Diálogos Sobre Educação No Brasil

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Diálogos sobre Educação no Brasil


Carlos Douglas Martins Pinheiro Filho (org.)

6
Bianca Salles Pires
Bárbara Rolim
Camila Faria Pançardes
Carlos Douglas Martins Pinheiro Filho
Cláudia Nascimento
Daniel Luiz Arrebola
Daniel Maribondo Barboza
Felipe Moura Fernandes
Guilherme Marcondes dos Santos
Hully Guedes Falcão
Iago Menezes de Souza
Isabel Veloso de Oliveira
Karoline Ruthes Sodré
Juliana Lencina
Leila Maribondo Barboza
Luana Reis Andrade
Luci Faria Pinheiro
Maria Thereza C. Gomes de Menezes
Marcelo Gomes
Márcio Malta (Nico)
Rodrigo Lima
Rodrigo Ribeiro
Railson Barboza
Rosângela Gonzaga de Almeira
Sabrina Parracho Santana

7
8
Atribuição-Não Comercial-Sem Derivações 2.0 Genérica (CC BY-NC-ND 2.0)

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EDITORA UANÁ
Editora-chefe Capa
Leila Maribondo Barboza Leila Maribondo Barboza

Produção Editorial Diagramação


Carlos Douglas Martins Carlos Douglas Martins
Pinheiro Filho Pinheiro Filho

D536

Diálogos sobre educação no Brasil / Carlos Douglas Martins Pinheiro


Filho (Org.). – Niterói : Editora Uaná, 2023.
151 p.
E-Book ISBN 978-65-999634-7-6
DOI http://doi.org/10.36599/uana-978-65-999634-7-6
Disponível em: https://www.editorauana.com.br//livrosuana

1 – Educação – Brasil. I. Pinheiro Filho, Carlos Douglas Martins (org.).

CDD 370.0981
Ficha catalográfica elaborada por Elenice Gloria Martins Pinheiro - CRB7|5338

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Prefácio

A educação brasileira sofreu um grave revés com


a decretação do Novo Ensino Médio de maneira
autoritária pelo governo golpista de Michel Temer. A
proposta é um “cavalo de troia”. Esconde por trás da
suposta universalização do ensino integral, fato que não
aconteceu, um viés elitista cujo expediente é o
rebaixamento dos currículos escolares para manter
privilégios de classe que pudessem ser ameaçados por
uma educação pública, gratuita e de qualidade.

“Mudar para continuar o mesmo”, a celebre frase


de Sartre, se aplica perfeitamente a essa reforma
regressiva, cujos propósitos não manifestos são:
impedir que os estudantes das escolas públicas
ingressem nas universidades públicas; desqualificar o
ensino público para valorizar o ensino privado pago; e
estreitar os horizontes de possibilidades dos jovens de
classes populares para que aceitem empregos
precarizados.

Toda história da educação no Brasil poderia ser


resumida nessa luta anacrônica da classe dominante
contra a universalização da educação, pois aquela está
mais preocupada com a manutenção das desigualdades

6
sociais do que com a modernização do país. Não sem
razão, todas as disciplinas e campos teóricos que
pesquisam educação, escola e políticas públicas,
transparecem esse conflito e problemática.

Diálogos sobre educação no Brasil é um livro cujo


propósito consiste em reunir artigos de professores-
pesquisadores, com diferentes formações disciplinares
na área de Ciências Humanas, mas com um interesse
em comum: compreender o caráter e as questões da
educação no Brasil. O resultado da junção dessas
abordagens é um mosaico de reflexões críticas, que
trazem colaborações qualificadas, originais e relevantes
sobre temas atuais para o campo educacional.

Os artigos trazem os seguintes debates: abrindo o


livro, meu artigo sobre a trajetória do intelectual
orgânico da educação, Demeval Saviani, que completa
80 anos em dezembro de 2023; depois, o artigo de
Marisete Beltrame e Vanessa de Quadros sobre a ética
na educação e o compromisso docente na formação de
indivíduos críticos e comprometidos com a
transformação social; na sequência, o artigo de Luciano
da Costa, que alerta sobre a necessidade de constante
adaptação da Educação de Jovens e Adultos conforme
a realidade social alunos trabalhadores; depois, o artigo

7
de Gabriela Dezidério sobre as problemáticas no ensino
de arte e cultura afrobrasileira em escolas da rede de
Angra dos Reis/RJ; e, por último, o artigo de Leila
Barboza sobre o PNAE e a participação popular na
construção da soberania alimentar.

Carlos Douglas Martins Pinheiro Filho

8
Sumário

Demeval Saviani: um intelectual orgânico no


campo educacional.
Carlos Douglas Martins Pinheiro Filho ....................... 10

Formação integral do sujeito: a prática docente


e a ética da responsabilidade.
Marisete Tramontina Beltrame e Vanessa Salete Bicigo
de Quadros............................................................. 35

História e trabalho: uma aproximação


necessária na Educação de Jovens e Adultos, o
caso da Região dos Lagos/RJ.
Luciano Cesar da Costa.............................................58

Desafios para uma educação antirracista na


Costa Verde: um estudo de caso na rede
pública de ensino de Angra dos Reis.

Gabriela da Silva Dezidério ...................................... 93

O PNAE e a participação popular na construção


da soberania alimentar.

Leila Maribondo Barboza ....................................... 129

9
Demeval Saviani: um intelectual orgânico
no campo educacional

Carlos Douglas Martins Pinheiro Filho1

1
Doutor em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PPGSA/UFRJ); Mestre em Comunicação e Cultura pelo Programa de
Pós-Graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (ECO-POS/UFRJ); Licenciado e Bacharel em
Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Pesquisador vinculado ao Núcleo de Estudos de Cidadania, Trabalho
e Arte (NECTAR/UFF). Foi Secretário da Revista Sociologia &
Antropologia (ISSN 2236-7527), do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia da UFRJ e Editor adjunto da Revista
Ensaios (ISSN 2175-0564), do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da UFF. Atualmente é Editor-chefe da Revista Menó (ISSN
2764-5649), Editor adjunto da Editora Uaná e Consultor da Editora
Eora. Professor de Sociologia na Escola Técnica Estadual Henrique
Lage, da Fundação de Apoio à Escola Técnica do Estado do Rio de
Janeiro (FAETEC/RJ); no Colégio Estadual Conselheiro Macedo
Soares, da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro
(SEEDUC/RJ) e no Colégio Curso Voltaire. Publicou o livro O museu
de arte contemporânea de Niterói: contextos e narrativas (2022),
pela Editora Dialética; e o livro de poesias Chave-mestra (2023),
pela Editora Uaná.

E-mail: [email protected]
Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/0284744290033729

10
Resumo: O artigo aborda a importância do pensador
brasileiro Demeval Saviani e sua teoria da educação, a
pedagogia histórico-crítica, cuja relevância continua
atual para o campo educacional brasileiro, destacando a
influência do marxismo na obra de Saviani e sua
posição como intelectual orgânico, comprometido com
os interesses da classe trabalhadora. Além de resgatar
a memória de Saviani, que completa 80 anos de vida
em 2023, o artigo enfatiza a atualidade de sua teoria
pedagógica para compreender os desafios educacionais
contemporâneos no Brasil. Mesmo aposentado, Saviani
prossegue como uma referência para a educação
brasileira e seu livro "Escola e Democracia" mantém a
vitalidade reflexiva após 40 anos de publicação. Assim,
o artigo pretende analisar e problematizar as
abordagens de Saviani em relação aos problemas
atuais da educação brasileira, destacando a importância
contínua de sua obra e seu pensamento crítico-
reflexivo.

Palavras-chave: Demeval Saviani; educação brasileira;


pedagogia histórico-crítica; intelectual orgânico;
marxismo.

11
A edição do volume Diálogos Sobre Educação,
dedicado a pensar de forma interdisciplinar a educação
no Brasil, tornou oportuna a reflexão que é objeto deste
artigo. Em 2023, comemoramos os 80 anos de vida do
professor e pesquisador da educação brasileira,
Demeval Saviani, assim como os 40 anos de uma de
suas obras mais emblemáticas, Escola e Democracia,
publicada originalmente em 1983, que chegou em 2021
a sua 44ª edição com grande vitalidade e relevância
para o campo educacional.

Demeval Saviani, é um intelectual cuja trajetória é


parte indissociável da própria história da educação
brasileira, além de ser inegável a atualidade de sua
teoria pedagógica, nomeada pedagogia histórico-crítica.
Segundo José Claudinei Lombardi, professor da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),
Saviani é um dos três grandes intelectuais
sistematizadores de concepções pedagógicas voltadas
à realidade educacional brasileira, dividindo a posição
com Anísio Teixeira e Paulo Freire. Porém, diferente
dos demais, Saviani realiza sua obra a partir da
influência cabal das teorias marxistas, estruturando uma
teoria pedagógica crítica e dialética, que relaciona a
educação com a estruturação social em vista da
transformação da sociedade (2021).

12
Apesar de professor universitário e pesquisador,
Saviani não é apenas um intelectual tradicional, mas,
conforme conceitualizado por Gramsci, um “intelectual
orgânico”, um pensador comprometido com os
interesses da classe trabalhadora cujo principal objetivo
de sua produção é contribuir para a consciência dela.
Apesar de sua importância história enquanto um
“clássico da educação brasileira”, a maior relevância de
seu trabalho reside na perspectiva crítico-reflexiva de
seu pensamento. Afinal, desde que Saviani formulou
sua teoria pedagógica, há 40 anos atrás, as
desigualdades sociais e seus reflexos educacionais
permanecem praticamente intactos.

Neste sentido, o propósito desse artigo não é


somente resgatar a memória de um importante autor na
literatura educacional; o que em si é relevante, pois o
retorno aos autores clássicos nas ciências sociais não
diz respeito apenas a reverência perante teorias
ultrapassadas, mas da necessidade de entendimento de
aspectos não-empíricos, de aspectos ideológicos, de
integrar e dar concisão a um campo teórico. Entretanto,
no caso de Saviani, sua relevância não decorre
somente da importância histórica de seu pensamento,
ou seja, não apenas do que ele já foi no passado, mas
do que é, daquilo que sua teoria pedagógica colabora

13
para o entendimento da realidade educacional no
mundo de hoje, em suma, de sua atualidade.

Não é por acaso, mesmo aposentado de suas


atividades acadêmicas e educacionais, Saviani continua
amplamente requisitado para dar respostas a problemas
atuais da educação brasileira, assim como seu livro,
Escola e Democracia, chegou a 44ª edição, em 2021, e
parece não dar grandes sinais de cansaço ou
desatualização ao longo dessas quatro décadas. Por
isso, o propósito desse artigo também é registrar,
analisar e problematizar as abordagens de Saviani para
compreender os problemas contemporâneos da
educação brasileira.

O nascimento do intelectual orgânico

A trajetória de Demeval Saviani é, ela mesma, um


produto exemplar do contexto educacional brasileiro,
especialmente para compreender a política educacional
destinada a formação da classe trabalhadora durante as
primeiras décadas do século XX. Nascido em 25 de
dezembro de 1943, mas somente registrado em 3 de
fevereiro de 1944, na Fazenda Santo Antônio em Posse
da Ressaca, hoje município de Santo Antônio de Posse,

14
no estado de São Paulo. Seus pais, camponeses filhos
de imigrantes italianos, "não conheceram os bancos
escolares", como o próprio Saviani escreveu na
dedicatória de sua tese de doutorado.

Oriundo de duas famílias italianas de origens


operárias, seus avós paternos e maternos emigraram da
Itália para o Brasil em 1888, ano da abolição da
escravidão, com o propósito de trabalhar nas lavouras
de café no noroeste paulista substituindo a mão de obra
escrava recém liberta. A vinda de seus antepassados
para as terras brasileiras foi produto da famigerada
política de branqueamento que se seguiu a abolição da
escravatura, mas o racismo da política migratória não
representou para as populações imigrantes condições
dignas de trabalho. Em entrevista concedida ao blog
Marxismo21, Saviani comenta que na época de seus
pais “[...] as escolas rareavam no Brasil e, no interior,
eram praticamente inexistentes. Dessa forma, nem meu
pai, nem minha mãe, chegaram a frequentar, por um dia
sequer, os bancos escolares” (LOMBARDI; SAVIANI,
2021).

Os desafios da vida rural, num regime de


semiescravidão, forçaram seu pai a se transferir com
toda família para a capital, São Paulo, onde se

15
empregou como foguista de caldeira na indústria.
Conforme o relato do próprio Saviani, essa mudança do
campo para a cidade possibilitou oportunidades
educacionais, para ele e seus irmãos, que não existiram
para seus pais. Sendo o quinto filho de um total de oito
irmãos, na capital, pode cursar o primário completo,
entre 1951 e 1954, no Grupo Escolar de Vila Invernada,
que não passava de um galpão de madeira na periferia
de São Paulo.

Na época, a família de Saviani via na educação


ofertada pela Igreja Católica uma das poucas
oportunidades de formação escolar e letramento para
um filho de camponeses analfabetos recém
empregados como operários de baixa qualificação na
indústria. Conforme relato do próprio: “[...] em 1955 fiz o
Curso de Admissão ao Ginásio na paróquia do bairro
[...] e, em setembro desse ano, [...] fui [...] para a capital
do Mato Grosso estudar no seminário católico” (Idem, p.
2).

