Fichamento - Bahia de Todos Os Santos

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AMADO, Jorge. Bahia de Todos-os-Santos - Guia de Ruas e Mistérios. 40°ed.

São
Paulo: Companhia das Letras, 2012.

“"Roma negra", já disseram dela. "Mãe das cidades do Brasil", portuguesa e


africana, cheia de histórias, lendária, maternal e valorosa. Nela se objetiva, como na
lenda de Iemanjá, a deusa negra dos mares, o complexo de Édipo. Os baianos a
amam como mãe e amante, numa ternura entre filial e sensual. Aqui estão as
grandes igrejas católicas, as basílicas, e aqui estão os grandes terreiros de
candomblé, o coração das seitas fetichistas dos brasileiros” (p.28)

“[...] A cidade da Bahia se divide em duas: a Cidade Baixa e a Alto. Entre o mar e o
morro, a Cidade Baixa é do grande comércio. As casas e portadoras, os
representantes de firmas de outros estados e do estrangeiro, os bancos, as
sociedades anônimas, a Associação Comercial, o instituto do Cacau. Antigamente,
quando o mar não se quebrava no cais, quando vinha até os fundos do Café
Pirangi, esta parte da cidade era tipicamente portuguesa, com seus casarões, seus
azulejos, suas escadas incômodas, um cheiro a mercadorias importadas
característico de armazéns e mercearias. As ruas mais próximas ao morro e as
ladeiras que partem em busca da Cidade Alta, igrejas como a da Conceição da
Praia que veio pronta de Portugal para ser armada aqui, tudo isso recorda as
cidades portuguesas. Mas na parte conquistada ao mar, onde foi antes o areal do
cais, as construções modernas já não lembram a colonização lusa. Prédios como o
do Instituto do Cacau, os modernos edifícios de cimento armado, os arranha-céus
construídos nessa área, a primeira a ser vista pelo turista que chega por mar,
modificaram a impressão inicial que se tinha da cidade. É bem verdade que logo se
encontra o viajante ante o edifício da Alfândega, tipicamente português, construído
durante o reinado de d. João vi, onde hoje se localiza o Mercado Modelo” (p.28-29)

“[...] Para além da Cidade Baixa no contorno da baía, fica a península de Itapagipe,
bairro de pequena burguesia pobre e de proletariado, separado do resto da cidade
por uma longa rua que parte da Associação Comercial e vai até a Calçada. Aí
estava localizada a célebre Feira de Água dos Meninos que um incêndio devorou
pouco antes de ser também devorado pelo fogo o Mercado Modelo. Em substituição
à feira célebre funciona hoje a Feira de São Joaquim, pouco adiante, ao lado do
edifício da Petrobras, em frente ao Orfanato de São Joaquim, que é uma das mais
belas casas coloniais da Bahia. A Cidade Alta, excetuando as ruas centrais de
comércio, é residencial, desdobrando-se em bairros no caminho do mar, subindo
colinas e encostas. À noite o silêncio povoa a Cidade Baixa. Ela dorme no cais, as
casas comerciais fechadas, bancos sem movimento, nos casarões e nos saveiros
de velas arriadas. A Cidade Alta movimenta-se para os cinemas, para as festas,
para as visitas. Os elevadores e planos inclinados a estas horas quase não têm
freguesia. As duas cidades se completam, no entanto, e seria difícil explicar de qual
das duas provém o mistério que envolve a Bahia. Porque o viajante o sente tanto na
Cidade Baixa como na Alta, pela manhã ou pela noite, no silêncio do cais ou nos
ruídos da multidão na baixa dos Sapateiros. Impossível explicar o mistério dessa
cidade. E segredo que ninguém sabe, chega talvez do seu passado na sombra do
forte velho sobre o mar, chega talvez do seu povo misturado e alegre, talvez do mar
onde reina Inaê, talvez da montanha coberta de verde e salpicada de casas. É certo
que todos o sentem. Ele rola sobre a Bahia, é como um óleo a envolvê-la” (p.29-30)

