, como árbitro em vários conflitos entre as
comunas italianas justamente por força de delegação papal. Portanto, Gregório IX naquela
epístola estava escrevendo diretamente ao seu representante e orientando-o a como
proceder naquela questão envolvendo as cidades de Milão e Bolonha.
O posicionamento favorável do papa Gregório IX em relação à cidade de Bolonha,
no contexto daqueles conflitos das comunas centro-setentrionais com os representantes e
os aliados do império, sem dúvida é um bom subsídio para se compreender a participação
da comuna bolonhesa nas iniciativas em favor da abertura de um processo de canonização
para Domingos de Gusmão. Pois aquela orientação pontifícia se deu poucos meses depois
daquela comuna se envolver diretamente na causa do fundador dominicano.
Na epístola-mandato que os comissários papais de Bolonha enviaram aos
representantes da cidade de Toulouse, para que eles dessem continuidade ao inquérito
sobre a vida, o comportamento, os prodígios e os milagres de Domingos naquela cidade
francesa, a comuna e o podestà de Bolonha são identificados entre as autoridades que
deram início ao processo de canonização, ao enviarem um pedido de abertura ao pontífice
romano.322 Portanto, as autoridades comunais bolonhesas participaram daquele projeto
coletivo que mobilizou diferentes instituições citadinas a solicitarem formalmente a
abertura de um processo junto ao papado.
Os testemunhos reproduzidos no inquérito de Bolonha registram a presença e a
participação da autoridade comunal nas iniciativas e na realização da translatio corporis de

322
WALZ, Angelus. Acta Canonizationis S. Dominici. In: Monumenta Ordinis Fratrum Praedicatorum
Historica, tomus XVI. Romae: Institutum Historicum FF. Praedicatorum, 1935, pp. 89-194. p. 169: “Nuper
venerabilis pater Henricus, Bononiensis episcopus, et totus clerus civitatis Bononie, potestas, et commune
civitatis eiusdem, et universitas scolarium Bononie commorantium, per suas litteras, et sollempnes nuntios
clericos et laicos a domino papa et tota Romana curia cum multa devotione, et magna instantia postulaverunt,
quod corpus fratris Dominici, ordinis fratrum predicatorum plantatoris et primi magistri, deberet canonizare
et approbare atque ipsum fratrem Dominicum sanctorum aggregare cathalogo”. Deste ponto em diante a
referência ao processo de canonização de Domingos na edição de Angelus Walz será feita apenas como Acta
Canonizationis S. Dominici, seguida da identificação da página e da transcrição correspondente (entre aspas),
quando for o caso.
143

maio de 1233. Ventura de Verona, prior do convento de San Nicolò, afirmou que antes da
trasladação alguns cidadãos bolonheses, por mandato do podestà, custodiaram por muitos
dias a arca na qual estavam os ossos do fundador dominicano.323 Neste mesmo sentido,
Guillermo de Monteferrato relatou que os frades daquela comunidade não queriam abrir o
sepulcro de Domingos na presença de “estranhos”, mas não puderam realizar este ato sem
a presença do podestà e dos cidadãos que o acompanhavam.324 Por fim, o frade Bonviso
atestou a presença da mesma autoridade comunal, também acompanhada de outras
pessoas, depois da trasladação, quando o mestre geral Jordão exibiu os ossos de Domingos
aos frades que não estavam presentes naquela primeira solenidade.325
Assim, alguns testemunhos do processo de canonização indicam a presença da
autoridade comunal e de nobres cidadãos bolonheses antes, durante e depois da translatio
corporis de maio de 1233, ou seja, diretamente envolvidos nas iniciativas favoráveis ao
reconhecimento da santidade de Domingos de Gusmão e ao estabelecimento de um culto
oficial naquela cidade para o fundador dos dominicanos. Este dado aponta para uma
participação ativa dos dirigentes citadinos naquele empreendimento de santidade antes
mesmo da abertura formal do processo de canonização em Roma.
Não é o caso de se afirmar que a Comuna de Bolonha teria se envolvido naquela
causa de reconhecimento da santidade de Domingos exclusivamente para agradar ao papa
Gregório IX, que estava bastante interessado na consecução daquele empreendimento.
Certamente existiam interesses locais e ganhos políticos ligados àquelas ações comunais
que permitiram vincular a santidade do fundador dominicano e o seu culto à história da
cidade de Bolonha. Mas tudo indica que naquele ano de 1233 houve uma articulação
política e institucional entre o papado e os dirigentes da cidade de Bolonha, tanto nos
conflitos da Societas Lombardiae e nas atividades da Terra Santa, quanto naquele projeto
em favor da canonização de Domingos de Gusmão. Levando-se em consideração a parte
mais potente desta relação, seria ingenuidade não ver no papado uma força que alavancou

323
Acta Canonizationis S. Dominici, op. pit., p. 131: “Item dixit, quod quando corpus fratris beati Dominici
debebat transferri de loco, in quo erat, ad locum, in quo nunc est, ex mandato potestatis Bononiensis multi
honorati cives custodierunt archam per multos dies, timentes ne subriperetur eis”.
324
Acta Canonizationis S. Dominici, op. pit., p. 136: “[...] et aque multe pluviales defluxerant ad locum
sepulture et propter hoc nolebant quod extranei et layci interessent, quando apperiretur sepultura, sed non
potuerunt facere, quin potestas cum viginti quatuor nobilibus et honoratis civibus Bononiensibus interessent
in appertione dicte sepulture”.
325
Acta Canonizationis S. Dominici, op. pit., p. 141: “Et ipse testis fuit tum presens, quando dicta ossa
ostensa fuerunt presente potestate Bononiensi, et aliis quibusdam civibus”.
144

a Comuna de Bolonha naquela direção, principalmente ao atuar de maneira benevolente


nos conflitos envolvendo aquela cidade.

A Igreja bolonhesa: as controvérsias locais e as relações de poder

Interessa aqui não tanto explorar a história geral do episcopado de Bolonha no


século XIII - de sua organização, de seus projetos, de sua hierarquia e dos bispos que se
sucederam ao longo deste período -, mas as suas relações com a Comuna de Bolonha e as
demais instituições (locais e regionais), para compreender as relações de poder entre as
autoridades exercitadas pelo bispo (e seus representantes) e pelos dirigentes comunais
naquela cidade, durante as primeiras décadas daquele século.
Para começar é importante destacar que estas duas instituições bolonhesas, a
comuna e o episcopado, estiveram unidas por objetivos similares ao longo do século XII.
Interessava à comuna de Bolonha se desvincular da autoridade imperial (e de seus
representantes), enquanto o episcopado local procurava de todas as formas se desvencilhar
da autoridade exercida pelo arcebispo de Ravenna, de quem ele era um bispo sufragâneo.
Nesse sentido, tanto a comuna como o episcopado de Bolonha passaram boa parte do
século XII em busca de sua autonomia (política e administrativa), e não poucas vezes se
aliaram para alcançar tal objetivo.326
A cidade de Ravenna e sua sede episcopal metropolitana mantiveram relações
constantes com Bolonha ao longo dos séculos XII e XIII, representando em alguma medida
uma ameaça ou obstáculo para aquele crescimento experimentado pela cidade bolonhesa e
suas instituições neste período. Tamanha era a vontade de autonomia do episcopado
bolonhês que teria inclusive praticado descartes documentais com o objetivo de cancelar
uma memória secular de sujeição ao arcebispo de Ravenna.327 Por outro lado, os
movimentos realizados pelo papado tratavam de impedir uma brusca desvinculação entre
aquelas sedes, utilizando o bispo metropolitano como representante papal em controvérsias
surgidas na cidade de Bolonha.328

326
PAOLINI, Lorenzo. La Chiesa e la città (secoli XI-XIII). In: CAPITANI, Ovidio. Bolonha nel medioevo.
Bolonha: Bononia University Press, 2007. p. 653-759. p. 654.
327
PINI, Antonio Ivan. Città, Chiesa e culti civici in Bolonha medievale. Bolonha: CLUEB, 1999. p. 162-
163.
328
VASINA, Augusto. La Chiesa ravennate nei suoi rapporti con lo Studio bolognese dal XII al XIV secolo.
145

Nas primeiras décadas do século XIII as relações entre a comuna e a diocese de


Bolonha foram profundamente alteradas. Se antes tais instituições bolonhesas estiveram
unidas em busca de garantir autonomia para as suas decisões, na virada do século XII para
o XIII, passaram a se enfrentar diretamente por conta de questões territoriais, fiscais e
jurisdicionais. Tudo indica que o crescimento da cidade acabou levando a um conflito de
poderes entre os dirigentes comunais (desejosos de ampliar e de consolidar os direitos da
comuna) e o bispo (lutando para manter os privilégios, as prerrogativas e os bens da
diocese). Boa parte das controvérsias e dos confrontos de autoridade ocorreu no período
entre 1215 e 1233, quando Enrico della Fratta ocupava a diocese, enquanto Visconte
Visconti e Uberto Visconti se sucederam na função de podestà da comuna.
A primeira fase do conflito de autoridade entre a comuna e a diocese de Bolonha
ocorreu entre 1215 e 1217. No ano 1215 ocorreu um assassinato em San Giovanni in
Persiceto (território diocesano) e o podestà de Bolonha (Visconte Visconti), aproveitando-
se do fato de que o bispo estava fora da cidade (participando do IV Concílio de Latrão),
enviou suas tropas para prender um clérigo acusado do homicídio e depois interrogá-lo. A
ação daquele dirigente comunal representava uma dupla interferência nas prerrogativas do
episcopado (territorial e judicial), abrindo um confronto que perdurou por alguns anos,
com as seguidas sentenças de excomunhão e de interdito lançadas sobre a cidade (por um
cônego da catedral) e pelo recurso a uma mediação do papa (a pedido do podestà).329
O papel desempenhado pelo papado neste conflito, como em outros, era o de
celebrar um acordo entre as partes para encerrar a questão, mas não deixava de fazer isso
sem considerar os interesses e os projetos da Igreja romana, aproveitando-se em algumas
oportunidades para nomear nas instituições locais bolonhesas pessoas que fossem próximas
à cúria romana. Foi exatamente o que aconteceu em 1219, pouco depois que o cardeal
diácono Hugolino de Ostia tinha feito uma arbitragem para conciliar as posições do
papado, da comuna e da diocese de Bolonha. Nesta ocasião, o papa Honório III acabou
designando o seu próprio capelão, o magister Grazia, que não era de Bolonha e nunca fez
parte do capítulo da catedral, para a função de arcediago da catedral bolonhesa, em um
momento em que o bispo e os cônegos do capítulo não conseguiam chegar a um consenso

In: CONVEGNO DI STUDI ATENEO E CHIESA DI BOLONHA, 1989, Bolonha. Atti... Bolonha: Alma
Mater Studiorum, 1992. p. 89-104. p. 100.
329
PINI, Città, Chiesa... op. cit., p. 186; PAOLINI, La Chiesa... op. cit., p. 705.
146

sobre o escolhido.330
Naquela ocasião, o papa Honório III tinha repreendido duramente o bispo Enrico
della Fratta por estar depreciando a função do arcediago da catedral. Ao impor um nome da
sua confiança, o pontífice acabou transferindo para o arcediago de Bolonha prerrogativas e
poderes que tradicionalmente concerniam ao episcopado. Esta situação permaneceu
inalterada quando o magister Grazia foi substituído pelo magister Tancredo (em 1226),
também escolhido diretamente pelo pontífice romano, mas desta vez tratava-se de um
cônego da catedral bolonhesa, que tinha se formado em direito canônico no Studium local.
Este é o mesmo canonista que foi responsável por compilar as decretais do papa Honório
III, publicadas naquele mesmo ano.331 Portanto, não resta dúvida de que o papa continuava
a nomear como arcediago de Bolonha alguém que era da sua estrita confiança, de forma
que este clérigo não atuava mais apenas como vigário do bispo e também como
representante do papa naquela cidade.
A coroação imperial de Frederico II, em 1220, também acabou interferindo nas
relações entre a comuna e o episcopado de Bolonha. Isto porque o imperador, naquela
ocasião, emitiu um diploma em favor do bispo Enrico della Fratta reconhecendo a sua
jurisdição, direitos fiscais e propriedade sobre uma série de territórios disputados pela
diocese e pela comuna. Tudo indica que ao imperador interessava estabelecer boas relações
com o episcopado como uma forma de se contrapor ao crescimento do governo comunal
naquela cidade, por isso interferiu naquele conflito local de Bolonha fortalecendo as
posições do bispo. Alguns meses depois, em janeiro de 1221, o legado imperial Conrado
de Metz ratificou a jurisdição do bispo Enrico della Fratta sobre aqueles territórios. As
relações entre aquelas instituições locais permaneceram tensas e conflituosas nos anos
seguintes, chegando a um período de trégua apenas entre os anos de 1225 e 1229, quando o
decreto de fechamento do Studium de Bolonha promulgado por Frederico II, levou o bispo
a se aproximar das autoridades comunais e inclusive a apoiar a adesão da cidade à Societas
Lombardiae. Estava muito claro que aquela ação do imperador seria prejudicial a toda a

330
PAOLINI, Lorenzo. La figura dell’Arcidiacono nei rapporti fra lo Studio e la Città. In: CONVEGNO
CULTURA UNIVERSITARIA E PUBBLICI POTERI A BOLONHA DAL XII AL XV SECOLO, 2, 1988,
Bolonha. Atti... Bolonha: Comune di Bolonha/Istituto per la Storia di Bolonha, 1990. p. 31-72. p. 50;
HESSEL, op. cit., p. 211-212.
331
DOLCINI, Carlo. Università e Chiesa di Bolonha: dall’identità originaria allo sviluppo di molteplici
relazioni. In: PRODI, Paolo; PAOLINI, Lorenzo. Storia della Chiesa di Bolonha (vol.II). Bergamo:
Edizioni Bolis, 1997. p. 273-284. p. 278; PAOLINI, La Chiesa... op. cit., p. 704 e 718.
147

cidade, visto que a universidade era uma base fundamental para a economia citadina.332
Nos anos seguintes, sobretudo entre 1231 e 1233, as relações entre a comuna e o
episcopado voltaram a ser conflituosas por conta das antigas controvérsias das jurisdições e
do recolhimento fiscal. Em 1231, a Comuna de Bolonha interferiu diretamente nos
territórios diocesanos, nomeando funcionários, submetendo os reitores eclesiásticos a
jurarem obediência, impedindo os laicos de exercerem função em nome do bispo (a partir
de um dispositivo no estatuto comunal), lançando multa sobre qualquer pessoa que
recorresse ao bispo ou ao seu tribunal, além de proibir o recolhimento do dízimo naquelas
terras. Estava muito claro que os dirigentes citadinos estavam atuando para submeter os
territórios episcopais à jurisdição exclusiva da comuna bolonhesa. O bispo Enrico della
Fratta reagiu lançando a excomunhão e o interdito sobre a cidade, em setembro deste
mesmo ano, encaminhando-se logo depois para a cidade de Reggio em um ato de exílio
voluntário.333
Novamente o papado interferiu naquele conflito local envolvendo as instituições de
Bolonha. Em 1231, Gregório IX nomeou o cônego Palmerio de Campagnola como seu
delegado-juiz para atuar naquela causa entre a comuna e o episcopado, orientando-o a agir
para constranger a autoridade comunal a parar com seus avanços sobre os territórios e os
direitos do bispo. A ação não parece ter alcançado o resultado esperado, pois em junho de
1232, o pontífice romano teve que ratificar as sentenças emitidas pelo referido cônego e
pelo bispo contra a cidade, além de ameaçar a transferência do Studium para outra cidade
por um período de quatro meses, deixando algum espaço para um possível indulto caso as
autoridades da comuna revisassem seus atos.334
A situação permaneceu sem solução até o ano seguinte. Em abril de 1233, a
Comuna de Bolonha conferiu ao dominicano João de Vicenza poderes para fazer alterações
nos estatutos comunais e para atuar como árbitro daquela causa com o episcopado (em
comum acordo com o bispo). O referido frade emitiu uma primeira sentença de arbitragem
em 31 de maio daquele ano, que parece ter sido favorável ao bispo Enrico della Fratta e
que não foi aceita pela comuna. Após ter saído da cidade em missão pontifícia e retornado
um junho, João de Vicenza proferiu uma nova sentença arbitral, desta vez favorável à

332
PINI, Città, Chiesa... op. cit., p. 185 et seq.; HESSEL, op. cit., p. 208-209.
333
PAOLINI, La Chiesa... op. cit., p. 707.
334
Ibid., p. 707 e 708.
148

comuna, e não totalmente desagradável ao bispo. Ele dividiu os dez territórios contestados
em dois blocos; na maior parte deles (em seis), manteve apenas a jurisdição civil ao bispo,
passando a jurisdição criminal e fiscal para a comuna bolonhesa; e nos demais manteve
apenas a propriedade e as imunidades episcopais, passando toda a jurisdição para a
comuna.335
Assim se concluiu, em meados de 1233, aquela longa contenda entre as autoridades
comunais e o episcopado de Bolonha, que teve início em 1215, com uma solução que foi
claramente mais favorável à comuna. O que apontava, por um lado, o processo político de
fortalecimento do governo citadino naquele período e, por outro, o enfraquecimento da
autoridade diocesana, que desde as décadas anteriores vinha perdendo territórios,
jurisdições, direitos e funções naquela cidade, por meio não só dos avanços promovidos
pelos dirigentes comunais, mas também pelas intervenções realizadas pelo papado.



A carta encíclica escrita por Jordão da Saxônia, mestre geral da Ordem dos
Pregadores, para divulgar aos demais integrantes da ordem o evento da translatio corporis
de Domingos de Gusmão, ocorrida no convento de Bolonha em maio de 1233, traz a
informação de que os frades de San Nicolò tinham procurado o papa Gregório IX para lhe
consultar sobre aquele procedimento. Eles teriam sido duramente repreendidos pelo papa,
por não terem tratado o seu primeiro mestre com a devida honra. Além disso, o pontífice,
mesmo ocupado com outros negócios, teria escrito uma epístola ao arcebispo de Ravenna,
pedindo que ele comparecesse àquele evento bolonhês com seus bispos sufragâneos, como
representantes da Igreja romana.336
A presença do arcebispo de Ravenna e de seus bispos sufragâneos na translatio

335
PINI, Città, Chiesa... op. cit., p. 189 e 190.; HESSEL, op. cit., p. 209.
336
JORDÃO DA SAXÔNIA. Litterae Encyclicae anno 1234. In: MONTANARI, Elio. Litterae Encyclicae
annis 1233 et 1234 datae. Spoleto: Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, 1993. p. 257-258:
“Neglectum tamen est et hoc, diutius fratribus interim de decenti sarcophago ordinantibus, et aliis summum
pontificem dominum Gregorium adeuntibus, ut praedictum negotium eidem intimarent. Ille vero, ut erat vir
magni zeli et fidei, durissime eos corripuit, qui tanto patri debito honore neglexerant famulari. [...] Scripsit
igitur Ravennati archiepiscopo, ut, quia multis praepeditus ipse personaliter adesse non poterat, tantae
translationi cum suis suffraganeis interesset”. Deste ponto em diante a referência à carta encíclica de Jordão
da Saxônia na edição de Elio Montanari será feita apenas como Litterae Encyclicae anno 1234, seguida da
identificação da página e da transcrição correspondente (entre aspas), quando for o caso.
149

corporis de Domingos de Gusmão aparece registrada também pelo frade Estevão da


Espanha, que na época ocupava a função de prior provincial da Lombardia no âmbito da
Ordem dos Pregadores e participou como testemunha do inquérito realizado em Bolonha
como parte do processo de canonização. Ele afirmou em seu testemunho que quando
Jordão da Saxônia transferiu os ossos do antigo mestre de uma caixa antiga para uma nova,
procedendo depois com a trasladação, tais autoridades estavam presentes ao evento.337
Ao consultar os registros do pontificado de Gregório IX, com foco nos anos de
1233 e 1234, foi possível identificar duas epístolas direcionadas ao bispo de Bolonha e
uma enviada ao bispo recém-eleito de Padova, mas que faz referência a Enrico della Fratta.
A primeira delas é datada de 29 de abril de 1233 e trata-se de uma comunicação do papa ao
podestà e ao populus de Bolonha, solicitando que não impedissem a saída do frade João de
Vicenza, que foi enviado pelo papa para visitar pessoalmente as cidades de Siena e de
Firenze com o intuito de atuar sobre distúrbios que lá estavam ocorrendo.338 A mesma
epístola do papa foi direcionada ao bispo de Bolonha, como se fosse para dar a ele ciência
da orientação pontifícia.339
Em 11 de julho de 1233, o pontífice romano envia um mandato ao recém-eleito
bispo e ao capítulo de Padova, para que eles atuassem no sentido de constranger alguns
cidadãos e seus sócios mercadores a reparar danos causados por eles por meio da
imposição de multas pecuniárias. Ao final da epístola, o papa acrescenta ter enviado
mandato ao bispo de Bolonha para que ele também constrangesse tais cidadãos ao
cumprimento devido da pena assimilada a eles.340
Por fim, em 01 de fevereiro de 1234, Gregório IX escreve uma epístola ao bispo de
337
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 159-160: “Et tunc cum reverentia et devotione magister
accepit ossa cum pluribus fratribus de antiqua capsa et posuerunt ea in nova capsa; quam capsam ipse testis et
magister Iordanis cum aliis fratribus, presente domino episcopo Ravennate et aliis pluribus episcopis et
clericis” [p. 159-160].
338
AUVRAY, Reg. nº 1268, p. 714: “Potestatem et populum Bononienses rogat et hortatur quatenus, si frater
Johannes, de ordine Praedicatorum, Senensem et Fiorentinam civitates, diabolica tentatione in tumultum
versas, personaliter visitare decreverit ad occurrendum tantae cladi, nullus cum impediat”.
339
AUVRAY, Reg. nº 1269, p. 714.
340
AUVRAY, Reg. nº 1462, p. 813: “Episcopo Chimensi, in episcopum Pataviensem electo, et capitulo
Pataviensi mandat quatenus, — cum Jacobus Scarsus, Spinellus Cavalca, Bonaventura Lupelli et quidam alii
eorum socii, mercatores Romani et Senenses, G[hebardo], quondam Pataviensi episcopo, et capituto
Pataviensi quamdam pecuniae quantitatem mutuassent. [...] — vel illis usque ad proximum festum sancti
Michaelis de praefata pecunia cum justis et moderatis expensis ac debita restauratione damnorum, usuris
omnino cessantibus, satisfaciant, vel usque ad subsequens festum Omnium Sanctorum ipse episcopus
personaliter vel per procuratorem idoneum, et capitulum per sufficientem responsalem apostolico se
conspectui praesentent; alioquin ipse papa Bononiensi episcopo mandat ut illos ad alterum praedictorum
compellat”.
150

Bolonha, com orientações a respeito do clero e dos demais funcionários da igreja local a
ele submetidos, para que Enrico della Fratta concedesse a eles direito de prestar juramento
perante outras autoridades, desde que eles não fossem forçados a isso.341
A sequência de cartas do pontífice romano ao bispo bolonhês, ou sobre ele, não
indica que Gregório IX mantivesse alguma relação mais próxima a Enrico della Fratta, que
o utilizasse como seu representante para as causas em Bolonha, ou que de alguma forma
tentasse fortalecer a sua autoridade em outras localidades. O mesmo não pode ser dito em
relação ao arcebispo de Ravenna, que era o superior imediato de Enrico della Fratta, como
seu bispo metropolitano.
Em agosto de 1234, pouco mais de um mês após a canonização de Domingos de
Gusmão, Gregório IX escreveu uma sequência de epístolas, cinco no total, que apontam o
arcebispo de Ravenna como um representante do papa para uma causa de grande interesse
da Igreja romana. No dia 08 deste mês, o pontífice romano enviou uma epístola contendo
um mandato papal àquele bispo metropolitano, para que ele desempenhasse a função de
legado da Sede Apostólica na Terra Santa, atuando para resolver um conflito surgido entre
os barões do Reino de Jerusalém e um representante do imperador Frederico II. A
orientação do papa, nesta ocasião, foi bastante clara: exorte-os a aceitarem um acordo de
paz, caso isso não ocorra, reduza-os.342
No mesmo dia, o pontífice romano escreveu aos barões do Reino de Jerusalém e
aos cidadãos, advertindo-os a aceitarem o acordo de paz que foi elaborado com o auxílio
do patriarca de Antioquia e do mestre dos Teotônicos (que já tinha atuado como
representante de Frederico II, portando documentos para serem entregues ao papa). 343 O
papa ainda avisa que o arcebispo de Ravenna iria atuar como seu representante para
arbitrar um acordo entre as partes envolvidas.344

341
AUVRAY, Reg. nº 1757, p. 966-967: “Episcopo Bononiensi, parato pro universis et singulis suis et
ecclesiae suae causis dare yeonomum idoneum, seu syndicum vel actorem, qui praestare posset coram
judicibus juramentum, concedit ut praestare passim juramentum pro re minima ipso invitus nullatenus
cogatur”.
342
AUVRAY, Reg. nº 2042, p. 1104: “Archiepiscopo Ravennati, Apostolicae Sedis legato, mandat quatenus,
si praedicti barones regni Hierosolymitani exortationes apostolicas et ipsius legati monitiones super pace cum
Friderico imperatore facienda admittere non curaverint, ominia in eum statum reducat, in quo ante
discordiam inter [Riccardum Filangerium], marescalcum imperatoris, et eosdem barones exortam fuerint”.
343
Cf., infra, p. 138 [Nota 315].
344
AUVRAY, Reg. nº 2041, p. 1103: “Barones regni Hierosolymitani et cives Acconenses monet quatenus
pacem quam inter ipsos et Fridericum, Romanorum imporatorem, patriarcha Antiochenus et magister domus
Theutonicorum facere curaverint, observent: alioquin archiepiscopo Ravennati, ad ipsorum partes misso, ipse
151

Em seguida, o pontífice romano escreve mais três epístolas que apresentam o


arcebispo de Ravenna como legado da Sede Apostólica, exortando os leitores/destinatários
a receberem este representante papal com a devida honra e a seguirem os seus comandos,
atendendo a ele em todas as suas necessidades: uma foi direcionada ao mestre e aos irmãos
templários e hospitalários de Jerusalém;345 outra epístola foi para os arcebispos, bispos,
abades, priores, decanos, arcediagos e demais prelados estabelecidos no Reino de
Jerusalém;346 e por fim, uma epístola que foi direcionada aos mesmos integrantes da
hierarquia eclesiástica e religiosa, mas sem identificar a localidade de sua abrangência.347
Esta sequência de epístolas papais de agosto de 1234 não deixa dúvidas sobre a
atuação do arcebispo de Ravenna como um representante de Gregório IX, em uma causa
considerada de grande interesse do papado, algo que é comprovado pelo próprio ato
pontifício de escrever seguidas mensagens com o objetivo de tratar do mesmo assunto.
Portanto não era uma causa qualquer, era algo que despertou a atenção e a preocupação da
cúria romana, ao ponto do pontífice designar um representante especialmente para tratar
daquela questão e de garantir uma rede de apoios para que aquele legado apostólico
pudesse cumprir com êxito a missão para a qual foi designado.
A utilização de um prelado não envolvido diretamente na causa e geralmente
estabelecido em outra localidade, para atuar como representante papal e arbitrar um acordo
entre as partes em conflito, era uma dinâmica sistematicamente usada pela Igreja romana
para se fazer presente em uma série de controvérsias e garantir o exercício da autoridade
papal, bem como uma solução que fosse adequada aos interesses romanos. É o que se vê
também naquele conflito entre a comuna e o bispo de Bolonha, que perdurou por longos
anos do século XIII.

papa injungit ut omnia in eum statum reducat, in quo ante discordiam inter [Riccardum Filangerium],
marescalcum imperatoris, et eos ipsos exortam fuerint”.
345
AUVRAY, Reg. nº 2043, p. 1104: “Magistris et fratribus domus militiae Templi et Hospitalis
Hierosolymitani, et praeceptori Sanctae Mariae Theutonicorum de eadem re scribit eisque mandat quatenus
archiepiscopum Ravennatem tanquam legatum Ecclesiae Romanae debito honore suscipiant et ejus monitis et
mandatis humiliter intendant”.
346
AUVRAY, Reg. nº 2044, p. 1104: “Archiepiscopos, episcopos, abbates, priores, decanos, archidiaconos et
universos alios ecclesiarum praelatos per Hierosolymitanum regnum constitutos monet quatenus eumdem
archiepiscopum Ravennatem sicut Apostolicae Sedis legatum debito honore suscipiant, et ejus mandatis et
monitis, specialiter super pace in eodem regno reformanda, humiliter intendant”.
347
AUVRAY, Reg. nº 2040, p. 1103: “Archiepiscopos, episcopos, abbates, priores, decanos, archidiaconos et
alios ecclesiarum praelatos ad quos litterae istae pervenerint, rogat quatenus archiepiscopum Ravennatem, ab
ipso papa ad partes transmarinus pro Terrae Sanctae negotio destinatum, benigne recipiant eique in
necessariis liberaliter provideant”.
152

Em 27 de janeiro de 1231, Gregório IX escreveu uma epístola ao cônego Palmerio


de Campagnola, contendo um mandato papal para que ele atuasse como árbitro na causa
entre a comuna e o episcopado de Bolonha. Na mensagem o papa aponta os graves erros
cometidos pela autoridade comunal naquela ocasião, que tinha usurpado a competência do
bispo local em exercer jurisdição temporal sobre os territórios diocesanos, e orientando o
seu representante a satisfazer Enrico della Fratta por conta dos danos e das injúrias
oriundas daquele ato comunal. Apesar disso, o pontífice romano também orientou o
cônego de Campagnola a agir com discrição, admoestando as partes a chegarem a um
acordo e utilizando a censura eclesiástica como principal instrumento para encerrar aquela
questão.348
É importante destacar que Palmerio de Campagnola foi, posteriormente, designado
pelo pontífice romano (em 13 de julho de 1233) como um dos comissários responsáveis
por realizar a inquisitio sobre a vida, a fama e os milagres de Domingos de Gusmão em
Bolonha, no ato de abertura do processo de canonização em favor do primeiro mestre geral
dos dominicanos. Junto com ele e integrando a mesma comissão estavam Tancredo
(arcediago do catedral de Bolonha) e Tomás (prior do mosteiro de Santa Maria de Reno).349
As orientações de Gregório IX a estes representantes os exortavam a serem diligentes e
vigilantes na missão atribuída a eles, recolhendo testemunhos idôneos que permitissem
identificar signos públicos, prodígios e milagres realizados por Domingos de Gusmão, que
pudessem ser usados como evidência de sua santidade. Além de solicitar sigilo na redação
e na conservação dos textos do inquérito, que só deveriam ser enviados ao papa quando os
comissários recebessem um mandato de solicitação transmitido por núncios apostólicos.350

