Tese Final Versão PPGHC
Tese Final Versão PPGHC
Tese Final Versão PPGHC
INSTITUTO DE HISTÓRIA – IH
Rio de Janeiro
2018
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ
INSTITUTO DE HISTÓRIA – IH
Rio de Janeiro
Março/2018
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ
INSTITUTO DE HISTÓRIA – IH
Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a)
autor(a).
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ
INSTITUTO DE HISTÓRIA – IH
Aprovada por:
.
Prof.ª Dr.ª Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva (PPGHC/UFRJ)
.
Prof.ª Dr.ª Leila Rodrigues da Silva (PPGHC/UFRJ)
.
Prof. Dr. Paulo Duarte Silva (PPGHC/UFRJ)
.
Prof.ª Dr.ª Ana Paula Lopes Pereira (UERJ)
.
Prof.ª Dr.ª Carolina Coelho Fortes (UFF)
Rio de Janeiro
Março/2018
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ
INSTITUTO DE HISTÓRIA – IH
DEDICATÓRIA
Dedico esta tese de doutorado à Dayane Martins Porto e a Vicente Martins Porto,
duas pessoas fundamentais na minha vida. A ela por ser a mulher que eu amo, com quem
decidi construir uma família e que nos últimos anos esteve sempre ao meu lado me
apoiando e compartilhando comigo os projetos, as dificuldades e as conquistas que a vida
me proporcionou até agora. A ele por ser o primeiro fruto desse amor, o projeto conjunto
que modificou profundamente a nossa vida e que abrilhantou nossa família, a força que nos
move a querer um mundo melhor.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ
INSTITUTO DE HISTÓRIA – IH
AGRADECIMENTOS
Ao Programa de Estudos Medievais, por ser uma porta aberta aos estudantes e
pesquisadores que decidem se dedicar aos estudos sobre a Idade Média no Brasil, por
oferecer estrutura e acompanhamento acadêmicos que ajudam a pavimentar o caminho e a
concretizar os sonhos de muitos jovens que por lá passam.
À Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva, por ter seguidas vezes apostado no meu
potencial, por ter me aberto muitas portas, por confiar no meu trabalho, por ter
pacientemente ajudado na minha formação, apesar de todas as dificuldades que a vida e eu
mesmo criamos para ela.
À Leila Rodrigues da Silva, por compartilhar com a Prof.ª Andréia Frazão a
coordenação do Programa de Estudos Medievais e por ter contribuído com a minha
caminhada acadêmica, sempre incentivando o meu crescimento.
A todos os professores com quem eu convivi e que me ajudaram a construir uma
base educacional, também fundamental para a carreira que eu escolhi e para todos os meus
projetos de vida.
Aos familiares que estiveram sempre ao meu lado, apoiando os meus projetos e me
ajudando nos momentos mais difíceis: Alonso Ferreira Porto (meu pai), Maria Elisabete
Barbosa de Azevedo (minha mãe), Gustavo de Azevedo Porto (meu irmão), Simone
Almeida Porto (minha irmã) e Isabel Cristina Martins (minha sogra).
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ
INSTITUTO DE HISTÓRIA – IH
RESUMO
Rio de Janeiro
Março/2018
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ
INSTITUTO DE HISTÓRIA – IH
ABSTRACT
Rio de Janeiro
Março/2018
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ
INSTITUTO DE HISTÓRIA – IH
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................................................p. 11
CAPÍTULO II – Três projetos de poder concorrentes na Península Itálica do século XIII: o papado, o
império e as comunas......................................................................................................................p. 85
CAPÍTULO III – Bolonha nas primeiras décadas do século XIII: os grupos e as instituições locais em
meio aos interesses do papado e do império..................................................................................p. 130
Os dominicanos em Bolonha: uma sede para a Ordem e para o culto a Domingos................p. 163
CAPÍTULO IV – O papado e os dominicanos na canonização de Domingos: as iniciativas e as etapas
de construção da santidade...........................................................................................................p. 178
BIBLIOGRAFIA..........................................................................................................................p. 232
11
INTRODUÇÃO
1
Domingos de Gusmão nasceu por volta de 1170, na cidade de Caleruega, Reino de Castela, e morreu em
1221, na cidade de Bolonha, localizada na região da Emilia-Romagna, na Península Itálica. Ele teve uma
trajetória inicial de formação e de atuação religiosa na diocese de Osma, na Península Ibérica. Depois,
acompanhando o bispo de Osma, ele atuou como pregador em diferentes cidades do sul do Reino da França.
Domingos foi apontado pelo papado e por uma corrente dominicana como o fundador da Ordem dos Frades
Pregadores, uma tradição histórica que começou a ser desenvolvida na década de 1230, de forma associada às
iniciativas para a sua canonização pela Igreja romana.
2
Gregório IX foi pontífice romano de 1227 a 1241. Ele se chamava Hugolino, era filho do conde de Segni e
sobrinho do também papa Inocêncio III. Antes de se tornar papa, ele atuou como clérigo na corte pontifícia,
tendo desempenhado a função de legado papal na região da Lombardia (na Península Itálica) durante o
pontificado de seu antecessor, o papa Honório III. Gregório IX foi o papa que canonizou Francisco de Assis,
Antônio de Lisboa/Pádua e Domingos de Gusmão.
12
foi feito neste campo de investigação, ou de fazer um amplo balanço historiográfico. Mas
sim o objetivo de explorar algumas tendências de abordagem, de análise e de interpretação
veiculadas na historiografia, de forma a esclarecer os caminhos que já foram percorridos
por outros autores e apresentar novas possibilidades historiográficas a partir das escolhas e
das reflexões feitas nesta tese de doutorado.
Por isso mesmo optou-se por apresentar os comentários na parte final, reunindo os
trabalhos em grupo, de forma a demarcar comparativamente as tendências de abordagem,
de análise e de interpretação entre os autores selecionados, para depois apontar as escolhas
feitas nesta tese. Tais escolhas demarcam a originalidade das reflexões e dos argumentos
desenvolvidos ao longo dos capítulos, e que surgiram principalmente da análise do corpus
documental que foi explorado no decorrer da pesquisa de doutorado.
Os trabalhos selecionados e aqui apresentados não seguiram um critério específico
de seleção. Em grupo eles formam uma amostragem parcial das abordagens e das análises
que já foram desenvolvidas na historiografia acerca da canonização de Domingos de
Gusmão. Quanto à organização desta apresentação, seguiu-se uma lógica de reunir os
trabalhos pelo tipo de texto (trabalhos em atas de evento acadêmico, artigos publicados em
periódico, capítulos de livros e, por fim, livros), de maneira a equilibrar a comparação
entre os mesmos e os principais argumentos destacados.
O primeiro texto a ser aqui explorado é o de Pierre Kerbrat, publicado em 1995,
como parte das atas do colóquio “La religion civique à l’époque médiévale et moderne
(chrétienté et islam)”, com o título de Corps des saints et contrôle civique à Bologne du
XIIIe siècle au début du XVIe siècle.3 O trabalho em questão focaliza o controle cívico
exercido em Bolonha, entre os séculos XIII e XVI, aos corpos de santos mantidos naquela
cidade e que eram alvo da devoção popular.
Inicialmente o autor destaca a importância do corpo para o culto cívico praticado
em Bolonha, a tal ponto que o exercício do direito de guarda e conservação de um sepulcro
colocava em contradição as instituições religiosas e civis daquela cidade: afinal, quem
tinha esse direito? A questão não era meramente de cunho religioso, pois envolvia o direito
de jurisdição praticado por estas instituições e pelas autoridades citadinas. Segundo o
3
KERBRAT, Pierre. Corps des saints et contrôle civique à Bologne du XIIIe siècle au début du XVIe siècle.
In: COLLOQUE “LA RELIGION CIVIQUE À L’ÉPOQUE MÉDIÉVALE ET MODERNE (CHRÉTIENTÉ
ET ISLAM)”, 1993, Nanterre. Actes... Rome: École Française de Rome, 1995. p. 165-185.
14
autor, o poder comunal estabelecido em Bolonha não queria ter uma posição subalterna em
relação às demais instituições promotoras do culto cívico.4 Para Kerbrat o primeiro caso a
apontar iniciativas diretas da Comuna de Bolonha para se associar ao culto de relíquias foi
justamente o de Domingos de Gusmão.
O autor também destaca a resistência inicial dos frades do convento de Bolonha,
frustrando o desenvolvimento de um culto junto ao sepulcro daquele que foi apontado
como o fundador dos dominicanos. Tal quadro teria se alterado no início da década de
1230, quando os partidários da aclamação de um culto chegaram a uma nova decisão por
conta do estado deplorável em que se encontrava o local de sepulcro do antigo líder. Com
isso, a translatio corporis,5 ocorrida em 23 de maio de 1233, figurou como um prelúdio ao
processo de canonização.6
O crescimento do fervor popular ao culto de Domingos, associado ao movimento
religioso da magna devotio7 e às pregações de João de Vicenza,8 assim como a
movimentação de autoridades eclesiásticas no convento dominicano e o segredo em torno
da translatio corporis de Domingos, teriam despertado a atenção do poder comunal. Por
isso, o podestá9 de Bolonha, devidamente acompanhado por uma tropa, se fez presente ao
referido evento, para assegurar que aquele “corpo santo” permaneceria em seu território e
que não seria transferido para outro convento da Ordem dos Pregadores.
4
Ibid., p. 166 et seq.
5
Trata-se de uma expressão em latim que aparece com recorrência nos documentos que se relacionam com a
canonização e com o culto a Domingos de Gusmão. A referida expressão faz referência à trasladação do
corpo de Domingos que foi realizada no convento de San Nicolò delle Vigne (localizado em Bolonha), sendo
transferido de um sepulcro comum para o altar de uma capela da nova igreja que foi construída naquela
comunidade dominicana.
6
KERBRAT, op. cit., p. 169.
7
A magna devotio, também conhecida como Alleluia, foi um movimento religioso que se difundiu por
diferentes cidades italianas no ano de 1233, e que ficou marcado pelas grandes procissões de penitentes e de
flagelantes realizadas nos espaços urbanos, bem como pelas pregações feitas por frades mendicantes. Tal
movimento será melhor explorado no capítulo IV desta tese. Cf., infra, p. 168 et seq.
8
João nasceu por volta de 1200, na cidade de Vicenza, e morreu por volta de 1265, na região da Puglia
(ambas na Península Itálica). Ele era filho de um advogado de nome Manelino que atuava na administração
citadina de Vicenza. João desenvolveu estudos jurídicos em Pádua, onde teve seu primeiro contato com
Domingos de Gusmão, por volta de 1220, por meio das pregações que o Mestre Geral dos Frades Pregadores
realizava naquela cidade. Posteriormente ingressou na Ordem dos Pregadores e ocupou o cargo de prior do
convento de San Agostino (em Pádua) por volta de 1230. Ele foi um dos líderes religiosos do movimento da
magna devotio e atuou, paralelamente, como delegado papal no ano de 1233, arbitrando diversos conflitos
comunais como representante de Gregório IX.
9
Podestá é um termo que aparece em alguns documentos explorados ao longo desta pesquisa de doutorado e
serve para identificar o principal magistrado da Comuna de Bolonha, aquele que era o primeiro representante
do governo citadino, responsável por executar as decisões emanadas dos conselhos citadinos, por zelar pelo
cumprimento dos estatutos comunais e pelo exercício da justiça local.
15
10
KERBRAT, op. cit., p. 170 et seq.
11
O’CARROLL, Maura. The cult and liturgy of St Dominic. In: CONVEGNO STORICO
INTERNAZIONALE “DOMENICO DI CALERUEGA E LA NASCITA DELL’ORDINE DEI FRATI
PREDICATORI”, 41, 2004, Todi. Atti... Spoleto: Centro italiano di studi sull'Alto Medioevo, 2005, p. 567-
611.
12
Jordão nasceu por volta de 1190, em Dassel (no Ducado da Saxônia), na região da Vestfália, e morreu em
1237, vítima de um naufrágio na Costa da Síria. Ele era filho do conde de Oberstein e se formou como
teólogo na Universidade de Paris. Em 1219 teve seus primeiros contatos com Domingos de Gusmão, que
costumava pregar aos estudantes universitários de Paris. No mesmo ano Jordão ingressou na Ordem dos
Frades Pregadores, também por influência de Reginaldo de Orleans, que era frade dominicano e professor
daquela universidade. Em 1221 ele participou do primeiro Capítulo Geral da Ordem e foi indicado para o
cargo de Prior Provincial da Lombardia. No ano seguinte foi eleito Mestre Geral da Ordem, cargo que ele
ocupou até a sua morte em 1237.
13
O’CARROLL, op. cit., p. 570 et seq.
16
dominicana em Bolonha. Tais aspectos teriam motivado novas reflexões sobre o sepulcro
do fundador da Ordem, evoluindo para o evento da translatio corporis, que teria
evidenciado uma mudança de atitude dos frades em relação ao culto para Domingos. 14
Maura O’Carroll ainda acrescenta que a canonização de Domingos de Gusmão
tornou aceitável tanto o seu culto quanto a sua Ordem, estendendo para aquela instituição
religiosa o prestígio conferido ao seu fundador. De tal forma que os frades dominicanos
ficaram mais confiantes para explorar a vida e os milagres de seu antigo líder, resultando
nos primeiros textos sobre as origens dominicanas.15 Além disso, o reconhecimento papal
também abriu o caminho para a composição de uma liturgia associada à celebração
daquele culto, a começar pelos dez sermões atribuídos a Pelagius Parvus, que teriam sido
elaborados e pronunciados entre 1233 e 1244.16
Entre os artigos selecionados para esta reflexão historiográfica está o de Luigi
Canetti, intitulado Rito, narrazione, memoria. Primi racconti sulle ‘origini’ dei frati
Predicatori, que foi publicado em 2003, no âmbito do periódico “Mélanges de l’École
française de Rome. Moyen Âge”.17 O texto aborda os primeiros relatos elaborados sobre a
origem da Ordem dos Frades Pregadores, explorando a construção da imagem do santo
fundador e da própria ordem religiosa como partes de um mesmo processo.
Ao analisar os relatos em questão, o autor identifica uma caracterização ascética e
martirial do ideal de perfeição cristã associado à santidade fundadora de Domingos. Para
ele isto evidencia uma estilização discursiva comum a variados documentos sobre a origem
da instituição dominicana, o que apontaria a existência de um núcleo ideológico-narrativo
embasando a elaboração daqueles escritos. A utilização da categoria martirial naquelas
narrativas chega a ser paradoxal, pois representava naquela conjuntura um modelo de
santidade popular e, por isso mesmo, condenado pela alta hierarquia eclesiástica. Mas foi
utilizado nos textos fundadores como forma de propaganda ideológica a serviço da causa
político-eclesiológica do papado, de forma que aquela categoria fazia uma ligação da
santidade de Domingos com a tradição histórica daqueles que morreram em defesa da fé.18
Outra estilização discursiva apontada por Luigi Canetti nos referidos relatos é
14
Ibid., p. 571 et seq.
15
O’CARROLL, op. cit., p. 574.
16
Ibid., p. 575 et seq.
17
CANETTI, Luigi. Rito, narrazione, memoria. Primi racconti sulle ‘origini’ dei frati Predicatori. Mélanges
de l’École française de Rome. Moyen Âge, Roma, t. 115, n. 1, p. 269-294, 2003.
18
Ibid., p. 277 et seq.
17
aquela que procura associar um caráter profético à santidade de Domingos, cuja atuação é
comparada ao ardor metafórico das palavras de Elias nas escrituras sagradas do
cristianismo. Tal articulação foi feita em um texto de Estevão de Salanhac que se referia à
pregação/profecia realizada por um frade dominicano na vigília da festa de são Domingos,
que estava recém-canonizado.19
Segundo Canetti, a mitologia discursiva criada pelos dominicanos foi se
desenvolvendo através das constantes reescritas dos textos formadores da vida e da
santidade de Domingos, que foi alçado à posição de santo fundador daquela instituição
religiosa e de patrono do Ofício Inquisitorial, a partir dos acontecimentos relacionados à
sua canonização pela Igreja romana.20 Por fim, o autor destaca que a luta contra os hereges
foi convertida naquele contexto histórico em guerra santa, de forma que a ordem política
que se visava legitimar era aquela de uma cristandade comandada pelo papa.21
Outro artigo selecionado é o de Beatrice Borghi, intitulado Una ciudad, un santo,
una orden: Bolonia, Domingo de Caleruega y la Orden de los Frailes Predicadores. Entre
la vocación al estudio y la custodia de las sagradas prendas,22 que foi publicado no
periódico “Medievalismo” em 2015. Nele a autora explora a relação entre a cidade de
Bolonha, a Ordem dos Frades Pregadores e a devoção a são Domingos naquela localidade.
No referido artigo a autora defende com veemência a existência de uma devoção
popular a Domingos de Gusmão naquela cidade. Para Borghi a construção de uma nova
basílica para receber os despojos mortais do fundador dos dominicanos e a trasladação
realizada em maio de 1233 seriam efeitos desta devoção popular, que teria vencido a
resistência dos frades de Bolonha e alavancado as iniciativas favoráveis à canonização.23
Ao abordar o evento da translatio corporis de Domingos, Borghi destacou os
graves problemas econômicos que afetavam o convento dominicano naquele contexto, a tal
ponto que o evento foi realizado com as demais construções em andamento, e só a igreja
tinha sido concluída para aquele ritual solene. Ela também ressalta a apropriação do culto
19
CANETTI Rito, narrazione, memoria..., op. cit., p. 281 et seq.
20
Ibid., p. 270.
21
CANETTI Rito, narrazione, memoria..., op. cit., p. 281 et seq.
22
BORGHI, Beatrice. Una ciudad, un santo, una orden: Bolonia, Domingo de Caleruega y la Orden de los
Frailes Predicadores. Entre la vocación al estudio y la custodia de las sagradas prendas. Medievalismo,
Madrid, n. 25, p. 13-54, 2015.
23
Ibid., p. 36 et seq.
18
24
BORGHI, op. cit., p. 23 et seq.
25
BORGHI, op. cit., p. 24 et seq.
26
MERLO, Grado Giovanni. “Militare per Cristo” contro gli eretici. In: . Contro gli eretici. La
coercizione all’ortodossia prima dell’Inquisizione. Bolonha: Il Mulino, 1996, pp. 11-49.
27
Ibid., p. 20 et seq.
28
MERLO, op. cit., p. 46 et seq.
19
sancionou a missão inquisitorial conduzida pelos agentes pontifícios, boa parte deles
formada por frades da Ordem dos Pregadores.29
Já Roberto Paciocco dedicou um capítulo intitulado Verso l’apice, que foi
publicado em 2006, como parte do livro “Canonizzazioni e culto dei santi nella
christianitas (1198-1302)”, para tratar da consolidação dos procedimentos e das regras
desenvolvidas para as canonizações durante o pontificado de Gregório IX.30
Ao tratar das canonizações dos dois principais líderes mendicantes (Francisco e
Domingos), o autor destacou a vontade daquele pontífice romano como a origem para
aqueles projetos de santidade, tornando possível o surgimento de dois novos centros de
culto na Itália, localizados em Assis e em Bolonha.31 Esta não seria a única “coincidência”
apontada por Paciocco, pois os temas da corroboração da fé e do enfrentamento às heresias
aparecem como base das argumentações desenvolvidas naquelas canonizações.32
Continuando com a comparação, Roberto Paccioco ressaltou que se para Francisco
de Assis o desenrolar (ou não) de um processo formal junto ao papado é um dado
significativo, para Domingos significativos são os eventos associados à sua translatio
corporis em Bolonha. Pois naquele contexto histórico toda trasladação de um novo santo
deveria ser precedida pelo ato de canonização, o que não foi verificado no caso do
fundador dominicano. Ao contrário, naquele caso, a translatio teria precedido o
reconhecimento oficial da santidade justamente como uma estratégia para difundir a fama
sanctitatis33 de Domingos de Gusmão, algo que era fundamental para a abertura de uma
causa de canonização no pontificado de Gregório IX.34
Para Roberto Paccioco, o que ressalta ainda mais a participação do papado na
canonização de Domingos é o fato de que a Ordem dos Pregadores não tinha ainda
demonstrado qualquer interesse pela santidade do seu fundador nos doze anos seguidos
após a sua morte. Sendo provável que entre os frades dominicanos tenha surgido alguma
resistência quanto à transformação da imagem de seu antigo líder em sentido taumatúrgico.
Portanto, ao inscrever Domingos no catálogo de santos da Igreja, o papa direcionou os
29
Ibid., p. 30.
30
PACIOCCO, Roberto. Verso l’apice. In: . Canonizzazioni e culto dei santi nella christianitas (1198-
1302). Assisi: Ed. Porziuncola, 2006. p. 55-98.
31
Ibid., p. 67.
32
PACIOCCO, op. cit., p. 69 et seq.
33
Esta expressão em latim também aparece com alguma recorrência em documentos explorados na pesquisa
de doutorado e significa fama de santidade.
34
PACIOCCO, op. cit., p. 72 et seq.
20
frades daquela ordem religiosa para a memória litúrgica e hagiográfica daquele mestre.35
Stefano Brufani foi outro autor a redigir um capítulo que interessa explorar no
quadro formado por esta tese de doutorado. Trata-se do texto intitulado I santi mendicanti,
que foi publicado em 2012, como parte do livro “Forme e modelli della santità in
Occidente dal Tardo Antico al Medioevo”. Seguindo a lógica da obra em que ele se insere,
o autor explorou os exemplos dos santos mendicantes para tratar de modelos de santidade
que foram estabelecidos no século XIII.36
Para Brufani foi com o papa Gregório IX que a Igreja romana passou a oferecer aos
cristãos modelos de santidade “modernos”, que seriam mais coerentes com os movimentos
religiosos e com os ideais de comunidade que vigoravam naquele tempo.37 Por exemplo, o
modelo de santidade que valorizava a pobreza e a vida evangélica só se tornou viável a
partir das canonizações dos mendicantes no século XIII, na medida em que aquela Sede
apostólica assimilou estas novas ordens religiosas como expressão da própria renovação da
Igreja, reconhecendo assim os valores dos quais eram portadores.38
Por outro lado, o autor defendeu não existir um modelo de santidade unitário para
os fundadores mendicantes, mas sim de uma função de santidade comum entre os dois,
exercida em favor do sustento da Igreja romano-católica.39 Pois Francisco e Domingos
evidenciaram dois modelos de caráter diferente, sendo o primeiro associado a uma vida
laica e evangélica, e o segundo relacionado a uma proposta clerical e reformadora.40
O historiador italiano também destacou o fato de que, no caso de Domingos, a
proposição de uma vida religiosa como modelo de santidade e o estabelecimento de um
culto não se seguiram imediatamente após a morte ocorrida em 1221. Ele faz referência à
demora ocasionada na promoção de um culto para o fundador dos dominicanos, por conta
do comportamento dos frades de Bolonha. Foi propriamente por considerar a comum
vantagem de todos que, Gregório IX, os dirigentes da Ordem e da Comuna de Bolonha
teriam se articulado para alavancar a canonização de Domingos entre 1233 e 1234.41
35
Ibid., p. 75 et seq.
36
BRUFANI, Stefano. I santi mendicanti. In: BASCETTI, Massimiliano; DEGL’INNOCENTI, Antonella;
MENESTÒ, Enrico (Orgs.). Forme e modelli della santità in Occidente dal Tardo Antico al Medioevo.
Spoleto: Centro italiano di studi sull'Alto Medioevo, 2012. p. 57-96.
37
Ibid., p. 69 et seq.
38
BRUFANI, op. cit., p. 71 et seq.
39
Ibid., p. 76.
40
BRUFANI, op. cit., p. 90.
41
Ibid., p. 83 et seq.
21
Também para Brufani o papa Gregório IX teria desempenhado um papel central nos
acontecimentos que viabilizaram a canonização de Domingos, sendo a familiaridade e a
amizade desenvolvida pelos dois ainda em vida, elementos determinantes no sucesso final
da causa do fundador dominicano. Apesar disso, a solicitude pastoral do pontífice romano
na canonização do antigo líder dos dominicanos teria sido fruto do momento particular de
dificuldades do papado e tendo como objetivo a vantagem geral da Igreja militante.42
O autor também destacou, como característica inovadora, o envolvimento do
papado nas canonizações dos fundadores mendicantes, participando de todas as etapas
necessárias para o estabelecimento do culto e sua posterior promoção litúrgica. Mas não
deixou de sublinhar que estas etapas não teriam sido exitosas sem a cooperação direta das
ordens religiosas criadas por Francisco e Domingos.43
Entre os livros selecionados para ser debatidos está o de Marie-Humbert Vicaire,
que foi publicado em 1957, com o título de Histoire de Saint Dominique.44 A obra em
questão, publicada em dois tomos, dedica-se a explorar a história de vida de Domingos de
Gusmão. A parte que mais interessa para as reflexões aqui realizadas está no tomo II, pois
existe um capítulo específico para tratar da canonização do fundador dominicano.
A argumentação de Vicaire destacou o papel fundamental do interesse popular, ou
da própria Igreja romana, para sustentar uma canonização naquele contexto do século XIII.
No caso de Domingos, embora ele não tivesse na data de sua morte a mesma notoriedade
que Francisco de Assis ou Antônio de Pádua, já existia um culto sendo desenvolvido junto
à sua sepultura no convento dominicano de Bolonha. Porém, os frades da comunidade
além de não encorajarem aquela devoção espontânea, trataram de sufocá-la em sua origem,
de forma que o culto ao líder dominicano acabou caindo no esquecimento.45
Marie-Humbert Vicaire ressalta que a chegada do movimento religioso Alleluia na
cidade de Bolonha, criou uma base para a canonização de Domingos.46 Principalmente
graças à atuação do frade João de Vicenza nesse movimento, fazendo pregações sobre a
vida e os milagres do fundador dominicano, e atuando também na pacificação da cidade de
Bolonha, de modo que se formou uma atmosfera de fervor popular que foi canalizada para
42
BRUFANI, op. cit., p. 84.
43
Ibid., p. 70.
44
VICAIRE, Marie-Humbert. Histoire de Saint Dominique. Au coeur de L’Église. Paris : Du Cerf, 1957.
45
Ibid., p. 340 et seq.
46
VICAIRE, op. cit., p. 339 et seq.
22
47
Ibid, p. 344 et seq.
48
Estevão era oriundo da Península Ibérica, mas não se sabe ao certo sua cidade natal e a data do nascimento.
Em 1219 estava na cidade de Bolonha como mais um estudante na universidade local e por meio das
pregações conheceu Domingos de Gusmão, ingressando na Ordem dos Pregadores pouco tempo depois. Ele
foi o sucessor de Jordão da Saxônia no cargo de Prior Provincial da Lombardia. Também atuou como legado
papal naquela mesma região pouco antes da canonização de Domingos. Por volta de 1238, Estevão foi
nomeado arcebispo de Torres por decisão do papa Gregório IX.
49
VICAIRE, op. cit., p. 341 et seq.
50
Ibid., p. 342.
51
MONTANARI, Elio. Litterae encyclicae annis 1233 et 1234 datae. Spoleto: Centro italiano di studi
sull'Alto Medioevo, 1993.
23
52
Ibid, p. 3 et seq.
53
MONTANARI, op. cit., p. 8 et seq.
54
MONTANARI, op. cit., p. 12 et seq.
55
Ibid, p. 6 et seq.
56
MONTANARI, op. cit., p. 15-18.
57
Ibid., p. 28.
58
CANETTI, Luigi. L’invenzione della memoria. Il culto e l’immagine di Domenico nella storia dei primi
frati Predicatori. Spoleto: Centro italiano di studi sull'Alto Medioevo, 1996. (Biblioteca de Medioevo Latino,
19).
24
Bolonha, constituem o principal elo para identificar os grupos que participaram dos
preparativos para a canonização de Domingos, bem como para explorar os interesses que
eles manifestavam nessa causa. A começar pela cúpula da Ordem dos Pregadores e por seu
mestre geral, Jordão da Saxônia, que deram apoio e legitimidade às ações promovidas em
Bolonha pelo frade João de Vicenza. O autor destaca que as atividades daquele frade
coincidem com os preparativos realizados para a translatio corporis de maio de 1233 e que
ele teria chegado naquela cidade a convite do mestre geral dominicano.59 A licença especial
concedida àquele pregador e a natureza de suas atividades (político-diplomáticas) indicam
que os dirigentes da Ordem criaram uma exceção ao seu caso, como estratégia para
alcançar o consenso citadino para viabilizar a canonização de Domingos.60
Por outro lado, o autor ressalta que o papa Gregório IX enviou seguidas cartas ao
frade João felicitando-o pelo sucesso de sua pregação, o que apontaria um persistente
interesse do pontífice romano naquela atividade, inclusive assistindo e tutelando o que
estava sendo feito.61 A própria atuação do papa, como áuspice e promotor daquela solene e
canônica translatio, antes mesmo da abertura de um processo formal de canonização para
Domingos (o que também contrariava as normas vigentes), seria indicativo do apoio papal
àquela causa, a ponto de usar a cerimônia como estratégia de propaganda para cimentar
uma devoção considerada requisito para o início de um processo na cúria.62
Luigi Canetti também aponta a participação da autoridade comunal e de outros
representantes da cidade de Bolonha nos preparativos da translatio corporis e nas
iniciativas posteriores para a abertura de uma causa de canonização em favor do líder
dominicano, o que seria compatível com a atuação de João de Vicenza como árbitro do
conflito entre o bispo local e a Comuna, sendo o acordo final favorável a esta última.63 Para
o historiador italiano existe uma série de iniciativas tomadas pelo poder comunal naquele
contexto que apontam o pleno apoio das instâncias citadinas à causa dominicana.64
Canetti conclui que o silêncio inicial e a ausência de um culto após a morte de
Domingos seriam o resultado de sua escassa celebridade em Bolonha, embora a falta de
interesse dos frades tenha também contribuído para a perpetuação desse quadro. A partir da
59
Ibid., p. 69 et seq.
60
CANETTI, op. cit., L’invenzione della memoria..., p. 82 et seq.
61
Ibid., p. 75 et seq.
62
CANETTI, op. cit., L’invenzione della memoria..., p. 76 et seq.
63
Ibid., p. 83 et seq.
64
CANETTI, op. cit., L’invenzione della memoria..., p. 84 et seq.
25
65
Ibid., p. 115 et seq.
26
66
Tais ações foram exploradas nos capítulos III e IV desta tese de doutorado, e apontam a mobilização das
instituições locais de Bolonha e dos representantes do papado para criar as bases de um culto para Domingos
de Gusmão.
27
67
AUVRAY, Lucien. Les Registres de Gregoire IX. Recueil de bulles de ces pape d’après les manuscrits
originaux du Vatican. Paris: Librairie Thorin et Fils, 1896.
29
68
WALZ, Angelus. Acta Canonizationis S. Dominici. In: Monumenta Ordinis Fratrum Praedicatorum
Historica, tomus XVI. Romae: Institutum Historicum FF. Praedicatorum, 1935. p. 89-194. Deste ponto em
diante a referência a esta coletânea organizada e editada por Angelus Walz será feita apenas como Acta
Canonizationis S. Dominici, seguida da identificação das páginas correspondentes ao documento referido no
corpo do texto.
69
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 114-117.
70
Termo latino que pode ser traduzido por inquisição. Faz referência à prática de inquirir pessoas como parte
de um inquérito, de uma investigação.
71
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 168-172.
30
72
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 123-167.
73
CANETTI, op. cit., L’invenzione della memoria...; BORGHI, op. cit.; KERBRAT, op. cit.; PACIOCCO,
op. cit.
74
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 188-194.
31
75
WALZ, Angelus. Libellus de principiis Ord. Praedicatorum auctore Iordano de Saxonia. In: Monumenta
Ordinis Fratrum Praedicatorum Historica, tomus XVI. Romae: Institutum Historicum FF. Praedicatorum,
1935. p. 25-88.
32
redigiu muitas cartas, entre as quais algumas foram conservadas e publicadas em edições
críticas. É o caso das epístolas que Jordão da Saxônia redigiu no período entre 1222 e
1236, sendo a maioria delas correspondências que ele trocava com as religiosas do
convento de Santa Inês, que estava sob o controle material e espiritual dos dominicanos.
Tais cartas foram editadas em latim por Angelus Walz e publicadas na Monumenta Ordinis
Fratrum Praedicatorum Historica de 1951, com o título de Beati Iordani de Saxonia
Epistolae.76
Estas correspondências que Jordão manteve com as religiosas de Santa Inês e com
alguns subordinados seus na Ordem dos Pregadores dão uma noção do seu perfil de
liderança e das prioridades por ele estabelecidas para os Frades Pregadores. Também
foram importantes para esta tese porque evidenciam problemas na hierarquia dominicana
naquele período após a morte de Domingos, inclusive com contestações abertas ao poder
exercido por Jordão da Saxônia. De forma que este conjunto documental permitiu apontar
uma dinâmica de relações de poder no âmbito da referida ordem religiosa.
Ainda da autoria de Jordão da Saxônia é a carta encíclica redigida em 1234 e
direcionada aos frades da Ordem dos Pregadores,77 apresentando um relato oficial para o
evento da translatio corporis de Domingos de Gusmão, realizada no convento de San
Nicolò delle Vigne em maio de 1233. Esta carta foi editada em latim por Elio Montanari e
publicada em 1993 no livro intitulado Litterae Encyclicae annis 1233 et 1234 datae.
A referida carta encíclica também foi importante para a análise realizada nesta tese
de doutorado, pois o evento da trasladação de Domingos foi uma das etapas realizadas para
estabelecer um culto oficial na cidade de Bolonha e para alavancar um processo de
canonização junto à Igreja romana. O relato de Jordão aborda as iniciativas tomadas
naquele contexto, aponta os problemas anteriores em relação ao sepulcro do fundador dos
dominicanos, além de identificar grupos e autoridades que se mobilizaram para a
realização daquela cerimônia religiosa. Portanto, trata-se de um documento relevante para
avaliar as relações de poder e institucionais mobilizadas para aquele acontecimento.
Por fim, mas não menos importante, aparecem os documentos do convento de San
76
WALZ, Angelus. Beati Iordani de Saxonia Epistolae. In: Monumenta Ordinis Fratrum Praedicatorum
Historica, v. XXIII. Romae: Institutum Historicum Fratrum Praedicatorum, 1951. p. 1-69.
77
JORDÃO DA SAXÔNIA. Litterae Encyclicae anno 1234. In: MONTANARI, Elio. Litterae Encyclicae
annis 1233 et 1234 datae. Spoleto: Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, 1993. p. 255-261.
33
Nicolò, que foram editados em latim e compilados por Venturino Alce,78 sendo publicados
no Archivum Fratrum Praedicatorum de 1972. Tratam-se de contratos de compra, venda e
doação de terrenos e imóveis, mandatos e diplomas, que registram parte da história daquele
convento dominicano e das relações mantidas com autoridades locais e de outras regiões.
Tais documentos evidenciam a ampliação territorial e patrimonial daquela
comunidade bolonhesa no período posterior à morte de Domingos, e foram relevantes na
análise para apontar a articulação cronológica deste crescimento material com as
iniciativas tomadas para estabelecer um culto para o fundador dos dominicanos. De forma
que a análise permitiu problematizar a questão da pobreza entre os frades de Bolonha,
como um dos motivos para o comportamento de resistência de alguns deles em relação à
possibilidade de um culto estabelecido naquela comunidade.
A seleção deste corpus documental da Igreja romana e da Ordem dos Frades
Pregadores, que aqui foi apresentado, bem como o cruzamento das informações e a
articulação das análises produzidas a partir destes documentos, constituem parte da
originalidade desta tese de doutorado. Pois permitiram avaliar as iniciativas e as decisões
tomadas nos anos anteriores a 1234, por parte dos grupos e das instituições diretamente
envolvidos naquela causa de canonização, de uma forma que não foi feita por outros
autores.
78
ALCE, Venturino. Documenti sul Convento di San Domenico in Bolonha dal 1221 al 1251. In: Archivum
Fratrum Praedicatorum, Volumen XLII. Roma: Istituto Storico Domenicano di S. Sabina, 1972. p. 5-45.
34
reflexo da atuação do Estado sobre a sociedade. Mas problematizados a partir das diversas
relações e das instituições presentes nas diferentes sociedades: “os poderes, os saberes
enquanto poderes, as instituições supostamente não políticas, as práticas discursivas”.79
Estas foram apenas algumas das contribuições analíticas e conceituais do filósofo
Michel Foucault para os historiadores. Um dos principais resultados desta aproximação da
historiografia com os estudos foucaultianos pode ser observado no redimensionamento da
noção de política, não mais entendida somente na esfera do Estado e de suas ações, mas
identificada e analisada nas suas diferentes manifestações em sociedade. Nesse sentido,
relações, práticas e discursos presentes nas diversas instituições sociais passaram a ser alvo
da análise dos historiadores, porque foram entendidos como manifestações do poder e da
política no cotidiano.
Ao investigar a canonização de Domingos de Gusmão foi possível observar a
movimentação de instituições diversas no sentido de propiciar o estabelecimento de um
culto oficial para o primeiro mestre dos dominicanos, um culto sediado na cidade de
Bolonha e devidamente reconhecido pela Igreja romana. As iniciativas e as decisões
tomadas nesta direção foram aqui interpretadas como manifestações políticas, pois
apontam interesses contextuais destes grupos que se articularam em um empreendimento
coletivo de santidade.
Em um primeiro olhar, o reconhecimento da santidade aparece como uma prática
tipicamente religiosa, em que as instituições e populações cristãs tornam pública a decisão
de prestar culto a um santo. Mas as pesquisas e os trabalhos já publicados na historiografia
apontam aspectos que vão muito além dessa perspectiva inicial. A começar pela própria
prática de reconhecimento institucional da santidade, que foi transferida dos fiéis aos
bispos (na passagem da antiguidade para o medievo) e depois dos bispos locais ao
pontífice romano (ao longo Idade Média, principalmente entre os séculos XI ao XIII),
numa trajetória histórica que reservou ao bispo de Roma o direito pleno de canonizar, ao
ponto do próprio termo canonização passar a significar reconhecimento oficial da
santidade pelo papa.80
Neste processo histórico de centralização do reconhecimento oficial da santidade
79
FALCON, Francisco. História e Poder. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.).
Domínios da história. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. p. 68.
80
VAUCHEZ, André. La sainteté en Occident aux derniers siècles du Moyen Âge. D’après les procès de
canonisation et les documents hagiographiques. Rome: École Française de Rome, 1988. p. 25-37.
35
81
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2011. p. 62-63.
82
Ibid., p. 78.
36
83
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de
dezembro de 1970. 21 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011. p. 10.
84
BRANDÃO, Helena H. N. Introdução à análise do discurso. 2. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp,
2004. p. 37.
85
CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa qualitativa em ciências humanas e sociais. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2010. p. 121.
37
86
BARROS, José D’Assunção. História Comparada – Um novo modo de ver e fazer a História. Revista de
História Comparada, v. 1, n. 1, p. 1-30, Julho de 2007. p. 24.
87
Ibid., p. 27-28.
88
KOCKA, Jürguen. Comparison and beyond. History and Theory, n. 42, p. 39-44, 2003. p. 39.
38
Para uma melhor compreensão deste trabalho é importante abordar, mesmo que
brevemente, a divisão de capítulos que foi realizada. A tese de doutorado aqui apresentada
foi organizada em quatro capítulos, além desta introdução e da conclusão disposta ao final
do texto.
O capítulo I, intitulado As canonizações no século XIII e a santidade de Domingos
de Gusmão, foi dedicado ao tema das canonizações papais na primeira metade do século
XIII. Primeiramente, se buscou explorar a perspectiva historiográfica da centralização do
reconhecimento oficial da santidade pela Igreja romana, avançando sobre prerrogativas e
práticas que anteriormente não eram uma exclusividade do pontífice romano. O recurso ao
Direito (e suas formas jurídicas) foi uma estratégia fundamental para este projeto, assim
como a implantação de uma série de procedimentos e trâmites burocráticos que
direcionavam os pedidos de oficialização de novos cultos de santidade à cúria romana.
Depois a argumentação foi direcionada para a prática de canonização de religiosos
mendicantes, que foi um padrão observado no pontificado de Gregório IX, o mesmo papa
89
KOCKA, op. cit., p. 40.
39
que oficializou o culto estabelecido para Domingos de Gusmão. O que permitiu apontar
um padrão de reconhecimento da santidade recorrente no governo daquele pontífice,
valorizando os candidatos relacionados às Ordens Mendicantes e fortalecendo o vínculo
institucional da Igreja romana com aquelas ordens religiosas através das canonizações.
Na parte final do primeiro capítulo foi realizada uma análise do discurso a partir da
bula Fons sapientie, documento pelo qual o papa Gregório IX decretou a inscrição de
Domingos no catálogo de santos da Igreja romana. Tal análise procurou evidenciar a
ordem do discurso elaborado para legitimar a santidade atribuída ao primeiro mestre da
Ordem dos Frades Pregadores, de modo a esclarecer e apontar o perfil de santidade que foi
construído para o referido pregador mendicante, bem como levantar indícios sobre as
instituições e os grupos envolvidos naquele ato de reconhecimento oficial.
No capítulo II, sob o título Três projetos de poder concorrentes na Itália do século
XIII: o papado, o império e as comunas, a argumentação da tese foi direcionada ao
contexto mais amplo da Península Itálica na primeira metade daquele século, tendo como
foco de reflexão e de análise o quadro político-institucional de disputas entre o papado, o
império e as comunas.
A primeira parte do capítulo procurou explorar as articulações entre poder e
autoridade no âmbito daquelas instituições que disputavam entre si a hegemonia política
sobre cidades e regiões da península italiana. Neste sentido, foram comparadas concepções
de poder e iniciativas práticas que foram tomadas com o intuito de legitimar as posições
políticas e o exercício de autoridade de parte do papado, do império e das comunas naquela
conjuntura histórica.
Na parte seguinte a atenção foi direcionada para o campo do Direito, da legislação e
da justiça, de forma a compreender a legitimidade construída por aquelas instituições para
ampliar o seu exercício de poder sobre diferentes territórios italianos. O recurso ao campo
jurídico foi uma estratégia amplamente utilizada pelo papado, pelo império e pelas
comunas como forma de legitimar seus projetos e ampliar suas prerrogativas de poder, o
que também se fez presente na causa de canonização de Domingos, que primeiro foi
submetida a uma lógica local de reconhecimento para depois se alinhar à disciplina
estabelecida pela Igreja romana.
Já nas duas últimas partes do segundo capítulo o objetivo era explorar o campo
religioso e suas articulações com as dinâmicas de poder existentes entre aquelas três
40
instituições na Itália do século XIII. Em um primeiro momento o foco foi direcionado para
o tema da espiritualidade e de suas manifestações como parte das práticas religiosas e dos
valores cristãos observados na península italiana. Posteriormente a atenção foi voltada para
as estratégias de repressão religiosa, que apontam a mobilização daquelas instituições para
o enfraquecimento de seus adversários e o fortalecimento de seus projetos de poder.