Cabe destacar que a hegemonia católica na


formação escolar primária e secundária, que se deu
sem contestação da colonização ao império, perdeu
força somente durante a transição republicana, mas não
deixou de ser majoritária nas décadas posteriores,

16
especialmente fora dos grandes centros urbanos e entre
as classes populares. Segundo o professor Marcos
Marques de Oliveira, “somente na década de 1990,
durante os dois governos do ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso, é que o desenvolvimento do ensino
fundamental será estimulado a ampliar [...] as
oportunidades de acesso” (OLIVEIRA, 2003, p. 954).

Em 1962, Saviani ingressou no Seminário Maior e


iniciou os estudos no Seminário Central de Aparecida
do Norte, estado de São Paulo, tendo cursado dois anos
de filosofia. O segundo ano coincidiu com o primeiro
ano de Faculdade em decorrência do vestibular que
prestou na Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e
Letras de Lorena. Segundo o próprio, “a orientação
filosófica seguida no Seminário era a Escolástica, mais
precisamente, o Tomismo” (LOMBARDI, SAVIANI,
2021, p. 3). Porém, como destaca, acompanhava a
agitação política do governo João Goulart a partir de
jornais alternativos como o “Brasil, Urgente”, torcendo
pelas reformas de base e pelo avanço das forças
progressistas. Em dezembro de 1963 desliga-se
definitivamente do Seminário e solicita transferência
para o Curso de Filosofia da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP).

17
Impossibilitado de dedicar-se somente aos
estudos durante a graduação por conta de sua condição
de classe, passou a trabalhar em meio período no
Banco Bandeirantes do Comércio. Depois, tendo sido
aprovado em concurso público, ingressou como
bancário no Banco do Estado de São Paulo, atividade
laboral que manteve até março de 1968, quando passou
a dedicar-se exclusivamente ao magistério. Diferente de
grande parte dos intelectuais que ingressavam como
professor em universidades, Saviani teve de dividir sua
formação superior entre estudo e trabalho, e nunca
pode se dedicar exclusivamente as atividades
acadêmicas.

Logo assim que ingressou na PUC-SP passou a


participar da militância estudantil, onde já manifestava
alguma influência do marxismo. Porém, sua militância
estudantil seria atravessada pelo golpe militar, pois em
1964 foi instituída a lei nº 4.464, conhecida como Lei
Suplicy, que extinguiu a UNE, substituindo-a pelo DNE
(Diretório Nacional de Estudantes). A situação de
ilegalidade da representação estudantil implicou que o
movimento iniciou o ano letivo de 1965 em apuros, com
grandes dificuldades e sem recursos. No mesmo

18
período, passou a participar da luta política contra a
ditadura por meio da militância na Ação Popular (AP)2.

No final de 1966 concluiu o Curso de Filosofia e


foi convidado pelo Prof. Joel Martins para se
especializar em Filosofia da Educação com o propósito
de assumir essa disciplina na própria PUC. Depois de
formado foi contratado como professor assistente, tendo
assumido a regência da disciplina Fundamentos
Filosóficos da Educação para o 2º ano de Pedagogia.
Também passou a lecionar as aulas de Filosofia e
História da Arte no Colégio Estadual de São João
Clímaco, na periferia de São Paulo.

Durante sua experiência acadêmica, observou


que as reuniões entre militantes na universidade
conseguiam avançar com os documentos que
analisavam o imperialismo, as pressões e intervenções
dos Estados Unidos na América Latina, mas eram
insuficientes na análise da situação brasileira. Deste
modo, Saviani concluiu que sua tarefa principal deveria
ser desenvolver estudos que preenchessem essa
lacuna a fim de subsidiar teoricamente as lutas da

2
Ação Popular foi um movimento social da esquerda católica que, a
partir de 1964, se engajou na luta contra a ditadura e, por conta
disso, entrou na clandestinidade.

19
classe trabalhadora pela transformação da sociedade
brasileira.

Assim, a partir dessa conclusão crítica, Saviani


justifica a superação do nacionalismo progressista
predominante no movimento estudantil e sua posterior
ruptura com a Ação Popular, fazendo nascer o
intelectual orgânico da classe trabalhadora. Dessa
maneira que Saviani, em sua tese de doutorado sobre O
conceito de sistema na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, incorporou filosoficamente o
materialismo histórico-dialético. Segundo o autor, “a
partir daí toda a minha produção intelectual se orientou
pela perspectiva do marxismo” (LOMBARDI; SAVIANI,
2021, p.10).

Dentre os elaboradores de teorias pedagógicas no


Brasil, apenas Saviani se identifica com o marxismo
como concepção base para sua elaboração intelectual,
mas que não foi uma opção desde o primeiro momento
e sim algo que foi amadurecendo gradativamente
durante sua vida. O autor destaca que Saviani, em
termos biográficos, pode ser compreendido como um
“filho de trabalhadores assumindo uma posição de
classe e uma concepção produzida para alicerçar a

20
classe trabalhadora de análises críticas e consistentes”
(LOMBARDI, 2021, P.17).

Pedagogia Histórico-Crítica

Segundo o próprio Saviani, considerando os livros


publicados, sua produção pode ser enquadrada em três
grandes eixos temáticos: política educacional, história
da educação, e pedagogia e teorias da educação. No
presente artigo, o foco principal da análise se dá com
relação ao último eixo, onde se enquadra a teoria
pedagógica específica de Saviani, a pedagogia
histórico-crítica. Porém, não seria possível compreender
o pensamento do autor, consequentemente sua teoria
educacional, sem explorar suas pesquisas de uma
maneira mais abrangente.

Com a tese de doutorado, Saviani inicia suas


pesquisas em âmbito da política educacional,
inicialmente estudando o conceito de sistema na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, trabalho que
resultou no livro Educação brasileira: estrutura e
sistema lançado em 1973 chegando. Depois, seguiu
com a tese de livre-docência, dando origem ao livro

21
Política e educação no Brasil: o papel do Congresso
Nacional na Legislação do Ensino, publicado em 1987.

Do acompanhamento do processo de tramitação


do projeto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação,
surgiu o livro A nova lei da educação (LDB): trajetória,
limites e perspectivas, publicado em 1997, no ano
posterior a promulgação da lei.

“Uma característica específica de


todos esses livros do eixo da política
educacional é que se trata de livros-
documento porque são
acompanhados de anexos com a
transcrição integral dos documentos
legais (leis, decretos, pareceres,
resoluções) objetos da análise
efetuada que podem, assim, ser
diretamente consultados pelos
professores, gestores da educação
e demais agentes das redes de
ensino” (LOMBARDI; SAVIANI,
2021, p.11).

As pesquisas referentes à história da educação


foram divulgadas mais tarde, constituindo o eixo de
pesquisa mais recente de Saviani, publicados
inicialmente no livro História das ideias pedagógicas no
Brasil, livro lançado em 2007. Em 2013, publicou o livro
Aberturas para a história da educação: do debate
teórico-metodológico no campo da história ao debate
sobre a construção do sistema nacional de educação no

22
Brasil. E em 2015, o livro História do tempo e tempo da
história: estudos de historiografia e história da
educação.

Os livros relativos a esse eixo de pesquisa, além


de publicados em um momento histórico no qual Saviani
já era considerado um autor consagrado no campo
educacional brasileiro, constituíam temáticas mais
instrumentais e enciclopédicas, por isso mesmo todos
eles foram contemplados com o prêmio Jabuti nos anos
seguintes a suas publicações.

O mesmo não se pode dizer das publicações


referentes à pedagogia e teorias da educação, onde
Saviani deu maior ênfase a suas teorias educacionais
de viés crítico, sob influência do marxismo. O primeiro
livro publicado com relação a esse eixo de pesquisa foi
Educação: do senso comum à consciência filosófica,
lançado em 1980. Depois vieram Escola e democracia,
de 1983, chegando em 2021 à 44ª edição; Pedagogia
histórico-crítica: primeiras aproximações, lançado em
1991; Pedagogia histórico-crítica, quadragésimo ano:
novas aproximações, lançado em 2019; A pedagogia no
Brasil: história e teoria, lançado em 2008; e, em
conjunto Newton Duarte, Pedagogia histórico-crítica e
luta de classes na educação escolar, publicado em

23
2012, mas que, ao se esgotar, foi relançado em 2021
com o novo título Conhecimento escolar e luta de
classes: a pedagogia histórico-crítica contra a barbárie.

Apesar de alguns desses livros serem de


pesquisas tão criteriosas e qualificadas quanto os
demais, tendo sido publicados recentemente, nenhum
deles foi objeto de premiações oficiais ou consagração,
o que nos leva a pensar sobre o impacto de sua
natureza crítica. Uma das respostas dadas por Saviani
em uma entrevista concedida para o blog Marxismo21
(LOMBARDI; SAVIANI, 2021, p.15) é elucidativa para
compreender essa questão. Quando questionado sobre
os motivos para que sua teoria educacional, a
pedagogia histórico-crítica, seja tão pouco trabalhada
nos cursos de pedagogia, Saviani argumenta que
existem três razões fundamentais para que isso
aconteça.

Primeiro o autor elenca o fato de a pedagogia


histórico-crítica ser uma teoria contra-hegemônica, não
sendo assumida como legítima nas instâncias
decisórias da política educacional ao nível do MEC e
Conselho Nacional de Educação, das Secretarias de
Educação e Conselhos Estaduais de Educação, cujas
normas as redes escolares devem seguir.

24
Afinal, a exemplo da abordagem realizada em seu
livro Escola e democracia, Saviani traça uma reflexão
crítica contundente da pedagogia tradicional e das
teorias não-críticas, expondo seu caráter limitado e
ideológico no sentido de servirem a manutenção da
sociedade de classes. Pois, considerando que a escola
é determinada socialmente, a escola na sociedade
capitalista necessariamente reproduz a dominação e a
exploração (SAVIANI, 2008, p.24).

Outro fator fundamental para Saviani é que a


maioria das instituições formadoras integra a rede
privada de educação, fazendo com que a grande
maioria dos docentes que lecionam na educação básica
pública sejam formados em escolas superiores privadas
de discutível qualidade.

Com efeito, três quartos das vagas


da educação superior no Brasil são
ofertadas pela rede privada. Assim,
os egressos da educação pública
formados pelos cursos de
pedagogia e demais licenciaturas
são minoria e, além disso, a maior
parte deles não se destina às
escolas públicas de educação
básica, indo para escolas básicas
privadas destinadas às elites ou
para o próprio ensino superior. E,
via de regra, os cursos superiores
privados de formação de
professores não se interessam em

25
adotar a PHC [pedagogia histórico-
crítica] como a teoria orientadora da
organização e do modus operandi
dos currículos formativos
(LOMBARDI; SAVIANI, 2021, p.15).

Como terceiro e último fator, o mesmo ocorreria


nas universidades públicas, onde os professores,
mesmo progressistas, estariam atraídos pela nova onda
do pensamento pós-moderno que, a par de alimentar
uma desconfiança em relação ao marxismo, guiam-se
pelos chamados novos paradigmas valorizando ideias
como o multiculturalismo, diversidade, pluralismo de
concepções, o que favorece um certo ecletismo.

Atualmente, o pensamento crítico tem sido alvo de


ataques ainda mais encarniçados, com perseguições e
acusações de que os professores “doutrinam” os alunos
nas escolas, mas como argumenta Saviani, os
professores críticos não precisamos doutrinar, “nos
basta cumprirmos com competência a função de instruir
as novas gerações mostrando a realidade, esclarecendo
como funciona a sociedade” (Idem, p. 22).

Ou seja, são eles, os conservadores


que, visando perpetuar essa forma
de sociedade com todos os seus
conflitos e injustiças, não têm como
justificar racionalmente sua posição
precisando, em consequência,
doutrinar, fazer proselitismo
recorrendo, inclusive, a mentiras

26
para manter a população
subordinada a seus interesses. Isso
salta aos olhos com a emergência
da proposta da "escola sem partido"
contra a qual tenho afirmado que,
para a pedagogia histórico-crítica,
na sociedade de classes, portanto,
na nossa sociedade, a educação é
sempre um ato político, dada a
subordinação real da educação à
política (idem ibidem).

Principalmente essa característica reflexiva que


orienta a rejeição da educação burguesa ao
pensamento crítico, pois este reconhece que a
educação não é isenta de influência política, e a
educação “neutra” é uma forma eficiente de servir aos
interesses dominantes. Segundo Saviani, “a
neutralidade da educação” visa estimular o idealismo
dos docentes fazendo-os acreditar na autonomia da
educação em relação à política, o terá, invariavelmente,
um resultado inverso, pois em vez de preparar os
estudantes para “atuar de forma autônoma e crítica na
sociedade”, formarão gerações ajustadas à ordem
estabelecida e conformadas as condições de
dominação às quais estão submetidas.

Por isso, programas ideológicos reacionários


como o “escola sem partido” visam, explicitamente,
subtrair a escola as “ideologias de esquerda”, buscando
extinguir a influência dos partidos de esquerda e

27
colocando a comunidade escolar sob a influência da
ideologia e dos partidos da direita, portanto, a serviço
dos interesses dominantes.

Atualidade do pensamento crítico

Pensando na conjuntura recente, o pensamento


crítico nos ajuda a compreender que após o golpe no
governo Dilma Roussef, em 2016, a primeira reforma
regressiva do governo Temer foi a inviabilização do
Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado pela Lei
n. 13.005, sancionada em 25 de junho de 2014. O
propósito era neutralizar os limitados avanços dos
governos Lula e Dilma, retomando o espírito autoritário
que foi a marca do período da ditadura militar.