348
AUVRAY, Reg. nº 334, p. 346-348: “Palmerio, canonico Sanctae Trinitatis de Campanolis, mandat
quatenus compellat potestatem et commune Bononienses, qui temporalem jurisdictionem in quibusdam
castris ecclesiae Bononiensi competentem usurpaverant, de illatis damnis et injuriis Bononiensi episcopo
satisfaciant”, “Discretioni tue per apostolica scripta mandamus quatenus, si tibi constiterit ipsos invadere aut
turbare super premissis jura ipsius ecclesie, aut hactenus invasisse vel turbasse, tu diligenti monitione
premissa, per censuras ecclesiasticas cessare ipsos ab hujusmodi et satisfacere de preteritis damnis et injuriis,
appellatione remota, compellas”.
349
AUVRAY, Reg. nº 1460, p. 813: “Archidiacono Bononiensi, priori Sanctae Mariae de Reno et frati
Palmerio, canonico ecclesiae de Campaniola, mandat quatenus sedulo inquirant de miraculis fratris Dominici,
plantatoris ordinis Praedicatorum”.
350
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 117: “[...] mandamus, quatines provide attendentes, quod lux
vera sanctorum dominos Ihesus Christus signis publicis et prodigiis evidentibus trepidantia discipulorum
pectora roboravit, mentes eorum nubilas de resurrectionis ammiranda gloria expresse certitudinis clarificans
fulcimentis vitam et conversationem predicti fratris, quibus Deo et hominibus noscitur placuisse necnon
miracula, que auctore Deo de sui corporis sanctitate procedunt, habita pre oculis sola divine reverentia
maiestatis, per testes idoneos studeatis inquirere cauta diligentia et sollicitudine vigilanti, que in scriptis
153

Portanto, os documentos pontifícios não deixam dúvidas que o cônego Palmerio de


Campagnola atuou, mais de uma vez, como representante papal em causas ocorridas na
cidade de Bolonha. Primeiro como árbitro do conflito entre a comuna e o episcopado local,
em janeiro de 1231, e depois como inquisidor do processo de canonização de Domingos de
Gusmão, durante a inquisitio realizada naquela cidade a partir de julho de 1233. Pela
importância das causas que lhe foram designadas e pela repetição de mandatos papais,
pode-se concluir que aquele cônego fazia parte de um círculo de clérigos que eram da
confiança do papa Gregório IX. Além disso, Palmerio tinha a seu favor, para agir nas
causas de Bolonha, o fato de não ser um clérigo estabelecido naquela cidade, o que
provavelmente o excluía das redes de clientelas vinculadas às instituições e às autoridades
locais, podendo ele atuar plenamente alinhado aos interesses e às orientações do pontífice
romano.
Quanto ao bispo bolonhês, Enrico della Fratta, tudo indica que ele não era um
integrante do círculo eclesiástico e religioso mais próximo ao papa, além de estar
demasiadamente envolvido nos conflitos locais e nas relações de poder existentes em
Bolonha nas primeiras décadas do século XIII, conforme atestado amplamente pela
historiografia aqui utilizada. O que certamente não fazia dele a pessoa mais indicada para
representar o pontífice romano e os seus interesses naquela cidade.
Ele aparece, de fato, na abertura da causa de canonização em favor de Domingos de
Gusmão, como uma das autoridades citadinas que solicitaram ao pontífice romano o início
de um processo formal de investigação e a inscrição do fundador dominicano no catálogo
de santos da Igreja romana.351 Mas as fontes aqui exploradas destacam o arcebispo de
Ravenna como a autoridade religiosa a frente da translatio corporis ocorrida em maio de
1233, tal como tinha sido solicitado por Gregório IX.352 O bispo Enrico della Fratta
também não aparece na comissão designada pelo papa para realizar o inquérito em
Bolonha sobre a vida, o comportamento, os prodígios e os milagres atribuídos ao fundador
dominicano. O representante da Igreja bolonhesa nesta comissão era o arcediago da
catedral, o magister Tancredo.353

redacta sub sigillis vestres fideliter conservetis, illa nobis, postquam mandatum apostolicum receperitis, per
fideles et solempnes nuntios transmissuri”.
351
Cf., infra, p. 142 [nota 322].
352
Cf., infra, p. 148 e 149 [notas 336 e 337].
353
Cf., infra, p. 152 [nota 349].
154

Por mais que se possa afirmar, com segurança, que a Igreja bolonhesa esteve
presente nos atos e nas iniciativas favoráveis ao reconhecimento da santidade de Domingos
e ao estabelecimento de um culto oficial na cidade de Bolonha, é importante destacar que
os papéis geralmente exercidos pelo titular de uma diocese naquele contexto histórico
(celebrar cerimônia de translatio corporis e realizar investigação local sobre uma fama de
santidade) não foram desempenhados por Enrico della Fratta. Provavelmente o desgaste
da sua autoridade nos sucessivos confrontos com a Comuna de Bolonha não faziam dele
uma liderança religiosa consensual ou de amplo apoio popular naquela cidade, de forma
que se ele não foi totalmente afastado da causa de Domingos de Gusmão, também não foi
oferecido a ele um papel de destaque. O papado dispunha naquela época de outras opções
clericais que eram menos polêmicas e mais alinhadas aos seus projetos, como o arcebispo
de Ravenna e o arcediago da catedral de Bolonha.

A universitas scolarium Bononie: as controvérsias locais e a lógica de intervenção papal

Tal como outras instituições bolonhesas na primeira metade do século XIII o


Studium local passou por um período de crescimento e de transformação de suas bases de
apoio, enfrentando também situações conflituosas no seu interior e nas relações com as
autoridades citadinas (comunal e episcopal). Não restam dúvidas de que o governo citadino
nesse período tinha a dimensão da importância daquela instituição de ensino para a
economia da cidade e procurou acompanhar de perto o desenvolvimento da universidade,
de forma a impedir qualquer coisa que colocasse em risco sua principal base sustento. 354
Não foi por acaso que as autoridades comunais se esforçaram para manter boas relações
com os doutores daquela universitas, inclusive demandando os seus serviços como
conselheiros para a elaboração de sentenças jurídicas ou mesmo como juízes em causas de
apelo.355
O império e o papado também mantiveram uma longa relação com o Studium de
Bolonha, desde o século XII, principalmente por conta das escolas de Direito que se
desenvolveram naquela instituição. Afinal de contas, foram os doutores em direito civil e
romano de Bolonha que forneceram as bases conceituais e jurídicas que sustentavam os

354
PINI, Città, comuni... op. cit., p. 249-250.
355
GRECI, op. cit., p. 532.
155

projetos universalistas dos imperadores.356 Também foi lá que se formaram e atuaram os


especialistas em direito canônico que, desde Graziano e sua obra (Concordantia
discordantium canonum), prepararam a base das legislações papais nos séculos XII e XIII,
permitindo uma maior elaboração do direito da Igreja romana.357
A maior parte das cinco Compilationes antiquae (as compilações de decretais e
constituições pontifícias em uso antes do papa Gregório IX) tinha sido elaborada por
mestres da universidade de Bolonha. A quarta compilação foi obra do canonista Giovanni
Teotonico, entre 1216 e 1217, e a quinta foi feita por Tancredo, que era especialista em
direito canônico e arcediago da catedral bolonhesa, como já mencionado, em 1226; ambas
foram utilizadas no pontificado de Honório III. Toda esta base foi reorganizada
posteriormente durante o pontificado de Gregório IX, que deixou esta tarefa, entre 1230 e
1234, aos cuidados do dominicano Raimundo de Penhaforte, sendo o resultado deste
trabalho, compilação que ficou conhecida como Liber Extra e que substituiu as anteriores,
promulgado oficialmente em 05 de setembro de 1234.358
A qualidade das reflexões jurídicas e das obras elaboradas pelos mestres da
universitas scolarium Bononie muito cedo (desde o século XII) despertou o interesse do
império, do papado e da comuna, que, entre outras coisas, viam naquela instituição o
potencial para fundamentar seus projetos por intermédio de uma devida legitimação
jurídica de suas pretensões. O que talvez ajude a explicar a quantidade de controvérsias
surgidas e de intervenções sofridas pela universidade bolonhesa ao longo das primeiras
décadas do século XIII.
Entre 1211 e 1219, o papado interferiu seguidas vezes no Studium de Bolonha.
Toda vez que surgia um conflito ou controvérsia com os dirigentes comunais, o pontífice
romano tendia a se apresentar como um protetor daquela instituição e/ou como mediador
entre as partes em litígio. Neste período, a comuna bolonhesa elaborou seguidos estatutos
que restringiam a liberdade de organização dos estudantes, com o objetivo de impedi-los
de se organizarem em corporações próprias e de elegerem seus representantes, pois o
governo citadino temia o crescimento dessas associações fora de seu controle e que, desta

356
DE VERGOTTINI, Giovanni. Lo Studio di Bolonha, l’Impero, il Papato. Spoleto: Centro italiano di
studi sull'Alto Medioevo, 1996. p. 81.
357
D’AMATO, Alfonso. La Chiesa e l’Università di Bolonha. Bolonha: Edizioni Luigi Parma, 1988. p. 21
e 22.
358
DOLCINI, Carlo. Lo Studium fino al XIII secolo. In: CAPITANI, Ovidio. Bolonha nel medioevo.
Bolonha: Bononia University Press, 2007. p. 477-498. p. 493.
156

forma, pudessem se tornar uma força coletiva dentro e fora da universidade. O papado,
neste período, aproveitou todas as oportunidades que teve para se colocar ao lado dos
estudantes e exercer sua autoridade em defesa da liberdade escolástica, denunciando os
estatutos comunais como ilícitos e exortando os dirigentes citadinos a abandoná-los.359
Ao final daquele período, em 1219, o papa Honório III tomou uma decisão que
afetou profundamente as bases daquela universidade e as relações com os poderes locais.
Ao transferir ao arcediago de Bolonha, por delegação papal, o direito de controle sobre os
exames de láurea e de concessão da licentia docendi, o pontífice romano acabou afastando
definitivamente o bispo de exercer qualquer prerrogativa sobre aquela instituição, além de
se alçar a uma posição de protetor e de árbitro para todos os conflitos.360 Após esta
intervenção seguiram-se ainda alguns anos de controvérsia com os dirigentes comunais e
com os projetos imperiais, mas o fato é que o Studium bolonhês foi levado para a esfera de
interesses do papado, que ao longo deste século continuou a exercer um poder de tutela e a
investir autoridade para que aquela instituição se tornasse cada vez mais prestigiosa na
Itália e na Europa.
Entre 1222 e 1224, seguiram as divergências com a Comuna de Bolonha, que
insistia em editar estatutos que obrigavam os mestres e os estudantes a fazerem juramento
de obediência ao governo citadino, além de se declararem contra qualquer possibilidade de
transferência da universitas para outra cidade. A preocupação dos dirigentes comunais não
era sem fundamento, já que no ano de 1222 houve uma emigração de membros daquela
instituição para a cidade de Padova. E em 1224, a fundação de uma universidade imperial
em Napoli por Frederico II, se tornou mais uma ameaça ao desenvolvimento do Studium de
Bolonha, principalmente porque o imperador agiu para atrair mestres e estudantes daquela
cidade para a instituição napolitana.361
Aquela situação de controvérsia com a comuna só se alterou mesmo a partir de
1226, quando houve a renovação da Societas Lombardiae contra os projetos imperiais na
Itália e com a consequente reação de Frederico II, que lançou o bando imperial contra as
359
PINI, Antonio Ivan. Guelfes et Gibelins à Bologne au XIIIe siècle: l'« autodestruction » d'une classe
dirigeante. In: CONGRÈS DE LA SOCIÉTÉ DES HISTORIENS MÉDIÉVISTES DE L’ENSEIGNEMENT
SUPÉRIEUR PUBLIC, 27, 1996, Rome. Actes... Rome, 1996. p. 153-164. p. 163; D’AMATO, La Chiesa...
op. cit., p. 32 e 33.
360
PAOLINI, Lorenzo. La Chiesa di Bolonha e lo Studio nella prima mettà del Duecento. In: BERTUZZI,
Giovanni. L’origine dell’Ordine dei Predicatori e l’Università di Bolonha. Bolonha: Edizioni Studio
Domenicano, 2006. p. 23-42. p. 29, 32 e 33.
361
DOLCINI, Lo Studium... op. cit., p. 494; D’AMATO, La Chiesa... op. cit., p. 33-34.
157

cidades da Liga Lombarda e determinou o fechamento dos Studia existentes naquelas


localidades. O movimento do imperador acabou por aproximar mestres e estudantes
universitários da Comuna de Bolonha, já que as suas diferenças eram pequenas diante
daquela ameaça representada por Frederico II. A comuna bolonhesa editou novos estatutos
que eram uma resposta ao decreto imperial, defendendo os doutores e os escolares de
qualquer punição lançada sobre eles, e estabelecendo, ao contrário, que punidos seriam
aqueles que seguissem a decisão do imperador.362
De 1227 em diante, o papado passou a exercer um poder de arbitragem naquele
conflito entre as comunas italianas e o império, em decorrência da renovação da Societas
Lombardiae. Foi nesta condição de árbitro que o papa Honório III conseguiu interferir na
decisão anterior de Frederico II e que era bastante ameaçadora às instituições de Bolonha.
Em janeiro daquele ano o pontífice romano enviou uma carta ao imperador e exigiu a
revogação daquele decreto que punia as universidades, o que foi acatado pela autoridade
imperial no mês seguinte.363 Desta forma, a ação do poder papal acabou se unindo aos
esforços já realizados pela comuna de Bolonha, no sentido de dar sustentação política e
institucional ao Studium bolonhês.
Aquela união de forças e de autoridades, entre o papado e a comuna, em favor da
manutenção da universitas scolarium Bononie se deu pouco tempo antes da ascensão
política do populus naquela cidade, em 1228, quando os representantes das sociedades de
artes e de armas passaram a ter assentos nos conselhos comunais, e a eleger os magistrados
que iriam comandar a cidade. Esta configuração política entre forças locais e o poder
pontifício não parece ter sido mera coincidência, ou algo circunstancial, já que nos anos
seguintes estas autoridades também estiveram unidas em outros projetos.



Ao consultar o mandato pontifício que determina a abertura de um inquérito em


Bolonha, em julho de 1233, para levantar testemunhos idôneos e informações sobre a vida
de Domingos de Gusmão, bem como os milagres ocorridos após a sua morte, um dos

362
PINI, Antonio Ivan. Federico II, lo studio di Bolonha e il “falso Teodosiano”. In: DEPUTAZIONE DI
STORIA PATRIA PER LE PROVINCE DI ROMAGNA. Federico II e Bolonha. Bolonha, 1996
(Documenti e Studi, vol. XXVII). p. 27-60. p. 33, 34, 46 e 47.; DE VERGOTTINI, op. cit., p. 52 e 53.
363
PINI, Federico II, lo studio... op. cit., p. 34.
158

clérigos lá identificados é justamente o arcediago da catedral de Bolonha.364 Tancredo é o


mesmo canonista que em 1226 elaborou a compilação de decretais do papa Honório III, e
que a partir daquele ano passou também a exercer o direito de controle sobre os exames de
láurea da universidade e de emissão da licentia docendi para os formandos do Studium de
Bolonha.
Chama atenção o fato de que o papa Gregório IX tenha designado para atuar como
inquisidor no processo de canonização de Domingos um clérigo de Bolonha que, pelo
cargo e pelas funções que exercia, estava ao mesmo tempo vinculado à universidade (por
sua formação e pela função de chanceler externo da instituição) e à igreja local (já que
tinha sido nomeado, desde 1226, como arcediago da catedral). Teria sido uma forma de
representar tais instituições no inquérito sobre a fama de santidade do primeiro mestre
geral dos pregadores? A universitas scolarium Bononie também é uma das instituições
identificadas naquele pedido de abertura de uma inquisitio sobre a fama de santidade de
Domingos de Gusmão e a sua consequente inscrição no catálogo de santos da Igreja
romana.365
Certamente a escolha do magister Tancredo para a comissão inquisitorial tinha o
efeito primeiro de evitar a presença do bispo Enrico della Fratta, como um representante da
Igreja bolonhesa. O que já tinha ocorrido nas questões universitárias, das quais ele estava
excluído desde 1219, e que, por coincidência ou não, estava se repetindo naquela inquisitio
aberta pelo pontífice romano em julho de 1233.
Mas o magister Tancredo não foi o único nome, de alguma forma, ligado ao
Studium de Bolonha, que surgiu nos documentos explorados nesta investigação de
doutorado. Por coincidência, ou não, outro especialista em direito canônico (e também
autor de uma compilação de decretais pontifícias) foi mencionado. Trata-se de Raimundo
de Penhaforte, um frade dominicano que naquela época desempenhava a função de capelão
e penitenciário papal de Gregório IX. Seu nome aparece em uma carta escrita pelo mestre
geral da Ordem dos Pregadores para Diana de Andaló. Nela, Jordão da Saxônia informa
para aquela religiosa que já sabia da canonização de Domingos de Gusmão, pois havia sido
anunciada por meio de carta pelo frade Raimundo, que residia na cúria romana.366

364
Cf., infra, p. 152 [nota 349].
365
Cf., infra, p. 142 [nota 322].
366
WALZ, Angelus. Beati Iordani de Saxonia Epistolae. In: Monumenta Ordinis Fratrum Praedicatorum
159

O fato de Raimundo de Penhaforte ter sido informado da canonização de Domingos


antes de Jordão da Saxônia não é em si algo estranho, pois aquele frade residia na cúria
romana, e pela função que ele exercia, estava sempre próximo ao papa Gregório IX. O que
chamou atenção no caso é que naquele mesmo ano de 1234, em que Domingos foi
canonizado e que Jordão escreveu a referida epístola para Diana, o frade Raimundo parece
também ter merecido confiança e valorização da parte do pontífice romano.
Em 03 de junho de 1234, exatamente um mês antes da canonização de Domingos,
Gregório IX escreveu uma espécie de mandato em que reafirmava o poder de excomunhão
conferido ao seu capelão e penitenciário papal. Na mensagem o pontífice romano dá a
entender que existiam pessoas que não estavam respeitando as sentenças proferidas por
Raimundo de Penhaforte e que por isso teriam que fazer juramento duas vezes diante dele
antes de passarem para a condição de absolvidos.367
Alguns meses após esta mensagem, em 05 de setembro de 1234, o pontífice romano
encaminhou aos doutores e aos estudantes da universidade de Paris o volume das Decretais
editadas por Raimundo de Penhaforte, em um ato que formalizou a promulgação daquela
obra pelo papado.368 Na carta enviada, Gregório IX faz uma série de elogios à referida obra
e ao trabalho realizado pelo seu capelão e penitenciário, a quem ele se refere como
“querido filho”, afirmando que aquele volume foi feito para a máxima utilidade dos
estudantes, superando várias dificuldades decorrentes das obras anteriores, como a
dispersão dos decretos em diferentes volumes e a aparente contradição entre eles, o que
causava confusão e incertezas na aplicação das leis canônicas.369

Historica, v. XXIII. Romae: Institutum Historicum Fratrum Praedicatorum, 1951. p. 48: “Nos tamen,
intellecta prius canonizatione sancti patris nostri per litteras fratris Raymundi, qui moratur in Romana curia
sicut”. Deste ponto em diante a referência às cartas de Jordão da Saxônia na edição de Angelus Walz será
feita apenas como Beati Iordani de Saxonia Epistolae, seguida da identificação da página e da transcrição
correspondente (entre aspas), quando for o caso.
367
AUVRAY, Reg. nº 1944, p. 1057: “Eidem, qui nulla se credebat excommunicatione teneri, significat se
ipsum per Raimundum, capellanum et paenitentiarium ipsius papae, juratoria recepta cautione quod
satisfaciet super bis pro quibus excommunicatus esset, ei absolutionem impendi fecisse”.
368
AUVRAY, Reg. nº 2083, p. 1125: “Doctoribus et scholaribus Parisiensibus nuntiat se edidisse volumen
Decretalium, a fratre Raymundo [de Pennaforte] redactum, et praecipit ut hac tantum compilatione universi
utantur in judiciis et in scholis”.
369
AUVRAY, Reg. nº 2083, p. 1125-1126: “Sane diversas constitutiones et decretales epistolas
predecessorum nostrorum in diversa dispersas volumina, quarum alique propter nimiam similitudinem, et
quedam propter contrarietatem, nonnulle etiam propter sui prolixitatem, confusionem inducere videbantur,
alique vero vagabantur extra volumina supradicta, que tanquam incerte frequenter in judiciis vacillabant, ad
communem et maxime studentium utilitatem per dilectum filium fratrem Raymundum, capellanum et
penitentiarium nostrum, in unum volumen, resecatis superfluis, providimus redigendas, adicientes
constitutiones nostras et decretales epistolas, per quas nonnulla que in prioribus erant dubia, declarantur.
160

A universidade de Paris não foi a única instituição francesa, naquele período, a


receber uma mensagem do papa que valorizava o trabalho desenvolvido por aquele frade
dominicano. Em 21 de outubro de 1234, Gregório IX escreveu uma epístola endereçada
aos sacerdotes e decanos de Paris que estavam julgando uma causa envolvendo um conflito
entre um cônego e um clérigo.370 O principal motivo da carta era passar orientações sobre
como eles deveriam agir naquele julgamento e na instrução do processo. Ao final daquela
epístola, justamente na parte em que o papa passa as orientações aos clérigos de Paris, ele
faz referência a Raimundo de Penhaforte como se ele fosse um argumento de autoridade,
como se aquelas orientações tivessem sido formuladas com o auxílio do penitenciário
papal.371
A mesma lógica desta mensagem se repetiu cerca de um mês depois. Desta vez o
pontífice romano escreveu ao prior da Ordem dos Pregadores em Paris, frade Roberto, em
23 de novembro de 1234, falando sobre um cidadão que, inadvertidamente, tinha feito
negócios com pessoas acusadas de heresia.372 Ao instruir o frade de Paris, Gregório IX
pede discrição com aquela carta e que ele não permita a ninguém molestar o referido
mercador, além fazer referência ao penitenciário Raimundo de Penhaforte como sendo o
orientador da pena que deveria ser aplicada ao referido cidadão: fazer penitência.373
Esta sequência de epístolas papais acima referidas – que foram escritas de junho a
novembro de 1234 – permitem esclarecer algo sobre o tipo de relação que aquele frade

Volentes igitur ut hac tantum compilatione universi utantur in judiciis et in scolis, districtius prohibemus ne
quis presumat aliam facere absque auctoritate Sedis Apostolice speciali”.
370
AUVRAY, Reg. nº 2294, p. 1212: “Majoris Ecclesiae Parisiensis et Sancti Germani Autisiodorensis
Parisiensis decanis, et magistro Wernacio, canonico Tervisino, Parisius commoranti, causam quae inter
Geraldum de Bre, canonicum Aentensem, et Stephanum Vassandi clericum, super ecclesia de Rialhac
vertebatur, examinandam et terminandam committit”.
371
AUVRAY, Reg. nº 2294, p. 1214: “Cum igitur per dilectum filium fratrem R., penitentiarium nostrum, ab
eo de parendo mandatis nostris super hiis pro quibus interdictus et excommunicatus dicitur, juratoria prestita
cautione, ipsum a sententiis hac occasione prolalis in eum absolvi fecerimus ad cautelam, discretioni vestre
per apostolica scripta mandamus quatinus, facientes vobis universas litteras apostolicas et processus super
premissis habitos exhiberi, audiatis absque more dispendio que partes hinc inde duxerint proponenda, et, si de
partium voluntate processerit, causam fine canonico terminetis, facientes etc. Alioquin eam ad nos remittetis
sufficienter instructam, prefigentes partibus terminum competentem, quo per se vel procuratores idoneos
etc.”.
372
AUVRAY, Reg. nº 2221, p. 1194: “Priori et fratri Roberto de ordine Praedicatorum Parisiensibus mandat
quatenus «Accurri», filium Aldebrandini, civem et mercatorem Florentinum, propter commercium quod
insciens cum quibusdam haereticis habuerat, sed a quo absolutus fuerat, non permittant ab aliquibus
moleslari”.
373
AUVRAY, Reg. nº 2221, p. 1194-1195: “Verum, cum dicto mercatori per dilectum filium fratrem
Raimundum, penitentiarum nostrum, imponi fecerimus penitentiam salutarem, discretioni vestre per
apostolica scripta mandamus quatenus ipsum occasione hujusmodi non permittatis ab aliquibus molestari: si
qua alia contra eum poteritis invenire, nobis fideliter rescripturi”.
161

dominicano mantinha com o pontífice Gregório IX no período em que se deu a


canonização de Domingos de Gusmão pela Igreja romana. Nesse sentido, chama atenção o
fato de que não foi possível encontrar nenhum registro do ano 1233 que fizesse qualquer
referência a Raimundo de Penhaforte, como se naquele ano de 1234 ele tivesse adquirido
com o papa um prestígio que não foi observado no ano anterior.
A primeira daquelas epístolas (a de 03 de junho de 1234) era uma espécie de
mandato que reforçava o poder de Raimundo de Penhaforte como penitenciário papal,
ratificando oficialmente as excomunhões proferidas por ele. Na segunda (a de 05 de
setembro de 1234) o que se observa é a valorização intelectual do frade dominicano, como
o autor da compilação de Decretais que passavam a valer em substituição às que foram
elaboradas anteriormente.
Nas duas últimas epístolas, de outubro e novembro de 1234, é possível notar uma
valorização daquele frade dominicano e da função que ele exercia na cúria romana. Pois o
papa Gregório IX se refere a ele ao passar orientações para clérigos de Paris, como se ele
fosse um fundamento de autoridade para a sua argumentação, ou como se a própria
instrução tivesse sido dada por ele. O que chama atenção neste caso é que o pontífice
romano, de forma explícita, estava conferindo maior autoridade a Raimundo de Penhaforte
com aquelas mensagens, a partir de uma lógica de argumentação que não foi verificada em
relação a outras pessoas nas demais cartas consultadas e referidas aqui nesta tese. É como
se o ano de 1234 tivesse representado uma virada na relação do papa com aquele frade
dominicano.
Qual teria sido o motivo desta mudança? O que teria ocorrido, de tão especial, para
transformar a relação do pontífice com o seu penitenciário? A canonização de Domingos
de Gusmão pode ser uma das chaves para entender este caso, já que a primeira epístola
aqui explorada foi escrita um mês antes do anúncio da inscrição do fundador da Ordem dos
Pregadores no catálogo de santos da Igreja romana. A promulgação oficial das Decretais de
Gregório IX, o Liber Extra, em setembro de 1234, pode ser a outra chave importante para
compreender esta mudança de relações, pois estabeleceu uma nova base para o direito
canônico, sendo as demais compilações antigas substituídas pela obra de Raimundo de
Penhaforte.
No caso da promulgação do Liber Extra fica muito evidente a participação de
Raimundo de Penhaforte, já que o próprio pontífice romano o identifica como o autor
162

daquela obra que estava sendo encaminhada aos doutores e aos estudantes da universidade
de Paris. O que não ocorre quando se pensa nas iniciativas e nos atos praticados em favor
da canonização de Domingos de Gusmão nos anos de 1233 e 1234.
Não foi Raimundo de Penhaforte o indicado para promover uma campanha de
pregação em Bolonha com o intuito de difundir a fama de santidade de Domingos. Seu
nome não foi vinculado ao evento da translatio corporis que foi realizada no convento
dominicano de San Nicolò em maio de 1233. Ele também não esteve diretamente
envolvido no inquérito realizado na cidade bolonhesa entre julho e agosto de 1233, como
parte integrante do processo de canonização autorizado pelo papa.
O único documento encontrado na pesquisa de doutorado que vincula o nome
daquele frade dominicano e penitenciário papal à canonização de Domingos é a referida
carta que Jordão da Saxônia escreveu para Diana de Andaló, dando notícia de que já tinha
sido informado sobre a confirmação da canonização pela Igreja romana e identificando
Raimundo como o seu informante.374
Apesar disso, é possível que Raimundo de Penhaforte tenha tido uma participação
efetiva nos esforços realizados para aquela canonização, levando-se em consideração o fato
de ser o frade dominicano mais próximo ao pontífice romano naquele período, além da
proximidade temporal entre os dois eventos mencionados mais acima (a canonização de
Domingos e a promulgação do Liber Extra).
O tratamento dado a este frade dominicano pelo pontífice romano nas epístolas
anteriormente exploradas ajuda a fortalecer esta hipótese, seja pela valorização realizada
pelo papa Gregório IX, seja porque este padrão de tratamento não foi verificado nos
registros do pontificado do ano anterior, constituindo assim uma excepcionalidade. O que
apontaria o ano de 1234, sobretudo de junho em diante, como o período chave para aquele
comportamento do pontífice romano que, na prática, conferia maior prestígio e autoridade
ao seu capelão e penitenciário.
Vale ainda destacar que a relação mantida com o penitenciário Raimundo de
Penhaforte, oferecia ao papa Gregório IX a oportunidade de se valer de um interlocutor
próximo que tinha relações ao mesmo tempo com o Studium de Bolonha (onde ele se
formou e atuou como mestre) e com a Ordem dos Pregadores (a qual ele se vinculava

374
Cf., infra, p. 158 [Nota 366].
163

como um frade), instituições que ao longo da primeira metade do século XIII mereceram
uma atenção especial daquele pontífice romano.
A universitas scolarium Bononie era uma instituição em pleno desenvolvimento no
século XIII e cuja fama já era reconhecida na Europa desde o século anterior. Não foi sem
motivos que o papado, o império e a comuna de Bolonha procuraram acompanhar de perto
o crescimento desta instituição de ensino e a movimentação dos seus integrantes (mestres e
estudantes). A sua participação em alguns atos diretamente relacionados à canonização de
Domingos de Gusmão, como na abertura formal de um processo, ou na própria
investigação, sem dúvida conferia maior autoridade (institucional e intelectual) àquela
causa de santidade.
A atuação do papado nas primeiras décadas do século XIII, ora protegendo mestres
e estudantes do avanço da autoridade comunal e/ou imperial, ora impondo pessoas
relacionadas à cúria romana para atuar junto àquela instituição, apontam uma estratégia
constante de intervenção pontifícia junto àquela universidade bolonhesa. Por outro lado,
mestres daquela instituição de ensino contribuíram largamente para o desenvolvimento e a
consolidação do direito canônico, um dos principais instrumentos de legitimação da
autoridade papal perante as sociedades europeias naquela conjuntura histórica.
Portanto, o papado e a universitas scolarium Bononie eram instituições que se
conheciam e que não poucas vezes, naquele período, se relacionavam politicamente e
compartilhavam alguns projetos. A canonização de Domingos de Gusmão foi mais um
empreendimento compartilhado por elas. Levando-se em consideração que o êxito deste
projeto era muito mais relevante para o papado, o mais provável é que o Studium bolonhês
tenha se envolvido nesta causa por conta dos mestres que compartilhava com a Ordem dos
Pregadores e com a Igreja romana, além da potencialidade da renovação daquela poderosa
aliança, que garantia àquela instituição de ensino uma proteção constante diante das
ameaças locais e imperiais.