Este segundo capítulo tem o propósito principal de explorar o quadro político-
institucional de disputas entre o papado, o império e as comunas na Itália do século XIII,
de forma a identificar e avaliar dinâmicas de poder entre estas instituições. A análise deste
quadro contextual foi importante para subsidiar as reflexões em torno da causa de
canonização de Domingos, pois o papado e a comuna de Bolonha atuaram de maneira
conjunta naquele empreendimento de santidade que tornou possível o estabelecimento de
um culto oficial para o fundador da Ordem dos Frades Pregadores.
Uma das conclusões parciais aqui apresentadas é justamente a de que a dinâmica de
poder entre as cidades e imperador Frederico II, verificada no âmbito do contexto político
mais amplo da península italiana, acabou propiciando uma aproximação institucional do
papado com a Comuna de Bolonha e a articulação de projetos em comum, tal como a
canonização de Domingos.
O capítulo III, por sua vez, foi direcionado a explorar o contexto histórico da cidade
em que se estabeleceu o culto oficial a Domingos de Gusmão, tendo recebido o título
Bolonha nas primeiras décadas do século XIII: os grupos e as instituições locais em meio
aos interesses do papado e do império. As diferentes partes deste capítulo foram dedicadas
a uma comparação das instituições bolonhesas que participaram das iniciativas locais para
alavancar o reconhecimento da santidade do primeiro mestre dos dominicanos.
Tais instituições locais tinham projetos próprios e procuravam naquele contexto
legitimar as suas ações. É o caso da comuna de Bolonha, que tinha surgido no século
anterior e continuava em busca de se consolidar no comando político daquela cidade da
Emilia-Romagna. Os dirigentes citadinos estiveram presentes na trasladação de Domingos
e exerceram um poder de tutela sobre o sepulcro e o corpo daquele pregador mendicante,
de forma a garantir que o culto não seria transferido para outro local. A atuação no campo
religioso era uma maneira de conferir legitimidade ao governo comunal perante a
população citadina e suas demandas de espiritualidade.
Já a Igreja bolonhesa enfrentava um período de sérias dificuldades no início da
41
90
Nos documentos explorados nesta tese studium e universitas aparecem muitas vezes como sinônimos,
indicando instituições de ensino e de formação intelectual existentes em diferentes localidades da península
italiana. Contudo, cabe ressaltar que a universitas naquele contexto histórico representou a formação de uma
corporação entre mestres e estudantes em busca de maior autonomia institucional e organizativa, algo que
nem sempre se verificava no âmbito dos studia, instituições de ensino mais antigas e na maioria das vezes
vinculadas a alguma autoridade local.
42
para a canonização do primeiro mestre dos frades dominicanos. Neste sentido, foi possível
defender a hipótese de uma coordenação papal para aquelas iniciativas tomadas em 1233
pelos representantes da Igreja romana e da Ordem dos Frades Pregadores, apontando o
desenvolvimento de um projeto devidamente compartilhado por tais instituições e que
permitiu não só o fortalecimento de ambas, mas uma recomposição das relações de poder
entre as instituições locais de Bolonha por meio de um acordo de paz.
Por toda a argumentação que foi desenvolvida ao longo dos capítulos, baseada
principalmente em uma análise do discurso realizada sobre o corpus documental
selecionado na pesquisa doutorado, mas também na comparação das dinâmicas de poder e
das articulações político-institucionais evidenciadas naquela causa dominicana, a tese aqui
defendida apresenta reflexões e conclusões originais sobre a canonização de Domingos de
Gusmão.
44
CAPÍTULO I
91
VAUCHEZ, André. La sainteté en Occident aux derniers siècles du Moyen Âge. D’après les procès de
canonisation et les documents hagiographiques. Rome: École Française de Rome, 1988. p. 25-37.
92
MATZ, Jean-Michel. Contrôle et discipline du culte des saints au moyen âge. In: LE GUERN, Philippe
(dir.). Les cultes médiatiques: Culture fan et oeuvres cultes. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2002.
p. 46. Disponível em: <http://books.openedition.org/pur/24168>. Acesso em: maio de 2016.
93
KLANICZAY, Gábor. The Power of the Saints and the Authority of the Popes. The History of Sainthood
and Late Medieval Canonization Processes. In: SALONEN, Kirsi; KATAJALA-PELTOMAA, Sari (Eds.).
Church and Belief in the Middle Ages. Popes, Saints, and Crusaders. Amsterdam: Amsterdam University
Press, 2016. p. 117-140, p. 126.
47
sob a liderança do bispo Sicardo, que era o promotor daquela causa.94 Posteriormente, ao
publicar a bula de canonização, Inocêncio III defendeu a importância do comportamento
virtuoso e das ações milagrosas como os principais sinais a apontar a santidade de um
cristão, argumento que foi retomado no ano seguinte em outra bula de canonização, aquela
da imperatriz Cunegundes (1200).95 Neste mesmo documento papal a reserva do direito de
canonizar foi afirmada, de forma solene e oficial, como um privilégio exclusivo do
sucessor de Pedro, uma espécie de prerrogativa associada à plenitudo potestatis do bispo
de Roma.96
A causa de canonização de Gilberto de Sempringham foi mais uma oportunidade
para o papa exercer sua autoridade e disciplinar a hierarquia da Igreja para a implantação
do novo percurso processual como único caminho para o juízo sobre a santidade. Por meio
da bula Licet apostolica sedes (1201), Inocêncio III refutou o procedimento inicial dirigido
pelo arcebispo de Canterbury, que tinha enviado por escrito uma síntese dos testemunhos
colhidos localmente, destacando a importância dos testemunhos diretos para a avaliação da
cúria romana.97 Uma nova fase de investigação foi realizada, algumas testemunhas foram à
Roma para fazer seus relatos diretamente aos integrantes da cúria, e o papa, finalmente,
confirmou o culto de São Gilberto, bem como a trasladação de suas relíquias.98
O avanço pontifício sobre as prerrogativas episcopais tomou a forma de legislação
eclesiástica com a realização do IV Concílio de Latrão (1215), fazendo do papa o árbitro
supremo no tocante à santidade e no uso litúrgico das relíquias, a partir de decretos que
davam fundamento jurídico para a expansão da autoridade papal e aprofundavam restrições
à jurisdição episcopal de uma só vez.99 Tal como no decreto 38º daquele concílio, que,
mesmo não se referindo explicitamente às canonizações, tinha admoestado os prelados a
registrar as várias etapas processuais de um inquérito e a elaborar um processo verbal mais
94
VAUCHEZ, La sainteté... op. cit., p. 44.
95
GOODICH, Michael. Vita perfecta: the ideal of sainthood in the thirteenth century. Stuttgart: Hiersemann,
1982. p. 23 et seq.
96
VAUCHEZ, La sainteté... op. cit., p. 31 et seq.
97
PACIOCCO, Roberto. Le canonizzazioni papali nei secoli XII e XIII. Evidenze a proposito di “centro”
romano, vita religiosa e “periferie” ecclesiastiche. In: ANDENNA, Cristina; BLENNEMANN, Gordon;
HERBERS, Klaus; MELVILLE, Gert. Die Ordnung der Kommunikation und die Kommunikation der
Ordnung. Zentralität: Papsttum und Orden im Europa des 12. und 13. Stuttgart: Franz Steiner Verlag, 2013.
Band 2, p. 277-299, p. 279 et seq.
98
GOODICH, Vita perfecta... op. cit., p. 24.
99
Ibid., p. 25-27.
48
completo.100 E também com o decreto 62º, que proibia oficialmente a veneração de “novas
relíquias” sem a autorização prévia do pontífice romano, reforçando a prerrogativa de
poder e exclusividade do bispo de Roma no que concerne ao culto dos santos.101
As características mais marcantes do processo de canonização que se tornou regra
no século XIII (como procedimento inquisitorial pontifício), já estavam presentes na Itália
do final do século XII. Nesse período já se reconhecia o valor do ato notarial como
instrumento público, o que faltava era conferir ao inquérito uma forma jurídica mais
precisa e depois difundir o modelo criado pelo resto da Europa, tarefa assumida ainda no
pontificado de Inocêncio III. Foi também em seu governo que a sede romana passou a
equiparar a vida (virtudes e obras) e os milagres na avaliação da santidade, contrariando a
tradição expressada até então nas aclamações vox populi,102 em que a santidade se definia
essencialmente como um conjunto de poderes sobrenaturais, fazendo do milagre o critério
fundamental do juízo popular. Desta forma, o referido papa passou a submeter a crença na
santidade a um exame e a um juízo exercidos a partir de procedimentos e critérios
estabelecidos em Roma, sob a forma de um processo judiciário.103
Durante o pontificado de Honório III (1216-1227) novas regras de canonização
foram surgindo e sendo acrescentados à base estabelecida por seu antecessor. Nesse
sentido, as petições de abertura da causa tinham que ser apresentadas em Roma,
acompanhadas de um dossiê na forma de uma Vita et Miracula,104 que serviria para
embasar a avaliação feita pela cúria romana. Afirmou-se, cada vez mais, a necessidade de
evidências judiciais válidas para o início do processo, por isso o papa se reservou o direito
de solicitar um novo inquérito caso as testemunhas ouvidas não estivessem sob juramento
e os seus relatos não fossem consignados por um notário, conferindo publicidade e
oficialidade aos atos praticados.105
100
PACIOCCO, Le canonizzazioni... op. cit., p. 279 et seq.
101
MATZ, op. cit, p. 46.
102
A expressão latina vox populi aparece associada à prática de aclamação popular de uma santidade na Idade
Média, em que a voz/vontade de uma população seria o principal critério para o estabelecimento de um culto.
103
VAUCHEZ, La sainteté... op. cit., p. 42 et seq.
104
A expressão latina Vita et Miracula faz referência a um tipo de livro/texto que representa uma modalidade
do gênero hagiográfico na Idade Média. Seria um livro que contrói uma trajetória de vida para um (ou mais)
personagem(ns), finalizando com a sua morte e com os milagres que lhe são atribuídos. Sobre o gênero
hagiográfico na Idade Média e suas articulações com a santidade, conferir: SILVA, Andréia Cristina Lopes
Frazão da (Org.). Hagiografia e História: reflexões sobre a Igreja e o fenômeno da santidade na Idade
Média central. Rio de Janeiro: HP Comunicação, 2008.
105
GOODICH, Vita perfecta... op. cit., p. 35 et seq.
49
Além disso, foi também no pontificado de Honório III que passou a ser comum
nomear as partes diretamente interessadas na causa, os chamados postuladores, para
servirem na comissão de investigação que faria o inquérito preliminar. Tais processos
informativos, conduzidos em âmbito diocesano, tinham a finalidade de dar ciência à
instância julgadora sobre os méritos do candidato, sobretudo assegurando que ele(a) já
gozava de uma fama sanctitatis local, suficiente para que o seu caso pudesse ser avaliado
pela sede romana.106
Uma vez cumpridos os requisitos iniciais, o pontífice autorizava a realização de um
inquérito nos moldes romanos, registrado nos textos de época a partir dos termos processus
ou informatio in partibus. Nesta segunda fase de investigação, os trabalhos eram confiados
a três comissários nomeados diretamente pelo papa, e o bispo local geralmente coordenava
os atos. As tarefas associadas a esse mandato eram definidas com precisão na bula de
nomeação, destacando-se em geral a necessidade de se informar sobre a vida e os milagres
atribuídos ao candidato, bem como registrar os testemunhos colhidos, que deveriam ser
transmitidos a Roma, acompanhados de um relatório sobre o desenrolar do processo.107
Embora os aspectos característicos da vida do candidato (a virtus morum e a virtus
signorum) tivessem se valorizado desde o pontificado anterior, Honório III deu maior
atenção aos testemunhos referentes a milagres nas causas de canonização. Provavelmente
porque mesmo considerando que as virtudes eram indício de santidade, a elaboração de
uma listagem delas no âmbito do processo era considerada uma tarefa complexa, um
posicionamento que refletia a relação problemática entre virtudes e milagres para a
definição da santidade.108
No decorrer do pontificado de Gregório IX (1227-1241) novas iniciativas jurídicas
apontaram para o avanço da autoridade pontifícia sobre a prerrogativa da canonização,
entendida como uma reserva exclusiva do bispo de Roma. Sem dúvida, o movimento
principal nessa direção foi a inserção do texto do papa Alexandre III, sob o título de
Audivimus, na coleção de decretais elaborada pelo dominicano Raimundo de Peñafort, obra
que ficou conhecida como Liber Extra, publicada pelo pontífice romano em setembro de
1234. O longo período de imprecisão jurídica no tocante a esse direito chegava ao fim,
106
VAUCHEZ, La sainteté... op. cit., p. 49 et seq.
107
Ibid., p. 50 et seq.
108
PACIOCCO, Roberto. Canonizzazioni e culto dei santi nella christianitas (1198-1302). Assisi: Ed.
Porziuncola, 2006. p. 59 et seq.
50
com o uso explícito do direito canônico para legitimar o exercício da autoridade romana
sobre as demais dioceses e sobre a sociedade, ficando estipulado que somente ao papa
cabia o direito de canonizar um cristão e de autorizar a trasladação das relíquias, que era
entendida como um prolongamento litúrgico do primeiro ato.109
É importante destacar que a forma textual dada ao Liber Extra expressava uma
vontade de se aplicar tal direito ao culto dos santos em geral, sem nenhum tipo de distinção
entre o âmbito público e outro que não o seria. Algo bem diferente da tradição a qual se
vincula o texto alexandrino em sua redação original, pois apontava uma diferença entre
dois níveis diferentes de veneração, abrindo algum espaço para o culto de santos não
canonizados por Roma.110
Além de esclarecer e reafirmar o direito pontifício sobre as canonizações, as
decretais gregorianas deram um novo formato para os procedimentos de investigação,
reunindo avanços processuais das últimas décadas e criando um modelo de inquérito
amparado na legislação canônica. A experiência dos trabalhos realizados nas causas
investigadas e avaliadas desde o início do século XIII, sobretudo as de Antônio de
Lisboa/Pádua (1232), Domingos de Gusmão (1233) e Elisabete de Turíngia (1232), muito
próximas à publicação do Liber Extra (1234), foi fundamental para o estabelecimento do
novo protocolo de investigação.111
Casos específicos ocorridos nos processos de canonização realizados no pontificado
Gregório IX evidenciam a implantação desse protocolo de investigação antes mesmo da
publicação das decretais. Tal como registrado em uma carta, datada de 1232, enviada pelo
papa a Conrado de Marburg, confessor de Elisabete de Turíngia e principal postulador de
sua causa: orientava os investigadores sobre as perguntas específicas que deveriam ser
feitas às testemunhas que relatavam milagres, advertia os legados a buscarem informações
independentes e complementares àquelas registradas pelos testemunhos, no sentido de
confirmar ou não as narrativas, além de reafirmar a importância dos notários e, até mesmo,
109
MATZ, op. cit, p. 46.
110
PACIOCCO, Canonizzazioni e culto... op. cit., p. 56.
111
KLANICZAY, Gábor. Proving sanctity in the canonization processes (Saint Elizabeth and Saint Margaret
of Hungary). In: . (Dir.). Procès de canonisation au Moyen Âge: aspects juridiques et religieux. Rome:
École Française de Rome, 2004. p. 117-148, p. 125.
51
de intérpretes, caso necessário, de forma que o registro dos relatos fosse o mais fiel
possível aos fatos.112
O processo de Hildegarda de Bingen (1233) é outro que aponta para a disciplina
aplicada aos novos procedimentos, pois o papa ordenou a realização de um novo inquérito,
focando em tópicos específicos sobre milagres, conduta, reputação e ações virtuosas,
porque os investigadores tinham enviado a Roma apenas um sumário na forma de uma Vita
et Miracula, ao invés de um registro completo das audiências realizadas com as
testemunhas.113
Algumas variações de procedimentos inquisitoriais também foram acrescentadas,
nesse período, às experiências de investigação acumuladas nos pontificados anteriores.
Desta forma, foram instruídos procuradores para atuar nas causas de canonização,
coordenando as iniciativas para a abertura dos processos em Roma, acompanhando e
orientando as testemunhas nas audiências conduzidas pelos comissários papais, e, até
mesmo, redigindo os articuli interrogatorii ou capitula generalia.114 Outra variação na
prática processual corrente foi a determinação de não enviar imediatamente para Roma, ou
seja, assim que finalizados os trabalhos, retendo até segunda ordem as averbações dos
inquéritos conduzidos pelos comissários, orientação que já foi aplicada nas causas de
Elisabete de Turíngia (1232) e Domingos de Gusmão (1233).115
No tocante aos critérios utilizados para o juízo papal sobre a santidade, observa-se
no contexto em questão uma atmosfera de entusiasmo religioso manifestado a partir de
movimentos coletivos, sobretudo nas cidades, que valorizavam a pobreza e a penitência,
algo que se refletiu também nas causas de canonização.116 Não somente com o papado
assumindo tais valores nas canonizações realizadas, mas também no sentido inverso,
utilizando a sua autoridade institucional e o seu poder de controle sobre o conteúdo das
devoções para refutar a candidatura de personagens suspeitos de “exagerar” em suas
expressões de ascetismo e de penitência, julgadas excessivas pela Sede romana.117
112
KLANICZAY, The Power... op. cit., p. 127.
113
GOODICH, Vita perfecta... op. cit., p. 32.
114
Articuli interrogatorii ou capitula generalia eram esquemas de interrogatório que ajudavam a organizar e
a dar sentido aos depoimentos. Cf.: VAUCHEZ, La sainteté... op. cit., p. 54.
115
PACIOCCO, Canonizzazioni e culto... op. cit., p. 63 et seq.
116
GOODICH, Vita perfecta... op. cit., p. 4.
117
MATZ, op. cit, p. 47.
52
O direito, com suas formas e práticas jurídicas, constituíram a principal base para o
avanço da autoridade pontifícia sobre as canonizações desde o século XII. No entanto, foi
ao longo do século XIII que se deram as principais iniciativas do papado para exercer uma
primazia de comando sobre o juízo universal da santidade na Igreja romana. O
estabelecimento de procedimentos inquisitoriais e de critérios para avaliar a santidade, bem
como a exclusividade do pontífice romano na condução das causas de canonização, são
movimentos que refletem o mesmo projeto de governo: a questão não era somente a
hegemonia sobre o culto dos santos, e sim o quanto ela permitiria ao bispo de Roma
exercer poder, ao mesmo tempo, sobre a hierarquia eclesiástica e a sociedade.
O contexto em questão, de transição entre os séculos XII e XIII, foi propriamente
marcado pela valorização do Direito como principal instrumento de organização da
sociedade e da Igreja, legitimando hierarquias e autoridades a partir de iniciativas/ações de
diferentes instituições (dentre elas o papado, o império e as comunas) que se apropriaram
deste saber e de suas formas para desenvolver projetos de governo nas diferentes regiões
da Península Itálica. Em um capítulo específico da tese este tema será retomado, com o
intuito de debater estes projetos e seus efeitos na conjuntura italiana. Nesse momento é
oportuno focar na sede eclesiástica romana e na articulação que foi realizada no tocante à
santidade.
118
VAUCHEZ, La sainteté... op. cit., p. 450 et seq.
53
119
PACIOCCO, Canonizzazioni e culto... op. cit., p. 289.
120
VAUCHEZ, La sainteté... op. cit., p. 48.
121
KLANICZAY, The Power... op. cit., p. 119; MATZ, op. cit., p. 45 et seq.
54
cidade (seja ele o bispo local ou o podestá) era estratégia utilizada por ambos (papado e
império) no sentido de consolidar posições de governo. Diante deste quadro o controle
sobre o culto aos santos era um importante instrumento para legitimar projetos políticos,
sobretudo recompensando os aliados por meio das canonizações. E o papado usou esta
prerrogativa para se fortalecer na Itália, em detrimento do império e de seus aliados
(muitos dos quais, bispos) nas diferentes cidades italianas.
Até mesmo por vislumbrar o potencial das canonizações para a ampliação das áreas
sob o comando e/ou influência direta do papa, o objetivo da Igreja romana era controlar o
processo de reconhecimento oficial de uma ponta a outra, dos procedimentos aos critérios,
permitindo ao pontífice romano exercer um juízo supremo e impor uma concepção de
santidade à sociedade. A disciplina implementada pela sede romana no culto aos santos, tal
como na imposição de um protocolo de investigação próprio (desenvolvido no âmbito da
cúria), visava exercer um direito de controle sobre a natureza e o conteúdo das devoções
cristãs, no sentido de impedir que tais aspectos pudessem evoluir livremente a partir das
manifestações de fervor popular, ou que o seu controle fosse exercido localmente pelas
autoridades diocesanas.122
Apesar da valorização do Direito pela Igreja romana e do desenvolvimento de
procedimentos inquisitoriais próprios para as causas de canonização, nem sempre os
documentos papais daquele contexto refletiam as regras e as diretrizes estabelecidas em
Roma. A preservação e a transmissão de bulas de canonização do século XIII revelam
menções gerais aos milagres realizados por santos oficialmente reconhecidos, sem maiores
detalhes ou exemplos específicos, criando padrões genéricos que se repetiam nos
documentos em questão. Desta forma, se pode afirmar que os resultados apresentados pelas
comissões inquisitoriais, na forma de atas de testemunhos, não foram amplamente
utilizados na produção das bulas de canonização, que não poucas vezes citavam revelações
divinas ou intervenções sobrenaturais como razões principais para a decisão de canonizar
um cristão.123
A presença dos legados papais nas localidades definidas para a inquisitio in
partibus era um fator de atração para as pessoas, que de bom grado procuravam se
122
MATZ, op. cit., p. 46; VAUCHEZ, La sainteté... op. cit., p. 67.
123
GOODICH, Michael. Reason or revelation? The criteria for the proof and credibility of miracles in
canonization processes. In: KLANICZAY, Gábor (Dir.). Procès de canonisation au Moyen Âge: aspects
juridiques et religieux. Rome: École Française de Rome, 2004. p. 181-197, p. 192.
55
aproximar dos locais de sepultura, não apenas para dar testemunhos, mas esperando algum
milagre. De forma que as comissões inquisitoriais, mesmo munidas de orientações e
procedimentos, ao buscar “os fatos” acabavam participando de um processo circular, em
que ajudavam a gerar justamente o que procuravam registrar em seu trabalho de
investigação: relatos de milagres.124
Tomando como referência o papel das crenças e devoções populares no culto aos
santos, os processos de canonização do século XIII acabavam realizando um “popular
referendum” ao buscar e registrar as experiências (individuais e coletivas) para caracterizar
e autenticar os sinais de santidade no âmbito de um inquérito. Desta maneira, apesar da
instituição dos processos de canonização, com seus procedimentos e critérios, o tradicional
princípio vox populi continuou sendo levado em consideração no juízo sobre a santidade
cristã realizado pelo papado,125 mesmo que o seu papel naquele contexto histórico não
fosse mais o de aclamar a santidade e sim o de legitimar as decisões tomadas em Roma.
124
KLANICZAY, Proving sanctity... op. cit., p. 135.
125
KLANICZAY, The Power... op. cit., p. 134.
126
Tais números podem ser conferidos na tabela disponível em: VAUCHEZ, La sainteté... op. cit., p. 295-
297.
56
127
Levando em consideração os propósitos estabelecidos para este capítulo e para a presente tese de
doutorado, o foco da argumentação foi voltado para a política de canonização desenvolvida no pontificado de
Gregório IX, por ser justamente o pontífice responsável pela canonização de Domingos de Gusmão.
128
Além dos seis que foram canonizados durante o pontificado de Gregório IX, outros dois foram
canonizados posteriormente: Osmund de Salisbury, em 1457, pelo papa Calixto III, e Hildegarda de Bingen,
em 2012, pelo papa Bento XVI.
57
129
Conferir em: GOODICH, Michael. The politics of canonization in the thirteenth century: lay and
mendicant saints. In: WILSON, Stephen (Ed.). Saints and Their Cults: Studies in Religious Sociology,
Folklore and History. Cambridge: University Press, 1983. p. 169-187; PACIOCCO, Roberto. Il Papato e i
santi canonizzati degli Ordini mendicanti. Significati, osservazioni e linee di ricerca (1198-1303). In:
CONVEGNO INTERNAZIONALE “IL PAPATO DUECENTESCO E GLI ORDINI MENDICANTI”, 25,
1998, Assisi. Atti... Spoleto: Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, 1998. p. 265-341; VAUCHEZ,
André. Grégoire IX et la politique de la sainteté. In: CONVEGNO INTERNAZIONALE “GREGORIO IX E
GLI ORDINI MENDICANTI”, 38, 2010, Assisi. Atti... Spoleto: Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo,
2011. p. 353-377; BRUFANI, Stefano. I santi mendicanti. In: BASCETTI, Massimiliano;
DEGL’INNOCENTI, Antonella; MENESTÒ, Enrico (Orgs.). Forme e modelli della santità in Occidente
dal Tardo Antico al Medioevo. Spoleto: Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, 2012. p. 57-96;
FORTES, Carolina Coelho. As ordens mendicantes e a santidade na Idade Média. In: SILVA, Andréia
Cristina Lopes Frazão da; SILVA, Leila Rodrigues da (Orgs.). Mártires, confessores e virgens: o culto aos
santos no Ocidente medieval. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016. p. 115-145.
130
FORTES, op. cit., p. 136.
58
início aos trabalhos, tampouco foi formada uma commissio para o inquérito sobre a vida e
os milagres do Poverello de Assis. Foi o próprio pontífice que teria conduzido as diferentes
fases processuais, com o auxílio do colégio de cardeais, apresentando-se como garantia da
santidade de Francisco em razão da familiaridade que manteve com ele antes de sua morte,
sendo assim uma testemunha confiável: tal argumento encontra-se registrado na bula de
canonização e na Vita beati Francisci.131
Além de promover e conduzir a canonização do fundador franciscano, Gregório IX
empenhou esforços também para consolidar e difundir o culto a Francisco de Assis.
Primeiro atuou para conferir maior solenidade e sacralidade para a trasladação realizada
em 25 de maio de 1230, quando o corpo do Poverello foi transferido para a basílica de São
Giorgio: ao invés de enviar seus legados para a cerimônia, quis ele mesmo participar do
evento, mas foi impedido por demandas de seu ofício.132 Além disso, o santo franciscano
está entre os poucos que ganharam, ainda no século XIII, um ofício litúrgico próprio para a
celebração de seu dia,133 bem como foi o primeiro a receber indulgências papais associadas
ao desenvolvimento do culto,134 o que demonstra o apoio inequívoco do papado para a
ampliação de sua veneração pelos fiéis.
O envolvimento pessoal do pontífice romano em uma causa de canonização
também pode ser visto no caso de Antônio de Lisboa/Pádua, morto em junho de 1231 e
canonizado em menos de um ano (precisamente em 30 de maio de 1232). A abertura de um
processo formal de canonização para o pregador franciscano se deu por iniciativas tomadas
pela cidade de Pádua, que enviou delegação a Roma para solicitar o acolhimento daquela
causa pelo papado, cerca de um mês após o sepultamento do candidato. A canonização de
Antônio foi marcada pela publicação de duas bulas pontifícias, sendo a primeira datada de
1º de junho de 1232 (intitulada Literas quas pro). Nesse documento o papa Gregório IX
exortou os cidadãos paduanos a perseverarem na crença em Deus e na fidelidade à Sede
romana, em um contexto em que a cidade sofria com o avanço das tropas de Ezzelino da
Romano (aliado do imperador Frederico II).135 Esta bula configura uma espécie de
renovação da aliança do pontífice romano com a cidade de Pádua, que por se manter fiel à
131
PACIOCCO, Canonizzazioni e culto... op. cit., p. 67-68.
132
Ibid., p. 75.
133
PACIOCCO, Il Papato e i santi... op. cit., p. 324.
134
PACIOCCO, Canonizzazioni e culto... op. cit., p. 212.
135
VAUCHEZ, Grégoire IX... op. cit., p. 367.
59
136
PACIOCCO, Le canonizzazioni... op. cit., p. 287, nota 30.
137
VAUCHEZ, Grégoire IX... op. cit., p. 366.
138
PACIOCCO, Le canonizzazioni... op. cit., p. 287.
139
KLANICZAY, Proving sanctity... op. cit., p. 122.
60
140
VAUCHEZ, Grégoire IX... op. cit., p. 372 et seq.
141
KLANICZAY, Proving sanctity... op. cit., p. 126.
142
VAUCHEZ, Grégoire IX... op. cit., p. 367.
143
PACIOCCO, Canonizzazioni e culto... op. cit., p. 67.
144
VAUCHEZ, Grégoire IX... op. cit., p. 359 et seq.
61
conhecidos por aquele papa e, portanto, poderiam garantir um diálogo constante com a
instituição romana e agir de acordo com as suas orientações.
Mesmo com essa marcada atuação e até interferência de Gregório IX nos casos aqui
apontados, não seria adequado defender o surgimento de um modelo mendicante único
para acomodar todos os que foram reconhecidos como santos neste pontificado. Melhor
seria destacar o surgimento de uma “identidade de função”, visto que as canonizações
foram associadas à prestação de bons serviços em favor da Igreja romana, em uma lógica
em que a santidade seria um instrumento para a sua sustentação.145
É como se um novo critério tivesse se afirmado neste período e sobrepujado os
demais na avaliação da santidade pelo papado: a utilidade que o recém-canonizado (e o seu
culto) poderia representar para uma instituição que enfrentava adversários poderosos e
passava por uma série de dificuldades, o que justificaria a urgência das decisões tomadas e
a flexibilização dos procedimentos e das regras para as canonizações pontifícias.146 Nesse
sentido, para o papa Gregório IX a santidade não era apenas um estado de perfeição
alcançado por um cristão e reconhecido pela Sede romana, mas, sobretudo, uma graça
divina concedida a pessoas excepcionais que se dedicaram ao sustento e ao bem da Igreja
católica.147
Um exemplo que evidencia essa lógica de pensamento era a importância atribuída
pelo papado à luta contra as heresias naquele contexto da primeira metade do século XIII,
o que ficou amplamente registrado nas bulas de canonização de Francisco de Assis,
Antônio de Lisboa/Pádua e Domingos de Gusmão. Nesses documentos há uma exaltação
dos serviços prestados nesse campo pelos referidos frades mendicantes, que, segundo a
argumentação realizada, teriam sido suscitados pela providência divina para extirpar do
mundo o erro das heresias, sendo esse argumento reproduzido posteriormente na tradição
hagiográfica associada a esses santos.148
Importante é também destacar que, naquele contexto histórico, era praticamente
impossível distinguir o combate às heresias dos demais movimentos papais para ampliar as
áreas sob o seu domínio político na península italiana, uma vez que qualquer oposição
145
BRUFANI, op. cit., p. 76.
146
VAUCHEZ, Grégoire IX... op. cit., p. 358 et seq.
147
Ibid., p. 375.
148
MIATELLO, André L. P. Escrita Hagiográfica Mendicante: pregação e culto cívico. In: TEIXEIRA, Igor
Salomão (Org.). História e Historiografia sobre a Hagiografia Medieval. São Leopoldo, RS: Oikos,
2014(a). p. 114-139.
62
149
PACIOCCO, Canonizzazioni e culto... op. cit., p. 291.
150
PACIOCCO, Il Papato e i santi... op. cit., p. 295 et seq.
151
BRUFANI, op. cit., p. 69 et seq.
63
152
FORTES, op. cit., p. 123.
153
BRUFANI, op. cit., p. 70.
154
MIATELLO, André Luis Pereira. O pregador e a sociedade local: a luta pelo poder pastoral no seio das
cidades da Baixa Idade Média ocidental (séc. XIII-XIV). Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 7, n.
2, p. 112-131, julho/dezembro de 2014(b). p. 120 et seq.
64
rumos das instituições mendicantes, legitimando a sua atuação por meio dos santos
oficialmente reconhecidos pela Igreja de Roma.155
A mencionada disputa entre os integrantes do clero diocesano e os membros das
Ordens mendicantes tinha como foco a atuação no campo religioso e o atendimento às
demandas de espiritualidade que provinham da sociedade. Portanto o que estava em jogo
era a possibilidade de um controle espiritual das manifestações e das expressões de fé
urbanas, em que o estabelecimento de cultos de santidade desempenhava um papel central
para a manutenção da ordem social.
Este era um forte motivo para os mendicantes se engajarem nas campanhas de
canonização envolvendo os seus candidatos, além de atuarem para obstruir outros cultos
citadinos desenvolvidos sob a tutela do bispo e de seus cônegos, inclusive usando a
prerrogativa que tinham por atuarem na Inquisição pontifícia. A afirmação dos cultos de
mendicantes, em detrimento de outros já existentes nas cidades italianas (e associados com
instituições mais antigas), era uma estratégia para o exercício de um poder religioso pelos
conventos e para a defesa de seus novos santuários, de tal maneira que os frades não
olvidaram em usar a acusação de heresia para fazer prevalecer os seus santos.156
Do ponto de vista da Igreja romana as heresias eram menos consideradas como
conjunto de crenças heterodoxas e mais temidas pela possibilidade que elas abriam para
uma subversio ecclesticae libertatis, ou seja, pelo perigo de subverterem a ordem e a
hierarquia social que mantinha as autoridades eclesiásticas no topo das cidades. Por isso, o
recurso do papado às Ordens mendicantes e às práticas inquisitoriais foi uma forma
encontrada para atuar localmente nas diferentes regiões, impedindo que as tendências
heréticas servissem de base para alavancar uma autonomia dos poderes citadinos157 ou para
a consolidação de autoridades e de governos aliados ao poder imperial. O que não impedia
os mendicantes de atuarem em causa própria, utilizando o apoio e as prerrogativas papais
para tentar dominar as cidades a partir do culto aos santos, difundindo seu estilo de vida e
sua ética político-econômica.158
Se de um lado estavam o papado e as Ordens mendicantes atuando para controlar o
culto aos santos e o próprio espaço religioso nas cidades, não se pode ignorar a existência
155
FORTES, op. cit., p. 134.
156
MIATELLO, Escrita Hagiográfica... op. cit., p. 134 e 139.
157
VAUCHEZ, Grégoire IX... op. cit., p. 375.
158
MIATELLO, Escrita Hagiográfica... op. cit., p. 139.
65
159
MIATELLO, Escrita Hagiográfica... op. cit., p. 135 et seq.
160
VAUCHEZ, Grégoire IX... op. cit., p. 364 et seq.
161
PACIOCCO, Le canonizzazioni... op. cit., p. 287, nota 30.
66
acompanhada de perto por Frederico II, que registrou em carta enviada ao franciscano frei
Elias seus laços de parentesco com a santa recém-canonizada.162
162
VAUCHEZ, Grégoire IX... op. cit., p. 373.
163
GOODICH, The politics... op. cit., p. 170.
164
VAUCHEZ, Grégoire IX... op. cit., p. 376.
67
ideais e os valores cristãos delimitados pela ortodoxia romana. Desta forma o papado
poderia exercitar a normatização das práticas cristãs, buscando também controlar o
significado da fé mantida pelos fiéis da Igreja.165
Se, por um lado, é importante destacar o desenvolvimento de uma efetiva política
de canonização no pontificado de Gregório IX, e que teve nos santos mendicantes a sua
consecução, por outro, não se deve esquecer que o culto aos santos continuou sendo alvo
de disputas e relações de poder manifestadas em nível local, nas diferentes regiões e
cidades italianas. As próprias canonizações realizadas por aquele pontífice romano
apontam para isso.
Esta última parte do capítulo será dedicada a uma análise do discurso da bula de
canonização de Domingos de Gusmão, que ficou tradicionalmente conhecida pelo título de
Fons sapientie, tendo sido publicada em 03 de julho de 1234.166 Neste documento encontra-
se a argumentação e o parecer final do papa Gregório IX, sobre a causa de canonização que
foi aberta em julho de 1233, com o objetivo de avaliar a santidade do fundador
dominicano. A carta em questão apresenta em seu discurso os elementos que, na
perspectiva daquela Sede romana, justificam o reconhecimento universal da santidade e a
oficialização de um culto público em favor do antigo líder dos frades pregadores.
A análise do discurso aqui realizada parte de categorias, princípios e procedimentos
que foram estabelecidos por Michel Foucault no livro A ordem do discurso.167 Para aquele
filósofo francês o discurso não é um elemento secundário do convívio social, ou uma
prática subjetiva que não pode ser decodificada por meio da análise. Ele é um
acontecimento social e histórico, pois é alvo das disputas pelo poder e dos conflitos entre
165
PACIOCCO, Il Papato e i santi... op. cit., p. 322 et seq.
166
A versão aqui utilizada da bula Fons sapientie é uma edição crítica, em língua latina, disponível em:
WALZ, Angelus. Acta Canonizationis S. Dominici. In: Monumenta Ordinis Fratrum Praedicatorum
Historica, tomus XVI. Romae: Institutum Historicum FF. Praedicatorum, 1935. p. 190-194. Deste ponto em
diante farei referência a este documento apenas como Fons sapientie, seguida da identificação da página
correspondente à edição de Angelus Walz.
167
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de
dezembro de 1970. 21 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011(a).
68
168
FOUCAULT, op. cit., p. 10.
169
Ibid., p. 60 et seq.
170
Fons sapientie, p. 190. “A fonte de sabedoria, o Verbo do Pai, Nosso Senhor Jesus Cristo, cuja natureza é
bondade e a obra misericórdia, redime e regenera àqueles que criou, [...] renovando sabiamente as mentes
inconstantes e os milagres contra os perigos da incredulidade” [Tradução do autor].
69
Deus, que se expressou por meio de Jesus Cristo (Verbo do Pai). Nesse sentido, a Palavra
de Deus é o guia para a vida cristã na terra. Quando há uma falha na comunicação ou na
interpretação daquela Palavra, criam-se desvios ao caminho traçado nas sagradas
escrituras, que tornam necessária a intervenção da providência divina para renovar os
exemplos cristãos e os milagres como forma de enfrentar a incredulidade, redimindo
aqueles que se desviaram.
Portanto, logo no início do texto, constrói-se uma argumentação de caráter
teológico que articula a tríade Palavra/Deus/Providência. Tal articulação discursiva lança
as bases para a formação de um saber que pretende explicar e, ao mesmo tempo, justificar
o reconhecimento oficial da santidade de Domingos de Gusmão, objetivo final do discurso
manifestado naquele documento pontifício. A fundamentação teológica aqui apontada é
complementada e reforçada discursivamente, logo em seguida, pelo recurso à história da
Igreja e à tradição cristã ortodoxa, criando uma linha de raciocínio que liga a vida e a
atuação religiosa do fundador dos dominicanos aos supostos feitos e aos ícones do
cristianismo na versão romana.
Outra articulação de ideias desenvolvida no primeiro núcleo de formação discursiva
da Fons sapientie é aquela envolvendo os conceitos de história/teologia/evangelização, que
serve para delinear uma teologia histórica da militia Christi, entendida como o exército do
Senhor a serviço da evangelização do mundo. Neste argumento parte-se do princípio que a
história da Igreja é propriamente a história da evangelização do mundo, e que a Palavra de
Deus sempre enfrentou resistências e obstáculos, que aparecem de tempos em tempos, de
forma que a militia Christi foi acionada, em diferentes períodos, por interferência da
Providência, para atender as necessidades da Igreja e de sua missão evangelizadora.
Tal articulação entre história, teologia e evangelização fica patente naquele
documento pelo recurso discursivo a uma alegoria retirada de Zacarias (Zac 6, 1-2), que
indica o aparecimento de quatro quadrigas em meio aos montes: A primeira é uma
referência aos cristãos que a partir do martírio testemunharam a sua fé em Cristo e, dessa
forma, “hostiarum sanguine tingerent et in universam spatiosi maris faciem sagena
predicationis expansa”;171 a segunda quadriga era aquela formada pelos monges negros
que, sob a liderança de são Bento, teriam restabelecido uma rede de unidade no
171
Fons sapientie, p. 191. “tingiram com sangue as suas milícias e expandiram as redes de pregação pela
imensidão dos mares” [Tradução do autor].
70
cristianismo pelo reforço da vida comunitária;172 a terceira foi aquela carregada pelos
cavalos brancos, uma referência aos “fratribus Cisterciensis ordinis et Florensis”, que
liderados por são Bernardo teriam se unido as tropas cristãs já fatigadas por várias batalhas
com seus exemplos de penitência e caridade;173 a quarta quadriga, por fim, seria aquela
puxada pelos frades Pregadores e Menores, que “ei velut equo sue glorie prebens fidei
fortitudinem et fervorem divine predicationis innitum circumdedit collo eius”.174
Os termos e a linguagem utilizados nesta parte da argumentação da Fons sapientie
encontram fundamento bíblico, sobretudo no Velho Testamento, sendo repletos de imagens
militares/militantes que traçam um esquema quadripartido da história da evangelização do
mundo, que tem como característica central a atuação da militia Christi.175 Nesta história o
anúncio da Palavra de Deus é o tema principal, a partir da pregação realizada inicialmente
pelos mártires cristãos e perpetuada pela atuação dos monges beneditinos, cistercienses e
florenses, e depois pelos frades dominicanos e franciscanos. Chama atenção, neste caso, a
interpretação do apostolado da Palavra em uma dimensão de milícia cristã, conjugando em
um mesmo nível de atuação as tropas armadas e as desarmadas, o que seria resultado de
uma elaboração ideológica do papado no século XIII para conjugar os esforços da Igreja no
combate às heresias.176
Ainda no âmbito daquela formação discursiva sobre a história da evangelização,
justamente ao fazer referência ao surgimento dos frades Pregadores e Menores, ocorre
também o recurso argumentativo a uma parábola de Mateus (Mt 19,30 e 20,16). Nesta,
Deus teria suscitado a vinda de operários a soldo na undécima hora para trabalhar na sua
vinha, que “non solum vitiorum vepres et spine pervaserant, sed iam propemodum
vulpecule demolientes convertere in aliene vitis amaritudinem intendebant”, sendo
necessário “adversus infestissimam multitudinem, militiam adunare voluit promptiorem”.177
172
Fons sapientie, p. 191.
173
Fons sapientie, p. 191.
174
Fons sapientie, p. 192. “como a cavalo de sua glória, receberam a força e o fervor da fé, rodeando seu
colo com o clamor da divina pregação” [Tradução do autor].
175
MERLO, Grado Giovanni. Contro gli eretici. La coercizione all’ortodossia prima dell’Inquisizione.
Bolonha: Il Mulino, 1996. p. 30.
176
Ibid., p. 46 et seq.
177
Fons sapientie, p. 192. “não só estava repleta de espinhos e vícios maldosos, mas quase demolida pelas
zorras, que a tentavam converter em uma vinha amarga e estéril”, “congregar uma milícia mais valorosa
contra uma multidão infestada” [Tradução do autor].
71
178
PACIOCCO, Canonizzazioni e culto... op. cit., p. 76 et seq.
179
Ibid., p. 77 et seq.
72
180
Fons sapientie, p. 192.
