Fichamento - Bahia de Todos Os Santos
Fichamento - Bahia de Todos Os Santos
Fichamento - Bahia de Todos Os Santos
São
Paulo: Companhia das Letras, 2012.
“[...] A cidade da Bahia se divide em duas: a Cidade Baixa e a Alto. Entre o mar e o
morro, a Cidade Baixa é do grande comércio. As casas e portadoras, os
representantes de firmas de outros estados e do estrangeiro, os bancos, as
sociedades anônimas, a Associação Comercial, o instituto do Cacau. Antigamente,
quando o mar não se quebrava no cais, quando vinha até os fundos do Café
Pirangi, esta parte da cidade era tipicamente portuguesa, com seus casarões, seus
azulejos, suas escadas incômodas, um cheiro a mercadorias importadas
característico de armazéns e mercearias. As ruas mais próximas ao morro e as
ladeiras que partem em busca da Cidade Alta, igrejas como a da Conceição da
Praia que veio pronta de Portugal para ser armada aqui, tudo isso recorda as
cidades portuguesas. Mas na parte conquistada ao mar, onde foi antes o areal do
cais, as construções modernas já não lembram a colonização lusa. Prédios como o
do Instituto do Cacau, os modernos edifícios de cimento armado, os arranha-céus
construídos nessa área, a primeira a ser vista pelo turista que chega por mar,
modificaram a impressão inicial que se tinha da cidade. É bem verdade que logo se
encontra o viajante ante o edifício da Alfândega, tipicamente português, construído
durante o reinado de d. João vi, onde hoje se localiza o Mercado Modelo” (p.28-29)
“[...] Para além da Cidade Baixa no contorno da baía, fica a península de Itapagipe,
bairro de pequena burguesia pobre e de proletariado, separado do resto da cidade
por uma longa rua que parte da Associação Comercial e vai até a Calçada. Aí
estava localizada a célebre Feira de Água dos Meninos que um incêndio devorou
pouco antes de ser também devorado pelo fogo o Mercado Modelo. Em substituição
à feira célebre funciona hoje a Feira de São Joaquim, pouco adiante, ao lado do
edifício da Petrobras, em frente ao Orfanato de São Joaquim, que é uma das mais
belas casas coloniais da Bahia. A Cidade Alta, excetuando as ruas centrais de
comércio, é residencial, desdobrando-se em bairros no caminho do mar, subindo
colinas e encostas. À noite o silêncio povoa a Cidade Baixa. Ela dorme no cais, as
casas comerciais fechadas, bancos sem movimento, nos casarões e nos saveiros
de velas arriadas. A Cidade Alta movimenta-se para os cinemas, para as festas,
para as visitas. Os elevadores e planos inclinados a estas horas quase não têm
freguesia. As duas cidades se completam, no entanto, e seria difícil explicar de qual
das duas provém o mistério que envolve a Bahia. Porque o viajante o sente tanto na
Cidade Baixa como na Alta, pela manhã ou pela noite, no silêncio do cais ou nos
ruídos da multidão na baixa dos Sapateiros. Impossível explicar o mistério dessa
cidade. E segredo que ninguém sabe, chega talvez do seu passado na sombra do
forte velho sobre o mar, chega talvez do seu povo misturado e alegre, talvez do mar
onde reina Inaê, talvez da montanha coberta de verde e salpicada de casas. É certo
que todos o sentem. Ele rola sobre a Bahia, é como um óleo a envolvê-la” (p.29-30)
“[...] Ponto de encontro de raças e costumes, primeira capital do país, rica e famosa
nos inícios da nação brasileira, porto aberto aos barcos do mundo, às ideias e aos
forasteiros, tais condições propiciaram a mestiçagem, e o sincretismo cultural (e
religioso), a interpenetração de fontes e correntes de pensamento na mistura de
sangues - negro, branco, indígena - mistura sempre crescente até tornar-se a
característica dominante do panorama social, dando à Bahia uma poderosa cultura
popular, evidente nos diversos aspectos da vida do estado, estuante na capital. Dela
nos alimentamos todos os que aqui criamos literatura e arte. Mais de uma vez
escrevi ser a África o nosso umbigo. Como sensibilidade, maneira de ver a vida e o
mundo, forma de reagir aos acontecimentos, de viver e conviver, de pensar e agir,
somos pelo menos tão africanos quanto ibéricos. Definitiva foi a contribuição dos
negros para a formação de nossa cultura nacional. Apesar das terríveis,
monstruosas condições em que a cultura negra se encontrou no Brasil ao
desembarcar dos navios negreiros - nas condições de cultura de escravos,
vilipendiada, desprezada, combatida à morte, violada, cuja substituição violenta, na
base do cacete e do batismo, foi tentada quando os senhores de escravos quiseram
impor aos negros, integra, a cultura dos colonos, da língua aos deuses. A força de
vida dos negros foi mais forte do que o chicote e a água benta, conseguindo manter
viva e permanente, em meio às incríveis condições da escravidão, uma face
original, mesclando-a no correr do tempo às duas outras matrizes da nação
brasileira, para dar como resultado a originalidade da cultura mestiça do Brasil,
única talvez no mundo. Tudo aqui se misturou, as línguas faladas na casa-grande,
na senzala e na mata, os santos vindos da Península Ibérica, os orixás chegados da
África, as iaras e os caboclos retirados da floresta e dos rios. Mulatos somos,
Senhor do Bonfim e Oxalá sejam louvados, amém, axé. Na Bahia, a cultura popular
entra pelos olhos, pelos ouvidos, pela boca (culinária tão rica, colorida e saborosa),
penetra sentidos adentro, determina a criação literária e artística, é sua viga mestra.