Os dominicanos em Bolonha: uma sede para a Ordem e para o culto a Domingos

A cidade de Bolonha no início do século XIII deveria parecer bastante atrativa às


ordens religiosas. Estava localizada geograficamente no cruzamento de várias rotas que
cortavam as principais cidades da Itália setentrional, fazendo ligações para dentro e para
164

fora da península italiana. Além disso, naquela época, Bolonha já era bastante conhecida
pelo seu Studium, atraindo mestres e estudantes de diversas partes da Europa, que para lá
afluíam em busca de formação e de conhecimento.
Portanto, não é de se estranhar que Domingos de Gusmão, ao passar por lá em
janeiro de 1218, tenha tido o interesse de fundar naquela cidade uma sede para os seus
frades pregadores, algo que se concretizou no ano seguinte. A cidade bolonhesa era
bastante adequada para os propósitos assumidos pela sua ordem religiosa, seja pela
amplitude e pela diversidade do público que poderia ser abarcado em suas pregações
evangélicas, seja pelo potencial para a captação de novos frades e para a difusão de suas
mensagens a partir daquele lugar.375
Os primeiros frades dominicanos a se estabelecerem em Bolonha chegaram por lá
em 1219, enviados de Roma por Domingos, que na época ocupava o cargo de mestre geral
da Ordem dos Pregadores. Primeiro se estabeleceram na igreja de Santa Maria della
Mascarella e, algum tempo depois, acabaram se transferindo para a igreja de San Nicolò
delle Vigne, situada em uma área mais central da cidade e que lhes tinha sido destinada
pelo bispo Enrico della Fratta, sob pedidos do frade Reginaldo de Orleans e do cardeal
diácono Hugolino de Ostia.
O sacerdote Rodolfo de Faenza, que era reitor e capelão daquela igreja de San
Nicolò, logo ingressou na Ordem dos Frades Pregadores, desempenhando por longo
período a função de procurador do convento bolonhês. Desde aquela época surgiram as
primeiras questões envolvendo o crescimento daquela comunidade, a necessidade de
ampliar os espaços e a obrigação de adequá-los ao preceito de pobreza que era comum às
ordens mendicantes.376
No ano de 1219 e nos seguintes ocorreram diversos atos de doação, de compra e
venda, e de transferência de direitos, que acabaram estabelecendo as bases jurídicas e
territoriais para aquela primeira sede dominicana em Bolonha. Naquele primeiro ano de
atividade dominicana, Diana de Andaló ainda não havia ingressado na vida religiosa, mas

375
BORGHI, Beatrice. Una ciudad, un santo, una orden: Bolonia, Domingo de Caleruega y la Orden de los
Frailes Predicadores. Entre la vocación al estudio y la custodia de las sagradas prendas. Medievalismo,
Madrid, v. 25, p. 13-54, 2015. p. 15 e 16; D’AMATO, Alfonso. I domenicani e l’Università di Bolonha nel
secolo XIII. In: CONVEGNO DI STUDI ATENEO E CHIESA DI BOLONHA, 1989, Bolonha. Atti...
Bolonha: Alma Mater Studiorum, 1992. p. 105-117. p. 105.
376
ALCE, Venturino. Il Convento di San Domenico in Bolonha nel secolo XIII. Bolonha: Pàtron Editore,
1973. p. 140 et seq.
165

foi de grande ajuda na questão do estabelecimento do grupo na área central da cidade. Pois
a igreja de San Nicolò, os imóveis ao seu redor e o terreno no qual estavam as construções,
pertenciam à família de Diana, que se mobilizou para convencer o próprio avô, Pietro
Lovello, a ceder o terreno, a igreja e sua casa anexa, bem como o direito de patronato (jus
patronatus) daquele edifício sacro para a comunidade dominicana.377
No ano seguinte, mais precisamente em 17 de maio de 1220, foi realizado naquela
comunidade o primeiro capítulo geral da Ordem dos Pregadores. Uma das primeiras regras
aprovadas naquela assembleia deliberativa dizia respeito justamente ao princípio da
pobreza, estabelecendo que os frades dominicanos não poderiam ter posses, nem rendas
fixas, além de determinar que os edifícios daquela comunidade deveriam ser simples e
humildes. Também foi naquela ocasião capitular que Diana de Andalò se dirigiu ao mestre
Domingos solicitando a fundação de um convento feminino em Bolonha. Mas a espera
para que o bispo da cidade autorizasse e apontasse um local adequado para tal
empreendimento, fez com que o pedido só fosse concretizado alguns anos depois.378
Em 1221 continuaram os trabalhos de construção do edifício conventual, enquanto
o mestre da ordem esteve ausente da cidade por alguns meses. Ao retornar para Bolonha,
Domingos se viu surpreendido pela grandiosidade das edificações que foram levantadas na
sua ausência, tendo repreendido duramente o procurador do convento, frade Rodolfo de
Faenza, por ter descumprido a orientação capitular. Nesse mesmo ano foi realizado o
segundo capítulo geral da ordem, no qual se procedeu com a divisão das competências
territoriais em oito províncias. A mais importante dentre elas, a província da Lombardia,
foi designada para Jordão da Saxônia (que neste mesmo ano substituiu Domingos à frente
da ordem), enquanto o convento de Bolonha passou a ser regido pelo frade Ventura de
Verona, que permaneceu como prior daquela comunidade por longos anos.379
Este também foi o ano da morte de Domingos de Gusmão, que ocorreu em 06 de
agosto de 1221. Tudo indica que a sua morte não se tornou um obstáculo para o
crescimento da comunidade de Bolonha e nem para os projetos da Ordem dos Pregadores.
Ao contrário, os anos seguintes registraram uma continuidade nos planos de ampliação do

377
DONDARINI, Rolando. L’insediamento dei Frati Predicatori a Bolonha. In: BERTUZZI, Giovanni.
L’origine dell’Ordine dei Predicatori e l’Università di Bolonha. Bolonha: Edizioni Studio Domenicano,
2006. p. 230-255. p. 237; BORGHI, op. cit., p. 21.
378
ALCE, Il Convento... op. cit., p. 142 e 145; DONDARINI, L’insediamento... op. cit., p. 238 e 243.
379
ALCE, Il Convento... op. cit., p. 147; DONDARINI, L’insediamento... op. cit., p. 238.
166

convento e da igreja de San Nicolò, assim como no incremento da quantidade de frades


vinculados àquela ordem religiosa, agora com Jordão da Saxônia no cargo de mestre geral
dos Pregadores.
Apenas em 1223, Diana de Andalò conseguiu que seu projeto fosse realizado, com
a fundação do convento de Santa Inês, onde ela permaneceu até a sua morte e de onde
trocou epístolas com Jordão da Saxônia. Cartas que foram conservadas e que representam,
até hoje, um testemunho da vida espiritual feminina e de alguns dos problemas enfrentados
no âmbito da Ordem dos Frades Pregadores.380 Também é deste ano que data o primeiro
documento conhecido sobre a escola de teologia que foi criada junto ao convento de San
Nicolò. Trata-se de um ato de doação realizado por um funcionário do Studium de Bolonha
em favor daquela comunidade dominicana. Escola que foi formada inicialmente para
instruir os frades para a tarefa da pregação evangélica e que se tornou, no decorrer dos
anos, em um espaço de contato frequente dos dominicanos com os mestres da universidade
local.381
Se os trabalhos de ampliação do convento parecem ter sido finalizados em 1224,
isso não significou o fim dos empreendimentos naquela comunidade dominicana. De 1228
em diante inicia-se uma nova fase de construções, desta vez voltada para a edificação de
uma nova igreja. Deste período foram conservados vários atos contratuais de compra e
venda, e de doações, firmados pelo prior do convento de San Nicolò, frade Ventura de
Verona, que apontam ainda um projeto de ampliação em pleno desenvolvimento. O
crescimento do número de frades e de fiéis a frequentar os edifícios dominicanos de
Bolonha era a principal justificativa para a continuidade das construções.382
Em 1233, mesmo ano da translatio corporis de Domingos de Gumão no convento
de San Nicolò, chegou na cidade de Bolonha o frade dominicano João de Vicenza. Em
pouco tempo ele conquistou muitos seguidores e alcançou grande prestígio junto ao
populus local, por conta de suas pregações realizadas no contexto do Alleluia, movimento
que gerou devoção e mobilização religiosa naquela cidade, e que se propagou por muitas
outras em toda a Itália centro-setentrional. Tamanho foi o impacto das atividades religiosas
do frade João que subitamente passou a despertar a atenção dos dirigentes comunais, que

380
HESSEL, op. cit., p. 214-215.
381
BORGHI, op. cit., p. 28-30; D’AMATO, I domenicani... op. cit., p. 106.
382
ALCE, Il Convento... op. cit., p. 152-154.
167

no contexto daqueles conflitos com o episcopado, atribuíram a ele a missão de revisar os


estatutos citadinos e atuar como árbitro daquela controvérsia da comuna com o bispo
Enrico della Fratta.383
Foi justamente nesta atmosfera conturbada por conflitos institucionais, políticos e
sociais, e permeada por um movimento religioso que alimentava o ideal de penitência, que
João de Vicenza também atuou para difundir uma fama de santidade para Domingos de
Gusmão, aproveitando suas pregações em Bolonha para falar da vida, das experiências e
dos possíveis prodígios atribuídos ao fundador dominicano. A atuação religiosa deste frade
na cidade de Bolonha em 1233 recebeu grande atenção do pontífice Gregório IX, que lhe
escreveu seguidas vezes em busca de informações e passando orientações para os seus
próximos passos. Por outro lado, não parece ter merecido a mesma atenção do mestre geral
dos dominicanos, Jordão da Saxônia, que não o menciona em suas cartas e na crônica que
escreveu sobre a Ordem dos Pregadores. A atuação deste personagem controverso (e de
outros religiosos em Bolonha) pode ajudar a compreender a dinâmica de relações que se
formou em 1233 e que levou à canonização de Domingos de Gusmão no ano seguinte.



As negociações ocorridas desde 1219, envolvendo aquisição e doação de bens aos


dominicanos de Bolonha, bem como as sucessivas fases de construção e ampliação dos
edifícios daquela comunidade, levantam dúvidas quanto ao espírito de pobreza dos frades
pregadores diretamente vinculados ao convento e à igreja de San Nicolò delle Vigne.
Estariam estes empreendimentos apontando o abandono ou a flexibilização do ideal de
pobreza? Uma consulta aos documentos selecionados nesta pesquisa pode ajudar a
explorar mais profundamente esta questão.
Jordão da Saxônia viveu neste período e, desde 1221, desempenhava a função de
mestre geral dos dominicanos. Nos seus escritos ele faz referências ao comportamento dos
frades bolonheses. Na crônica que ele escreveu sobre as origens da Ordem dos Pregadores,
o mestre geral critica os irmãos de Bolonha por não aceitarem os milagres supostamente

383
VAUCHEZ, André. Une campagne de pacification en Lombardie autour de 1233. L'action politique des
Ordres Mendiants d'après la réforme des statuts communaux et les accords de paix. Mélanges d'archéologie
et d'histoire, Roma, t. 78, n. 2, p. 503-549, 1966. p. 504 et seq; FASOLI, op. cit., p. 173; HESSEL, op. cit.,
p. 215.
168

ocorridos no sepulcro de Domingos, porque estavam mais preocupados em não ganharem


fama de interesseiros que poderiam se aproveitar daquela devoção para o incremento
material daquela comunidade.384
Tal episódio foi retomado com mais detalhes na carta encíclica sobre a translatio
corporis de Domingos no convento de San Nicolò. Neste texto Jordão foi ainda mais duro
na crítica realizada aos frades de Bolonha. Ele os acusa explicitamente de agirem contra a
devoção popular que teria existido junto ao sepulcro do antigo líder dos pregadores. Nesse
sentido, eles retiravam de cima do túmulo os ex votos oferecidos por aqueles que estavam
em busca de milagres, ou que já tinham sido atendidos em seus pedidos. O mestre geral
não poupa palavras em seu relato e responsabiliza os dominicanos de San Nicolò pelo
tempo decorrido entre a morte de Domingos e a realização da translatio corporis, pois,
mais preocupados com sua própria fama, eles mantiveram adormecida e sem veneração a
santidade do fundador, em prejuízo da comunidade eclesial e da glória divina.385
O relato do mestre geral dominicano é praticamente o mesmo que foi feito pelo
frade Ventura de Verona, prior do convento de San Nicolò delle Vigne, como testemunha
inquirida naquela inquisitio realizada em Bolonha, entre julho e agosto de 1233, como um
ato integrante do processo de canonização de Domingos. Ventura acrescentou ainda que,
além de retirar os ex votos deixados sobre aquele sepulcro, os frades bolonheses não
permitiram que os devotos adornassem o túmulo do fundador.386 Vale ressaltar que esta

384
WALZ, Angelus. Libellus de principiis Ord. Praedicatorum auctore Iordano de Saxonia. In: Monumenta
Ordinis Fratrum Praedicatorum Historica, tomus XVI. Romae: Institutum Historicum FF. Praedicatorum,
1935. p. 23-88. p. 72: “Sed inter hec vix erat e fratribus, qui huic divine gratie condigna gratiarum occurreret
actione. Siquidem visum est plerisque, non debere receptari miracula, ne sub velamento pietatis speciem
questus incurrerent. Sicque dum propriam opinionem inconsiderata sanctitate zelarent, communem ecclesie
neglexere profectum et gloriam sepeliere divinam”.
385
Litterae Encyclicae anno 1234, op. cit., p. 256: “Expergefacta est siquidem post obitum viri Dei reverentia
populi, et occurrentibus multis, qui diversis infirmitatum quarumcumque premebantur molestiis, ibique
permanentibus diebus ac noctibus, fatebantur omnino percepisse se remedia sanitatum. Unde curationum
suarum testimonia deferebant suspendentes ad tumulum beati viri cereas oculorum, manuum, pedum
ceterorumque membrorum effigies, prout varia fuerat eorum infirmitas corporum, sive eorum multifarie
reddita valitudo. Enimvero vitam, quam in caelis possederat, in terris miraculis declarabat. Visum est autem
plerisque nom debere receptari miracula, ne sub specie pietatis notam quaestus incurrerent. Frangebant itaque
allatas imagines et deiciebant, et dum propriam opinionem inconsiderata zelare cupiunt sanctitate,
communem ecclesiae neglexere profectum et gloriam sepeliere divinam. Alii autem aliter sentiebant, tamen
pusillanimitatis depressi spiritu his non obviabant. Sicque factum est, ut beati patris Dominici gloria absque
omni sanctitatis veneratione per annos fere XII sopita permaneret”.
386
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 130-131: “Item dixit, quod sicut audivit et firmiter credit,
Deus multa miracula operatus fuit per ipsum beatum Dominicum in morte eius et post mortem eius in eo
anno et sequentibus annis. Et hoc ideo credit et dixit, quia multi viri et mulieres veniebant ad sepulturam eius
cum candelis et imaginibus et votis dicentes, quod Deus operatus fuerat miracula circa eos vel suos per
169

narrativa estava sendo contada por alguém que esteve à frente daquela comunidade
religiosa desde 1221, ano da morte de Domingos de Gusmão.
Tudo indica uma convergência entre os relatos de Jordão e de Ventura no sentido
de responsabilizar os frades de San Nicolò por aqueles doze anos que se passaram entre a
morte de Domingos e o processo de canonização iniciado em 1233, além de sustentarem
que aquele comportamento seria o resultado do temor daqueles frades em serem acusados
de interesseiros. É importante destacar que tal relato não foi compartilhado pelos demais
testemunhos do processo de canonização em Bolonha, o que coloca aqueles dois dirigentes
dominicanos em uma posição de proximidade. Teria o relato sido “acertado” entre eles?
Aquela narrativa tinha de fato ocorrido ou era uma invenção?
A proximidade entre os dois poderia decorrer desde 1221, ano da realização do
segundo capítulo geral da ordem na cidade de Bolonha, quando Jordão foi indicado como
prior provincial da Lombardia, enquanto Ventura foi nomeado prior do convento de San
Nicolò. Naquele mesmo ano, em decorrência da morte de Domingos, Jordão da Saxônia foi
elevado à posição de mestre geral da Ordem dos Pregadores, enquanto o frade Ventura de
Verona permaneceu por longos anos no cargo para o qual foi designado naquela ocasião
capitular.
Em uma das epístolas trocadas com Diana de Andalò, com datação provável de
abril de 1231, Jordão trata de acalmar aquela religiosa de Bolonha, dizendo a ela que não
chamou o frade Ventura em Padova com o objetivo de transferi-lo e/ou de fazê-lo prior da
comunidade dominicana daquela cidade.387 Não foi possível saber o motivo da convocação,
pois o mestre geral da ordem não esclareceu a questão. De qualquer forma, a preocupação
de Diana indica alguma predileção pelo prior de San Nicolò, que deveria ter nela uma
aliada no âmbito da instituição dominicana. E não era uma aliada qualquer naquele
contexto, levando em consideração o tamanho do patrimônio da família daquela religiosa,
que tão frequentemente foi transferido aos dominicanos de Bolonha (desde 1219).
A resposta de Jordão da Saxônia também indica uma convocação feita ao prior de
San Nicolò para que ele fosse se encontrar com o mestre geral em Padova. Embora não

merita beati Dominici. Et voluerunt quidam claudere sepulturam ipsius fratris et patris beati Dominici et
cooperire pannis sericis, sed fratres timentes prohibuerunt, ne ordo inde propter multitudinem turbaretur et ne
aliqui dicerent, quod propter cupiditatem vel iactantiam fratres facerent predicta vel fieri paterentur”.
387
Beati Iordani de Saxonia Epistolae, op. cit., p. 24-25: “De fratre Ventura cesset omnis dubitatio, quia non
hac intentione vocavi eum Paduam, ut facerem ipsum ibi priorem”.
170

esclareça o motivo da reunião, a carta comprova um contato institucional entre os dois. O


convento de Bolonha, mesmo após a morte de Domingos, e até mesmo por isso, já que seu
corpo estava sepultado naquela comunidade, continuou a ser uma das principais sedes para
o governo e para a deliberação dos rumos da Ordem dos Pregadores, que de dois em dois
anos reunia os seus dirigentes e principais conselheiros naquela cidade para a realização do
capítulo geral da ordem.
Portanto, desde 1221, não faltaram oportunidades de encontro e de conversas entre
Jordão e Ventura, ocasiões propícias para debater aquela versão sobre o comportamento
dos frades de Bolonha, que foi compartilhada pelos dois nos documentos aqui explorados.
Mas ainda falta delimitar a natureza daquele relato. Na falta de outros subsídios para este
esclarecimento, o caminho para uma resposta adequada pode estar na questão da pobreza
dominicana, que naquele contexto histórico parece ter provocado dissidências e
controvérsias entre os frades de Bolonha.
Quando se observa o conjunto dos relatos produzidos em Bolonha, em 1233, no
âmbito do inquérito papal conduzido naquela cidade, a questão da pobreza foi abordada
diversas vezes por aqueles testemunhos dominicanos. Primeiro no sentido de caracterizar o
comportamento de Domingos de Gusmão como religioso e como mestre geral da Ordem
dos Pregadores. Vários frades ouvidos no âmbito daquele processo de canonização
apontam um comportamento padrão no primeiro mestre dos pregadores, que, segundo eles,
não abria mão do preceito da pobreza em seu comportamento e se esforçava para que os
seus frades fizessem o mesmo.
Tal aspecto aparece ressaltado no testemunho do frade Amizo de Milão, naquela
época prior da comunidade de Padova. Ele ressalta que Domingos era um “amante da
pobreza”, tanto na alimentação quanto nas vestimentas e nos ornamentos eclesiásticos, e
não se satisfazia em viver na pobreza, se esforçava sempre para que os seus frades também
seguissem tal preceito, inclusive nos edifícios construídos.388
O mesmo perfil aparece reforçado no testemunho do frade Estevão, que naquela
época era o prior provincial da Lombardia. Ele confirma Domingos como um “amante da
pobreza” nos seus hábitos e como fiscal do comportamento dos frades, e que muitas vezes

388
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 137: “regularis observantie zelator precipuss, summus
paupertatis amator tam in victu quam in vestitu fratrum ordinis sui, et sui, quam etiam in edificiis et ecclesiis
fratrum et in cultu et in ornatu vestium ecclesiasticarum”.
171

o viu exortar os frades a este comportamento, inclusive obrigando-os a não aceitar doações
para a ordem.389 Além disso, Estevão reproduz uma narrativa sobre o convento de Bolonha,
dando conta que o frade Rodolfo de Faenza, que era o procurador daquela comunidade,
teria começado uma obra para ampliar as celas dos frades de San Nicolò, tendo sido depois
repreendido por Domingos que o acusou de abandonar o preceito da pobreza.390 Importante
destacar que tal repreensão foi feita a um grupo de frades e não só ao procurador da
comunidade.
A preocupação com manutenção do preceito da pobreza entre os frades também
aparece demarcada no testemunho do frade Juan de Espanha, que era um dos discípulos
mais antigos de Domingos, tendo integrado as missões de pregação no sul da França em
1215, além de estar entre os frades que foram enviados para estabelecer a primeira sede em
Bolonha (em 1219). Em seu testemunho Juan destaca que Domingos ordenava os frades a
viajarem a pé e a não levarem dinheiro para tais deslocamentos, de forma que
vivenciassem a pobreza e dependessem das esmolas. Ele também destaca que o então
mestre geral ordenou que as possessões que eles tinham recebido na França fossem doadas
aos cistercienses e a outras ordens religiosas.391
Outra a ressaltar a vigilância de Domingos com a sua pobreza e a dos seus frades
foi o próprio Rodolfo de Faenza, que muitas vezes esteve à frente dos trabalhos de
ampliação daquela comunidade bolonhesa. Ele destaca em seu testemunho que o mestre
geral era muito diligente na pobreza e exortava seus frades ao mesmo comportamento.
Rodolfo relata também que, certa vez, quando um senhor de Bolonha (Odorico Galliciani)
tentou fazer doações aos dominicanos, Domingos não aceitou e inclusive rescindiu o

389
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 156-157: “Item dixit, quod ipse frater Dominicus erat amator
paupertatis. Et hoc audivit sepissime eum predicantem et fratres hortati ad paupertatem. Et si quando sibi vel
collegio fretrum offerebantur possessiones, nolebat eas recipere, nec permittebat fratres recipere. Et volebat,
quod haberent viles domos et parvas. Et ipsemet vilissimum habitum portabat et viles pannos”.
390
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 157: “Item dixit, quod cum haberent fratres apud sanctum
Nicolaum cellas vilissimas et parvas frater Rodulphus, qui erat procurator fratrum, in absentia eiusdem fratris
Dominici quasdam cellas coepit per brachium elevare. Sed revertens dictus frater Dominicus cum videret
cellulas elevatas, coepit cum fletu pluries predictum fratrem Rodulfum et fratres alios reprehendere, dicendo
et aliis fratribus: Vultis tam cito paupertatem relinquere et magna palatia edificare”.
391
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 144: “Et etiam temporibus ipsis data fuerunt ordini
predicatorum castra et possessiones multe in partibus Tholosanis et Albigensibus. Item dixit, quod cum ordo
predicatorum haberet castra et possessiones multas in partibus supradictis, pecuniam portarent in via secum
et equitarent et superpellicia deferrent, prefatus frater Dominicus laboravit et fecit, quod fratres ipsius ordinis
dimitterent et contemnerent omnia temporalia, et insisterent paupertati, et non equitarent, et viverent de
elemosinis et nichil secum in via portarent. Et ita date fuerunt possessiones de Francia monialibus ordinis
Cisterciensium et alie aliis”.
172

contrato que tinha sido assinado, porque queria que os frades não tivessem posses e que
vivessem de esmolas.392
É possível, e até provável, que os testemunhos tomados no âmbito do inquérito de
Bolonha apresentem uma versão da pobreza de Domingos um tanto exagerada, com o
intuito de valorizar o comportamento religioso daquele mestre que estava próximo de ser
canonizado pela Igreja romana. Mesmo levando isto em consideração, também é possível
depreender destes testemunhos uma versão mais nuançada da pobreza defendida pelo
primeiro mestre geral dos dominicanos. Parece que a questão não era ter ou não ter
propriedades, e sim o seu tamanho e a aparência dos edifícios. A mesma lógica pode ser
observada em relação às vestimentas dos frades e aos ornamentos eclesiásticos das igrejas
dominicanas.
Retomando o testemunho do frade Amizo de Milão,393 este aspecto aparece bem
destacado: zelar para que o princípio da pobreza esteja presente nos edifícios, nas
vestimentas e nos ornamentos eclesiásticos. A mesma lógica pode ser observada nos
relatos dos frades Estevão394 e Rodolfo395 quando falam dos edifícios e das vestimentas dos
dominicanos: casas pequenas e humildes, vestidos vis. Portanto, deixando de lado os
possíveis exageros, é possível apontar uma preocupação de Domingos para que a aparência
daquelas coisas não passasse ao exterior uma imagem de luxo e, portanto, de um abandono
do ideal de pobreza pelos membros da sua ordem religiosa.
A preocupação com o luxo e a aparência de ostentação pode estar na raiz do
comportamento daqueles frades de Bolonha que Jordão da Saxônia tanto criticou em seus
escritos. Em seu testemunho frade Ventura afirmou que os frades do convento de San
Nicoló não quiseram nem mesmo deixar que os devotos de Domingos adornassem a sua
sepultura com panos de seda.396 Já o testemunho de frade Rodolfo, também um morador

392
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 150: “Item dixit, quod dictus frater Dominicus multum
diligebat paupertatem et hortabatur fratres ad paupertatem. Et hoc scit, quia quando dictus frater Dominicus
venit Bononiam, dominus Hodericus Galliciani volebat dare fratribus quasdam suas possessiones, que
valebant bene quinhentas libras Bononienses. Et facta erat inde carta coram domino Bononiensi episcopo, sed
ipse frater Dominicus fecit rescindi contractum et noluit quod haberent illas vel aliquas alias possessiones sed
solummodo viverent de elemosinis”.
393
Cf., infra, p. 170 [Nota 388].
394
Cf., infra, p. 170 e 171 [Notas 389 e 390].
395
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 150: “Et volebat quod haberent parvas domos et viles vestes.
Et etiam in ecclesia nolebat quod essent panni serici, sed essent indumenta de buchirano vel de aliquo alio
panno”.
396
Cf., infra, p. 168 [nota 386].
173

daquela comunidade, destaca que Domingos não queria a utilização de panos de seda na
igreja e na indumentária dos frades.397 De forma que o comportamento apontado pelo prior
do convento poderia ser apenas um reflexo das orientações do antigo mestre geral. Se a
seda era um tecido de luxo naquele contexto e o mestre da ordem tinha orientado os frades
a não utilizarem este tipo de tecido, nada mais lógico do que impedir que as pessoas
colocassem panos de seda no sepulcro de Domingos.
No entanto, quando se observa o longo período de crescimento daquela comunidade
dominicana de San Nicolò, com a aquisição de terrenos e de casas, bem como a recepção
de doações, fica a impressão de uma contradição em relação ao espírito de pobreza. A
partir de 1221, existe uma série de atos notariais que comprovam tais negociações no
âmbito da sede de Bolonha: em um destes documentos (datado de outubro de 1221),
Jordão da Saxônia aparece identificado como prior provincial da Lombardia e
representante da comunidade naquele ato de compra;398 em outro (datado de fevereiro de
1223), Rodolfo de Faenza aparece como representante do convento em um ato de doação
feito por um funcionário do Studium bolonhês em favor dos dominicanos;399 já Ventura de
Verona aparece como representante do convento em cinco atos de compra, firmados entre
1224 e 1231.400
É importante destacar que todos estes atos foram praticados após a morte de
Domingos de Gusmão. Portanto, no período em que se verificou o maior crescimento do
patrimônio daquela comunidade de San Nicolò, bem como a realização de um programa de
reformas e construções que resultou em um novo edifício conventual, e na nova igreja que
foi designada como local da tumba do fundador (e posteriormente renomeada para Igreja
de São Domingos), a Ordem dos Pregadores não estava mais sob a liderança do seu
primeiro mestre geral. Era Jordão da Saxônia quem estava no comando daquela instituição,
enquanto frade Ventura de Verona continuava a frente da comunidade de Bolonha, assim
como Rodolfo de Faenza permaneceu um bom tempo como procurador do convento e dos
frades.
397
Cf., infra, p. 172 [nota 395].
398
ALCE, Venturino. Documenti sul Convento di San Domenico in Bolonha dal 1221 al 1251. In: Archivum
Fratrum Praedicatorum, Volumen XLII. Roma: Istituto Storico Domenicano di S. Sabina, 1972. p. 5-45. p.
12-13. Deste ponto em diante a referência aos documentos do convento de Bolonha na edição de Venturino
Alce será feita apenas como Documenti sul Convento, seguida da identificação da página e da transcrição
correspondente (entre aspas), quando for o caso.
399
Documenti sul Convento, op. cit., p. 13-14.
400
Documenti sul Convento, op. cit., p. 14-24.
174