73
181
Fons sapientie, pp. 192-193. “Afastando as delícias da carne e iluminando as mentes obcecadas dos
ímpios, sacudiu a seita dos hereges, exultando a Igreja dos fiéis” [Tradução do autor].
182
PORTO, Thiago de Azevedo. Canonização e poder no pontificado de Gregório IX: princípios, problemas e
reflexões. Revista de História Helikon, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 72-93, 2014. p. 89.
183
CANETTI, Luigi. L’invenzione della memoria. Il culto e l’immagine di Domenico nella storia dei primi
frati Predicatori. Spoleto: Centro italiano di studi sull'Alto Medioevo, 1996. (Biblioteca de Medioevo Latino,
19). p. 103 et seq.
74
184
Fons sapientie, p. 193. “Tomando-lhe um gozo inexplicável pelo zelo das almas, consagrou-se à pregação
divina, regenerando a muitos pelo Evangelho de Cristo, e ao converter tão valente multidão, mereceu obter a
dignidade dos patriarcas” [Tradução do autor].
185
PACIOCCO, Le canonizzazioni... op. cit., p. 284 et seq.
186
Fons sapientie, p. 193. “Feito pastor e ínclito caudilho do povo de Deus, instituiu uma nova ordem de
Pregadores com seus méritos, ordenou-a com seus exemplos e não deixou de confirmá-la com milagres
evidentes e provados” [Tradução do autor].
187
VICAIRE, Marie-Humbert. Histoire de Saint Dominique. Au coeur de L’Église. Paris: Du Cerf, 1957. p.
353.
75
ao mesmo tempo em que reconhece na Ordem dos Frades Pregadores a perpetuação da sua
obra de santidade.
Não seria equivocado afirmar que a celebração da santidade de Domingos na Fons
sapientie, em grande parte, deve-se ao fato de ele ter fundado e liderado a Ordem dos
Frades Pregadores, que é exaltada por intermédio daquela alegoria de Zacarias como sendo
a quarta quadriga enviada pela Providência para defender a Igreja, a fé católico-romana e
seus fiéis em um período de grande dificuldade. Pode-se mesmo apontar uma alternância
entre a glorificação do fundador dominicano e a celebração de sua principal obra de vida,
no caso a ordem religiosa, que aparece como protagonista da evangelização cristã e da
história de salvação que é delineada pelo discurso daquela bula de canonização.188
Finalizando a argumentação do segundo núcleo de formação discursiva, aparece
pela primeira vez no texto daquela bula uma referência aos milagres atribuídos ao fundador
dominicano: “Nam preter opera sanctitatis et signa virtutis, quibus in carne positus claruit
diversorum curatis languoribus, loquela mutis, visu cesis, surdis auditu, gressu paraliticis
et sanitate pristina multarum generibus invalitudinum restitutis”.189 Portanto, ressalta-se
que além de obras de santidade e sinais de virtude, Domingos também realizou milagres, o
que só confirmava o seu status de santidade.
Contudo, chama atenção o fato de que os milagres atribuídos a Domingos de
Gusmão tenham sido elencados na bula Fons sapientie de forma sumária e genérica, sem
nenhuma exploração de exemplos ou de casos concretos, de modo que aquela listagem
apresentada pode ter sido retirada da própria tradição bíblica e/ou hagiográfica. Não seria
pela falta de registro deles que assim foi feito, pois os documentos apresentados para a
abertura da causa de canonização de Domingos e as atas dos inquéritos realizados nas
cidades de Bolonha e Toulouse apontam milagres em vida e após a morte. Qual seria o
motivo para o documento reservar tão pouca atenção aos milagres?
Uma primeira possibilidade diz respeito ao processo histórico de centralização das
canonizações como direito exclusivo do papa. Tal como foi argumentado anteriormente
neste capítulo, desde o início do século XIII os milagres vinham perdendo espaço como
188
CANETTI, op. cit., p. 12 et seq.
189
Fons sapientie, p. 193. “Ademais de obras de santidade e sinais de virtude, com os quais brilhou em vida,
também curou diversas enfermidades, restituindo a fala aos mudos, a visão aos cegos, a audição aos surdos, o
movimento aos paralíticos e devolvendo a prístina saúde a diversos gêneros de enfermos” [Tradução do
autor].
76
critério de aclamação da santidade basicamente por duas razões: a primeira porque estavam
associados às antigas práticas de reconhecimento da santidade, aquelas feitas em nível
local por meio do vox populi ou da atuação do bispo, o que seria um mecanismo de
avaliação bem diferente daquele que o papado se esforçava para fazer prevalecer; a
segunda porque o papado naquele contexto desconfiava que não se poderia registrar e
avaliar objetivamente os milagres no âmbito de um inquérito de canonização, de forma que
a política papal neste aspecto era extremamente cuidadosa e raramente citava os milagres
como prova de santidade.190
A outra possibilidade de explicação estaria vinculada ao caso particular de
Domingos, mais especificamente à campanha de pregação realizada em Bolonha pelo frade
João de Vicenza, pouco antes da abertura formal de um processo de canonização pelo
papado. Existem relatos que dão conta de uma prática suspeita no âmbito daquela pregação
realizada em 1233 no contexto do movimento Alleluia, pois o referido frade dominicano
estaria inserindo em suas pregações menções a milagres de Domingos que não foram
atestados por registros ou no próprio inquérito pontifício realizado naquela cidade. O fato
teria inclusive gerado desconfiança e desaprovação de parte dos dirigentes da Ordem dos
Pregadores, tal como em Jordão da Saxônia, que em seus escritos não faz sequer referência
às atividades de pregação do frade João, o que seria uma forma de condenar aquele caso ao
silêncio.191 Portanto, o incômodo e a suspeita que recaíram sobre aqueles relatos de
milagres em Bolonha podem ter levado o papado a não utilizar naquele documento de
canonização exemplos mais diretos, optando, ao contrário, pela estratégia da menção
genérica a milagres realizados.
O terceiro e último núcleo discursivo de argumentação volta-se propriamente para a
aclamação oficial da santidade de Domingos de Gusmão pelo papa Gregório IX, para o
estabelecimento de seu culto público e para a captação do interesse de devotos cristãos a
partir de uma estratégia específica. Interessante notar como justamente nesta parte final do
documento, o discurso ganha uma tonalidade personalista e, ao mesmo tempo, um caráter
político-institucional, que não apareceram nas duas primeiras partes do texto.
190
GOODICH, Reason or revelation... op. cit., p. 192.
191
MONTANARI, Elio. Litterae encyclicae annis 1233 et 1234 datae. Spoleto: Centro italiano di studi
sull'Alto Medioevo, 1993. p. 12 et seq.
77
A começar pela familiaridade que o pontífice romano assume ter tido com
Domingos de Gusmão quando ele ainda estava vivo, configurando uma espécie de quebra
do discurso manifestado até então na Fons sapientie, pois estabelece uma aproximação
pessoal ao caso: “Cum igitur ex multa familiaritate, quam nobiscum in minori constitutis
officio habuit, argumenta sanctitatis ipsius ex insignis vite testimonio constitissent [...], ut
cuius in terris solacium gratiose familiaritatis habere meruimus”.192 Iniciar a parte final da
bula de canonização com um argumento de familiaridade entre o papa e o santo a ser
reconhecido, no mínimo parece algo estranho à ordem discursiva que foi construída desde
o início do texto, além de, teoricamente, colocar em questão a suposta isenção dos critérios
e dos procedimentos aplicados aos processos de canonização.
Mas isso não deveria ser uma questão problemática naquele contexto histórico, e
nem neste tipo de documento pontifício, tampouco algo extraordinário ou escandaloso, já
que a menção aparece de maneira explícita e, inclusive, é afirmada uma segunda vez. Na
verdade, a familiaritate com o candidato avaliado era um argumento comum nas causas de
canonização que obtiveram êxito no pontificado de Gregório IX, pois também aparece nos
documentos referentes a Francisco de Assis, Antônio de Lisboa/Pádua e Elisabete de
Turíngia.193
O fato dessa familiaridade não ter sido simplesmente omitida na bula de
canonização aponta um contexto, um lugar de produção textual, no qual essa omissão não
passaria imperceptível para outras pessoas ou grupos. Pois esse aspecto, a relação pessoal
entre Domingos e Hugolino, é algo que ficou registrado ao longo do processo de
canonização e em outros documentos da Ordem dos Frades Pregadores (tal como na
crônica e nas epístolas atribuídas a Jordão da Saxônia).
No entanto, é importante frisar que a referida familiaridade entre Gregório IX e
Domingos de Gusmão foi evocada em um contexto de argumentação em que se ressaltam a
importância dos testemunhos e da hierarquia da Igreja romana na decisão final apresentada
pelo pontífice: “essetque postmodum de miraculorum veritate dictorum facta nobis per
192
Fons sapientie, p. 193. “Por conta da muita familiaridade que tivemos, quando eu ainda desempenhava
um ofício menor, constassem os argumentos de sua santidade pelo testemunho de sua insigne vida [...],
daquele que merecemos obter em terra o consolo gracioso de sua familiaridade” [Tradução do autor].
193
VAUCHEZ, Grégoire IX... op. cit., p. 359.
78
testes idoneos plena fides, [...] ipsum de fratrum nostrorum consilio et assensu ac omnium
tunc apud sedem apostolicam consistentium prelatorum cathalogo sanctorum ascribi”.194
Assim sendo, de um argumento pessoal se passa a outro de caráter marcadamente
institucional, assentando a autoridade pontifícia para o reconhecimento da santidade no
poder divino, do qual o papa é representante. Além de destacar o papel dos testemunhos
colhidos por meio dos inquéritos pontifícios e dos auxiliares papais (os cardeais da cúria,
por exemplo) no processo de avaliação e na decisão final de inscrevê-lo no catálogo de
santos da Igreja romana, de maneira que a canonização, em detrimento daquele argumento
de familiaridade inicial, não aparece como resultado de uma decisão pessoal do papa.
Finalizando o terceiro núcleo discursivo e o próprio texto da Fons sapientie, o papa
Gregório IX usa a sua autoridade e os direitos adquiridos para contribuir firmemente com a
celebração da santidade de Domingos, incentivando os cristãos a vivenciarem tal culto:
“Nos vero tanti confessoris venerabilem sepulturam, [...] Christiane devotionis honoribus
frequentari, vere penitentibus et confessis, [...] cum devotione ac reverentia debita
visitantibus [...] unum annum de iniuncta sibi penitentia misericorditer relaxamus”.195
Por um lado, a concessão de um ano indulgência para aqueles que frequentassem a
sepultura de Domingos de Gusmão no dia de sua celebração, agindo com a devida
reverência e devoção cristã, evidencia mais uma vez o apoio papal ao culto do fundador
dominicano. Pois, após reconhecer a sua santidade e estabelecer o dia de sua celebração, o
papa Gregório IX lançou mão de indulgência como forma de atrair devotos para o culto do
primeiro santo dominicano. A referência direta aos penitentes como possíveis beneficiários
daquela misericórdia pontifícia confirma que o papado estava atento aos movimentos
religiosos que se desenvolviam naquele período, inclusive usando estratégias para captar a
devoção daqueles cristãos aos cultos recém-aprovados. Afinal de contas, a remissão de
penas e pecados era um forte motivador das práticas penitentes naquela conjuntura.
De outro lado, o uso das indulgências para além do que foi estabelecido nas normas
canônicas, como foi o caso aqui exemplificado, demonstra que na prática não havia limites
194
Fons sapientie, p. 193. “E nos fosse dada plena fé da verdade de seus milagres por testemunhos idôneos,
[...] com o conselho e o assentimento de nossos irmãos, e de todos os prelados assistentes da sede apostólica,
decretamos a sua inscrição no catálogo de santos” [Tradução do autor].
195
Fons sapientie, p. 194. “Desejando que a venerável sepultura deste verdadeiro confessor [...] seja
frequentada pela honra de devoções cristãs, da parte de verdadeiros penitentes e confessos, [...] com a devida
honra e reverência dos visitantes, [...] perdoamos misericordiosamente um ano de penitência que pese sobre
eles” [Tradução do autor].
79
para a autoridade do pontífice romano, que podia ignorar as regras que ele mesmo criava
para impor disciplina à hierarquia eclesiástica. Desta forma, extrapolando a norma e
exercendo um direito exclusivo sobre as canonizações, Gregório IX redesenhava a
geografia do culto aos santos na Europa,196 aclamando as candidaturas de santidade que
mais se adequavam aos projetos de seu pontificado e criando novos centros de devoção
cristã em cidades de seu interesse, tal como na aclamação da santidade de Domingos e no
estabelecimento oficial de um culto público em Bolonha.
Qual é o perfil de santidade que emerge da bula Fons sapientie para Domingos de
Gusmão? Quais são as suas características? A qual (ou quais) instituição (ões) ele estaria
vinculado? Não existe uma resposta única que permita articular todas estas questões, o que
aponta o grau de complexidade da construção discursiva realizada naquele documento
pontifício, bem como a diversidade da própria imagem de santidade que foi oficialmente
elaborada para o antigo mestre geral dos Frades Pregadores.
Em uma primeira avaliação da ordem do discurso manifestada naquela bula de
canonização, percebe-se o delinear de três perfis de santidade para Domingos. A começar
por uma santidade militante, reflexo de uma teologia da milícia cristã argumentada no
documento e representativa da lógica do combate às heresias naquele contexto histórico.
Tal modelo é amplamente favorável ao papado e aos seus projetos na primeira metade do
século XIII, à medida que legitima as práticas persuasivas e coercitivas levadas a cabo por
aquela instituição no próprio contexto de redação da carta de canonização.
Mas tal perfil também é favorável à estabilidade institucional da Ordem dos Frades
Pregadores, que, precisamente na década de 1230, viu seus integrantes serem direcionados
pela Sede romana para a tarefa pastoral do ofício da inquisição. Portanto, a possível
legitimidade conferida ao combate às heresias e às práticas inquisitoriais que lhe eram
subjacentes, no âmbito do discurso elaborado na bula Fons sapientie, é representativo de
projetos compartilhados por aquelas instituições religiosas.
196
PACIOCCO, Canonizzazioni e culto... op. cit., p. 222.
80
197
FOUCAULT, op. cit., p. 17.
198
Ibid., p. 19.
82
atuação religiosa de Domingos, sendo perpetuados pela Ordem que ele criou e liderou, a
começar por seu envolvimento nos projetos de evangelização da Sede romana.
Já o recurso ao Direito fundamentou o próprio ato praticado naquele documento,
tornando possível a canonização de Domingos de Gusmão pelo papa Gregório IX, algo que
era do interesse direto do papado, da Ordem dos Frades Pregadores e da cidade de
Bolonha, articulação que será mais explorada nos próximos capítulos desta tese de
doutorado. Portanto, a valorização e a aplicação destes saberes no discurso elaborado na
Fons sapientie manifestam uma vontade de verdade, que é propriamente a expressão de
uma complexa articulação de interesses dos grupos/instituições que participaram
diretamente do reconhecimento da santidade do antigo líder dos dominicanos.
Para finalizar a análise realizada neste capítulo é fundamental apontar ainda a
atuação de um princípio de rarefação na ordem do discurso presente na bula de
canonização de Domingos. Este princípio estaria atuando na própria autoria daquele
documento: “O autor, não entendido, é claro, como o indivíduo falante que pronunciou ou
escreveu um texto, mas o autor como princípio de agrupamento do discurso, como unidade
e origem de suas significações, como foco de sua coerência”.199
Nesse sentido, a bula Fons sapientie é aqui entendida como um documento
institucional, de caráter religioso e jurídico, cuja autoria é atribuída a Gregório IX e ao seu
pontificado. Com isso não se quer dizer que o papa tenha redigido literalmente a carta de
canonização de Domingos de Gusmão, mas que a sua autoridade e o seu governo atuaram
sobre aquele documento de forma a criar uma coerência interna e a controlar as suas
relações externas, contribuindo decisivamente para a elaboração daquele discurso.
A autoria de Gregório IX, no contexto da Idade Média, significava um indicador de
verdade para o conteúdo expressado naquela bula de canonização, algo que é assumido na
própria argumentação do texto quando se afirma que a familiaridade mantida pelo papa
com o antigo mestre geral dos Frades Pregadores era também testemunho daquela
santidade que foi oficialmente reconhecida. Com tal argumentação o documento imprime
uma espécie de selo de verdade ao que tinha sido apontado pelos outros testemunhos e
avaliado posteriormente pela cúria romana, de modo a fundamentar a decisão que foi
tomada pelo pontífice romano.
199
FOUCAULT, op. cit., p. 26 et seq.
84
Por tudo o que foi aqui apontado, é possível afirmar que na ordem do discurso
presente na bula Fons sapientie existe uma estreita relação entre saber, verdade e
instituição. De modo que a argumentação daquele texto recorre ao saber para instituir uma
verdade sobre a canonização de Domingos de Gusmão, e esta acaba por conferir
legitimidade às instituições que convergiram forças para aquele empreendimento coletivo
de santidade, que visava oficializar um culto para o fundador dos dominicanos.
Assim, fica faltando ainda identificar e explorar as circunstâncias históricas e os
interesses contextuais que mobilizaram o papado, a Ordem dos Frades Pregadores e a
cidade de Bolonha a atuarem conjuntamente para viabilizar a canonização do antigo líder
dos dominicanos, bem como as ações realizadas neste sentido. Para isso é importante
esclarecer melhor a conjuntura mais ampla (a Península Itálica na primeira metade do
século XIII) e o contexto local (Bolonha na década de 1230) nos quais se insere o
reconhecimento oficial da santidade de Domingos de Gusmão. O que necessariamente
conduz aos próximos capítulos desta tese de doutorado.
85
CAPÍTULO II
200
Vale ressaltar que os termos Península Itálica, Itália e suas derivações foram utilizados ao longo do texto
apenas como demarcadores de uma espacialidade, que não estava definida naquele contexto histórico do
século XIII com os mesmos contornos territoriais e com o modelo político-administrativo da nação atual.
Além disso, é importante destacar que algumas epístolas papais e imperiais daquele período utilizam os
termos Italiae e Italiam para se referir àquela península. Cf.: AUVRAY, Lucien. Les Registres de Gregoire
IX. Recueil de bulles de ces pape d’après les manuscrits originaux du Vatican. Paris : Librairie Thorin et Fils,
1896. Reg. nº 1463, p. 814; Reg. nº 2223, p. 1195; Reg. nº 2335, p. 1234.
201
A perspectiva teórica foucaultiana dimensiona o poder como algo relacional, desconstruindo a perspectiva
de um centro decisório capaz de coordenar sozinho a complexa rede de relações que compreende o exercício
do poder em uma sociedade. Isto não significa que uma instituição, ou um grupo organizado, não possa
exercer um poder superior às demais, e sim que o exercício do poder encontra-se difundido pela sociedade,
entre vários grupos e instituições, que disputam entre si posições e projetos hegemônicos. A palavra chave
nessa perspectiva é o exercício, pois para Foucault o poder não é algo estável, não é algo que se detém, mas
está sempre em disputa como parte da dinâmica social. Por isso, neste capítulo, o papado, o império e as
comunas são abordados como instituições que exercitavam poder na Península Itálica e que disputavam entre
si posições de comando e projetos políticos. Cf.: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1979.
86
os seus domínios na península italiana por meio de projetos universalistas, que viam na
Itália o campo principal de uma batalha pela liderança do Ocidente cristão.
O quadro em questão não é dos mais simples para se analisar, pois era
extremamente dinâmico naquele período, suscetível a alterações políticas sempre que
ocorria a substituição de um papa por outro, ou de um imperador por outro, ou quando se
dava alguma mutação na correlação de forças locais que servia de base aos governos
comunais. Em consideração ao propósito de análise estabelecido para a tese de doutorado,
não se pretende aqui realizar um longo histórico das relações políticas entre papado,
império e comunas na Itália do século XIII. Este capítulo pretende apenas abordar alguns
campos que, naquela conjuntura mais ampla, evidenciam as disputas, as iniciativas e o
desenvolvimento dos diferentes projetos, de forma a criar um quadro mais geral em que se
torne compreensível a participação ou não daquelas instituições no contexto mais
específico da canonização do primeiro mestre-geral da Ordem dos Frades Pregadores.
tinha a religião cristã como base), por outro associava o exercício deste poder a uma
restrita submissão ao poder espiritual dos seus representantes, aos quais cabia o
reconhecimento dos soberanos legítimos (imperadores e monarcas): afinal de contas, não
eram os pontífices que por intermédio da unção sacra e da coroação confiavam a potestas
et dignitas regnandi aos soberanos?202
A construção teórica da primazia da autoridade espiritual sobre a temporal tinha o
intuito claro de fundamentar um poder superior aos papas, de tal forma que não pudesse ser
questionado ou submetido ao poder exercido pelos governantes laicos. Mesmo que a ideia
não tivesse origem no século XIII, tal teoria da plenitudo potestatis foi sistematicamente
defendida e disseminada pelos papas Inocêncio III, Gregório IX e Inocêncio IV, assumindo
posicionamentos públicos e tomando decisões práticas que afrontavam diretamente a
autoridade dos imperadores da família Staufen. Se estes pretendiam exercer seu poder
temporal com base nas tradições imperiais carolíngias, das quais se consideravam
continuadores, o papado não hesitou em lembrar que Carlos Magno tinha sido coroado em
Roma pelo papa, que seria assim o verdadeiro depositário daquele poder exercido por ele
no Império Carolíngio.203
Embora o projeto de hegemonia pontifícia avançasse sempre em detrimento do
poder imperial, não era a intenção inicial acabar com o império e sua representatividade
política. Existia um espaço devidamente reservado aos imperadores cristãos no projeto
papal: exercer as funções de sustento material e de braço armado da Igreja romana. Por
isso os papas insistiram na tese que fazia do imperador o miles Petri, por excelência, a
quem caberia legitimamente o uso da espada sempre que necessário e de acordo com as
orientações emanadas de Roma. Contudo, essa posição não parecia agradar aos
imperadores da família Staufen, que não estavam tão dispostos a exercer um papel
secundário na liderança do Ocidente cristão e nem a se submeterem plenamente à
autoridade dos pontífices romanos, principalmente nos períodos em que se fortaleciam nos
reinos sob o seu domínio direto (Germânia, Itália e Sicilia). Tais imperadores postularam e
202
VAUCHEZ, André. Chiesa, potere e società. In: . Storia del cristianesimo (volume 5): Apogeo del
papato ed espansione della cristianità (1054-1274). Roma: Borla/Città Nuova, 1997. p. 591-609. p. 595.
203
BARROS, José D’Assunção. Cristianismo e política na Idade Média: as relações entre o papado e o
império. Horizonte, Belo Horizonte, v. 7, n. 15, p. 53-72, dez. 2009. p. 68.
89
204
BARONE, Giulia. Federico II di Svezia e gli Ordini Mendicanti. Mélanges de l'Ecole française de
Rome. Moyen-Age, Roma, tome 90, n. 2, p. 607-626, 1978. p. 626.
205
VAUCHEZ, Chiesa, potere... op. cit., p. 594.
206
HOUBEN, Hubert. Federico II. Imperatore, uomo, mito. Bolonha: il Mulino, 2009. p. 34.
207
ABULAFIA, David. Federico II. Un imperatore medievale. Torino: Einaudi, 1993. p. 173.
90
FRANCESCHI, Franco; TADDEI, Ilaria. Le città italiane nel Medioevo (XII-XIV secolo). Bolonha: il
208
se formaram verdadeiros circuitos diplomáticos rivais entre estas cidades: Milão, que em
diferentes períodos recebeu o apoio pontifício, fornecia governantes para suas aliadas
Brescia, Bolonha, Piacenza e Vercelli; enquanto a cidade de Cremona, historicamente
alinhada à política imperial na Itália, oferecia seus candidatos como podestà para as
comunas de Asti, Bergamo, Parma e Modena.209
A associação direta a um determinado projeto ou o apoio político circunstancial ao
papado e ao império não foram as únicas estratégias utilizadas pelas comunas para a
realização de seus próprios objetivos políticos e econômicos. Em meados do século XII e
nas primeiras décadas do século XIII, algumas comunas da Lombardia criaram uma
aliança política e militar com o intuito de enfrentar o império e suas pretensões naquela
região italiana. A chamada Societas Lombardiae, também conhecida como Liga Lombarda,
tinha chegado ao fim com a paz de Costanza (1183), em que as cidades aceitaram o
pagamento de um imposto ao império (o fodrum, arrecadado para campanhas militares) e
se mantiveram atreladas a uma estrutura que reconhecia a hegemonia política imperial
naquela área. Em troca, o império reconhecia a comuna como um ente político-
administrativo legítimo e juridicamente inserido na estrutura do Reino da Itália, permitindo
ao governo comunal o exercício das regalias que a doutrina jurídica tradicionalmente
atribuía à autoridade imperial.210
A atuação da Liga Lombarda no século XII foi extremamente exitosa para o
movimento comunal, que conseguiu conquistar frente ao império boa parte das libertas
civitatis requisitadas. Mas a sucessão imperial e a ascensão de Frederico II, na década de
1220, criaram problemas efetivos aos resultados conquistados anteriormente pelas cidades
italianas. Pois o referido imperador tinha um projeto de poder que almejava restaurar a
autoridade imperial sobre toda a Itália centro-setentrional, e o questionamento das
cláusulas acordadas na paz de Costanza foi um dos caminhos para a consecução deste
projeto. Tal objetivo foi mesmo anunciado como parte do programa de uma dieta imperial
convocada para ocorrer na cidade de Cremona, levando um grupo de comunas a
209
GILLI, Patrick. Villes et sociétés urbaines en Italie (milieu XIIe – milieu XIVe siècle). Paris: Sedes,
2005. p. 51-52.
210
FRANCESCHI; TADDEI, op. cit., p. 128.
92
reconstituir a Liga Lombarda em 1226, tendo as cidades de Milão e Bolonha como líderes
do movimento.211
O desenvolvimento institucional dos governos comunais e a consequente ampliação
de suas liberdades e prerrogativas na primeira metade do século XIII era uma realidade
difícil de ser contestada, ou modificada a força, mesmo por um projeto universal amparado
em entidades políticas tradicionalmente mais poderosas que as cidades, como o papado e o
império. As comunas desenvolveram estratégias de resistência que iam do enfrentamento
direto (com tropas citadinas) à composição política com uma daquelas forças (papado ou
império) quando o cenário se mostrava mais favorável. Portanto, os governos citadino-
comunais, mesmo não dispondo do mesmo arcabouço histórico do papado e do império
para argumentar uma possível origem divina para a sua autoridade, também realizaram
reflexões teóricas e iniciativas práticas para fundamentar a autonomia das cidades perante
aquelas entidades mais poderosas.
A defesa irrestrita de suas próprias formas de governo, bem como das instituições
que lhe eram decorrentes e das liberdades conquistadas, são exemplos do exercício teórico
e prático da política nas cidades italianas do século XIII. A formação de conselhos locais e
de colégios de eleitores, bem como a implantação de sistemas eleitorais que mesclavam a
escolha dos eleitores aptos com o recurso ao sorteio na nomeação dos magistrados e
reitores citadinos, são provas irrefutáveis dos esforços comunais para impedir uma
interferência direta do papado e do império na formação de seus governos locais.212
211
GILLI, Villes et sociétés... op. cit., p. 21; FRANCESCHI; TADDEI, op. cit., p. 135-136.
212
GILLI, Patrick. As fontes do espaço político. Técnicas eleitorais e práticas deliberativas nas cidades
italianas (séculos XII - XIV). Varia Historia, Belo Horizonte, v. 26, n. 43, p. 91-106, junho de 2010. p. 99 et
seq.
93
o papa ou para o imperador, enunciando uma origem divina para o poder exercido por eles
sobre as populações.
A própria bula de canonização de Domingos de Gusmão pode apontar este aspecto
no caso do papado. Pois ao final da argumentação, na parte em que o pontífice Gregório IX
decretou a inscrição do fundador dos dominicanos no catálogo de santos da Igreja romana,
foi feita uma articulação entre a autoridade exercida pelo papa e suposta origem divina do
seu poder, já que ele se identifica como um servidor de Deus, e como alguém cujo poder se
exerce por sufrágio divino.213 Portanto, segundo o discurso expressado naquele documento,
ao canonizar o antigo mestre geral dos Frades Pregadores, o pontífice romano não agia por
força da posição que ocupava na hierarquia eclesiástica, e sim como um representante de
Deus na Terra.
Era justamente nesta posição de representante do poder divino que o referido papa
costumava se afirmar diante do imperador Frederico II, de forma a se fazer superior e a
colocar o imperador naquela posição inferior de miles Petri. Em uma epístola enviada a
Frederico II, em 03 de fevereiro de 1233, Gregório IX, como de costume, se refere a ele
como Imperador romano, reconhecendo a sua autoridade como legítima. Mas logo em
seguida, trata de adverti-lo para o papel que a Igreja esperava dele, exortando-o a agir “sem
demora” contra os infiéis que afrontavam a dignidade da Igreja e do Império nos territórios
vizinhos à cúria romana.214 Assim sendo, para o papado, naquele contexto conturbado da
Península Itálica no século XIII, o recurso à autoridade imperial era algo necessário para
garantir o respeito à instituição eclesiástica e ao patrimônio de São Pedro.
213
A versão aqui utilizada da bula Fons sapientie é uma edição crítica, em língua latina, disponível em:
WALZ, Angelus. Acta Canonizationis S. Dominici. In: Monumenta Ordinis Fratrum Praedicatorum
Historica, tomus XVI. Romae: Institutum Historicum FF. Praedicatorum, 1935. p. 190-194. p. 193: “[...] nos
cum comisso nobis grege Domini confidentes, eius posse suffragiis per Dei misericordiam adiuvari, ut cuiús
in terris solacium gratiose familiaritatis habere meruimus, eius in celis potenti patrocinio gaudeamus, ipsum
de fratrum nostrorum consilio et assensu ac omnium tunc apud sedem apostolicam consistentium prelatorum
cathalogo sanctorum ascribi decrevimus”. Deste ponto em diante farei referência a este documento apenas
como Fons sapientie, seguida da identificação da página correspondente à edição de Angelus Walz e da
transcrição entre aspas, quando for o caso.
214
AUVRAY, Lucien. Les Registres de Gregoire IX. Recueil de bulles de ces pape d’après les manuscrits
originaux du Vatican. Paris : Librairie Thorin et Fils, 1896. Reg. nº 1068, p. 619: “Fridericum, Romanorum
imperatorem, monet et hortatur ut, ad deponendam superbiam protervorum qui tam Ecclesiae quam Imperii
dignitatem impetant, ad loca Curiae Romanae vicina se conferat sine mora et impiis resistat”. Deste ponto em
diante a referência aos Registros do papa Gregório IX na edição de Lucien Auvray será feita apenas como
AUVRAY, seguida pela identificação do número do registro e da página em que se encontra, além da
transcrição correspondente (entre aspas) quando for o caso.
94
Já as cidades, por sua vez pressionadas por adversários mais poderosos e seus
respectivos projetos de poder para a Itália, não aceitaram recuar em suas demandas de mais
liberdade e autonomia de governo. Pela falta de prerrogativas e de tradições para ingerir
diretamente nos assuntos religiosos, os governos comunais investiram inicialmente em
estratégias políticas e militares para resistir aos assédios do papado e do império, tal como
apontam as sucessivas formações da Liga Lombarda. Reunir lideranças e tropas foi um dos
caminhos encontrados para defender a autonomia citadina.
A autoridade conquistada e o poder exercido pelos dirigentes comunais também foi
reconhecido pelo papa Gregório IX em suas epístolas, inclusive manifestando suas
predileções políticas ao favorecer determinadas cidades em detrimento de outras. Em 29 de
abril de 1233, o referido pontífice escreveu uma carta direcionada ao podestà e ao populus
de Bolonha, solicitando que não impedissem a saída do frade João de Vicenza, que atuava
como legado papal e tinha sido direcionado para agir em outra cidade. 215 O pedido do papa
aponta o reconhecimento explícito daquela autoridade comunal, bem como do setor da
sociedade local que lhe dava base de apoio político. O pontífice romano não se daria ao
trabalho de escrever uma carta, com tal solicitação, a uma instituição/autoridade que ele
não reconhecesse como legítima.
Já na epístola redigida em 25 de agosto de 1233, direcionada ao mesmo frade
dominicano, Gregório IX orientou ao seu representante que concedesse o benefício da
absolvição aos cidadãos de Milão e de Bolonha,216 que tinham se envolvido em confrontos
com outras cidades. Tal correspondência papal e o pedido nela veiculado comprovam a
“boa vontade” do pontífice romano com estas cidades, que não por coincidência eram as
principais adversárias do poder imperial na Itália.
Portanto a legitimação de autoridade e o exercício do poder nas diferentes regiões
italianas, naquela conjuntura do século XIII, não apontava para uma hegemonia pura e
215
AUVRAY, Reg. nº 1268, p. 714: “Potestatem et populum Bononienses rogat et hortatur quatenus, si frater
Johannes, de ordine Praedicatorum, Senensem et Fiorentinam civitates, diabolica tentatione in tumultum
versas, personaliter visitare decreverit ad occurrendum tantae cladi, nullus cum impediat”. Vale ressaltar que
essa epístola papal e a que aparece na próxima nota foram retomadas na análise desenvolvida no capítulo IV
desta tese de doutorado. Mas naquele capítulo a análise caminha para outra direção, com o intuito de explorar
a relação construída entre o pontífice e o referido frade dominicano. Cf., infra, p. 83 et seq.
216
AUVRAY, Reg. nº 1504, p. 830: “Fratri Johanni de Vicentia, ordinis Praedicatorum, committit ut Milantio,
militi Bononiensi, beneficium absolutionis impendat, injuncto eidem Milantio quod, civibus Viterbiensibus
super quibus in eis tenebatur, satisfacto, in primo generali passagio per Sedem Apostolicam praefigendo, iter
arripiat eundi in subsidium Terrae Sanctae, per biennium vel triennium moraturus ibidem”.
95
O campo do direito, das leis e da justiça, foi alvo das disputas e dos conflitos entre
império, papado e comunas na conjuntura italiana do século XIII. A começar pela intensa
atividade legislativa desenvolvida por aquelas entidades político-administrativas, como
forma de organizar a sociedade e impor uma ordenação adequada seus aos respectivos
propósitos. Existiram efetivamente verdadeira concorrência e sobreposição de direitos, na
primeira metade daquele século, gerando uma série de questionamentos de parte a parte,
assim como de movimentos para definir e, se possível, ampliar as suas prerrogativas e
jurisdições.
No caso de Frederico II, a atividade legislativa começou paralelamente à sua
coroação imperial em Roma pelo papa Honório III (em 22 de novembro de 1220),
cerimônia que contou ainda com a participação do cardeal-bispo Hugolino de Ostia (futuro
papa Gregório IX), na mesma ocasião em que foi publicada a Constitutio in basilica Beati
Petri. Pode-se afirmar que a primeira ação legislativa do imperador, com a edição daquela
constituição, teve uma participação direta do papado na sua elaboração e nos esforços para
a sua implantação em território italiano, de modo que a referida legislação pode ter sido
obra da chancelaria pontifícia. Pois as leis expressas naquele documento estabeleciam uma
separação jurídica entre o reino da Sicilia e o império (enquanto a Igreja romana aceitava a
união das duas coroas sob a autoridade de Frederico II); e todas as decisões editadas
anteriormente nas comunas italianas e contrárias aos direitos eclesiásticos foram
suspensas.217
217
BENEDETTI, Marina. Gregorio IX: l’inquisizione, i frati e gli eretici. In: CONVEGNO
INTERNAZIONALE “GREGORIO IX E GLI ORDINI MENDICANTI”, 38, 2010, Assisi. Atti... Spoleto:
Centro italiano di studi sull'Alto Medioevo, 2011. p. 293-323, p. 312-313; MERLO, Grado Giovanni. Contro
96
gli eretici. La coercizione all’ortodossia prima dell’Inquisizione. Bolonha: Il Mulino, 1996. p. 106 e 107;
VAUCHEZ, Chiesa, potere... op. cit., p. 602.
218
VAUCHEZ, Chiesa, potere... op. cit., p. 595-596.
219
VAUCHEZ, André. Une campagne de pacification en Lombardie autour de 1233. L'action politique des
Ordres Mendiants d'après la réforme des statuts communaux et les accords de paix. Mélanges d'archéologie
et d'histoire, Roma, t. 78, n. 2, p. 503-549, 1966. p. 523.
220
BENEDETTI, op. cit., p. 302-303.
97
e Gregório IX. Dentre os resultados alcançados por esta valorização do saber jurídico e da
prática legislativa na hierarquia eclesiástica romana, destacam-se a produção e a
sistematização das decretais e das constituições papais.
Estas últimas, que também eram chamadas de decretum, destinavam-se a promulgar
uma decisão pontifícia em absoluto, sem constituírem uma resposta específica a questões
formuladas e enviadas por outras autoridades a Roma. Geralmente, o formato utilizado
neste documento era aquele de uma carta encíclica, direcionada às principais autoridades
eclesiásticas do ocidente latino, como também às universidades.225 Desta forma, a
promulgação de um decretum conferia amplitude ao poder papal ao divulgar e tornar
obrigatória a obediência a uma decisão absoluta de um pontífice romano.
Já as decretais eram cartas emitidas pelos pontífices romanos como respostas
oficiais a demandas e a questões específicas (jurídicas ou não), que eram formuladas por
outras autoridades (eclesiásticas e também laicas) e enviadas a Roma. Desde o século XII,
os canonistas se dedicaram a organizar esses documentos na forma de uma coletânea,
reunindo as epístolas emanadas de um ou mais pontífices e conferindo ao material um
significado sobre o plano legislativo. Este trabalho de organização e de transmissão de
documentos realizado pelos canonistas contribuiu para criar uma nova base legislativa para
a Igreja romana, que se equiparava e até sobrepujava o antigo direito oriundo dos concílios,
servindo assim para fundamentar o direito canônico.226
Este direito eclesiástico-romano, por sua vez, era um concorrente na conjuntura
italiana de outras formas de direito, que não atendiam especificamente aos propósitos da
Igreja, tais como os direitos civil e criminal praticados nas cidades, ou o direito feudal
aplicado nos condados e nas áreas rurais. Não foi por acaso que os papas acima referidos
se dedicaram pessoalmente a organizar suas decretais na forma de coletâneas, ou ao menos
sancionaram as obras de juristas reconhecidos, o que constituía efetivamente uma atividade
legislativa que ajudava a projetar o poder dos pontífices romanos, ao mesmo tempo em que
criava a devida legitimidade jurídica para o exercício daquela autoridade.
Dentre as obras realizadas por especialistas de renome, o Liber Extra, organizado
por Raimundo de Peñaforte e publicado pelo papa Gregório IX em setembro de 1234,
225
BAGLIANI, Agostino Paravicini. L’apogeo del papato (1198-1274). In: . Storia del cristianesimo
(volume 5): Apogeo del papato ed espansione della cristianità (1054-1274). Roma: Borla/Città Nuova, 1997,
p. 553-590. p. 585 e 586.
226
Ibid., p. 581.
99
acabou se destacando como a principal base do direito canônico naquela conjuntura. Entre
outras coisas, porque reunia em uma única coleção legislativa decretais e constituições
pontifícias, abolindo as anteriores, que ficaram de fora daquela obra, e deixando de lado os
relatos de fatos para se concentrar apenas nas questões juridicamente essenciais.227
Também na década de 1230, Frederico II deu continuidade a suas ações legislativas
com o intuito de fundamentar e ampliar seus poderes em território italiano, por meio de
uma estratégia jurídica que reafirmava as prerrogativas imperiais no campo da justiça, em
detrimento do papado e dos poderes locais. Algo que se concretizou, em 1231, com o
lançamento de um novo código legislativo para o Reino da Sicilia, diante de súditos
reunidos na cidade de Melfi.
As chamadas constituições de Melfi, também conhecidas como Liber Augustalis,
continham mais de duzentas disposições legislativas que vinculavam a noção de ordem
social às ações legislativas e judiciárias realizadas pelo monarca (da Sicilia), apontado
como o único ser capaz de garantir a paz e o ordenamento, por ser ele a própria encarnação
da lei (lex animata). Daí a necessidade de submeter direitos e obrigações ao arbítrio do
soberano, que seria o único legitimamente autorizado a elaborar novas leis e aplicá-las aos
territórios e às populações sob a sua autoridade régia.228
O Liber Augustalis apresentava uma concepção de poder que apontava a monarquia
como a única forma de governo capaz de enfrentar o caos dominante, pois a autoridade do
soberano descendia de Deus, sendo uma garantia de justiça e de paz. Desta forma, atribuía
ao monarca um papel central na administração da iustitia, sem fazer qualquer referência
aos pontífices romanos como possíveis parceiros nesta tarefa, transformando assim a
justiça em um monopólio régio.229
Com a elaboração e a publicação das constituições de Melfi, Frederico II criou uma
base jurídica fundamental para a ampliação de seus poderes, inclusive avançando suas
prerrogativas em campos tradicionalmente religiosos e que seriam da alçada do poder
espiritual (exercido pelos papas e demais autoridades eclesiásticas). Como, por exemplo,
nas ações que visavam investigar e punir o crime de heresia (equiparado a um crime de
227
BAGLIANI, L’apogeo del papato... op. cit., p. 585 e 586.
228
ABULAFIA, op. cit., p. 169 e 179.
229
HOUBEN, op. cit., p. 41; ABULAFIA, op. cit., p. 173.
100
O caminho para aqueles distintos projetos políticos atuantes na Itália do século XIII
passava necessariamente pela legitimação da autoridade e pelo exercício constante do
poder. Por isso o Direito adquiriu importância central nas disputas entre o império, o
papado e as cidades, pois era a forma mais eficaz e menos traumática para alcançar tais
propósitos. Não foi por acaso que o saber jurídico e os especialistas em leis adquiriram
uma valorização crescente desde o século XII na península italiana. O campo jurídico era
um espaço adequado para o enfrentamento de forças e para a resolução de conflitos que
230
MACCONI, Massimiliano. Federico II. Sacralità e potere. 2 ed. Genova: ECIG, 1996. p. 45-46.
231
GILLI, As fontes... op. cit., p. 99 et seq.
101
não eram sempre resolvidos por meio da luta armada, porque nos confrontos armados as
vitórias eram geralmente desgastantes e de duração efêmera.
A atividade legislativa e o exercício da justiça estiveram no centro das disputas
travadas entre o imperador Frederico II e as comunas italianas, refletindo o confronto entre
dois projetos políticos bem diversos para a Itália: um que pretendia restaurar a autoridade
imperial e organizar aquela península por meio do modelo monárquico; outro que almejava
consolidar o autogoverno das cidades e ampliar as liberdades locais frente às instituições
que se pretendiam universais. Intermediando tais disputas, ora favorecendo um lado, ora o
outro, estava o papado, que se colocava estrategicamente em uma posição conciliatória e
superior, não sem aproveitar as oportunidades que surgiam com aqueles confrontos para
projetar suas prerrogativas de autoridade em territórios diversos, além de celebrar acordos
de paz que fossem favoráveis aos seus projetos políticos.