Esse autoritarismo fica evidente na


reforma do ensino médio, baixada
por Medida Provisória sem sequer
dar conhecimento prévio às
Secretarias de Educação e aos
Conselhos Estaduais de Educação
que, pela LDB, são os responsáveis
pela oferta pública desse nível de
ensino [...]. O caráter autoritário fica
claro, também, nas medidas
relativas à realização da III
Conferência Nacional de Educação,
intervindo no Fórum Nacional de
Educação à revelia do que dispõe a
lei 13.005, de 25 de junho de 2014,

28
que aprovou o Plano Nacional de
Educação 2014-2024. Tal
autoritarismo se faz presente, ainda,
no movimento “escola sem partido”,
merecidamente chamado por seus
críticos de “lei da mordaça”, pois
explicita uma série de restrições ao
exercício docente negando o
princípio da autonomia didática
consagrado nas normas de
funcionamento do ensino
(LOMBARDI; SAVIANI, 2021, p. 31).

A referida reforma altera diversos artigos da LDB


e institui novas regras que simplificam e mutilam a
formação básica em cinco itinerários formativos
arbitrários previstos no Art. 36: I - Linguagens; II -
Matemática; III - Ciências da natureza; IV - Ciências
humanas; e V - Formação técnica e profissional. Onde a
suposta flexibilidade dos itinerários promove na verdade
uma predeterminação camuflada, pois a grande maioria
dos estudantes, especialmente na rede pública, serão
encaminhados para a formação técnica e profissional.
Segundo Saviani, a “livre opção pelo itinerário” sustenta-
se na falácia de que “adolescentes na faixa de quinze
anos já estejam em condições de definir seu projeto de
vida e exercer sua liberdade de escolha elegendo um
itinerário consentâneo com seu projeto de vida” (idem,
p.33).

29
Em lugar da liberdade de escolha, o
que a reforma promove é a
demissão da responsabilidade dos
adultos, de modo geral e,
especificamente, dos professores
quanto à orientação que lhes cabe
propiciar a estudantes ainda na
idade da adolescência (idem
ibidem).

No que diz respeito a implementação do ensino


integral, o Novo Ensino Médio, em lugar de promover o
ensino em tempo integral para todos objetiva, em
verdade, a exclusão de todos os que trabalham, pois
estes não poderiam compatibilizar o horário de trabalho
com a frequência às aulas e, por isso, não se
beneficiarão do “ensino integral”. Este retrocesso
educacional iniciado no governo Temer se aprofunda de
maneira extrema no governo Bolsonaro.

De fato, logo após assumir, o


próprio Bolsonaro declarou: “não
vim para construir nada; vim para
destruir”. No caso da educação, o
projeto é destruir a educação
pública submetendo todos os níveis
e modalidades de ensino aos
interesses privados convertendo a
educação em mercadoria (idem, p.
34).

Da mesma maneira, segundo Saviani, a Base


Nacional Comum Curricular (BNCC) já havia sido
contemplada pela LDB nas Diretrizes Curriculares

30
Nacionais, definidas pelo Conselho Nacional de
Educação para os diferentes cursos, níveis e
modalidades de ensino.

Com base num modelo que fracassou nos


Estados Unidos, o grupo que assumiu o governo
brasileiro em consequência do golpe de 2016 veio
propor a BNCC com o propósito de subordinar
inteiramente a educação aos mecanismos de mercado.
A nova BNCC teve o propósito de adequar o modelo
educacional brasileiro ao funcionamento dos parâmetros
internacionais e das avaliações gerais padronizadas,
subordinando toda a organização e funcionamento da
educação nacional à referida concepção de avaliação.

No Brasil, esse modelo de avaliação


orientado pela formação de rankings
e baseado em provas padronizadas,
aplicadas uniformemente aos alunos
de todo o País por meio da Provinha
Brasil, Prova Brasil, Enem, Enade,
está, na prática, convertendo todo o
“sistema de ensino” numa espécie
de grande “cursinho pré-vestibular”,
pois todos os níveis e modalidades
de ensino estão se organizando em
função da busca de êxito nas provas
buscando aumentar um pontinho no
Ideb (Idem, p.37).

31
Os desafios atuais da educação brasileira, marcos
pelos constantes ataques ao caráter democrático, a
aplicação de oportunidades e a dimensão crítica da
educação, que visam sujeitar a educação nacional aos
interesses de mercado e da ideologia dominante,
comprovam de maneira cabal a atualidade da
pedagogia histórico-crítica. A sua atualidade é inegável
sob diversos aspectos, especialmente quando atesta
que a escola é determinada socialmente, e que essa, na
sociedade capitalista, necessariamente reproduz a
dominação e a exploração.

Pode-se questionar algumas conceitualizações e


dados históricos específicos, muitos dos quais foram
objeto de atualizações por parte de Saviani nas
reiteradas novas edições de seus livros, mas é inegável
que as desigualdades presentes na sociedade são
reproduzidas nas escolas, universidades e nas políticas
públicas educacionais.

Porém, a atualidade da pedagogia histórico-


crítica decorre somente da constatação da educação
como instrumento de reprodução dos valores e da
ideologia dominante? De fato, segundo Saviani,
“enquanto as teorias não-críticas pretendem
ingenuamente resolver o problema [...] sem jamais

32
conseguir êxito, as teorias crítico-reprodutivas explicam
a razão do suposto fracasso” (SAVIANI, 2008, p. 24).
Seria esse então o único papel da pedagogia histórico-
crítica? Ou seja, reconhecer, como as teorias crítico-
reprodutivas o caráter reprodutor da escola na
sociedade capitalista?

Repetindo a pergunta de Saviani: “é possível


articular a escola com os interesses dos dominados?”
(Idem). Ou seja, é possível desenvolver uma educação
que rompa com a ideologia dominante, constituindo um
elemento de emancipação das classes populares? A
resposta é sim, na medida em que a educação se torna
um instrumento mediador do reconhecimento da
realidade social e da construção de uma prática social
transformadora, pois a “democracia é uma conquista;
não um dado” (idem, p.62).

33
Referências:

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, vol. 2, 2ª ed.


Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
LOMBARDI, José Claudinei. Demeval Saviani: um
marxista da educação. Marxismo21, São Paulo, abril de
2021. Disponível em: https://marxismo21.org/dermeval-
saviani-um-marxista-da-educacao/. Acessado em: 2023.
OLIVEIRA, Marcos Marques de. As Origens da
Educação no Brasil Da hegemonia católica às primeiras
tentativas de organização do ensino. Ensaio: aval. pol.
públ. Educ., Rio de Janeiro, v.12, n.45, p. 945-958,
out./dez. 2004.
SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à
consciência filosófica, 19ª ed. Campinas, Autores
Associados, 2013.
_______________. A pedagogia no Brasil: história e
teoria, 3ª ed. Campinas, Autores Associados, 2021a.
_______________. Pedagogia histórico-crítica:
primeiras aproximações, 12ª ed. Campinas: Autores
Associados, 2021b.
_________________. Escola e democracia. Campinas:
Autores Associados, 2008.
SAVIANI, Demeval; LOMBARDI, José Claudinei.
Entrevista com Demeval Saviani, um educador marxista.
Marxismo21, São Paulo, abril de 2021. Disponível em:
https://marxismo21.org/dermeval-saviani-um-marxista-
da-educacao/. Acessado em: 2023.

34
Formação integral do sujeito: a prática
docente e a ética da responsabilidade

Marisete Tramontina Beltrame3


Vanessa Salete Bicigo de Quadros4

3
Professora de Língua Portuguesa e Língua Espanhola. Possui
Graduação em Letras, Português - Espanhol e Respectivas
Literaturas pela Universidade de Passo Fundo (2011), Especialização
em Língua Portuguesa: Novos Horizontes Teóricos e Práticos pela
Universidade de Passo Fundo (2012), Especialização em
Psicopedagogia pela Universidade de Passo Fundo (2016),
Especialista em Metodologia da Língua Espanhola pela Faculdade
Unina (2022), mestranda em Educação pela Universidade de Passo
Fundo.

E-mail: [email protected]
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3236341538287506

4
Professora da Educação Básica da Rede Municipal de Ensino de
Carazinho/RS. Mestranda em Educação (bolsista CAPES) pelo
PPGEdu/UPF na linha de Fundamentos da Educação. Especialista
em Mídias da Educação (UFRGS) e Metodologia do Ensino de
Matemática e Física (UNINTER). Licenciada em Pedagogia (ULBRA) e
Física LP (UPF). É pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Filosofia
e Educação (NUPEFE-UPF/RS), no qual participa dos projetos de
pesquisa "Teoria e Prática Pedagógica.

E-mail: [email protected]
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9088499242114902

35
Resumo: A complexidade dos problemas enfrentados
pela sociedade contemporânea impulsiona o
esvaziamento dos princípios éticos que, por sua vez,
ocasionam uma modificação na natureza do pensar e
agir humano. Como consequência, originam-se
inúmeras mudanças no campo da educação, que é
diretamente afetado pelo modo de ser, agir e pensar do
sujeito. Tal contexto sugere a ruptura de paradigmas e
uma nova reflexão sobre a importância da ética,
vislumbrando o movimento contínuo de compreensão
do processo pedagógico alicerçado na prática reflexiva
sobre o sujeito que se deseja formar. Para tanto, esse
artigo é construído mediante a revisão bibliográfica do
referencial teórico de Hans Jonas (1994; 2006; 2013),
objetivando provocar reflexões éticas acerca do
compromisso moral do docente frente a formação
integral do sujeito. Assim, questiona-se: O que significa
formar dentro dos princípios éticos da responsabilidade?
Como as ideias de Jonas dialogam e auxiliam na
formação integral do sujeito? Os apontamentos finais
assinalam que ambos os conceitos éticos, podem ser
utilizados de forma somativa, vindo a contribuir
amplamente na formação de cidadãos éticos, críticos e
capazes de intervir positivamente no seu entorno social.

Palavras-chave: formação integral; ética da


responsabilidade; prática pedagógica.

36
Considerações introdutórias
A palavra ética deriva do grego Ethos, apontando
para caráter e modo de ser de uma pessoa. Assim, a
ética como elemento constitutivo da formação do ser é
essencial para que haja equilíbrio social sendo, segundo
os preceitos filosóficos, uma ciência que estuda os
valores e princípios morais que norteiam a conduta
humana, estando presente nas ações diárias dos
sujeitos em qualquer temporalidade e sociedade,
independe de sua cultura, organização, estrutura ou
diversidade.

Para tanto, a ética pode ser compreendida como a


ciência do comportamento moral do sujeito em
sociedade - reflexão acerca da importância e
consequência de cada agir diante de um todo. Nesse
sentido, Lalande (1993, p. 348)) chama atenção ao fato
de que ética e moral representam, na devida ordem,
conduta e costume. Levando isso em conta, a ética
mantém como objeto de estudo “os juízos de apreciação
sobre os atos humanos, encarados como bons ou
maus”. Já a moral, se apresenta como o conjunto de
práticas “admitidas em uma época e em uma sociedade
determinada” (LALANDE, 1993, p. 348). Então, pode-se
compreender a ética como sendo o “conjunto de

37
princípios e valores da nossa conduta na vida junta”
(CORTELLA, 2010, p.106).

Logo, o sujeito não pode ser visto como um ser


isolado no mundo, uma vez que o ser humano é um ser
social, constituído por valores, crenças, religião,
expectativas de vida, ou seja, necessita ser
compreendido como uma totalidade, visto que a partir
de seu nascimento já mantém uma relação ativa com o
mundo. Dessa forma, é importante notarmos que,
formar-se no mundo é formar-se com os outros, ou seja,
a educação não é um processo isolado. Como indica
Kant (1996), os conhecimentos humanos dependem da
educação e a educação depende dos conhecimentos
humanos. Tal premissa maximiza a importância da
educação na formação integral do sujeito, assim como,
desperta atenção para o fato da educação lidar com
situações complexas, que exigem um olhar diferenciado
e atento, o qual impulsiona um (re)pensar sobre os
desafios existentes na produção e construção do saber
diante de uma visão ética direcionada ao respeito e
desenvolvimento da vida, bem como a sobrevivência e a
recuperação de sua humanidade

Considerando a relevância dos fatos, se faz


necessário reforçar a importância da formação cidadã e

38
humanizadora do sujeito, não deixando falecer a
presença das dimensões técnicas, estéticas, políticas e
éticas na prática pedagógica. Dessa forma, afirma-se
que o processo de reflexão sobre a própria prática
docente, culmina na capacidade de aprender a
interpretar, refletir e compreender sobre a realidade
social e à docência (IMBERNÓN, 1994). Assim, refletir
sobre o sentido do trabalho docente possibilita olhar de
maneira assertiva a prática. Tal constatação direciona o
objetivo dessa escrita, que se concentra na validação da
dimensão ética no trabalho docente como meio de
reflexão sobre o sentido, significado e finalidade da
prática educativa. Por sua vez, essa reflexão também
traz à tona o compromisso moral do docente junto a
formação integral do sujeito para a sociedade moderna,
onde ocorre o esvaziamento dos princípios éticos em
um cenário capitalista e fascista, que impulsiona
preocupantes modificações na natureza do agir
humano.

Perante tais fatos, “tudo se torna inseguro e


requer reflexões complicadas" (Adorno, 2020, p.153),
fazendo com que o ato de ensinar, de trazer à tona
dilemas, indagações, preocupações, dificuldades e
posições sociais diferenciadas, de olhar os dois lados
da moeda, bem como de explicar ao outro sujeito como

39
portar-se diante de certas atitudes esboçadas pela
sociedade, não seja algo tão simples e prático de se
fazer. Portanto, ao tomar consciência que o professor
resiste a inúmeras perseguições e silenciamentos frente
a perversidade neoliberal e suas amarras imobilizantes,
que tendem a convencer a sociedade de que nada se
pode fazer e que tudo está bem, exatamente do jeito
que está, este artigo esboça a importância do docente
em meio a formação integral do sujeito, reforçando
assim seu fazer pedagógico ético junto ao discente.