“PASSA GENTE CARREGANDO COISAS NA CABEÇA. A BAHIA SE LEVA NA


CABEÇA. Odorico Tavares confirma: "Quem chega a Salvador, vê que ainda Atlas
carrega seu mundo como nos outros tempos: se não aos ombros, pelo menos na
cabeça". Donald Pierson chegou a ver "uma carta levada à cabeça, trazendo uma
pedra em cima para que não voasse". As baianas levam seus tabuleiros com
comida e frutas num equilíbrio impossível! Num mesmo cesto, o negro vende
verduras e flores. Outro carrega um balaio de laranjas, o menino conduz uma penca
de bananas” (p.37-38)

“[...] Ponto de encontro de raças e costumes, primeira capital do país, rica e famosa
nos inícios da nação brasileira, porto aberto aos barcos do mundo, às ideias e aos
forasteiros, tais condições propiciaram a mestiçagem, e o sincretismo cultural (e
religioso), a interpenetração de fontes e correntes de pensamento na mistura de
sangues - negro, branco, indígena - mistura sempre crescente até tornar-se a
característica dominante do panorama social, dando à Bahia uma poderosa cultura
popular, evidente nos diversos aspectos da vida do estado, estuante na capital. Dela
nos alimentamos todos os que aqui criamos literatura e arte. Mais de uma vez
escrevi ser a África o nosso umbigo. Como sensibilidade, maneira de ver a vida e o
mundo, forma de reagir aos acontecimentos, de viver e conviver, de pensar e agir,
somos pelo menos tão africanos quanto ibéricos. Definitiva foi a contribuição dos
negros para a formação de nossa cultura nacional. Apesar das terríveis,
monstruosas condições em que a cultura negra se encontrou no Brasil ao
desembarcar dos navios negreiros - nas condições de cultura de escravos,
vilipendiada, desprezada, combatida à morte, violada, cuja substituição violenta, na
base do cacete e do batismo, foi tentada quando os senhores de escravos quiseram
impor aos negros, integra, a cultura dos colonos, da língua aos deuses. A força de
vida dos negros foi mais forte do que o chicote e a água benta, conseguindo manter
viva e permanente, em meio às incríveis condições da escravidão, uma face
original, mesclando-a no correr do tempo às duas outras matrizes da nação
brasileira, para dar como resultado a originalidade da cultura mestiça do Brasil,
única talvez no mundo. Tudo aqui se misturou, as línguas faladas na casa-grande,
na senzala e na mata, os santos vindos da Península Ibérica, os orixás chegados da
África, as iaras e os caboclos retirados da floresta e dos rios. Mulatos somos,
Senhor do Bonfim e Oxalá sejam louvados, amém, axé. Na Bahia, a cultura popular
entra pelos olhos, pelos ouvidos, pela boca (culinária tão rica, colorida e saborosa),
penetra sentidos adentro, determina a criação literária e artística, é sua viga mestra.
Determina, assim, a condição nacional da literatura e da arte: caráter popular
presente mesmo na obra mais refinadamente intelectual” (p.38-39)
“ [...] Como uma figura antiga, a baiana de perfeito colo desabrochado nas rendas
da bata, sentada em frente ao tabuleiro de acarajé e abará, de moqueca de aratu,
de cocada e beijus. Ela é como rainha da cidade, essa pobre negra que ganha
duramente a vida. De majestosa beleza, de fala mansa e coração de bondade, riso
aberto e claro, suas mãos criam cada dia a arte do vatapá e do caruru, do efó e do
xinxim de galinha. O bordado dos papéis que cobrem os tabuleiros recorda o papel
cortado da Polônia ou da China na pureza do desenho […] Junto aos tabuleiros das
baianas se acomodam os fregueses mais habituais, para saborear mingau de puba,
de milho e tapioca, sarapatel, bolo de aipim, o que há de mais gostoso para comer”
(p. 65-67)