Levando em consideração que o próprio frade Rodolfo teria merecido uma


repreensão de Domingos por conta de uma reforma realizada durante sua ausência,401 não é
de estranhar que ele aparecesse como representante daquela comunidade em um ato de
doação. É provável que ele não compartilhasse das mesmas preocupações com a pobreza
do antigo mestre. A julgar pelo relato que produziu acerca do comportamento dos frades de
Bolonha, em relação ao sepulcro de Domingos e a uma suposta devoção popular, Ventura
de Verona não era um entusiasta daquele grupo e daquela atitude.402 O fato de ele aparecer
como representante da comunidade de San Nicolò em cinco atos de compra, também não o
coloca entre os seguidores de Domingos mais preocupados com o espírito de pobreza
naquela conjuntura.
Já Jordão da Saxônia, na carta encíclica de 1234, apresenta indícios de que existiam
posicionamentos diferentes na comunidade de Bolonha a respeito de um possível culto
para Domingos de Gusmão. Alguns não queriam aceitar os relatos de milagres e a devoção
popular junto ao sepulcro do fundador dominicano, por isso retiravam os ex votos deixados
como forma de agradecimento. Outros frades não concordavam com esta postura, mas
segundo o mestre geral não fizeram nada para mudar aquela situação. 403 De forma que,
levando em consideração o relato de Jordão, existiria um grupo a favor e outro contra a
possibilidade de estabelecer um culto para Domingos no convento de San Nicolò.
O que motivaria um grupo de frades a se posicionarem contra a devoção popular no
sepulcro de Domingos de Gusmão? Segundo o próprio Jordão da Saxônia, eles estariam
mais preocupados com a própria fama e não queriam passar atestado de interesseiros que
se aproveitariam daquele culto em benefício próprio.404 Já para Ventura de Verona aqueles
frades estavam mais preocupados com o seu cotidiano no convento e não queriam conviver
com o distúrbio causado pela movimentação de devotos em busca da tumba do fundador. 405

401
Cf., infra, p. 171 [Nota 390].
402
Cf., infra, p. 168 [Nota 386].
403
Litterae Encyclicae anno 1234, op. cit., p. 256: “Unde curationum suarum testimonia deferebant
suspendentes ad tumulum beati viri cereas oculorum, manuum, pedum ceterorumque membrorum effigies,
prout varia fuerat eorum infirmitas corporum, sive eorum multifarie reddita valitudo. Enimvero vitam, quam
in caelis possederat, in terris miraculis declarabat. Visum est autem plerisque nom debere receptari miracula,
ne sub specie pietatis notam quaestus incurrerent. Frangebant itaque allatas imagines et deiciebant, et dum
propriam opinionem inconsiderata zelare cupiunt sanctitate, communem ecclesiae neglexere profectum et
gloriam sepeliere divinam. Alii autem aliter sentiebant, tamen pusillanimitatis depressi spiritu his non
obviabant”.
404
Cf., infra, p. 168 [Nota 384].
405
Cf., infra, p. 168 [Nota 386].
175

Apesar da sutileza e das diferenças existentes entre estes relatos, tanto para o mestre geral
quanto para o prior do convento o comportamento daqueles dominicanos indica que
estariam mais preocupados consigo mesmo e não com o que seria melhor para a ordem e
para a Igreja romana.
O fato é que a possível versão deste grupo para explicar aquele comportamento de
resistência não foi representada nos documentos aqui acessados. Fica muito claro que nem
Jordão e nem Ventura são defensores daquele grupo. Nos outros testemunhos reproduzidos
no inquérito conduzido em Bolonha não se verifica qualquer menção a este assunto. Estes
dois dirigentes da Ordem dos Pregadores foram os únicos a sustentarem um relato para
aquele comportamento coletivo e a emitirem opinião/julgamento sobre aqueles frades.
Estariam eles inventando esta explicação como forma de justificar os doze anos
decorridos entre a morte de Domingos e a translatio corporis realizada no convento de
Bolonha? Seria uma forma de se livrarem daquela responsabilidade no justo momento em
que foram tomadas iniciativas para a canonização do fundador da ordem? Se a referida
narrativa fosse uma invenção dos dois, seria necessário combinar com os outros frades de
Bolonha, que acabaram coletivamente responsabilizados e duramente criticados nos
escritos de Jordão da Saxônia, já que os autores daqueles atos não foram nominalmente
identificados. Pois se tratavam de textos que foram produzidos justamente para circular em
todos os conventos da Ordem dos Pregadores e alcançar o maior número de frades. Se
aquela versão fosse construída e não fosse combinada com os frades de San Nicolò,
prontamente se tornaria um escândalo dentro da ordem religiosa, levando-se em
consideração a circulação daqueles textos, dos frades e das epístolas que trocavam entre si.
O mais provável é que, de fato, tenha existido um comportamento coletivo de
resistência a um culto para Domingos de Gusmão, e que as ações deste grupo tenham
colaborado para aquele período de doze anos de espera. Levando-se em consideração
também as súbitas transformações materiais vivenciadas por aquela comunidade religiosa
após a morte do seu primeiro mestre geral, não seria nada estranho que um grupo de frades
daquele convento se posicionasse contra estes acontecimentos, justamente como forma de
demarcar a sua opção pela pobreza coletiva e pela vida mendicante. A implantação dos
cultos de Francisco de Assis e Antônio de Pádua na Ordem dos Frades Menores, ambos
anteriores ao de Domingos na Ordem dos Pregadores, era um exemplo próximo o
suficiente para subsidiar tal reflexão.
176

A própria atuação política e religiosa do frade João de Vicenza em Bolonha, no ano


de 1233, é mais um argumento que fortalece esta interpretação. Pois este religioso
dominicano que ganhou fama por suas pregações, pelas reformas de estatutos comunais e
pelas arbitragens de conflitos, tudo realizado paralelamente ao movimento do Alleluia, não
era um membro da comunidade de San Nicolò. No entanto, naquele mesmo ano do
processo de canonização de Domingos, foi ele o responsável por realizar uma campanha de
pregação que difundia entre o seu público a fama de santidade do fundador da Ordem dos
Pregadores.
O testemunho do prior provincial da Lombardia no âmbito do inquérito realizado
em Bolonha ajuda a esclarecer esta questão. Frade Estevão aponta João de Vicenza como o
pregador que anunciou ao povo a vida, o comportamento e a santidade de Domingos de
Gusmão. Além de assumir a responsabilidade pela translatio corporis realizada em maio
de 1233, já que afirma ter ele mesmo tratado diretamente com alguns frades dominicanos
para que tal evento ocorresse.406 Assim sendo é importante destacar que tanto a campanha
de pregação para alavancar uma devoção popular para a santidade do fundador
dominicano, quanto a realização da cerimônia religiosa que estabeleceu um novo local para
a oficialização de um culto, seriam iniciativas que partiram de frades que não estavam
vinculados ao convento de San Nicolò.
Quem mobilizou estes frades para agirem em Bolonha? Que instituição ou força os
tinha direcionado para atuar na causa de canonização de Domingos? As reflexões feitas no
capítulo anterior da tese não deixam dúvidas que ambos os religiosos dominicanos,
naquele mesmo período, atuavam em diferentes cidades italianas por força de mandato
papal. Portanto, a lógica da análise aqui realizada leva a concluir que estavam agindo da
mesma forma nas iniciativas favoráveis à canonização do fundador dominicano: agiam
como representantes do papado.
Em uma epístola data de 13 de julho de 1233, uma espécie de carta circular, o papa
Gregório IX concedeu indulgência de vinte dias para todos os cristãos, confessores e

406
Acta Canonizationis S. Dominici, op. pit., p. 158: “Interrogatus quare hoc credit, respondit quod ab illo
tempore, postquam frater Iohannes Vincentinus cepit predicare revelationem sibi de fratre Dominico
divinitus factam et vitam et conversationem et ipsius sanctitatem populo nunciare, et ipse testis cum aliquibus
fratribus cepit tractare de translatione corporis predicti fratris Dominici, ex tunc manifeste refulsit et apparuit
amplior gratia tam in fratribus, qui eius vitam et sanctitatem predicabant quam etiam in populis qui eos
audiebant”.
177

penitentes, que assistissem as pregações do frade João de Vicenza.407 A própria datação do


documento, editado no mesmo dia da abertura do processo de canonização de Domingos
de Gusmão,408 é um indício evidente da vinculação entre os dois atos pontifícios. De um
lado, abria-se formalmente o processo de investigação que deveria levantar os fundamentos
para a inscrição do fundador dominicano no catálogo de santos da Igreja romana, e de
outro, atuava-se para garantir um apoio popular para aquela causa de santidade.
Se o papa Gregório IX estava diretamente ligado à atuação política e religiosa
destes dois frades dominicanos no ano de 1233, não se pode afirmar o mesmo em relação a
Jordão da Saxônia. A argumentação do próximo capítulo aponta que Jordão tinha
problemas sérios com a atuação de Estevão dentro da Ordem dos Pregadores, pois o prior
provincial da Lombardia estaria questionando decisões e ações realizadas pelo mestre geral
da ordem.409 Já no caso de João de Vicenza, seu nome não foi sequer mencionado nos
escritos jordanianos.
Levando-se em consideração os atos do pontífice romano e a fama atribuída àquele
pregador, não se poderia dizer que foi por esquecimento ou por desconhecimento. O
mestre geral dominicano era muito bem informado sobre a movimentação dos seus frades e
sobre tudo que ocorria na sede de Bolonha.410 A ausência de menção ao frade João,
principalmente nos textos que tratam mais diretamente da translatio corporis de Domingos
e das iniciativas para o seu culto, apontam o desconforto de Jordão da Saxônia em relação
às suas atividades. Se não era possível interferir diretamente contra as ações de um
representante do papa, ao menos estava ao seu alcance condenar aqueles atos ao
esquecimento.

407
AUVRAY, Reg. nº 1461, p. 813: “Universis Christi fidelibus vere paenitentibus et confessis qui ad
sollemnem praedicationem fratris Johannis Vicentini, de ordine fratrum Praedicatorum, moram in civitate,
villa vel castro trahentis, tribus diebus in hebdomada, vel ad singulas praedicationes sollemnes quas fecerit
per diversa loca se transferens, accesserint, indulgentiam viginti dierum concedit”.
408
Cf., infra, p. 152 [Nota 349].
409
Cf., infra, p. 196 [Notas 449 e 450].
410
Uma consulta às cartas trocadas por ele com a religiosa Diana de Andalò é suficiente para demonstrar isto.
Cf.: Beati Iordani de Saxonia Epistolae, op. cit.
178

CAPÍTULO IV

O papado e os dominicanos na canonização de Domingos: as iniciativas e


as etapas de construção da santidade

Na perspectiva de análise adotada nesta tese de doutorado, a canonização de


Domingos de Gusmão, ocorrida em 03 de julho de 1234, foi apenas a última etapa de um
empreendimento histórico caracterizado por uma série de iniciativas realizadas por
instituições e grupos diretamente interessados no resultado final. Nesse sentido, a santidade
é aqui abordada como uma formação post mortem, que pouco dependia das escolhas
praticadas em vida por aquele que foi reconhecido como santo pela Igreja romana.
Esta construção da santidade de Domingos seria o resultado de um processo não
linear, marcado por relações de poder evidenciadas nos acontecimentos que se deram após
a sua morte, principalmente aqueles ocorridos nos anos de 1233 e 1234. Daí a necessidade
de abordar tais eventos em suas singularidades, o que não impede o avançar posterior para
uma visão de conjunto, que permita problematizar o resultado final e suas etapas.
No presente capítulo o foco da análise se volta mais precisamente para as ações
conjuntas do papado e dos dominicanos. Tratam-se de iniciativas que permitiram formular
as bases para o estabelecimento de um culto na cidade de Bolonha e para atender os
requisitos básicos para a abertura de um processo de canonização em favor daquele que foi
identificado como o fundador da Ordem dos Frades Pregadores.
A primeira etapa explorada é a disseminação de uma fama de santidade para
Domingos de Gusmão, ocorrida no âmbito da magna devotio em Bolonha, um movimento
religioso que percorreu diversas cidades italianas e que teria atraído diferentes expressões
populares de espiritualidade. Tal movimento despertou a atenção e o interesse do papado,
que se fez presente por meio da atuação dos frades mendicantes. Em Bolonha, as pregações
e as demais atividades desenvolvidas pelo dominicano João de Vicenza foram
representativas dos interesses pontifícios e do projeto coletivo para alavancar a causa de
canonização do antigo mestre geral dos dominicanos.
Também foi naquela cidade que se deu a translatio corporis de Domingos, evento
179

ocorrido no convento de San Nicolò delle Vigne, que reuniu autoridades e representantes
das instituições locais diretamente envolvidas naquela causa dominicana. Foi mais uma
etapa de construção da santidade do antigo líder dos Frades Pregadores, pois permitiu o
estabelecimento de um novo local de culto, funcionando também como uma modalidade de
reconhecimento local da santidade.
Por fim, foi abordado o inquérito pontifício realizado na mesma cidade, como parte
do processo de canonização que foi aberto para o primeiro mestre geral dos dominicanos.
Uma etapa fundamental para o reconhecimento oficial da santidade de Domingos pela
Igreja romana, pois permitiu produzir os requisitos básicos que eram considerados, naquele
contexto histórico, como sinais públicos e evidências de uma santidade a ser reconhecida
formalmente pela cúria.
Em todas aquelas etapas o papado e os dominicanos estiveram diretamente
envolvidos nas iniciativas tomadas para sustentar uma causa de canonização para
Domingos de Gusmão. Por isso a escolha por focar prioritariamente a articulação entre
estas duas instituições naquele projeto/empreendimento coletivo de construção da
santidade, considerando-se também que o capítulo anterior explorou a participação das
instituições bolonhesas neste processo.

A magna devotio de 1233: o papado e os dominicanos no território da espiritualidade

As expressões coletivas de espiritualidade leiga não ocorriam de maneira


totalmente livre nas cidades italianas naquele contexto do século XIII sem despertar a
atenção e o controle da Igreja romana e das instituições (clericais e religiosas) com as quais
se relacionava. É o que se vê no caso emblemático das manifestações penitenciais e da
onda de fervor coletivo que ficou conhecida como magna devotio (ou movimento
Alleluia). Tal movimento teria surgido espontaneamente entre os cidadãos de Parma e
rapidamente se espalhado para outras cidades da Península Itálica na primavera de 1233,
sendo registrada sua passagem em Bolonha, Brescia, Mantova, Milão, Padova, Treviso,
Vicenza, Verona, entre outras.411

411
VAUCHEZ, André. Une campagne de pacification en Lombardie autour de 1233. L'action politique des
Ordres Mendiants d'après la réforme des statuts communaux et les accords de paix. Mélanges d'archéologie
et d'histoire, Roma, t. 78, n. 2, p. 503-549, 1966. p. 504 et seq.
180

Apesar da espontaneidade inicial da magna devotio e do amplo fervor popular que


teria gerado nas cidades italianas, o papado acompanhou de perto tais manifestações e não
demorou a direcionar representantes que pudessem captar e orientar aquela expressão de
religiosidade coletiva, direcionando-a para os propósitos e os projetos da Igreja romana. A
vinculação deste movimento com o combate às heresias em território italiano foi um dos
efeitos principais desta estratégia pontifícia. Nesse sentido, a perseguição sistemática aos
hereges foi sancionada como parte do movimento Alleluia, de forma que os seus líderes
procediam para inserir nos estatutos citadinos dispositivos contra as heresias, além de
lançarem acusações e realizarem prisões de cidadãos em diferentes regiões. O papado
parece ter projetado neste movimento uma estreita associação entre combate às heresias e
defesa da liberdade eclesiástica, como se uma coisa dependesse diretamente da outra.412
O envolvimento do papado e dos seus representantes na magna devotio tornou
possível ainda a organização de verdadeiras milícias cristãs que se colocavam a serviço da
Igreja romana. Este foi o caso da Militia Iesu Christi surgida na cidade de Parma no âmbito
do movimento Alleluia, quando grupos de leigos se mostraram dispostos a colaborar com a
luta travada pelas instituições eclesiásticas, apresentando-se como milites Christi. Não
demorou até que o pontífice Gregório IX percebesse o potencial daquela organização leiga,
de forma que ele atuou para proteger aquela milícia parmense e para encontrar o devido
espaço para a sua inserção no quadro das instituições cristãs.413
Se em um primeiro momento as procissões e os demais atos de fé da magna devotio
ocorreram com alguma liberdade, posteriormente passaram a ser liderados por frades e
pregadores mendicantes, que não perderam a oportunidade de direcionar aquele
movimento para objetivos que atendiam plena ou parcialmente os projetos do papado e das
próprias ordens mendicantes. Mas as ações mendicantes e/ou pontifícias não eram feitas
sempre na base da imposição ou da perseguição. Pois procuravam também se apropriar das
demandas de fé e de espiritualidade leiga, assim como das necessidades políticas e sociais
das populações citadinas, para depois direcionar os movimentos coletivos para objetivos
que não estavam colocados desde o início.

412
MERLO, Grado Giovanni. Contro gli eretici. La coercizione all’ortodossia prima dell’Inquisizione.
Bolonha: Il Mulino, 1996. p. 41 e 116; PAOLINI, Lorenzo. Papato, inquisizione, frati. In: CONVEGNO
INTERNAZIONALE “IL PAPATO DUECENTESCO E GLI ORDINI MENDICANTI”, 25, 1998, Assisi.
Atti... Spoleto: Centro italiano di studi sull’Alto Medioevo, 1998. p. 179-204. p. 190 e 191.
413
MERLO, op. cit., p. 37, 38, 45 e 46.
181

É o que se viu nas campanhas de pacificação lideradas pelos frades dominicanos e


franciscanos, e que se associaram ao movimento do Alleluia de 1233. A paz era, ao mesmo
tempo, algo almejado pelas coletividades naquele contexto histórico e princípio básico para
a atuação dos religiosos mendicantes, que viam na sua concretização o único meio de
alcançar a perfeição cristã. Por isso, não foi sem propósito que eles se dedicaram
intensamente naquele movimento para a realização de acordos de paz (entre diferentes
cidades e no interior das próprias cidades, atingidas por lutas de facções) e para a adoção
de medidas que a favorecessem (como a libertação de prisioneiros, o cancelamento de
dívidas, a reinserção social de pessoas banidas das comunas, etc.).414
Para além dos benefícios coletivos evidentes oriundos do estabelecimento da paz
nas comunas italianas, existiam, naquela ação coordenada dos mendicantes, indícios de um
programa político-religioso que estava em execução pelos frades dominicanos e
franciscanos. Tanto é assim que alguns dentre eles foram alçados a verdadeiras posições de
poder nas cidades, sendo permitido aos pregadores mendicantes reformar os estatutos
comunais, arbitrar conflitos diversos, estabelecer acordos diplomáticos entre cidades,
libertar cidadãos presos, e autorizar a perseguição e punição de grupos tidos como
heréticos. Para o exercício de tal poder eles contavam com o apoio das populações locais
(devidamente inseridas naqueles movimentos de fé e espiritualidade) e com a anuência dos
dirigentes comunais (que a eles se aliavam por interesses em comum, ou no mínimo
toleravam a sua ação por temor das reações populares).415
A atuação do frade dominicano João de Vicenza no âmbito da magna devotio,
percorrendo diferentes cidades italianas ao longo de 1233, é um exemplo que evidencia a
estratégia do papado naquele contexto histórico. Por onde este pregador mendicante passou
naquela época, ele tratou de inserir nos estatutos comunais a legislação pontifícia contra as
heresias, além de ter se empenhado pessoalmente para a aplicação da pena de morte aos
hereges, tal como ocorreu na cidade de Verona.416

414
BARONE, Giulia. Federico II di Svezia e gli Ordini Mendicanti. Mélanges de l'Ecole française de
Rome. Moyen-Age, Rome, tome 90, n. 2, p. 607-626, 1978. p. 615; MIATELLO, André Luis Pereira. O
pregador e a sociedade local: a luta pelo poder pastoral no seio das cidades da Baixa Idade Média ocidental
(séc. XIII-XIV). Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 7, n. 2, p. 112-131, julho/dezembro de 2014.
p. 117-118.
415
LE GOFF, Jacques. As ordens mendicantes. In: BERLIOZ, Jacques. Monges e Religiosos na Idade
Média. Lisboa: Terramar, 1994, p. 227-241. p. 236; VAUCHEZ, A. Une campagne... op. cit., p. 507, 508,
515 et seq.
416
VAUCHEZ, Une campagne... op. cit., p. 527 e 528.
182

O frade João chegou à cidade de Bolonha em abril de 1233. Em pouco tempo,


graças as suas pregações e as procissões que liderava, ele conquistou amplo apoio da
população citadina, que chegava a acompanhá-lo em seus deslocamentos dentro e fora da
cidade, como se fosse uma guarda pessoal. De sua parte, o pregador dominicano não
deixou de alimentar aquela admiração popular com suas ações, pois ao reformar os
estatutos comunais ele inseriu dispositivos que proibiam os nobres de se associarem e
retirou da legislação citadina alguns direitos que garantiam proteção aos credores, de forma
a possibilitar a libertação dos prisioneiros por dívida e o retorno daqueles que tinham sido
banidos da comuna.417
Tão súbito foi o sucesso e o apoio popular alcançado por este frade dominicano que
em 19 de abril de 1233, após uma reunião do conselho comunal, ele foi designado como
árbitro do conflito entre a comuna e o bispo de Bolonha. João de Vicenza emitiu uma
primeira sentença arbitral em 31 de maio daquele ano, mas que foi prontamente
abandonada e substituída por outra, que foi proclamada em 20 de junho. A primeira
sentença não agradou aos dirigentes comunais por ser considerada muito favorável ao
titular da diocese bolonhesa, já a segunda foi amplamente favorável à comuna, transferindo
para a sua jurisdição a maior parte dos territórios contestados junto ao episcopado.418
Durante meses João de Vicenza conciliou suas ações em Bolonha com as atividades
desenvolvidas em outras cidades italianas, sempre atuando em acordo com as diretrizes
pontifícias não só em relação aos hereges, mas também arbitrando acordos de paz entre
diferentes cidades (e no interior das cidades, entre diferentes grupos políticos) e
procedendo com as reformas dos estatutos comunais. O prestígio religioso e político que
ele alcançou naquela cidade foi tão grande que podia inclusive contar com o apoio do
podestà e do populus bolonhês em suas viagens e nas ações desenvolvidas em outras
comunas.419
Como parte das ações desenvolvidas em meio ao fervor do Alleluia em Bolonha, o
referido frade dominicano também se dedicou a fazer pregações sobre a vida e os prodígios
de Domingos de Gusmão, contribuindo decididamente para difundir entre a população

417
HESSEL, Alfred. Storia della città di Bolonha. Bolonha: Edizioni ALFA, 1975. p. 215; MILANI,
Giuliano. Prime note su disciplina e pratica del bando a Bolonha attorno alla metà del XIII secolo. Mélanges
de l'Ecole française de Rome. Moyen-Age, Roma, tome 109, n°2, p. 501-523, 1997. p. 518-519.
418
PAOLINI, Lorenzo. La Chiesa e la città (secoli XI-XIII). In: CAPITANI, Ovidio. Bolonha nel medioevo.
Bolonha: Bononia University Press, 2007. p. 653-759. p. 708 et seq.
419
VAUCHEZ, Une campagne... op. cit., p. 540 e 541.
183

daquela cidade uma fama de santidade para o primeiro mestre geral da Ordem dos
Pregadores. Estaria esta atividade prevista para ocorrer desde que ele se direcionou a
Bolonha? Ou foi uma missão surgida depois da sua chegada?



O testemunho do frade Estevão no âmbito do inquérito de Bolonha é bastante


esclarecedor quanto ao envolvimento dos dominicanos na magna devotio e quanto ao
programa religioso-político que eles colocavam em prática a partir das suas ações. Além de
apontar a atividade de pregação do frade João de Vicenza, o prior provincial da Ordem dos
dominicanos também destaca os “sucessos” alcançados pelos frades pregadores em suas
campanhas na Lombardia e nas Marcas.420
Primeiro ele ressalta o combate às heresias, sublinhando que uma multidão de
hereges tinha sido “queimada” nestas regiões da península italiana e que milhares de
pessoas que antes estavam em dúvida sobre a sua fé, graças à ação dos frades dominicanos,
converteram-se definitivamente ao catolicismo romano.421 Nesse sentido, o testemunho de
frade Estevão evidencia aquele nexo entre a perseguição aos hereges e o envolvimento dos
dominicanos no movimento Alleluia, como representantes das diretrizes e dos projetos do
papado.
Depois o prior provincial da Lombardia relatou como os frades dominicanos
adquiriram prestígio nas cidades, o que conferia a eles poder para alterar os estatutos
comunais, para arbitrar os conflitos citadinos (colocar fim às guerras, realizar tratados de
paz e possibilitar a concórdia) e para atuar nos assuntos relacionados à prática da usura,
entre outras coisas que eles realizavam.422 Praticamente um resumo das ações que a

420
WALZ, Angelus. Acta Canonizationis S. Dominici. In: Monumenta Ordinis Fratrum Praedicatorum
Historica, tomus XVI. Romae: Institutum Historicum FF. Praedicatorum, 1935, pp. 89-194. p. 158 e 159.
Deste ponto em diante a referência ao processo de canonização de Domingos na edição de Angelus Walz será
feita apenas como Acta Canonizationis S. Dominici, seguida da identificação da página e da transcrição
correspondente (entre aspas), quando for o caso.
421
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 158: “[...] sicut patet per effectum in civitatibus Lombardie,
in quibus maxima multitudo hereticorum est combusta, et plusquam centum millia hominum, qui nesciebant
ultrum ecclesie Romane na hereticis deberent adherere, ad catholicam fidem Romane ecclesie per
predicationes fratrum predicatorum ex corde sunt conversi. Et hoc scit quia illi conversi hereticos, quos
primo defendebant modo persecuuntur et abhominantur”.
422
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 158-159: “[...] Et fere omnes civitates Lombardie et Marchie
facta sua et statuta ordinanda et mutanda ad voluntatem fratrum tradunt in manibus eorum, ut radant, addant,
184

historiografia consultada atribui aos mendicantes no âmbito da magna devotio, como


executores de um programa político-religioso que foi desenhado em Roma.
A atuação política e religiosa de João de Vicenza também foi conservada nos
registros do papa Gregório IX. Em 28 de abril de 1233, o pontífice romano escreveu uma
epístola-mandato para aquele frade dominicano, pedindo que ele assumisse uma legação
papal para atuar como árbitro dos conflitos envolvendo as cidades de Firenze e Siena. 423 No
dia seguinte (29 de abril), o referido papa escreveu epístolas que foram enviadas ao
podestà e ao populus de Bolonha, solicitando que eles não impedissem a saída daquele
pregador, pois ele estava sendo direcionado pelo papa para atuar numa causa de paz.424
Tais epístolas papais foram redigidas e enviadas poucos dias após a chegada de
João de Vicenza em Bolonha e da sua designação para atuar como árbitro do conflito entre
a comuna e o bispo local. De forma que a sua saída e o seu retorno para a cidade ocorreram
naquele período que ele emitiu duas sentenças arbitrais diferentes, uma primeira favorável
ao bispo, e a segunda amplamente benéfica à comuna. Teria ele recebido alguma
orientação do pontífice para alterar a sua primeira sentença arbitral? Se os documentos
aqui consultados não permitem cravar uma resposta, ao menos não deixam dúvidas de que
este frade dominicano atuou, no mínimo desde abril de 1233, como legado da Sede
Apostólica, desempenhando frequentemente a função de árbitro papal em causas de guerra
e de conflitos.
Em junho daquele mesmo ano, Gregório IX escreveu uma sequência de epístolas
que reforçavam os poderes que foram atribuídos ao frade João de Vicenza e que
renovavam as missões que lhe foram direcionadas. Em 27 de junho de 1233, o papa
escreveu um mandato direcionado aos arcebispos, bispos e demais prelados eclesiásticos,
ordenando que estes sacerdotes ratificassem as sentenças arbitrais proferidas pelo frade

minuant et mutent, secundum quod eis visum fuerit expedire. Et hoc etiam faciunt de guerris extirpandis et
pacibus faciendes et componendis inter eos. Et de usuris et male ablatis reddendis et confessionibus audientis
et multis aliis bonis, que longum esset enarrare”.
423
AUVRAY, Lucien. Les Registres de Gregoire IX. Recueil de bulles de ces pape d’après les manuscrits
originaux du Vatican. Paris : Librairie Thorin et Fils, 1896. Reg. nº 1270, p. 714: “Fratrem Johannem, de
ordine Praedicatorum, Bononiae commorantem, rogat at legationem assumat pro pace facienda inter
Florentines et Senenses”. Deste ponto em diante a referência aos Registros do papa Gregório IX na edição de
Lucien Auvray será feita apenas como AUVRAY, seguida pela identificação do número do registro e da
página em que se encontra, além da transcrição correspondente (entre aspas) quando for o caso.
424
AUVRAY, Reg. nº 1268, p. 714: “Potestatem et populum Bononienses rogat et hortatur quatenus, si frater
Johannes, de ordine Praedicatorum, Senensem et Fiorentinam civitates, diabolica tentatione in tumultum
versas, personaliter visitare decreverit ad occurrendum tantae cladi, nullus cum impediat”.
185

dominicano, atuando para forçarem as pessoas condenadas por ele a cumprirem a prisão,
ou a aceitarem as sentenças de excomunhão e de interdito.425
Em 28 de junho de 1233, o pontífice romano enviou novo mandato aos arcebispos,
bispos e demais prelados eclesiásticos, passando poderes para que João de Vicenza
pudesse libertar da prisão qualquer pessoa a quem ele concedesse indulto espiritual, além
de ordenar que os referidos prelados redigissem sentença de excomunhão para qualquer
pessoa que fosse presa pela vontade do pregador dominicano.426
Neste mesmo dia o papa Gregório IX direcionou uma epístola-mandato para João
de Vicenza, comandando que ele fosse pessoalmente à região da Toscana e que lá
procedesse da mesma forma como atuara em Firenze e Siena, ou seja, que providenciasse a
prisão e a tribulação de todos os que estivessem causando confusão naquela área.427
As epístolas papais de junho de 1233 apontam a mobilização do papado em relação
aos conflitos das cidades centro-setentrionais da Península Itálica e a utilização de João de
Vicenza como legado pontifício. Tais documentos registram que o referido papa concedeu
ao frade dominicano o poder de prender e de soltar quem ele quisesse, além de proferir
sentenças de excomunhão e de interdito, que deveriam ser ratificadas pelos prelados locais.
Tudo isto ocorrendo no mês anterior à abertura do processo de canonização de Domingos
de Gusmão.
Em agosto deste mesmo ano continuaram as correspondências e as orientações do
pontífice romano para o pregador dominicano. No dia 05 deste mês Gregório IX escreveu
uma epístola orientando João de Vicenza sobre como alterar os estatutos comunais,
retirando os dispositivos que fossem contrários à libertas ecclesiae e excomungando os
responsáveis pela sua inserção nas legislações citadinas. Ao contrário, o papa também
orientou o frade a ser benevolente com aqueles que, por meio do uso da força,