A fim de lançar luz sobre essa discussão, essa


escrita é desenvolvida a partir de uma abordagem
analítico hermenêutica, utilizando como método a
revisão bibliográfica sobre as obras de Hans Jonas
(1994; 2006; 2013), questionando-se: O que significa
formar dentro dos princípios éticos da responsabilidade?
Como as ideias de Jonas dialogam e auxiliam na
formação integral do sujeito? Assim, a reflexão sobre a
importância da ética, em especial junto ao trabalho
docente, terá como base os estudos da ética da
responsabilidade, segundo Hans Jonas, acreditando ser
esse um caminho possível e promissor para o encontro
de novos fatores que dialogam em busca de uma
educação ética cada vez mais compromissada com a

40
formação integral do sujeito, a transformação social e a
humanização do ensino.

Ética da responsabilidade segundo Hans


Jonas

Hans Jonas (1903-1993), filósofo alemão de


origem judaica, discípulo de Husserl e Heidegger, alerta
que os conceitos de ética tradicional tornaram-se
insuficientes diante do esvaziamento de valores e da
crescente ameaça à integridade da vida, ambas
impulsionadas pelo uso desenfreado dos recursos
tecnológicos e pela influência da economia em
maximizar a produção acima de tudo. A partir de tais
considerações, percebemos que a contemporaneidade
está repleta dos mais variados e conflitantes dilemas
éticos, muitos dos quais oriundos de avanços da ciência
e da técnica, não vivenciados em outros períodos
históricos. Por intermédio desse processo, Jonas (2006,
p.29), aponta que a “natureza qualitativamente nova de
muitas das nossas ações descortinou uma dimensão
inteiramente nova de significado ético, não prevista nas
perspectivas e nos cânones da ética tradicional”.

41
Sob essa premissa Jonas (2006, p. 2) esclarece
que “o novo continente da práxis coletiva que
adentramos com alta tecnologia ainda constitui, para a
teoria ética, uma terra de ninguém”. Segundo o autor, a
promessa da tecnologia moderna se converteu em uma
ameaça e, através dessa tese, deixa claro que a
sobrevivência da humanidade depende de esforços
para cuidar da vida e do planeta e, assim, assegurar
seu futuro, instigando a necessidade de um novo pensar
sobre a ética, sob a ótica da responsabilidade.

A ética, enquanto princípio fundamental e


orientador do ser, necessita direcionar o sujeito para a
solução de condições conflituosas, onde se é preciso
distinguir entre o bem e o mal agir, o certo e o errado,
bem como adotar decisões assertivas em relação às
questões importantes para a (con)vivência cotidiana.
Com base nisso, Jonas (2006) reforça que na visão
tradicionalista, o resultado das escolhas humanas,
sejam positivas ou negativas, só eram consideradas em
um espaço temporal próximo ao agir - tempo presente
comum -, jogando sobre ao acaso ou sobre a suposta
força do destino as consequências advindas em longo
prazo, não havendo um olhar sobre as consequências
advindas do agir humano e suas consequências sobre
as gerações futuras - visão muito vista na afirmação

42
moderna do progresso onde a relação humano-natureza
tornou-se um problema ético.

Nesse sentido, “a condição global da vida


humana, o futuro distante e até mesmo a existência da
espécie” (JONAS, 1994, p. 40) não eram consideradas
pelos modelos de ética anteriores.

[...] a ética tinha a ver com o aqui e


agora, como as ocasiões se
apresentavam aos homens, com as
situações recorrentes e típicas da
vida privada e pública. O homem
bom era o que se defrontava
virtuosa e sabiamente com essas
ocasiões, que cultivava em si a
capacidade para tal, e que no mais
conformava-se com o desconhecido
(JONAS, 1994, p. 36-37).

Para Jonas (2006), a ação humana - no tempo


presente -, potencializada pelos infinitos avanços
tecnológicos, poderá comprometer de modo irreversível
o homem e a natureza (em tempos futuros), reforçando
assim a necessidade dessa nova dimensão ética para a
responsabilidade, capaz de dialogar e interagir com as
possíveis consequências futuras para a existência
humana - uma visão menos tecnicista diante da relação
ser humano e mundo, visto que essa demonstra-se
considerável no âmbito da práxis humana. Sobre isso,
cabe destacar que a ética tradicional não educa “[...]

43
sobre as normas do “bem” e do “mal” às quais se devem
submeter as modalidades inteiramente novas do poder
e de suas criações possíveis” (JONAS, 2006, p.21, grifo
do autor).

Essa nova visão ética vai além do modelo


tradicional antropocêntrico, que sugere que o homem
deve ser o centro das ações - uns com os outros ou de
cada ser humano consigo mesmo -, da expressão
cultural, histórica e filosófica, acabando por deixar de
lado a valorização e o cuidado com a natureza,
alegando que esta não está presente no campo da ação
humana, assim “não era objeto da responsabilidade
humana, ela cuidava de si mesma” (JONAS, 2006,
p.33).

Diante da invisibilidade da natureza Boaventura


de Souza Santos (2010, p.318), aponta que o contrato
social define critérios de direitos e deveres, de inclusão
e exclusão, sendo três os critérios principais
estabelecidos pelos contratos sociais: “O primeiro
condiz ao fato do contrato social incluir apenas os
indivíduos e suas associações. A natureza é assim
excluída do contrato [...]. O segundo critério é o da
cidadania territorialmente fundada [...]. Por último, o
terceiro critério é o (do) comércio público dos

44
interesses”. O primeiro critério exclui a natureza, ou
seja, a única natureza que conta é a humana,
considerando o fato dessa ser domesticada pelas leis
do Estado, afirmando que “toda a outra natureza é
ameaça ou recurso” (SANTOS, 2010, p.318).). Por sua
vez, a socialização da economia não fugiu à essa
delimitação do contrato social que, por sua vez, excluiu
a natureza e vários grupos sociais aos quais o trabalho
não deu acesso à cidadania. Como indica Santos (2010,
p.322, “a inclusão tem sempre um limite, aquilo que
exclui’.

A esse respeito dessa preocupante realidade, o


autor alega que essa nova ética necessita ser centrada
no ser humano e na natureza, ou seja, na preservação
e continuidade de todas as formas de vida, indo além
dos que vivem na mesma escala de tempo e espaço,
sendo necessário repensar e “procurar não só o bem
humano, mas também o bem de coisas extra-humanas,
ou seja, alargar o conhecimento dos “fins em si
mesmos” para além da esfera do homem e fazer com
que o bem humano incluísse o cuidado delas” (JONAS,
2006, p. 23, grifo do autor).

Sendo assim, não valida-se somente o bem


humano, mas também o bem extra-humano - a natureza

45
-, a qual deixa de ser meio de satisfação das
necessidades humanas, passando a ser vista como
responsabilidade de todos. Nesse sentido, a formação
integral do sujeito em meio a ética da responsabilidade,
mostra-se como um desafio tanto teórico, quanto
prático, exigindo dos que se envolvem em educação
processos cuidadosos de investigação, reflexão,
cuidado, responsabilização pelo ato de ensinar,
atenção, pesquisa e tomadas de decisão. Tendo em
vista esse processo reflexivo, percebe-se a importância
em reforçar a ideia de que essa nova visão ética não
rompe, ignora ou desabona com os princípios éticos
tradicionais - honestidade, virtude, justiça, entre outros,
visto que

[...] as antigas prescrições da ética


“do próximo” – as prescrições da
justiça, da misericórdia, da
honradez, etc. – ainda são válidas,
em sua imediaticidade íntima, para a
esfera mais próxima, quotidiana, da
interação humana. Mas essa esfera
torna-se ensombrecida pelo
crescente domínio do fazer coletivo,
no qual ator, ação e efeito não são
mais os mesmos da esfera próxima.
Isso impõe à ética, pela enormidade
de suas forças, uma nova dimensão,
nunca antes sonhada, de
responsabilidade (JONAS, 2006, p.
39).

46
Por sua vez, o princípio de responsabilidade,
mantém o compromisso com a preservação da vida e
da essência humana, de modo que o agir do sujeito do
sujeito se torne “coerente não pela compreensão do ato
em si mesmo, mas a dos seus efeitos e consequências
finais para a continuidade da atividade humana no
futuro” (JONAS, 2006, p. 49). Nessa magnitude de
compreensão ética, percebe-se que a ética de
responsabilidade edificada no momento presente,
mantém um olhar firmado no futuro. Logo, esse conceito
de futuro somente pode ser consolidado após a tomada
de consciência do sujeito em relação às causas e aos
efeitos de suas ações diante do Ser e da natureza.

Em continuidade, ao analisarmos as
possibilidades de aplicação do modelo da ética da
responsabilidade em meia a formação integral do
sujeito, não se cogita a utilização da educação como
meio para criticar as novas tecnologias e os muitos
avanços oportunizados pelas mesmas, mas sim para
agregar saberes, buscar o conhecimento prévio dos
fatos e o “valor da máxima informação sobre as
consequências tardias de nosso agir coletivo” (JONAS,
2013, p.74-75). Sobre esse aspecto, se válida destacar
que a ética da responsabilidade, vai de encontro a
preservação da existência em sua totalidade, visto que

47
a esfera da educação mostra de maneira mais evidente
como se interpenetram e se complementam, a
responsabilidade parental e a estatal, a mais privada e a
mais pública, a íntima e a universal, na totalidade dos
seus respectivos objetivos.

Por sua vez, essa responsabilidade


parental, traz à tona a relação entre pais e filhos, onde o
“objeto é a criança como um todo e todas as suas
possibilidades e não só as suas carências imediatas”
(JONAS, 2006, p.180). Sobre isso, a responsabilidade
apresentada frente a formação integral do ser, seu
processo de aprendizagem, se faz

Por educação: habilidades,


comportamento, relações de
caráter, conhecimento, os quais
devem ser supervisionados e
estimulados durante o
desenvolvimento [...] o cuidado
parental visa à pura existência da
criança e, em seguida, visa a fazer
da criança o melhor dos seres”
(JONAS, 2006, p. 180).

Sobre a responsabilidade estatal, Jonas (2006,


p. 180) alega existir certas semelhanças com a
responsabilidade parental, que vão desde a existência
física até os interesses “da segurança à plenitude, da
condução até a felicidade”. Facilmente percebe-se que
apesar de distintas, ambas responsabilidades

48
compartilham conceitos comuns sobre a totalidade,
continuidade e futuro, visto que englobam o Ser total do
objeto em todos seus aspectos, tanto nas vias
individuais, como nas coletivas. Dessa forma, como
máximo ponto comum, Jonas (2006) reforça que é
através da educação que a criança constrói sua
identidade histórica, sua historicidade, considerando
que

[...] inclui a introdução no mundo dos


homens, começando com a
linguagem e seguindo com a
transmissão de todo o código de
crenças e normas sociais, cuja
apropriação permite que o indivíduo
se torne membro da sociedade mais
ampla. O privado abre-se para o
público e incorpora-o como parte
integral do Ser da pessoa (JONAS,
2006, p. 181).

Em outras palavras, podemos dizer que a


formação integral do sujeito como cidadão é objetivo
inerente à educação. Nesse sentido, esse processo
formativo, inicia-se com a responsabilidade dos pais que
educam os filhos para o Estado, sendo que esse, que
por sua vez, assim como os pais, também assume para
si a educação desses sujeitos. Assim, “é impossível à
responsabilidade educativa deixar de ser política”
(JONAS, 2006, p.186), considerando que a criança

49
vivencia na escola a preparação para a vida em
sociedade, por meio da pluralidade de experiências
significativas direcionadas a formação e orientação dos
valores inerentes ao ser humano e a cidadania, sejam
eles por vias individuais ou por vias coletivas.

Ao analisar mais profundamente essa abordagem,


percebemos que o ato de formar demonstra certa
responsabilidade para com o outro, com a vida, o hoje e
com o imprevisível mundo do amanhã. Logo, nenhum
processo formativo ocorre isolado, de forma que formar-
se no mundo é formar-se com os outros. Assim, a
prática pedagógica, é vista como uma prática coletiva,
especificamente humana e de natureza ética,
necessitando assim englobar a responsabilidade pela
vida em sua essência. Nesse sentido,

Ser responsável efetivamente por


alguém ou por qualquer coisa em
certas circunstâncias (mesmo que
não assuma nem reconheça tal
responsabilidade) é tão inseparável
da existência do homem quanto o
fato de que ele seja genericamente
capaz de responsabilidade – da
mesma maneira que lhe é
inalienável a sua natureza falante,
característica fundamental para a
sua definição, caso alguém deseje
empreender essa duvidosa tarefa
(JONAS, 2006, p. 176).

50
Por meio dessa perspectiva, é válido trazer à tona
que a observação de Santos (2010, p.339) ao
apresentar a necessidade da construção de um novo
contrato social, aponta para a necessidade de um
mundo mais inclusivo e sustentável, onde “[...] deve
abranger não apenas o ser humano e os grupos sociais,
mas também a natureza”. Sobre esses preceitos, a ética
da responsabilidade pode ser compreendida como o
princípio do agir humano, sendo projetado, no tempo
presente e futuro, sob a forma de cuidado com um outro
ser, estando esse em vulnerabilidade ou ameaça. Por
fim, o que deve ser reforçado, é que a ética da
responsabilidade, proposta por Jonas (2006), não
substitui a visão ética tradicionalista, apresentando-se
como complemento e atualização da mesma, na medida
em que a noção de responsabilidade ganha novo
sentido frente a pluralidade das mudanças e
emergências vivenciadas na atualidade.