Determina, assim, a condição nacional da literatura e da arte: caráter popular
presente mesmo na obra mais refinadamente intelectual” (p.38-39)
“ [...] Como uma figura antiga, a baiana de perfeito colo desabrochado nas rendas
da bata, sentada em frente ao tabuleiro de acarajé e abará, de moqueca de aratu,
de cocada e beijus. Ela é como rainha da cidade, essa pobre negra que ganha
duramente a vida. De majestosa beleza, de fala mansa e coração de bondade, riso
aberto e claro, suas mãos criam cada dia a arte do vatapá e do caruru, do efó e do
xinxim de galinha. O bordado dos papéis que cobrem os tabuleiros recorda o papel
cortado da Polônia ou da China na pureza do desenho […] Junto aos tabuleiros das
baianas se acomodam os fregueses mais habituais, para saborear mingau de puba,
de milho e tapioca, sarapatel, bolo de aipim, o que há de mais gostoso para comer”
(p. 65-67)
“[...] Ali pertinho está o cais da Companhia de Navegação Baiana, de onde largam
os pequenos navios para o Recôncavo e para a ilha de Itaparica. Os que vão levar
os passageiros para a Estrada de Ferro de Nazaré, cujos trilhos partem do porto de
São Roque, os que fazem a carreira de Cachoeira e os de Santo Amaro. Vale bem a
pena ao turista sair, num sábado, num desses pequenos navios, fazer a travessia
da barra, e depois entrar pelo rio Paraguaçu adentro, em cinco horas de viagem a
mais agradável, para visitar os tesouros de Cachoeira, a cidade histórica da
Independência, com suas casas coloniais de tetos pintados, suas igrejas
magníficas, sua velha Prefeitura. Para visitar São Félix e Muritiba com suas fábricas
de charuto e o seu cheiro doce de fumo que domina o ar e chega a entontecer o
viajante. Dali, nos vagarosos trens da Central da Bahia, seguirá o turista para
Conceição da Feira e São Gonçalo. Passará o domingo visitando estas cidades e
amanhecerá em Feira de Santana na segunda-feira, pronto para admirar a grande
feira de gado, para passear extasiado em frente ao Mercado, em meio à multidão
que chega do sertão para vender ali tudo o que o Nordeste possui, desde o
delicioso requeijão às alpargatas, desde as cestas e mocós até os gatos-do-mato e
as raposas. Um automóvel o levará depois à cidade de Santo Amaro, aristocrática
nos sobradões e na lembrança do esplendor do açúcar. Uma rodovia asfaltada liga
hoje essas cidades do Recôncavo - Feira, Cachoeira, Santo Amaro, Candeias,
Mataripe, São Francisco do Conde, toda a zona do petróleo. É passeio da maior
beleza e eu o recomendo com entusiasmo” (p.93)
“[…] O canto das baianas, onde ressoam atabaques e agogôs, lembra os cantos de
guerra dos caçadores negros nos desertos da África. Em fila, carregando galhos
sagrados de pitangueiras, seguem-se os baleiros, os vendedores de queimados,
doces e chocolates. Conduzem ramos de folhas, formam com as baianas a guarda
de honra do Senhor do Bonfim […] O branco predomina nos trajes, em honra ao pai
dos orixás, mas encontram-se todas as cores nos papéis pintados, nos desenhos
dos tabuleiros, nas flores sobre as bilhas, os moringues, os potes. Ah! a sedução
dessas bilhas, destes potes, destes moringues... As frutas da Bahia, mangas,
laranjas, sapotis, abacaxis, esplêndidas, saltam dos tabuleiros, são para o santo.
Porque Senhor do Bonfim, como os orixás negros, recebe presentes de frutas nos
ritos africanos” (p.125)
“[...] Antes, porém, falemos do largo no alto da colina. As barracas, de ban. deirolas
multicores de papel, se enfeitam também com as cores do vatapá amarelo-ouro, do
caruru esverdeado, do efó negro, do acarajé, do abará. As baianas servem a
comida nos pratos de flandres e barro. Tabuleiros de mangas e umbus, de abacaxis,
de laranjas e os refrescos de frutas, uma fartura de comida, a mais gostosa do
mundo, uma fartura de cores. o largo cheio de barracas, mais atrás os divertimentos
ingênuos: o circo de cavalinhos, a roda-gigante […] de todas as partes chegam
bilhas de água enfeitadas com papel de seda, cobertas de flores. Junto ao altar se
acumulam os tabuleiros de frutas trazidas para o Senhor do Bonfim. A água é
derramada na igreja e as baianas começam a lavar o mármore sagrado” (p.126)
“Dizem os negros que são Cosme e são Damião são amigos de boa comida baiana
e por isso mesmo cozinham-se em honra deles todas as comidas de azeite de
dendê, especialmente o efó, o vatapá e o caruru. A grande festa, quando batem
todos os candomblés da cidade, é a 27 de setembro. A tradição do caruru de
Cosme e Damião ainda hoje é cultivada por inúmeras famílias. Entre elas, a da
finada Maria de São Pedro, que, todos os anos, em seu restaurante no Mercado
Modelo, oferece um caruru, com centenas de convidados, aos Ibejis” (p.135)