“O CORAÇÃO DA VIDA POPULAR BAIANA SITUA-SE NA PARTE MAIS VELHA


DA CIDADE, a mais poderosa e fascinante […] Toda a riqueza do baiano, em graça
e civilização, toda a pobreza infinita, drama e magia nascem e estão presentes
nessa antiga parte da cidade. Largo do Pelourinho, do tronco onde os negros
escravos eram castigados. Das sacadas dos grandes sobradões, então residências
ricas de senhores de engenho, de nobres do Recôncavo, as sinhazinhas
contemplavam os negros no chicote, as costas em sangue, pagando pelos
malfeitos, era uma diversão. As pedras do calçamento são negras como os
escravos que as assentaram, mas quando o sol do meio-dia brilha mais
intensamente, elas possuem reflexos cor de sangue. Muito sangue correu sobre
elas, tanto e tanto que nem a distância do tempo pode apagar. Essa praça do
Pelourinho é ilustre e grandiosa: sua beleza é feita de pedra e de sofrimento. Por
aqui passa a vida inteira da Bahia, sua humanidade, a melhor e a mais sofrida”
(p.73)

“UM DOS LUGARES MAIS FASCINANTES DO MUNDO, A RAMPA DO MERCADO


no cais da Bahia. Assim chamada por ficar em frente do antigo Mercado Modelo,
próximo ao ancoradouro dos navios da Companhia de Navegação Baiana. Ali
arribam os saveiros vindos de Itaparica e do Recôncavo, carregados de frutas. Na
rampa, os balaios cheios das espécies mais belas e mais olorosas: mangas,
bananas, abacaxis, pinhas, pitangas, cajás, cajaranas, melancias, abacates, cajus,
sapotis, umbus, condessas, jacas-de-pobre, jacas moles e jacas duras, abios, a
fruta-pão, muitas outras. No pequeno porto, os saveiros, as velas coloridas” (p.76)

“Existem na Barra dois recantos admiráveis. No Porto da Barra, fica o Forte de


Santo Antônio, um forte velho, abandonado, o primeiro que se levantou na Bahia.
Data de 1536. Um pequeno porto com uma feira aos sábados e, nas manhãs de
domingo, os saveiros repousando, tudo isso ao lado da minúscula praia
concorridíssima onde os corpos das grã-finas se exibem aos olhos espantados e
cobiçosos dos mestres de saveiro. Uma vela azul corta o mar verde, esplêndido! Os
grandes navios passam ao longe, vê-se a fumaça que eles lançam. Baianas
vendem doces. O forte é belo, entrando pelo mar, sentinela da barra nos tempos
antigos” (p.80)

“[...] Ali pertinho está o cais da Companhia de Navegação Baiana, de onde largam
os pequenos navios para o Recôncavo e para a ilha de Itaparica. Os que vão levar
os passageiros para a Estrada de Ferro de Nazaré, cujos trilhos partem do porto de
São Roque, os que fazem a carreira de Cachoeira e os de Santo Amaro. Vale bem a
pena ao turista sair, num sábado, num desses pequenos navios, fazer a travessia
da barra, e depois entrar pelo rio Paraguaçu adentro, em cinco horas de viagem a
mais agradável, para visitar os tesouros de Cachoeira, a cidade histórica da
Independência, com suas casas coloniais de tetos pintados, suas igrejas
magníficas, sua velha Prefeitura. Para visitar São Félix e Muritiba com suas fábricas
de charuto e o seu cheiro doce de fumo que domina o ar e chega a entontecer o
viajante. Dali, nos vagarosos trens da Central da Bahia, seguirá o turista para
Conceição da Feira e São Gonçalo. Passará o domingo visitando estas cidades e
amanhecerá em Feira de Santana na segunda-feira, pronto para admirar a grande
feira de gado, para passear extasiado em frente ao Mercado, em meio à multidão
que chega do sertão para vender ali tudo o que o Nordeste possui, desde o
delicioso requeijão às alpargatas, desde as cestas e mocós até os gatos-do-mato e
as raposas. Um automóvel o levará depois à cidade de Santo Amaro, aristocrática
nos sobradões e na lembrança do esplendor do açúcar. Uma rodovia asfaltada liga
hoje essas cidades do Recôncavo - Feira, Cachoeira, Santo Amaro, Candeias,
Mataripe, São Francisco do Conde, toda a zona do petróleo. É passeio da maior
beleza e eu o recomendo com entusiasmo” (p.93)