Considerações finais

A partir das análises e estudos realizados,


percebe-se que os conceitos trazidos por Hans Jonas
(1994; 2006; 2013), conseguem propor uma educação
ética em meio a um trânsito perfeito entre sujeito e

51
natureza - presente e futuro, estando comprometida
com a formação integral do sujeito, que por sua vez
reflete o compromisso ético assumido junto a educação
de qualidade, tratando-se de um desafio de larga
escala, que necessita ser continuamente (re)pensado
de modo ousado, cuidadoso e humilde. Tal consciência
da prática educativa também é trazida por Meireles
(2017, p. 108), ao dizer que “quem trabalha com essa
honestidade profissional que lhe está sempre pondo em
evidência o tamanho de sua responsabilidade
profissional sabe que educar é problema grave e difícil”.

Nesse cenário, percebe-se que a ética da


responsabilidade vem ao encontro de uma prática
pedagógica voltada para a formação integral do sujeito,
possibilitando ao educador a construção de um
referencial ético baseado na humanização, cuidado,
responsabilidade, cautela e prudência. Assim sendo,
também cabe ao docente a reflexão crítica sobre sua
atuação, a busca constante por aprimoramento e a
manutenção de um diálogo produtivo e ético com os
alunos, buscando fomentar uma prática pedagógica
capaz de legitimar novas gerações diante do imperativo
tecnológico que se põe como determinismo.

52
Fica claro que a prática pedagógica voltada a
formação integral do sujeito, me meio a ética da
responsabilidade, demanda consciência, conhecimento
e compreensão, estando interligados na busca por um
processo formativo, onde

[...] todos se formem com uma


instrução não aparente, mas
verdadeira, não superficial, mas
sólida; ou seja, que o homem,
enquanto animal racional, se
habitua a deixar-se guiar, não pela
razão dos outros, mas pela sua, e
não apenas a ler nos livros e a
entender, ou ainda a reter e a recitar
as opiniões dos outros, mas a
penetrar por si mesmo até ao
âmago das próprias coisas e a tirar
delas conhecimentos genuínos e
utilidade. Quanto à solidez da moral
e da piedade, deve dizer-se o
mesmo (COMÉNIO, 1976, p. 164)

Nesse sentido, segundo Hans Jonas (2006), o


imperativo da responsabilidade se fundamenta na
compreensão do fenômeno da vida e do conceito de
liberdade de forma coletiva. Enfim, a visão proposta por
Hans Jonas vai além da preocupação com a vida
existente no planeta, compreendendo também a aflição
com a morte da essência do ser humano, dada por um
processo de destruição do “Ser” em prol da construção
do “Ter”, em meio a dualidade sujeito e poder. Hans não
critica as novas tecnologias, mas preocupa-se com o

53
avanço irresponsável dessas, propondo que a ética da
responsabilidade seja o meio pelo qual se possa refletir,
sobre a necessária cautela, limites e riscos para assim
não inviabilizar a existência das gerações futuras.

Tendo em vista tais considerações, percebe-se a


importância da prática dialógica, visto que o processo
de formação do sujeito se dá através do diálogo. Dessa
forma, o diálogo proporciona a mediação da ética em
meio a pluralidade da vida, o encontro dos homens com
a pronúncia do mundo, sendo uma condição
fundamental para sua real humanização (FREIRE,
1987). Mais do que um dizer, o diálogo configura-se
pela sua generosidade de colocar-se junto ao outro, de
deixá-lo falar, de dar-lhe o tempo para se expor, pensar
e interagir dialogicamente, onde “a aprendizagem não
seja entendida como um simples depositar informações,
mas como uma construção de consciência” (BENINCÁ,
2000, p.24).

Por intermédio desse processo, o conceito de


ética proposto Jonas (2006) está diretamente
preocupado com a manutenção da essência humana,
mantendo como uma de suas principais teses a relação
estabelecida entre dever e ser moral. Nesse sentido,
percebe-se que o princípio da responsabilidade tende a

54
viabilizar, junto à docência, inúmeras possibilidades de
construção do conhecimento, utilizando o diálogo crítico
- prática dialógica - como uma estratégia de efetivação
da práxis coletiva ética. Por sua vez, a visão proposta
pela ética da responsabilidade, vem de encontro a frase
de Freire (1987, p.87): “Educação não transforma o
mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam
o mundo”. Dessa forma, a promoção de uma educação
ética necessita despertar, valorizar e defender a
solidariedade como compromisso histórico, assumindo o
desafio de fortalecer a humanidade existente na
capacidade de respeitar e (con)viver com o diferente, de
modo a preparar o sujeito para assumir de forma
consciente sua responsabilidade frente às exigências,
desafios e perigos que ameaçam o tempo presente e
futuro, assim como a repercussão do modo de ser e agir
da existência humana futura.

55
Referências:

ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação.


Tradução. Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2020.
BENINCÁ, Elli. A prática pedagógica na sala de aula:
princípios e métodos de uma ação dialógica. In: Ética e
diálogo na prática pedagógica universitária. Passo
Fundo: Editora UPF, 2000. p. 19-31.
COMÉNIO, João Amós. Didática Magna. Tradução.
Joaquim Ferreira Gomes. Lisboa: Fundação Calou-se
Gullbenkian, 1976.
CORTELLA. M. S. Qual é a tua obra? Inquietações
propositivas sobre gestão, liderança e ética. 9ed. –
Petrópolis, RJ, Vozes, 2010.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1987.
IMBERNÓN, Francisco. La formación del profesorado.
Espanha: Paidós, 1994.
JONAS, H. Ética, medicina e técnica. Lisboa: Vega
Passagens, 1994.
_______. O princípio responsabilidade: ensaio de uma
ética para a civilização tecnológica. Tradução de
Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro:
Contraponto/ EdPUC- Rio, 2006.
_______. Técnica, Medina e Ética: sobre a prática do
Princípio Responsabilidade. Tradução do Grupo de
Trabalho Hans Jonas da ANPOF. São Paulo: Paulus,
2013.
KANT, Immanuel. Sobre a Pedagogia. Tradução.
Francisco Cock Fontanella. Piracicaba: Editora Unimep,
1996.

56
LALANDE, A. Vocabulário técnico e crítico da filosofia.
São Paulo: Martins Fontes. Tradução de Fátima Sá
Correia, Maria Emília V. Aguiar, José Eduardo Torres e
Maria Gorete de Souza. 1993.
MEIRELES, Cecília. Crônicas de educação. São Paulo:
Global, v.3, 2017.
SANTOS, Boaventura de S. A gramática do tempo: para
uma nova cultura política. 3. ed. São Paulo: Cortez,
2010.

57
História e trabalho: uma aproximação
necessária na Educação de Jovens e
Adultos, o caso da Região dos Lagos/RJ

Luciano Cesar da Costa5

5
Professor, Educador e Historiador. Possui graduação em História
pela Universidade Federal Fluminense (2011), mestrado em História
pela Universidade Federal Fluminense (2014) e doutorado também
pela Universidade Federal Fluminense (2019). Tem experiência na
área de História, com ênfase em História Moderna e
Contemporânea, atuando principalmente nos seguintes temas:
Hierarquia, Embaixadas, Conflitos e Restauração Portuguesa.
Recentemente, tem se dedicado aos estudos das embaixadas
portugueses em Roma durante a Restauração Portuguesa, bem
como a atuação da comunidade portuguesa em Roma. É membro
fundador do grupo Sigillum - Estudos sobre diplomacia, além de
membro da Rede brasileira de Estudos em História Moderna.

E-mail: [email protected]
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0882758867168666

58
Resumo: O presente capítulo trata sobre o Ensino de
História para a Educação de Jovens e Adultos. O
objetivo central é mostrar como a Educação de Jovens
e Adultos necessita de uma constante adaptação
curricular que leve em conta a configuração própria dos
alunos trabalhadores. Para tanto, elencamos diversos
instrumentos legais, tais como leis e estatutos, bem
como a literatura mais atualizada no campo da
educação. Dessa forma em consonância com a
orientação pedagógica, nosso objetivo foi relacionar o
mundo do trabalho, já conhecido pelos educandos, com
a história e os conceitos históricos relativos ao mundo
do trabalho. A junção dos conceitos históricos com a
vivência dos estudantes da EJA forma assim, um saber
escolar próprio que é evidenciado no artigo que se
segue. Por fim, como estudo de caso, abordamos essa
realidade em dois municípios da região dos lagos do Rio
de Janeiro: Saquarema e Araruama.

Palavras-chaves: ensino de história; trabalhador;


Educação de Jovens e Adultos (EJA).

59
Mais um dia ensolarado de trabalho. Aguardo
dentro do carro com o ar-condicionado ligado para
entrar na escola no horário certo. Observo, oculto pelo
vidro fumê, uma senhora que troca seus sapatos um
velho tênis por um chinelo confortável, não antes de
esticar os dedos. Ela, Dona Cora, é uma das muitas
estudantes da Educação de Jovens e Adultos (EJA) que
encara uma dura jornada de trabalho fazendo longas
caminhadas para chegar até a colégio diariamente, uma
vez que não recebe auxílio do empregador para arcar
com os custos do transporte público. O objetivo do
presente artigo é refletir e compreender o
funcionamento da EJA e de seus atores, como Dona
Cora, mais precisamente no que diz respeito ao Ensino
de História, modalidade de ensino tão importante para a
realidade brasileira.

A Constituição Federal assegura, em seu artigo


208, o acesso ao estudo fora da idade própria:

Art. 208. O dever do Estado com a educação


será efetivado mediante a garantia de: I -
ensino fundamental, obrigatório e gratuito,
assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para
todos os que a ele não tiveram acesso na
idade própria (BRASIL,1988).

60
Assim, tem-se não apenas o acesso à educação
para Jovens e Adultos, mas também ao ensino gratuito.
Contudo, a Constituição Federal de 1988 não apresenta
com clareza as diversas formas e especificidades dessa
modalidade de ensino:

Art. 4º. O dever do Estado com a educação


escolar pública será efetivado mediante a
garantia de: VII. oferta de educação escolar
regular para jovens e adultos, com
características e modalidades adequadas às
suas necessidades e disponibilidades,
garantindo-se aos que forem trabalhadores as
condições de acesso e permanência na
escola (BRASIL, 1996).

O artigo 37° explica ainda sobre as


especificidades da EJA.

A educação de jovens e adultos será


destinada àqueles que não tiveram acesso ou
continuidade de estudos no ensino
fundamental e médio na idade própria. § 1°:
Os sistemas de ensino assegurarão
gratuitamente aos jovens e adultos, que não
puderam efetuar os estudos na idade regular,
oportunidades educacionais apropriadas,
consideradas as características do alunado,
seus interesses, condições de vida e de
trabalho, mediante cursos e exames. § 2º O
Poder público viabilizará e estimulará o
acesso e a permanência do trabalhador na
escola (BRASIL, 1996).

Por outro lado, a LDB (1996) adiciona


importantes elementos e detalhes sobre a oferta da
modalidade EJA, não apenas reconhecendo a

61
necessidade de adaptação às disponibilidades dos
estudantes, mas também para aqueles que já se
encontram no mundo do trabalho. Esses elementos têm
relação direta com o relato inicial da discente Dona
Cora, que caminhava por quase uma hora do trabalho
até a escola. Quais necessidades e disponibilidades
essa educanda tinha, ou melhor, deveria ter para sua
permanência nos estudos?

Dessa forma, os dois principais aparatos


legislativos sobre Educação Brasileira garantem e
defendem a gratuitidade da Educação de Jovens e
Adultos, bem como sua adequação ao mundo do
trabalho. Márcia Rodrigues Neves Ceratti, em artigo
recente que reúne algumas das reflexões mais recentes
sobre a EJA no Brasil, destaca também a importância
das demais legislações em outros campos de atuação,
inclusive os estaduais e municipais. Citando assim um
dos decretos do Conselho Nacional de Educação, por
meio do Parecer Nº 11, de maio de 2000, e da
Resolução Nº 1 de 5 de julho de 2000, estabelece as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a EJA e a
reconhece como:

[...] uma dívida social não reparada para com


os que não tiveram acesso a e nem domínio
da escrita e leitura como bens sociais na
escola ou fora dela [...] em que a ausência de

62
escolarização não pode e nem deve justificar
uma visão preconceituosa do analfabeto ou
iletrado como inculto [...] (BRASIL, 2000).

Por fim, é necessário pensar como a Educação de


Jovens e Adultos é abordada dentro das respectivas
municipalidades em tela. Para tanto, foram consultadas
não apenas as Leis Orgânicas dos respectivos
municípios, mas também as normativas e estatutos
específicos para os sistemas educacionais.

Em análise no presente artigo, foram escalonadas


duas cidades em que o autor atua como professor,
ambas desde 2016, tanto na rede privada como na rede
pública. Trata-se assim de um artigo que visa intercalar
relatos de vivências e a própria produção do saber
escolar com a perspectiva teórica sobre a Educação de
Jovens e Adultos no âmbito brasileiro, também
correlacionando-os com a história educacional das
respectivas cidades, a saber, Araruama e Saquarema.6
(MONTEIRO, 2007)

Os dois municípios, Saquarema e Araruama


situam-se na Região dos Lagos do Estado do Rio de
Janeiro, essa área, como o próprio nome já indica, é
cercada de lagunas salinas que foram utilizadas ao

6
MONTEIRO, Ana Maria Ferreira da Costa. Professores de História:
entre saberes e práticas. Rio de Janeiro, Editora Mauad, 2007.