O exercício de um poder mediador pelo pontífice romano, procurando atuar para
conciliar as posições políticas do império e das comunas italianas, foi algo recorrente nos
anos anteriores à canonização de Domingos. No ano de 1233, por exemplo, Frederico II e
Gregório IX trocaram epístolas sobre este conflito. Em uma carta enviada pelo imperador
em 12 de julho daquele ano, ele anunciou ter recebido uma epístola contendo a decisão
arbitral do pontífice romano, além de aproveitar para transmitir imunidades e documentos
patenteados ao papa por meio de um representante.232
Pouco tempo depois o papa respondeu ao imperador com outra epístola, mais
precisamente em 12 de agosto de 1233. Na carta Gregório IX afirmou que Frederico II
tinha se queixado de sua decisão arbitral para aquele conflito, mas o pontífice romano
rejeitou sua argumentação, esclarecendo que a sua arbitragem tinha o único propósito de
preservar os direitos das partes em confronto. Além de aproveitar a oportunidade para
lembrar o imperador das promessas de compensação que ele tinha feito aos representantes
das comunas,233 e que provavelmente não tinham sido cumpridas.
232
AUVRAY, Reg. nº 1495, p. 826: “Fridericus, Romanorum imperator, Gregorio IX papae nuntiat se ejus
epistolam, in qua arbitrium de causa inter ipsum et Lombardos prolatum continebatur, recepisse, sed se
[Hermanni], magistri Theutonicorum, reditum praestolaturum esse, antequam litteras patentes mittat, quas
Sedes Apostolica usque ad festum beati Michaelis (= 29 sept.), juxta tenorem sibi transmissum, dirigi
postulaverat”.
233
AUVRAY, Reg. nº 1497, p. 827: “Friderici, Romanorum imperatoris, qui per litteras cardinalibus scriptas
nibil sibi de injuriis a Lombardis illatis satisfactionis praestitum fuisse conquestus erat, querelam rejicit,
eique exponit quomodo in hac provisione secundum justitiam et rationem egerit, addens negotium in statum
pristinum posse reduci, jure utriusque partis integro remanente”.
102
234
AUVRAY, Reg. nº 1487, p. 823: “Johanni Vicentino, ordinis Praedicatorum, concedit ut illis qui pro
statutis editis vel consuetudinibus introductis contra ecclesiasticam libertatem, excommunicationem
incurrerint, recepta ab eis cautione quod statuta et consuetudines hujusmodi aboleant, et eis etiam qui pro
injectione manuum violenta in canonem inciderint sententiae promulgatae, absolutionis benefîcium
impertiatur”.
103
estendida ao campo do direito e da justiça. Tratava-se de garantir espaço, por meio das leis
e da sua aplicação, para o exercício de uma autoridade superior a todas as demais. Vale
lembrar que as decretais e as constituições do papa Gregório IX (inseridas no Liber Extra)
foram publicadas apenas três anos após o Liber Augustalis de Frederico II. Apontando uma
verdadeira concorrência legislativa entre as autoridades papal e imperial, que por meio do
expediente das leis pretendiam sobrepor-se uma a outra.
Até mesmo a forma de promulgação daquela coletânea pontifícia apontava para
esta concorrência com a autoridade imperial, pois Gregório IX enviou o seu volume de
decretais para uma universidade, de modo que fosse estudada e servisse de base jurídica
para a formação intelectual na área do Direito. O mesmo expediente era utilizado
recorrentemente no passado pelos imperadores, para que as novas leis fossem avaliadas por
especialistas em direito e ganhassem legitimidade, além de ampliar a sua difusão por meio
da atividade de mestres e estudantes universitários.
O pontífice romano enviou o Liber Extra, em 05 de setembro de 1234, para os
doutores e estudantes da universidade de Paris, tendo destacado a autoria intelectual do
frade Raimundo de Penhaforte,235 renomado especialista em direito canônico. Além de ter
exaltado as melhorias feitas pelo seu penitenciário papal, Gregório IX deixou bem claro em
sua carta que aquele volume passava a ser a única base jurídica legítima para o direito
canônico, devendo ser utilizado nas escolas e nos tribunais,236 em substituição às coletâneas
anteriores.
Assim, por meio da elaboração e da promulgação do Liber Extra, por um lado a
Igreja romana tentava homogeneizar a base jurídica da hierarquia eclesiástica, utilizando
aquela coletânea de decretais e constituições para fundamentar o exercício do poder pelo
pontífice e pela cúria romana sobre as demais dioceses e seus clérigos. E por outro lado,
235
AUVRAY, Reg. nº 2083, p. 1125: “Doctoribus et scholaribus Parisiensibus nuntiat se edidisse volumen
Decretalium, a fratre Raymundo [de Pennaforte] redactum, et praecipit ut hac tantum compilatione universi
utantur in judiciis et in scholis”.
236
AUVRAY, Reg. nº 2083, p. 1125: “[...] Sane diversas constitutiones et decretales epistolas predecessorum
nostrorum in diversa dispersas volumina, quarum alique propter nimiam similitudinem, et quedam propter
contrarietatem, nonnulle etiam propter sui prolixitatem, confusionem inducere videbantur, alique vero
vagabantur extra volumina supradicta, que tanquam incerte frequenter in judiciis vacillabant, ad communem
et maxime studentium utilitatem per dilectum filium fratrem Raymundum, capellanum et penitentiarium
nostrum, in unum volumen, resecatis superfluis, providimus redigendas, adicientes constitutiones nostras et
decretales epistolas, per quas nonnulla que in prioribus erant dubia, declarantur. Volentes igitur ut hac tantum
compilatione universi utantur in judiciis et in scolis, districtius prohibemus ne quis presumat aliam facere
absque auctoritate Sedis Apostolice speciali”.
104
procurava ampliar sua jurisdição sobre a sociedade, estabelecendo que aquela obra deveria
ser utilizada nas escolas e nos tribunais, em substituição às coletâneas anteriores, de modo
que o direito canônico fosse também considerado na formação universitária e na justiça
praticada nos territórios italianos.
O Direito e suas formas jurídicas também serviram de base para o reconhecimento
oficial da santidade de Domingos de Gusmão pelo papado, como destacado no capítulo
anterior. No final da bula Fons sapientie, justamente na parte em que se decreta a inscrição
do antigo líder dos dominicanos no catálogo de santos da Igreja romana, o discurso ali
produzido destaca a importância dos testemunhos idôneos para a comprovação dos
milagres, além do conselho dos prelados da cúria romana para a decisão final do papa
Gregório IX.237
Portanto, naquele documento existe uma referência implícita ao processo de
canonização e aos testemunhos que foram colhidos por meio de inquérito, como sendo uma
base de comprovação para os milagres que genericamente foram identificados na bula
Fons sapientie. O que destaca a importância daquele procedimento inquisitorial como um
fundamento para a decisão final do pontífice romano. De modo que a referência em
questão não só representa as formas e os procedimentos jurídicos adotados pela Igreja
romana no reconhecimento oficial da santidade, naquele contexto histórico, como também
valoriza a disciplina eclesiástica que o papado se esforçava para difundir desde o início do
século XIII.238
Já a menção feita aos assistentes do sólio pontifício, também como uma base de
apoio para aquela decisão de inscrever Domingos no catálogo de santos, aponta para uma
organização institucional que interferiu naquela decisão de canonizar o primeiro mestre dos
Frades Pregadores em 1234. Logo, segundo o discurso manifestado na Fons sapientie, o
papa Gregório IX não era o único representante da Igreja romana a conferir legitimidade
para aquele ato. Tal como argumentado anteriormente, o processo de canonização passava
237
Fons sapientie, op. cit., p. 193: “Cum igitur ex multa familiaritate, quam nobiscum in minori constitutis
officio habuit, argumenta sanctitatis ipsius ex insignis vite testimonio constitissent essetque postmodum de
miraculorum veritate dictorum facta nobis per testes idoneos plena fides, [...] ipsum de fratrum nostrorum
consilio et assensu ac omnium tunc apud sedem apostolicam consistentium prelatorum cathalogo sanctorum
ascribi decrevimus”.
238
Para uma melhor compreensão dos argumentos que aparecem neste e no parágrafo seguinte, vale conferir
o debate feito no capítulo I desta tese. Cf., infra, p. 35 et seq.
105
por uma avaliação da cúria romana, que emitia um parecer (favorável ou contrário) ao
pontífice antes de sua decisão final.
239
BASCHET, Jérôme. Os limites da história e os perigos da escatologia. In: . A civilização Feudal: do
ano 1000 à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006, p. 326-336. p. 329; TÖPFER, Bernhard.
Escatologia e milenarismo. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do
Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. V. 1, p. 353-366, p.
353.
106
240
BASCHET, op. cit., p. 329 e 336; TÖPFER, op. cit., p. 353.
241
Ibid., p. 332; Ibid., p. 354-355.
107
imperial, que tratou de conferir a ele um sentido escatológico, sublinhando o feito daquele
monarca que era a própria encarnação de uma realeza sacra, um rex sacerdos, continuador
e herdeiro de Davi, um soberano escatológico destinado a dominar o mundo de um
extremo ao outro e a instaurar uma nova idade do ouro.242
Nos contextos italiano e europeu do século XIII corriam profecias e visões sobre
um imperador que pacificaria os conflitos e que unificaria Ocidente e Oriente sob a sua
autoridade. Tudo indica que Frederico II tinha conhecimento desses relatos e do impacto
que eles tinham na espiritualidade popular, por isso tratou de enquadrar a conquista do
Reino de Jerusalém no campo das expectativas escatológicas. Em um manifesto redigido
em 18 de março de 1229, o imperador se apresentava ao público como um instrumento da
divina providência, que tinha conseguido de forma pacífica a retomada daquela cidade
santa, algo que era almejado há décadas pelo Ocidente latino.243 Tal apropriação da
escatologia cristã por parte do império não passou despercebida pela Igreja romana, pois o
ato em si atribuía a Frederico II um papel destacado como guia espiritual da cristandade, o
que só poderia ser evidentemente feito em detrimento das prerrogativas pontifícias.
As reações do papado foram imediatas e diversas. Quando o imperador retornou a
Itália, encontrou parte de seus territórios ocupados por tropas aliadas do pontífice romano.
Além disso, Gregório IX também recorreu ao campo das crenças religiosas com o intuito
de desqualificar o seu opositor na liderança da cristandade, acusando de blasfêmia o
movimento cruzadista de Frederico II e o polêmico ato de sua autocoroação em Jerusalém
– algo que, dentre outros efeitos, usurpava uma prerrogativa central do poder espiritual
pontifício: reconhecer publicamente um monarca por meio de uma cerimônia de
coroação.244
As teorias de base milenarista também fundamentaram as ações propagandistas
imperiais e papais, principalmente as ideias cultivadas nos escritos do abade cisterciense
Joaquim de Fiore e que foram difundidas por seus discípulos e admiradores, por sua vez
inseridos em diferentes círculos intelectuais. As reflexões teológicas daquele religioso da
Calábria tomavam como base a tradicional visão cristã de uma história marcada pela
242
MACCONI, op. cit., p. 77 e 78.
243
DELLE DONNE, Fulvio. El Emperador y el Anticristo: la propaganda política en el siglo XIII. In: Res
Publica Litterarum. Documentos de trabajo del grupo de investigación Nomos. Madrid: Instituto Lucio
Anneo Séneca, 2005. p. 3-16. p. 10.
244
Ibid., p. 10.
108
245
MIRANDA, Valtair Afonso. Uma nova igreja numa nova era: uma aproximação ao Praephatio Super
Apocalypsim de Joaquim de Fiore. Reflexus, v. VIII, p. 255-269, 2014. p. 266 e 267.
246
TRONCARELLI, Fabio. Gioacchino da Fiore e l’età dello Spirito. In: PASZTOR, Edith (Org.). Attese
escatologiche dei secoli XII-XIV. Dall’Età dello Spirito al “Pastor Angelicus”. Atti del Convegno
(L’Aquila, 11-12 settembre 2003). L’Aquila: Edizioni Libreria Colacchi, 2004. p. 33-41. p. 33 e 34.
247
A noção de concórdia nas reflexões de Joaquim de Fiore remete inicialmente a uma articulação possível
entre o Antigo e o Novo Testamento, sendo posteriormente projetada em uma organização esquemática da
História. Cf.: MIRANDA, Valtair Afonso. op. cit., p. 258.
248
TRONCARELLI, op. cit., p. 36 e 38.
109
ser encarnado por um imperador, por um falso papa, ou mesmo por outra pessoa que
desempenhasse uma liderança (ao mesmo tempo) espiritual e temporal.
Justamente esta abertura da teoria milenarista de Joaquim de Fiore foi amplamente
explorada em escritos desenvolvidos nas chancelarias papal e imperial, atribuindo ao
opositor o papel de Anticristo, enquanto resguardava para si aquele desempenhado pelo
Pastor Angelicus (o de pacificador e líder dos cristãos). A partir de 1239 os ataques se
intensificaram na esteira dos acontecimentos e dos conflitos italianos que opunham as
cidades à autoridade temporal de Frederico II, desta vez com o papado se posicionando ao
lado das comunas e incentivando abertamente a contestação do domínio imperial na Itália.
É o que se observa com a segunda excomunhão que o papa Gregório IX lançou sobre
aquele imperador, bem como nos escritos pontifícios que assimilavam Frederico II à besta
do Apocalipse, que o acusavam de ser o precursor ou o próprio Anticristo, e que teriam
sido produzidos pelo cardeal Raniero Capocci, assessor do papa e muito próximo a círculos
joaquimitas.249
Do lado de Frederico II também tinham escritores à serviço da propaganda imperial
e versados nas reflexões milenaristas de Joaquim de Fiore, que sabiam captar e se apropriar
das insatisfações e das manifestações populares contra uma organização eclesiástica
acusada de mundanismo e de excesso de riqueza. Por isso atribuíam ao imperador, por
meio de uma literatura antipapal, aquele papel de purificador da Igreja católico-romana
(que deveria ser pobre como Cristo) e de pacificador dos cristãos (que alcançariam a
promessa do reino milenar), direcionando ao pontífice Gregório IX as mesmas
representações depreciativas que a chancelaria papal elaborava para o imperador.250
Além da guerra de propagandas entre o papado e o império, a escatologia e o
milenarismo também influenciaram direta e indiretamente uma série de movimentos
religiosos e de ideais de espiritualidade manifestados no contexto italiano do século XIII.
Houve, de fato, aprofundamento, diversificação e difusão de concepções e manifestações
de religiosidade que tinham surgido no século XII, expressando demandas de fé e de
crença que não eram totalmente atendidas pela estrutura e pelas instituições vinculadas à
Igreja romana.
249
DELLE DONNE, Fulvio. Il papa e l'anticristo: poteri universali e attese escatologiche all'epoca di
Innocenzo IV e Federico II. Archivio normanno-svevo (ArNos), v. 4, p. 17-43, 2013/2014. p. 28 et seq;
DELLE DONNE, El Emperador... op. cit., p. 14.
250
DELLE DONNE, Il papa... op. cit., p. 40.
110
251
VAUCHEZ, André. A Espiritualidade da Idade Média Ocidental (Séc. VIII-XIII). Lisboa: Editorial
Estampa, 1995. p. 141-142.
252
LE GOFF, Jacques. As ordens mendicantes. In: BERLIOZ, Jacques. Monges e Religiosos na Idade
Média. Lisboa: Terramar, 1994. p. 227-241. p. 228.
111
253
MIATELLO, André Luis Pereira. O pregador e a sociedade local: a luta pelo poder pastoral no seio das
cidades da Baixa Idade Média ocidental (séc. XIII-XIV). Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 7, n.
2, p. 112-131, julho/dezembro de 2014. p. 120 e 121; LE GOFF, op. cit., p. 228, 230 e 233.
254
ROSSI, Maria Clara. Gregorio IX, i frati e le Chiese locali. In: CONVEGNO INTERNAZIONALE
“GREGORIO IX E GLI ORDINI MENDICANTI”, 38, 2010, Assisi. Atti... Spoleto: Centro italiano di studi
sull'Alto Medioevo, 2011. p. 259-292. p. 264 et seq.
112
255
ALBERZONI, Maria Pia. Dalla domus del cardinale d’Ostia alla curia di Gregorio IX. In: CONVEGNO
INTERNAZIONALE “GREGORIO IX E GLI ORDINI MENDICANTI”, 38, 2010, Assisi. Atti... Spoleto:
Centro italiano di studi sull'Alto Medioevo, 2011. p. 73-121. p. 112 et seq.
256
BARONE, Giulia. La propaganda antiimperiale nell’Italia federiciana: l’azione degli Ordini Mendicanti.
In: TOUBERT, Pierre; BAGLIANI, Agostino Paravicini (Orgs.). Federico II e le città italiane. Palermo:
Sellerio, 1994. p. 278-289. p. 279, 280 e 282; BARONE, Federico II... op. cit., p. 617; MIATELLO, op. cit.,
p. 130.
113
(ou de autoflagelação) que eram geralmente chamadas de “disciplina” (daí o nome usado
para identificar seus praticantes) e que poderiam levar ao uso do chicote e de outros
instrumentos (tal como o famoso cilício) no próprio corpo. Estes formaram um grupo
particular entre os penitentes italianos, que em sua maioria eram leigos que se reuniam em
grupo ou se encontravam em público para rezar e fazer penitência, mas que também
adotavam práticas particulares para marcar a sua espiritualidade, como o jejum e a
continência sexual. Tanto flagelantes quanto penitentes foram expressões (particulares e
públicas) de uma vontade penitencial que animou a religiosidade dos leigos nas cidades
italianas e que estariam associadas às tensões difusas existentes naquelas realidades, bem
como ao modelo de sofrimento representado na paixão de Cristo e nos seus relatos pela
tradição cristã.257
Tais práticas penitenciais ao serem realizadas em público acabavam expressando
uma aspiração coletiva pela concórdia, que pode ser traduzida nos clamores entoados por
“paz e misericórdia”, tão comuns nas procissões religiosas registradas em diferentes
cidades da Península Itálica durante o século XIII. Este comportamento religioso não era
propriamente uma novidade para os cristãos, já que a prática coletiva de oração e de
penitência (como últimos recursos perante uma tribulação) está entre as tradições judaicas
presentes no Antigo Testamento.258
A questão é o que levou ao surgimento e a difusão de tais práticas coletivas nas
comunas italianas. Certamente aquela conjuntura de conflitos de autoridade (entre império,
papado e comunas) e de guerras de facções (no interior das cidades, dilacerando laços
sociais e hierarquias tradicionais) contribuiu para a recorrência dessas manifestações
penitenciais, ao passo que tais acontecimentos eram frequentemente vistos como sinais de
que o fim dos tempos se aproximava (tanto na lógica escatológica, quanto na milenarista).
Por outro lado, no campo específico da espiritualidade cristã, tais práticas eram
também atestadas no âmbito da vida monástica (naquele século e nos precedentes) como
parte de um comportamento ascético, que via na mortificação do corpo um caminho para a
perfeição, algo que aproximaria os monges ao plano divino. De forma que os leigos, ao se
apropriarem destas práticas, poderiam estar apenas seguindo o modelo monástico, sem se
257
CASAGRANDE, Giovanna. Penitenti e Disciplinati a Perugia e loro rapporti con gli Ordini Mendicanti.
Mélanges de l'Ecole française de Rome. Moyen-Age, Temps modernes, Roma, t. 89, n. 2, p. 711-721, 1977.
p. 711 et seq.
258
VAUCHEZ, A Espiritualidade... op. cit., p. 164.
114
inserirem naquela estrutura de vida reclusa. Como também poderiam manifestar o desejo
(pessoal ou coletivo) pela imitatio Christi, comum a diversas práticas religiosas atestadas
naquele contexto italiano do século XIII. 259 Nesse sentido, a autoflagelação e as demais
formas de penitência seriam apenas um caminho para reviver o sofrimento de Cristo,
marcando de maneira explícita a identificação religiosa daquelas pessoas.
O envolvimento das ordens mendicantes nas práticas penitenciais dos leigos não se
limitou ao movimento da magna devotio de 1233.260 Daquele período em diante, os frades
franciscanos e dominicanos exerceram um papel de destaque na organização e no controle
das confrarias de penitentes que se formaram nas cidades italianas. Tais instituições leigas
tinham surgido de forma espontânea, influenciadas por outras iniciativas correlatas que
organizavam os cidadãos em associações fraternais (de profissão, de bairros) e que
visavam o apoio mútuo e, em alguns casos, a realização coletiva de práticas de caridade. 261
As confrarias eram assim parte de um fenômeno maior, de uma vontade de ordenação da
realidade que atingia também aos leigos, levando-os a formar associações diversas.
Não demorou muito para que o papado percebesse o potencial dessas instituições
para a organização dos leigos e para o devido direcionamento daquelas demandas e
expressões de espiritualidade, conferindo aos frades franciscanos e dominicanos um poder
para ordenar e controlar as confrarias urbanas. Tudo indica que a Igreja romana aprovou e
apoiou a atuação dos mendicantes naquela onda de fervor registrada em 1233, ampliando
posteriormente a sua ação junto às confrarias de penitentes, de forma que tais instituições
leigas não tivessem uma dinâmica de organização e de atuação que fosse independente da
estrutura eclesiástica. E que as ordens mendicantes, de sua parte, não perderam a
oportunidade de ampliar sua influência e sua ação político-religiosa no âmbito das cidades
italianas, assumindo de bom grado a direção espiritual daquelas instituições originalmente
leigas, que entre outras coisas garantia a elas um permanente afluxo material na forma de
doações.262
259
VAUCHEZ, A Espiritualidade... op. cit., p. 163.
260
Cf., infra, p. 168 et seq.
261
VAUCHEZ, A Espiritualidade... op. cit., p. 160 et seq.
262
CASAGRANDE, op. cit., p. 715 e 719.
115
As teorias escatológicas não tinham surgido no século XIII e nem na Itália, mas
naquele contexto histórico específico encontraram demandas e forças para se afirmarem e
se difundirem como parte da espiritualidade religiosa compartilhada pelas populações
italianas. Desta forma, passaram a ser com mais frequência utilizadas pelas chancelarias
papal e imperial, como parte de uma estratégia de legitimação de autoridade e de
desqualificação do outro, com base em crenças religiosas que vigoravam naquela
conjuntura. Por isso, os confrontos teóricos entre papado e império fizeram amplo recurso
aos temas escatológicos e milenaristas, pois existia uma realidade que dava sentido ao uso
destas imagens.
A bula de canonização de Domingos de Gusmão também apresenta indícios da
importância deste tema para a Igreja romana naquela conjuntura, ao ponto de ter sido
utilizado como uma das bases de argumentação daquele documento, que se dedicava a
fundamentar a santidade do primeiro mestre geral dos Frades Pregadores. O discurso
construído na Fons sapientie reflete a lógica escatológica do combate entre o Bem e o Mal,
bem como a ideia de que as perseguições sofridas pela Igreja e por seus fiéis, ao longo do
tempo, eram espécies de provações que deveriam ser superadas, não sem contar com o
importante auxílio da providência divina. Esta é a perspectiva de pensamento que permitiu
articular a vida de Domingos e a instituição por ele fundada como efeitos da providência
divina, que o teria enviado para lutar e defender a fé cristã perante seus inimigos. Nesse
sentido, os mendicantes são apontados no referido documento papal como a quarta milícia
enviada por Deus para proteger a Igreja, a fé cristã e os seus fiéis dos ataques das forças do
Mal.263
Leigos, religiosos e clérigos não estiveram indiferentes a esta perspectiva religiosa.
Muitos penitentes, sobretudo os flagelantes, viam na mortificação do corpo o caminho
espiritual para a salvação da alma, pensamento que ganhava sempre mais força em
períodos conturbados, de catástrofes naturais ou de conflitos mais intensos entre o papado
e o império. Não se pode ignorar a articulação histórica existente entre esta lógica de
263
Fons sapientie, op. cit., p. 191-192: “[...] occurente hora undecima, cum dies iam declinasset ad vesperum
et propter iniquitatis habundantiam, caritate plurimum frigescente, vergeret iustitie radius ad occasum, quia
vineam, ad quam paterfamilias operarios diversis temporibus denarii conductos conventione premiserat [...].
Et, sicut impresentiarum cernimus post trium signis differentium tirocinia quadrigarum, in quadriga quarta
equos varios et robustos, Predicatorum et Minorum fratrum agmina, cum electis ducibus simul in prelium
directurus, spiritum sancti Dominici suscitavit”.
116
264
Fons sapientie, op. cit., p. 192: “[...] Qui gerens a pueritia cor senile ac in mortificatione carnis eligens
vivere [...], carnem spiritui et sensualitatem subiciens rationi”.
265
Este aspecto será melhor explorado no capítulo IV desta tese. Cf., infra, p. 168 et seq.
117
266
WALZ, Angelus. Acta Canonizationis S. Dominici. In: Monumenta Ordinis Fratrum Praedicatorum
Historica, tomus XVI. Romae: Institutum Historicum FF. Praedicatorum, 1935, pp. 89-194. p. 158 e 159:
“[...] Et fere omnes civitates Lombardie et Marchie facta sua et statuta ordinanda et mutanda ad voluntatem
fratrum tradunt in manibus eorum, ut radant, addant, minuant et mutent, secundum quod eis visum fuerit
expedire. Et hoc etiam faciunt de guerris extirpandis et pacibus faciendes et componendis inter eos. Et de
usuris et male ablatis reddendis et confessionibus audientis et multis aliis bonis, que longum esset enarrare”.
Deste ponto em diante a referência ao processo de canonização de Domingos na edição de Angelus Walz será
feita apenas como Acta Canonizationis S. Dominici, seguida da identificação da página e da transcrição
correspondente (entre aspas), quando for o caso.
267
AUVRAY, Reg. nº 1224 [12 de abril de 1233], p. 695: “Episcopo Brixiensi et fratri S.[tephano], priori
provinciali Lombardiae, ordinis Praedicatorum, mandat quatenus in monasterium Sancti Alexandri,
Parmensis dioecesis, ad Romanam Ecclesiam nullo medio pertinens, propter malitiam habitantium in eodem
in spiritualibus et temporalibus adeo graviter collapsum, quod nulla spes erat de cetero ut reformari in ordine
suo posset, prout visitatorum litterae papae exhibitae continebant, monialibus ibidem degentibus in aliis locis
sui ordinis collocatis, fratres de Campaniola inducant”; Reg. nº 1280 [29 de abril de 1233], p. 718-719:
“Episcopo Parmensi et archipresbytero de Saxo, — cum episcopo Placentino et fratri Stephano, priori
provinciali fratrum Praedicatorum in Lombardia, ipse papa mandavisset quatenus, ad monasterium Sancti
Stephani de Cornu, Laudensis dioecesis, in spiritualibus et temporalibus collapsum, personaliter accedentes
ac ibidem visitationis officium impendentes, ipsum de monachis Cisterciensis ordinis reformarent [...].”; Reg.
nº 1288 [04 de maio de 1233], p. 722: “Episcopo Parmensi et fratri Stephano, priori provinciali fratrum
Praedicatorum in Lombardia, mandat quatenus abbatissae et monialibus monasterii Sancti Syri de
Fontanellis, Cisterciensis ordinis, Parmensis dioccesis, cum ipsarum pax multipliciter impediretur, et ejusdem
monasterii officinae ruinam, propter priorum Nigri ordinis monialium negligentiam, comminarentur,
licentiam concedant monasterium in locum qui earum religioni congruat, transferendi”.
268
A atuação política e religiosa de frade Estevão no âmbito da Ordem dos Pregadores e como representante
papal é também explorada nos capítulo IV desta tese, primeiro abordando as relações de poder na hierarquia
da instituição dominicana e depois o seu envolvimento nas iniciativas que integraram uma causa de
canonização para Domingos de Gusmão. Cf., infra, p. 184 et seq.
118
269
PAOLINI, Lorenzo. Gli Ordini Mendicanti e l'Inquisizione. Il comportamento degli eretici e il giudizio sui
frati. Mélanges de l'Ecole française de Rome. Moyen-Age, Roma, tome 89, n. 2, p. 695-709, 1977. p. 696
et seq.
119
270
MIATELLO, op. cit., p. 125.
271
MERLO, op. cit., p. 105.
272
PAOLINI, Gli Ordini... op. cit., p. 698-699.
273
MERLO, op. cit., p. 107.
274
MACCONI, op. cit., p. 44.
120
pensamento foi reafirmada no encontro entre o papa Lucio III e o imperador Frederico I,
ocorrido na cidade de Verona em 1184, levando à publicação da decretal pontifícia Ad
abolendam, que apresentava uma lista de hereges e lançava a excomunhão sobre todos os
governantes locais que não se empenhassem na repressão às heresias. Outra iniciativa
fundamental veio com a decretal Vergentis in senium (1199) do papa Inocêncio III, o que
permitiu enquadrar definitivamente os hereges nos âmbitos disciplinar e político, uma vez
que equiparava a heresia ao crimen lesae maiestatis, criando uma base legal para a ação do
poder temporal.275
A linha de pensamento persecutória e punitiva no combate às heresias, inaugurada
com as atividades legislativas conciliares e pontifícias no final do século XII, foi
prolongada no século seguinte e serviu de base para as ações imperiais. As leis elaboradas
e publicadas no governo de Frederico II, ao longo das décadas de 1220 e 1230, acabaram
refletindo e se apropriando de elementos que apareciam anteriormente na estrutura jurídica
eclesiástica. A Constitutio in basilica Beati Petri (1220) é um exemplo claro, pois além de
elencar nomes de heresias certamente tirados dos cânones eclesiásticos, também agregou o
tratamento dispensado aos hereges pelo papado, transformando a heresia em crime comum,
portanto passível de punição pelos governantes.276 O que se viu naquele período foi um
avançar da autoridade imperial no terreno do combate às heresias, ora se apropriando da
linha de pensamento e dos elementos retirados dos documentos eclesiásticos, ora
exercitando um aumento da prerrogativa do imperador nas ações antiheréticas.
Principalmente na década de 1230, houve uma verdadeira concorrência entre o
papado e o império, que elaboraram leis paralelas e desenvolveram ações práticas de
combate às heresias. Frederico II, por exemplo, usou a sua autoridade no Reino da Sicilia
para criar uma base jurídica e exercitar seu poder no enfrentamento aos hereges. O que foi
feito com a promulgação do Liber Augustalis em 1231, permitindo ao imperador restringir
as intervenções do papado ao reservar ao soberano o direito de nomear os oficiais para
conduzir a inquisitio em território siciliano, o que causou algum escândalo em Roma. O
laboratório siciliano levou o imperador a tentar ampliar suas bases de poder, estendo a
275
BENEDETTI, op. cit., p. 297-298.
276
PAOLINI, Lorenzo. Papato, inquisizione, frati. In: CONVEGNO INTERNAZIONALE “IL PAPATO
DUECENTESCO E GLI ORDINI MENDICANTI”, 25, 1998, Assisi. Atti... Spoleto: Centro italiano di studi
sull’Alto Medioevo, 1998, p. 179-204. p. 180-181; BENEDETTI, op. cit., p. 313; PAOLINI, Gli Ordini... op.
cit., p. 701.
121
277
MACCONI, op. cit., p. 45-46; BENEDETTI, op. cit., p. 320.
278
MERLO, op. cit., p. 118 e 119.
279
BENEDETTI, op. cit., 320.
122
280
MIATELLO, op. cit., p. 129.
281
PAOLINI, Gli Ordini... op. cit., p. 704.
123
para os seus projetos e despertassem o interesse (ou no mínimo o temor) dos dirigentes
comunais. Desta forma, os frades menores e pregadores conseguiram atuar para inserir nos
estatutos comunais disposições mais rigorosas contra os hereges e que obrigavam os
representantes do poder civil a reprimirem os grupos considerados heterodoxos. Tal
estratégia de combate às heresias começou a ser praticada pelos mendicantes ainda em
1221, no ano seguinte a promulgação da constituição imperial de Frederico II e que
transformava a heresia em um delito comum.282
Em um período inicial, de mais de dez anos de atuação, os religiosos mendicantes
parecem ter exercitado uma equidistância perante os conflitos de autoridade envolvendo
papado e império. Na verdade, chegaram a desempenhar missões inquisitoriais que
contavam com o apoio do papa e do imperador ao mesmo tempo, em uma conjunção de
forças para enfrentar as heresias em territórios imperiais. Isso ocorreu, por exemplo, em
1231, quando frades dominicanos de Ratisbona (na Germânia) receberam uma bula do
papa Gregório IX (intitulada Ille humanis generis) que conferia a eles competência
disciplinar (inclusive o poder de excomunhão) para atuar na inquisitio a ser realizada em
território germânico. Poucos meses depois, Frederico II ratificou aquele mandato papal aos
dominicanos, declarando a proteção imperial para os frades destinados para aquela tarefa
inquisitorial.283
Mas, por algum motivo, aquela reunião de forças no combate às heresias, que tinha
produzido missões e ações conjuntas na Itália e na Germânia, começou a se desfazer e a se
tornar uma concorrência aberta pelo monopólio da inquisição e pela ampliação das
interferências nas cidades. Tudo indica que a atuação dos frades mendicantes no
movimento da magna devotio (de 1233) se tornou mais um ponto de discórdia entre o
papado e o império. Pois deste ano em diante o que se verificou foi a intensificação das
rivalidades e dos confrontos de autoridade entre o papa Gregório IX e o imperador
Frederico II, inclusive no tocante à atuação dos frades mendicantes nos territórios italianos.
O movimento da “grande devoção” tornou possível uma composição política, até
então difícil, entre as comunas e o papado, tendo as ordens mendicantes como a “ponte”
que uniu os dois lados. Ao atuar para inserir disposições específicas nos estatutos
comunais, os frades mendicantes cumpriram um programa político-religioso idealizado em
282
VAUCHEZ, Une campagne... op. cit., p. 523.
283
PAOLINI, Papato, inquisizione... op. cit., p. 185 et seq.
124
Roma e que ampliou as forças do papado na luta contra as heresias e na defesa da libertas
ecclesiae. Ao tolerar e, em alguns casos, apoiar as ações dos religiosos franciscanos e
dominicanos, os dirigentes comunais encontraram um meio de se adequar ao programa
pontifício sem contribuir para o fortalecimento das autoridades episcopais locais, com
quem disputavam jurisdições e prerrogativas de poder nos espaços citadinos e nos
condados. Por fim, os próprios mendicantes se beneficiaram deste quadro, pois
legitimaram sua atuação pastoral e sacramental nas cidades, com o apoio do papado e dos
dirigentes comunais.284
Então, o que se deu no âmbito daquele movimento foi uma convergência de
projetos que concorreu para o estabelecimento de um consenso, ao mesmo tempo, religioso
(com base na perseguição aos hereges e no monopólio da ortodoxia romana) e político
(entre o papado e as comunas centro-setentrionais, em detrimento das pretensões políticas
imperiais e das prerrogativas religiosas episcopais).
Por outro lado, as ações mendicantes naquele movimento e os seus desdobramentos
para o ordenamento das comunas, interferindo diretamente nos conflitos políticos locais e
nas lutas de poder, levaram a um afastamento e a uma crise nas relações daquelas ordens
religiosas com o imperador.285 Pois ficou claro que os frades franciscanos e dominicanos
agiam para a implantação de um programa pontifício nas comunas italianas que não era
apenas religioso. As atuações do dominicano João de Vicenza e do franciscano Leone da
Perego, por exemplo, despertaram contrariedade em Frederico II, que escreveu ao papa
Gregório IX apontando os efeitos políticos danosos ao império e seus aliados decorrentes
da interferência daqueles dois frades mendicantes nas comunas.286
Já para os religiosos mendicantes o envolvimento no movimento devocional de
1233, teve resultados amplamente favoráveis à consolidação institucional e material das
ordens religiosas fundadas por Francisco e Domingos. Em primeiro lugar, a atuação como
pregadores e pacificadores nas cidades da Itália centro-setentrional, permitiu aos frades
ampliar suas bases de apoio populares e entre os dirigentes comunais, tendo como um de
seus resultados a construção de igrejas e conventos com a ajuda dos devotos e o apoio
financeiro das comunas. Uma vez passado aquele momento mais agudo de fervor popular,
284
VAUCHEZ, Une campagne... op. cit., p. 524-525; PAOLINI, Papato, inquisizione... op. cit., p. 190-191.
285
MERLO, op. cit., p. 116-117.
286
VAUCHEZ, Une campagne... op. cit., p. 519, 539, 542 e 543.
125
os frades continuaram a exercer influência nas decisões comunais por meio das confrarias,
congregações e associações que foram formadas na esteira daquele movimento, e que
passaram a ser controladas pelos mendicantes. Tais instituições leigas, como a Sociedade
da Virgem (em Bolonha) e o Consorcium Sancte Mariae Populi (em Parma), reuniam
pessoas que se colocavam a serviço das causas cristãs, sendo orientadas espiritualmente
pelos franciscanos e dominicanos. Direcionados para atuar em defesa da fé, da libertas
ecclesiae e na luta contra os hereges, seus integrantes apoiavam politicamente os
partidários do papado e interferiam nas decisões tomadas nos conselhos comunais.287
Outro exemplo específico de associação leiga cristã a serviço da luta contra as
heresias, tendo como nexo a defesa da fé romana e da libertas ecclesiae, pode ser visto na
formação da Militia Iesu Christi de Parma. Neste caso uma milícia leiga surgida no
contexto do movimento do Alleluia (em 1233) e em decorrência da atuação do frade
dominicano Bartolomeu de Vicenza. Mais uma vez um frade mendicante contribuía para
formar uma instituição leiga a serviço do programa pontifício que estava em execução nas
cidades italianas. Os integrantes daquela militia colocavam-se à disposição para empunhar
armas toda vez que a ortodoxia romana estivesse ameaçada e que fossem convocados pelo
papa, pelo bispo ou pelo seu magister. Nos anos seguintes, em 1234 e 1235, o papado se
dedicou a regular a atuação da Militia Iesu Christi, emitindo bulas específicas para isso,
aprovando um estatuto feito por seus membros e confiando a Jordão da Saxônia (mestre
geral dos dominicanos) a tarefa de formação religiosa daqueles milites.288 Tudo indica que
Gregório IX não pretendia mais contar com o apoio de Frederico II e de suas tropas
imperiais na luta contra os hereges, por isso a formação de uma milícia cristã (ou de várias,
em diferentes cidades) era fundamental para o desenvolvimento do projeto pontifício.
287
PAOLINI, Papato, inquisizione... op. cit., p. 706 e 707; VAUCHEZ, Une campagne... op. cit., p. 548 e
549.
288
MERLO, op. cit., p. 37 et seq.
126
289
AUVRAY, Reg. nº 1393, p. 782: “Fridericum, Romunorum imperatorem, rogat et obsecrat ut universis et
singulis principibus et aliis fidelibus suis per Alamaniam constitutis ferventer scribat et praecipiat ut tam
nefandam haereticam pravitatem de massa conspersionis dominicae expurgent”.
290
AUVRAY, Reg. nº 1463, p. 814: “Fridericus, Romanorum imperator, Gregorio IX papae scribit se
haereticos regni sui manifeste convictos incendio tradisse, et cuilibet justitiario mandasse ut eum uno praelato
de statu regionum inquirat; rogat papam quatenus suum contra ceteros haereticos Italiae et Imperii
propositum efficaciter adjuvet”.
127
291
AUVRAY, Reg. nº 1464, p. 815: “Fridericum, Romanorum imperatorem, rogat ut, sub praetextu
haereticorum, fideles qui forte ipsum offenderint, non perdat. id quod jam non sine multorum scandalo
acciderit”.
292
AUVRAY, Reg. nº 1534, p. 846-847: “Jordanum, magistrum generalem ordinis Praedicatorum, rogat et
obsecrat ut fratres sui ordinis ad proponendum ex animo in Theutonia aliisque provinciis verbum crucis
contra Prutenorum perfidiam litteris et praeceptis inducat”.
128
293
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 158: “[...] sicut patet per effectum in civitatibus Lombardie,
in quibus maxima multitudo hereticorum est combusta, et plusquam centum millia hominum, qui nesciebant
ultrum ecclesie Romane na hereticis deberent adherere, ad catholicam fidem Romane ecclesie per
predicationes fratrum predicatorum ex corde sunt conversi. Et hoc scit quia illi conversi hereticos, quos
primo defendebant modo persecuuntur et abhominantur”.
294
Cf., infra, p. 116-117 [Nota 266].
295
Fons sapientie, op. cit., p. 192-193: “[...] Quo sagittante delicias carnium et fulgurante mentes lapideas
impiorum omnis hereticorum secta contremuit, omnis ecclesia fidelium exultavit”.
129
vitorioso no combate às heresias, como um santo que honrava a Igreja romana e que servia
de exemplo de perfeição aos demais fiéis cristãos.
Frade Juan, um dos companheiros mais antigos de Domingos a testemunhar no
inquérito de Bolonha, também registrou a sua atuação contra as heresias e as disputas em
que ele se envolvia para derrotar os hereges e, se possível, convertê-los à fé da Igreja
romana, quando eles ainda viviam na Hispânia.296 Este testemunho registrado no processo
de canonização certamente era importante para o papado e seus projetos, pois ajudava a
comprovar que aquela vinculação da imagem de Domingos com o combate às heresias não
seria uma invenção pontifícia, mas somente o reflexo de sua vida religiosa, antes e depois
de se estabelecer na Itália com seus frades pregadores.
Mas o fato é que esta articulação de uma santidade antiherética projetava seus
efeitos naquela realidade de 1234 e dos anos seguintes, em que os frades dominicanos
continuaram sendo utilizados pelo papado para a tarefa do combate às heresias, conferindo
legitimidade para aquela Ordem mendicante ao mesmo tempo em que vinculava a sua
atuação aos projetos de poder da Igreja romana para a Península Itálica.
296
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 145: “[...] Item dixit, quod omnibus divitibus, pauperibus,
iudeis et gentilibus, quorum multi sunt in Yspania, se prebebat amabilem, et, ut vidit, ab omnibus amabatur,
exceptis hereticis et inimicis Ecclesie, quos in disputationibus et predicationibus suis insequebatur et
convincebat”.
130
CAPÍTULO III
A cidade de Bolonha nas primeiras décadas do século XIII era um dos locais para
os quais convergiam as atenções do papado e do império naquele contexto histórico.
Situada estrategicamente em uma zona de contato entre as regiões central e norte da
Península Itálica, esta cidade conheceu um longo período de crescimento e de consolidação
de suas instituições, em um processo que se iniciou ainda no século XII.
Ao longo deste capítulo serão abordadas as instituições locais bolonhesas que se
envolveram na causa de canonização de Domingos, bem como as iniciativas e as decisões
tomadas como parte daquele projeto coletivo de santidade, primeiramente a partir de uma
síntese com base na historiografia, e depois por meio da análise de uma parte do corpus
documental selecionado na pesquisa de doutorado.