“[…] O canto das baianas, onde ressoam atabaques e agogôs, lembra os cantos de
guerra dos caçadores negros nos desertos da África. Em fila, carregando galhos
sagrados de pitangueiras, seguem-se os baleiros, os vendedores de queimados,
doces e chocolates. Conduzem ramos de folhas, formam com as baianas a guarda
de honra do Senhor do Bonfim […] O branco predomina nos trajes, em honra ao pai
dos orixás, mas encontram-se todas as cores nos papéis pintados, nos desenhos
dos tabuleiros, nas flores sobre as bilhas, os moringues, os potes. Ah! a sedução
dessas bilhas, destes potes, destes moringues... As frutas da Bahia, mangas,
laranjas, sapotis, abacaxis, esplêndidas, saltam dos tabuleiros, são para o santo.
Porque Senhor do Bonfim, como os orixás negros, recebe presentes de frutas nos
ritos africanos” (p.125)

“[...] Antes, porém, falemos do largo no alto da colina. As barracas, de ban. deirolas
multicores de papel, se enfeitam também com as cores do vatapá amarelo-ouro, do
caruru esverdeado, do efó negro, do acarajé, do abará. As baianas servem a
comida nos pratos de flandres e barro. Tabuleiros de mangas e umbus, de abacaxis,
de laranjas e os refrescos de frutas, uma fartura de comida, a mais gostosa do
mundo, uma fartura de cores. o largo cheio de barracas, mais atrás os divertimentos
ingênuos: o circo de cavalinhos, a roda-gigante […] de todas as partes chegam
bilhas de água enfeitadas com papel de seda, cobertas de flores. Junto ao altar se
acumulam os tabuleiros de frutas trazidas para o Senhor do Bonfim. A água é
derramada na igreja e as baianas começam a lavar o mármore sagrado” (p.126)

“Junho é o mês do milho. É ele que domina as comemorações dos santos


padroeiros. De mistura com as fogueiras e os balões, o milho está presente durante
todo o mês. O milho e a laranja, as célebres laranjas de Bahia, sumarentas, os
enormes umbigos. Quanto maior o umbigo e mais fina a casca, melhor a laranja, diz
o povo. Milho das canjicas, dos mungunzás, dos manuês, dos acaçás, milho assado
nas fogueiras, pipocas, milho cozido com café. Pamonhas e bolos. Doces
envolvidos na palha crespa do milho. Junho é o seu mês, o tempo em que melhor
se come na cidade (excetuando o jejum da Semana Santa, é claro). A finíssima
canjica, a deliciosa pamonha, os manuês saborosíssimos. E o licor de jenipapo para
acompanhar […] no dia 13 é a festa de santo Antônio. As rezas são mais longas, a
sala mais enfeitada (quase sempre bandeirolas de papel), o baile também dura a
noite toda. Corre o jenipapo, come-se a canjica, soltam-se os primeiros fogos. Nos
candomblés, festeja-se Ogum” (p.132-133)

“Dizem os negros que são Cosme e são Damião são amigos de boa comida baiana
e por isso mesmo cozinham-se em honra deles todas as comidas de azeite de
dendê, especialmente o efó, o vatapá e o caruru. A grande festa, quando batem
todos os candomblés da cidade, é a 27 de setembro. A tradição do caruru de
Cosme e Damião ainda hoje é cultivada por inúmeras famílias. Entre elas, a da
finada Maria de São Pedro, que, todos os anos, em seu restaurante no Mercado
Modelo, oferece um caruru, com centenas de convidados, aos Ibejis” (p.135)