63
longo da história para produção e extração de sal. Mais
recentemente, em especial a partir da década de 1970
do século XX, a atividade turística e de veraneio tem
sido o mote econômico central dessas regiões. Ainda
que guardem algumas particularidades entre si, serão
utilizadas no presente artigo a história de ambas as
localidades, já que carregam muitos elementos em
comum.7 (ROCHA, 2014)

Demograficamente falando, os dois municípios


tiveram um breve período de crescimento populacional
durante o século XIX, sobretudo por conta da atividade
da cafeicultura, que trouxe um expressivo contingente
de pessoas escravizadas para a região. A instalação da
ferrovia-carril de Maricá ampliaria ainda mais essa
realidade, ainda que a construção das estações na
região só tenha se concretizado no início do século XX,
justamente quando o café parecia perder a importância
de outrora, vemos a ampliação da produção salina
apresenta seus primeiros passos, tendo diversos
momentos de altos e baixos, têm-se, por conseguinte,
uma predominância de atividades ligadas ao turismo e

7
História e patrimônio: Saquarema / Helenice Aparecida Bastos
Rocha ... [et al.]. 1. ed. - Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj, 2014.

64
ao setor terciário, que é o setor cuja maioria da
população se encontra ocupada.

Cabe dessa forma observar como as legislações


municipais retratam a Educação de Jovens e Adultos,
em especial, quando oferecida no turno noturno, a saber
aquele que mais atende a população ativa no mercado
de trabalho. A seguir, serão analisados diretrizes
inerentes ao município de Araruama cuja quantidade de
dispositivos legais é mais avançada, ainda que a
aplicabilidade delas tenha evidentes limites;
Saquarema, por outro lado têm legislação mais
desatualizada, mas o volume ações para melhorar as
condições da Educação de Jovens e Adultos.

O Estatuto dos Servidores de Araruama apresenta


alguns indicativos do comportamento de seus agentes
públicos, mas pouco fala sobre professores e demais
profissionais da educação ou sobre suas respectivas
atribuições. Um tópico relevante neste documento é
aquele que destaca que é obrigação do professor
lecionar em “qualquer grau ou ramo legalmente
estabelecido” (artigo 172°), o que indica a
obrigatoriedade de docentes lecionando na EJA, sendo
ilegal qualquer tipo de recusa. A ausência de artigos e
demais mecanismo legais, por certo, deve-se à falta de

65
um aparato específico para o segmento educacional - o
Regimento Escolar da rede - que será examinado a
seguir.

O município apresenta um Regimento Escolar


publicado em 2016, data do ingresso deste autor nesta
rede de ensino. Para além de diversos mecanismo
formais, tais como deveres e obrigações de professores
e alunos, o regimento fornece algumas pistas sobre o
funcionamento da Educação de Jovens e Adultos na
municipalidade e sua estrutura curricular. Um dos
primeiros pontos relevantes do documento é a
adequação às "condições de vida e de trabalho” dos
discentes em perfeita consonância com as legislações
superiores. Essas legislações só permitem o ingresso
dos alunos na EJA se já completaram 15 anos, sendo
vedado o ingresso em idade inferior. Citando o
parágrafo segundo do artigo 67° da dita lei referida lei,
que diz: “O Poder Público deve viabilizar e estimular o
acesso e a permanência do trabalhador na Unidade
Escolar, mediante parcerias público-privadas, com
ações integradas e complementares entre si.” A
admissão da presença de recursos privados abre
precedente para sua presença dentro das escolas
públicas, ainda que tal parceria possa ser vista no turno

66
regular, na EJA, dentro da realidade escolar que
presencio, ela não ocorre.

Ainda nesse mesmo, elabora-se mais um


adicional dos objetivos da EJA na municipalidade:
“elevar a autoestima” dos alunos por meio da cidadania
e sua “qualificação para o trabalho”. Mais uma vez, o
trabalho aparece como mote das respectivas
legislações educacionais. A EJA se organiza segundo
essa legislação em duas possibilidades: diurna
presencial e noturna semipresencial. É nessa última que
algumas observações precisam ser feitas. Leia-se o
artigo 69° da presente lei:

I- EJA Noturno: de modo semipresencial,


assegurada a organização de horários
flexíveis e utilização de metodologias, livros
didáticos, módulos instrucionais e recursos
audiovisuais variados;
§ 1º. A oferta da EJA Noturno tem parte da
sua carga horária cumprida com aulas
presenciais e parte com atividades
complementares extraclasse, podendo ser
desenvolvidas dentro ou fora do espaço físico
da Unidade Escolar;
§ 2º. Na EJA Noturno, as aulas presenciais
têm início às 19h30min e seu término às
21h45min, contemplando 03 tempos de aula
de 45 (quarenta e cinco) minutos com, no
mínimo, 2(dois) componentes curriculares
diários.

67
§ 3º. Os 2 (dois) primeiros e o último tempo
de aula, é de frequência facultativa ao
discente, na EJA Noturno, e obrigatória na
EJA Diurna, desenvolvidos em forma de
atividades e projetos definidos pelo Projeto
Político Pedagógico de cada Unidade
Escolar.

Assim, a respectiva legislação admite a adaptação


de horários e sua respectiva flexibilidade para os alunos
da EJA noturna, incluindo a modalidade semipresencial.
Contudo, a modalidade semipresencial precisa de um
acompanhamento diferenciado das atividades de
ensino-aprendizagem, o que dentro da realidade escolar
observada é apenas parcialmente feito, em parte pela
própria condição social dos discentes de Araruama,
como mais à frente será explicado.

Por fim, existe uma limitação para o número de


alunos da I até a V fase, sendo somente 25 alunos
discentes por sala; já da VI até IX fases admitem-se 30
alunos por sala, sendo necessária a diminuição do
número de alunos na sala quando da presença de
discentes com necessidades educacionais especiais ou
outras necessidades educacionais dentro da sala. Leia-
se: “Para cada aluno que necessita de AEE, e/ou com
problemas de desenvolvimento de todos os níveis e
tipos, incluído nas turmas regulares das Unidades
Escolares, o número de discentes previsto no caput

68
deste artigo será reduzido em 02(dois)” (Artigo 92°).
Apesar do importante aparato legal, que garante um
número de alunos mais reduzido na realidade escolar
em que estamos inseridos, encontra-se um quantitativo
mais reduzido de alunos face à elevada evasão escolar.

Vale ressaltar a forma específica como é realizado


o atendimento educacional especializado, que garante
que o discente com tais necessidades não apenas o
direito ao profissional de atendimento especializado-
inclusive na modalidade EJA-, mas também o acesso à
sala de recursos multifuncionais. A lei inclusive incentiva
que os discentes com necessidades especiais sejam
encaminhados à EJA quando “não apresentarem o
domínio da leitura, da escrita e do cálculo” (artigo 74°).
Curiosamente, como acima mencionado, a possibilidade
da troca de turnos e modalidades escolares foi uma das
mudanças estruturais entre a versão do regimento
interno do município entre 2011 e 2016.

O regimento escolar do município limítrofe,


Saquarema, também apresenta algumas considerações
importantes sobre a Educação de Jovens e Adultos. O
primeiro elemento previsto no regimento publicado em
2013 fala sobre a estrutura curricular dividida em
etapas, mas também admite que deve haver

69
flexibilidade para aqueles educandos que
interromperam seus estudos ou se encontram fora da
idade própria para sua referida etapa de ensino. Outro
ponto muito importante é a presença de um dispositivo
para ilustrar a evasão de alunos, prevendo que, a cada
trinta dias consecutivos de faltas, o aluno possa ser
considerado evadido.

Porém é na Seção III do presente regimento que


há a definição clara do funcionamento da Educação de
Jovens e Adultos. Tal como os outros dispositivos
legais, que especificam a idade mínima de 15 anos
completos para ingresso na EJA, o regimento fala sobre
a adequação às "condições de vida e trabalho”, bem
como “elevar a autoestima do alunado” e sua
“qualificação para o trabalho”. Trata-se assim de uma
junção exata entre as três legislações supracitadas:
Constituição, LDB e os dois regimentos escolares.
Diferente de seu congênere em Araruama, será
mostrado que o Regimento de Saquarema prevê que o
município construa uma Proposta Curricular da rede,
bem como o Projeto Político Pedagógico das
respectivas unidades, devendo o professor - com
“acompanhamento” do Orientador Pedagógico - aplicar
e construir seus planejamentos levando em
consideração o perfil “de sua clientela.”

70
Cabe agora observar os Projetos Políticos
Pedagógicos para melhor compreender estas duas
realidades escolares. O perfil dos discentes em ambas
as escolas apresenta semelhanças expressivas. A
escola de Saquarema, Escola Municipal José Bandeira
(antiga Escola Castelo Branco), fica no bairro do
“Boqueirão”, que se encontra nas proximidades do
centro da cidade e, portanto, de fácil acesso. A escola
dá frente para a laguna de Saquarema, tendo o bairro
uma forte conexão com a atividade pesqueira e de
turismo na região. Na Educação de Jovens e Adultas
noturna, ela atende, além dos alunos residentes do
próprio bairro, alunos de um bairro distante, chamado
Jaconé. Entre esses bairros percebe-se uma diferença
relevante: enquanto os alunos oriundos do próprio
“Boqueirão” tendem a ser mais conhecidos pela equipe
pedagógica, já que tendem a ser mais frequentes nas
aulas. Esses alunos que residem no “Boqueirão”
acabam sendo mais frequentes, também são mais
acessíveis a equipe de apoio pedagógico da escola. Por
outro lado, o bairro de Jaconé apresenta diversas
regiões mais carentes e, em alguns casos, com pontos
de tráfico de drogas. Dessa forma, uma parte
substancial dos alunos advindos de Jaconé apresentam
problemas sociais correlatos e, infelizmente, também

71
são os alunos menos frequentes, é nesse grupo de
alunos que encontramos uma violência mais
predominante em seu comportamento.

É importante frisar que, desde 2022, ocorre por


parte da Prefeitura de Saquarema uma série de
programas sociais e de ações específicas dentro do
segmento educacional municipal, tendo ele inclusive
elaborado um Plano Municipal de Educação, como
antes mencionado. Entre as várias medidas tomadas
pelo governo municipal destaca-se vê-se o fornecimento
de bolsas de estudos para os alunos da EJA, no valor
de trezentos reais. Dessa ação duas consequências
imediatas ocorreram: um aumento expressivo dos
discentes no segmento, de pouco mais de setenta
alunos para quase duzentos alunos na EJA noturna; e a
presença de muitos alunos que perceberam na bolsa de
estudos, não apenas a oportunidade de obter renda,
mas também de dar prosseguimento aos estudos.

De forma semelhante, tem-se a escola de


Araruama, E.M. Margarida Trindade de Deus. A unidade
escolar encontra-se no bairro da “Fazendinha”,
localizado nas proximidades da Estrada de São Vicente
(RJ-138) e dista cerca de quatro quilômetros do centro
da cidade, sendo uma escola mais periférica que a de

72
Saquarema. Como se enuncia no próprio projeto político
pedagógico da instituição, a escola atende a uma vasta
quantidade de alunos carentes e com diversos
problemas sociais correlatos. Especificamente, a
comunidade ainda atende a um número pequeno de
alunos, sendo a infrequência uma constância, bem
como o comportamento violento. Dessa forma, é o
cenário escolar mais desafiador.

Passemos, por fim, à análise dos respectivos


Projetos Políticos Pedagógicos e do funcionamento
efetivo das escolas, inclusive por meio de seus
Conselhos Escolares. Em Saquarema, a presença de
Conselhos Escolares é mais ativa sendo esses,
inclusive, regidos por estatuto próprio. Tal presença
permite um acesso mais amplo às instâncias escolares
superiores, notadamente, à Secretária Municipal de
Saquarema, além de ser um mecanismo que viabiliza a
gestão democrática dentro da escola. Vale ressaltar
que, por serem adultos, os alunos da EJA são sempre
muito atuantes dentro do conselho, além de serem
membros antigos da comunidade, o que fortalece sua
atuação dentro desses organismos. Interessante
lembrar que na escola de Saquarema, José Bandeira
(antiga Castelo Branco) – o nome da escola foi alterado
por conta da referência ao passado ditatorial brasileiro –

73
encontra-se em reformulação o Projeto Político
Pedagógico. O documento mais recente é de 2014 e
ainda carrega o nome antigo da escola. Como parece
razoável pensar, seu texto está desatualizado. Seguem
outras referências teóricas, tal como Paulo Freire que
argumenta sobre a impossibilidade de uma educação
neutra; ou ainda a noção de indivíduo integral de Henry
Wallon. Curiosamente, porém, o texto não propõe como
essas ideias poderiam ser aplicadas na prática cotidiana
da escola. Ao invés disso, há um emaranhado de regras
de conduta de alunos e professores. Por fim, tem-se
uma série de projetos no PPP, mas nenhum deles é
aplicado na unidade escolar atualmente, ainda que nela
haja muitos projetos atuais, nenhum deles se encontra
no PPP de 2014, o que mais uma vez evidencia a
necessidade de uma atualização desse documento por
parte da comunidade escolar.