A Comuna de Bolonha surgiu no século XII e se afirmou no seguinte como a
instituição política que assumiria o comando daquela cidade. O que não foi realizado de
forma pacífica, mas por meio de uma série de confrontos com os representantes do império
e do episcopado local, e de ações (políticas, jurídicas e militares) que visavam ampliar e
consolidar os direitos exclusivos daquela entidade coletiva.
A Igreja bolonhesa foi seriamente atingida por este processo de afirmação do poder
comunal. Territórios, jurisdições, bens e privilégios, que foram secularmente transferidos
para a diocese de Bolonha, passaram a ser contestados naquelas décadas iniciais do século
XIII, a partir de ações dos dirigentes comunais. Não bastasse isso, o titular daquela diocese
ainda teve que conviver com as seguidas interferências do papado, que, de ato em ato,
contribuiu para esvaziar a autoridade do bispo Enrico della Fratta.
Já a universitas scolarium Bononie também foi uma das instituições atingidas pelos
eventos e pelos confrontos políticos deste período. Mas não se pode dizer que teria saído
enfraquecida deste processo. Ao contrário, a universidade de Bolonha encontrou apoios
que lhe permitiram consolidar ainda mais a sua fama como centro de formação intelectual
131
e ampliar a atração que ela exercia sobre mestres e estudantes que para lá se direcionavam,
vindos de diferentes regiões da Europa.
Esta capacidade de atração foi justamente um dos principais fatores que levaram os
dominicanos a se estabelecerem naquela cidade da Emilia-Romagna. Nela encontraram um
“terreno fértil” para a sua atividade de pregação evangélica e formaram uma comunidade
dominicana na área central de Bolonha, em estreito contato com a universidade e com as
demais instituições citadinas. Em pouco tempo o convento de San Nicolò delle Vigne se
tornou uma das principais sedes da Ordem dos Pregadores, reunindo os seus dirigentes e
conselheiros de dois em dois anos nos capítulos gerais que lá foram realizados.
Todas estas instituições, de alguma forma, estiveram envolvidas na canonização de
Domingos de Gusmão. O que torna a cidade de Bolonha, nas primeiras décadas do século
XIII, uma realidade fundamental para se compreender as relações de poder e as
mobilizações que desenvolveram as iniciativas favoráveis àquele empreendimento coletivo
de santidade, alavancando e sustentando um processo de canonização junto ao papado.
297
PINI, Antonio Ivan. Città, comuni e corporazioni nel medioevo italiano. Bolonha: CLUEB, 1986. p.
244.
132
298
FASOLI, Gina. Bolonha nell’età medievale (1115-1506). In: FERRI, Antonio; ROVERSI, Giancarlo.
Storia di Bolonha. Bolonha: Edizioni ALFA, 1978. p. 152.
299
DONDARINI, Rolando. Breve storia di Bolonha. Pisa: Pacini, 2007. p. 68-69.
300
GRECI, Roberto. Bolonha nel Duecento. In: CAPITANI, Ovidio. Bolonha nel medioevo. Bolonha:
Bononia University Press, 2007. p. 544; FASOLI, op. cit., p. 153.
301
PINI, Città, comuni... op. cit., p. 252.
302
DONDARINI, Breve storia... op. cit., p. 67.
133
303
PINI, Città, comuni... op. cit., p. 247 et seq.
304
FASOLI, op. cit., p. 151 et seq.
134
305
GRECI, op. cit., p. 502-503 e 542.
306
MILANI, Giuliano. L’esclusione dal comune. Confliti e bandi politici a Bolonha e in altre città italiane
tra XII e XIV secolo. Roma: Istituto Storico Italiano per il Medioevo, 2003. p. 97.
307
Ibid., p. 99.
135
308
MILANI, Giuliano. Prime note su disciplina e pratica del bando a Bolonha attorno alla metà del XIII
secolo. Mélanges de l'Ecole française de Rome. Moyen-Age, Roma, tome 109, n°2, p. 501-523, 1997. p.
504 et seq.
136
imperial e papal, que não eram compatíveis com aqueles avanços bolonheses.309
Do início do século XIII até 1219, a Comuna de Bolonha esteve envolvida em uma
série de conflitos territoriais com o papado e seus aliados. Como na questão da posse das
cidades de Medicina e Argelato (na região da Emília), cedidas como feudo do papa ao
senhor Salinguerra, e que foram ocupadas e contestadas por Bolonha, levando Honório III
a lançar excomunhão sobre a cidade. A mesma dinâmica se repetiu no caso de Sambuca e
outros territórios vizinhos disputados com a cidade de Pistoia. Ambas as situações só
foram resolvidas com a atuação do cardeal diácono Hugolino de Ostia (futuro papa
Gregório IX), que atuava como legado papal para a Lombardia e que intermediou acordos
para retirar a excomunhão lançada pelo papa e encerrar os conflitos entre as cidades
envolvidas.310
Nos primeiros anos de 1220, os movimentos externos de Bolonha continuavam a
avançar na direção da Romagna, em busca de uma hegemonia política nesta região que era
fundamental para garantir as pretensões mercantis de alguns grupos devidamente
representados naquela comuna. Neste período, os avanços bolonheses se chocaram
diretamente com os projetos imperiais naquela região, pois não interessava a Frederico II
permitir que Bolonha se tornasse um ponto de referência e contato para todas as comunas
que lhe faziam oposição nas regiões da Romagna, da Emília e da Lombardia, por isso
tratava de apoiar as cidades que poderiam representar algum obstáculo àquela expansão.
Daí os sucessivos problemas da comuna bolonhesa com o condado de Imola, e os
movimentos políticos do imperador para aproximar as cidades de Reggio e Modena da
zona de influência exercida por Cremona, que era o principal bastião da política imperial
naquelas regiões.311
Em meio a estes conflitos, o cardeal diácono Hugolino de Ostia continuava
atuando, ora como legado papal, ora como plenipotenciário imperial, intermediando
acordos que permitissem equilibrar os interesses do papado e do império com aqueles
manifestados pelas comunas, em especial os de Bolonha, de cujos mercadores ele esperava
contribuições substanciais para a manutenção das atividades da Igreja romana na Terra
Santa. Como se verá oportunamente, esta mesma posição continuou a ser exercida por ele
309
HESSEL, Alfred. Storia della città di Bolonha. Bolonha: Edizioni ALFA, 1975. p. 87; FASOLI, op. cit.,
p. 155.
310
HESSEL, op. cit., p. 86, 92 et seq.
311
GRECI, op. cit., p. 542; HESSEL, op. cit., p. 103.
137
quando foi eleito pontífice romano em 1227, assumindo o nome de Gregório IX. Pois o
crescimento das comunas na Itália centro-setentrional e a consequente expansão de seus
territórios se mostrou uma dinâmica permanente também nos anos de 1230, desencadeando
sucessivos conflitos entre as cidades, e atingindo a hegemonia exercida pelos poderes
imperial e papal na península italiana.
Em 1230 e 1231, as cidades favoráveis ao império pareciam estar ganhando força e
revertendo as conquistas e os avanços da Societas Lombardiae (da qual Bolonha era parte),
que tinha renovado sua aliança intercitadina (desde 1226) contra as pretensões imperiais na
Itália centro-setentrional. Principalmente porque o imperador Frederico II tinha se
reconciliado com o papa Gregório IX, situação que perdurou por alguns anos e permitiu
alianças entre o papado e o império para enfrentar o desafio político ocasionado com o
crescimento das comunas. De uma parte as cidades de Ravenna, Forli e Rimini firmaram
aliança para defender seus interesses e as pretensões imperiais, se posicionando com outras
cidades aliadas ao imperador (Cremona, Parma, Pavia, Reggio e Modena). De outra parte,
os projetos expansionistas de Bolonha podiam contar principalmente com o apoio de Milão
e de Faenza, mas também de Brescia e Como.312
Nos dois anos seguintes, 1233 e 1234, o papa Gregório IX atuou intensamente, de
forma pessoal e por intermédio de seus representantes, para celebrar um acordo que
encerrasse os confrontos entre a Societas Lombardiae e o imperador Frederico II. Mas seus
planos foram frustrados pela dinâmica de rivalidade entre as cidades e pela forte resistência
oposta ao poder político do imperador naquelas regiões. Nem mesmo o acordo imposto
pelo papa, ao propor um armistício de cinco anos, conseguiu promover um período de
tréguas naqueles confrontos, pois em pouco tempo foi desrespeitado pelas comunas. A
própria cidade de Bolonha contribuiu para isso ao acertar uma ação conjunta com Milão
contra as cidades aliadas do imperador, em um momento em que Frederico II estava mais
ocupado com a rebelião de seu próprio filho Enrico, rei da Germânia.
312
VASINA, Augusto. Bolonha e la IIª lega lombarda. In: DEPUTAZIONE DI STORIA PATRIA PER LE
PROVINCE DI ROMAGNA. Federico II e Bolonha. Bolonha, 1996 (Documenti e Studi, vol. XXVII). p.
183-201. p. 197 e 198; GRECI, op. cit., p. 565.
138
313
AUVRAY, Reg. nº 1356, p. 761: “Friderico, Romanorum imperatori, mittit arbitrium suum de discordia
inter ipsum et Societatem Lombardiae, Marchiae et Romaniolae orta, eique notum facit se sic duxisse
ordinandum, ut imperator Societati omnem rancorem et injurias remittat eamque in gratiae suae plenitudinem
recipiat, Societas autem det pro subsidio Terrae Sanctae per biennium quingentos milites in expensis propriis,
ituros in termino quem Ecclesia Romana praefigerit”.
314
AUVRAY, Reg. nº 1357, p. 761.
315
AUVRAY, Reg. nº 1495, p. 826: “Fridericus, Romanorum imperator, Gregorio IX papae nuntiat se ejus
epistolam, in qua arbitrium de causa inter ipsum et Lombardos prolatum continebatur, recepisse, sed se
[Hermanni], magistri Theutonicorum, reditum praestolaturum esse, antequam litteras patentes mittat, quas
Sedes Apostolica usque ad festum beati Michaelis, juxta tenorem sibi transmissum, dirigi postulaverat”.
139
decisão foi tomada com base na justiça e na razão, com único objetivo de restaurar a ordem
anterior e proteger os direitos de cada parte envolvida.316 Tudo indica que o imperador não
tinha cumprido a sua parcela do acordo e que não concordou com a arbitragem inicial feita
por Gregório IX.
Esta sequencia de epístolas trocadas entre o papa e o imperador permitem concluir
que neste período existiam relações institucionais regulares entre aquelas duas autoridades.
Aparentemente não existia um clima de hostilidade entre Gregório IX e Frederico II, que
se tratam com a devida reverência. Além disso, vale destacar que a função desempenhada
pelo papado naquele conflito entre o império e as Sociedades da Lombardia, da Marca e da
Romagna era correspondente a de um juiz mediador/conciliador, alçando o papa a uma
posição superior que pairava acima das partes envolvidas e procurava celebrar um acordo
que permitisse reordenar aquelas relações.
Nem por isso, o pontífice romano deixou de ter a sua decisão questionada pelo
imperador, que claramente esperava uma arbitragem que lhe fosse mais favorável. Não foi
identificado nenhum registro que apontasse a resposta daquelas Societatis envolvidas no
conflito, mas tudo indica que não houve uma solução final naquele período, pois o
imperador voltou a escrever ao papa em 1234, pautando a mesma questão.
Em abril de 1234, Frederico II escreve a Gregório IX afirmando ter esgotado todos
os seus meios para o negotium da Lombardia e identificando o bispo de Sabina e o cardeal
diácono de Sancti Georgii como seus conselheiros neste assunto. Foi adotada uma medida:
a retenção de regalias por conta de excessos cometidos no passado, provavelmente fazendo
menção aos direitos exercidos pelas comunas e que por tradição estavam vinculados ao
regnum ou ao imperium. Claramente o imperador solicita uma interferência do pontífice
neste negócio, declarando confiar na provisão da Igreja romana.317
Em 04 de maio de 1234, Gregório IX escreve aos reitores da Societatis Lombardiae
anunciando que o imperador tinha confiado ao papa a ordenação daquele negócio existente
entre eles e perguntando se eles não teriam a mesma vontade. Além disso, rogou a eles que
316
AUVRAY, Reg. nº 1497, p. 827: “Friderici, Romanorum imperatoris, qui per litteras cardinalibus scriptas
nibil sibi de injuriis a Lombardis illatis satisfactionis praestitum fuisse conquestus erat, querelam rejicit,
eique exponit quomodo in hac provisione secundum justitiam et rationem egerit, addens negotium in statum
pristinum posse reduci, jure utriusque partis integro remanente”.
317
AUVRAY, Reg. nº 1889, p. 1029: “Fridericus, Romanorum imperator, universis significat se, ad
consilium Johannis, Sabinensis episcopi, et Petri de Capua, Sancti Georgii ad Velum Aureum diaconi
cardinalis, negotium illorum de Lombardia, Marchia Tervisina et Romaniola, tam super detentione regalium
quam de praeteritis excessibus, provisioni Summi Pontificis et Ecclesiae Romanae commisisse”.
140
não turbassem o imperador e os seus aliados, em uma tentativa clara do pontífice de evitar
que as rivalidades se acirrassem ainda mais.318
Em 21 de maio do mesmo ano, o papa volta a escrever aos reitores da Societatis
Lombardiae, insistindo para que aquele negócio entre eles e o imperador tivesse a sua
ordenação confiada à Igreja romana. O pontífice informou ainda que uma tropa de milites
oriunda da Teotônia estaria se deslocando para encontrar o imperador em missão de paz,
por isso pediu aos reitores lombardos que permitissem o seu livre trânsito, identificando
que junto com eles estaria o capelão papal.319
As correspondências trocadas entre o imperador, o papa e os representantes da
Societatis Lombardiae permitem concluir que aquela primeira tentativa de arbitragem em
1233 não avançou para encerrar o confronto existente entre as partes em litígio. Conforme
apontado anteriormente, as rivalidades entre as comunas e delas com a autoridade imperial
na Itália não cessaram naqueles anos de 1230. Desta vez o próprio imperador escreveu ao
pontífice Gregório IX solicitando a sua intervenção naquele negotium, o que foi feito pelo
papa, ao procurar um diálogo com os reitores da Lombardia e ao insistir que eles, tal como
o imperador tinha feito, confiassem a ordenação daquela causa à Igreja romana.
Tudo indica que naqueles anos (1233 e 1234), fundamentais para se compreender
os eventos e as forças atuantes na canonização de Domingos de Gusmão, os principais
conflitos regionais não eram resultado de um enfrentamento direto entre o papado e o
império, ambos em busca de ampliar sua hegemonia na Península Itálica, tal como foi
verificado nas décadas e no século anterior. Parece que tais autoridades tinham chegado a
uma trégua em suas relações de oposição a partir de 1230 e que, desde então, procuravam
se auxiliar em questões maiores envolvendo a realidade italiana.
Os confrontos mais relevantes para o macro cenário político estavam ocorrendo
entre as comunas da região centro-setentrional da Itália, que se organizavam em Societatis
para defenderem interesses em comum e lutar contra seus adversários. Nesta configuração,
a cidade de Bolonha era integrante da Societatis Lombardiae (desde 1226) e, portanto,
318
AUVRAY, Reg. nº 1901, p. 1039: “Rectoribus Societatis Lombardiae nuntiat imperatorem totum
negotium quod inter ipsum et homines Lombardiae, Marchiae et Romaniolae vertebatur, ordinationi
Ecclesiae commisisse: eis mandat quatenus, si idem velint, hoc sibi intiment, eos rogans et hortans ut ipsum
imperatorem et suos non turbent”.
319
AUVRAY, Reg. nº 1901, p. 1039: “Rectores Societatis Lombardiae rogat quatenus, cum Fridericus,
Romanorum imperator, totum negotium quod cum eis habeat, ordinationi Ecclesiae commiserit, milites qui
de Theutonia ad eumdem imperatorem pacifice accedant, libere transire permittant; ad eos J., capellanum
suum, archidiaconum Norwicensem, destinat”.
141
fazia parte de uma aliança intercitadina que se opunha tenazmente à autoridade imperial,
aos seus projetos e aos seus aliados (representantes diretos do poder imperial e um grupo
de cidades lideradas por Cremona).
O papa Gregório IX tinha uma longa experiência na mediação daqueles conflitos
regionais e na celebração de acordos entre as partes, que permitissem cessar as hostilidades
e os confrontos diretos. Desde 1219, como já ressaltado, vinha atuando nestas causas como
legado da Sede Apostólica para a Lombardia e, também por um curto período, como
plenipotenciário imperial, antes da coroação de Frederico II (em 1220). Quando Hugolino
de Ostia foi eleito ao sólio pontifício em 1227, continuou a desempenhar esta mesma
função, certamente com maior autoridade.
O papado procurava equilibrar os interesses das partes em conflito, de acordo com
os valores e a doutrina defendida pela Igreja romana, mas também levando em
consideração os projetos em desenvolvimento e que muitas vezes dependiam do auxílio
e/ou do subsídio daqueles mesmos grupos em confronto. Naquela causa envolvendo o
imperador Frederico II e a Societatis Lombardiae isso fica muito claro, pois o papa
frequentemente recorria a ambas as partes envolvidas naquele confronto para manter as
atividades missionárias e cruzadistas na Terra Santa, tal como ficou registrado naquela
epístola que ele escreveu ao imperador em 05 de junho de 1233.320
Em relação a Bolonha, observa-se a mesma dinâmica de ação mediadora e a mesma
preocupação em relação aos projetos em desenvolvimento. É o que se pode notar em uma
epístola que Gregório IX enviou ao dominicano João de Vicenza em 25 de agosto de 1233.
Nela o papa orientou o frade a conceder o benefício da absolvição a Milão e aos milites
bolonheses, provavelmente por eles terem quebrado aquele primeiro acordo celebrado
entre as comunas e o imperador por meio da arbitragem pontifícia realizada no mesmo ano
(e que estabelecia um armistício entre as partes envolvidas). Na mesma epístola, ele
orientou o frade João a atuar para recolher subsídios em favor das atividades na Terra
Santa, tal como tinha sido determinado em sua passagem pela Sede Apostólica.321
Este é mais um documento papal que registra a mesma relação entre o conflito
320
Cf., infra, p. 138 [Nota 313].
321
AUVRAY, Reg. nº 1504, p. 830: “Fratri Johanni de Vicentia, ordinis Praedicatorum, committit ut
Milantio, militi Bononiensi, beneficium absolutionis impendat, injuncto eidem Milantio quod, civibus
Viterbiensibus super quibus in eis tenebatur, satisfacto, in primo generali passagio per Sedem Apostolicam
praefigendo, iter arripiat eundi in subsidium Terrae Sanctae, per biennium vel triennium moraturus ibidem”.
142
322
WALZ, Angelus. Acta Canonizationis S. Dominici. In: Monumenta Ordinis Fratrum Praedicatorum
Historica, tomus XVI. Romae: Institutum Historicum FF. Praedicatorum, 1935, pp. 89-194. p. 169: “Nuper
venerabilis pater Henricus, Bononiensis episcopus, et totus clerus civitatis Bononie, potestas, et commune
civitatis eiusdem, et universitas scolarium Bononie commorantium, per suas litteras, et sollempnes nuntios
clericos et laicos a domino papa et tota Romana curia cum multa devotione, et magna instantia postulaverunt,
quod corpus fratris Dominici, ordinis fratrum predicatorum plantatoris et primi magistri, deberet canonizare
et approbare atque ipsum fratrem Dominicum sanctorum aggregare cathalogo”. Deste ponto em diante a
referência ao processo de canonização de Domingos na edição de Angelus Walz será feita apenas como Acta
Canonizationis S. Dominici, seguida da identificação da página e da transcrição correspondente (entre aspas),
quando for o caso.
143
maio de 1233. Ventura de Verona, prior do convento de San Nicolò, afirmou que antes da
trasladação alguns cidadãos bolonheses, por mandato do podestà, custodiaram por muitos
dias a arca na qual estavam os ossos do fundador dominicano.323 Neste mesmo sentido,
Guillermo de Monteferrato relatou que os frades daquela comunidade não queriam abrir o
sepulcro de Domingos na presença de “estranhos”, mas não puderam realizar este ato sem
a presença do podestà e dos cidadãos que o acompanhavam.324 Por fim, o frade Bonviso
atestou a presença da mesma autoridade comunal, também acompanhada de outras
pessoas, depois da trasladação, quando o mestre geral Jordão exibiu os ossos de Domingos
aos frades que não estavam presentes naquela primeira solenidade.325
Assim, alguns testemunhos do processo de canonização indicam a presença da
autoridade comunal e de nobres cidadãos bolonheses antes, durante e depois da translatio
corporis de maio de 1233, ou seja, diretamente envolvidos nas iniciativas favoráveis ao
reconhecimento da santidade de Domingos de Gusmão e ao estabelecimento de um culto
oficial naquela cidade para o fundador dos dominicanos. Este dado aponta para uma
participação ativa dos dirigentes citadinos naquele empreendimento de santidade antes
mesmo da abertura formal do processo de canonização em Roma.
Não é o caso de se afirmar que a Comuna de Bolonha teria se envolvido naquela
causa de reconhecimento da santidade de Domingos exclusivamente para agradar ao papa
Gregório IX, que estava bastante interessado na consecução daquele empreendimento.
Certamente existiam interesses locais e ganhos políticos ligados àquelas ações comunais
que permitiram vincular a santidade do fundador dominicano e o seu culto à história da
cidade de Bolonha. Mas tudo indica que naquele ano de 1233 houve uma articulação
política e institucional entre o papado e os dirigentes da cidade de Bolonha, tanto nos
conflitos da Societas Lombardiae e nas atividades da Terra Santa, quanto naquele projeto
em favor da canonização de Domingos de Gusmão. Levando-se em consideração a parte
mais potente desta relação, seria ingenuidade não ver no papado uma força que alavancou
323
Acta Canonizationis S. Dominici, op. pit., p. 131: “Item dixit, quod quando corpus fratris beati Dominici
debebat transferri de loco, in quo erat, ad locum, in quo nunc est, ex mandato potestatis Bononiensis multi
honorati cives custodierunt archam per multos dies, timentes ne subriperetur eis”.
324
Acta Canonizationis S. Dominici, op. pit., p. 136: “[...] et aque multe pluviales defluxerant ad locum
sepulture et propter hoc nolebant quod extranei et layci interessent, quando apperiretur sepultura, sed non
potuerunt facere, quin potestas cum viginti quatuor nobilibus et honoratis civibus Bononiensibus interessent
in appertione dicte sepulture”.
325
Acta Canonizationis S. Dominici, op. pit., p. 141: “Et ipse testis fuit tum presens, quando dicta ossa
ostensa fuerunt presente potestate Bononiensi, et aliis quibusdam civibus”.
144
326
PAOLINI, Lorenzo. La Chiesa e la città (secoli XI-XIII). In: CAPITANI, Ovidio. Bolonha nel medioevo.
Bolonha: Bononia University Press, 2007. p. 653-759. p. 654.
327
PINI, Antonio Ivan. Città, Chiesa e culti civici in Bolonha medievale. Bolonha: CLUEB, 1999. p. 162-
163.
328
VASINA, Augusto. La Chiesa ravennate nei suoi rapporti con lo Studio bolognese dal XII al XIV secolo.
145
In: CONVEGNO DI STUDI ATENEO E CHIESA DI BOLONHA, 1989, Bolonha. Atti... Bolonha: Alma
Mater Studiorum, 1992. p. 89-104. p. 100.
329
PINI, Città, Chiesa... op. cit., p. 186; PAOLINI, La Chiesa... op. cit., p. 705.
146
sobre o escolhido.330
Naquela ocasião, o papa Honório III tinha repreendido duramente o bispo Enrico
della Fratta por estar depreciando a função do arcediago da catedral. Ao impor um nome da
sua confiança, o pontífice acabou transferindo para o arcediago de Bolonha prerrogativas e
poderes que tradicionalmente concerniam ao episcopado. Esta situação permaneceu
inalterada quando o magister Grazia foi substituído pelo magister Tancredo (em 1226),
também escolhido diretamente pelo pontífice romano, mas desta vez tratava-se de um
cônego da catedral bolonhesa, que tinha se formado em direito canônico no Studium local.
Este é o mesmo canonista que foi responsável por compilar as decretais do papa Honório
III, publicadas naquele mesmo ano.331 Portanto, não resta dúvida de que o papa continuava
a nomear como arcediago de Bolonha alguém que era da sua estrita confiança, de forma
que este clérigo não atuava mais apenas como vigário do bispo e também como
representante do papa naquela cidade.
A coroação imperial de Frederico II, em 1220, também acabou interferindo nas
relações entre a comuna e o episcopado de Bolonha. Isto porque o imperador, naquela
ocasião, emitiu um diploma em favor do bispo Enrico della Fratta reconhecendo a sua
jurisdição, direitos fiscais e propriedade sobre uma série de territórios disputados pela
diocese e pela comuna. Tudo indica que ao imperador interessava estabelecer boas relações
com o episcopado como uma forma de se contrapor ao crescimento do governo comunal
naquela cidade, por isso interferiu naquele conflito local de Bolonha fortalecendo as
posições do bispo. Alguns meses depois, em janeiro de 1221, o legado imperial Conrado
de Metz ratificou a jurisdição do bispo Enrico della Fratta sobre aqueles territórios. As
relações entre aquelas instituições locais permaneceram tensas e conflituosas nos anos
seguintes, chegando a um período de trégua apenas entre os anos de 1225 e 1229, quando o
decreto de fechamento do Studium de Bolonha promulgado por Frederico II, levou o bispo
a se aproximar das autoridades comunais e inclusive a apoiar a adesão da cidade à Societas
Lombardiae. Estava muito claro que aquela ação do imperador seria prejudicial a toda a
330
PAOLINI, Lorenzo. La figura dell’Arcidiacono nei rapporti fra lo Studio e la Città. In: CONVEGNO
CULTURA UNIVERSITARIA E PUBBLICI POTERI A BOLONHA DAL XII AL XV SECOLO, 2, 1988,
Bolonha. Atti... Bolonha: Comune di Bolonha/Istituto per la Storia di Bolonha, 1990. p. 31-72. p. 50;
HESSEL, op. cit., p. 211-212.
331
DOLCINI, Carlo. Università e Chiesa di Bolonha: dall’identità originaria allo sviluppo di molteplici
relazioni. In: PRODI, Paolo; PAOLINI, Lorenzo. Storia della Chiesa di Bolonha (vol.II). Bergamo:
Edizioni Bolis, 1997. p. 273-284. p. 278; PAOLINI, La Chiesa... op. cit., p. 704 e 718.
147
cidade, visto que a universidade era uma base fundamental para a economia citadina.332
Nos anos seguintes, sobretudo entre 1231 e 1233, as relações entre a comuna e o
episcopado voltaram a ser conflituosas por conta das antigas controvérsias das jurisdições e
do recolhimento fiscal. Em 1231, a Comuna de Bolonha interferiu diretamente nos
territórios diocesanos, nomeando funcionários, submetendo os reitores eclesiásticos a
jurarem obediência, impedindo os laicos de exercerem função em nome do bispo (a partir
de um dispositivo no estatuto comunal), lançando multa sobre qualquer pessoa que
recorresse ao bispo ou ao seu tribunal, além de proibir o recolhimento do dízimo naquelas
terras. Estava muito claro que os dirigentes citadinos estavam atuando para submeter os
territórios episcopais à jurisdição exclusiva da comuna bolonhesa. O bispo Enrico della
Fratta reagiu lançando a excomunhão e o interdito sobre a cidade, em setembro deste
mesmo ano, encaminhando-se logo depois para a cidade de Reggio em um ato de exílio
voluntário.333
Novamente o papado interferiu naquele conflito local envolvendo as instituições de
Bolonha. Em 1231, Gregório IX nomeou o cônego Palmerio de Campagnola como seu
delegado-juiz para atuar naquela causa entre a comuna e o episcopado, orientando-o a agir
para constranger a autoridade comunal a parar com seus avanços sobre os territórios e os
direitos do bispo. A ação não parece ter alcançado o resultado esperado, pois em junho de
1232, o pontífice romano teve que ratificar as sentenças emitidas pelo referido cônego e
pelo bispo contra a cidade, além de ameaçar a transferência do Studium para outra cidade
por um período de quatro meses, deixando algum espaço para um possível indulto caso as
autoridades da comuna revisassem seus atos.334
A situação permaneceu sem solução até o ano seguinte. Em abril de 1233, a
Comuna de Bolonha conferiu ao dominicano João de Vicenza poderes para fazer alterações
nos estatutos comunais e para atuar como árbitro daquela causa com o episcopado (em
comum acordo com o bispo). O referido frade emitiu uma primeira sentença de arbitragem
em 31 de maio daquele ano, que parece ter sido favorável ao bispo Enrico della Fratta e
que não foi aceita pela comuna. Após ter saído da cidade em missão pontifícia e retornado
um junho, João de Vicenza proferiu uma nova sentença arbitral, desta vez favorável à
332
PINI, Città, Chiesa... op. cit., p. 185 et seq.; HESSEL, op. cit., p. 208-209.
333
PAOLINI, La Chiesa... op. cit., p. 707.
334
Ibid., p. 707 e 708.
148
comuna, e não totalmente desagradável ao bispo. Ele dividiu os dez territórios contestados
em dois blocos; na maior parte deles (em seis), manteve apenas a jurisdição civil ao bispo,
passando a jurisdição criminal e fiscal para a comuna bolonhesa; e nos demais manteve
apenas a propriedade e as imunidades episcopais, passando toda a jurisdição para a
comuna.335
Assim se concluiu, em meados de 1233, aquela longa contenda entre as autoridades
comunais e o episcopado de Bolonha, que teve início em 1215, com uma solução que foi
claramente mais favorável à comuna. O que apontava, por um lado, o processo político de
fortalecimento do governo citadino naquele período e, por outro, o enfraquecimento da
autoridade diocesana, que desde as décadas anteriores vinha perdendo territórios,
jurisdições, direitos e funções naquela cidade, por meio não só dos avanços promovidos
pelos dirigentes comunais, mas também pelas intervenções realizadas pelo papado.
A carta encíclica escrita por Jordão da Saxônia, mestre geral da Ordem dos
Pregadores, para divulgar aos demais integrantes da ordem o evento da translatio corporis
de Domingos de Gusmão, ocorrida no convento de Bolonha em maio de 1233, traz a
informação de que os frades de San Nicolò tinham procurado o papa Gregório IX para lhe
consultar sobre aquele procedimento. Eles teriam sido duramente repreendidos pelo papa,
por não terem tratado o seu primeiro mestre com a devida honra. Além disso, o pontífice,
mesmo ocupado com outros negócios, teria escrito uma epístola ao arcebispo de Ravenna,
pedindo que ele comparecesse àquele evento bolonhês com seus bispos sufragâneos, como
representantes da Igreja romana.336
A presença do arcebispo de Ravenna e de seus bispos sufragâneos na translatio
335
PINI, Città, Chiesa... op. cit., p. 189 e 190.; HESSEL, op. cit., p. 209.
336
JORDÃO DA SAXÔNIA. Litterae Encyclicae anno 1234. In: MONTANARI, Elio. Litterae Encyclicae
annis 1233 et 1234 datae. Spoleto: Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, 1993. p. 257-258:
“Neglectum tamen est et hoc, diutius fratribus interim de decenti sarcophago ordinantibus, et aliis summum
pontificem dominum Gregorium adeuntibus, ut praedictum negotium eidem intimarent. Ille vero, ut erat vir
magni zeli et fidei, durissime eos corripuit, qui tanto patri debito honore neglexerant famulari. [...] Scripsit
igitur Ravennati archiepiscopo, ut, quia multis praepeditus ipse personaliter adesse non poterat, tantae
translationi cum suis suffraganeis interesset”. Deste ponto em diante a referência à carta encíclica de Jordão
da Saxônia na edição de Elio Montanari será feita apenas como Litterae Encyclicae anno 1234, seguida da
identificação da página e da transcrição correspondente (entre aspas), quando for o caso.
149
Bolonha, com orientações a respeito do clero e dos demais funcionários da igreja local a
ele submetidos, para que Enrico della Fratta concedesse a eles direito de prestar juramento
perante outras autoridades, desde que eles não fossem forçados a isso.341
A sequência de cartas do pontífice romano ao bispo bolonhês, ou sobre ele, não
indica que Gregório IX mantivesse alguma relação mais próxima a Enrico della Fratta, que
o utilizasse como seu representante para as causas em Bolonha, ou que de alguma forma
tentasse fortalecer a sua autoridade em outras localidades. O mesmo não pode ser dito em
relação ao arcebispo de Ravenna, que era o superior imediato de Enrico della Fratta, como
seu bispo metropolitano.
Em agosto de 1234, pouco mais de um mês após a canonização de Domingos de
Gusmão, Gregório IX escreveu uma sequência de epístolas, cinco no total, que apontam o
arcebispo de Ravenna como um representante do papa para uma causa de grande interesse
da Igreja romana. No dia 08 deste mês, o pontífice romano enviou uma epístola contendo
um mandato papal àquele bispo metropolitano, para que ele desempenhasse a função de
legado da Sede Apostólica na Terra Santa, atuando para resolver um conflito surgido entre
os barões do Reino de Jerusalém e um representante do imperador Frederico II. A
orientação do papa, nesta ocasião, foi bastante clara: exorte-os a aceitarem um acordo de
paz, caso isso não ocorra, reduza-os.342
No mesmo dia, o pontífice romano escreveu aos barões do Reino de Jerusalém e
aos cidadãos, advertindo-os a aceitarem o acordo de paz que foi elaborado com o auxílio
do patriarca de Antioquia e do mestre dos Teotônicos (que já tinha atuado como
representante de Frederico II, portando documentos para serem entregues ao papa). 343 O
papa ainda avisa que o arcebispo de Ravenna iria atuar como seu representante para
arbitrar um acordo entre as partes envolvidas.344
341
AUVRAY, Reg. nº 1757, p. 966-967: “Episcopo Bononiensi, parato pro universis et singulis suis et
ecclesiae suae causis dare yeonomum idoneum, seu syndicum vel actorem, qui praestare posset coram
judicibus juramentum, concedit ut praestare passim juramentum pro re minima ipso invitus nullatenus
cogatur”.
342
AUVRAY, Reg. nº 2042, p. 1104: “Archiepiscopo Ravennati, Apostolicae Sedis legato, mandat quatenus,
si praedicti barones regni Hierosolymitani exortationes apostolicas et ipsius legati monitiones super pace cum
Friderico imperatore facienda admittere non curaverint, ominia in eum statum reducat, in quo ante
discordiam inter [Riccardum Filangerium], marescalcum imperatoris, et eosdem barones exortam fuerint”.
343
Cf., infra, p. 138 [Nota 315].
344
AUVRAY, Reg. nº 2041, p. 1103: “Barones regni Hierosolymitani et cives Acconenses monet quatenus
pacem quam inter ipsos et Fridericum, Romanorum imporatorem, patriarcha Antiochenus et magister domus
Theutonicorum facere curaverint, observent: alioquin archiepiscopo Ravennati, ad ipsorum partes misso, ipse
151
papa injungit ut omnia in eum statum reducat, in quo ante discordiam inter [Riccardum Filangerium],
marescalcum imperatoris, et eos ipsos exortam fuerint”.
345
AUVRAY, Reg. nº 2043, p. 1104: “Magistris et fratribus domus militiae Templi et Hospitalis
Hierosolymitani, et praeceptori Sanctae Mariae Theutonicorum de eadem re scribit eisque mandat quatenus
archiepiscopum Ravennatem tanquam legatum Ecclesiae Romanae debito honore suscipiant et ejus monitis et
mandatis humiliter intendant”.
346
AUVRAY, Reg. nº 2044, p. 1104: “Archiepiscopos, episcopos, abbates, priores, decanos, archidiaconos et
universos alios ecclesiarum praelatos per Hierosolymitanum regnum constitutos monet quatenus eumdem
archiepiscopum Ravennatem sicut Apostolicae Sedis legatum debito honore suscipiant, et ejus mandatis et
monitis, specialiter super pace in eodem regno reformanda, humiliter intendant”.
347
AUVRAY, Reg. nº 2040, p. 1103: “Archiepiscopos, episcopos, abbates, priores, decanos, archidiaconos et
alios ecclesiarum praelatos ad quos litterae istae pervenerint, rogat quatenus archiepiscopum Ravennatem, ab
ipso papa ad partes transmarinus pro Terrae Sanctae negotio destinatum, benigne recipiant eique in
necessariis liberaliter provideant”.
152
348
AUVRAY, Reg. nº 334, p. 346-348: “Palmerio, canonico Sanctae Trinitatis de Campanolis, mandat
quatenus compellat potestatem et commune Bononienses, qui temporalem jurisdictionem in quibusdam
castris ecclesiae Bononiensi competentem usurpaverant, de illatis damnis et injuriis Bononiensi episcopo
satisfaciant”, “Discretioni tue per apostolica scripta mandamus quatenus, si tibi constiterit ipsos invadere aut
turbare super premissis jura ipsius ecclesie, aut hactenus invasisse vel turbasse, tu diligenti monitione
premissa, per censuras ecclesiasticas cessare ipsos ab hujusmodi et satisfacere de preteritis damnis et injuriis,
appellatione remota, compellas”.
349
AUVRAY, Reg. nº 1460, p. 813: “Archidiacono Bononiensi, priori Sanctae Mariae de Reno et frati
Palmerio, canonico ecclesiae de Campaniola, mandat quatenus sedulo inquirant de miraculis fratris Dominici,
plantatoris ordinis Praedicatorum”.
350
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 117: “[...] mandamus, quatines provide attendentes, quod lux
vera sanctorum dominos Ihesus Christus signis publicis et prodigiis evidentibus trepidantia discipulorum
pectora roboravit, mentes eorum nubilas de resurrectionis ammiranda gloria expresse certitudinis clarificans
fulcimentis vitam et conversationem predicti fratris, quibus Deo et hominibus noscitur placuisse necnon
miracula, que auctore Deo de sui corporis sanctitate procedunt, habita pre oculis sola divine reverentia
maiestatis, per testes idoneos studeatis inquirere cauta diligentia et sollicitudine vigilanti, que in scriptis
153
redacta sub sigillis vestres fideliter conservetis, illa nobis, postquam mandatum apostolicum receperitis, per
fideles et solempnes nuntios transmissuri”.
351
Cf., infra, p. 142 [nota 322].
352
Cf., infra, p. 148 e 149 [notas 336 e 337].
353
Cf., infra, p. 152 [nota 349].
154
Por mais que se possa afirmar, com segurança, que a Igreja bolonhesa esteve
presente nos atos e nas iniciativas favoráveis ao reconhecimento da santidade de Domingos
e ao estabelecimento de um culto oficial na cidade de Bolonha, é importante destacar que
os papéis geralmente exercidos pelo titular de uma diocese naquele contexto histórico
(celebrar cerimônia de translatio corporis e realizar investigação local sobre uma fama de
santidade) não foram desempenhados por Enrico della Fratta. Provavelmente o desgaste
da sua autoridade nos sucessivos confrontos com a Comuna de Bolonha não faziam dele
uma liderança religiosa consensual ou de amplo apoio popular naquela cidade, de forma
que se ele não foi totalmente afastado da causa de Domingos de Gusmão, também não foi
oferecido a ele um papel de destaque. O papado dispunha naquela época de outras opções
clericais que eram menos polêmicas e mais alinhadas aos seus projetos, como o arcebispo
de Ravenna e o arcediago da catedral de Bolonha.
354
PINI, Città, comuni... op. cit., p. 249-250.
355
GRECI, op. cit., p. 532.
155
356
DE VERGOTTINI, Giovanni. Lo Studio di Bolonha, l’Impero, il Papato. Spoleto: Centro italiano di
studi sull'Alto Medioevo, 1996. p. 81.
357
D’AMATO, Alfonso. La Chiesa e l’Università di Bolonha. Bolonha: Edizioni Luigi Parma, 1988. p. 21
e 22.
358
DOLCINI, Carlo. Lo Studium fino al XIII secolo. In: CAPITANI, Ovidio. Bolonha nel medioevo.
Bolonha: Bononia University Press, 2007. p. 477-498. p. 493.
156
forma, pudessem se tornar uma força coletiva dentro e fora da universidade. O papado,
neste período, aproveitou todas as oportunidades que teve para se colocar ao lado dos
estudantes e exercer sua autoridade em defesa da liberdade escolástica, denunciando os
estatutos comunais como ilícitos e exortando os dirigentes citadinos a abandoná-los.359
Ao final daquele período, em 1219, o papa Honório III tomou uma decisão que
afetou profundamente as bases daquela universidade e as relações com os poderes locais.
Ao transferir ao arcediago de Bolonha, por delegação papal, o direito de controle sobre os
exames de láurea e de concessão da licentia docendi, o pontífice romano acabou afastando
definitivamente o bispo de exercer qualquer prerrogativa sobre aquela instituição, além de
se alçar a uma posição de protetor e de árbitro para todos os conflitos.360 Após esta
intervenção seguiram-se ainda alguns anos de controvérsia com os dirigentes comunais e
com os projetos imperiais, mas o fato é que o Studium bolonhês foi levado para a esfera de
interesses do papado, que ao longo deste século continuou a exercer um poder de tutela e a
investir autoridade para que aquela instituição se tornasse cada vez mais prestigiosa na
Itália e na Europa.
Entre 1222 e 1224, seguiram as divergências com a Comuna de Bolonha, que
insistia em editar estatutos que obrigavam os mestres e os estudantes a fazerem juramento
de obediência ao governo citadino, além de se declararem contra qualquer possibilidade de
transferência da universitas para outra cidade. A preocupação dos dirigentes comunais não
era sem fundamento, já que no ano de 1222 houve uma emigração de membros daquela
instituição para a cidade de Padova. E em 1224, a fundação de uma universidade imperial
em Napoli por Frederico II, se tornou mais uma ameaça ao desenvolvimento do Studium de
Bolonha, principalmente porque o imperador agiu para atrair mestres e estudantes daquela
cidade para a instituição napolitana.361
Aquela situação de controvérsia com a comuna só se alterou mesmo a partir de
1226, quando houve a renovação da Societas Lombardiae contra os projetos imperiais na
Itália e com a consequente reação de Frederico II, que lançou o bando imperial contra as
359
PINI, Antonio Ivan. Guelfes et Gibelins à Bologne au XIIIe siècle: l'« autodestruction » d'une classe
dirigeante. In: CONGRÈS DE LA SOCIÉTÉ DES HISTORIENS MÉDIÉVISTES DE L’ENSEIGNEMENT
SUPÉRIEUR PUBLIC, 27, 1996, Rome. Actes... Rome, 1996. p. 153-164. p. 163; D’AMATO, La Chiesa...
op. cit., p. 32 e 33.