“[…] A festa de Pedra Preta é no Dois de Julho, quando o candomblé todo se


enfeita, quando vêm visitas de muito longe, outros pais de santo também que
dançam no terreiro de Joãozinho Nesse dia corre franca a jurema, bebida forte feita
com a casca da jurema fermentada em álcool, que pareceu deliciosa ao pintor
Manuel Martins e absolutamente terrível ao cinematografista Ruy Santos. Questão
de gosto. O caso é que seremos obrigados a bebê-la se não quisermos fazer uma
desfeita aos presentes. Talvez agrade mais ao visitante o inofensivo aluá de
gengibre ou de casca de abacaxi, um refresco delicioso. Eu aconselho a não
recusar a jurema, pois Pedra Preta é um caboclo juremeiro e quem não beber com
ele não contará com sua proteção nos amores e nos negócios” (p.140)

“[...] Na cidade do Salvador a cultura nasce, se forma e se afirma em bem estranhos


lugares, como por exemplo, uma barraca do mercado. Também nas mesas dos
restaurantes populares onde as moquecas, os xinxins, o vatapá, o caruru, o efó são
criações inigualáveis de arte. Na arte da culinária baiana todas as artes se reuniram.
Camafeu de Oxóssi está agora, com seu berimbau e sua picardia, seu riso largo e
sua voz molhada, em meio à riqueza e à cor da comida baiana, servindo vatapá e
alegria num dos dois restaurantes do novo Mercado” (p.218-219)
“MARIA DE SÃO PEDRO ERA UMA RAINHA FEITA DE ALEGRIA, bondade e arte.
Mestra da maior das artes, a da culinária, preservou e engrandeceu a tradição da
inexcedível comida baiana, sua cor, seu perfume, seu sabor divinos. Seu antigo
restaurante era uma festa em frente à rampa do Mercado Modelo, que o fogo
devorou. Creio que Odorico Tavares, Wilson Lins e eu muito concorremos para que
Maria de São Pedro e seu restaurante se fizessem célebres em todo o país. Seus
fregueses durante trinta anos, seus amigos de todos os dias, celebramos em prosa
e verso sua fama. Inesquecível Maria de São Pedro, rainha do vatapá e do efó, do
caruru e do abará, das moquecas e dos xinxins, do dendê e da pimenta, rainha da
delicadeza e da cordialidade! Sua morte abalou a cidade. Antigamente a entrada do
restaurante de Maria de São Pedro ficava em frente à rampa do primeiro Mercado
Modelo, e a porta servia ao mesmo tempo a uma barbearia e a uma banca de jogo
de bicho. Assim o freguês resolvia de uma vez uma série de problemas: fazia a
barba, arriscava um palpite no bicho e almoçava excelentemente. Nessa época o
restaurante servia a uma freguesia modesta de gente do cais, empregados no
comércio, barraqueiros do mercado, marítimos e uns poucos amantes da boa
cozinha - escritores e artistas - amigos de Maria. Aos poucos a fama do restaurante
propagou-se e a freguesia foi acrescida dos turistas. Hoje, no novo Mercado
instalado no prédio tão belo da antiga Alfândega, na mesma moldura da rampa,
envolto na brisa do mar, prossegue o restaurante de Maria de São Pedro sua obra
de civilização. Sob a direção do bom Luiz Domingos, titular da casa de Xangô e
cantor de música popular, filho de Maria de São Pedro, o restaurante continua a ser
uma festa onde as filhas e as netas de Maria, herdeiras de sua arte -e de sua
beleza, criam diariamente a mais pura e a mais saborosa comida baiana” (p. 248-
249)

“TEM FRENTE AO ANTIGO MERCADO MODELO, DEVORADO PELO FOGO, fica


o cais dos saveiros, a célebre "rampa". De velas arriadas, os saveiros descarregam
frutas e verduras, peixes e mariscos. Lá atrás, o Elevador Lacerda, ligando as duas
partes da cidade: a baixa e a alta. Na rampa movimenta-se um mundo de intensa e
dura vida: o mundo do cais, dos marinheiros, dos pescadores, dos vendedores de
frutas e de animais, macacos e raposas, tatus e coelhos, pássaros de variada
espécie. É o mundo das baianas com seus manuês e seus beijus, seus torsos de
seda e seus panos da costa. Poucas vezes se pode sentir aquele ar de rainha de
que falam os cronistas sociais como ao lado dessas baianas negras velhas e
solenes, de rosto afável e alegre, graves e suaves ao mesmo tempo […] Sobre
esses fatos que interessam ao povo da rampa - o último crime sensacional, o
encarecimento da carne-seca e da farinha” (p.308-309)