Quanto à escola de Araruama, há um Projeto


Político Pedagógico atualizado, sendo inclusive
reformulado anualmente. Em linhas gerais, o Projeto da
escola dá conta da complexa realidade escolar da
região, com muitas mazelas sociais e problemas de
indisciplina no alunato, ideia que permeia todo o Projeto
Político Pedagógico, bem como as precárias condições
urbanas do bairro. A unidade escolar atende quase 900

74
alunos, distribuídos nos três turnos e em 17 salas,
contando ainda com uma sala de recurso. A quase
completa ausência de áreas de lazer na comunidade
transforma a escola em um grande centro de lazer da
região, o que se percebe, por exemplo, nas festividades
escolares sempre lotadas. Outro ponto relevante dessa
comunidade escolar são os diversos templos religiosos,
como aponta o PPP da escola, o que já mostra um
grande número de alunos e responsáveis religiosos
(sempre presentes na escola), porém, essa mesma
realidade convive com a presença de outras questões
sociais, como uso de drogas ilícitas e do alcoolismo
frequente.

Quanto às instituições escolares, o PPP afirma


que a escola possui grêmio estudantil, bem como o
Conselho Escolar. Infelizmente, o grêmio estudantil no
período em que leciono na unidade, nunca esteve ativo;
já o Conselho Escolar, existe de forma burocrática no
papel, não tem qualquer aderência à realidade escolar,
tampouco com a gestão democrática. Trata-se, na
verdade, de um Conselho Escolar “de gabinete”, feito
sem a participação ativa da comunidade. O PPP segue
descrevendo os diversos elementos administrativos da
escola: direção, deveres e obrigações. Um dos cargos
mais bem descritos é a coordenação de turno pois,

75
ausência dos diretores, esses acabam assumindo uma
grande centralidade no dia a dia da escola, sendo peças
fundamentais para o bom andamento das aulas. Essa
realidade é ainda evidente na Educação de Jovens e
Adultos da unidade, já que há muitos problemas sociais
que impedem os alunos de frequentarem as aulas com
a devida regularidade. Sem as informações colhidas
pela coordenação o trabalho docente seria difícil.
Naturalmente, a sondagem da presença dos alunos
deveria ser feita pelos orientadores educacionais, outro
importante cargo da escola; entretanto, como os
dirigentes quase sempre residem na comunidade, têm
mais fácil acesso aos estudantes.

No campo teórico, o PPP se apresenta


atualizado e com referências clássicas no campo da
pedagogia. Desde Piaget até citações de Dalai Lama.
Infelizmente, muitas delas aparecem sem as referências
adequadas e passam a ligeira sensação de um
amálgama de citações fora de contexto. Quanto ao
currículo propõe que este seja crítico e visto de forma
contextualizada com a realidade dos alunos. Por fim,
vale lembrar que qualquer dessas referências e ideias
foi amplamente discutida com a comunidade da escola,
trata-se, portanto, de um Projeto Político Pedagógico
feito “em gabinete”.

76
Ainda no PPP vamos ver inúmeros objetivos
gerais e específicos, sendo um dos mais notórios a
diminuição da “evasão escolar”. Trata-se, bem verdade,
de um dos grandes problemas da EJA da escola e de
outras localidades. A meta prevista fala de uma redução
de 70% para 40% da evasão na unidade. Outro objetivo
central e que permeia todo o PPP é ampliar a ligação
entre a comunidade e a escola, como o próprio PPP
admite, em muitos aspectos a escola se configura como
o único espaço de lazer de muitas dessas famílias. Vale
ainda recordar que as festividades são um importante
mecanismo para obtenção de recursos por parte da
escola, para financiar atividades e passeios, a essas se
associam as cantinas escolares. Dentro das normas
específicas segue também a ideia de que os “docentes”
se envolvam com as normas disciplinares da escola.
Essa parte é crucial, pois com um alunado bastante
indisciplinado, nem sempre se consegue construir
consenso sobre a conduta disciplinar mais adequada
dentro do ambiente escolar. Todas estas definidas como
metas de curto prazo.

Nas metas de longo prazo também encontramos


diversos elementos: como a formação de um cidadão
crítico; mas chama peculiar atenção a citação direta a

77
EJA, prevendo que os docentes deveriam fazer a
adaptação curricular para a EJA. E mais ainda:

Palestras dirigidas aos alunos do período


noturno para que os mesmos possam,
através de informações atuais, sentir-se
estimulados a frequentar as aulas,
percebendo que os conhecimentos
adquiridos na Escola serão necessários para
que possam enfrentar um mundo globalizado
onde a mudança se faz diariamente (2022).

Essa parte é muito interessante, pois breve uma


ação específica para combater a evasão escolar nas
turmas de EJA, o que reforça ações concretas para
combater a evasão escolar. Importante destacar que
desde que atuo na presente unidade podemos observar
que fato, a EJA é acompanhada por diversas palestras
que procuram auxiliar o cumprimento do objetivo
supracitado. Ainda que o presente Projeto Político
Pedagógico se encontre muito atualizado e reelaborado
dentro das normas mais atualizadas, encontramos duas
questões centrais: a primeira é a ausência de uma
construção democrática e coletiva; a segunda e que
pouco se fala de metas e objetivos específicos para
EJA, salvo os casos mencionados.

Uma vez analisadas as respectivas legislações, é


necessário pensar como a realidade concreta evidencia
o cumprimento ou não de tais dispositivos normativos e

78
o alcance dos princípios gerais norteados pela
Constituição e pela LDB, em especial, ao foco no
Ensino de História.

A professora Circe Bittencourtt organizou uma


importante coletânea sobre o Ensino de História e, em
diversos capítulos que abordam da Pré-História até a
Guerra Fria, podemos dimensionar alguns elementos do
Ensino de História, ainda que nenhum dos deles
mencione a questão da Educação de Jovens e Adultos.
Um dos pontos mais centrais identificados nas
produções da professora é a busca por um ensino que
se relaciona com a função social da educação, a saber,
formar cidadãos críticos e capazes de interpretar o
mundo instrumentalizando os conhecimentos
adquiridos.8

Dentro dessa esteira, foi possível identificar que a


maioria dos alunos da EJA eram compostos de
trabalhadores. A esses se mesclavam alunos com
defasagem de idade/série. Trata-se, neste último caso,
de realocar os alunos tidos como “difíceis” na EJA, uma
vez que não se adequaram ao ensino regular diurno. Tal
postura, quase sempre protagonizada pela gestão da

8
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História:
fundamentos e métodos. 5ed. São Paulo: Cortez, 2018.

79
escola, pode, sem dúvida, ser questionada, afinal trata-
se de segregar alunos em face seu comportamento,
como se a transferência para EJA fosse uma punição.
Entretanto, a realidade concreta acaba por mostrar que
muitos desses alunos encontram na EJA um espaço de
sociabilidade mais adequado a sua idade, bem como a
suas vivências, em especial, os diversos relatos de
violência cotidiana nas comunidades circunvizinhas à
escola. Importante reforçar que em Araruama, por
exemplo, o regimento escolar municipal foi alterado para
admitir esse tipo de mudança realizada pela gestão
escolar. A exemplo disso, no regimento de 2011, não se
admitia a troca de turno antes do término do ano letivo;
já em 2016, na nova versão, essa realidade da
transferência de modalidade, mesmo durante o ano
letivo, quando tal necessidade fosse observada pelo
corpo técnico.

O que pareceu absolutamente fundamental desde


o início era que na EJA, a prática pedagógica deveria
estar vinculada à vida prática concreta dos educandos.
Naturalmente, Paulo Freire já alertava sobre essa
questão em seus estudos, mas a prática concreta em
sala a revelou ainda mais essencial. As práticas
cotidianas na EJA revelaram uma forte aproximação
entre os educandos e o mundo do trabalho. Seguindo

80
na esteira das mudanças recentes em nossa Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN - Lei
nº 9.394/2018), assim como as recém-publicadas
Diretrizes Operacionais para a Educação de Jovens e
Adultos (BRASIL, 2021), produzem uma base
sustentadora de práticas que buscam traduzir a
responsabilidade profissional e o compromisso social
com a aprendizagem ao longo da vida e, por
conseguinte, a experiência de vida dos educandos é
essencial para o ensino de história nesse cenário.

Esse aprendizado relacionado à vida pressupõe


que somos indivíduos em constante construção e
reelaboração, realidade essa também enfatizada tanto
pela legislação supracitada, bem como pela literatura
educacional mais atualizada. Como resume bem Moacir
Gadotti:

[...] uma das potencialidades do princípio da


“aprendizagem ao longo da vida” é que ele
quebra uma visão estanque da educação,
dividida por modalidades, ciclos, níveis etc.
Ele articula a educação como um todo,
independentemente da idade,
independentemente de ser formal ou não-
formal. Se a educação e a aprendizagem se
estendem por toda a vida, desde o
nascimento até a morte, significa que a
educação e a aprendizagem não se dão
somente na escola e nem no ensino formal.
Elas se confundem com a própria vida, que

81
vai muito além dos espaços formais de
aprendizagem (GADOTTI, 2016, p. 8).

Essa visão que relaciona o trabalho com as


atividades laborais vai também ser defendida por Paulo
Freire: “transformando a realidade natural com seu
trabalho, os homens criam o seu mundo. Mundo da
cultura e da história que, criado por eles, sobre eles se
volta, condicionando-os. Isto é o que explica a cultura
como produto, capaz ao mesmo tempo de condicionar
seu criador” (FREIRE, 1982, p. 27)

E, também, por Célestin Freinet:

Transformando a Natureza e o mundo em


que vivem, os homens transformam a si
próprios. Donde o caráter fundamentalmente
educativo do trabalho, que lhes permite a
autotransformação, na medida em que
transformam o mundo e se apropriam do
mundo novo que se constitui daí, atualizando-
se histórica e culturalmente. Para Célestin
Freinet, essa apropriação do mundo novo,
construído pelos humanos, significa sua
conquista do mundo e, para ele, “esta
conquista efetua-se pelo trabalho, que é a
atividade pela qual o indivíduo satisfaz as
suas grandes necessidades psicológicas e
psíquicas a fim de adquirir o poder que lhe é
indispensável para cumprir o seu destino”
(FREINET, 1969, p. 44).

Logo, vê-se que, mais uma vez, a educação, mais


especificamente a Educação de Jovens e Adultos, não
pode ser vista de forma limitada, logo uma vez que não

82
está restrita ao espaço escolar, mas sim a todos os
aspectos da vida, inclusive ao mundo do trabalho.
Ciente dessa visão teórica, ao longo do estudo e prática
docente fica claro que os alunos da EJA, nas duas
realidades escolares, exercem inúmeras atividades
laborais: eletricistas, domésticas, motoristas, porteiros,
caixas e seguranças. Em quase sua totalidade
apresentam um conhecimento prévio dos direitos
trabalhistas previstos pela Consolidação das Leis
Trabalhistas, tais como 13° salários, férias
remuneradas, descanso semanal, e é claro, o Fundo de
Garantia por Tempo de Serviço. Apesar do
conhecimento prático, poucos conhecem a história de
conquista desses direitos fundamentais, bem como os
conceitos básicos que diferenciam as diversas formas
de trabalho ao longo da história.

Dessa forma, a intervenção discente em sala de


aula baseia-se na busca por esses dois saberes: o
processo histórico que marcou a criação das leis
trabalhistas no Brasil; e o domínio dos diversos
conceitos históricos que envolvem o mundo do trabalho.
Não existe caminho possível para falar de classe
trabalhadora e sua respectiva luta sem a obra de E. P.
Thompson, mais precisamente em seu clássico A
Formação da Classe Operária Inglesa, publicado

83
originalmente em 1963.9 (THOMPSON, 1987)
Curiosamente, muitos dos conceitos formulados em seu
livro, já eram desenhados antes de sua publicação. A
própria ruptura com o Partido Comunista, já indicava a
satisfação de Thompson com o afastamento entre os
intelectuais socialistas e os trabalhadores, aqueles que
estavam no chão da fábrica. Vale, nesse caso, recordar
as colocações do Professor Marcelo Badaró, que
reforça a importância de sua atuação como professor de
adultos na extensão universitária na Universidade de
Leeds, cargo que ainda exercia quando redigiu sua
importante obra. Trata-se, assim, de um intelectual não-
típico, tendo sido combatente na Segunda Guerra
Mundial e desde cedo atuado na militância no Partido
Comunista, que mais tarde deixaria para tentar formular
novas alternativas para a esquerda britânica. Em
síntese, era um intelectual engajado nas questões
sociais de seu tempo exemplificada pela sua atuação na
Educação de Jovens e Adultos.10

9
E. P. Thompson. A formação da classe operária inglesa. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1987, 3 vols.
10
BADARÓ, Marcelo. História e projeto social: a origem militante
do debate sobre classes e luta de classes na obra de E. P.
Thompson. Capturado em 28/05/23:
https://www.ifch.unicamp.br/formulario_cemarx/selecao/2012/tra
balhos/6638_Badaro_Marcelo.pdf

84
Como observa o professor Marcelo Badaró,
Thompson fez um enorme esforço de definir a classe
trabalhadora nos anos 1960, justamente em um
momento de relativo incremento do poder de compra,
que muitos chamariam de “aburguesamento” da classe
operária. Thompson combate assim duas visões: de um
lado uma historiografia liberal, que procura minimizar a
condição precária da classe operária; de outro, um
marxismo ortodoxo, que usava uma leitura
excessivamente quantitativa para explicar a luta de
classes, desprezando o conceito de “experiência” tão
caro para Thompson. No lado liberal, merece destaque
a obra de T. S. Asthon, que também postulava uma
convergência entre várias classes sociais no processo
de industrialização inglês, apresentando uma visão
positiva do processo de industrialização. Em síntese, é
possível dizer que a obra de Thompson percebe a
“classe” como uma categoria dinâmica, que pode tanto
se autodefinir como ser definida por outros. Para ele,
deve-se evitar o reducionismo econômico na análise da
classe, pois o que a define é sua agência histórica -
entendo, nesse caso, “agência” como sendo a
capacidade do indivíduo de agir sobre a sua própria
vida.11

11
Muitos marxistas criticaram a obra de Thompson alegando o

85
Por fim, como esclarece o professor Badaró,
existe uma estreita relação entre a experiência de
Thompson como professor e sua percepção da classe
operária, reconhecendo que o saber discente deve ser
tomado em conta, a vivência real das pessoas, sua
experiência em si deve ser fundamental para entender o
mundo. Leia-se:

“De modo geral, o tutor acredita ter


aprendido mais o que ele transmitiu
… e apesar de alguns erros iniciais,
a classe aprendeu a trabalhar no
espírito desejado na WEA
(Associação Educacional de
Trabalhadores) – não como o tutor e
a audiência passiva, mas como um
grupo combinando diversos talentos
e fundindo diferentes
conhecimentos e experiências para
um fim comum”.12

Uma vez definida uma percepção do conceito de


classe, devemos procurar correlacionar essa situação
de classe com o surgimento das Leis Trabalhista e do
próprio trabalhismo no Brasil. Para tanto, parece
essencial a obra de Angela de Castro Gomes,
curiosamente, uma historiadora muito influenciada pela

excesso de culturalismo. Como argumento Ellen Wood, Thompson


defendia uma simultaneidade entre os elementos econômicos e
culturais.
12
Apud. Marcelo Badaró.