360
PAOLINI, Lorenzo. La Chiesa di Bolonha e lo Studio nella prima mettà del Duecento. In: BERTUZZI,
Giovanni. L’origine dell’Ordine dei Predicatori e l’Università di Bolonha. Bolonha: Edizioni Studio
Domenicano, 2006. p. 23-42. p. 29, 32 e 33.
361
DOLCINI, Lo Studium... op. cit., p. 494; D’AMATO, La Chiesa... op. cit., p. 33-34.
157
362
PINI, Antonio Ivan. Federico II, lo studio di Bolonha e il “falso Teodosiano”. In: DEPUTAZIONE DI
STORIA PATRIA PER LE PROVINCE DI ROMAGNA. Federico II e Bolonha. Bolonha, 1996
(Documenti e Studi, vol. XXVII). p. 27-60. p. 33, 34, 46 e 47.; DE VERGOTTINI, op. cit., p. 52 e 53.
363
PINI, Federico II, lo studio... op. cit., p. 34.
158
364
Cf., infra, p. 152 [nota 349].
365
Cf., infra, p. 142 [nota 322].
366
WALZ, Angelus. Beati Iordani de Saxonia Epistolae. In: Monumenta Ordinis Fratrum Praedicatorum
159
Historica, v. XXIII. Romae: Institutum Historicum Fratrum Praedicatorum, 1951. p. 48: “Nos tamen,
intellecta prius canonizatione sancti patris nostri per litteras fratris Raymundi, qui moratur in Romana curia
sicut”. Deste ponto em diante a referência às cartas de Jordão da Saxônia na edição de Angelus Walz será
feita apenas como Beati Iordani de Saxonia Epistolae, seguida da identificação da página e da transcrição
correspondente (entre aspas), quando for o caso.
367
AUVRAY, Reg. nº 1944, p. 1057: “Eidem, qui nulla se credebat excommunicatione teneri, significat se
ipsum per Raimundum, capellanum et paenitentiarium ipsius papae, juratoria recepta cautione quod
satisfaciet super bis pro quibus excommunicatus esset, ei absolutionem impendi fecisse”.
368
AUVRAY, Reg. nº 2083, p. 1125: “Doctoribus et scholaribus Parisiensibus nuntiat se edidisse volumen
Decretalium, a fratre Raymundo [de Pennaforte] redactum, et praecipit ut hac tantum compilatione universi
utantur in judiciis et in scholis”.
369
AUVRAY, Reg. nº 2083, p. 1125-1126: “Sane diversas constitutiones et decretales epistolas
predecessorum nostrorum in diversa dispersas volumina, quarum alique propter nimiam similitudinem, et
quedam propter contrarietatem, nonnulle etiam propter sui prolixitatem, confusionem inducere videbantur,
alique vero vagabantur extra volumina supradicta, que tanquam incerte frequenter in judiciis vacillabant, ad
communem et maxime studentium utilitatem per dilectum filium fratrem Raymundum, capellanum et
penitentiarium nostrum, in unum volumen, resecatis superfluis, providimus redigendas, adicientes
constitutiones nostras et decretales epistolas, per quas nonnulla que in prioribus erant dubia, declarantur.
160
Volentes igitur ut hac tantum compilatione universi utantur in judiciis et in scolis, districtius prohibemus ne
quis presumat aliam facere absque auctoritate Sedis Apostolice speciali”.
370
AUVRAY, Reg. nº 2294, p. 1212: “Majoris Ecclesiae Parisiensis et Sancti Germani Autisiodorensis
Parisiensis decanis, et magistro Wernacio, canonico Tervisino, Parisius commoranti, causam quae inter
Geraldum de Bre, canonicum Aentensem, et Stephanum Vassandi clericum, super ecclesia de Rialhac
vertebatur, examinandam et terminandam committit”.
371
AUVRAY, Reg. nº 2294, p. 1214: “Cum igitur per dilectum filium fratrem R., penitentiarium nostrum, ab
eo de parendo mandatis nostris super hiis pro quibus interdictus et excommunicatus dicitur, juratoria prestita
cautione, ipsum a sententiis hac occasione prolalis in eum absolvi fecerimus ad cautelam, discretioni vestre
per apostolica scripta mandamus quatinus, facientes vobis universas litteras apostolicas et processus super
premissis habitos exhiberi, audiatis absque more dispendio que partes hinc inde duxerint proponenda, et, si de
partium voluntate processerit, causam fine canonico terminetis, facientes etc. Alioquin eam ad nos remittetis
sufficienter instructam, prefigentes partibus terminum competentem, quo per se vel procuratores idoneos
etc.”.
372
AUVRAY, Reg. nº 2221, p. 1194: “Priori et fratri Roberto de ordine Praedicatorum Parisiensibus mandat
quatenus «Accurri», filium Aldebrandini, civem et mercatorem Florentinum, propter commercium quod
insciens cum quibusdam haereticis habuerat, sed a quo absolutus fuerat, non permittant ab aliquibus
moleslari”.
373
AUVRAY, Reg. nº 2221, p. 1194-1195: “Verum, cum dicto mercatori per dilectum filium fratrem
Raimundum, penitentiarum nostrum, imponi fecerimus penitentiam salutarem, discretioni vestre per
apostolica scripta mandamus quatenus ipsum occasione hujusmodi non permittatis ab aliquibus molestari: si
qua alia contra eum poteritis invenire, nobis fideliter rescripturi”.
161
daquela obra que estava sendo encaminhada aos doutores e aos estudantes da universidade
de Paris. O que não ocorre quando se pensa nas iniciativas e nos atos praticados em favor
da canonização de Domingos de Gusmão nos anos de 1233 e 1234.
Não foi Raimundo de Penhaforte o indicado para promover uma campanha de
pregação em Bolonha com o intuito de difundir a fama de santidade de Domingos. Seu
nome não foi vinculado ao evento da translatio corporis que foi realizada no convento
dominicano de San Nicolò em maio de 1233. Ele também não esteve diretamente
envolvido no inquérito realizado na cidade bolonhesa entre julho e agosto de 1233, como
parte integrante do processo de canonização autorizado pelo papa.
O único documento encontrado na pesquisa de doutorado que vincula o nome
daquele frade dominicano e penitenciário papal à canonização de Domingos é a referida
carta que Jordão da Saxônia escreveu para Diana de Andaló, dando notícia de que já tinha
sido informado sobre a confirmação da canonização pela Igreja romana e identificando
Raimundo como o seu informante.374
Apesar disso, é possível que Raimundo de Penhaforte tenha tido uma participação
efetiva nos esforços realizados para aquela canonização, levando-se em consideração o fato
de ser o frade dominicano mais próximo ao pontífice romano naquele período, além da
proximidade temporal entre os dois eventos mencionados mais acima (a canonização de
Domingos e a promulgação do Liber Extra).
O tratamento dado a este frade dominicano pelo pontífice romano nas epístolas
anteriormente exploradas ajuda a fortalecer esta hipótese, seja pela valorização realizada
pelo papa Gregório IX, seja porque este padrão de tratamento não foi verificado nos
registros do pontificado do ano anterior, constituindo assim uma excepcionalidade. O que
apontaria o ano de 1234, sobretudo de junho em diante, como o período chave para aquele
comportamento do pontífice romano que, na prática, conferia maior prestígio e autoridade
ao seu capelão e penitenciário.
Vale ainda destacar que a relação mantida com o penitenciário Raimundo de
Penhaforte, oferecia ao papa Gregório IX a oportunidade de se valer de um interlocutor
próximo que tinha relações ao mesmo tempo com o Studium de Bolonha (onde ele se
formou e atuou como mestre) e com a Ordem dos Pregadores (a qual ele se vinculava
374
Cf., infra, p. 158 [Nota 366].
163
como um frade), instituições que ao longo da primeira metade do século XIII mereceram
uma atenção especial daquele pontífice romano.
A universitas scolarium Bononie era uma instituição em pleno desenvolvimento no
século XIII e cuja fama já era reconhecida na Europa desde o século anterior. Não foi sem
motivos que o papado, o império e a comuna de Bolonha procuraram acompanhar de perto
o crescimento desta instituição de ensino e a movimentação dos seus integrantes (mestres e
estudantes). A sua participação em alguns atos diretamente relacionados à canonização de
Domingos de Gusmão, como na abertura formal de um processo, ou na própria
investigação, sem dúvida conferia maior autoridade (institucional e intelectual) àquela
causa de santidade.
A atuação do papado nas primeiras décadas do século XIII, ora protegendo mestres
e estudantes do avanço da autoridade comunal e/ou imperial, ora impondo pessoas
relacionadas à cúria romana para atuar junto àquela instituição, apontam uma estratégia
constante de intervenção pontifícia junto àquela universidade bolonhesa. Por outro lado,
mestres daquela instituição de ensino contribuíram largamente para o desenvolvimento e a
consolidação do direito canônico, um dos principais instrumentos de legitimação da
autoridade papal perante as sociedades europeias naquela conjuntura histórica.
Portanto, o papado e a universitas scolarium Bononie eram instituições que se
conheciam e que não poucas vezes, naquele período, se relacionavam politicamente e
compartilhavam alguns projetos. A canonização de Domingos de Gusmão foi mais um
empreendimento compartilhado por elas. Levando-se em consideração que o êxito deste
projeto era muito mais relevante para o papado, o mais provável é que o Studium bolonhês
tenha se envolvido nesta causa por conta dos mestres que compartilhava com a Ordem dos
Pregadores e com a Igreja romana, além da potencialidade da renovação daquela poderosa
aliança, que garantia àquela instituição de ensino uma proteção constante diante das
ameaças locais e imperiais.
fora da península italiana. Além disso, naquela época, Bolonha já era bastante conhecida
pelo seu Studium, atraindo mestres e estudantes de diversas partes da Europa, que para lá
afluíam em busca de formação e de conhecimento.
Portanto, não é de se estranhar que Domingos de Gusmão, ao passar por lá em
janeiro de 1218, tenha tido o interesse de fundar naquela cidade uma sede para os seus
frades pregadores, algo que se concretizou no ano seguinte. A cidade bolonhesa era
bastante adequada para os propósitos assumidos pela sua ordem religiosa, seja pela
amplitude e pela diversidade do público que poderia ser abarcado em suas pregações
evangélicas, seja pelo potencial para a captação de novos frades e para a difusão de suas
mensagens a partir daquele lugar.375
Os primeiros frades dominicanos a se estabelecerem em Bolonha chegaram por lá
em 1219, enviados de Roma por Domingos, que na época ocupava o cargo de mestre geral
da Ordem dos Pregadores. Primeiro se estabeleceram na igreja de Santa Maria della
Mascarella e, algum tempo depois, acabaram se transferindo para a igreja de San Nicolò
delle Vigne, situada em uma área mais central da cidade e que lhes tinha sido destinada
pelo bispo Enrico della Fratta, sob pedidos do frade Reginaldo de Orleans e do cardeal
diácono Hugolino de Ostia.
O sacerdote Rodolfo de Faenza, que era reitor e capelão daquela igreja de San
Nicolò, logo ingressou na Ordem dos Frades Pregadores, desempenhando por longo
período a função de procurador do convento bolonhês. Desde aquela época surgiram as
primeiras questões envolvendo o crescimento daquela comunidade, a necessidade de
ampliar os espaços e a obrigação de adequá-los ao preceito de pobreza que era comum às
ordens mendicantes.376
No ano de 1219 e nos seguintes ocorreram diversos atos de doação, de compra e
venda, e de transferência de direitos, que acabaram estabelecendo as bases jurídicas e
territoriais para aquela primeira sede dominicana em Bolonha. Naquele primeiro ano de
atividade dominicana, Diana de Andaló ainda não havia ingressado na vida religiosa, mas
375
BORGHI, Beatrice. Una ciudad, un santo, una orden: Bolonia, Domingo de Caleruega y la Orden de los
Frailes Predicadores. Entre la vocación al estudio y la custodia de las sagradas prendas. Medievalismo,
Madrid, v. 25, p. 13-54, 2015. p. 15 e 16; D’AMATO, Alfonso. I domenicani e l’Università di Bolonha nel
secolo XIII. In: CONVEGNO DI STUDI ATENEO E CHIESA DI BOLONHA, 1989, Bolonha. Atti...
Bolonha: Alma Mater Studiorum, 1992. p. 105-117. p. 105.
376
ALCE, Venturino. Il Convento di San Domenico in Bolonha nel secolo XIII. Bolonha: Pàtron Editore,
1973. p. 140 et seq.
165
foi de grande ajuda na questão do estabelecimento do grupo na área central da cidade. Pois
a igreja de San Nicolò, os imóveis ao seu redor e o terreno no qual estavam as construções,
pertenciam à família de Diana, que se mobilizou para convencer o próprio avô, Pietro
Lovello, a ceder o terreno, a igreja e sua casa anexa, bem como o direito de patronato (jus
patronatus) daquele edifício sacro para a comunidade dominicana.377
No ano seguinte, mais precisamente em 17 de maio de 1220, foi realizado naquela
comunidade o primeiro capítulo geral da Ordem dos Pregadores. Uma das primeiras regras
aprovadas naquela assembleia deliberativa dizia respeito justamente ao princípio da
pobreza, estabelecendo que os frades dominicanos não poderiam ter posses, nem rendas
fixas, além de determinar que os edifícios daquela comunidade deveriam ser simples e
humildes. Também foi naquela ocasião capitular que Diana de Andalò se dirigiu ao mestre
Domingos solicitando a fundação de um convento feminino em Bolonha. Mas a espera
para que o bispo da cidade autorizasse e apontasse um local adequado para tal
empreendimento, fez com que o pedido só fosse concretizado alguns anos depois.378
Em 1221 continuaram os trabalhos de construção do edifício conventual, enquanto
o mestre da ordem esteve ausente da cidade por alguns meses. Ao retornar para Bolonha,
Domingos se viu surpreendido pela grandiosidade das edificações que foram levantadas na
sua ausência, tendo repreendido duramente o procurador do convento, frade Rodolfo de
Faenza, por ter descumprido a orientação capitular. Nesse mesmo ano foi realizado o
segundo capítulo geral da ordem, no qual se procedeu com a divisão das competências
territoriais em oito províncias. A mais importante dentre elas, a província da Lombardia,
foi designada para Jordão da Saxônia (que neste mesmo ano substituiu Domingos à frente
da ordem), enquanto o convento de Bolonha passou a ser regido pelo frade Ventura de
Verona, que permaneceu como prior daquela comunidade por longos anos.379
Este também foi o ano da morte de Domingos de Gusmão, que ocorreu em 06 de
agosto de 1221. Tudo indica que a sua morte não se tornou um obstáculo para o
crescimento da comunidade de Bolonha e nem para os projetos da Ordem dos Pregadores.
Ao contrário, os anos seguintes registraram uma continuidade nos planos de ampliação do
377
DONDARINI, Rolando. L’insediamento dei Frati Predicatori a Bolonha. In: BERTUZZI, Giovanni.
L’origine dell’Ordine dei Predicatori e l’Università di Bolonha. Bolonha: Edizioni Studio Domenicano,
2006. p. 230-255. p. 237; BORGHI, op. cit., p. 21.
378
ALCE, Il Convento... op. cit., p. 142 e 145; DONDARINI, L’insediamento... op. cit., p. 238 e 243.
379
ALCE, Il Convento... op. cit., p. 147; DONDARINI, L’insediamento... op. cit., p. 238.
166
380
HESSEL, op. cit., p. 214-215.
381
BORGHI, op. cit., p. 28-30; D’AMATO, I domenicani... op. cit., p. 106.
382
ALCE, Il Convento... op. cit., p. 152-154.
167
383
VAUCHEZ, André. Une campagne de pacification en Lombardie autour de 1233. L'action politique des
Ordres Mendiants d'après la réforme des statuts communaux et les accords de paix. Mélanges d'archéologie
et d'histoire, Roma, t. 78, n. 2, p. 503-549, 1966. p. 504 et seq; FASOLI, op. cit., p. 173; HESSEL, op. cit.,
p. 215.
168
384
WALZ, Angelus. Libellus de principiis Ord. Praedicatorum auctore Iordano de Saxonia. In: Monumenta
Ordinis Fratrum Praedicatorum Historica, tomus XVI. Romae: Institutum Historicum FF. Praedicatorum,
1935. p. 23-88. p. 72: “Sed inter hec vix erat e fratribus, qui huic divine gratie condigna gratiarum occurreret
actione. Siquidem visum est plerisque, non debere receptari miracula, ne sub velamento pietatis speciem
questus incurrerent. Sicque dum propriam opinionem inconsiderata sanctitate zelarent, communem ecclesie
neglexere profectum et gloriam sepeliere divinam”.
385
Litterae Encyclicae anno 1234, op. cit., p. 256: “Expergefacta est siquidem post obitum viri Dei reverentia
populi, et occurrentibus multis, qui diversis infirmitatum quarumcumque premebantur molestiis, ibique
permanentibus diebus ac noctibus, fatebantur omnino percepisse se remedia sanitatum. Unde curationum
suarum testimonia deferebant suspendentes ad tumulum beati viri cereas oculorum, manuum, pedum
ceterorumque membrorum effigies, prout varia fuerat eorum infirmitas corporum, sive eorum multifarie
reddita valitudo. Enimvero vitam, quam in caelis possederat, in terris miraculis declarabat. Visum est autem
plerisque nom debere receptari miracula, ne sub specie pietatis notam quaestus incurrerent. Frangebant itaque
allatas imagines et deiciebant, et dum propriam opinionem inconsiderata zelare cupiunt sanctitate,
communem ecclesiae neglexere profectum et gloriam sepeliere divinam. Alii autem aliter sentiebant, tamen
pusillanimitatis depressi spiritu his non obviabant. Sicque factum est, ut beati patris Dominici gloria absque
omni sanctitatis veneratione per annos fere XII sopita permaneret”.
386
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 130-131: “Item dixit, quod sicut audivit et firmiter credit,
Deus multa miracula operatus fuit per ipsum beatum Dominicum in morte eius et post mortem eius in eo
anno et sequentibus annis. Et hoc ideo credit et dixit, quia multi viri et mulieres veniebant ad sepulturam eius
cum candelis et imaginibus et votis dicentes, quod Deus operatus fuerat miracula circa eos vel suos per
169
narrativa estava sendo contada por alguém que esteve à frente daquela comunidade
religiosa desde 1221, ano da morte de Domingos de Gusmão.
Tudo indica uma convergência entre os relatos de Jordão e de Ventura no sentido
de responsabilizar os frades de San Nicolò por aqueles doze anos que se passaram entre a
morte de Domingos e o processo de canonização iniciado em 1233, além de sustentarem
que aquele comportamento seria o resultado do temor daqueles frades em serem acusados
de interesseiros. É importante destacar que tal relato não foi compartilhado pelos demais
testemunhos do processo de canonização em Bolonha, o que coloca aqueles dois dirigentes
dominicanos em uma posição de proximidade. Teria o relato sido “acertado” entre eles?
Aquela narrativa tinha de fato ocorrido ou era uma invenção?
A proximidade entre os dois poderia decorrer desde 1221, ano da realização do
segundo capítulo geral da ordem na cidade de Bolonha, quando Jordão foi indicado como
prior provincial da Lombardia, enquanto Ventura foi nomeado prior do convento de San
Nicolò. Naquele mesmo ano, em decorrência da morte de Domingos, Jordão da Saxônia foi
elevado à posição de mestre geral da Ordem dos Pregadores, enquanto o frade Ventura de
Verona permaneceu por longos anos no cargo para o qual foi designado naquela ocasião
capitular.
Em uma das epístolas trocadas com Diana de Andalò, com datação provável de
abril de 1231, Jordão trata de acalmar aquela religiosa de Bolonha, dizendo a ela que não
chamou o frade Ventura em Padova com o objetivo de transferi-lo e/ou de fazê-lo prior da
comunidade dominicana daquela cidade.387 Não foi possível saber o motivo da convocação,
pois o mestre geral da ordem não esclareceu a questão. De qualquer forma, a preocupação
de Diana indica alguma predileção pelo prior de San Nicolò, que deveria ter nela uma
aliada no âmbito da instituição dominicana. E não era uma aliada qualquer naquele
contexto, levando em consideração o tamanho do patrimônio da família daquela religiosa,
que tão frequentemente foi transferido aos dominicanos de Bolonha (desde 1219).
A resposta de Jordão da Saxônia também indica uma convocação feita ao prior de
San Nicolò para que ele fosse se encontrar com o mestre geral em Padova. Embora não
merita beati Dominici. Et voluerunt quidam claudere sepulturam ipsius fratris et patris beati Dominici et
cooperire pannis sericis, sed fratres timentes prohibuerunt, ne ordo inde propter multitudinem turbaretur et ne
aliqui dicerent, quod propter cupiditatem vel iactantiam fratres facerent predicta vel fieri paterentur”.
387
Beati Iordani de Saxonia Epistolae, op. cit., p. 24-25: “De fratre Ventura cesset omnis dubitatio, quia non
hac intentione vocavi eum Paduam, ut facerem ipsum ibi priorem”.
170
388
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 137: “regularis observantie zelator precipuss, summus
paupertatis amator tam in victu quam in vestitu fratrum ordinis sui, et sui, quam etiam in edificiis et ecclesiis
fratrum et in cultu et in ornatu vestium ecclesiasticarum”.
171
o viu exortar os frades a este comportamento, inclusive obrigando-os a não aceitar doações
para a ordem.389 Além disso, Estevão reproduz uma narrativa sobre o convento de Bolonha,
dando conta que o frade Rodolfo de Faenza, que era o procurador daquela comunidade,
teria começado uma obra para ampliar as celas dos frades de San Nicolò, tendo sido depois
repreendido por Domingos que o acusou de abandonar o preceito da pobreza.390 Importante
destacar que tal repreensão foi feita a um grupo de frades e não só ao procurador da
comunidade.
A preocupação com manutenção do preceito da pobreza entre os frades também
aparece demarcada no testemunho do frade Juan de Espanha, que era um dos discípulos
mais antigos de Domingos, tendo integrado as missões de pregação no sul da França em
1215, além de estar entre os frades que foram enviados para estabelecer a primeira sede em
Bolonha (em 1219). Em seu testemunho Juan destaca que Domingos ordenava os frades a
viajarem a pé e a não levarem dinheiro para tais deslocamentos, de forma que
vivenciassem a pobreza e dependessem das esmolas. Ele também destaca que o então
mestre geral ordenou que as possessões que eles tinham recebido na França fossem doadas
aos cistercienses e a outras ordens religiosas.391
Outra a ressaltar a vigilância de Domingos com a sua pobreza e a dos seus frades
foi o próprio Rodolfo de Faenza, que muitas vezes esteve à frente dos trabalhos de
ampliação daquela comunidade bolonhesa. Ele destaca em seu testemunho que o mestre
geral era muito diligente na pobreza e exortava seus frades ao mesmo comportamento.
Rodolfo relata também que, certa vez, quando um senhor de Bolonha (Odorico Galliciani)
tentou fazer doações aos dominicanos, Domingos não aceitou e inclusive rescindiu o
389
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 156-157: “Item dixit, quod ipse frater Dominicus erat amator
paupertatis. Et hoc audivit sepissime eum predicantem et fratres hortati ad paupertatem. Et si quando sibi vel
collegio fretrum offerebantur possessiones, nolebat eas recipere, nec permittebat fratres recipere. Et volebat,
quod haberent viles domos et parvas. Et ipsemet vilissimum habitum portabat et viles pannos”.
390
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 157: “Item dixit, quod cum haberent fratres apud sanctum
Nicolaum cellas vilissimas et parvas frater Rodulphus, qui erat procurator fratrum, in absentia eiusdem fratris
Dominici quasdam cellas coepit per brachium elevare. Sed revertens dictus frater Dominicus cum videret
cellulas elevatas, coepit cum fletu pluries predictum fratrem Rodulfum et fratres alios reprehendere, dicendo
et aliis fratribus: Vultis tam cito paupertatem relinquere et magna palatia edificare”.
391
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 144: “Et etiam temporibus ipsis data fuerunt ordini
predicatorum castra et possessiones multe in partibus Tholosanis et Albigensibus. Item dixit, quod cum ordo
predicatorum haberet castra et possessiones multas in partibus supradictis, pecuniam portarent in via secum
et equitarent et superpellicia deferrent, prefatus frater Dominicus laboravit et fecit, quod fratres ipsius ordinis
dimitterent et contemnerent omnia temporalia, et insisterent paupertati, et non equitarent, et viverent de
elemosinis et nichil secum in via portarent. Et ita date fuerunt possessiones de Francia monialibus ordinis
Cisterciensium et alie aliis”.
172
contrato que tinha sido assinado, porque queria que os frades não tivessem posses e que
vivessem de esmolas.392
É possível, e até provável, que os testemunhos tomados no âmbito do inquérito de
Bolonha apresentem uma versão da pobreza de Domingos um tanto exagerada, com o
intuito de valorizar o comportamento religioso daquele mestre que estava próximo de ser
canonizado pela Igreja romana. Mesmo levando isto em consideração, também é possível
depreender destes testemunhos uma versão mais nuançada da pobreza defendida pelo
primeiro mestre geral dos dominicanos. Parece que a questão não era ter ou não ter
propriedades, e sim o seu tamanho e a aparência dos edifícios. A mesma lógica pode ser
observada em relação às vestimentas dos frades e aos ornamentos eclesiásticos das igrejas
dominicanas.
Retomando o testemunho do frade Amizo de Milão,393 este aspecto aparece bem
destacado: zelar para que o princípio da pobreza esteja presente nos edifícios, nas
vestimentas e nos ornamentos eclesiásticos. A mesma lógica pode ser observada nos
relatos dos frades Estevão394 e Rodolfo395 quando falam dos edifícios e das vestimentas dos
dominicanos: casas pequenas e humildes, vestidos vis. Portanto, deixando de lado os
possíveis exageros, é possível apontar uma preocupação de Domingos para que a aparência
daquelas coisas não passasse ao exterior uma imagem de luxo e, portanto, de um abandono
do ideal de pobreza pelos membros da sua ordem religiosa.
A preocupação com o luxo e a aparência de ostentação pode estar na raiz do
comportamento daqueles frades de Bolonha que Jordão da Saxônia tanto criticou em seus
escritos. Em seu testemunho frade Ventura afirmou que os frades do convento de San
Nicoló não quiseram nem mesmo deixar que os devotos de Domingos adornassem a sua
sepultura com panos de seda.396 Já o testemunho de frade Rodolfo, também um morador
392
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 150: “Item dixit, quod dictus frater Dominicus multum
diligebat paupertatem et hortabatur fratres ad paupertatem. Et hoc scit, quia quando dictus frater Dominicus
venit Bononiam, dominus Hodericus Galliciani volebat dare fratribus quasdam suas possessiones, que
valebant bene quinhentas libras Bononienses. Et facta erat inde carta coram domino Bononiensi episcopo, sed
ipse frater Dominicus fecit rescindi contractum et noluit quod haberent illas vel aliquas alias possessiones sed
solummodo viverent de elemosinis”.
393
Cf., infra, p. 170 [Nota 388].
394
Cf., infra, p. 170 e 171 [Notas 389 e 390].
395
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 150: “Et volebat quod haberent parvas domos et viles vestes.
Et etiam in ecclesia nolebat quod essent panni serici, sed essent indumenta de buchirano vel de aliquo alio
panno”.
396
Cf., infra, p. 168 [nota 386].
173
daquela comunidade, destaca que Domingos não queria a utilização de panos de seda na
igreja e na indumentária dos frades.397 De forma que o comportamento apontado pelo prior
do convento poderia ser apenas um reflexo das orientações do antigo mestre geral. Se a
seda era um tecido de luxo naquele contexto e o mestre da ordem tinha orientado os frades
a não utilizarem este tipo de tecido, nada mais lógico do que impedir que as pessoas
colocassem panos de seda no sepulcro de Domingos.
No entanto, quando se observa o longo período de crescimento daquela comunidade
dominicana de San Nicolò, com a aquisição de terrenos e de casas, bem como a recepção
de doações, fica a impressão de uma contradição em relação ao espírito de pobreza. A
partir de 1221, existe uma série de atos notariais que comprovam tais negociações no
âmbito da sede de Bolonha: em um destes documentos (datado de outubro de 1221),
Jordão da Saxônia aparece identificado como prior provincial da Lombardia e
representante da comunidade naquele ato de compra;398 em outro (datado de fevereiro de
1223), Rodolfo de Faenza aparece como representante do convento em um ato de doação
feito por um funcionário do Studium bolonhês em favor dos dominicanos;399 já Ventura de
Verona aparece como representante do convento em cinco atos de compra, firmados entre
1224 e 1231.400
É importante destacar que todos estes atos foram praticados após a morte de
Domingos de Gusmão. Portanto, no período em que se verificou o maior crescimento do
patrimônio daquela comunidade de San Nicolò, bem como a realização de um programa de
reformas e construções que resultou em um novo edifício conventual, e na nova igreja que
foi designada como local da tumba do fundador (e posteriormente renomeada para Igreja
de São Domingos), a Ordem dos Pregadores não estava mais sob a liderança do seu
primeiro mestre geral. Era Jordão da Saxônia quem estava no comando daquela instituição,
enquanto frade Ventura de Verona continuava a frente da comunidade de Bolonha, assim
como Rodolfo de Faenza permaneceu um bom tempo como procurador do convento e dos
frades.
397
Cf., infra, p. 172 [nota 395].
398
ALCE, Venturino. Documenti sul Convento di San Domenico in Bolonha dal 1221 al 1251. In: Archivum
Fratrum Praedicatorum, Volumen XLII. Roma: Istituto Storico Domenicano di S. Sabina, 1972. p. 5-45. p.
12-13. Deste ponto em diante a referência aos documentos do convento de Bolonha na edição de Venturino
Alce será feita apenas como Documenti sul Convento, seguida da identificação da página e da transcrição
correspondente (entre aspas), quando for o caso.
399
Documenti sul Convento, op. cit., p. 13-14.
400
Documenti sul Convento, op. cit., p. 14-24.
174
401
Cf., infra, p. 171 [Nota 390].
402
Cf., infra, p. 168 [Nota 386].
403
Litterae Encyclicae anno 1234, op. cit., p. 256: “Unde curationum suarum testimonia deferebant
suspendentes ad tumulum beati viri cereas oculorum, manuum, pedum ceterorumque membrorum effigies,
prout varia fuerat eorum infirmitas corporum, sive eorum multifarie reddita valitudo. Enimvero vitam, quam
in caelis possederat, in terris miraculis declarabat. Visum est autem plerisque nom debere receptari miracula,
ne sub specie pietatis notam quaestus incurrerent. Frangebant itaque allatas imagines et deiciebant, et dum
propriam opinionem inconsiderata zelare cupiunt sanctitate, communem ecclesiae neglexere profectum et
gloriam sepeliere divinam. Alii autem aliter sentiebant, tamen pusillanimitatis depressi spiritu his non
obviabant”.
404
Cf., infra, p. 168 [Nota 384].
405
Cf., infra, p. 168 [Nota 386].
175
Apesar da sutileza e das diferenças existentes entre estes relatos, tanto para o mestre geral
quanto para o prior do convento o comportamento daqueles dominicanos indica que
estariam mais preocupados consigo mesmo e não com o que seria melhor para a ordem e
para a Igreja romana.
O fato é que a possível versão deste grupo para explicar aquele comportamento de
resistência não foi representada nos documentos aqui acessados. Fica muito claro que nem
Jordão e nem Ventura são defensores daquele grupo. Nos outros testemunhos reproduzidos
no inquérito conduzido em Bolonha não se verifica qualquer menção a este assunto. Estes
dois dirigentes da Ordem dos Pregadores foram os únicos a sustentarem um relato para
aquele comportamento coletivo e a emitirem opinião/julgamento sobre aqueles frades.
Estariam eles inventando esta explicação como forma de justificar os doze anos
decorridos entre a morte de Domingos e a translatio corporis realizada no convento de
Bolonha? Seria uma forma de se livrarem daquela responsabilidade no justo momento em
que foram tomadas iniciativas para a canonização do fundador da ordem? Se a referida
narrativa fosse uma invenção dos dois, seria necessário combinar com os outros frades de
Bolonha, que acabaram coletivamente responsabilizados e duramente criticados nos
escritos de Jordão da Saxônia, já que os autores daqueles atos não foram nominalmente
identificados. Pois se tratavam de textos que foram produzidos justamente para circular em
todos os conventos da Ordem dos Pregadores e alcançar o maior número de frades. Se
aquela versão fosse construída e não fosse combinada com os frades de San Nicolò,
prontamente se tornaria um escândalo dentro da ordem religiosa, levando-se em
consideração a circulação daqueles textos, dos frades e das epístolas que trocavam entre si.
O mais provável é que, de fato, tenha existido um comportamento coletivo de
resistência a um culto para Domingos de Gusmão, e que as ações deste grupo tenham
colaborado para aquele período de doze anos de espera. Levando-se em consideração
também as súbitas transformações materiais vivenciadas por aquela comunidade religiosa
após a morte do seu primeiro mestre geral, não seria nada estranho que um grupo de frades
daquele convento se posicionasse contra estes acontecimentos, justamente como forma de
demarcar a sua opção pela pobreza coletiva e pela vida mendicante. A implantação dos
cultos de Francisco de Assis e Antônio de Pádua na Ordem dos Frades Menores, ambos
anteriores ao de Domingos na Ordem dos Pregadores, era um exemplo próximo o
suficiente para subsidiar tal reflexão.
176
406
Acta Canonizationis S. Dominici, op. pit., p. 158: “Interrogatus quare hoc credit, respondit quod ab illo
tempore, postquam frater Iohannes Vincentinus cepit predicare revelationem sibi de fratre Dominico
divinitus factam et vitam et conversationem et ipsius sanctitatem populo nunciare, et ipse testis cum aliquibus
fratribus cepit tractare de translatione corporis predicti fratris Dominici, ex tunc manifeste refulsit et apparuit
amplior gratia tam in fratribus, qui eius vitam et sanctitatem predicabant quam etiam in populis qui eos
audiebant”.
177
407
AUVRAY, Reg. nº 1461, p. 813: “Universis Christi fidelibus vere paenitentibus et confessis qui ad
sollemnem praedicationem fratris Johannis Vicentini, de ordine fratrum Praedicatorum, moram in civitate,
villa vel castro trahentis, tribus diebus in hebdomada, vel ad singulas praedicationes sollemnes quas fecerit
per diversa loca se transferens, accesserint, indulgentiam viginti dierum concedit”.
408
Cf., infra, p. 152 [Nota 349].
409
Cf., infra, p. 196 [Notas 449 e 450].
410
Uma consulta às cartas trocadas por ele com a religiosa Diana de Andalò é suficiente para demonstrar isto.
Cf.: Beati Iordani de Saxonia Epistolae, op. cit.
178
CAPÍTULO IV
ocorrido no convento de San Nicolò delle Vigne, que reuniu autoridades e representantes
das instituições locais diretamente envolvidas naquela causa dominicana. Foi mais uma
etapa de construção da santidade do antigo líder dos Frades Pregadores, pois permitiu o
estabelecimento de um novo local de culto, funcionando também como uma modalidade de
reconhecimento local da santidade.
Por fim, foi abordado o inquérito pontifício realizado na mesma cidade, como parte
do processo de canonização que foi aberto para o primeiro mestre geral dos dominicanos.
Uma etapa fundamental para o reconhecimento oficial da santidade de Domingos pela
Igreja romana, pois permitiu produzir os requisitos básicos que eram considerados, naquele
contexto histórico, como sinais públicos e evidências de uma santidade a ser reconhecida
formalmente pela cúria.
Em todas aquelas etapas o papado e os dominicanos estiveram diretamente
envolvidos nas iniciativas tomadas para sustentar uma causa de canonização para
Domingos de Gusmão. Por isso a escolha por focar prioritariamente a articulação entre
estas duas instituições naquele projeto/empreendimento coletivo de construção da
santidade, considerando-se também que o capítulo anterior explorou a participação das
instituições bolonhesas neste processo.
411
VAUCHEZ, André. Une campagne de pacification en Lombardie autour de 1233. L'action politique des
Ordres Mendiants d'après la réforme des statuts communaux et les accords de paix. Mélanges d'archéologie
et d'histoire, Roma, t. 78, n. 2, p. 503-549, 1966. p. 504 et seq.
180
412
MERLO, Grado Giovanni. Contro gli eretici. La coercizione all’ortodossia prima dell’Inquisizione.
Bolonha: Il Mulino, 1996. p. 41 e 116; PAOLINI, Lorenzo. Papato, inquisizione, frati. In: CONVEGNO
INTERNAZIONALE “IL PAPATO DUECENTESCO E GLI ORDINI MENDICANTI”, 25, 1998, Assisi.
Atti... Spoleto: Centro italiano di studi sull’Alto Medioevo, 1998. p. 179-204. p. 190 e 191.
413
MERLO, op. cit., p. 37, 38, 45 e 46.
181
414
BARONE, Giulia. Federico II di Svezia e gli Ordini Mendicanti. Mélanges de l'Ecole française de
Rome. Moyen-Age, Rome, tome 90, n. 2, p. 607-626, 1978. p. 615; MIATELLO, André Luis Pereira. O
pregador e a sociedade local: a luta pelo poder pastoral no seio das cidades da Baixa Idade Média ocidental
(séc. XIII-XIV). Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 7, n. 2, p. 112-131, julho/dezembro de 2014.
p. 117-118.
415
LE GOFF, Jacques. As ordens mendicantes. In: BERLIOZ, Jacques. Monges e Religiosos na Idade
Média. Lisboa: Terramar, 1994, p. 227-241. p. 236; VAUCHEZ, A. Une campagne... op. cit., p. 507, 508,
515 et seq.
416
VAUCHEZ, Une campagne... op. cit., p. 527 e 528.
182
417
HESSEL, Alfred. Storia della città di Bolonha. Bolonha: Edizioni ALFA, 1975. p. 215; MILANI,
Giuliano. Prime note su disciplina e pratica del bando a Bolonha attorno alla metà del XIII secolo. Mélanges
de l'Ecole française de Rome. Moyen-Age, Roma, tome 109, n°2, p. 501-523, 1997. p. 518-519.
418
PAOLINI, Lorenzo. La Chiesa e la città (secoli XI-XIII). In: CAPITANI, Ovidio. Bolonha nel medioevo.
Bolonha: Bononia University Press, 2007. p. 653-759. p. 708 et seq.
419
VAUCHEZ, Une campagne... op. cit., p. 540 e 541.
183
daquela cidade uma fama de santidade para o primeiro mestre geral da Ordem dos
Pregadores. Estaria esta atividade prevista para ocorrer desde que ele se direcionou a
Bolonha? Ou foi uma missão surgida depois da sua chegada?
420
WALZ, Angelus. Acta Canonizationis S. Dominici. In: Monumenta Ordinis Fratrum Praedicatorum
Historica, tomus XVI. Romae: Institutum Historicum FF. Praedicatorum, 1935, pp. 89-194. p. 158 e 159.
Deste ponto em diante a referência ao processo de canonização de Domingos na edição de Angelus Walz será
feita apenas como Acta Canonizationis S. Dominici, seguida da identificação da página e da transcrição
correspondente (entre aspas), quando for o caso.
421
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 158: “[...] sicut patet per effectum in civitatibus Lombardie,
in quibus maxima multitudo hereticorum est combusta, et plusquam centum millia hominum, qui nesciebant
ultrum ecclesie Romane na hereticis deberent adherere, ad catholicam fidem Romane ecclesie per
predicationes fratrum predicatorum ex corde sunt conversi. Et hoc scit quia illi conversi hereticos, quos
primo defendebant modo persecuuntur et abhominantur”.
422
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 158-159: “[...] Et fere omnes civitates Lombardie et Marchie
facta sua et statuta ordinanda et mutanda ad voluntatem fratrum tradunt in manibus eorum, ut radant, addant,
184
minuant et mutent, secundum quod eis visum fuerit expedire. Et hoc etiam faciunt de guerris extirpandis et
pacibus faciendes et componendis inter eos. Et de usuris et male ablatis reddendis et confessionibus audientis
et multis aliis bonis, que longum esset enarrare”.
423
AUVRAY, Lucien. Les Registres de Gregoire IX. Recueil de bulles de ces pape d’après les manuscrits
originaux du Vatican. Paris : Librairie Thorin et Fils, 1896. Reg. nº 1270, p. 714: “Fratrem Johannem, de
ordine Praedicatorum, Bononiae commorantem, rogat at legationem assumat pro pace facienda inter
Florentines et Senenses”. Deste ponto em diante a referência aos Registros do papa Gregório IX na edição de
Lucien Auvray será feita apenas como AUVRAY, seguida pela identificação do número do registro e da
página em que se encontra, além da transcrição correspondente (entre aspas) quando for o caso.
424
AUVRAY, Reg. nº 1268, p. 714: “Potestatem et populum Bononienses rogat et hortatur quatenus, si frater
Johannes, de ordine Praedicatorum, Senensem et Fiorentinam civitates, diabolica tentatione in tumultum
versas, personaliter visitare decreverit ad occurrendum tantae cladi, nullus cum impediat”.
185
dominicano, atuando para forçarem as pessoas condenadas por ele a cumprirem a prisão,
ou a aceitarem as sentenças de excomunhão e de interdito.425
Em 28 de junho de 1233, o pontífice romano enviou novo mandato aos arcebispos,
bispos e demais prelados eclesiásticos, passando poderes para que João de Vicenza
pudesse libertar da prisão qualquer pessoa a quem ele concedesse indulto espiritual, além
de ordenar que os referidos prelados redigissem sentença de excomunhão para qualquer
pessoa que fosse presa pela vontade do pregador dominicano.426
Neste mesmo dia o papa Gregório IX direcionou uma epístola-mandato para João
de Vicenza, comandando que ele fosse pessoalmente à região da Toscana e que lá
procedesse da mesma forma como atuara em Firenze e Siena, ou seja, que providenciasse a
prisão e a tribulação de todos os que estivessem causando confusão naquela área.427
As epístolas papais de junho de 1233 apontam a mobilização do papado em relação
aos conflitos das cidades centro-setentrionais da Península Itálica e a utilização de João de
Vicenza como legado pontifício. Tais documentos registram que o referido papa concedeu
ao frade dominicano o poder de prender e de soltar quem ele quisesse, além de proferir
sentenças de excomunhão e de interdito, que deveriam ser ratificadas pelos prelados locais.
Tudo isto ocorrendo no mês anterior à abertura do processo de canonização de Domingos
de Gusmão.
Em agosto deste mesmo ano continuaram as correspondências e as orientações do
pontífice romano para o pregador dominicano. No dia 05 deste mês Gregório IX escreveu
uma epístola orientando João de Vicenza sobre como alterar os estatutos comunais,
retirando os dispositivos que fossem contrários à libertas ecclesiae e excomungando os
responsáveis pela sua inserção nas legislações citadinas. Ao contrário, o papa também
orientou o frade a ser benevolente com aqueles que, por meio do uso da força,
425
AUVRAY, Reg. nº 1435, p. 801: “Archiepiscopis, episcopis et aliis ecclesiarum praelatis ad quos litterae
istae pervenerint, mandat quatenus omnes qui fratrem Johannem [Vicentinum], ordinis Praedicatorum, ultra
suae voluntatis arbitrium praesumpserint detinere, per excommunicationis et interdicti sententias
compescant”.