425
AUVRAY, Reg. nº 1435, p. 801: “Archiepiscopis, episcopis et aliis ecclesiarum praelatis ad quos litterae
istae pervenerint, mandat quatenus omnes qui fratrem Johannem [Vicentinum], ordinis Praedicatorum, ultra
suae voluntatis arbitrium praesumpserint detinere, per excommunicationis et interdicti sententias
compescant”.
426
AUVRAY, Reg. nº 1437, p. 802: “Universis praesentes litteras inspecturis mandat quatenus fratrem
Johannem (Vicentinum), ordinis Praedicatorum, quocumque illi suggesserit spiritus indultae sibi libertatis,
super eodem negotio permittant libere procedere; noverint ipsum papam archiepiscopis, episcopis et aliis
praelatis mandasse quatenus in omnes qui eumdem fratrem ultra suae voluntatis arbitrium praesumpserint
detinere, excommunicationis ferant sententiam”.
427
AUVRAY, Reg. nº 1436, p. 801: “Fratri Johanni [Vicentino], de ordine Praedicatorum, mandat quatenus,
tribulationes et suspiria captivorum attendens, qui de Florentina et Senensi civitatibus in augusto carcere
detinebantur, ad partes Tusciae veniens personaliter eorum miseriae provideat”.
186

introduziram sentenças promulgadas nas legislações citadinas. “Dois pesos e duas


medidas” seria uma expressão bastante adequada para esta orientação papal, que
beneficiava aquelas pessoas que estavam alinhadas às diretrizes de Roma, enquanto punia
aqueles que se posicionavam contra os projetos papais.428
Em 25 de agosto de 1233, o pontífice romano tornou a escrever ao mesmo frade
dominicano, desta vez orientando-o a confiar nos milaneses e nos bolonheses, e que
deveria conceder a eles o benefício da absolvição, assim como aos cidadãos de Viterbo.
Por fim, o papa relembra que João não deveria deixar de recolher nas cidades os subsídios
para a manutenção das atividades na Terra Santa.429 Essa orientação, presente na mesma
epístola em que o pontífice indica a absolvição para as cidades de Milão, Bolonha e
Viterbo, parece criar uma relação entre as duas coisas, como se o benefício da absolvição
fosse o caminho para a coleta de subsídios.
Se as epístolas do mês de agosto mantêm o padrão das anteriores, no sentido de o
papa passar orientações e renovar as missões do dominicano João de Vicenza, o mesmo
não pode ser dito da epístola enviada em setembro de 1233. No dia 22 deste mês Gregório
IX escreve uma carta ao frade pregador orientando-o a ser paciente e humilde com as
injúrias lançadas pelo adversário, e a proceder diligentemente em relação aos comandos do
bispo de Vicenza.430 Esta é a primeira correspondência papal que registrou alguma
resistência local às ações daquele legado papal e com referências diretas a um bispo que
estaria agindo neste sentido, associando-se aos adversários do papa. Ao consultar o registro
pontifício nos meses seguintes, não se identificou nenhuma epístola em que o papa
estivesse atuando para resolver aquela questão, mobilizando seus aliados ou subordinados
em defesa daquele frade dominicano.
Em dezembro de 1233 aparece uma última epístola papal relacionada a João de

428
AUVRAY, Reg. nº 1487, p. 823: “Johanni Vicentino, ordinis Praedicatorum, concedit ut illis qui pro
statutis editis vel consuetudinibus introductis contra ecclesiasticam libertatem, excommunicationem
incurrerint, recepta ab eis cautione quod statuta et consuetudines hujusmodi aboleant, et eis etiam qui pro
injectione manuum violenta in canonem inciderint sententiae promulgatae, absolutionis benefîcium
impertiatur”.
429
AUVRAY, Reg. nº 1436, p. 801: “Fratri Johanni de Vicentia, ordinis Praedicatorum, committit ut
Milantio, militi Bononiensi, beneficium absolutionis impendat, injuncto eidem Milantio quod, civibus
Viterbiensibus super quibus in eis tenebatur, satisfacto, in primo generali passagio per Sedem Apostolicam
praefigendo, iter arripiat eundi in subsidium Terrae Sanctae, per biennium vel triennium moraturus ibidem”.
430
AUVRAY, Reg. nº 1515, p. 839: “Fratrem Johannem Vicentinum, de ordine fratrum Praedicatorum, ad
patienter ferendas adversariorum injurias invitat, eique significat se Vicentino episcopo mandasse ut de eis
quae commissa sint, diligenter inquirat, ut, ipsius relatione instructus, ipse papa contra eosdem adversarios
procedat”.
187

Vicenza. No dia 17 deste mês o pontífice romano escreveu uma epístola aos bispos de
Feltre e de Treviso e a um doutor em teologia de Milão, solicitando que eles atuassem em
uma missão de paz no conflito surgido entre o podestà e o populus de Padova. Afirma que
o referido frade dominicano já estava atuando como árbitro daquele confronto e que
produziria uma sentença arbitral, caso eles não chegassem a um acordo.431 Se o frade João
já estava à frente daquela arbitragem, por que convocar dois bispos e um teólogo para
somar forças e atuar em uma solução final? A autoridade conferida a João de Vicenza não
era mais suficiente?
Uma leitura comparada das duas últimas epístolas papais aponta para um
esvaziamento do poder exercido por aquele frade dominicano. Se nas cartas de junho e
agosto tudo parece correr bem com as missões direcionadas a ele, o mesmo não se observa
nas correspondências de setembro e de dezembro de 1233. O que teria ocorrido para esta
mudança de cenário? No ano de 1234, o registro pontifício não aponta mais nenhuma carta
para o frade dominicano ou sobre ele.
Apesar dos documentos papais não apresentarem uma resposta clara para esta
questão, tudo indica um desgaste da autoridade de João de Vicenza naqueles meses finais
de 1233. Primeiro porque o pontífice romano não parece ter apoiado decididamente o frade
dominicano quando ele enfrentou a resistência de um bispo, ao contrário, apenas o
convidou a ser paciente e a tirar lições daquela situação. Depois, quando Gregório IX
convocou dois bispos e um teólogo para interferirem em uma arbitragem que já estava sob
o comando daquele pregador. Por que Gregório IX não redigiu uma epístola-mandato
ordenando todos os seus subordinados a ratificarem o poder do frade João, tal como ele fez
em junho daquele ano?432
Não se sabe a razão, mas o fato é que o pontífice romano também contribuiu para o
esvaziamento do poder exercido por João de Vicenza naqueles meses finais de 1233.
Talvez o frade dominicano já tivesse cumprido com as tarefas principais que lhe foram

431
AUVRAY, Reg. nº 1620, p. 894: “Felitrensi (= Feltrensi) et Tervisino episcopis, et Alberico de Opreno,
doctori theologiae, Mediolanensis dioecesis, mandat quatenus, — cum inter potestatem et populum
Paduanos, quosdam homines Coneglanenses ac nobiles viros B. et W. de Camino, Cenetensis dioecesis, ex
parte una, et cives Tervisinos ac nobiles viros E. et A. de Romania, Tervisinae dioecesis, ex altera, super
pluribus articulis quaestio verteretur, et frater Johannes, de ordine Praedicatorum, in quem fuerat
compromissum, tulisset arbitrium in quo praedicti Paduani et pars eorum reputabant se esse gravatos, — ad
pacem interponant vices suas, et, si forte provenire non potuerit, quod super hoc invenerint ipsi papae
rescribant”.
432
Cf., infra, p. 184 e 185 [Notas 425 e 426].
188

direcionadas, talvez as resistências que ele passou a enfrentar já não fizessem dele um
representante a altura das demandas do papado. É como se todo aquele prestígio e poder
adquirido no âmbito da magna devotio, movimento do qual ele foi um dos principais
líderes religiosos, tivessem se esvaído de um momento para o outro. Vale ressaltar que
neste período final de 1233 já tinham ocorrido a translatio corporis de Domingos e o
inquérito na cidade de Bolonha, que estaria então na fase de avaliação da cúria romana.
Teria o frade João perdido a sua serventia?

A translatio corporis de Domingos: os preparativos locais e as relações de poder

A exumação de um corpo sepultado em um local e a sua transferência para outro


sepulcro, ocorrendo paralelamente a uma cerimônia religiosa conduzida por um sacerdote e
assistida por um público diverso, seria, grosso modo, uma definição atual para o
procedimento intitulado de translatio corporis, que foi muito utilizado na Idade Média
com o intuito de marcar o estabelecimento de um culto de santidade. A trasladação era,
geralmente, um acontecimento que alterava o cotidiano de uma cidade ou povoado, pela
quantidade de pessoas mobilizadas em sua execução, bem como pela presença de
autoridades e de representantes de diferentes instituições, e da população local a
acompanhar os procedimentos.
O tratamento inadequado ao corpo de um santo, seja pela falta de conservação de
seu sepulcro, ou pela negligência de uma veneração religiosa não continuada, foi
frequentemente utilizado, no contexto do Ocidente medieval, como justificativa para a
realização de uma translatio corporis e até mesmo para o roubo de relíquias.433 Seria esse o
caso da trasladação do corpo de Domingos de Gusmão? Estaria o populus de Bolonha
pressionando aquela comunidade dominicana, que assim procedeu com aquela translatio
corporis? Ou foi tudo planejado e executado pelos grupos e pelas instituições diretamente
interessadas nos efeitos posteriores ao evento?
Para começar a esclarecer esses pontos, cabe ressaltar a excepcionalidade da
trasladação do corpo de Domingos de Gusmão, pois na maioria dos casos verificados

433
VAUCHEZ, André. O Santo. In: LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Lisboa: Presença, 1989.
p. 211-230, p. 224: “[...] a tal ponto os fiéis estavam convencidos de que tinham esse direito e de que davam
provas de piedade, não abandonando à sua sorte as relíquias dos santos que, para eles, [não] eram objeto de
uma veneração adequada”.
189

naquele século a translatio corporis era um ato posterior ao anúncio da canonização pela
Igreja romana. No caso do antigo líder dos dominicanos a cerimônia de trasladação foi
realizada antes mesmo da abertura de um processo de canonização em Roma e com a
autorização expressa do pontífice Gregório IX.434 O que aponta inquestionavelmente o
interesse e o envolvimento do papado na realização daquele evento, ao ponto de autorizar
uma inversão dos procedimentos de reconhecimento oficial de uma santidade.
Pouco tempo antes da trasladação do corpo de Domingos, os trabalhos de
construção de uma nova igreja e de outras edificações do convento de San Nicolò delle
Vigne ainda estavam em andamento. Tanto é assim que os ossos do antigo mestre geral
dominicano foram colocados em uma caixa de madeira e fechados em um sarcófago de
mármore, que foi alocado no chão de uma capela lateral daquela igreja. Mas em 24 de
maio de 1233, no segundo dia do evento, a nova igreja já estava pronta, pelo menos no
acabamento rústico, para acolher as autoridades e o público que foram participar da
cerimônia de trasladação, restando apenas concluir as demais obras no convento, o que
ainda despertava preocupação naquela comunidade dominicana por conta de problemas
financeiros gerados por aquele programa de construções e de reformas.435
Os procedimentos da referida translatio corporis foram iniciados na noite do dia 23
de maio, no convento de San Nicolò, em Bolonha. Naquele dia foi feita a exumação do
corpo de Domingos de Gusmão. Tal ato ocorreu à noite por conta de uma decisão dos
frades dominicanos que, levando em consideração o tempo de sepultamento e a condição
daquele sepulcro, temiam que o estado de conservação do corpo de Domingos pudesse
causar alguma aversão ao público. Mas não puderam realizar este procedimento sem a
presença do podestà bolonhês e de um seleto grupo de cidadãos e de autoridades
eclesiásticas, pois o dirigente comunal era uma das pessoas que tinha a chave para abrir a
arca onde estava o corpo do primeiro mestre geral dos dominicanos e não permitiu que tal
ato ocorresse secretamente (apenas na presença dos frades).436

434
PACIOCCO, Roberto. Canonizzazioni e culto dei santi nella christianitas (1198-1302). Assisi: Ed.
Porziuncola, 2006. p. 72-73.
435
BORGHI, Beatrice. Una ciudad, un santo, una orden: Bolonia, Domingo de Caleruega y la Orden de los
Frailes Predicadores. Entre la vocación al estudio y la custodia de las sagradas prendas. Medievalismo,
Madrid, v. 25, p. 13-54, 2015. p. 23 e 24.
436
KERBRAT, Pierre. Corps des saints et contrôle civique à Bologne du XIIIe siècle au début du XVIe
siècle. In: COLLOQUE “LA RELIGION CIVIQUE À L’ÉPOQUE MÉDIÉVALE ET MODERNE
(CHRÉTIENTÉ ET ISLAM)”, 1993, Nanterre. Actes... Rome: École Française de Rome, 1995. p. 165-185.
p. 169 e 170; MONTANARI, Elio. Litterae encyclicae annis 1233 et 1234 datae. Spoleto: Centro italiano
190

No dia 24 de maio de 1233 foi, então, realizada a cerimônia religiosa de trasladação


do corpo de Domingos de Gusmão no convento de San Nicolò, contando com a presença
de centenas de frades e de líderes da Ordem dos Pregadores (que tinham se encaminhado a
Bolonha também para participar do capítulo geral da Ordem), dos dirigentes comunais e do
populus bolonhês, além das autoridades eclesiásticas e demais prelados que foram
direcionados para aquela solenidade. Portanto, estavam devidamente representados naquela
ocasião o papado, a Ordem dos Pregadores, a comuna e o populus de Bolonha, a
arquidiocese de Ravenna e a diocese bolonhesa. O que dá alguma dimensão sobre os
grupos e as instituições diretamente envolvidas naquela cerimônia de translatio corporis
que oficializou o culto a santidade de Domingos em uma escala local.437
Por fim, outra excepcionalidade pode ainda ser apontada nos eventos ocorridos
naquele final de maio de 1233 no convento de San Nicolò. Oito dias após a realização da
translatio corporis o mestre geral da Ordem dos Pregadores, Jordão da Saxônia, reabriu o
novo sepulcro do antigo mestre e fez a exibição de seu crânio para os frades que não
puderam acompanhar a cerimônia do dia 24 de maio. Tal procedimento era proibido pelas
leis canônicas da Igreja romana e configurou uma duplicação do rito de trasladação de
Domingos.438
Este ato, por si só, levanta algumas dúvidas sobre a participação de Jordão da
Saxônia naqueles procedimentos realizados em maio de 1233. Porque ele teria se arriscado
a proceder contrariamente às normas canônicas? Uma leitura crítica dos documentos
relacionados àquele evento permite evidenciar relações de poder no âmbito da Ordem dos
Frades Pregadores e nas relações estabelecidas com o papa Gregório IX naquele contexto
histórico. Esse pode ser o caminho para avaliar a decisão tomada pelo mestre geral dos
dominicanos em meio às iniciativas para alavancar um processo de canonização para o
antigo líder daquela ordem religiosa.



di studi sull'Alto Medioevo, 1993. p. 18.


437
BORGHI, op. cit., p. 23 e 24; KERBRAT, op. cit., p. 169.
438
PACIOCCO, Roberto. Il Papato e i santi canonizzati degli Ordini mendicanti. Significati, osservazioni e
linee di ricerca (1198-1303). In: CONVEGNO INTERNAZIONALE “IL PAPATO DUECENTESCO E GLI
ORDINI MENDICANTI”, 25, 1998, Assisi. Atti... Spoleto: Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo,
1998. p. 265-341. p. 285.
191

A situação do sepulcro de Domingos de Gusmão no convento de San Nicolò, antes


de 1233, é um dos motivos apontados para a realização da translatio corporis ocorrida
naquele ano. Jordão da Saxônia, em sua carta encíclica de 1234, afirmou que aquela
comunidade religiosa estava passando por um período de reformas e de construções por
conta do seu crescimento, e que os antigos edifícios estavam sendo derrubados para que
novos fossem construídos. Em sua versão dos fatos, o mestre geral da Ordem deu a
entender que, como consequência destas obras, o túmulo de Domingos ficou descoberto e
exposto às intempéries climáticas. Jordão não deixou o fato passar em silêncio e fez mais
uma crítica aos frades de Bolonha: quem capaz de raciocinar permitiria que o antigo mestre
ficasse sepultado nestas condições?439
É mais uma situação controversa apontada por Jordão da Saxônia em seus escritos,
pois indica que os frades daquele convento não teriam dado um tratamento adequado ao
sepulcro do antigo mestre geral da Ordem. A versão reproduzida naquela carta encíclica
encontra algum respaldo no testemunho de Guillermo de Monteferrato, no âmbito do
inquérito realizado em Bolonha como parte do processo de canonização. Segundo ele, o
prior provincial da Lombardia (Estevão) e os frades do convento de San Nicolò não
queriam fazer a exumação do corpo de Domingos na frente de estranhos, porque temiam
que ele estivesse em avançado estado de decomposição, o que seria ocasionado pelo fato
do local da sepultura ter acumulado muita água de chuva.440 Ou seja, o sepulcro do antigo
mestre não estaria devidamente fechado, por isso estava exposto às intempéries climáticas.
Portanto, a precária condição do sepulcro de Domingos pode ter sido um dos
motivos para a realização daquela trasladação de maio de 1233. Algo que teria incomodado
o próprio pontífice Gregório IX, que anteriormente tinha tido um contato próximo com o
líder dos dominicanos e que, segundo Jordão da Saxônia, teria duramente repreendido os

439
JORDÃO DA SAXÔNIA. Litterae Encyclicae anno 1234. In: MONTANARI, Elio. Litterae Encyclicae
annis 1233 et 1234 datae. Spoleto: Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, 1993. p. 257: “Crescente
denique fratrum numero apud Bononiam necesse erat domos et ecclesiam dilatari. Novis succedentibus
vetera diruuntur et corpus Dei famuli sub divo remansit. Quis rationis capax dignum aestimaret, puritatis
speculum, castitatis vasculum, virginitatis sacrarium, sancti spiritus organum, sic humili tectum loculo
permanere, qui tota vita sua, ut eius ultima XII astantibus fratribus confessio declaravit, mortalis culpae
macula ipsum dulcem animae hospitem numquam a suae animae hospitio eiecit?”. Deste ponto em diante a
referência à carta encíclica de Jordão da Saxônia na edição de Elio Montanari será feita apenas como Litterae
Encyclicae anno 1234, seguida da identificação da página e da transcrição correspondente (entre aspas),
quando for o caso.
440
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 136: “Et dixit quod prior provincialis et fratres ecclesie sancti
Nicholai timebant ne fetor esset in sepultura ubi iacebat corpus, ideo quia locus erat valde depressus, et aque
multe pluviales defluxerant ad locum sepulture”.
192

frades de Bolonha por terem tratado a sepultura de Domingos com tanta negligência.441
Mas não se pode deixar de observar que o fato daquela sepultura ficar exposta da
forma mencionada era apenas uma consequência do avanço do programa de reformas e
construções que se realizava naquela comunidade dominicana desde 1221 e que, em 1228,
passou para a fase de construção de uma nova igreja. Esta nova etapa do empreendimento
permitiria justamente estabelecer um novo local para a sepultura de Domingos de Gusmão,
em uma igreja que foi construída e renomeada em homenagem ao seu culto, substituindo a
antiga igreja de San Nicolò delle Vigne.
Ao consultar documentos antigos do convento de San Nicolò, reunidos e editados
por Venturino Alce, é possível identificar a presença de dois diplomas diretamente
relacionados com as reformas e as construções que estavam em desenvolvimento naquela
comunidade dominicana. Um deles foi redigido por Guiffredo, cardeal de San Marco e
legado da Santa Sede, em setembro de 1228. Nele o referido legado pontifício concedeu
quarenta (40) dias de indulgência a todos aqueles que dessem esmolas para a construção da
igreja e do claustro de San Nicolò, além de absolver todos aqueles que estivessem em
débito com credores desconhecidos e que revertessem o valor devido em favor da referida
obra dominicana.442
No outro diploma, também datado de 1228, o arcebispo de Salzburg concedia ao
prior e aos frades do convento de San Nicolò a faculdade para absolver todos aqueles
cidadãos, de Bolonha e de Siena, que tivessem se envolvido na atividade de usura, desde
que eles revertessem a soma arrecadada com aquela atividade para a construção da igreja e

441
Litterae Encyclicae anno 1234, op. cit. p. 258: “Ille vero, ut erat vir magni zeli et fidei, durissime eos
corripuit, qui tanto patri debito honore neglexerant famulari”.
442
ALCE, Venturino. Documenti sul Convento di San Domenico in Bolonha dal 1221 al 1251. In: Archivum
Fratrum Praedicatorum, Volumen XLII. Roma: Istituto Storico Domenicano di S. Sabina, 1972. p. 5-45. p.
16: “Guiffredus, miseratione divina tituli Sancti Marti presbiter cardinalis, Apostolice Sedis Legatus,
omnibus christifidelibus per Bononiensem diocesim constitutis, salutem in Domino. [...] Cum igitur ad
edificationem fabrice ecclesie et claustri Beati Nicolai ordinis fratrum Predicatorum Bononiensis nulle sint
penitus nisi quod caritative sibi erogatur a christifidelibus facultates, universitatem vestram rogandam
duximus attentius et hortandam et in remissionem vobis iniungimus peccatorum, quantinus locum ipsium
frequentius visitantes, pias ibidem elemosinas et grata caritatis subsidia erogetis, ut per subventionem
vestram tam pium opus ad finem laudabiliter perducatur, et vos orationum et beneficiorum que ibi iugiter
fiunt effecti participes per hec et alia bona que Domino inspirante feciritis, sempiternum mereamini premium
optinere. Nos enim ad subsidium huius operis pietatis ita ex iniuncto nobis officio duximus providentum, ut
quicumque detinens aliena ea dederit ad hoc opus, ab huiusmodi peccati mole sit penitus absolutus,
dummodo nesciat cui persone ea reddere teneatur”. Deste ponto em diante a referência aos documentos do
convento dominicano de Bolonha, na edição de Venturino Alce, será feita apenas como Documenti sul
Convento, seguida da identificação da página e da transcrição correspondente (entre aspas), quando for o
caso.
193

para as demais necessidades daquela comunidade dominicana.443 Porque estes dois prelados
estavam atuando para aportar recursos para os dominicanos de Bolonha? Que tipo de
ligação eles teriam com aquela comunidade?
Algumas coincidências chamam a atenção para estes dois casos. Ambos os
diplomas foram emitidos por integrantes da alta hierarquia eclesiástica (um cardeal e um
arcebispo), que não atuavam na cidade de Bolonha, mas eram legados da Sede Apostólica.
Ou seja, ambos os prelados, naquele período da emissão dos diplomas, atuavam como
representantes do papa Gregório IX, que tinha ascendido ao sólio pontifício acerca de um
ano, e que tinha atuado anteriormente também como legado papal (para a Lombardia),
quando manteve estreito contato com a cidade de Bolonha e com os dominicanos (desde a
época em que Domingos ainda estava vivo). Teria sido uma forma indireta encontrada pelo
papado para beneficiar aquela comunidade e contribuir com aquele programa de reformas?
Partindo dos documentos aqui explorados não é possível garantir que sim, nem que
não. Mas não seria nenhuma novidade naquele período uma ajuda proveniente do papa
Gregório IX, ainda mais sendo para aquele empreendimento da igreja, que seria uma nova
“moradia” para o sepulcro de Domingos de Gusmão e que se tornaria o centro de seu culto
em Bolonha. De qualquer forma, os diplomas anteriormente citados dão mais provas de
que aquela comunidade dominicana, no período anterior a translatio corporis de
Domingos, estava de fato empenhada em seu processo de ampliação imobiliária, fosse qual
fosse a razão daquele empreendimento.
Tomando como base a carta encíclica de Jordão aquelas construções seriam uma
consequência do próprio crescimento da comunidade de Bolonha,444 tornando necessário
ampliar os edifícios para melhor acolher os frades e os visitantes. Mas não seria este um
bom motivo para mobilizar os aliados e alavancar a causa de canonização de Domingos de
Gusmão? O estabelecimento oficial de um culto ao fundador naquela nova igreja não seria

443
Documenti sul Convento, op. cit., p. 17: “E(berardus), Dei gratia Salburgensis archiepiscopus Apostolice
Sedis legatus, dilectis in Christo fratribus priori et conventui fratrum Predicatorum domus Bononiensis,
salutem in auctore salutis. Cum vos et ordinem semper hactenus speciali dileximus vinculo karitatis, non
immerito petitionem nobis ex parte vestra porrectam duximus liberaliter addmitendam. Concedimus igitur
vobis potestatem ut vice et auctoritate nostra possitis absolvere omnes creditores sive Bononienses sive
Senenses qui a vobis aliquam pecuniam nomine mutui per parvitatem usurarum extorserunt, dummodo ipsi,
penitentia volontaria ducti, eandem pecuniam vel partem ipsius restituant ad fabricam ecclesie domus vestre
seu ad alias necessitates aut etiam utilitates domus eiusdem et ut eisdem de predicto secumdum discretionem
a Domino vobis datam iniungatis penitentiam competentem”.
444
Cf., infra, p. 191 [Nota 439].
194

uma forma de arcar com os gastos daqueles seguidos anos de ampliação imobiliária da
comunidade de San Nicolò?
Talvez aqueles frades de Bolonha que resistiam ao estabelecimento de uma
devoção ao fundador naquela comunidade dominicana, e que foram alvo das severas
críticas de Jordão da Saxônia,445 estivessem justamente observando a articulação entre estes
dois empreendimentos e se posicionando contrariamente ao seu avanço: as construções
imobiliárias ocorrendo paralelamente à oficialização de uma santidade para Domingos.
Mas se existia um grupo contrário ao estabelecimento de um culto para o fundador
dos dominicanos, foi mais forte o movimento em favor da canonização, o que acabou
ocorrendo em julho de 1234. E tudo indica que diversos dirigentes e frades da Ordem dos
Pregadores estiveram diretamente envolvidos nas iniciativas que foram tomadas no ano de
1233, como na trasladação ocorrida neste ano.
Segundo Jordão da Saxônia, diante daquela situação a que ficou exposto o sepulcro
de Domingos, alguns frades resolveram se organizar para viabilizar uma trasladação do seu
corpo para outro local, mas não quiseram fazer isso sem consultar o papa Gregório IX. O
que não deixa de causar uma surpresa no próprio Jordão, pois eles poderiam muito bem
proceder sem consultar o pontífice romano.446 Então, por que a consulta ao papa? O mais
provável é que a translatio corporis fosse mais uma iniciativa para sustentar uma causa de
canonização em Roma, daí a conversa com o titular da sede romana.
Mas em seu texto Jordão da Saxônia não identifica nenhum destes frades que
teriam ido a Roma conversar com o papa sobre aquele assunto, nem mesmo assume
qualquer responsabilidade naquela decisão. Ao contrário do mestre geral, o prior provincial
da Lombardia (frade Estevão), em seu testemunho no âmbito do inquérito de Bolonha,
declarou abertamente ter sido o responsável por aquele movimento dos frades bolonheses,
que ocorreu paralelamente às pregações de João de Vicenza sobre a vida, o comportamento
e os milagres de Domingos.447 Ou seja, enquanto um frade dominicano se dedicava a

445
Cf., infra, p. 191 [Nota 439].
446
Litterae Encyclicae anno 1234, op. cit., p. 257: “Ad cor igitur quidam e fratribus reversi conferebant intra
se, ut ad locum decentiorem transferretur, sed nec hoc absque Romani pontificis licentia fieri volebant. Vere
in multis perpenditur humilitatis virtutem exaltationem mereri. Poterant siquidem per se patrem sepelire
fratres et filii, sed dum in hoc maioris auctoritatem requirunt, cessit in melius, ut nom solum simplex sed et
canonica fieret translatio gloriosi”.
447
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 158: “Interrogatus quare hoc credit, respondit quod ab illo
tempore, postquam frater Iohannes Vincentinus cepit predicare revelationem sibi de fratre Dominico
divinitus factam et vitam et conversationem et ipsius sanctitatem populo nunciare, et ipse testis cum aliquibus
195

propagar uma fama de santidade para o antigo mestre geral da Ordem, outro grupo,
liderado pelo frade Estevão, tratou de dar andamento aos preparativos para a trasladação do
corpo no convento de San Nicolò, indo a Roma conversar diretamente com o papa
Gregório IX. Não parece que estas iniciativas fossem dissociadas uma da outra, mas sim
que eram parte de um planejamento para alavancar um culto na cidade de Bolonha.
Naquele contexto histórico ser prior provincial da Lombardia era o segundo posto
mais importante na hierarquia da Ordem dos Pregadores, ficando abaixo apenas do mestre
geral da Ordem. Pois se tratava de uma província italiana bastante valorizada também nos
movimentos do papado e do império, sendo assim um lugar estratégico para a organização
e para as missões dominicanas. Mas vale ressaltar que o frade Estevão, ocupante deste
cargo naquele período, não parecia fazer parte do círculo dominicano mais próximo de
Jordão da Saxônia. Ao contrário de ser um aliado, ele deveria mesmo ser um concorrente
de Jordão nas relações de poder vivenciadas naquela ordem religiosa.
Nas cartas escritas pelo referido mestre geral dos dominicanos aparecem alguns
indícios desta concorrência de poder. No verão de 1229, Jordão da Saxônia escreveu uma
epístola para a religiosa Diana de Andalò, tentando acalmá-la diante de uma decisão
tomada no capítulo geral da Ordem e que teria consequências diretas para as irmãs do
convento de Santa Inês (onde ela vivia), que estava submetido ao controle da Ordem dos
Pregadores. As palavras do mestre geral apontam o desespero daquela religiosa com a
possibilidade de que elas ficassem impedidas de receber novas freiras naquele convento, ao
que Jordão qualifica como uma preocupação descabida, garantindo que aquele dispositivo
capitular não teria sido feito para interferir na comunidade de Santa Inês.448
Mas, afinal de contas, se o dispositivo capitular não tinha mirado aquela

fratribus cepit tractare de translatione corporis predicti fratris Dominici”.