“No largo do Pelourinho, na calçada do Museu da Cidade, ou no pátio do Hotel do


Pelourinho - o mais belo de Salvador e nem por isso o mais caro - diante do
tabuleiro colorido e oloroso de cocadas, abarás, punhetas, cuscuz de tapioca
e de puba, pés de moleque, do maravilhoso doce de gengibre que se chama "a
moda", senta-se Romélia, mulher de mestre Pastinha, mulata risonha e ainda
faceira, fritando acarajés de dar água na boca. Os senhores visitantes devem
provar de cada coisa. As senhoras não tenham medo: acarajé bem-feito não
engorda. Não tenham tampouco medo da pimenta e do azeite de dendê, não
causam indigestão nem dor de barriga. Provem de tudo, assim de volta à casa
levarão na boca o sabor das gostosuras preparadas por Romélia de Pastinha,
minha comadre, e nos olhos a visão de seu sorriso feito ele também de açúcar, uma
doçura” (p.319)

“Se ocorrer batizado, aniversário, noivado, casamento, desquite na família do


visitante durante a permanência na Bahia e for o caso de uma festinha com
salgados e doces, encomende-os a dona Edna Leal, antiga diretora da Escola de
Culinária Sabor e Arte (onde estudou dona Flor), hoje aposentada como professora,
mas ainda aceitando encomendas de fregueses e amigos. Mãos de fada as de
Edna: não se contenta em fazer os quindins e papos de anjo, olhos de sogra e fios-
d'ovos mais gostosos do planeta, supera-se em bolos artísticos de grande efeito
nessas festinhas: barcos de piratas, Branca de Neve e os Sete Anões, naves
espaciais, com astronautas e marcianos, monumentos de ovos batidos, leite de
coco, açúcar e chocolate. Artísticos, mas sobretudo deliciosos” (p.321-322)

“NOS NAVIOS NEGREIROS VIERAM O DENDÊ E O GOSTO DA PIMENTA, a


culinária ritual dos negros, as comidas dos orixás. Os coqueirais cresciam nas
praias, e o português guloso trouxe suas receitas de doces, seu açúcar. Misturaram-
se os gostos: a mandioca dos indígenas, a branca farinha, o azeite cor de ouro do
dendezeiro, a pimenta, o coco, o amendoim, o gengibre. Os pratos portugueses
adquiriram maior picante, um gosto mais definido e forte. Os guisados africanos
perderam sua agressividade, ganharam maior finura. A cozinha sadia e simples dos
indígenas compareceu também com suas folhas, suas raízes, suas caças. Assim
nasceu a culinária baiana, sem dúvida e sem exagero, uma das mais finas e
saborosas do mundo. Certos pratos - como a moqueca de siri-mole, o vatapá, o efó
podem figurar dignamente numa pequena e extremamente selecionada antologia da
culinária universal. Uma cozinha nascida também ela, como se viu, da mistura,
tendo concorrido para sua originalidade as três raças fundamentais de nossa fusão
mestiça. Ainda aí se sente a matriz africana pesando sobre as demais: dela vem o
gosto picante de nessa culinária. Não há dúvida: nosso umbigo é a África. Na
cozinha baiana, três são os elementos característicos: o dendê, o coco, a pimenta.
Raro será o quitute onde pelo menos um deles não esteja presente. Os pratos mais
saborosos e de fama mais proclamada são o vatapá - maravilha de cor e cheiro, e
de sabor, é claro - o caruru, o efó, o acaçá, o acarajé, o abará, o sarapatel, o xinxim
(de galinha ou de cabrito -xinxim de bode, como se diz), as frigideiras: de camarão,
de caranguejo, de maturi, de aratu, de bacalhau, as moquecas: de peixe, de
camarão, de siri-mole, o aberém, o arroz de hauçá. Existe uma variante de culinária
baiana também digna de interesse e que poderíamos chamar de feirense em
homenagem a Feira de Santana, onde ela tem o seu centro. Trata-se da culinária
mais próxima talvez à indígena: vive sobretudo de caça e de folhas. Seu prato mais
célebre, a maniçoba, é feito com folhas de mandioca, que os índios chamavam de
mani. Outro quitute finíssimo: teiú moqueado. As sobremesas mais populares são
os quindins, as cocadas, os doces de leite (ambrosia), a baba de moça, as
fatias de parida, os manuês, as canjicas, os doces de frutas feitos em casa,
alguns dos quais esplêndidos como os de carambola, os de caju, os de
jenipapo, os de jaca, o doce de banana em rodinhas, dito doce de putas pois
se encontra em todos os castelos e casas de mulher-dama. Delicioso. Hoje,
vários são os restaurantes que servem comida baiana de boa, por vezes de alta
qualidade. Cito uns poucos, dos quais sou freguês. Na orla marítima: o Iemanjá -
excelente, moquecas de primeira, a direção de Anália, poderosa figura, minha
amiga e a graça de Conceição; o Bargaço, com seus maravilhosos pitus e a
gentileza de Leonel. Sob a direção de Conceição Reis, nos Aflitos, a Casa da
Gamboa oferece pratos baianos de admirável paladar - vista belíssima sobre o
golfo. No Mercado Modelo, além dos conhecidos restaurantes de Maria de São
Pedro e Camafeu de Oxóssi, encontram-se as baianas no andar térreo - qualquer
delas cozinha e serve a moqueca de seus sonhos” (p. 351-352)