426
AUVRAY, Reg. nº 1437, p. 802: “Universis praesentes litteras inspecturis mandat quatenus fratrem
Johannem (Vicentinum), ordinis Praedicatorum, quocumque illi suggesserit spiritus indultae sibi libertatis,
super eodem negotio permittant libere procedere; noverint ipsum papam archiepiscopis, episcopis et aliis
praelatis mandasse quatenus in omnes qui eumdem fratrem ultra suae voluntatis arbitrium praesumpserint
detinere, excommunicationis ferant sententiam”.
427
AUVRAY, Reg. nº 1436, p. 801: “Fratri Johanni [Vicentino], de ordine Praedicatorum, mandat quatenus,
tribulationes et suspiria captivorum attendens, qui de Florentina et Senensi civitatibus in augusto carcere
detinebantur, ad partes Tusciae veniens personaliter eorum miseriae provideat”.
186
428
AUVRAY, Reg. nº 1487, p. 823: “Johanni Vicentino, ordinis Praedicatorum, concedit ut illis qui pro
statutis editis vel consuetudinibus introductis contra ecclesiasticam libertatem, excommunicationem
incurrerint, recepta ab eis cautione quod statuta et consuetudines hujusmodi aboleant, et eis etiam qui pro
injectione manuum violenta in canonem inciderint sententiae promulgatae, absolutionis benefîcium
impertiatur”.
429
AUVRAY, Reg. nº 1436, p. 801: “Fratri Johanni de Vicentia, ordinis Praedicatorum, committit ut
Milantio, militi Bononiensi, beneficium absolutionis impendat, injuncto eidem Milantio quod, civibus
Viterbiensibus super quibus in eis tenebatur, satisfacto, in primo generali passagio per Sedem Apostolicam
praefigendo, iter arripiat eundi in subsidium Terrae Sanctae, per biennium vel triennium moraturus ibidem”.
430
AUVRAY, Reg. nº 1515, p. 839: “Fratrem Johannem Vicentinum, de ordine fratrum Praedicatorum, ad
patienter ferendas adversariorum injurias invitat, eique significat se Vicentino episcopo mandasse ut de eis
quae commissa sint, diligenter inquirat, ut, ipsius relatione instructus, ipse papa contra eosdem adversarios
procedat”.
187
Vicenza. No dia 17 deste mês o pontífice romano escreveu uma epístola aos bispos de
Feltre e de Treviso e a um doutor em teologia de Milão, solicitando que eles atuassem em
uma missão de paz no conflito surgido entre o podestà e o populus de Padova. Afirma que
o referido frade dominicano já estava atuando como árbitro daquele confronto e que
produziria uma sentença arbitral, caso eles não chegassem a um acordo.431 Se o frade João
já estava à frente daquela arbitragem, por que convocar dois bispos e um teólogo para
somar forças e atuar em uma solução final? A autoridade conferida a João de Vicenza não
era mais suficiente?
Uma leitura comparada das duas últimas epístolas papais aponta para um
esvaziamento do poder exercido por aquele frade dominicano. Se nas cartas de junho e
agosto tudo parece correr bem com as missões direcionadas a ele, o mesmo não se observa
nas correspondências de setembro e de dezembro de 1233. O que teria ocorrido para esta
mudança de cenário? No ano de 1234, o registro pontifício não aponta mais nenhuma carta
para o frade dominicano ou sobre ele.
Apesar dos documentos papais não apresentarem uma resposta clara para esta
questão, tudo indica um desgaste da autoridade de João de Vicenza naqueles meses finais
de 1233. Primeiro porque o pontífice romano não parece ter apoiado decididamente o frade
dominicano quando ele enfrentou a resistência de um bispo, ao contrário, apenas o
convidou a ser paciente e a tirar lições daquela situação. Depois, quando Gregório IX
convocou dois bispos e um teólogo para interferirem em uma arbitragem que já estava sob
o comando daquele pregador. Por que Gregório IX não redigiu uma epístola-mandato
ordenando todos os seus subordinados a ratificarem o poder do frade João, tal como ele fez
em junho daquele ano?432
Não se sabe a razão, mas o fato é que o pontífice romano também contribuiu para o
esvaziamento do poder exercido por João de Vicenza naqueles meses finais de 1233.
Talvez o frade dominicano já tivesse cumprido com as tarefas principais que lhe foram
431
AUVRAY, Reg. nº 1620, p. 894: “Felitrensi (= Feltrensi) et Tervisino episcopis, et Alberico de Opreno,
doctori theologiae, Mediolanensis dioecesis, mandat quatenus, — cum inter potestatem et populum
Paduanos, quosdam homines Coneglanenses ac nobiles viros B. et W. de Camino, Cenetensis dioecesis, ex
parte una, et cives Tervisinos ac nobiles viros E. et A. de Romania, Tervisinae dioecesis, ex altera, super
pluribus articulis quaestio verteretur, et frater Johannes, de ordine Praedicatorum, in quem fuerat
compromissum, tulisset arbitrium in quo praedicti Paduani et pars eorum reputabant se esse gravatos, — ad
pacem interponant vices suas, et, si forte provenire non potuerit, quod super hoc invenerint ipsi papae
rescribant”.
432
Cf., infra, p. 184 e 185 [Notas 425 e 426].
188
direcionadas, talvez as resistências que ele passou a enfrentar já não fizessem dele um
representante a altura das demandas do papado. É como se todo aquele prestígio e poder
adquirido no âmbito da magna devotio, movimento do qual ele foi um dos principais
líderes religiosos, tivessem se esvaído de um momento para o outro. Vale ressaltar que
neste período final de 1233 já tinham ocorrido a translatio corporis de Domingos e o
inquérito na cidade de Bolonha, que estaria então na fase de avaliação da cúria romana.
Teria o frade João perdido a sua serventia?
433
VAUCHEZ, André. O Santo. In: LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Lisboa: Presença, 1989.
p. 211-230, p. 224: “[...] a tal ponto os fiéis estavam convencidos de que tinham esse direito e de que davam
provas de piedade, não abandonando à sua sorte as relíquias dos santos que, para eles, [não] eram objeto de
uma veneração adequada”.
189
naquele século a translatio corporis era um ato posterior ao anúncio da canonização pela
Igreja romana. No caso do antigo líder dos dominicanos a cerimônia de trasladação foi
realizada antes mesmo da abertura de um processo de canonização em Roma e com a
autorização expressa do pontífice Gregório IX.434 O que aponta inquestionavelmente o
interesse e o envolvimento do papado na realização daquele evento, ao ponto de autorizar
uma inversão dos procedimentos de reconhecimento oficial de uma santidade.
Pouco tempo antes da trasladação do corpo de Domingos, os trabalhos de
construção de uma nova igreja e de outras edificações do convento de San Nicolò delle
Vigne ainda estavam em andamento. Tanto é assim que os ossos do antigo mestre geral
dominicano foram colocados em uma caixa de madeira e fechados em um sarcófago de
mármore, que foi alocado no chão de uma capela lateral daquela igreja. Mas em 24 de
maio de 1233, no segundo dia do evento, a nova igreja já estava pronta, pelo menos no
acabamento rústico, para acolher as autoridades e o público que foram participar da
cerimônia de trasladação, restando apenas concluir as demais obras no convento, o que
ainda despertava preocupação naquela comunidade dominicana por conta de problemas
financeiros gerados por aquele programa de construções e de reformas.435
Os procedimentos da referida translatio corporis foram iniciados na noite do dia 23
de maio, no convento de San Nicolò, em Bolonha. Naquele dia foi feita a exumação do
corpo de Domingos de Gusmão. Tal ato ocorreu à noite por conta de uma decisão dos
frades dominicanos que, levando em consideração o tempo de sepultamento e a condição
daquele sepulcro, temiam que o estado de conservação do corpo de Domingos pudesse
causar alguma aversão ao público. Mas não puderam realizar este procedimento sem a
presença do podestà bolonhês e de um seleto grupo de cidadãos e de autoridades
eclesiásticas, pois o dirigente comunal era uma das pessoas que tinha a chave para abrir a
arca onde estava o corpo do primeiro mestre geral dos dominicanos e não permitiu que tal
ato ocorresse secretamente (apenas na presença dos frades).436
434
PACIOCCO, Roberto. Canonizzazioni e culto dei santi nella christianitas (1198-1302). Assisi: Ed.
Porziuncola, 2006. p. 72-73.
435
BORGHI, Beatrice. Una ciudad, un santo, una orden: Bolonia, Domingo de Caleruega y la Orden de los
Frailes Predicadores. Entre la vocación al estudio y la custodia de las sagradas prendas. Medievalismo,
Madrid, v. 25, p. 13-54, 2015. p. 23 e 24.
436
KERBRAT, Pierre. Corps des saints et contrôle civique à Bologne du XIIIe siècle au début du XVIe
siècle. In: COLLOQUE “LA RELIGION CIVIQUE À L’ÉPOQUE MÉDIÉVALE ET MODERNE
(CHRÉTIENTÉ ET ISLAM)”, 1993, Nanterre. Actes... Rome: École Française de Rome, 1995. p. 165-185.
p. 169 e 170; MONTANARI, Elio. Litterae encyclicae annis 1233 et 1234 datae. Spoleto: Centro italiano
190
439
JORDÃO DA SAXÔNIA. Litterae Encyclicae anno 1234. In: MONTANARI, Elio. Litterae Encyclicae
annis 1233 et 1234 datae. Spoleto: Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, 1993. p. 257: “Crescente
denique fratrum numero apud Bononiam necesse erat domos et ecclesiam dilatari. Novis succedentibus
vetera diruuntur et corpus Dei famuli sub divo remansit. Quis rationis capax dignum aestimaret, puritatis
speculum, castitatis vasculum, virginitatis sacrarium, sancti spiritus organum, sic humili tectum loculo
permanere, qui tota vita sua, ut eius ultima XII astantibus fratribus confessio declaravit, mortalis culpae
macula ipsum dulcem animae hospitem numquam a suae animae hospitio eiecit?”. Deste ponto em diante a
referência à carta encíclica de Jordão da Saxônia na edição de Elio Montanari será feita apenas como Litterae
Encyclicae anno 1234, seguida da identificação da página e da transcrição correspondente (entre aspas),
quando for o caso.
440
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 136: “Et dixit quod prior provincialis et fratres ecclesie sancti
Nicholai timebant ne fetor esset in sepultura ubi iacebat corpus, ideo quia locus erat valde depressus, et aque
multe pluviales defluxerant ad locum sepulture”.
192
frades de Bolonha por terem tratado a sepultura de Domingos com tanta negligência.441
Mas não se pode deixar de observar que o fato daquela sepultura ficar exposta da
forma mencionada era apenas uma consequência do avanço do programa de reformas e
construções que se realizava naquela comunidade dominicana desde 1221 e que, em 1228,
passou para a fase de construção de uma nova igreja. Esta nova etapa do empreendimento
permitiria justamente estabelecer um novo local para a sepultura de Domingos de Gusmão,
em uma igreja que foi construída e renomeada em homenagem ao seu culto, substituindo a
antiga igreja de San Nicolò delle Vigne.
Ao consultar documentos antigos do convento de San Nicolò, reunidos e editados
por Venturino Alce, é possível identificar a presença de dois diplomas diretamente
relacionados com as reformas e as construções que estavam em desenvolvimento naquela
comunidade dominicana. Um deles foi redigido por Guiffredo, cardeal de San Marco e
legado da Santa Sede, em setembro de 1228. Nele o referido legado pontifício concedeu
quarenta (40) dias de indulgência a todos aqueles que dessem esmolas para a construção da
igreja e do claustro de San Nicolò, além de absolver todos aqueles que estivessem em
débito com credores desconhecidos e que revertessem o valor devido em favor da referida
obra dominicana.442
No outro diploma, também datado de 1228, o arcebispo de Salzburg concedia ao
prior e aos frades do convento de San Nicolò a faculdade para absolver todos aqueles
cidadãos, de Bolonha e de Siena, que tivessem se envolvido na atividade de usura, desde
que eles revertessem a soma arrecadada com aquela atividade para a construção da igreja e
441
Litterae Encyclicae anno 1234, op. cit. p. 258: “Ille vero, ut erat vir magni zeli et fidei, durissime eos
corripuit, qui tanto patri debito honore neglexerant famulari”.
442
ALCE, Venturino. Documenti sul Convento di San Domenico in Bolonha dal 1221 al 1251. In: Archivum
Fratrum Praedicatorum, Volumen XLII. Roma: Istituto Storico Domenicano di S. Sabina, 1972. p. 5-45. p.
16: “Guiffredus, miseratione divina tituli Sancti Marti presbiter cardinalis, Apostolice Sedis Legatus,
omnibus christifidelibus per Bononiensem diocesim constitutis, salutem in Domino. [...] Cum igitur ad
edificationem fabrice ecclesie et claustri Beati Nicolai ordinis fratrum Predicatorum Bononiensis nulle sint
penitus nisi quod caritative sibi erogatur a christifidelibus facultates, universitatem vestram rogandam
duximus attentius et hortandam et in remissionem vobis iniungimus peccatorum, quantinus locum ipsium
frequentius visitantes, pias ibidem elemosinas et grata caritatis subsidia erogetis, ut per subventionem
vestram tam pium opus ad finem laudabiliter perducatur, et vos orationum et beneficiorum que ibi iugiter
fiunt effecti participes per hec et alia bona que Domino inspirante feciritis, sempiternum mereamini premium
optinere. Nos enim ad subsidium huius operis pietatis ita ex iniuncto nobis officio duximus providentum, ut
quicumque detinens aliena ea dederit ad hoc opus, ab huiusmodi peccati mole sit penitus absolutus,
dummodo nesciat cui persone ea reddere teneatur”. Deste ponto em diante a referência aos documentos do
convento dominicano de Bolonha, na edição de Venturino Alce, será feita apenas como Documenti sul
Convento, seguida da identificação da página e da transcrição correspondente (entre aspas), quando for o
caso.
193
para as demais necessidades daquela comunidade dominicana.443 Porque estes dois prelados
estavam atuando para aportar recursos para os dominicanos de Bolonha? Que tipo de
ligação eles teriam com aquela comunidade?
Algumas coincidências chamam a atenção para estes dois casos. Ambos os
diplomas foram emitidos por integrantes da alta hierarquia eclesiástica (um cardeal e um
arcebispo), que não atuavam na cidade de Bolonha, mas eram legados da Sede Apostólica.
Ou seja, ambos os prelados, naquele período da emissão dos diplomas, atuavam como
representantes do papa Gregório IX, que tinha ascendido ao sólio pontifício acerca de um
ano, e que tinha atuado anteriormente também como legado papal (para a Lombardia),
quando manteve estreito contato com a cidade de Bolonha e com os dominicanos (desde a
época em que Domingos ainda estava vivo). Teria sido uma forma indireta encontrada pelo
papado para beneficiar aquela comunidade e contribuir com aquele programa de reformas?
Partindo dos documentos aqui explorados não é possível garantir que sim, nem que
não. Mas não seria nenhuma novidade naquele período uma ajuda proveniente do papa
Gregório IX, ainda mais sendo para aquele empreendimento da igreja, que seria uma nova
“moradia” para o sepulcro de Domingos de Gusmão e que se tornaria o centro de seu culto
em Bolonha. De qualquer forma, os diplomas anteriormente citados dão mais provas de
que aquela comunidade dominicana, no período anterior a translatio corporis de
Domingos, estava de fato empenhada em seu processo de ampliação imobiliária, fosse qual
fosse a razão daquele empreendimento.
Tomando como base a carta encíclica de Jordão aquelas construções seriam uma
consequência do próprio crescimento da comunidade de Bolonha,444 tornando necessário
ampliar os edifícios para melhor acolher os frades e os visitantes. Mas não seria este um
bom motivo para mobilizar os aliados e alavancar a causa de canonização de Domingos de
Gusmão? O estabelecimento oficial de um culto ao fundador naquela nova igreja não seria
443
Documenti sul Convento, op. cit., p. 17: “E(berardus), Dei gratia Salburgensis archiepiscopus Apostolice
Sedis legatus, dilectis in Christo fratribus priori et conventui fratrum Predicatorum domus Bononiensis,
salutem in auctore salutis. Cum vos et ordinem semper hactenus speciali dileximus vinculo karitatis, non
immerito petitionem nobis ex parte vestra porrectam duximus liberaliter addmitendam. Concedimus igitur
vobis potestatem ut vice et auctoritate nostra possitis absolvere omnes creditores sive Bononienses sive
Senenses qui a vobis aliquam pecuniam nomine mutui per parvitatem usurarum extorserunt, dummodo ipsi,
penitentia volontaria ducti, eandem pecuniam vel partem ipsius restituant ad fabricam ecclesie domus vestre
seu ad alias necessitates aut etiam utilitates domus eiusdem et ut eisdem de predicto secumdum discretionem
a Domino vobis datam iniungatis penitentiam competentem”.
444
Cf., infra, p. 191 [Nota 439].
194
uma forma de arcar com os gastos daqueles seguidos anos de ampliação imobiliária da
comunidade de San Nicolò?
Talvez aqueles frades de Bolonha que resistiam ao estabelecimento de uma
devoção ao fundador naquela comunidade dominicana, e que foram alvo das severas
críticas de Jordão da Saxônia,445 estivessem justamente observando a articulação entre estes
dois empreendimentos e se posicionando contrariamente ao seu avanço: as construções
imobiliárias ocorrendo paralelamente à oficialização de uma santidade para Domingos.
Mas se existia um grupo contrário ao estabelecimento de um culto para o fundador
dos dominicanos, foi mais forte o movimento em favor da canonização, o que acabou
ocorrendo em julho de 1234. E tudo indica que diversos dirigentes e frades da Ordem dos
Pregadores estiveram diretamente envolvidos nas iniciativas que foram tomadas no ano de
1233, como na trasladação ocorrida neste ano.
Segundo Jordão da Saxônia, diante daquela situação a que ficou exposto o sepulcro
de Domingos, alguns frades resolveram se organizar para viabilizar uma trasladação do seu
corpo para outro local, mas não quiseram fazer isso sem consultar o papa Gregório IX. O
que não deixa de causar uma surpresa no próprio Jordão, pois eles poderiam muito bem
proceder sem consultar o pontífice romano.446 Então, por que a consulta ao papa? O mais
provável é que a translatio corporis fosse mais uma iniciativa para sustentar uma causa de
canonização em Roma, daí a conversa com o titular da sede romana.
Mas em seu texto Jordão da Saxônia não identifica nenhum destes frades que
teriam ido a Roma conversar com o papa sobre aquele assunto, nem mesmo assume
qualquer responsabilidade naquela decisão. Ao contrário do mestre geral, o prior provincial
da Lombardia (frade Estevão), em seu testemunho no âmbito do inquérito de Bolonha,
declarou abertamente ter sido o responsável por aquele movimento dos frades bolonheses,
que ocorreu paralelamente às pregações de João de Vicenza sobre a vida, o comportamento
e os milagres de Domingos.447 Ou seja, enquanto um frade dominicano se dedicava a
445
Cf., infra, p. 191 [Nota 439].
446
Litterae Encyclicae anno 1234, op. cit., p. 257: “Ad cor igitur quidam e fratribus reversi conferebant intra
se, ut ad locum decentiorem transferretur, sed nec hoc absque Romani pontificis licentia fieri volebant. Vere
in multis perpenditur humilitatis virtutem exaltationem mereri. Poterant siquidem per se patrem sepelire
fratres et filii, sed dum in hoc maioris auctoritatem requirunt, cessit in melius, ut nom solum simplex sed et
canonica fieret translatio gloriosi”.
447
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 158: “Interrogatus quare hoc credit, respondit quod ab illo
tempore, postquam frater Iohannes Vincentinus cepit predicare revelationem sibi de fratre Dominico
divinitus factam et vitam et conversationem et ipsius sanctitatem populo nunciare, et ipse testis cum aliquibus
195
propagar uma fama de santidade para o antigo mestre geral da Ordem, outro grupo,
liderado pelo frade Estevão, tratou de dar andamento aos preparativos para a trasladação do
corpo no convento de San Nicolò, indo a Roma conversar diretamente com o papa
Gregório IX. Não parece que estas iniciativas fossem dissociadas uma da outra, mas sim
que eram parte de um planejamento para alavancar um culto na cidade de Bolonha.
Naquele contexto histórico ser prior provincial da Lombardia era o segundo posto
mais importante na hierarquia da Ordem dos Pregadores, ficando abaixo apenas do mestre
geral da Ordem. Pois se tratava de uma província italiana bastante valorizada também nos
movimentos do papado e do império, sendo assim um lugar estratégico para a organização
e para as missões dominicanas. Mas vale ressaltar que o frade Estevão, ocupante deste
cargo naquele período, não parecia fazer parte do círculo dominicano mais próximo de
Jordão da Saxônia. Ao contrário de ser um aliado, ele deveria mesmo ser um concorrente
de Jordão nas relações de poder vivenciadas naquela ordem religiosa.
Nas cartas escritas pelo referido mestre geral dos dominicanos aparecem alguns
indícios desta concorrência de poder. No verão de 1229, Jordão da Saxônia escreveu uma
epístola para a religiosa Diana de Andalò, tentando acalmá-la diante de uma decisão
tomada no capítulo geral da Ordem e que teria consequências diretas para as irmãs do
convento de Santa Inês (onde ela vivia), que estava submetido ao controle da Ordem dos
Pregadores. As palavras do mestre geral apontam o desespero daquela religiosa com a
possibilidade de que elas ficassem impedidas de receber novas freiras naquele convento, ao
que Jordão qualifica como uma preocupação descabida, garantindo que aquele dispositivo
capitular não teria sido feito para interferir na comunidade de Santa Inês.448
Mas, afinal de contas, se o dispositivo capitular não tinha mirado aquela
comunidade, por que o desespero de Diana? O que ou quem teria provocado a sua
preocupação e a correspondência enviada por ela para o mestre geral? Outra carta enviada
pelo dirigente da Ordem, desta vez para o prior provincial da Lombardia, ajuda a esclarecer
tais questões. Nela Jordão da Saxônia identifica o frade Estevão como a origem daquela
interpretação que causou desespero em Diana de Andalò, aproveitando a oportunidade para
esclarecer o seu subordinado sobre a real intenção daquele dispositivo capitular, que teria
sido votado por conta da realidade vivida em algumas comunidades da Teotônia.449
Além de instruir o prior provincial sobre aquele assunto, Jordão também direcionou
palavras duras para o seu comportamento, deixando claro que ao agir daquela forma, ele
estava questionando as atribuições e os poderes conferidos ao mestre geral da Ordem, algo
que não caberia a ele fazer. Nesta repreensão, o mestre geral chamou Estevão de inseguro e
o conclamou a ser mais firme em suas ideias e ações, ao invés de ficar constantemente
mudando de parecer sobre as questões da Ordem.450
Apesar da forte reação de Jordão da Saxônia, aquela situação que causou
preocupação e desespero na religiosa Diana de Andalò voltou a ocorrer em 1234. Em uma
449
Beati Iordani de Saxonia Epistolae, op. cit., p. 55-56: “Quia ad sonitum folii vestram ad praesens
conscientiam intueor expavisse, dum constitutionem illam, qua mulieres tonderi, indui vel ad professionem
recipi fratribus prohibetur, in praeiudicium sororum Sanctae Agnetis creditis esse factam, credentes
quorumdam spiritui, qui in hac parte ex Deo non sunt, et vobismetipsis suscitantes inutilem quaestionem.
Nec enim unquam in aliquorum definitorum conscientiam hoc ascendit, nisi propter eos dumtaxat fratres, qui
in aliquibus provinciis velut in Teutonia et etiam alias, dum in praedicatione exirent, meretrices aut
iuvenculas virgines sive converti volentes ad paenitentiam, sive ad votum se continentiae offerentes, facile
tondere, induere vel ad professionem recipere consueverunt. Ego enim, cum facta et institutiones et
intentiones instituentium omnium capitulorum plene cognoverim, scio, quod, cum praedicta institutio facta
fuit, nec verbum nec intentio de sororibus ordinis ulla fuit. Id enim esset eas a nobis quasi penitus
sequestrare”.
450
Beati Iordani de Saxonia Epistolae, op. cit., p. 56: “Esto tamen, quod tale quid instituere volebamus.
Numquid potuimus? Minime. Nam in papae praeiudicium fecissemus, cuius praecepto eis sumus tamquam et
aliis fratribus ordinis obligati. De hoc igitur nullum iam vobis ambiguum oriatur, quia non expedit, de hoc
mentionem apud alios faciendo in dubium istud trahi, quod possit secure et absque ulla ambiguitate teneri. In
aliis vero, si alicui forte videbitur, quod in iis, quae ordini attinerent, dispensare non valeamus, idem mihi
sentire videtur, ac si ordinis mihi commissum magisterium non haberem. Nihil siquidem tam grave in
constitutionibus continetur cuius mihi dispensatio credita non exsistat pro necessitate personarum, loci ac
temporis, prout mihi videbitur, tribus illis articulis dumtaxat exceptis, qui in praeterito Parisiensi capitulo
fuerant adeo firmiter stabiliti, ut nec revocari possint nec dispensationem admittere, quos etiam volebamus
tunc vobis per curiam confirmari. Cetera universa meae dispensationi commissa non dubito, velut est de
equitando, de portanda in via pecunia et ceteris similibus aut dissimilibus, sive grandia sive parva fuerint.
Alias enim quanam conscientia praesumere id auderem, quod minime accepissem? Nihil adhuc in hac parte
Dei gratia conscius mihi sum, quin in omnibus securissime dispensare potuerim, in quibus hactenus
dispensavi. Ea propter, carissime, in hoc conscientiae omnem meticulositatem abicite, immo de cetero tanto
solidiores addiscere nunc potestis, quod securum non est pro varietate semper verborum quorumlibet, quae
audivimus toties conscientiam variari. Sorores etiam Sanctae Agnetis ad omnimodam de suo metu
securitatem reducite. Sed in pace in nomine Domini perseverent, nam in hoc articulo nihil eis poterit
deperire”.
197
epístola enviada em julho deste ano, o mestre geral dos Pregadores explicou a Diana que
não pôde comparecer ao capítulo geral da Ordem, na ocasião em que os definidores
tomaram uma decisão prejudicial àquela comunidade de Santa Inês, mas trata de acalmá-la
dizendo que ele mesmo já tinha anulado aquela decisão capitular.451 Na mesma carta o
mestre geral faz uma referência ao prior provincial, dizendo que já tinha escrito para ele,
solicitando que não deixasse de escutar o prior Nicolau, alguém que Jordão considerava
muito importante para a Ordem e que estava a par de um problema envolvendo uma
noviça.452 No documento, o mestre geral deu a entender que Estevão estava atuando
naquele assunto.
Embora Jordão não tenha relacionado diretamente o frade Estevão com esta nova
situação capitular, o fato é que o mestre geral não pôde comparecer àquela reunião de 1234
e que, justamente em sua ausência, voltaram a avançar contra a comunidade de Santa Inês,
que ele prontamente tratou de proteger. Tudo indica que a relação estabelecida com Diana
de Andalò fez daquele mestre geral um atento protetor do convento de Santa Inês, até
como retribuição a tudo que essa religiosa tinha feito pela comunidade dominicana de San
Nicolò. Já a repetição do problema, que tinha ocorrido em 1229, mostra que Jordão da
Saxônia continuava tendo adversários no âmbito da Ordem dos Pregadores, no mesmo ano
e mês que Domingos de Gusmão foi canonizado.
Estevão, que continuava como prior provincial da Lombardia no ano de 1234, era
certamente um dos líderes que poderia ter agido naquele capítulo geral, contrariamente aos
interesses de Jordão. Vale lembrar que aquele frade dominicano atuou também como
legado papal no ano de 1233, procedendo com reformas em mosteiros cistercienses a
pedido do papa Gregório IX,453 no mesmo período em que foi realizada a translatio
corporis de Domingos de Gusmão em Bolonha. De forma que se pode afirmar que o prior
451
Beati Iordani de Saxonia Epistolae, op. cit., p. 53: “Postquam a Lombardia recessi et iam usque
Tridentum ad capitulum iturus processeram, ibidem coepi gravius infirmari, et sic impeditus sum usque ad
capitulum generale. Unde etiam, quoniam ibidem praesen non aderam, definitores, qui de statu domus
Sanctae Agnetis parum cognoverant, quiddam ordinaverunt vobis non utile. Quod, dum ego postmodum
intellexi videns, quod non bene factum esset, penitus retractavi”.
452
Beati Iordani de Saxonia Epistolae, op. cit., p. 53-54: “Ceterum de praesenti statu meo hoc noveris, quod
multum sum iterum emendatus in corpore, et celebro et praedico tam clero quam populo, licet pristinam
fortitudinem adhuc recuperare non possim. Quod priori provinciali scripsi nuper, ostendens in litteris gratum
me habere, si fratrem Nicolaum priorem exaudiret pro puella illa, tibi non sit grave, quia ipse frater Nicolaus
satis anxiabatur et multum mihi institit et nimis grave mihi videbatur, si non exaudiretur talis homo, quem ita
diligimus et qui tam necessarius est ordini nostro. Unde adhuc moneo te, ut in bona voluntate istud accipias”.
453
Cf., infra, p. 117 [Nota 267].
198
provincial da Lombardia não era apenas um integrante da Ordem dos Pregadores naquele
evento da trasladação, era também um representante do pontífice romano.
A principal autoridade da Igreja romana naquele contexto histórico aparece nos
documentos explorados nesta tese de doutorado de forma vinculada à trasladação do corpo
de Domingos de Gusmão. Segundo Jordão da Saxônia, os frades de Bolonha se
organizaram e foram consultar Gregório IX antes da realização da translatio corporis, e o
papa mobilizou o arcebispo de Ravenna (e seus bispos sufragâneos) para conduzir aquela
solenidade em seu nome.454
De acordo com o testemunho do frade Estevão, ele mesmo foi o responsável por
esta mobilização inicial dos frades de San Nicolò.455 Já os registros pontifícios do ano de
1233 apontam para a atuação deste prior provincial da Lombardia como legado papal nos
meses de abril e maio daquele ano,456 ou seja, na véspera da realização daquele evento no
convento dominicano. A partir do cruzamento destas informações é possível apontar o
papado como a força que movimentou as instituições e as pessoas para a realização
daquela cerimônia solene e religiosa que estabeleceu oficialmente um local de devoção
para o antigo líder dos Frades Pregadores.
E quanto a Jordão da Saxônia, qual seria a sua participação no referido evento? A
exibição da cabeça de Domingos de Gusmão diante de autoridades diversas e de centenas
de frades dominicanos, oito dias após a realização daquela translatio corporis, coloca o
mestre geral da Ordem dos Frades Pregadores em uma posição de destaque naquele evento.
Tal fato foi inclusive relatado nos testemunhos dos frades Ventura457 e Bonviso,458 no
âmbito do inquérito realizado na cidade de Bolonha como parte do processo de
canonização do primeiro mestre da Ordem.
Ao comparar e cruzar as informações presentes nos documentos explorados nesta
454
Cf., infra, p. 148 [Nota 336].
455
Cf., infra, p. 176 [Nota 406].
456
Cf., infra, p. 117 [Nota 267].
457
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 131-132: “Idem sepulcrum quod in octava die apertum fuit,
presente potestate Bononiensi et multis aliis civibus et magistro Iordane et priore provincial et multis aliis
prioribus et fratribus ordinis presentibus et tunc magistro Iordane tenente in manibus suis caput dicti fratris
beati Dominici quase trecenti fratres de ordine predicatorum et ultra osculati fuerunt caput”.
458
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 141: “Idem dixit, quod post translationem corporis beati
fratris Dominici de priori loco in quo iacebat, ad locum in quo nunc est, a magistro ordinis ostensa fuerunt
ossa dicti magistri ordinis fratribus, qui non interfuerant translationi, quia multum illa desiderabant videre. Et
ipse testis fuit tum presens, quando dicta ossa ostensa fuerunt presente potestate Bononiensi, et allis
quibusdam civibus, et priore provinciali, et aliis omnibus fratribus”.
199
tese, Jordão da Saxônia não aparece como sendo o responsável por idealizar aquele evento,
ou coordenar as pessoas diretamente envolvidas na sua preparação. Ele mesmo em seus
escritos não assume nenhuma responsabilidade sobre a realização daquela translatio
corporis. Levando em consideração a personalidade traçada nas cartas enviadas ao longo
do período em que esteve à frente da Ordem dos Pregadores e a tendência a reafirmar a sua
própria autoridade nestas correspondências, tal como foi feito nas epístolas direcionadas a
Diana de Andalò459 e a ao prior provincial Estevão,460 seria difícil acreditar que ele não
assumiria tal responsabilidade por uma questão de humildade. O seu protagonismo na
reabertura do sepulcro de Domingos e na exibição do seu crânio como uma relíquia de
santidade também reforça esta interpretação.
Portanto, tomando como base o cruzamento de informações e a análise aqui
realizada, é possível afirmar que Jordão da Saxônia não foi o idealizador da translatio
corporis realizada em maio de 1233, tampouco foi ele a força que mobilizou tantas
autoridades e pessoas a tomarem iniciativas favoráveis àquele evento religioso. Mas não se
pode dizer que ele tenha assistido a tudo passivamente, que não tenha tomado nenhuma
iniciativa. A posição de liderança que ele exerceu naquela reabertura do sepulcro e na
exibição da relíquia de Domingos a um público diverso, demonstra que o mestre geral dos
Frades Pregadores não queria ser colocado de lado naquele projeto/empreendimento
coletivo de santidade. Assim sendo, tudo indica que ele queria também aproveitar aquela
ocasião para reafirmar a sua autoridade à frente da Ordem Dominicana, por isso lançou
mão daquele procedimento canonicamente proibido.
459
Cf., infra, p. 195 [Nota 448].
460
Cf., infra, p. 196 [Notas 449 e 450].
461
TEIXEIRA, Igor Salomão. Os processos de canonização como fontes para a História Social. Revista
Signum, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 131-150, 2013. p. 145.
200
462
GOODICH, Michael. The politics of canonization in the thirteenth century: lay and mendicant saints. In:
WILSON, Stephen (Ed.). Saints and Their Cults: Studies in Religious Sociology, Folklore and History.
Cambridge: University Press, 1983. p. 169-187. p. 172.
463
MATZ, Jean-Michel. Contrôle et discipline du culte des saints au moyen âge. In: LE GUERN, Philippe
(dir.). Les cultes médiatiques: Culture fan et oeuvres cultes. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2002.
p. 46. Disponível na internet: http://books.openedition.org/pur/24168, acessado em maio de 2016.
464
Ibid., p. 46-47.
201
465
GOODICH, op. cit., p. 179.
466
“Item dixit”; “Interrogatus quomodo”; “Respondit”; “Et sicut credit”; “ Et ipse testis”; são expressões que
aparecem reiteradamente ao longo dos testemunhos reproduzidos nas atas de Bolonha. Cf.: Acta
Canonizationis S. Dominici, op. cit.
467
Neste ponto concordo com a proposição de Igor S. Teixeira de que os processos de canonização podem
ser entendidos como uma prática inquisitorial e que, provavelmente, os manuais que orientavam o trabalho
dos inquisidores no combate às heresias eram os mesmos a guiar a prática dos comissários que atuavam nas
causas de canonização, pela falta de manuais específicos para esta finalidade. Cf.: TEIXEIRA, Igor Salomão.
A Pesquisa em História Medieval: relatos hagiográficos e processos de canonização. Aedos, Porto Alegre, v.
2, n. 2, 2009.
202
empreendimento não deixa de causar alguma surpresa. Pois algum tempo antes elas
estavam se confrontando em questões e disputas abertas que envolviam os seus direitos de
organização, de jurisdição e de propriedade. Por que estas instituições se envolveram no
processo de canonização de Domingos? Teriam elas se associado por vontade própria ou
foram levadas a isto?
468
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 116: “Exultat nimirum et sancta mater ecclesia, cum in eius
fulgido firmamento diversis sanctorum splendoribus illustrato fulget de novo sydus perspicuum singularis et
precellentis luminis ostensivum, per quod ignorantium dominum tenebre propelluntur, per quod hereticorum
perversum dogma confunditur et fidelium beata credulitas adaugetur. Sane gaudentes pridem accepimus,
quod recolende memorie frater Dominicus, plantator Predicatorum ordinis et magister”.
203
469
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 117: “[...] mandamus, quatines provide attendentes, quod lux
vera sanctorum dominos Ihesus Christus signis publicis et prodigiis evidentibus trepidantia discipulorum
pectora roboravit, mentes eorum nubilas de resurrectionis ammiranda gloria expresse certitudinis clarificans
fulcimentis vitam et conversationem predicti fratris, quibus Deo et hominibus noscitur placuisse necnon
miracula, que auctore Deo de sui corporis sanctitate procedunt, habita pre oculis sola divine reverentia
maiestatis, per testes idoneos studeatis inquirere cauta diligentia et sollicitudine vigilanti, que in scriptis
redacta sub sigillis vestres fideliter conservetis, illa nobis, postquam mandatum apostolicum receperitis, per
fideles et solempnes nuntios transmissuri”.
470
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2011. p. 62-63.
204
investigação.471
Aquela epístola-mandato do papa Gregório IX, que estabeleceu a abertura de um
inquérito em Bolonha para investigar a santidade de Domingos de Gusmão, pode ser
analisada a partir desta perspectiva foucaultiana. Apesar daquele pontífice romano indicar
explicitamente aos comissários que recorressem aos testemunhos idôneos, quando ele
delimitou o que deveria ser buscado naquele trabalho inquisitorial e os procedimentos a
serem realizados, não era somente o conteúdo que estava sendo selecionado, mas sim a
maneira e a possibilidade de saber. De forma que a autoridade papal delimitou, desde o
início, o que se deveria saber sobre a santidade de Domingos: tudo aquilo que ajudaria a
fundamentar a verdade a ser produzida no inquérito e a ser reafirmada na decisão final do
papa. Portanto tratava-se de um processo de produção de verdade e não de descoberta, uma
modalidade, ao mesmo tempo, de exercício do poder e de transmissão do saber, uma forma
de saber-poder diria Foucault.472
Seguindo o roteiro teórico-metodológico de análise traçado por Michel Foucault em
A ordem do discurso, é possível detectar princípios e procedimentos de ordenamento que
atuam nas formações discursivas como formas de controle, constituindo um verdadeiro
sistema de recobrimento do discurso, ou seja, um sistema que define a forma de
funcionamento do discurso e que, por conseguinte, visa conjurar os poderes que atuam
sobre ele e dominar o seu acontecimento aleatório.473 Esta perspectiva de análise também
pode ser aplicada às atas do inquérito de Bolonha.
A noção de ordenamento do discurso remete a um procedimento sistemático de
organização, distribuição e classificação daquilo que é afirmado por determinadas pessoas
em circunstâncias específicas.474 Tal procedimento discursivo pode ser exercitado quase
que automaticamente por alguém que fala perante uma plateia de ouvintes, de forma
dinâmica, constituindo o próprio ato da fala, ou pode ser definido antes do acontecimento
discursivo, buscando dar coerência e coesão ao discurso antes mesmo de ser proferido.
No caso específico das atas do inquérito pontifício conduzido em Bolonha o
ordenamento do discurso aparece, mas não pode ser atribuído exclusivamente, ou em
471
Ibid., p. 72-73.
472
FOUCAULT, A verdade... op. cit., p. 77-78.
473
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de
dezembro de 1970. 21 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011. p. 69.
474
Ibid., p. 21.
205
primeiro caso, ao sujeito da fala, ou seja, aos testemunhos ali reproduzidos. Pois as pessoas
que falaram por meio desse documento respondiam a questões realizadas pela comissão
papal que investigava a causa de canonização de Domingos de Gusmão, portanto, e a
priori, existia naquela inquisitio uma ordenação dos temas a serem abordados. O próprio
mandato enviado por Gregório IX475 já apontava para isso.
Além disso, tudo o que foi falado pelos testemunhos no âmbito daquele inquérito
também passava por um procedimento de organização que cabia ao notário responsável por
registrar essas falas na forma de uma ata pública. Assim, no caso específico daquelas atas,
por mais que o testemunho quisesse organizar a sua fala segundo uma lógica própria e o
fizesse, de certa forma, ao responder os questionamentos da comissão papal, suas
formações discursivas eram, de início e ao final, perpassadas por procedimentos de
organização que independiam da vontade do sujeito que falava. Portanto, se pode afirmar,
com base no método de análise foucaultiano, que o discurso produzido nas atas do
inquérito de Bolonha era perpassado por formas de controle que se exerciam sobre aqueles
testemunhos, a partir do trabalho inquisitorial executado pelos delegados/representantes do
pontífice romano.
Não é por outro motivo que os testemunhos reproduzidos naquelas atas apresentam
uma série de padrões repetidos, como, por exemplo, a recorrência de determinados tópicos
temáticos. Tais formas de regularidade, no contexto de uma análise do discurso, acabam
funcionando como conceito operador de uma análise genealógica, permitindo desvendar o
processo de formação de um discurso em sua positividade, ou seja, em seu caráter
produtivo.476
A primeira regularidade evidenciada nas atas do inquérito de Bolonha é que quase
todos os testemunhos ali reproduzidos, com exceção de um (do frade Amizo de Milão),
iniciam seus depoimentos esclarecendo como, quando e onde ingressaram na Ordem dos
Frades Pregadores, acrescentando algumas informações sobre o contato mantido com
Domingos de Gusmão. Sem dúvida alguma, a regularidade desse e de outros tópicos nos
testemunhos registrados aponta para a existência de questionamentos específicos
direcionados aos depoentes, com o objetivo de esclarecer a vinculação deles com a
instituição e o contato que mantiveram com o antigo mestre geral dos dominicanos.
475
Cf., infra, p. 152 [Nota 350].
476
FOUCAULT, A ordem... op. cit., p. 60-61.
206
Existem outros tópicos bastante recorrentes nos relatos dos testemunhos e que
permitem delinear um perfil religioso para a vida de Domingos de Gusmão: assíduo e
fervoroso nas orações (todos relatam esse aspecto), pregador e disseminador do evangelho
(só o frade Amizo não aborda essa prática), praticante de hábitos cotidianos que denotam a
influência dos ideais de ascetismo e de penitência em sua vida religiosa (todos tratam desse
aspecto).