448
WALZ, Angelus. Beati Iordani de Saxonia Epistolae. In: Monumenta Ordinis Fratrum Praedicatorum
Historica, v. XXIII. Romae: Institutum Historicum Fratrum Praedicatorum, 1951. p. 54: “Quod pro
constitutione illa conturbatam te in tuis litteris intellexi, magis mihi indiscretio et timor superfluus videbatur.
Nam in eadem constitutione sorores ordinis nec ego nec definitores nunquam intelleximus comprehendi nec
verbum umquam de hoc vel intentio nostra fuit. Quod ego sine dubietate cognovi, qui omnibus capitulis et
definitionibus semper interfui et causas novi quarumlibet constitutionum, quas fecimus usque modo. Alia fuit
causa, quare illud statuimus, non propter sorores nostras quidem, sed propter personas extraneas mulierum,
quas fratres nostri in diversis provinciis, dum converti vellent, tondere, induere, vel ad professionem
continentiae recipere facile consueverunt. Propterea de isto articulo nec etiam alicui umquam moveas
mentionem, sed secure te habeas, quia in hac parte nihil vobis poterit deperire. Indiscrete autem facit
quicumque hoc dubium tibi movit, volens tibi timorem inducere, ubi non fuit timor”. Deste ponto em diante a
referência às cartas de Jordão da Saxônia, na edição de Angelus Walz, será feita apenas como Beati Iordani
de Saxonia Epistolae, seguida da identificação da página e da transcrição correspondente (entre aspas),
quando for o caso.
196

comunidade, por que o desespero de Diana? O que ou quem teria provocado a sua
preocupação e a correspondência enviada por ela para o mestre geral? Outra carta enviada
pelo dirigente da Ordem, desta vez para o prior provincial da Lombardia, ajuda a esclarecer
tais questões. Nela Jordão da Saxônia identifica o frade Estevão como a origem daquela
interpretação que causou desespero em Diana de Andalò, aproveitando a oportunidade para
esclarecer o seu subordinado sobre a real intenção daquele dispositivo capitular, que teria
sido votado por conta da realidade vivida em algumas comunidades da Teotônia.449
Além de instruir o prior provincial sobre aquele assunto, Jordão também direcionou
palavras duras para o seu comportamento, deixando claro que ao agir daquela forma, ele
estava questionando as atribuições e os poderes conferidos ao mestre geral da Ordem, algo
que não caberia a ele fazer. Nesta repreensão, o mestre geral chamou Estevão de inseguro e
o conclamou a ser mais firme em suas ideias e ações, ao invés de ficar constantemente
mudando de parecer sobre as questões da Ordem.450
Apesar da forte reação de Jordão da Saxônia, aquela situação que causou
preocupação e desespero na religiosa Diana de Andalò voltou a ocorrer em 1234. Em uma

449
Beati Iordani de Saxonia Epistolae, op. cit., p. 55-56: “Quia ad sonitum folii vestram ad praesens
conscientiam intueor expavisse, dum constitutionem illam, qua mulieres tonderi, indui vel ad professionem
recipi fratribus prohibetur, in praeiudicium sororum Sanctae Agnetis creditis esse factam, credentes
quorumdam spiritui, qui in hac parte ex Deo non sunt, et vobismetipsis suscitantes inutilem quaestionem.
Nec enim unquam in aliquorum definitorum conscientiam hoc ascendit, nisi propter eos dumtaxat fratres, qui
in aliquibus provinciis velut in Teutonia et etiam alias, dum in praedicatione exirent, meretrices aut
iuvenculas virgines sive converti volentes ad paenitentiam, sive ad votum se continentiae offerentes, facile
tondere, induere vel ad professionem recipere consueverunt. Ego enim, cum facta et institutiones et
intentiones instituentium omnium capitulorum plene cognoverim, scio, quod, cum praedicta institutio facta
fuit, nec verbum nec intentio de sororibus ordinis ulla fuit. Id enim esset eas a nobis quasi penitus
sequestrare”.
450
Beati Iordani de Saxonia Epistolae, op. cit., p. 56: “Esto tamen, quod tale quid instituere volebamus.
Numquid potuimus? Minime. Nam in papae praeiudicium fecissemus, cuius praecepto eis sumus tamquam et
aliis fratribus ordinis obligati. De hoc igitur nullum iam vobis ambiguum oriatur, quia non expedit, de hoc
mentionem apud alios faciendo in dubium istud trahi, quod possit secure et absque ulla ambiguitate teneri. In
aliis vero, si alicui forte videbitur, quod in iis, quae ordini attinerent, dispensare non valeamus, idem mihi
sentire videtur, ac si ordinis mihi commissum magisterium non haberem. Nihil siquidem tam grave in
constitutionibus continetur cuius mihi dispensatio credita non exsistat pro necessitate personarum, loci ac
temporis, prout mihi videbitur, tribus illis articulis dumtaxat exceptis, qui in praeterito Parisiensi capitulo
fuerant adeo firmiter stabiliti, ut nec revocari possint nec dispensationem admittere, quos etiam volebamus
tunc vobis per curiam confirmari. Cetera universa meae dispensationi commissa non dubito, velut est de
equitando, de portanda in via pecunia et ceteris similibus aut dissimilibus, sive grandia sive parva fuerint.
Alias enim quanam conscientia praesumere id auderem, quod minime accepissem? Nihil adhuc in hac parte
Dei gratia conscius mihi sum, quin in omnibus securissime dispensare potuerim, in quibus hactenus
dispensavi. Ea propter, carissime, in hoc conscientiae omnem meticulositatem abicite, immo de cetero tanto
solidiores addiscere nunc potestis, quod securum non est pro varietate semper verborum quorumlibet, quae
audivimus toties conscientiam variari. Sorores etiam Sanctae Agnetis ad omnimodam de suo metu
securitatem reducite. Sed in pace in nomine Domini perseverent, nam in hoc articulo nihil eis poterit
deperire”.
197

epístola enviada em julho deste ano, o mestre geral dos Pregadores explicou a Diana que
não pôde comparecer ao capítulo geral da Ordem, na ocasião em que os definidores
tomaram uma decisão prejudicial àquela comunidade de Santa Inês, mas trata de acalmá-la
dizendo que ele mesmo já tinha anulado aquela decisão capitular.451 Na mesma carta o
mestre geral faz uma referência ao prior provincial, dizendo que já tinha escrito para ele,
solicitando que não deixasse de escutar o prior Nicolau, alguém que Jordão considerava
muito importante para a Ordem e que estava a par de um problema envolvendo uma
noviça.452 No documento, o mestre geral deu a entender que Estevão estava atuando
naquele assunto.
Embora Jordão não tenha relacionado diretamente o frade Estevão com esta nova
situação capitular, o fato é que o mestre geral não pôde comparecer àquela reunião de 1234
e que, justamente em sua ausência, voltaram a avançar contra a comunidade de Santa Inês,
que ele prontamente tratou de proteger. Tudo indica que a relação estabelecida com Diana
de Andalò fez daquele mestre geral um atento protetor do convento de Santa Inês, até
como retribuição a tudo que essa religiosa tinha feito pela comunidade dominicana de San
Nicolò. Já a repetição do problema, que tinha ocorrido em 1229, mostra que Jordão da
Saxônia continuava tendo adversários no âmbito da Ordem dos Pregadores, no mesmo ano
e mês que Domingos de Gusmão foi canonizado.
Estevão, que continuava como prior provincial da Lombardia no ano de 1234, era
certamente um dos líderes que poderia ter agido naquele capítulo geral, contrariamente aos
interesses de Jordão. Vale lembrar que aquele frade dominicano atuou também como
legado papal no ano de 1233, procedendo com reformas em mosteiros cistercienses a
pedido do papa Gregório IX,453 no mesmo período em que foi realizada a translatio
corporis de Domingos de Gusmão em Bolonha. De forma que se pode afirmar que o prior

451
Beati Iordani de Saxonia Epistolae, op. cit., p. 53: “Postquam a Lombardia recessi et iam usque
Tridentum ad capitulum iturus processeram, ibidem coepi gravius infirmari, et sic impeditus sum usque ad
capitulum generale. Unde etiam, quoniam ibidem praesen non aderam, definitores, qui de statu domus
Sanctae Agnetis parum cognoverant, quiddam ordinaverunt vobis non utile. Quod, dum ego postmodum
intellexi videns, quod non bene factum esset, penitus retractavi”.
452
Beati Iordani de Saxonia Epistolae, op. cit., p. 53-54: “Ceterum de praesenti statu meo hoc noveris, quod
multum sum iterum emendatus in corpore, et celebro et praedico tam clero quam populo, licet pristinam
fortitudinem adhuc recuperare non possim. Quod priori provinciali scripsi nuper, ostendens in litteris gratum
me habere, si fratrem Nicolaum priorem exaudiret pro puella illa, tibi non sit grave, quia ipse frater Nicolaus
satis anxiabatur et multum mihi institit et nimis grave mihi videbatur, si non exaudiretur talis homo, quem ita
diligimus et qui tam necessarius est ordini nostro. Unde adhuc moneo te, ut in bona voluntate istud accipias”.
453
Cf., infra, p. 117 [Nota 267].
198

provincial da Lombardia não era apenas um integrante da Ordem dos Pregadores naquele
evento da trasladação, era também um representante do pontífice romano.
A principal autoridade da Igreja romana naquele contexto histórico aparece nos
documentos explorados nesta tese de doutorado de forma vinculada à trasladação do corpo
de Domingos de Gusmão. Segundo Jordão da Saxônia, os frades de Bolonha se
organizaram e foram consultar Gregório IX antes da realização da translatio corporis, e o
papa mobilizou o arcebispo de Ravenna (e seus bispos sufragâneos) para conduzir aquela
solenidade em seu nome.454
De acordo com o testemunho do frade Estevão, ele mesmo foi o responsável por
esta mobilização inicial dos frades de San Nicolò.455 Já os registros pontifícios do ano de
1233 apontam para a atuação deste prior provincial da Lombardia como legado papal nos
meses de abril e maio daquele ano,456 ou seja, na véspera da realização daquele evento no
convento dominicano. A partir do cruzamento destas informações é possível apontar o
papado como a força que movimentou as instituições e as pessoas para a realização
daquela cerimônia solene e religiosa que estabeleceu oficialmente um local de devoção
para o antigo líder dos Frades Pregadores.
E quanto a Jordão da Saxônia, qual seria a sua participação no referido evento? A
exibição da cabeça de Domingos de Gusmão diante de autoridades diversas e de centenas
de frades dominicanos, oito dias após a realização daquela translatio corporis, coloca o
mestre geral da Ordem dos Frades Pregadores em uma posição de destaque naquele evento.
Tal fato foi inclusive relatado nos testemunhos dos frades Ventura457 e Bonviso,458 no
âmbito do inquérito realizado na cidade de Bolonha como parte do processo de
canonização do primeiro mestre da Ordem.
Ao comparar e cruzar as informações presentes nos documentos explorados nesta

454
Cf., infra, p. 148 [Nota 336].
455
Cf., infra, p. 176 [Nota 406].
456
Cf., infra, p. 117 [Nota 267].
457
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 131-132: “Idem sepulcrum quod in octava die apertum fuit,
presente potestate Bononiensi et multis aliis civibus et magistro Iordane et priore provincial et multis aliis
prioribus et fratribus ordinis presentibus et tunc magistro Iordane tenente in manibus suis caput dicti fratris
beati Dominici quase trecenti fratres de ordine predicatorum et ultra osculati fuerunt caput”.
458
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 141: “Idem dixit, quod post translationem corporis beati
fratris Dominici de priori loco in quo iacebat, ad locum in quo nunc est, a magistro ordinis ostensa fuerunt
ossa dicti magistri ordinis fratribus, qui non interfuerant translationi, quia multum illa desiderabant videre. Et
ipse testis fuit tum presens, quando dicta ossa ostensa fuerunt presente potestate Bononiensi, et allis
quibusdam civibus, et priore provinciali, et aliis omnibus fratribus”.
199

tese, Jordão da Saxônia não aparece como sendo o responsável por idealizar aquele evento,
ou coordenar as pessoas diretamente envolvidas na sua preparação. Ele mesmo em seus
escritos não assume nenhuma responsabilidade sobre a realização daquela translatio
corporis. Levando em consideração a personalidade traçada nas cartas enviadas ao longo
do período em que esteve à frente da Ordem dos Pregadores e a tendência a reafirmar a sua
própria autoridade nestas correspondências, tal como foi feito nas epístolas direcionadas a
Diana de Andalò459 e a ao prior provincial Estevão,460 seria difícil acreditar que ele não
assumiria tal responsabilidade por uma questão de humildade. O seu protagonismo na
reabertura do sepulcro de Domingos e na exibição do seu crânio como uma relíquia de
santidade também reforça esta interpretação.
Portanto, tomando como base o cruzamento de informações e a análise aqui
realizada, é possível afirmar que Jordão da Saxônia não foi o idealizador da translatio
corporis realizada em maio de 1233, tampouco foi ele a força que mobilizou tantas
autoridades e pessoas a tomarem iniciativas favoráveis àquele evento religioso. Mas não se
pode dizer que ele tenha assistido a tudo passivamente, que não tenha tomado nenhuma
iniciativa. A posição de liderança que ele exerceu naquela reabertura do sepulcro e na
exibição da relíquia de Domingos a um público diverso, demonstra que o mestre geral dos
Frades Pregadores não queria ser colocado de lado naquele projeto/empreendimento
coletivo de santidade. Assim sendo, tudo indica que ele queria também aproveitar aquela
ocasião para reafirmar a sua autoridade à frente da Ordem Dominicana, por isso lançou
mão daquele procedimento canonicamente proibido.

O inquérito em Bolonha: as práticas e as formas jurídicas como exercício de poder

No contexto histórico do século XIII, os processos de canonização geralmente se


iniciavam com uma resposta do pontífice romano a demandas externas, que eram
manifestadas por meio de cartas e que postulavam a abertura de um inquérito.461 Tais cartas
postulatórias continham, entre outras informações, descrições de milagres supostamente
realizados pelo candidato, o que, por si só, não era considerado pela cúria romana uma

459
Cf., infra, p. 195 [Nota 448].
460
Cf., infra, p. 196 [Notas 449 e 450].
461
TEIXEIRA, Igor Salomão. Os processos de canonização como fontes para a História Social. Revista
Signum, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 131-150, 2013. p. 145.
200

evidência suficiente para decretar a canonização.462 Antes da publicação da decisão final do


pontífice romano era necessário percorrer alguns trâmites burocráticos.
Assim se iniciava uma série de procedimentos que visavam levantar as informações
consideradas pertinentes ao processo de canonização e que refletiam, na prática, o controle
e a disciplina estabelecidos pelo papado (ao longo dos séculos XII e XIII) como parte de
seu direito canônico exclusivo sobre as canonizações: primeiro um processo informativo,
sob a responsabilidade de representantes da diocese local, que tinha como função assegurar
ao papa que o candidato em questão gozava de uma reputação de santidade suficiente para
a abertura de uma causa de canonização; depois o inquérito pontifício, conduzido por três
comissários (geralmente um desses era bispo) e consignado por um notário, grupo que
tinha sua prerrogativa de trabalho autorizada e sustentada diretamente por decisões do
papa; por fim, a parte do processo que tramitava no âmbito da cúria romana, com a análise
da dupla informação (oriunda das duas partes iniciais) a respeito da vida e dos milagres do
candidato, e que serviria de base para a decisão tomada pelo bispo de Roma ao fim do
processo.463
A padronização das informações a serem buscadas pelos inquéritos e a definição de
critérios, que a priori delimitavam o que se considerava santidade pela Igreja de Roma, de
um lado, apontam para a valorização do conhecimento e das práticas jurídicas no âmbito
do papado, e de outro, para o exercício de um direito de controle sobre a natureza e o
conteúdo das devoções que a própria instituição deveria ou não autorizar, principalmente
ao regulamentar a questão das provas de santidade. É desta forma que a Sede romana foi,
paulatinamente, reduzindo o peso dos milagres na apreciação da santidade, ao mesmo
tempo em que intensificava a importância dos aspectos biográficos, demarcando
distanciamento e crítica quanto aos fenômenos sobrenaturais, aspecto prioritário nas
manifestações públicas e populares sobre a santidade.464
O processo inquisitorial (inquisitio in partibus) realizado na cidade de Bolonha foi
conduzido pela comissão formada por Aldevrando Tebaldi (notário por autoridade

462
GOODICH, Michael. The politics of canonization in the thirteenth century: lay and mendicant saints. In:
WILSON, Stephen (Ed.). Saints and Their Cults: Studies in Religious Sociology, Folklore and History.
Cambridge: University Press, 1983. p. 169-187. p. 172.
463
MATZ, Jean-Michel. Contrôle et discipline du culte des saints au moyen âge. In: LE GUERN, Philippe
(dir.). Les cultes médiatiques: Culture fan et oeuvres cultes. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2002.
p. 46. Disponível na internet: http://books.openedition.org/pur/24168, acessado em maio de 2016.
464
Ibid., p. 46-47.
201

imperial), Tancredo (arcediago da catedral de Bolonha), Tomás (prior do convento de


Santa Maria de Reno) e Palmerio (cônego da Igreja da Santíssima Trindade de
Campagnola), cabendo aos três últimos exercerem a função de inquisidor, tal qual foi
delegada a eles pelo papa Gregório IX, enquanto coube ao primeiro a tarefa de redigir os
testemunhos em forma pública.
As atas dos testemunhos de Bolonha reproduzem as declarações atribuídas a nove
frades dominicanos que foram inquiridos (um a cada dia) no período de 06 a 17 de agosto
de 1233, com exceção dos dias 14 e 15.465 As expressões de linguagem466 utilizadas
reiteradamente pelo notário ao longo das atas, ao reproduzir a fala dos testemunhos na
terceira pessoa do singular, revelam a dinâmica inquisitorial do trabalho,467 com
questionamentos direcionados, bem como a exploração dos conteúdos e das fontes de
informação, embora o texto em si não tenha sido anotado na forma de um interrogatório.
Tal como foi apontado no capítulo anterior desta tese, a comuna, a igreja e o
Studium de Bolonha, assim como a Ordem dos Pregadores, foram as instituições que se
associaram para a abertura do processo de canonização de Domingos, enviando uma
comissão responsável por entregar a carta que postulava o início daquela causa e que
demandava ao pontífice romano a inscrição do fundador dos dominicanos no catálogo de
santos da Igreja romana.
Nas décadas anteriores a este inquérito, como também foi argumentado no capítulo
anterior, a cidade de Bolonha passou por um período longo de crescimento econômico e de
consolidação de suas instituições locais, o que não foi alcançado sem que ocorressem
conflitos de poder entre as próprias autoridades citadinas, os representantes destas
instituições e as associações locais que reuniam os grupos de cidadãos. Este era o contexto
histórico anterior ao processo de canonização de Domingos de Gusmão.
De forma que a convergência de forças daquelas instituições locais para o mesmo

465
GOODICH, op. cit., p. 179.
466
“Item dixit”; “Interrogatus quomodo”; “Respondit”; “Et sicut credit”; “ Et ipse testis”; são expressões que
aparecem reiteradamente ao longo dos testemunhos reproduzidos nas atas de Bolonha. Cf.: Acta
Canonizationis S. Dominici, op. cit.
467
Neste ponto concordo com a proposição de Igor S. Teixeira de que os processos de canonização podem
ser entendidos como uma prática inquisitorial e que, provavelmente, os manuais que orientavam o trabalho
dos inquisidores no combate às heresias eram os mesmos a guiar a prática dos comissários que atuavam nas
causas de canonização, pela falta de manuais específicos para esta finalidade. Cf.: TEIXEIRA, Igor Salomão.
A Pesquisa em História Medieval: relatos hagiográficos e processos de canonização. Aedos, Porto Alegre, v.
2, n. 2, 2009.
202

empreendimento não deixa de causar alguma surpresa. Pois algum tempo antes elas
estavam se confrontando em questões e disputas abertas que envolviam os seus direitos de
organização, de jurisdição e de propriedade. Por que estas instituições se envolveram no
processo de canonização de Domingos? Teriam elas se associado por vontade própria ou
foram levadas a isto?



O ato oficial de abertura do processo de canonização de Domingos de Gusmão pelo


papado já apresentava, antecipadamente, o parecer favorável do pontífice romano para
aquela causa de santidade. No mandato que Gregório IX enviou aos comissários nomeados
para realizar a inquisitio em Bolonha, o papa já se referia ao fundador dos dominicanos
como uma nova estrela da Igreja na constelação celeste, cuja luminosidade brilhava tão
ostensivamente, que ajudava a dissipar a ignorância provocada pelas trevas, a confundir o
dogma perverso dos hereges e a reforçar a crença dos fiéis.468
Antes mesmo do processo de investigação o papa Gregório IX tratou de passar aos
inquisidores a sua visão acerca de Domingos de Gusmão, algo que aliado ao fato de serem
pessoas de sua confiança, deveria exercer algum peso sobre o trabalho daquela comissão.
O que caracteriza uma inversão da lógica de investigação, pois não se tratava de descobrir
quem era aquele candidato a santo, e sim de confirmar as expectativas de santidade já
manifestadas pelo pontífice romano no ato de abertura daquela causa de canonização.
Outra passagem daquela epístola-mandato aos comissários de Bolonha ajuda a
reforçar esta interpretação. Nela o pontífice romano passou orientações sobre o que deveria
ser investigado naquela tarefa inquisitorial. Os inquisidores foram direcionados a buscar
sinais públicos e evidências de prodígios associados ao nome de Domingos, além de
informações sobre a sua vida e comportamento, bem como dos milagres possivelmente
ocorridos junto ao seu sepulcro. Tudo isto por meio de uma inquirição diligente de
testemunhos idôneos, que deveriam ser transcritos sob sigilo e os textos conservados pelos

468
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 116: “Exultat nimirum et sancta mater ecclesia, cum in eius
fulgido firmamento diversis sanctorum splendoribus illustrato fulget de novo sydus perspicuum singularis et
precellentis luminis ostensivum, per quod ignorantium dominum tenebre propelluntur, per quod hereticorum
perversum dogma confunditur et fidelium beata credulitas adaugetur. Sane gaudentes pridem accepimus,
quod recolende memorie frater Dominicus, plantator Predicatorum ordinis et magister”.
203

próprios comissários, até que recebessem um mandato apostólico ordenando a transmissão


dos escritos a Roma.469
Portanto, as orientações pontifícias direcionavam o trabalho de investigação
daquela comissão para os sinais e as evidências que permitissem fundamentar uma
santidade que supostamente estava em processo de avaliação. Não restam dúvidas que
existiam métodos e procedimentos a serem seguidos pelos inquisidores, padrões que eram
formulados em Roma e que contribuíam para reafirmar a autoridade da Sede romana sobre
as demais dioceses. Mas o inquérito não visava descobrir uma verdade sobre aquela
santidade. O procedimento inquisitorial visava fundamentar uma verdade que já estava
colocada antecipadamente pelo próprio pontífice: Domingos já era um santo na visão do
papa. O mandato pontifício aos comissários de Bolonha não deixa a menor dúvida sobre
esse aspecto.
Algumas reflexões de Michel Foucault ajudam a esclarecer o funcionamento dos
inquéritos eclesiásticos dos séculos XII e XIII. Neste período, segundo o filósofo francês,
houve uma profunda modificação nas práticas e nos procedimentos judiciários, fazendo
surgir um modelo de inquérito que delimitava as formas e as condições do saber na
sociedade.470 A questão não era tanto de conteúdo, mas sim de forma, pois o inquérito
demarcava a maneira e a condição de possibilidade de saber em um contexto histórico.
A nova modalidade de inquérito que se afirmou neste período apresentava um
sistema racional de estabelecimento da verdade, partindo da lógica de que os testemunhos
permitiriam reproduzir um fato do passado, substituindo a noção do flagrante delito. Mas
ao contrário dos pressupostos iniciais, o inquérito acabou se tornando um processo de
governo, uma modalidade de gestão, uma forma de se exercitar o poder, de maneira que a
suposta busca pela verdade acabava substituída pela produção de uma verdade, que
derivava do próprio controle institucional exercido sobre as formas e os procedimentos de

469
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 117: “[...] mandamus, quatines provide attendentes, quod lux
vera sanctorum dominos Ihesus Christus signis publicis et prodigiis evidentibus trepidantia discipulorum
pectora roboravit, mentes eorum nubilas de resurrectionis ammiranda gloria expresse certitudinis clarificans
fulcimentis vitam et conversationem predicti fratris, quibus Deo et hominibus noscitur placuisse necnon
miracula, que auctore Deo de sui corporis sanctitate procedunt, habita pre oculis sola divine reverentia
maiestatis, per testes idoneos studeatis inquirere cauta diligentia et sollicitudine vigilanti, que in scriptis
redacta sub sigillis vestres fideliter conservetis, illa nobis, postquam mandatum apostolicum receperitis, per
fideles et solempnes nuntios transmissuri”.
470
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2011. p. 62-63.
204

investigação.471
Aquela epístola-mandato do papa Gregório IX, que estabeleceu a abertura de um
inquérito em Bolonha para investigar a santidade de Domingos de Gusmão, pode ser
analisada a partir desta perspectiva foucaultiana. Apesar daquele pontífice romano indicar
explicitamente aos comissários que recorressem aos testemunhos idôneos, quando ele
delimitou o que deveria ser buscado naquele trabalho inquisitorial e os procedimentos a
serem realizados, não era somente o conteúdo que estava sendo selecionado, mas sim a
maneira e a possibilidade de saber. De forma que a autoridade papal delimitou, desde o
início, o que se deveria saber sobre a santidade de Domingos: tudo aquilo que ajudaria a
fundamentar a verdade a ser produzida no inquérito e a ser reafirmada na decisão final do
papa. Portanto tratava-se de um processo de produção de verdade e não de descoberta, uma
modalidade, ao mesmo tempo, de exercício do poder e de transmissão do saber, uma forma
de saber-poder diria Foucault.472
Seguindo o roteiro teórico-metodológico de análise traçado por Michel Foucault em
A ordem do discurso, é possível detectar princípios e procedimentos de ordenamento que
atuam nas formações discursivas como formas de controle, constituindo um verdadeiro
sistema de recobrimento do discurso, ou seja, um sistema que define a forma de
funcionamento do discurso e que, por conseguinte, visa conjurar os poderes que atuam
sobre ele e dominar o seu acontecimento aleatório.473 Esta perspectiva de análise também
pode ser aplicada às atas do inquérito de Bolonha.
A noção de ordenamento do discurso remete a um procedimento sistemático de
organização, distribuição e classificação daquilo que é afirmado por determinadas pessoas
em circunstâncias específicas.474 Tal procedimento discursivo pode ser exercitado quase
que automaticamente por alguém que fala perante uma plateia de ouvintes, de forma
dinâmica, constituindo o próprio ato da fala, ou pode ser definido antes do acontecimento
discursivo, buscando dar coerência e coesão ao discurso antes mesmo de ser proferido.
No caso específico das atas do inquérito pontifício conduzido em Bolonha o
ordenamento do discurso aparece, mas não pode ser atribuído exclusivamente, ou em

471
Ibid., p. 72-73.
472
FOUCAULT, A verdade... op. cit., p. 77-78.
473
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de
dezembro de 1970. 21 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011. p. 69.
474
Ibid., p. 21.
205

primeiro caso, ao sujeito da fala, ou seja, aos testemunhos ali reproduzidos. Pois as pessoas
que falaram por meio desse documento respondiam a questões realizadas pela comissão
papal que investigava a causa de canonização de Domingos de Gusmão, portanto, e a
priori, existia naquela inquisitio uma ordenação dos temas a serem abordados. O próprio
mandato enviado por Gregório IX475 já apontava para isso.
Além disso, tudo o que foi falado pelos testemunhos no âmbito daquele inquérito
também passava por um procedimento de organização que cabia ao notário responsável por
registrar essas falas na forma de uma ata pública. Assim, no caso específico daquelas atas,
por mais que o testemunho quisesse organizar a sua fala segundo uma lógica própria e o
fizesse, de certa forma, ao responder os questionamentos da comissão papal, suas
formações discursivas eram, de início e ao final, perpassadas por procedimentos de
organização que independiam da vontade do sujeito que falava. Portanto, se pode afirmar,
com base no método de análise foucaultiano, que o discurso produzido nas atas do
inquérito de Bolonha era perpassado por formas de controle que se exerciam sobre aqueles
testemunhos, a partir do trabalho inquisitorial executado pelos delegados/representantes do
pontífice romano.
Não é por outro motivo que os testemunhos reproduzidos naquelas atas apresentam
uma série de padrões repetidos, como, por exemplo, a recorrência de determinados tópicos
temáticos. Tais formas de regularidade, no contexto de uma análise do discurso, acabam
funcionando como conceito operador de uma análise genealógica, permitindo desvendar o
processo de formação de um discurso em sua positividade, ou seja, em seu caráter
produtivo.476
A primeira regularidade evidenciada nas atas do inquérito de Bolonha é que quase
todos os testemunhos ali reproduzidos, com exceção de um (do frade Amizo de Milão),
iniciam seus depoimentos esclarecendo como, quando e onde ingressaram na Ordem dos
Frades Pregadores, acrescentando algumas informações sobre o contato mantido com
Domingos de Gusmão. Sem dúvida alguma, a regularidade desse e de outros tópicos nos
testemunhos registrados aponta para a existência de questionamentos específicos
direcionados aos depoentes, com o objetivo de esclarecer a vinculação deles com a
instituição e o contato que mantiveram com o antigo mestre geral dos dominicanos.