“VITORINA, FILHA DE OMOLU E DE TEMPO, A NEGRA VITU, frita o mais gostoso


acarajé da Bahia e o vende na esquina do Cabeça: acarajé e abará, cocadas
diversas, moda e pé de moleque, por vezes tem doce de tamarindo, uma coisa!
Variam os doces no tabuleiro, não varia jamais o sorriso terno de Vitu a despachar
crianças, a conversar com os fregueses, comadre de quanto artista e escritor exista
na cidade, pois durante muito tempo fez ponto na porta do Anjo Azul, boate
sofisticada e super (ou sub) intelectual. Não se intelectualizou Vitorina, mas
certamente seu acarajé é uma obra de arte. As baianas fornecem uma nota de
alegre pitoresco às ruas e praças e nos dias de festa ritual vestem trajes magníficos,
com as cores de seus orixás, os colares, as pulseiras, os torsos e os balangandãs.
Algumas dessas baianas gozam de larga popularidade e seus quitutes
possuem fama. Em frente ao edifício da Alfândega, na Cidade Baixa, Odília
oferece uma cocada que é a maravilha das maravilhas. Outras mantêm-se no
mesmo ponto durante decênios, a vender à tarde ou à noite - nada existe de
mais saboroso do que mingau de puba (de tapioca ou de milho) pela
madrugada, quentinho, na hora dos últimos boêmios, quando a cidade dorme.
Damásia da Conceição sentou-se por mais de quarenta anos em frente à Escola de
Belas-Artes. Gerações de mestres e alunos, de pintores e desenhistas foram seus
fregueses, comprando-lhe acarajés e laranjas-de-umbigo. Quitéria de Brito ornou
com sua jovial presença a baixa dos Sapateiros durante trinta anos. Amigos e
conhecidos param e demoram numa prosa descuidada: comentam as festas de
terreiro, assuntos de encantados e encantamentos, feitiços, amores e a vida cara.
Numa cidade pobre de restaurantes populares, na qual a população raramente
almoça ou janta fora de casa, pobre sobretudo de restaurantes de preço barato e
pratos típicos, as baianas enfeitam as ruas e servem ao povo. Se não fossem elas,
com seu pequeno e oloroso comércio, onde saborear um abará, um acarajé, a
perfumada moqueca de aratu?” (p.352-354)

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