A ênfase dada pelos testemunhos permite construir a imagem de um religioso
assíduo, compromissado e incansável na sua prática de oração, pois passava dias e noites
nessa tarefa, de tal forma que praticamente não se recostava para dormir, conforme o
registro de frade Amizo.477 De acordo com o testemunho do frade Bonvizo, Domingos
tinha o hábito de se esconder na igreja para orar quando os frades iam dormir, e se
emocionava bastante ao fazer isso.478
A pregação como uma prática religiosa de Domingos de Gusmão é outra
característica bem enfatizada nas atas do inquérito de Bolonha, mostrando-o como alguém
que estava sempre disposto a pregar e a induzir seus frades ao mesmo (testemunho de frade
Juan),479 como um pregador que tinha uma capacidade maior do que qualquer outro para
comover os ouvintes com suas palavras (testemunho de frade Estevão)480 e como um
religioso que ansiava pela salvação das almas alheias e que usava a pregação como
instrumento para isso, pois estava disposto a ir a terras longínquas e pouco receptivas para
pregar a fé de Cristo e converter novos cristãos (testemunho de frade Paolo).481
O rigor com os hábitos cotidianos e o exercício frequente da penitência também são
aspectos ressaltados nas atas do inquérito bolonhês, pois o antigo líder dos dominicanos é
477
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 137: “Item dixit, quod fuit assiduus in oratione tam diebus
quando vacabat quam noctibus. Et pernoctabat frequenter in oration ita quod parum aut nichil inveniebatur in
lecto”.
478
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 138-139: “Et dixit quod habebat hanc consuetudinem, scilicet
quod quando fratres sui post completorium egrediebantur de ecclesia, ut irent dormitum, ipse frater beatus
Dominicus, ut oraret, se in ecclesia occultabat. Et ipse testis cum hoc cognoscere vellet, quid dictus frater
beatus Dominicus faceret in ecclesia, et audiebat eum cum clamore maximo et lacrimis orantem Dominum, et
cum gemitu maximo”.
479
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 143: “Sepe, et frequenter ipsemet predicabat et fratres ad
predicandum modis, quibus poterat, inducebat, et mittebat ad predicandum, rogans et monens quod essent de
animarum salute solliciti”.
480
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 155: “Item dixit quod in predicationibus erat assiduus et
sollicitus, et verba habebat ita commotiva quod sepissime commovebat se et auditores ad fletum, ita quod
numquam audivit hominem, cuius verba ita commoverent fratres ad compunctionem et fletum”.
481
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 162: “Item dixit, quod multum desiderabat salutem animarum
omnium, tam fidelium quam infidelium. Et sepe dixerat huic testi: ‘Postquam ordinaverimus et instruxerimus
ordinem nostrum ibimus ad Cumanos, et predicabimus eis fidem Christi, et acquiremus eos Domino’”.
207
apontado como alguém que praticava a disciplina no seu próprio corpo e de uma forma
superior aos demais, já que mortificava o seu corpo utilizando uma corrente de ferro
(testemunho de frade Juan),482 assim como dormia sempre em locais desconfortáveis e
praticava o jejum assiduamente, estivesse saudável ou doente, no convento ou em viagem
(testemunho de frade Guillermo).483
Toda esta caracterização da vida religiosa do primeiro mestre dos dominicanos
concorre para apresentá-lo como um frade diferenciado dos demais em sua época, acima de
qualquer outro, um religioso com uma conduta exemplar, altamente disciplinado nos
valores e nas práticas cristãs, tudo atestado em seus hábitos cotidianos e registrado nos
testemunhos reproduzidos nas atas do inquérito de Bolonha. Portanto o documento em
análise constrói para Domingos uma trajetória religiosa que serviria de exemplo a qualquer
cristão naquele contexto histórico.
Porém, como se a trajetória religiosa, por si só, não bastasse para dar sustentação a
uma causa de canonização, observa-se também nas atas do inquérito a regularidade de
tópicos temáticos que se configuram como sinais de santidade, e que teriam sido
manifestados por Domingos ainda em vida. O que se considera aqui como sinais de
santidade são aquelas características e capacidades atribuídas a determinadas personagens
cristãs que tendem a diferenciá-las dos demais, apontando um grau de excepcionalidade
que é interpretado como indício da proximidade com o plano divino. Nos testemunhos
registrados naquele documento aparecem os seguintes aspectos: a virgindade, a profecia, a
revelação divina e o “aroma de santidade”.
A virgindade atribuída a Domingos de Gusmão é um aspecto registrado e ressaltado
em diferentes testemunhos das atas de Bolonha. O frade Guillermo de Monteferrato, por
exemplo, afirmou que o antigo mestre sempre conservou a sua virgindade, e que era algo
que se sabia pelas conversas que manteve com ele e com os demais integrantes da
482
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 143: “Item dixit, quod plus orabat quam ceteri fratres cum
quibus conversabatur, plus etiam vigilabat, et maiores disciplinas in corpore suo accipiebat, et frequentiores.
Et hoc scit, quia vidit eum predicta sepissime facientem. Item dixit se audivisse a quibusdam de fratribus,
quod idem magister Dominicus faciebat se disciplinari, et etiam se disciplinabat cum cathena ferrea, que
habebat tres ramos”.
483
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 134 e 135: “Et vidit quod ieiunia statuta in regula omnia
servabat et in sanitate et in infirmitate. [...] et tamen propter hoc non fregit ieiunium nec carnes comedit nec
pietanciam fecit, nisi de pomis sive rapis aliquando”; “Et firmiter credit quod maiori spacio temporis erat in
oratione quam in dormitione et semper iacebat indutus et cum cappa et cinctus et cum calligis calciatus, dum
cum eo fuit. Et semper iacebat sine culcitra, videlicet in terra, tabula sive palea vel alio stramine”.
208
Ordem.484 Este mesmo tópico temático aparece reforçado no testemunho do frade Juan, ao
afirmar que Domingos permaneceu virgem até a sua morte e que isto era parte de sua fama
pública perante os frades dominicanos.485
O dom da profecia aparece caracterizado em um relato do frade Bonvizo,
ressaltando que quando era ainda um noviço na Ordem e não tinha prática de pregar,
Domingos ordenou que fosse a Piacenza para realizar pregação naquela cidade. Ele tentou
se esquivar da tarefa encomendada alegando imperícia da sua parte, ao que o mestre geral
teria respondido: “Vá tranquilo porque o Senhor estará contigo e colocará palavras nos teus
lábios”. Bonvizo obedeceu à ordem do mestre e foi pregar em Piacenza. Por fim,
destacando a eficácia dessa pregação, ele concluiu: “por ela ingressaram três frades na
Ordem dos Pregadores”.486
A revelação divina pode ser depreendida do testemunho do frade Estevão, na parte
em que ele relata sobre a sua entrada na Ordem dos Pregadores, pois quando era ainda
estudante em Bolonha, conheceu Domingos de Gusmão, que costumava pregar aos
estudantes e ouvir as suas confissões. Então, certo dia, os frades dominicanos foram a
procura de Estevão, dizendo que o mestre geral queria falar com ele. Quando o encontrou,
Domingos colocou-lhe o hábito dos frades pregadores e lhe disse: “Eu quero te dar esta
arma, com a que durante toda a tua vida deverás lutar contra o diabo”. O referido frade
ficou muito admirado com aquele gesto e afirmou acreditar que só poderia ser
manifestação de uma revelação divina, já que nunca tinha conversado com ele sobre essa
possibilidade.487
484
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 135: “Item dixit, quod firmiter credit quod idem frater
Dominicus semper servavit virginitatem. Et hoc credit propter bonam conversationem quam vidit eum
habere. Et quia hoc audivit a multis viris religiosis et ab aliis fide dignis qui cum eo longo tempore fuerunt
conversati”.
485
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 146: “Item dixit, quod audivit tempore vite ipsius fratris
Dominici, et etiam post, quod permansit in virginitate usque ad mortem, et de hoc est fama publica inter
fratres”.
486
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 142: “Item dixit ipse testis, quod quando ipse erat novitius,
cum nom haberet aliquam peritiam predicandi, quia nondum in sacra pagina studuisset, predicus frater
Dominicus, precepit ei Bononie existenti, quod deberet ire Placentiam predicaturus ibidem. Et cum ipse
propter imperitiam se excusaret, dulcissimis verbis eum induxit quod ire deberet. Et dixit: ‘Vade secure, quia
Dominus tecum erit, et ponet verbum predicationis in ore tuo’. Et ipse testis obediens ivit Placentiam et
predicavit ibi. Et tantam gratiam contulit sibi Deus in predicatione, quod ad predicationem eius tres fratres
intraverunt ordinem predicatorum”.
487
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 154: “Et antequam recederet, eum induit habitum fratrum
predicatorum dicens: ‘Ego volo dare tibi arma, cum quibus toto tempore vite tue debeas pugnare contra
diabolum’. Et multum ipse testis miratus fuit tunc et etiam postea, quo instinctu ipse frater Dominicus sic
vocavit eum et induit eum habitum fratrum predicatorum, eo quia primo nichil cum eo tractaverat de
209
conversione ipsius ad religionem. Credit tamen quod divina inspiratione vel revelatione hoc fecit”.
488
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 130: “Item dixit, quod in eodem anno quo mortuus fuit, in
hieme sequenti maximus odor sentiebatur in ecclesia veteri, ubi sepultus fuit, et per totam ecclesiam et
precipue circa sepulturam. Et ipse testis sensit ipsum odorem. Et multi fratres de conventu senserunt, qui
adhuc vivunt, sicut eos audivit dicentes”.
489
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 132: “[...] sentientes eumdem inenarrabilem odorem. Et
mirabilis et inenarrabilis odor remansit in manibus magistri Iordanis et ipsius testis et omnium illorum, qui
tetigerunt de ossibus suis. Interrogatus quomodo scit omnia predicta, respondit, quia interfuit omnibus
predictis et vidit et sensit odorem non solum in ossibus et vestimentis et capsa et pulvere, sed etiam in suis
manibus et aliorum fratrum qui tetigerant supradicta vel aliquid de supradictis. Item dixit, quod multotiens
usque ad hoc tempus sensit hunc odorem incognitum”.
490
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 136: “Item dixit se postea vidisse plures personas, que
210
relata ter sido ele mesmo curado pela intervenção milagrosa do antigo mestre geral. Pois
quando chegou a Bolonha (vindo de Venezia) para dar o seu testemunho à comissão
pontifícia, sentiu fortes dores renais, que costumavam lhe afligir durante dias. Por isso,
com medo de não dar o seu testemunho, “acudiu ao sepulcro do bem-aventurado
Domingos e lhe rogou devotamente a sua ajuda e que se dignasse a curá-lo. E quase ao
instante se sentiu perfeitamente curado”.491
Também ficaram registrados milagres de multiplicação de alimentos nas atas de
Bolonha, como no relato do frade Rodolfo, destacando que sempre que faltavam alimento
e bebida no convento ele procurava o mestre geral em busca de uma solução. Domingos
ordenava que rezasse ao Senhor para que provesse o que faltava, e o acompanhava na
oração. E, dessa forma, “aquele pouco pão que tinham ele colocava na mesa por ordem de
Domingos, e o Senhor supria o que faltava”.492 Relato semelhante aparece no testemunho
do frade Bonvizo, quando afirmou que era procurador do convento de Bolonha e, por isso,
cuidava dos alimentos a serem servidos aos frades no refeitório. Um dia falou a Domingos
que não havia pão e este “com cara risonha, levantou suas mãos e adorou e bendisse ao
Senhor, e ao instante entraram dois que carregavam cestos, um de pão e outro de figos
secos, de tal maneira que tiveram abundantemente os frades”.493
A recorrência dos sinais de santidade e dos milagres nos relatos reproduzidos nas
atas do inquérito de Bolonha aponta para a existência de questionamentos específicos, que
tinham a função primordial de direcionar os testemunhos selecionados a falar tão somente
de determinados aspectos. Tal como foi ressaltado anteriormente, os tópicos temáticos a
serem abordados pelas testemunhas já estavam previamente definidos, conforme ficou
dicebant se passas fuisse graves infirmitates et diversas et se liberatas fuisse per merita beati Dominici”.
491
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 164: “Item dixit dictus testis quod die domenica proxime
preterita venit a Venetiis Bononiam pro isto testimonio faciendo. Et eodem die in sero invasit eum dolor
maximus renum et lumborum, qui consuevit eum affligere pluribus diebus. Unde ipse timens, ne posset ferre
testimonium, ivit ad archam beati Dominici et devotissime rogavit eum quod iuvaret eum et liberare
dignaretur. Et quase incontinenti fuit plenissime liberatus”.
492
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 149: “Et ipse testis ibat in ecclesiam ad orandum, et dictus
frater Dominicus sepe sequebatur eum, et sic faciebat Deus, quod semper habebant idôneas sustentationes. Et
quandoque illum modicum panem, quem habebant, de mandato eius ponebat in mensa, et Dominus supplebat
defectum eorum”.
493
Acta Canonizationis S. Dominici, op. cit., p. 141: “[...] Qui testis dixit ei, quod non erat ibi panis. Tunc
frater Dominicus alacri facie elevavit manus suas et laudavit Dominum et benedixit, et statim incontinenti
intraverunt duo, qui portaverunt duo canistra unum de pane, aliud de ficubus sicci, ita quod habundanter
habuerunt fratres, et hoc dixit se scire, quia interfuit iis”.
211
494
Cf., infra, p. 152 [Nota 350].
212
495
Cf., infra, p. 176 [Nota 406].
496
Cf., infra, p. 184 et seq. [Notas 423 a 431].
213
497
AUVRAY, Reg. nº 2335, p. 1234: “Fratres militiae Jhesu Christi per Italiam constitutos cum ipsorum
bonis sub beati Petri et sua protectione suscipit; statuit ut omnes qui secundum ipsorum propositum Deo
adhaerere voluerint, perpetuis temporibus sub Apostolicae Sedis et sua defensione consistant; inhibet ne quis
aliquem ex ipsis capere, rapinis et injustis collectis vel exactionibus fatigare, vel ad aliqua illicita juramenta
aut injusta praelia cogere aut alias indebite molestare praesumat; omnibus propositum servantibus antedictum
et in vera paenitentia persistentibus, qui mortis periculum pro fide catholica et ecclesiastica libertate
subierint, peccatorum omnium veniam indulget”.
498
Cf., infra, p. 69 et seq.
499
Cf., infra, p. 79 et seq.
214
tais práticas religiosas com aquele reconhecimento oficial da santidade pelo papado. Se os
mendicantes eram milites enviados pela Providência Divina, se o próprio Domingos tinha
sido enviado para combater pela fé católica (por meio de sua pregação evangélica),
estavam claros os exemplos a serem seguidos pelos demais cristãos.
A sintonia do perfil de santidade traçado para Domingos de Gusmão com os ideais
de espiritualidade expressados na magna devotio não se encerra no conceito de milícia
cristã. Naquele movimento religioso que percorreu diferentes cidades da Itália centro-
setentrional as práticas de penitência pelos fiéis configuraram um aspecto marcante,
inclusive com procissões de penitentes que percorriam as cidades com manifestações de
disciplina e de mortificação do corpo.
Tais práticas ficaram também registradas nos documentos vinculados à canonização
de Domingos de Gusmão. A começar pelas atas do inquérito realizado na cidade de
Bolonha, pois diferentes testemunhos ali reproduzidos apontaram comportamentos
cotidianos do antigo mestre geral que o identificam como um adepto da disciplina e da
mortificação do próprio corpo. Segundo os testemunhos dos frades Juan e Guillermo,500
Domingos praticava jejuns com frequência, passava noites em vigília de oração e quando
dormia sempre escolhia um lugar desconfortável, além de utilizar uma corrente de ferro
apertada junto ao seu corpo. Outros testemunhos daquele inquérito também apontam
práticas do antigo mestre geral que se encaixam neste conceito de penitência.501
A adesão de Domingos às práticas de penitência também foi exaltada na
argumentação da bula Fons sapientie, na parte em que se destacam as virtudes do fundador
dos dominicanos, sublinhando que ele escolheu viver na mortificação da própria carne e
que nos castigos encontrava motivos para renovar a sua espiritualidade, tornando-se um
verdadeiro atleta da fé cristã.502
500
Cf., infra, p. 207 [Notas 482 e 483].
501
Tais evidências de práticas de penitência aparecem também registradas nos testemunhos prestados pelos
frades: Ventura, Amizo, Bonviso, Rodolfo, Estevão, Paolo e Frugério. Cf.: Acta Canonizationis S. Dominici,
op. cit., p. 125, 127, 137, 139, 148, 149, 156, 157, 162, 165 e 166.
502
A versão aqui utilizada da bula Fons sapientie é uma edição crítica, em língua latina, disponível em:
WALZ, Angelus. Acta Canonizationis S. Dominici. In: Monumenta Ordinis Fratrum Praedicatorum
Historica, tomus XVI. Romae: Institutum Historicum FF. Praedicatorum, 1935. p. 190-194. p. 192: “[...] Qui
gerens a pueritia cor senile ac in mortificationis carnis eligens vivere, vite requisivit auctorem et Deo deditus
ac in Nazareum [...], in castigatione desiderii piissimum Danielis continuavit affectum, iustitie semitas et
sanctorum vias strenuus adhleta custodiens et velut ad momentum de tabernaculo Domini, de militantis
ecclesie magisterio ac ministerio non discendens, carnem spiritui et sensualitatem subiciens rationi”. Deste
ponto em diante farei referência a este documento apenas como Fons sapientie, seguida da identificação da
215
Além disso, no mesmo documento, pode ser observada também a vinculação entre
a santidade de Domingos e as práticas de penitência na parte final da argumentação, em
que o pontífice romano decide “relaxar” um ano de penitência para aqueles devotos,
“verdadeiramente penitentes e confessos”, que visitassem o sepulcro do antigo mestre geral
dos Frades Pregadores.503 Nesta parte do discurso fica muito claro que a indulgência papal
foi utilizada como forma de alimentar/incentivar a devoção dos fiéis cristãos ao culto de
Domingos de Gusmão.
Este modus operandi papal não aparece apenas na bula de canonização Fons
sapientie, também ficou registrado em epístolas e mandatos que o pontífice romano redigiu
nos anos de 1233 e 1234. A começar por aquela epístola enviada no mesmo dia (13 de
julho de 1233) da abertura do processo de canonização de Domingos, explorada no
capítulo anterior, em que o papa Gregório IX concedia vinte dias de indulgência para os
cristãos (confessos e penitentes) que assistissem às pregações do frade João de Vicenza.504
Após a canonização do fundador dos dominicanos, mais precisamente em 29 de
novembro de 1234, o pontífice romano usou uma vez mais o instrumento da indulgência
para angariar a solicitude dos cristãos em favor da Ordem dos Frades Pregadores. Desta
vez o papa relaxou um ano e quarenta dias de penitência daqueles cristãos que
subsidiassem a construção de uma igreja e de um claustro na cidade de Perugia, ambos os
edifícios estavam sendo erigidos em homenagem ao santo recém-canonizado.505
Portanto, os documentos pontifícios aqui referidos e explorados não deixam
dúvidas de que o papado, naquele contexto histórico da canonização de Domingos, estava
desenvolvendo uma articulação estreita entre santidade, penitência e indulgência. De forma
que o pontífice romano oferecia o benefício da indulgência àqueles cristãos (penitentes e
confessos) que expressassem a sua devoção pelo primeiro mestre geral dos dominicanos,
como forma de incentivar aquele culto de santidade recém-oficializado pela Igreja romana.
A lógica utilizada pelo papa Gregório IX era a de uma troca, pois aqueles penitentes que se
vinculassem ao culto de Domingos e prestassem a ele a devida veneração alcançariam o
benefício da indulgência papal.
506
Cf., infra, p. 152 [Nota 350].
507
Cf., infra, p. 188 et seq.
508
Cf., infra, p. 209 [Notas 488 e 489].
217
509
Cf., infra, p. 142 [Nota 322].
218
510
Cf., infra, p. 142 [Nota 322].
511
Cf., infra, p. 202 e 203.
219
pregações do frade João contribuíram para semear e difundir uma fama de santidade para
Domingos, ao passo que as suas demais ações em Bolonha permitiram, no mínimo, colocar
os dirigentes comunais e o bispo daquela cidade sob a tutela do papado.512
Já a mobilização do prior Estevão junto aos frades dominicanos de Bolonha teria
levado ao evento da trasladação do corpo de Domingos,513 permitindo fundamentar uma
base local para aquele culto e superar o movimento de resistência que teria impedido
aquele reconhecimento de santidade por doze anos. Além disso, o referido frade também
participou do processo de canonização como testemunha do inquérito de Bolonha, sendo o
único em sua respectiva argumentação a articular a santidade de Domingos com a magna
devotio e com as ações dos dominicanos em diferentes cidades italianas (reformando
estatutos comunais e perseguindo os hereges).514 Uma lógica de pensamento que refletia
perfeitamente os projetos do papado para a península italiana.
Assim sendo, dois representantes da autoridade pontifícia estiveram diretamente
envolvidos nas etapas de base para aquele empreendimento, contribuindo para formar os
requisitos necessários para uma canonização em Roma, além de outros que participaram da
fase de investigação e de avaliação da santidade de Domingos. De forma que se pode
afirmar, sem sombra de dúvidas, que o papado e a Ordem dos Frades Pregadores foram as
únicas instituições a serem representadas em todas as etapas deste empreendimento
coletivo de santidade, desde a sua preparação até a sua conclusão com a canonização
realizada em 03 de julho de 1234.
Por fim, caberia ainda perguntar: de todas aquelas instituições envolvidas na causa
de Domingos, qual delas teria condições e poderes (ambos historicamente comprovados)
para exercer a função de uma força superior a coordenar os diferentes grupos e a direcionar
todas as iniciativas para o resultado almejado? A resposta a esta pergunta aponta o papado
como a força que coordenou e que direcionou os grupos locais para a causa de Domingos
de Gusmão. Isto não significa que as instituições locais e a Ordem dos Frades Pregadores
não tivessem interesses próprios para se vincular aquele empreendimento de santidade,
pois de fato tinham. E sim que não agiram de forma independente, já que as suas ações não
ocorreram à revelia do poder pontifício, ao contrário, convergiram para os projetos e os
512
Cf., infra, p. 181 et seq.
513
Cf., infra, p. 194 [Nota 447].
514
Cf., infra, p. 128 [Nota 293].
220
CONCLUSÃO
O século XIII foi apontado por parte da historiografia ocidental como sendo o
período histórico em que o papado teria consolidado uma prerrogativa exclusiva para o
reconhecimento oficial da santidade, por meio do processo de canonização como um
procedimento prévio para a inscrição de um novo santo no catálogo da Igreja romana. A
obrigatoriedade da abertura formal de uma causa em Roma e do cumprimento de etapas e
requisitos básicos antes da decisão final do pontífice romano teriam servido de base para
legitimar a autoridade papal no culto aos santos e para estender a jurisdição romana sobre
diferentes territórios.
Teria, de fato, ocorrido uma centralização das canonizações em Roma? O papado
passou a exercer um direito exclusivo no estabelecimento de novos cultos de santidade? O
que se pode concluir a partir do caso dominicano aqui analisado? Tudo indica que houve o
estabelecimento de uma lógica universal associada aos cultos oficializados pelo papado,
mas que isso não significou o desaparecimento dos reconhecimentos e dos cultos em
âmbito local. E mesmo as canonizações pontifícias não eram realizadas sem uma
articulação com grupos e instituições locais, como aponta o caso de Domingos de Gusmão.
Foi também neste contexto histórico que algumas cidades italianas procuraram se
afirmar com governos mais autônomos, tomando decisões e iniciativas para se
desvincularem da autoridade monárquica ou imperial, e para ampliarem os direitos da
comuna. O culto aos santos foi rapidamente apropriado para a lógica de uma religião cívica
e o potencial de articulação política da santidade com os grupos dirigentes citadinos pode
ser observado em diferentes casos na península italiana.
Nas primeiras décadas do século XIII, mais precisamente nos anos de 1230, o
papado e algumas cidades da região centro-setentrional da Itália tinham um adversário em
comum: Frederico II, imperador e monarca. É fato conhecido que o papado e o império
tinham chegado a um acordo de paz nesse período que proporcionou uma diminuição dos
222
Não foi mero acaso que aquela bula de canonização tenha sido encerrada com a
concessão de indulgência pelo pontífice romano para os penitentes que fossem visitar o
sepulcro de Domingos no dia de celebração do seu culto de santidade. Pelas manifestações
coletivas e pela valorização deste ideal religioso nas cidades, os penitentes estiveram cada
vez mais no centro das atenções do papado, que queria despertar o interesse destes grupos
e atender suas demandas de fé e espiritualidade.
Por isso, a relação penitência/indulgência foi articulada ao culto da santidade do
antigo líder dos dominicanos, pois era uma das formas da Igreja romana dialogar com os
contextos citadinos e aproveitar a ocasião daquela canonização para captar em favor da fé
católico-romana os grupos de penitentes que se manifestavam em diferentes cidades
italianas naquele período, entre as quais estava Bolonha.
Além dos diferentes perfis de santidade delineados para Domingos de Gusmão na
bula Fons sapientie, também se apontou a articulação entre saber e poder no discurso
presente no referido documento. Nos diferentes núcleos de formação discursiva daquele
texto foram mobilizados saberes característicos da História, da Teologia e do Direito, que
serviram de base para a produção de uma verdade. A elaboração de um discurso verdadeiro
sobre a santidade e sobre a canonização do primeiro mestre geral dos Frades Pregadores,
por sua vez, legitimava o exercício do poder pelas instituições diretamente vinculadas
àquele culto de santidade, principalmente o papado e a ordem dominicana, que naquele
contexto histórico compartilhavam alguns projetos e missões na Península Itálica.
contra os seus aliados na Itália. Foi neste contexto que se deu a renovação da Societas
Lombardiae, em 1226, sob a liderança das comunas de Milão e de Bolonha.
Neste quadro político mais amplo de intensificação dos conflitos entre Frederico II
e as comunas italianas, o papado passou a ocupar uma posição intermediária, como a de
um juiz conciliador, atuando para arbitrar esses confrontos e celebrar acordos de paz que
permitissem suspender aqueles enfrentamentos, mesmo que provisoriamente. Ao fazer isso
os representantes da Igreja romana acabavam se alçando a uma posição superior às partes
em litígio, renovando a perspectiva de aquela instituição era de fato representativa de um
poder supremo, que se fazia presente sempre que necessário.
Por outro lado, a concórdia era um ideal representativo da tradição cristã defendida
e veiculada pela Igreja romana, portanto, é possível que a mobilização do papa Gregório
IX e de seus representantes para atuar na arbitragem daqueles conflitos fosse em parte
animada por esse conceito cristão. Mas seria um equívoco não perceber que a celebração
daqueles acordos colocava o papado em condições de avaliar e apontar soluções que
fossem mais adequadas às suas diretrizes e aos seus projetos.
Um dos efeitos dessa atuação pontifícia foi a aproximação político-institucional
com as comunas que eram rebeldes ao poder imperial e que, por isso mesmo, ficaram mais
dispostas a se articular aos projetos da Igreja romana. Partindo da argumentação e das
análises realizadas nos capítulos II e III pode-se concluir que esse foi o caso da Comuna de
Bolonha.
Os confrontos da Societas Lombardiae com o imperador Frederico II criaram a
ocasião para o envolvimento do papado e de seus representantes, que por meio de suas
intervenções conciliadoras trataram de encontrar saídas que preservassem os interesses e os
direitos daquelas cidades. A tendência a favorecer as demandas citadinas por meio das
arbitragens pontifícias foi inclusive percebida por aquele monarca, que registrou sua
insatisfação em epístolas encaminhadas ao papa Gregório IX.
Bolonha certamente esteve entre aquelas comunas que o papado tratou de proteger
diante da ameaça imperial. As bulas papais encaminhadas (em 1233) ao podestà e ao
populus daquela cidade, bem como as orientações expressas ao frade dominicano João de
Vicenza, são registros preservados da aproximação política entre tais instituições. Pois tais
documentos apontam a mobilização do papa Gregório IX e de seus representantes em
defesa dos interesses da comuna bolonhesa.
226
ainda teve que enfrentar a sombra exercida pela autoridade metropolitana do arcebispo de
Ravenna e as seguidas interferências realizadas pelo papado.
Já a universitas scolarium Bononie teve de conviver com uma realidade ainda mais
complexa. Pois quanto mais aquela instituição de ensino aumentava o seu prestígio e a sua
importância no contexto italiano, mais ela chamava a atenção dos grupos políticos locais e
da Igreja romana, que tentavam se projetar sobre a universidade e exercer uma tutela sobre
as suas atividades.
De sua parte, o convento de San Nicolò delle Vigne não estava diretamente
envolvido nesses confrontos locais de autoridade, o que não quer dizer que estivesse longe
da dinâmica e das relações de poder entre aquelas instituições. Os problemas maiores
daquela comunidade dominicana apontavam para o seu interior, já que o plano de
construções, de reformas e de crescimento material não era propriamente um consenso
entre os seus integrantes. Algo que interferiu inclusive no projeto/empreendimento de
reconhecimento da santidade de Domingos.
Assim sendo, o quadro político-institucional de Bolonha, no início da década de
1230, não apontava para uma aproximação entre tais instituições locais, tampouco para a
realização de um projeto/empreendimento compartilhado entre elas. Algo aconteceu para
alterar aquela dinâmica de poder entre as instituições bolonhesas. Além do fato de estarem
estabelecidas na mesma cidade, o que mais a comuna, a diocese, a universidade e o
convento tinham em comum naquele contexto histórico?
O papado e suas intervenções. Esta é a chave para compreender aquela conjunção
de forças que atuou na causa dominicana, tornando possível um movimento coordenado e
organizado para difundir uma fama de santidade, estabelecer um novo lugar de culto,
realizar uma cerimônia pública de reconhecimento local e alavancar um processo de
canonização junto à Igreja romana. Mais uma vez a lógica da concórdia se impunha diante
de conflitos político-institucionais e a celebração de uma paz encaminhava para uma
conclusão adequada aos interesses e às diretrizes da instituição pontifícia.
os dominicanos, que foi desenvolvida por meio de ações coordenadas e compartilhadas por
integrantes de ambas as instituições. O que não foi feito a partir de uma relação direta do
papa (Gregório IX) com o mestre geral dos Frades Pregadores (Jordão da Saxônia), e sim
por meio de interlocutores que poderiam representar as demandas do pontífice no interior
daquela ordem religiosa.
João, Estevão e Raimundo eram frades da Ordem dos Pregadores naquele contexto
histórico, mas ao mesmo tempo os dois primeiros atuaram como representantes do
pontífice Gregório IX, enquanto o último exercia as funções de capelão e penitenciário
papal. A mobilização desses dominicanos, as tarefas por eles desempenhadas e o contato
mantido com o papa nos anos de 1233 e 1234 apontam o desenvolvimento de uma ação
coordenada, de um projeto acompanhado de perto pela alta hierarquia da Igreja romana.
As análises dos documentos aqui explorados não permitem apontar Jordão da
Saxônia como um opositor àquele empreendimento de santidade. Também não é possível
defender que ele tenha voluntariamente se afastado daquela causa de Domingos de
Gusmão, principalmente pela sua participação na translatio corporis, ao proceder com uma
duplicação da cerimônia que era canonicamente proibida. Tudo indica que o mestre geral
dos Frades Pregadores não coordenava aquelas iniciativas e que não era um interlocutor
próximo do papa Gregório IX.
Provavelmente Jordão tinha a consciência de que aquele era um negotium papal e
que não cabia a ele interferir diretamente, a não ser que fosse convocado para isso, o que
não parece ter ocorrido. Por isso o mestre geral dominicano buscou uma distância segura e
atuou mais como uma testemunha daqueles acontecimentos, registrando em seus escritos a
sua versão para aquela causa de santidade e para as iniciativas que foram tomadas. Mas
não perdeu a oportunidade de marcar visivelmente a sua posição de comando/liderança na
Ordem dos Frades Pregadores, daí aquela ostentação das relíquias de Domingos para um
público diverso, alguns dias após a trasladação.
A tese aqui defendida aponta o papado como a principal força que alavancou a
canonização de Domingos de Gusmão. Isso não quer dizer que as demais forças envolvidas
naquela causa tenham sido simplesmente manipuladas pelos interesses e pelas demandas
oriundas da Igreja romana. Todos os grupos envolvidos naquele empreendimento coletivo
de santidade tinham algo a ganhar com o estabelecimento daquele culto em favor do antigo
líder dos dominicanos, mesmo que fosse apenas o apoio político daquela Sede Apostólica.
O que naquele contexto histórico específico não era algo dispensável a nenhuma instituição
que tivesse projetos próprios para realizar.
Na perspectiva historiográfica aqui defendida, a Igreja romana teria mobilizado
autoridades e instituições locais para iniciar e sustentar uma causa de santidade em favor
do primeiro mestre geral dos Frades Pregadores. Os registros e os indícios dessa
mobilização pontifícia foram apontados ao longo dos capítulos por meio das análises feitas
sobre o corpus documental selecionado para o doutorado.
Portanto, partindo dessas análises se pode concluir que não foi o papado que foi
provocado a canonizar Domingos de Gusmão a partir do pedido que foi protocolado em
Roma por uma comissão de representantes das instituições bolonhesas. A abertura do
processo de canonização foi solicitada por aquelas instituições justamente porque era uma
demanda daquela Sede romana.
A principal estratégia utilizada pelo papado naquele contexto para se aproximar da
cidade de Bolonha e para mobilizar suas instituições locais foi a possibilidade de uma
ampla concórdia, de um acordo de paz que contemplasse, ao mesmo tempo, os interesses
da comuna bolonhesa e da Igreja romana. No plano externo isso significou uma atuação
política do papado para intermediar os enfrentamentos da Societas Lombardiae com o
imperador Frederico II, de forma a preservar as conquistas territoriais e jurisdicionais da
231
BIBLIOGRAFIA
D’AMATO, Alfonso. I domenicani e l’Università di Bolonha nel secolo XIII. In: Ateneo e
Chiesa di Bolonha. Convegno di Studi (Bolonha, 13-15 aprile 1989). Bolonha:
Alma Mater Studiorum, 1992, pp. 105-117.
D’AMATO, Alfonso. La Chiesa e l’Università di Bolonha. Bolonha: Edizioni Luigi
Parma, 1988.
DE VERGOTTINI, Giovanni. Lo Studio di Bolonha, l’Impero, il Papato. Spoleto:
Centro italiano di studi sull'Alto Medioevo, 1996.
DELOOZ, Pierre. Towards a sociological study of canonized sainthood in the Catholic
Church. In: WILSON, Stephen (Ed.). Saints and Their Cults: Studies in
Religious Sociology, Folklore and History. Cambridge: University Press, 1983. p.
189-216.
DOLCINI, Carlo. Lo Studium fino al XIII secolo. In: CAPITANI, Ovidio. Bolonha nel
medioevo. Bolonha: Bononia University Press, 2007. p. 477-498.
DOLCINI, Carlo. Università e Chiesa di Bolonha: dall’identità originaria allo sviluppo di
molteplici relazioni. In: PRODI, Paolo; PAOLINI, Lorenzo. Storia della Chiesa di
Bolonha (vol.II). Bergamo: Edizioni Bolis, 1997. p. 273-284.
DONDARINI, Rolando. L’insediamento dei Frati Predicatori a Bolonha. In: BERTUZZI,
Giovanni. L’origine dell’Ordine dei Predicatori e l’Università di Bolonha.
Bolonha: Edizioni Studio Domenicano, 2006. p. 230-255.
FORTES, Carolina Coelho. As ordens mendicantes e a santidade na Idade Média. In:
SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da; SILVA, Leila Rodrigues da (Orgs.).
Mártires, confessores e virgens: o culto aos santos no Ocidente medieval.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2016. p. 115-145.
FORTES, Carolina Coelho; SILVA, Andréia C. L. Frazão da. A vida religiosa feminina e
as relações de poder na Ordem dos Pregadores. Horizonte, Belo Horizonte, v. 15,
n. 48, p. 1220-1252, out./dez. 2017.
FOSCHI, Paola. Gli ordini religiosi medievali a Bolonha e nel suo territorio. In: PRODI,
Paolo; PAOLINI, Lorenzo. Storia della Chiesa di Bolonha (vol.II). Bergamo:
Edizioni Bolis, 1997, pp. 463- 499.
GARGANTA, José Maria; GELABERT, Miguel; MILAGRO, José Maria (Ed.). Santo
Domingo de Guzmán visto por sus contemporâneos. Madrid: Editorial Católica,
1947.
235
GOLINELLI, Paolo. Santi e culti bolognesi nel Medioevo. In: PRODI, Paolo; PAOLINI,
Lorenzo. Storia della Chiesa di Bolonha (vol.II). Bergamo: Edizioni Bolis, 1997,
pp. 11-43.
GOLINELLI, Paolo. Social aspects in some Italian canonization trials: the choice of
witnesses. In: KLANICZAY, Gábor (Dir.). Procès de Canonization au Moyen
Âge: aspects juridiques et religieux. Rome: École Française de Rome, 2004. p. 165-
180.
GOODICH, Michael. Reason or revelation? The criteria for the proof and credibility of
miracles in canonization processes. In: KLANICZAY, Gábor (Dir.). Procès de
canonisation au Moyen Âge: aspects juridiques et religieux. Rome: École
Française de Rome, 2004. p. 181-197.
GOODICH, Michael. The politics of canonization in the thirteenth century: lay and
mendicant saints. In: WILSON, Stephen (Ed.). Saints and Their Cults: Studies in
Religious Sociology, Folklore and History. Cambridge: University Press, 1983. p.
169-187.
GOODICH, Michael. Vita perfecta: the ideal of sainthood in the thirteenth century.
Stuttgart: Hiersemann, 1982.
KERBRAT, Pierre. Corps des saints et contrôle civique à Bologne du XIIIe siècle au début
du XVIe siècle. In: COLLOQUE “LA RELIGION CIVIQUE À L’ÉPOQUE
MÉDIÉVALE ET MODERNE (CHRÉTIENTÉ ET ISLAM)”, 1993, Nanterre.
Actes... Rome: École Française de Rome, 1995. p. 165-185.
KLANICZAY, Gábor (Dir.). Procès de canonisation au Moyen Âge: aspects juridiques et
religieux. Rome: École Française de Rome, 2004.
KLANICZAY, Gábor. Proving sanctity in the canonization processes (Saint Elizabeth and
Saint Margaret of Hungary). In: . (Dir.). Procès de canonisation au Moyen
Âge: aspects juridiques et religieux. Rome: École Française de Rome, 2004. p. 117-
148.
KLANICZAY, Gábor. The Power of the Saints and the Authority of the Popes. The
History of Sainthood and Late Medieval Canonization Processes. In: SALONEN,
Kirsi; KATAJALA-PELTOMAA, Sari (Eds.). Church and Belief in the Middle
Ages. Popes, Saints, and Crusaders. Amsterdam: Amsterdam University Press,
2016. p. 117-140
236
LIPPINI, Pietro. San Domenico visto dai suoi contemporanei. I più antichi documenti
relativi al Santo e alle origini dell’Ordine Domenicano. Bolonha: ESD, 1998.
MATZ, Jean-Michel. Contrôle et discipline du culte des saints au moyen âge. In: LE
GUERN, Philippe (dir.). Les cultes médiatiques: Culture fan et oeuvres cultes.
Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2002. p. 46. Disponível em:
<http://books.openedition.org/pur/24168>. Acesso em: maio de 2016.
MAZZANTI, Giuseppe. Gregorio IX e la pubblicistica apocalittico-escatologica:
convinzione esistenziale o propaganda politica? In: CONVEGNO STORICO
INTERNAZIONALE “LA PROPAGANDA POLITICA NEL BASSO
MEDIOEVO”, 38, 2001, Todi. Atti... Spoleto: Centro italiano di studi sull'alto
Medioevo, 2002. p. 241-259.
MERLO, Grado Giovanni. Contro gli eretici. La coercizione all’ortodossia prima
dell’Inquisizione. Bolonha: Il Mulino, 1996.
MILANI, Giuliano. L’esclusione dal comune. Confliti e bandi politici a Bolonha e in altre
città italiane tra XII e XIV secolo. Roma: Istituto Storico Italiano per il Medioevo,
2003.
MILANI, Giuliano. Prime note su disciplina e pratica del bando a Bolonha attorno alla
metà del XIII secolo. Mélanges de l'Ecole française de Rome. Moyen-Age,
Roma, tome 109, n°2, p. 501-523, 1997.
MONTANARI, Elio. Litterae encyclicae annis 1233 et 1234 datae. Spoleto: Centro
italiano di studi sull'Alto Medioevo, 1993.
O’CARROLL, Maura. The cult and liturgy of St Dominic. In: CONVEGNO STORICO
INTERNAZIONALE “DOMENICO DI CALERUEGA E LA NASCITA
DELL’ORDINE DEI FRATI PREDICATORI”, 41, 2004, Todi. Atti... Spoleto:
Centro italiano di studi sull'Alto Medioevo, 2005.
PACIOCCO, Roberto. Canonizzazioni e culto dei santi nella christianitas (1198-1302).
Assisi: Ed. Porziuncola, 2006.
PACIOCCO, Roberto. Il Papato e i santi canonizzati degli Ordini mendicanti. Significati,
237
259-292.
RYAN, James D. Missionary Saints of the High Middle Ages: Martyrdom, Popular
Veneration and Canonization. The Catholic Historical Review, v. 90, n. 1, p. 1-
28, January of 2004.
TÖPFER, Bernhard. Escatologia e milenarismo. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-
Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC; São
Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. V. 1, p. 353-366.
TOUBERT, Pierre; BAGLIANI, Agostino Paravicini (Orgs.). Federico II e le città
italiane. Palermo: Sellerio, 1994.
TRONCARELLI, Fabio. Gioacchino da Fiore e l’età dello Spirito. In: PASZTOR, Edith
(Org.). Attese escatologiche dei secoli XII-XIV. Dall’Età dello Spirito al “Pastor
Angelicus”. Atti del Convegno (L’Aquila, 11-12 settembre 2003). L’Aquila:
Edizioni Libreria Colacchi, 2004. p. 33-41.
VAUCHEZ, André. A Espiritualidade da Idade Média Ocidental (Séc. VIII-XIII).
Lisboa: Editorial Estampa, 1995.
VAUCHEZ, André. Chiesa, potere e società. In: . Storia del cristianesimo (volume 5):
Apogeo del papato ed espansione della cristianità (1054-1274). Roma: Borla/Città
Nuova, 1997. p. 591-609.
VAUCHEZ, André. Santi, profeti e visionari: il soprannaturale nel Medioevo. Bolonha:
Il mulino, 2000.
VAUCHEZ, André. O Santo. In: LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Lisboa:
Presença, 1989. p. 211-230.
VAUCHEZ, André. Storia del cristianesimo (volume 5): Apogeo del papato ed
espansione della cristianità (1054-1274). Roma: Borla/Città Nuova, 1997.
VAUCHEZ, André. Storia dell’Italia Religiosa. V.I: L’Antichità e il Medioevo.
Roma/Bari: Editori Laterza, 1993.
VERGER, Jacques. La politica universitaria di Federico II nel contesto europeo. In:
TOUBERT, Pierre; PARAVICINI BAGLIANI, Agostino (Orgs.). Federico II e le
città italiane. Palermo: Sellerio, 1994, pp. 129-143.