475
Cf., infra, p. 152 [Nota 350].
476
FOUCAULT, A ordem... op. cit., p. 60-61.
206

Existem outros tópicos bastante recorrentes nos relatos dos testemunhos e que
permitem delinear um perfil religioso para a vida de Domingos de Gusmão: assíduo e
fervoroso nas orações (todos relatam esse aspecto), pregador e disseminador do evangelho
(só o frade Amizo não aborda essa prática), praticante de hábitos cotidianos que denotam a
influência dos ideais de ascetismo e de penitência em sua vida religiosa (todos tratam desse
aspecto).
A ênfase dada pelos testemunhos permite construir a imagem de um religioso
assíduo, compromissado e incansável na sua prática de oração, pois passava dias e noites
nessa tarefa, de tal forma que praticamente não se recostava para dormir, conforme o
registro de frade Amizo.477 De acordo com o testemunho do frade Bonvizo, Domingos
tinha o hábito de se esconder na igreja para orar quando os frades iam dormir, e se
emocionava bastante ao fazer isso.478
A pregação como uma prática religiosa de Domingos de Gusmão é outra
característica bem enfatizada nas atas do inquérito de Bolonha, mostrando-o como alguém
que estava sempre disposto a pregar e a induzir seus frades ao mesmo (testemunho de frade
Juan),479 como um pregador que tinha uma capacidade maior do que qualquer outro para
comover os ouvintes com suas palavras (testemunho de frade Estevão)480 e como um
religioso que ansiava pela salvação das almas alheias e que usava a pregação como
instrumento para isso, pois estava disposto a ir a terras longínquas e pouco receptivas para
pregar a fé de Cristo e converter novos cristãos (testemunho de frade Paolo).481
O rigor com os hábitos cotidianos e o exercício frequente da penitência também são
aspectos ressaltados nas atas do inquérito bolonhês, pois o antigo líder dos dominicanos é
477
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 137: “Item dixit, quod fuit assiduus in oratione tam diebus
quando vacabat quam noctibus. Et pernoctabat frequenter in oration ita quod parum aut nichil inveniebatur in
lecto”.
478
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 138-139: “Et dixit quod habebat hanc consuetudinem, scilicet
quod quando fratres sui post completorium egrediebantur de ecclesia, ut irent dormitum, ipse frater beatus
Dominicus, ut oraret, se in ecclesia occultabat. Et ipse testis cum hoc cognoscere vellet, quid dictus frater
beatus Dominicus faceret in ecclesia, et audiebat eum cum clamore maximo et lacrimis orantem Dominum, et
cum gemitu maximo”.
479
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 143: “Sepe, et frequenter ipsemet predicabat et fratres ad
predicandum modis, quibus poterat, inducebat, et mittebat ad predicandum, rogans et monens quod essent de
animarum salute solliciti”.
480
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 155: “Item dixit quod in predicationibus erat assiduus et
sollicitus, et verba habebat ita commotiva quod sepissime commovebat se et auditores ad fletum, ita quod
numquam audivit hominem, cuius verba ita commoverent fratres ad compunctionem et fletum”.
481
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 162: “Item dixit, quod multum desiderabat salutem animarum
omnium, tam fidelium quam infidelium. Et sepe dixerat huic testi: ‘Postquam ordinaverimus et instruxerimus
ordinem nostrum ibimus ad Cumanos, et predicabimus eis fidem Christi, et acquiremus eos Domino’”.
207

apontado como alguém que praticava a disciplina no seu próprio corpo e de uma forma
superior aos demais, já que mortificava o seu corpo utilizando uma corrente de ferro
(testemunho de frade Juan),482 assim como dormia sempre em locais desconfortáveis e
praticava o jejum assiduamente, estivesse saudável ou doente, no convento ou em viagem
(testemunho de frade Guillermo).483
Toda esta caracterização da vida religiosa do primeiro mestre dos dominicanos
concorre para apresentá-lo como um frade diferenciado dos demais em sua época, acima de
qualquer outro, um religioso com uma conduta exemplar, altamente disciplinado nos
valores e nas práticas cristãs, tudo atestado em seus hábitos cotidianos e registrado nos
testemunhos reproduzidos nas atas do inquérito de Bolonha. Portanto o documento em
análise constrói para Domingos uma trajetória religiosa que serviria de exemplo a qualquer
cristão naquele contexto histórico.
Porém, como se a trajetória religiosa, por si só, não bastasse para dar sustentação a
uma causa de canonização, observa-se também nas atas do inquérito a regularidade de
tópicos temáticos que se configuram como sinais de santidade, e que teriam sido
manifestados por Domingos ainda em vida. O que se considera aqui como sinais de
santidade são aquelas características e capacidades atribuídas a determinadas personagens
cristãs que tendem a diferenciá-las dos demais, apontando um grau de excepcionalidade
que é interpretado como indício da proximidade com o plano divino. Nos testemunhos
registrados naquele documento aparecem os seguintes aspectos: a virgindade, a profecia, a
revelação divina e o “aroma de santidade”.
A virgindade atribuída a Domingos de Gusmão é um aspecto registrado e ressaltado
em diferentes testemunhos das atas de Bolonha. O frade Guillermo de Monteferrato, por
exemplo, afirmou que o antigo mestre sempre conservou a sua virgindade, e que era algo
que se sabia pelas conversas que manteve com ele e com os demais integrantes da

482
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 143: “Item dixit, quod plus orabat quam ceteri fratres cum
quibus conversabatur, plus etiam vigilabat, et maiores disciplinas in corpore suo accipiebat, et frequentiores.
Et hoc scit, quia vidit eum predicta sepissime facientem. Item dixit se audivisse a quibusdam de fratribus,
quod idem magister Dominicus faciebat se disciplinari, et etiam se disciplinabat cum cathena ferrea, que
habebat tres ramos”.
483
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 134 e 135: “Et vidit quod ieiunia statuta in regula omnia
servabat et in sanitate et in infirmitate. [...] et tamen propter hoc non fregit ieiunium nec carnes comedit nec
pietanciam fecit, nisi de pomis sive rapis aliquando”; “Et firmiter credit quod maiori spacio temporis erat in
oratione quam in dormitione et semper iacebat indutus et cum cappa et cinctus et cum calligis calciatus, dum
cum eo fuit. Et semper iacebat sine culcitra, videlicet in terra, tabula sive palea vel alio stramine”.
208

Ordem.484 Este mesmo tópico temático aparece reforçado no testemunho do frade Juan, ao
afirmar que Domingos permaneceu virgem até a sua morte e que isto era parte de sua fama
pública perante os frades dominicanos.485
O dom da profecia aparece caracterizado em um relato do frade Bonvizo,
ressaltando que quando era ainda um noviço na Ordem e não tinha prática de pregar,
Domingos ordenou que fosse a Piacenza para realizar pregação naquela cidade. Ele tentou
se esquivar da tarefa encomendada alegando imperícia da sua parte, ao que o mestre geral
teria respondido: “Vá tranquilo porque o Senhor estará contigo e colocará palavras nos teus
lábios”. Bonvizo obedeceu à ordem do mestre e foi pregar em Piacenza. Por fim,
destacando a eficácia dessa pregação, ele concluiu: “por ela ingressaram três frades na
Ordem dos Pregadores”.486
A revelação divina pode ser depreendida do testemunho do frade Estevão, na parte
em que ele relata sobre a sua entrada na Ordem dos Pregadores, pois quando era ainda
estudante em Bolonha, conheceu Domingos de Gusmão, que costumava pregar aos
estudantes e ouvir as suas confissões. Então, certo dia, os frades dominicanos foram a
procura de Estevão, dizendo que o mestre geral queria falar com ele. Quando o encontrou,
Domingos colocou-lhe o hábito dos frades pregadores e lhe disse: “Eu quero te dar esta
arma, com a que durante toda a tua vida deverás lutar contra o diabo”. O referido frade
ficou muito admirado com aquele gesto e afirmou acreditar que só poderia ser
manifestação de uma revelação divina, já que nunca tinha conversado com ele sobre essa
possibilidade.487

484
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 135: “Item dixit, quod firmiter credit quod idem frater
Dominicus semper servavit virginitatem. Et hoc credit propter bonam conversationem quam vidit eum
habere. Et quia hoc audivit a multis viris religiosis et ab aliis fide dignis qui cum eo longo tempore fuerunt
conversati”.
485
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 146: “Item dixit, quod audivit tempore vite ipsius fratris
Dominici, et etiam post, quod permansit in virginitate usque ad mortem, et de hoc est fama publica inter
fratres”.
486
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 142: “Item dixit ipse testis, quod quando ipse erat novitius,
cum nom haberet aliquam peritiam predicandi, quia nondum in sacra pagina studuisset, predicus frater
Dominicus, precepit ei Bononie existenti, quod deberet ire Placentiam predicaturus ibidem. Et cum ipse
propter imperitiam se excusaret, dulcissimis verbis eum induxit quod ire deberet. Et dixit: ‘Vade secure, quia
Dominus tecum erit, et ponet verbum predicationis in ore tuo’. Et ipse testis obediens ivit Placentiam et
predicavit ibi. Et tantam gratiam contulit sibi Deus in predicatione, quod ad predicationem eius tres fratres
intraverunt ordinem predicatorum”.
487
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 154: “Et antequam recederet, eum induit habitum fratrum
predicatorum dicens: ‘Ego volo dare tibi arma, cum quibus toto tempore vite tue debeas pugnare contra
diabolum’. Et multum ipse testis miratus fuit tunc et etiam postea, quo instinctu ipse frater Dominicus sic
vocavit eum et induit eum habitum fratrum predicatorum, eo quia primo nichil cum eo tractaverat de
209

Dentre todos os sinais de santidade evidenciados nas atas do inquérito de Bolonha,


a narrativa do “aroma de santidade” exalado pelo sepulcro de Domingos é, sem dúvida,
aquela que mereceu maior destaque nos testemunhos. O fenômeno aparece associado aos
relatos sobre a translatio corporis ocorrida no convento de San Nicolò delle Vigne em
maio de 1233, sendo confirmado por sete dos nove testemunhos registrados naquele
documento (somente os frades Juan e Frugério não tratam desse aspecto em seus
respectivos testemunhos).
O testemunho do frade Ventura de Verona, dentre todos os registrados, é o mais
completo sobre a versão do aroma de santidade, aparecendo em duas partes distintas: na
primeira, ele afirmou ter sentido um grande odor na antiga igreja onde Domingos estava
sepultado, cerca de um ano após a sua morte, algo que teria sido constatado também por
outros frades do convento de San Nicolò.488
Na segunda parte, ao final de seu testemunho, frade Ventura fez um longo e
detalhado relato sobre o procedimento de trasladação dos restos mortais do antigo mestre
geral da ordem para a nova igreja que tinha sido construída. Nessa parte, o prior do
convento de San Nicolò delle Vigne ressaltou mais de uma vez o “inenarrável odor” que
todos sentiram quando o sepulcro de Domingos foi aberto, destacando que este aroma
ficou nas mãos de todos aqueles que tocaram os ossos do antigo mestre naquela ocasião
solene.489
Além dos sinais que apontavam para a santidade do fundador dos dominicanos, os
testemunhos do inquérito de Bolonha não deixaram de registrar a realização de milagres.
Os relatos de cura, por exemplo, aparecem nos testemunhos dos frades Guillermo e Paolo.
O primeiro ressalta “que viu muitas pessoas dizendo haver padecido de graves e diversas
enfermidades e que foram curadas pelos méritos do beato Domingos”.490 Já o segundo

conversione ipsius ad religionem. Credit tamen quod divina inspiratione vel revelatione hoc fecit”.
488
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 130: “Item dixit, quod in eodem anno quo mortuus fuit, in
hieme sequenti maximus odor sentiebatur in ecclesia veteri, ubi sepultus fuit, et per totam ecclesiam et
precipue circa sepulturam. Et ipse testis sensit ipsum odorem. Et multi fratres de conventu senserunt, qui
adhuc vivunt, sicut eos audivit dicentes”.
489
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 132: “[...] sentientes eumdem inenarrabilem odorem. Et
mirabilis et inenarrabilis odor remansit in manibus magistri Iordanis et ipsius testis et omnium illorum, qui
tetigerunt de ossibus suis. Interrogatus quomodo scit omnia predicta, respondit, quia interfuit omnibus
predictis et vidit et sensit odorem non solum in ossibus et vestimentis et capsa et pulvere, sed etiam in suis
manibus et aliorum fratrum qui tetigerant supradicta vel aliquid de supradictis. Item dixit, quod multotiens
usque ad hoc tempus sensit hunc odorem incognitum”.
490
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 136: “Item dixit se postea vidisse plures personas, que
210

relata ter sido ele mesmo curado pela intervenção milagrosa do antigo mestre geral. Pois
quando chegou a Bolonha (vindo de Venezia) para dar o seu testemunho à comissão
pontifícia, sentiu fortes dores renais, que costumavam lhe afligir durante dias. Por isso,
com medo de não dar o seu testemunho, “acudiu ao sepulcro do bem-aventurado
Domingos e lhe rogou devotamente a sua ajuda e que se dignasse a curá-lo. E quase ao
instante se sentiu perfeitamente curado”.491
Também ficaram registrados milagres de multiplicação de alimentos nas atas de
Bolonha, como no relato do frade Rodolfo, destacando que sempre que faltavam alimento
e bebida no convento ele procurava o mestre geral em busca de uma solução. Domingos
ordenava que rezasse ao Senhor para que provesse o que faltava, e o acompanhava na
oração. E, dessa forma, “aquele pouco pão que tinham ele colocava na mesa por ordem de
Domingos, e o Senhor supria o que faltava”.492 Relato semelhante aparece no testemunho
do frade Bonvizo, quando afirmou que era procurador do convento de Bolonha e, por isso,
cuidava dos alimentos a serem servidos aos frades no refeitório. Um dia falou a Domingos
que não havia pão e este “com cara risonha, levantou suas mãos e adorou e bendisse ao
Senhor, e ao instante entraram dois que carregavam cestos, um de pão e outro de figos
secos, de tal maneira que tiveram abundantemente os frades”.493
A recorrência dos sinais de santidade e dos milagres nos relatos reproduzidos nas
atas do inquérito de Bolonha aponta para a existência de questionamentos específicos, que
tinham a função primordial de direcionar os testemunhos selecionados a falar tão somente
de determinados aspectos. Tal como foi ressaltado anteriormente, os tópicos temáticos a
serem abordados pelas testemunhas já estavam previamente definidos, conforme ficou

dicebant se passas fuisse graves infirmitates et diversas et se liberatas fuisse per merita beati Dominici”.
491
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 164: “Item dixit dictus testis quod die domenica proxime
preterita venit a Venetiis Bononiam pro isto testimonio faciendo. Et eodem die in sero invasit eum dolor
maximus renum et lumborum, qui consuevit eum affligere pluribus diebus. Unde ipse timens, ne posset ferre
testimonium, ivit ad archam beati Dominici et devotissime rogavit eum quod iuvaret eum et liberare
dignaretur. Et quase incontinenti fuit plenissime liberatus”.
492
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 149: “Et ipse testis ibat in ecclesiam ad orandum, et dictus
frater Dominicus sepe sequebatur eum, et sic faciebat Deus, quod semper habebant idôneas sustentationes. Et
quandoque illum modicum panem, quem habebant, de mandato eius ponebat in mensa, et Dominus supplebat
defectum eorum”.
493
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 141: “[...] Qui testis dixit ei, quod non erat ibi panis. Tunc
frater Dominicus alacri facie elevavit manus suas et laudavit Dominum et benedixit, et statim incontinenti
intraverunt duo, qui portaverunt duo canistra unum de pane, aliud de ficubus sicci, ita quod habundanter
habuerunt fratres, et hoc dixit se scire, quia interfuit iis”.
211

registrado naquele mandato de Gregório IX para os delegados de Bolonha.494


Portanto, esse conjunto de regularidades evidenciadas no conteúdo das atas de
Bolonha não pode ser visto como mera casualidade, como resultado da livre escolha das
testemunhas que espontaneamente falavam das experiências vivenciadas com Domingos e
das que ouviram falar. Existe nesse documento um direcionamento das falas por meio da
dinâmica inquisitorial do trabalho daquela comissão pontifícia, e que visava atender aos
propósitos do processo de canonização: levantar informações consideradas pertinentes à
causa de canonização e criar os fundamentos para a decisão final do papa.
Por conseguinte, a caracterização da vida religiosa de Domingos de Gusmão à
frente da Ordem dos Frades Pregadores (a partir dos comportamentos, das práticas e dos
valores que lhe foram atribuídos), bem como os sinais de santidade e os milagres que estão
registrados nas atas (por conta de testemunhos diretos e indiretos), podem ser apontados
como formas de regularidade que atuaram nas formações discursivas manifestadas no
documento em análise, contribuindo diretamente para a formação de um discurso oficial da
Igreja romana sobre a canonização de Domingos de Gusmão. Ou seja, ao funcionar de
maneira controlada e direcionada, o inquérito de Bolonha foi para o papado um
instrumento de exercício de poder, que permitiu produzir uma verdade sobre a santidade do
primeiro mestre dos dominicanos, uma verdade que já estava dada na própria abertura do
processo de canonização, mas que precisava ser devidamente fundamentada por
“testemunhos idôneos”.

A causa de canonização de Domingos: uma construção da santidade por etapas

Tomando como base os diferentes aspectos explorados neste capítulo e no anterior,


pode-se afirmar que o ano de 1233 foi decisivo para a construção de uma santidade para
Domingos de Gusmão, para o estabelecimento de um culto na cidade de Bolonha e para a
abertura do processo de canonização junto ao papado. Para que a sua causa de canonização
fosse devidamente acolhida pelo papado naquela conjuntura e para que alcançasse o êxito
almejado, existiam requisitos a cumprir e etapas a serem superadas.
O primeiro dentre os requisitos necessários para a abertura de um processo de

494
Cf., infra, p. 152 [Nota 350].
212

canonização naquele contexto histórico era a existência de uma fama de santidade. A


atuação de João de Vicenza no âmbito da magna devotio e as resistências evidenciadas no
interior do convento de San Nicolò delle Vigne (quanto à possibilidade de um culto para o
primeiro mestre geral da Ordem dos Pregadores) apontam que tal requisito não estava
posto antes de 1233. A primeira etapa a ser superada no caso de Domingos era comprovar
a existência de uma fama de santidade post mortem.
As pregações do frade João de Vicenza em Bolonha e nas cidades vizinhas,
aproveitando a ocasião do movimento Alleluia para difundir uma fama de santidade para o
antigo líder dos dominicanos, estão entre as primeiras iniciativas que foram tomadas
naquele contexto histórico com o intuito de cumprir tal requisito. Esta atividade
propagandística da santidade de Domingos ficou devidamente registrada no testemunho do
frade Estevão, no âmbito do inquérito realizado em Bolonha.495 Assim como a vinculação
das missões do frade João, naquele período, com os projetos e os interesses do papado, já
que atuava como legado pontifício em uma série de causas, não só naquela cidade.496
A realização da translatio corporis de Domingos no convento de San Nicolò delle
Vigne, no final do mês de maio, também deu sua contribuição para a formação e a
amplificação de uma fama de santidade. Afinal de contas, tal procedimento em uma
cerimônia religiosa e solene, com a presença de diferentes autoridades (clericais, religiosas
e comunais), de integrantes da Ordem e de grupos citadinos, contribuía para divulgar em
diferentes localidades a notícia de uma santidade em estágio de reconhecimento oficial. O
fato de a cerimônia ter sido repetida alguns dias depois, por iniciativa do próprio mestre
geral dos Frades Pregadores, só comprova a intenção de ampliar ao máximo os efeitos
daquela solenidade religiosa.
O registro da campanha de pregação de João de Vicenza e os relatos sobre a
trasladação no convento de San Nicolò, presentes nos testemunhos reproduzidos nas atas
do inquérito de Bolonha, não apenas permitem fundamentar uma fama de santidade para
Domingos de Gusmão, como também apontam ações organizadas para alavancar uma
causa de canonização para aquele que foi apontado como fundador dos dominicanos. De
forma que o requisito básico para um processo formal junto ao papado, a existência de uma
fama de santidade post mortem, foi devidamente cumprido por meio das iniciativas dos

495
Cf., infra, p. 176 [Nota 406].
496
Cf., infra, p. 184 et seq. [Notas 423 a 431].
213

grupos diretamente interessados naquela causa.


A magna devotio e suas repercussões em Bolonha (e nas demais cidades centro-
setentrionais da península italiana) não foi apenas a atmosfera ideal para a difusão de uma
fama de santidade para Domingos. Naquele movimento religioso estavam presentes
também os ideais de espiritualidade que foram escolhidos para caracterizar a santidade do
antigo mestre geral dos Frades Pregadores.
A começar pela noção de milícia cristã que foi tão alimentada pela atuação dos
pregadores mendicantes e pela mobilização dos leigos, que chegavam a se organizar em
tropas e se apresentar como milites Christi para defender a Igreja romana e a fé católica nas
cidades italianas. O próprio pontífice Gregório IX percebeu o potencial desta organização
laica para os projetos eclesiásticos na Itália e não deixou de incentivar e de proteger tal
instituição. Com um mandato emitido em dezembro de 1234, o referido papa colocou os
integrantes da militiae Jhesu Christi sob a proteção da Sede Apostólica, conferindo a eles
legalidade institucional e incentivando o seu crescimento pela concessão de indulgência
aos seus membros.497
Portanto não foi um acaso que a argumentação da bula Fons sapientie tenha
reservado um espaço de destaque para a noção de militia Christi na primeira e na segunda
parte do documento.498 Ao desenvolver uma teologia da milícia cristã e ao associar a
trajetória religiosa de Domingos de Gusmão a este conceito, a bula de canonização estava
em sintonia com os projetos do papado naquele período e com parte das expectativas
religiosas dos leigos nas cidades italianas, tal como ficou expressado no âmbito da magna
devotio com a organização de milícias cristãs leigas.
Assim sendo, aquele perfil de uma santidade militante499 permite articular, naquele
contexto histórico de 1234, os projetos do papado para a Península Itálica e as demandas
de espiritualidade dos leigos nas diferentes cidades, fazendo da canonização de Domingos
um ponto de convergência destes interesses, ao mesmo tempo em que servia para alimentar

497
AUVRAY, Reg. nº 2335, p. 1234: “Fratres militiae Jhesu Christi per Italiam constitutos cum ipsorum
bonis sub beati Petri et sua protectione suscipit; statuit ut omnes qui secundum ipsorum propositum Deo
adhaerere voluerint, perpetuis temporibus sub Apostolicae Sedis et sua defensione consistant; inhibet ne quis
aliquem ex ipsis capere, rapinis et injustis collectis vel exactionibus fatigare, vel ad aliqua illicita juramenta
aut injusta praelia cogere aut alias indebite molestare praesumat; omnibus propositum servantibus antedictum
et in vera paenitentia persistentibus, qui mortis periculum pro fide catholica et ecclesiastica libertate
subierint, peccatorum omnium veniam indulget”.
498
Cf., infra, p. 69 et seq.
499
Cf., infra, p. 79 et seq.
214

tais práticas religiosas com aquele reconhecimento oficial da santidade pelo papado. Se os
mendicantes eram milites enviados pela Providência Divina, se o próprio Domingos tinha
sido enviado para combater pela fé católica (por meio de sua pregação evangélica),
estavam claros os exemplos a serem seguidos pelos demais cristãos.
A sintonia do perfil de santidade traçado para Domingos de Gusmão com os ideais
de espiritualidade expressados na magna devotio não se encerra no conceito de milícia
cristã. Naquele movimento religioso que percorreu diferentes cidades da Itália centro-
setentrional as práticas de penitência pelos fiéis configuraram um aspecto marcante,
inclusive com procissões de penitentes que percorriam as cidades com manifestações de
disciplina e de mortificação do corpo.
Tais práticas ficaram também registradas nos documentos vinculados à canonização
de Domingos de Gusmão. A começar pelas atas do inquérito realizado na cidade de
Bolonha, pois diferentes testemunhos ali reproduzidos apontaram comportamentos
cotidianos do antigo mestre geral que o identificam como um adepto da disciplina e da
mortificação do próprio corpo. Segundo os testemunhos dos frades Juan e Guillermo,500
Domingos praticava jejuns com frequência, passava noites em vigília de oração e quando
dormia sempre escolhia um lugar desconfortável, além de utilizar uma corrente de ferro
apertada junto ao seu corpo. Outros testemunhos daquele inquérito também apontam
práticas do antigo mestre geral que se encaixam neste conceito de penitência.501
A adesão de Domingos às práticas de penitência também foi exaltada na
argumentação da bula Fons sapientie, na parte em que se destacam as virtudes do fundador
dos dominicanos, sublinhando que ele escolheu viver na mortificação da própria carne e
que nos castigos encontrava motivos para renovar a sua espiritualidade, tornando-se um
verdadeiro atleta da fé cristã.502

500
Cf., infra, p. 207 [Notas 482 e 483].
501
Tais evidências de práticas de penitência aparecem também registradas nos testemunhos prestados pelos
frades: Ventura, Amizo, Bonviso, Rodolfo, Estevão, Paolo e Frugério. Cf.: Acta Canonizationis S. Dominici,
op. cit., p. 125, 127, 137, 139, 148, 149, 156, 157, 162, 165 e 166.
502
A versão aqui utilizada da bula Fons sapientie é uma edição crítica, em língua latina, disponível em:
WALZ, Angelus. Acta Canonizationis S. Dominici. In: Monumenta Ordinis Fratrum Praedicatorum
Historica, tomus XVI. Romae: Institutum Historicum FF. Praedicatorum, 1935. p. 190-194. p. 192: “[...] Qui
gerens a pueritia cor senile ac in mortificationis carnis eligens vivere, vite requisivit auctorem et Deo deditus
ac in Nazareum [...], in castigatione desiderii piissimum Danielis continuavit affectum, iustitie semitas et
sanctorum vias strenuus adhleta custodiens et velut ad momentum de tabernaculo Domini, de militantis
ecclesie magisterio ac ministerio non discendens, carnem spiritui et sensualitatem subiciens rationi”. Deste
ponto em diante farei referência a este documento apenas como Fons sapientie, seguida da identificação da
215

Além disso, no mesmo documento, pode ser observada também a vinculação entre
a santidade de Domingos e as práticas de penitência na parte final da argumentação, em
que o pontífice romano decide “relaxar” um ano de penitência para aqueles devotos,
“verdadeiramente penitentes e confessos”, que visitassem o sepulcro do antigo mestre geral
dos Frades Pregadores.503 Nesta parte do discurso fica muito claro que a indulgência papal
foi utilizada como forma de alimentar/incentivar a devoção dos fiéis cristãos ao culto de
Domingos de Gusmão.
Este modus operandi papal não aparece apenas na bula de canonização Fons
sapientie, também ficou registrado em epístolas e mandatos que o pontífice romano redigiu
nos anos de 1233 e 1234. A começar por aquela epístola enviada no mesmo dia (13 de
julho de 1233) da abertura do processo de canonização de Domingos, explorada no
capítulo anterior, em que o papa Gregório IX concedia vinte dias de indulgência para os
cristãos (confessos e penitentes) que assistissem às pregações do frade João de Vicenza.504
Após a canonização do fundador dos dominicanos, mais precisamente em 29 de
novembro de 1234, o pontífice romano usou uma vez mais o instrumento da indulgência
para angariar a solicitude dos cristãos em favor da Ordem dos Frades Pregadores. Desta
vez o papa relaxou um ano e quarenta dias de penitência daqueles cristãos que
subsidiassem a construção de uma igreja e de um claustro na cidade de Perugia, ambos os
edifícios estavam sendo erigidos em homenagem ao santo recém-canonizado.505
Portanto, os documentos pontifícios aqui referidos e explorados não deixam
dúvidas de que o papado, naquele contexto histórico da canonização de Domingos, estava
desenvolvendo uma articulação estreita entre santidade, penitência e indulgência. De forma
que o pontífice romano oferecia o benefício da indulgência àqueles cristãos (penitentes e
confessos) que expressassem a sua devoção pelo primeiro mestre geral dos dominicanos,
como forma de incentivar aquele culto de santidade recém-oficializado pela Igreja romana.

página correspondente à edição de Angelus Walz.


503
Fons sapientie, op. cit. p. 194: “[...] Nos vero tanti confessoris venerabilem sepulturam, que miraculorum
fulgoribus generalem illustrat ecclesiam, cupientes dignis christiane devotionis honoribus frequentari, vere
penitentibus et confessis, illam in festivitate prefata, annis singulis, cum devotione ac reverentia debita
visitantibus de omnipotentis Dei misericordia et beatorum Petri et Pauli apostolorum eius auctoritate confisi,
unum annum de iniuncta sibi penitentia misericorditer relaxamus”.
504
Cf., infra, p. 176-177 [Nota 407].
505
AUVRAY, Reg. nº 2308, p. 1218: “Universis Christi fidelibus significat se, — cum in Perusinae suburbio
civitatis, loco ab ipsius populo ordinis Praedicatorum fratribus assignato, ipsi fratres fundare ad honorem
beati Dominici ecclesiam et claustrum juxta praedictum ordinem coepissent, — eidem operi caritatis subsidia
impendentibus unum annum et quadraginta dies de injuncta eis paenitentia relaxare”.
216

A lógica utilizada pelo papa Gregório IX era a de uma troca, pois aqueles penitentes que se
vinculassem ao culto de Domingos e prestassem a ele a devida veneração alcançariam o
benefício da indulgência papal.



Superado o problema da fama de santidade e exploradas algumas articulações da


magna devotio com a canonização de Domingos, existiam ainda outros requisitos a serem
cumpridos para que o fundador dos dominicanos pudesse receber o reconhecimento oficial
do papado na forma de uma canonização. Eles encontram-se devidamente registrados
naquele mandato que Gregório IX enviou aos delegados/comissários papais para que eles
iniciassem um inquérito na cidade de Bolonha:506 sinais públicos, evidências de prodígios e
de milagres, corroborados por testemunhos idôneos, que permitissem esclarecer a natureza
daquela santidade.
Tais requisitos começaram a ser contemplados com a realização daquela translatio
corporis no convento de San Nicolò delle Vigne, que foi mais uma etapa realizada como
parte do processo de construção da santidade de Domingos de Gusmão. Uma iniciativa
repleta de excepcionalidade, já que autorizada pelo próprio pontífice romano e realizada
antes mesmo do processo de canonização, o que não era uma regra e sim uma exceção
naquele contexto histórico.507
O evento da trasladação do corpo de Domingos foi justamente a ocasião em que
teria ocorrido o fenômeno do “aroma de santidade”, repetidamente explorado pelos
testemunhos do processo de canonização,508 que garantiam ter presenciado e sentido o tal
aroma diferenciado, que teria exalado da sepultura e dos ossos do antigo mestre geral da
Ordem. Não restam dúvidas de que este relato se encaixa perfeitamente naquele conceito
de sinal público de santidade, já que teria ocorrido em uma cerimônia religiosa com
público diverso, por isso foi tão explorado nas atas do inquérito de Bolonha, pois se
adequava à orientação passada por Gregório IX aos delegados/comissários papais no
mandato de abertura do processo. Partindo da dinâmica inquisitorial daquele trabalho, os

506
Cf., infra, p. 152 [Nota 350].
507
Cf., infra, p. 188 et seq.
508
Cf., infra, p. 209 [Notas 488 e 489].
217

representantes do pontífice romano conseguiram destacar exatamente as informações


consideradas “pertinentes” para o processo de canonização.
Mas não se pode dizer que aquele evento realizado no convento dominicano de
Bolonha tenha contribuído apenas para evidenciar os sinais públicos de uma santidade. A
trasladação em si, naquele contexto histórico, representava uma forma corriqueira de
reconhecimento local da santidade, de maneira que a sua realização marcava o
estabelecimento público de um culto. Não é um mero acaso que tantas autoridades
(clericais, religiosas e comunais) tenham se feito presente àquela cerimônia solene ocorrida
no final de maio de 1233. A presença destas autoridades e de um público diverso aponta
justamente a representatividade daquele evento para a cidade de Bolonha: um novo patrono
estava surgindo.
Portanto, a realização da mencionada translatio corporis marcou uma etapa local de
reconhecimento da santidade e de estabelecimento de um culto público para Domingos de
Gusmão na cidade de Bolonha. Além de registrar a convergência de forças locais para
aquele empreendimento de santidade, pois lá estavam os dirigentes comunais e suas tropas,
as autoridades eclesiásticas e os demais prelados de Ravenna e de Bolonha, os dirigentes
da Ordem dos Frades Pregadores e os frades que se deslocaram de diferentes regiões para
participar daquele evento. Assim sendo, a abertura de um processo de canonização em
favor do fundador dos dominicanos, pouco mais de um mês após aquela cerimônia
religiosa, não foi obra do acaso. Foram as mesmas instituições ali reunidas, com o reforço
de integrantes da universitas scolarium Bononie, que deram início ao processo de
canonização ao demandar ao papa Gregório IX a inscrição de Domingos no catálogo de
santos da Igreja romana.509



O início de um inquérito pontifício na cidade de Bolonha marca a abertura de uma


nova etapa no empreendimento de santidade que reuniu instituições locais e universais para
alavancar a canonização de Domingos de Gusmão. Para começar aquela inquisitio era uma
resposta do pontífice romano à comissão que demandou a realização de um processo de

509
Cf., infra, p. 142 [Nota 322].
218

canonização para o fundador dos dominicanos.510 Então, é como se as instituições


bolonhesas tivessem provocado o papado a atuar naquela causa de santidade. Seria essa a
dinâmica de poder atuante no caso de Domingos? Foram as forças locais que estimularam
a atuação do papado? Por quais motivos as instituições e os grupos locais de Bolonha se
interessariam em sustentar um processo de canonização em Roma? A quem interessava de
fato este procedimento burocrático e centralizado?
Ao atentar para as duas etapas anteriores e para a atuação dos representantes de
Gregório IX é possível sustentar uma lógica contrária a que foi identificada logo acima.
Tudo indica que era a Igreja romana que estava mobilizando aquelas instituições para a
abertura de um processo de canonização, algo que contemplava duplamente os interesses e
os projetos do papado: permitia assumir a responsabilidade pelo reconhecimento oficial da
santidade do antigo líder da Ordem dos Frades Pregadores, ao mesmo tempo em que
reforçava a importância de uma nova disciplina eclesiástica para a inscrição de santos no
catálogo da Igreja romana.
Afinal de contas a inquisitio em questão foi realizada por representantes nomeados
diretamente pelo pontífice romano, seguindo orientações e executando procedimentos que
atendiam às diretrizes emanadas pela cúria romana. Neste sentido se pode afirmar que o
inquérito ocorrido em Bolonha era uma modalidade de gestão, um instrumento de
exercício de poder,511 em que o representante maior da Igreja romana interferia em uma
realidade local para fazer prevalecer uma disciplina eclesiástica que só reafirmava a sua
própria autoridade. Por isso se pode afirmar que o papado era a instituição mais interessada
no cumprimento específico desta etapa, pois para as instituições locais bolonhesas a
translatio corporis, por si só, já funcionava como uma forma de reconhecimento da
santidade e de estabelecimento de um culto público.
Ao observar as ações do frade João de Vicenza no âmbito da magna devotio e a
atuação do prior provincial Estevão para a realização da translatio corporis é possível
apontar a interferência da autoridade pontifícia nas etapas anteriores deste empreendimento
de santidade, de forma a criar os requisitos necessários para uma canonização formal. Não
restam dúvidas de que ambos os frades dominicanos atuaram como legado papal naquele
ano de 1233 e que, portanto, eles eram representantes diretos do pontífice Gregório IX. As

510
Cf., infra, p. 142 [Nota 322].
511
Cf., infra, p. 202 e 203.
219

pregações do frade João contribuíram para semear e difundir uma fama de santidade para
Domingos, ao passo que as suas demais ações em Bolonha permitiram, no mínimo, colocar
os dirigentes comunais e o bispo daquela cidade sob a tutela do papado.512
Já a mobilização do prior Estevão junto aos frades dominicanos de Bolonha teria
levado ao evento da trasladação do corpo de Domingos,513 permitindo fundamentar uma
base local para aquele culto e superar o movimento de resistência que teria impedido
aquele reconhecimento de santidade por doze anos. Além disso, o referido frade também
participou do processo de canonização como testemunha do inquérito de Bolonha, sendo o
único em sua respectiva argumentação a articular a santidade de Domingos com a magna
devotio e com as ações dos dominicanos em diferentes cidades italianas (reformando
estatutos comunais e perseguindo os hereges).514 Uma lógica de pensamento que refletia
perfeitamente os projetos do papado para a península italiana.
Assim sendo, dois representantes da autoridade pontifícia estiveram diretamente
envolvidos nas etapas de base para aquele empreendimento, contribuindo para formar os
requisitos necessários para uma canonização em Roma, além de outros que participaram da
fase de investigação e de avaliação da santidade de Domingos. De forma que se pode
afirmar, sem sombra de dúvidas, que o papado e a Ordem dos Frades Pregadores foram as
únicas instituições a serem representadas em todas as etapas deste empreendimento
coletivo de santidade, desde a sua preparação até a sua conclusão com a canonização
realizada em 03 de julho de 1234.
Por fim, caberia ainda perguntar: de todas aquelas instituições envolvidas na causa
de Domingos, qual delas teria condições e poderes (ambos historicamente comprovados)
para exercer a função de uma força superior a coordenar os diferentes grupos e a direcionar
todas as iniciativas para o resultado almejado? A resposta a esta pergunta aponta o papado
como a força que coordenou e que direcionou os grupos locais para a causa de Domingos
de Gusmão. Isto não significa que as instituições locais e a Ordem dos Frades Pregadores
não tivessem interesses próprios para se vincular aquele empreendimento de santidade,
pois de fato tinham. E sim que não agiram de forma independente, já que as suas ações não
ocorreram à revelia do poder pontifício, ao contrário, convergiram para os projetos e os

512
Cf., infra, p. 181 et seq.
513
Cf., infra, p. 194 [Nota 447].
514
Cf., infra, p. 128 [Nota 293].
220

interesses do papado naquele contexto histórico.


221

CONCLUSÃO

A Pax Dominici: o papado, os dominicanos e as instituições bolonhesas em


um amplo acordo de paz

O século XIII foi apontado por parte da historiografia ocidental como sendo o
período histórico em que o papado teria consolidado uma prerrogativa exclusiva para o
reconhecimento oficial da santidade, por meio do processo de canonização como um
procedimento prévio para a inscrição de um novo santo no catálogo da Igreja romana. A
obrigatoriedade da abertura formal de uma causa em Roma e do cumprimento de etapas e
requisitos básicos antes da decisão final do pontífice romano teriam servido de base para
legitimar a autoridade papal no culto aos santos e para estender a jurisdição romana sobre
diferentes territórios.
Teria, de fato, ocorrido uma centralização das canonizações em Roma? O papado
passou a exercer um direito exclusivo no estabelecimento de novos cultos de santidade? O
que se pode concluir a partir do caso dominicano aqui analisado? Tudo indica que houve o
estabelecimento de uma lógica universal associada aos cultos oficializados pelo papado,
mas que isso não significou o desaparecimento dos reconhecimentos e dos cultos em
âmbito local. E mesmo as canonizações pontifícias não eram realizadas sem uma
articulação com grupos e instituições locais, como aponta o caso de Domingos de Gusmão.
Foi também neste contexto histórico que algumas cidades italianas procuraram se
afirmar com governos mais autônomos, tomando decisões e iniciativas para se
desvincularem da autoridade monárquica ou imperial, e para ampliarem os direitos da
comuna. O culto aos santos foi rapidamente apropriado para a lógica de uma religião cívica
e o potencial de articulação política da santidade com os grupos dirigentes citadinos pode
ser observado em diferentes casos na península italiana.
Nas primeiras décadas do século XIII, mais precisamente nos anos de 1230, o
papado e algumas cidades da região centro-setentrional da Itália tinham um adversário em
comum: Frederico II, imperador e monarca. É fato conhecido que o papado e o império
tinham chegado a um acordo de paz nesse período que proporcionou uma diminuição dos
222

conflitos de autoridade e até mesmo apoios de ambas as partes, compartilhando algumas


missões, dentro e fora da Península Itálica. Mas isso não significa que o papado tenha
abdicado do projeto de se fortalecer em detrimento da autoridade imperial, inclusive
interferindo nos conflitos com as cidades e captando para a sua zona de influência aquelas
comunas rebeldes ao poder exercido pelo imperador.
No pontificado de Gregório IX houve uma tendência para priorizar as causas de
canonização envolvendo candidatos mendicantes. Justamente em uma conjuntura em que
os frades mendicantes foram amplamente utilizados em missões da Igreja romana, atuando
como legados e delegados papais em diferentes cidades italianas. Por coincidência ou não,
foi neste período em que foram oficializadas as canonizações de Francisco, Antônio,
Domingos e Elisabete, todos relacionados às ordens religiosas que ofereceram pessoal
qualificado e bases territoriais para o desenvolvimento do programa político-religioso do
papado para a península italiana.
Se os frades mendicantes foram utilizados de forma recorrente pelo papado para
interferir na vida e na organização citadina, o culto aos santos se tornou, em determinados
casos, um ponto de convergência entre o programa político-religioso da Igreja romana e os
projetos de ampliação dos direitos e da autonomia das comunas, principalmente daquelas
que se opunham abertamente à autoridade imperial de Frederico II. Essa foi a dinâmica que
propiciou a aproximação da Comuna de Bolonha com o papado desde meados da década
de 1220, tornando possível uma reunião de forças para alavancar uma causa pelo
reconhecimento da santidade de Domingos de Gusmão e para o estabelecimento de um
culto público de santidade naquela cidade da Emilia-Romagna.



Ao realizar uma análise genealógica do discurso manifestado na bula Fons


sapientie foi possível apontar a elaboração de uma versão oficial/romana para a
canonização de Domingos de Gusmão, assim como o delinear de um triplo perfil de
santidade para o primeiro mestre dos dominicanos. Nesse sentido, a ordem do discurso
construída naquele documento já apontava indícios da articulação entre o papado, a Ordem
dos Frades Pregadores e a cidade de Bolonha.
223

A caracterização de uma santidade militante, por exemplo, valorizava o ideal de


uma milícia cristã em defesa da Igreja, da fé católico-romana e dos seus fiéis. Por meio
desse perfil de santidade era possível legitimar o combate às heresias, destacando todos
aqueles que lutavam ao lado da Igreja romana como milites Christi, a começar pelo próprio
Domingos e pelos seus discípulos.
Naquele contexto histórico italiano da primeira metade do século XIII não poucas
vezes o combate às heresias foi um ponto de encontro para as iniciativas do papado, das
Ordens Mendicantes e dos dirigentes citadinos. Pois se de um lado fortalecia a política e as
diretrizes pontifícias, de outro desequilibrava as relações de poder no âmbito das comunas,
permitindo aos aliados do papa exercer um poder persecutório contra os seus adversários
na esfera local. Enquanto os frades mendicantes se alçavam a posições de poder como
representantes papais, atuando por força de mandatos pontifícios que autorizavam, entre
outras coisas, a condenação/prisão e a absolvição/libertação de qualquer pessoa.
Por sua vez, o perfil de uma santidade apostólica destacava a vida em comunidade e
o uso da pregação como principal instrumento de evangelização cristã. Tal caracterização
da santidade de Domingos acabou valorizando um estilo de vida religiosa adequado aos
Frades Pregadores, sendo mais um indício de uma legitimação papal da ordem religiosa
que o próprio documento identifica como uma obra de vida daquele santo.
Portanto este perfil de santidade, ao mesmo tempo em que valorizava a trajetória
religiosa de Domingos de Gusmão, associado a um estilo de vida apostólico, também
representava um movimento do papado para estreitar os laços com a instituição religiosa
que ele liderou. De modo que se pode concluir que o reconhecimento oficial da santidade
do antigo mestre geral dos Frades Pregadores foi também uma forma encontrada para
fortalecer institucionalmente a ordem dominicana.
Já a elaboração de um perfil de santidade ascético-penitencial permitiu articular um
modelo de perfeição recorrente na literatura hagiográfica e cristã (aquele dos ascetas) com
um ideal de espiritualidade que estava cada vez mais se expressando nos movimentos
religiosos registrados nas cidades italianas (aquele dos penitentes). Se de um lado se
valorizava uma tradição dos escritos cristãos e os modelos por ela veiculados, por outro se
fazia uma concessão aos movimentos, as expressões e as demandas de fé que se
desenvolviam nos ambientes citadinos.
224

Não foi mero acaso que aquela bula de canonização tenha sido encerrada com a
concessão de indulgência pelo pontífice romano para os penitentes que fossem visitar o
sepulcro de Domingos no dia de celebração do seu culto de santidade. Pelas manifestações
coletivas e pela valorização deste ideal religioso nas cidades, os penitentes estiveram cada
vez mais no centro das atenções do papado, que queria despertar o interesse destes grupos
e atender suas demandas de fé e espiritualidade.
Por isso, a relação penitência/indulgência foi articulada ao culto da santidade do
antigo líder dos dominicanos, pois era uma das formas da Igreja romana dialogar com os
contextos citadinos e aproveitar a ocasião daquela canonização para captar em favor da fé
católico-romana os grupos de penitentes que se manifestavam em diferentes cidades
italianas naquele período, entre as quais estava Bolonha.
Além dos diferentes perfis de santidade delineados para Domingos de Gusmão na
bula Fons sapientie, também se apontou a articulação entre saber e poder no discurso
presente no referido documento. Nos diferentes núcleos de formação discursiva daquele
texto foram mobilizados saberes característicos da História, da Teologia e do Direito, que
serviram de base para a produção de uma verdade. A elaboração de um discurso verdadeiro
sobre a santidade e sobre a canonização do primeiro mestre geral dos Frades Pregadores,
por sua vez, legitimava o exercício do poder pelas instituições diretamente vinculadas
àquele culto de santidade, principalmente o papado e a ordem dominicana, que naquele
contexto histórico compartilhavam alguns projetos e missões na Península Itálica.



Desde meados da década de 1220 houve um acirramento dos confrontos de


autoridade entre Frederico II e algumas cidades da região centro-setentrional da península
italiana. O motivo principal das controvérsias eram as iniciativas daquele imperador para
restaurar uma organização política mais centralizada, retirando das comunas direitos e
prerrogativas que foram conquistadas no século anterior.
A formação das societatis foi a resposta daquelas cidades aos avanços do poder
imperial. Organizando-se em ligas intercitadinas, elas pretendiam reunir forças (políticas,
econômicas, militares) para enfrentar os movimentos do imperador Frederico II e avançar
225

contra os seus aliados na Itália. Foi neste contexto que se deu a renovação da Societas
Lombardiae, em 1226, sob a liderança das comunas de Milão e de Bolonha.
Neste quadro político mais amplo de intensificação dos conflitos entre Frederico II
e as comunas italianas, o papado passou a ocupar uma posição intermediária, como a de
um juiz conciliador, atuando para arbitrar esses confrontos e celebrar acordos de paz que
permitissem suspender aqueles enfrentamentos, mesmo que provisoriamente. Ao fazer isso
os representantes da Igreja romana acabavam se alçando a uma posição superior às partes
em litígio, renovando a perspectiva de aquela instituição era de fato representativa de um
poder supremo, que se fazia presente sempre que necessário.
Por outro lado, a concórdia era um ideal representativo da tradição cristã defendida
e veiculada pela Igreja romana, portanto, é possível que a mobilização do papa Gregório
IX e de seus representantes para atuar na arbitragem daqueles conflitos fosse em parte
animada por esse conceito cristão. Mas seria um equívoco não perceber que a celebração
daqueles acordos colocava o papado em condições de avaliar e apontar soluções que
fossem mais adequadas às suas diretrizes e aos seus projetos.
Um dos efeitos dessa atuação pontifícia foi a aproximação político-institucional
com as comunas que eram rebeldes ao poder imperial e que, por isso mesmo, ficaram mais
dispostas a se articular aos projetos da Igreja romana. Partindo da argumentação e das
análises realizadas nos capítulos II e III pode-se concluir que esse foi o caso da Comuna de
Bolonha.
Os confrontos da Societas Lombardiae com o imperador Frederico II criaram a
ocasião para o envolvimento do papado e de seus representantes, que por meio de suas
intervenções conciliadoras trataram de encontrar saídas que preservassem os interesses e os
direitos daquelas cidades. A tendência a favorecer as demandas citadinas por meio das
arbitragens pontifícias foi inclusive percebida por aquele monarca, que registrou sua
insatisfação em epístolas encaminhadas ao papa Gregório IX.
Bolonha certamente esteve entre aquelas comunas que o papado tratou de proteger
diante da ameaça imperial. As bulas papais encaminhadas (em 1233) ao podestà e ao
populus daquela cidade, bem como as orientações expressas ao frade dominicano João de
Vicenza, são registros preservados da aproximação política entre tais instituições. Pois tais
documentos apontam a mobilização do papa Gregório IX e de seus representantes em
defesa dos interesses da comuna bolonhesa.
226

Portanto, a possibilidade de arbitrar conflitos e de celebrar acordos de paz entre as


cidades e o imperador Frederico II, por um lado, atendia ao preceito da concórdia cristã,
algo considerado fundamental para a consecução da missão religiosa defendida pela Igreja
romana. E por outro lado, permitia fortalecer a autoridade pontifícia na península italiana,
criando ocasiões de aproximação com as cidades e de realização de projetos conjuntos.



O quadro contextual mais amplo da política e das relações de poder na Itália do


século XIII foi uma base importante para avaliar a aproximação e a articulação do papado
com a cidade de Bolonha. Mas a avaliação da conjuntura local daquela comuna na década
de 1230 era também essencial para compreender a conjunção de forças que atuou na causa
de santidade de Domingos de Gusmão.
Quando a atenção e o foco de análise foram direcionados para aquele contexto
histórico mais específico foi possível explorar, pelo menos em parte, a trajetória política e
a dinâmica de relações que mobilizava as instituições bolonhesas diretamente envolvidas
naquele projeto/empreendimento coletivo de santidade. A reunião de forças entre a
comuna, a igreja, a universidade e o convento dominicano de Bolonha aparece como um
dado que levanta dúvidas, levando-se em consideração que aquelas três primeiras
instituições estiveram envolvidas em confrontos locais de autoridade e de jurisdição nos
anos anteriores.
A Comuna de Bolonha atuou deliberadamente, desde o início do século XIII, para
se consolidar em uma posição exclusiva de comando sobre a cidade, um projeto político
que não era compatível com direitos, privilégios e prerrogativas que estavam associados
historicamente à diocese e ao Studium local. Não foram poucas as ocasiões em que os
dirigentes comunais tentaram interferir diretamente naquelas duas instituições, colocando-
as em uma posição inferior em relação ao governo comunal.
A Igreja bolonhesa, por sua vez, reagia aos avanços da comuna e atuava para
preservar seus direitos e suas prerrogativas naquela cidade, disputando com o governo
local a jurisdição civil e penal, bem como a autoridade sobre diferentes territórios da
cidade e do condado. Paralelamente a essa disputa com a comuna, o bispo de Bolonha
227

ainda teve que enfrentar a sombra exercida pela autoridade metropolitana do arcebispo de
Ravenna e as seguidas interferências realizadas pelo papado.
Já a universitas scolarium Bononie teve de conviver com uma realidade ainda mais
complexa. Pois quanto mais aquela instituição de ensino aumentava o seu prestígio e a sua
importância no contexto italiano, mais ela chamava a atenção dos grupos políticos locais e
da Igreja romana, que tentavam se projetar sobre a universidade e exercer uma tutela sobre
as suas atividades.
De sua parte, o convento de San Nicolò delle Vigne não estava diretamente
envolvido nesses confrontos locais de autoridade, o que não quer dizer que estivesse longe
da dinâmica e das relações de poder entre aquelas instituições. Os problemas maiores
daquela comunidade dominicana apontavam para o seu interior, já que o plano de
construções, de reformas e de crescimento material não era propriamente um consenso
entre os seus integrantes. Algo que interferiu inclusive no projeto/empreendimento de
reconhecimento da santidade de Domingos.
Assim sendo, o quadro político-institucional de Bolonha, no início da década de
1230, não apontava para uma aproximação entre tais instituições locais, tampouco para a
realização de um projeto/empreendimento compartilhado entre elas. Algo aconteceu para
alterar aquela dinâmica de poder entre as instituições bolonhesas. Além do fato de estarem
estabelecidas na mesma cidade, o que mais a comuna, a diocese, a universidade e o
convento tinham em comum naquele contexto histórico?
O papado e suas intervenções. Esta é a chave para compreender aquela conjunção
de forças que atuou na causa dominicana, tornando possível um movimento coordenado e
organizado para difundir uma fama de santidade, estabelecer um novo lugar de culto,
realizar uma cerimônia pública de reconhecimento local e alavancar um processo de
canonização junto à Igreja romana. Mais uma vez a lógica da concórdia se impunha diante
de conflitos político-institucionais e a celebração de uma paz encaminhava para uma
conclusão adequada aos interesses e às diretrizes da instituição pontifícia.



Ao explorar as iniciativas locais em Bolonha e as diferentes etapas de construção da


santidade de Domingos de Gusmão foi possível apontar uma articulação entre o papado e
228

os dominicanos, que foi desenvolvida por meio de ações coordenadas e compartilhadas por
integrantes de ambas as instituições. O que não foi feito a partir de uma relação direta do
papa (Gregório IX) com o mestre geral dos Frades Pregadores (Jordão da Saxônia), e sim
por meio de interlocutores que poderiam representar as demandas do pontífice no interior
daquela ordem religiosa.
João, Estevão e Raimundo eram frades da Ordem dos Pregadores naquele contexto
histórico, mas ao mesmo tempo os dois primeiros atuaram como representantes do
pontífice Gregório IX, enquanto o último exercia as funções de capelão e penitenciário
papal. A mobilização desses dominicanos, as tarefas por eles desempenhadas e o contato
mantido com o papa nos anos de 1233 e 1234 apontam o desenvolvimento de uma ação
coordenada, de um projeto acompanhado de perto pela alta hierarquia da Igreja romana.
As análises dos documentos aqui explorados não permitem apontar Jordão da
Saxônia como um opositor àquele empreendimento de santidade. Também não é possível
defender que ele tenha voluntariamente se afastado daquela causa de Domingos de
Gusmão, principalmente pela sua participação na translatio corporis, ao proceder com uma
duplicação da cerimônia que era canonicamente proibida. Tudo indica que o mestre geral
dos Frades Pregadores não coordenava aquelas iniciativas e que não era um interlocutor
próximo do papa Gregório IX.
Provavelmente Jordão tinha a consciência de que aquele era um negotium papal e
que não cabia a ele interferir diretamente, a não ser que fosse convocado para isso, o que
não parece ter ocorrido. Por isso o mestre geral dominicano buscou uma distância segura e
atuou mais como uma testemunha daqueles acontecimentos, registrando em seus escritos a
sua versão para aquela causa de santidade e para as iniciativas que foram tomadas. Mas
não perdeu a oportunidade de marcar visivelmente a sua posição de comando/liderança na
Ordem dos Frades Pregadores, daí aquela ostentação das relíquias de Domingos para um
público diverso, alguns dias após a trasladação.



O principal argumento para defender a tese de um projeto/empreendimento coletivo


de santidade que foi compartilhado por diferentes instituições e coordenado pelo papado
foi desenvolvido no capítulo IV, a partir da avaliação de diferentes etapas de construção e
229

da necessidade de requisitos básicos para a abertura formal em Roma de um processo de


canonização para Domingos de Gusmão.
A primeira etapa desta construção ocorreu no âmbito da magna devotio e por meio
da atuação política e religiosa do frade João de Vicenza. Aquele movimento, o fervor
religioso e as demandas de fé nele expressadas, criaram uma atmosfera ideal para a difusão
de uma fama sanctitatis para o antigo líder dos dominicanos e para a canalização daquelas
manifestações coletivas em favor de um culto de santidade para o primeiro mestre dos
Frades Pregadores.
A translatio corporis realizada no convento de San Nicolò delle Vigne no final de
maio de 1233 foi a segunda etapa de construção da santidade de Domingos de Gusmão.
Segundo a análise dos documentos, o prior Estevão foi o principal articulador do evento,
tendo mobilizado os frades de Bolonha e liderado a comissão que foi a Roma conversar
com o pontífice Gregório IX. A trasladação do corpo do antigo líder dos dominicanos
contribuiu para amplificar aquela fama sanctitatis difundida na magna devotio, ao mesmo
tempo em que representou uma etapa local de reconhecimento da santidade.
As duas etapas anteriores criaram os requisitos necessários para a abertura do
processo de canonização, pois contribuíram deliberadamente para o ressurgimento de uma
devoção no sepulcro de Domingos. Tais iniciativas foram fundamentais para alavancar
aquele projeto de santidade e superar as resistências/oposições que ainda pairavam sobre a
comunidade dominicana de Bolonha.
Com a realização do inquérito naquela cidade o papado conseguiu registrar e
documentar o que era importante para fundamentar a canonização de Domingos de
Gusmão. Tal como argumentado no capítulo IV, não foi uma investigação voltada para
avaliar a possibilidade de um reconhecimento da santidade, foi uma inquisitio direcionada
a criar os subsídios necessários para uma decisão que já tinha sido tomada a priori, sendo
inclusive manifestada no próprio mandato de abertura do processo.
Cabe lembrar que para as instituições bolonhesas aquele empreendimento poderia
ter sido encerrado com a etapa da translatio corporis, que já figurava como um
reconhecimento local de santidade suficiente para o estabelecimento de um culto oficial no
convento de San Nicolò delle Vigne. Se houve continuidade no projeto coletivo, isto se
deve aos interesses e às demandas do papado naquele contexto histórico. O que demonstra
que a Igreja romana não tinha, de fato, um poder exclusivo sobre o reconhecimento da
230

santidade: dependia da atuação de grupos e de instituições locais para que o processo de


canonização tivesse andamento, e pudesse avançar para a avaliação da cúria e para a
decisão final do pontífice romano. Sem a participação dos grupos locais não era possível
impor aquela nova disciplina para as canonizações pontifícias, tampouco garantir apoio e
sustento para um culto de santidade recém-oficializado.



A tese aqui defendida aponta o papado como a principal força que alavancou a
canonização de Domingos de Gusmão. Isso não quer dizer que as demais forças envolvidas
naquela causa tenham sido simplesmente manipuladas pelos interesses e pelas demandas
oriundas da Igreja romana. Todos os grupos envolvidos naquele empreendimento coletivo
de santidade tinham algo a ganhar com o estabelecimento daquele culto em favor do antigo
líder dos dominicanos, mesmo que fosse apenas o apoio político daquela Sede Apostólica.
O que naquele contexto histórico específico não era algo dispensável a nenhuma instituição
que tivesse projetos próprios para realizar.
Na perspectiva historiográfica aqui defendida, a Igreja romana teria mobilizado
autoridades e instituições locais para iniciar e sustentar uma causa de santidade em favor
do primeiro mestre geral dos Frades Pregadores. Os registros e os indícios dessa
mobilização pontifícia foram apontados ao longo dos capítulos por meio das análises feitas
sobre o corpus documental selecionado para o doutorado.
Portanto, partindo dessas análises se pode concluir que não foi o papado que foi
provocado a canonizar Domingos de Gusmão a partir do pedido que foi protocolado em
Roma por uma comissão de representantes das instituições bolonhesas. A abertura do
processo de canonização foi solicitada por aquelas instituições justamente porque era uma
demanda daquela Sede romana.
A principal estratégia utilizada pelo papado naquele contexto para se aproximar da
cidade de Bolonha e para mobilizar suas instituições locais foi a possibilidade de uma
ampla concórdia, de um acordo de paz que contemplasse, ao mesmo tempo, os interesses
da comuna bolonhesa e da Igreja romana. No plano externo isso significou uma atuação
política do papado para intermediar os enfrentamentos da Societas Lombardiae com o
imperador Frederico II, de forma a preservar as conquistas territoriais e jurisdicionais da
231

Comuna de Bolonha, e se possível legitimar novos avanços contra os aliados do poder


imperial.
No plano interno, por sua vez, o acordo de paz deveria possibilitar a superação dos
conflitos entre as instituições locais. Por isso, no mesmo período histórico, ocorreram
seguidas interferências político-institucionais da Igreja romana na cidade de Bolonha,
principalmente nas controvérsias envolvendo a comuna, a diocese e a universidade. Nesse
sentido, também é provável que a chegada do frade João de Vicenza naquela cidade, bem
como a atuação política e religiosa do prior Estevão no âmbito da ordem dominicana,
tenham representando um esforço do papado para encerrar as divergências no convento de
San Nicolò delle Vigne a respeito da canonização de Domingos de Gusmão.
A articulação entre os projetos políticos da cidade de Bolonha e da Igreja romana,
assim como a conjunção de forças locais/institucionais para aquela causa de santidade
dominicana, foram movimentos representativos de um amplo acordo que se concretizou na
canonização do primeiro mestre geral dos Frades Pregadores. Por isso, aquele culto de
santidade que foi estabelecido para Domingos de Gusmão no convento bolonhês e
ratificado oficialmente pelo papado, por meio da bula Fons sapientie, foram os principais
efeitos de uma Pax Dominici, uma concórdia coordenada pelo poder pontifício e celebrada
com o apoio dos dominicanos e das instituições locais.
232

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