86
obra de Thompson. (GOMES, 2005) O que a
historiadora Angela de Castro Gomes identifica é uma
coincidência entre a consciência de classe dos
trabalhadores brasileiros com a própria estrutura do
trabalhismo que se desenvolvia nos anos de governo
Vargas.13

Diante da ideia de classe como categoria


dinâmica e da especificidade do trabalhismo brasileiro, é
observável que a maioria dos alunos da Educação de
Jovens e Adultos dos municípios em tela apresenta uma
forte consciência de si e do mundo que os rodeia.
Sempre me recordo do caso de três jovens alunos da
EJA que trabalhavam em um mercado nas
proximidades da escola. Eles chegavam juntos e
sempre atrasados, cerca de trinta minutos às classes.
Verbalmente advertidos, alegavam que chegavam
atrasados porque o trabalho não os liberava. Como de
costume, consultei nos dias seguintes a equipe de
suporte pedagógica e a inspetoria da escola, que não
apenas confirmou, como ainda complementou: “ali (se
referindo ao empregador) as coisas são difíceis.”. A
precária situação dos discentes trabalhadores só se

13
GOMES, Angela Maria de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2005.

87
agravaria algumas semanas depois, quando foram
demitidos. Um dos rapazes teve que faltar por dias para
cuidar da mãe acamada; um segundo faltou por outros
problemas pessoais, o que fez o empregador concluir
que estavam armando algo, demitindo os três amigos.

Desde então, o recorte temático das aulas de


história na EJA, em todas as suas fases, tem sido as
diversas noções de trabalho. Servidão, escravidão,
colonato, pareceria, meeiro, trabalho formal, informal e
subemprego têm sido alguns dos muitos conceitos
elaborados e revisitados. A previsão de uma adaptação
curricular é pautada em lei, como antes visto. Ademais,
o tempo quase sempre reduzido e as dificuldades
operacionais (atrasos, faltas, problemas no transporte e
estrutura escolar) acabam nos obrigando a tal
adaptação.

A história por si só já seria ilustrativa, mas se


torna mais elucidativa pela forma como foi descoberta.
Durante uma aula, que marcava as diferenças entre a
Lei da Estabilidade criada no governo Vargas e as
mudanças decorrentes da Reforma Trabalhista durante
a ditadura militar no Brasil, explicava o que significava
historicamente o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo
de Serviço) e o quanto ele enfraquecia a concepção

88
trabalhista criada durante o Estado Novo. De pronto sou
sumariamente interrompido por um dos três alunos
mencionados: “Professor, como funciona essa coisa de
multa de fundo? Meu patrão tá querendo dar justa
causa na gente.” Apontando em seguida os outros dois
colegas. Interrompi o planejamento regular da aula e
escutei os rapazes. E logo se seguiram inúmeras
explicações do que eles deveriam fazer, nenhuma delas
por mim, mas sim pelos próprios colegas de classe.
Uma das alunas, já aposentada, exclamou: “Manda dar
baixa na carteira! Porque depois você se enrola para se
aposentar.” A simples experiência se transformou em
uma das aulas mais interessantes que já ministrei.
Falamos de conceitos básicos de classe social, “mais-
valia”, lucro, dignidade da classe trabalhadora e a velha
relação entre tempo e trabalho. Sintetizamos
construindo coletivamente quais eram os principais
direitos previstos nas CLT. Um dos jovens finalizou:
“Professor, não tem jeito, patrão é tudo igual”, não antes
de proferir um estrondoso palavrão.

No âmbito das respectivas municipalidades:


Saquarema e Araruama podem ter aplicabilidades
distintas dessas práticas de ensino e orientação
pedagógica. Como vimos, os municípios possuem
muitas similaridades em suas realidades escolares, mas

89
também encontram notórias diferenças. Enquanto em
Araruama encontramos um volume maior de
dispositivos legais que amparam a EJA, temos uma
realidade concreta mais sensível, visto que uma parcela
significativa dessas normativas são ignoradas. Em
Saquarema, na direção oposta, temos normativas que
podem estar desatualizadas, notadamente o Projeto
Político Pedagógico da Escola, mas no âmbito mais
geral do município algumas ações têm demonstrado
melhoras expressivas tanto na evasão escolar, quanto
no processo de ensino aprendizagem. O Plano
Municipal de Educação ao criar um incentivo pecuniário
direto acabou por ampliar o acesso a essa modalidade
de ensino, bem como o acesso a recursos diversos que
possibilitaram uma prática pedagógica mais sólida.
Dessa forma, o que se constrói dentro das salas de aula
da EJA em Saquarema, e mais precisamente, na Escola
Municipal José Bandeira é um saber escolar próprio que
relaciona a vida dos educandos e sua prática
profissional com os conceitos históricos básicos.

90
Referências:

BADARÓ, Marcelo. A classe trabalhadora: de Marx ao


nosso tempo. São Paulo, Boitempo, 2019.

BADARÓ, Marcelo. História e projeto social: a origem


militante do debate sobre classes e luta de classes na
obra de E. P. Thompson. Capturado em 28/05/23:
https://www.ifch.unicamp.br/formulario_cemarx/selecao/
2012/trabalhos/6638_Badaro_Marcelo.pdf

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de


História: fundamentos e métodos. 5ed. São Paulo:
Cortez, 2018.

CERATTI, Márcia Rodrigues Neves. Políticas públicas


para a Educação de Jovens e Adultos. Programa de
Desenvolvimento Educacional (PDE), SEED/PR. 2007.
Acesso em: 20 jan. 2021.

THOMPSON, E. P. A formação da classe operária


inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, 3 vols.

FREINET, Célestin. Para uma escola do povo Lisboa:


Editorial, 1969.
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros
escritos 6. ed., São Paulo: Paz e Terra, 1982.
____________. Pedagogia do oprimido 32. ed., São
Paulo: Paz e Terra, 2002.
____________. Pedagogia da autonomia: saberes
necessários à prática educativa. 33. ed., São Paulo: Paz
e Terra, 2006.
GADOTTI, M. Educação popular e educação ao longo
da vida. In: CONFINTEA +6, 2016, Brasília. Coletânea
de textos. Brasília: Ministério da Educação, 2016, v.1.

91
p.1-10. Disponível em:
https://www.paulofreire.org/images/pdfs/Educacao_Pop
ular_e_ELV_Gadotti.pdfAcesso em 2 fev. 2022.
GOMES, Angela Maria de Castro. A invenção do
trabalhismo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.
MONTEIRO, Ana Maria Ferreira da Costa. Professores
de História: entre
saberes e práticas. Rio de Janeiro, Editora Mauad,
2007.
ROCHA, Helenice Aparecida Bastos. História e
patrimônio: Saquarema. 1. ed. - Rio de Janeiro: Mauad
X: Faperj, 2014.
WOOD, Ellen Meiksins. A origem do capitalismo. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

92
Desafios para uma educação antirracista
na Costa Verde: um estudo de caso na
rede pública de ensino de Angra dos
Reis

Gabriela da Silva Dezidério14

14 Arte educadora, graduada em Licenciatura em Educação Artística


com habilitação em Artes plásticas pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (2011) Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes
pela Universidade Federal Fluminense (2015) e doutoranda em
Sociologia também pela UFF. Pesquisadora vinculada ao Núcleo de
Estudos de trabalho, cidadania e Arte (Nectar/UFF). Leciona no
município de Angra dos Reis desde 2016 e possui experiência em
estudos na área de artes em contextos sociais com ênfase no
debate étnico racial, de gênero e para a cultura dos povos
tradicionais brasileiros.

E-mail: [email protected]
Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/9484648977886244

93
Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar as
questões que envolvem o ensino de arte e cultura
afrobrasileira em escolas da rede de Angra dos Reis,
cidade no interior do estado do Rio de Janeiro.
Buscando apontar e problematizar aspectos que
dificultam ou inviabilizam a abordagem efetiva deste
conteúdo, tomando como referência principal a vivência
prática como arte educadora e a escuta aberta e curiosa
tanto em sala de aula, como em outros espaços como a
sala de professores.

Palavras-chave: ensino; arte educação, arte afro-


brasileira; intolerância religiosa.

94
No ano de 2012 ingressei na rede municipal de
ensino da cidade de Volta Redonda como arte
educadora. Movida por um interesse particular pela arte
afro-brasileira que veio a resultar em minha dissertação
de mestrado, busquei desde o primeiro momento inserir
manifestações artísticas produzidas por artistas negros
e de conteúdos afro religiosos e/ ou referentes a
estéticas negras em minhas aulas. Interesse este, que
tem seu fundamento na ausência que que pude
identificar em minha formação no curso de educação
artística/ artes plásticas, na qual a abordagem da arte
afro-brasileira foi ausente, mesmo tendo passado duas
instituições de ensino com currículos distintos.

Das memórias trazidas de minha infância e


juventude, onde a presença dos terreiros de umbanda,
dos sambas e carnavais, somada ao contato com as
obras de artistas negros como Mestre Didi, Abdias do
Nascimento e Rubem Valentim, emerge a paixão pela
cultura popular brasileira e pela arte e cultura afro-
brasileira. Em suas nuances de disparidades e
indissociações, tomou forma o desejo de compreender
as complexidades que permeiam tal vertente. Com este
interesse pelo estudo da cultura afrobrasileira, junto ao
contato com a realidade da docência na educação

95
pública, surgem alguns dos questionamentos que serão
abordados neste texto.

Este trabalho se propõe enquanto relato de


experiência e estudo de caso, desenvolvido em campo
ao longo dos últimos dez anos nos quais atuei na rede
pública municipal de ensino em cidades no interior do
estado do Rio de Janeiro, mas foca principalmente nos
últimos seis anos nos quais atuei na rede municipal de
Angra dos Reis. E conta com a colaboração generosa
de duas colegas da rede que me compartilharam relatos
de experiências nas quais se dera a abordagem de
temáticas relacionadas à negritude, nas salas de aula
do mesmo município. E pretende-se enquanto análise
empírica e qualitativa que parte do pressuposto de que
o preconceito, inclusive o de cunho religioso, tem sido
um importante entrave ao ensino da história, arte e
cultura afro-brasileiras, preconizado pela lei 10.639
desde o ano de 2003, mas que até os dias de hoje
ainda não foi efetivamente implementado e propagado
pelo território nacional.

É necessário esclarecer que por falta de recursos


e tempo hábil, ainda não foi realizado um estudo de viés
quantitativo sobre o objeto proposto neste trabalho. O
que seria interessante, numa perspectiva de avaliar a

96
generalidade das colocações aqui propostas. No
entanto, partindo da reflexão sobre experiências
próprias e dos relatos formais e informais de outros
professores, inclusive das colegas já mencionadas, este
estudo pretende elucidar questões recorrentes, que
puderam ser identificadas a partir da observação
participante e da espontaneidade dos diálogos tecidos
no convívio em diferentes em escolas.

No decorrer deste tempo de atuação em sala de


aula, sempre que possível, priorizei atividades em que a
cultura afro-brasileira se fez presente de alguma forma.
Desde as poéticas, aos artistas abordados, por acreditar
na potência deste legado dessa para a cultura brasileira,
e na potência da visualidade para a construção de
valores não apenas estéticos, mas também éticos, além
da importância pedagógica de se descolonizar saberes.
Ainda assim, as resistências que têm se apresentado à
este propósito, e os muitos equívocos, por vezes me
trazem um grau profundo de desesperança, ao ponto de
por diversas vezes julgar ser impossível falar de arte
afro-brasileira no contexto escolar, em especial na rede
em que atuo, sem antes precisar fazer um delicado
trabalho de sensibilização e contextualização, para
justificar, e em certas medidas até mesmo me respaldar,
por estar a abordar tais assuntos. E se torna ainda mais

97
assustador, quando esta necessidade de contextualizar
e justificar o ensino de arte e cultura afro-brasileira parte
do corpo docente e demais profissionais da escola.

Veja bem, quando falo da contextualização e


sensibilização ante a um tema específico como algo
problemático, não o digo apenas pela carga de
insegurança que este movimento traz, na dinâmica
própria de construção e realização das aulas, como se
apontasse para algo inadequado para o contexto. Ou
mesmo por arrogância, frente ao desconhecimento geral
sobre o assunto. Mas o digo principalmente porque tal
ação evidencia a carga de preconceitos dirigidos a arte
e cultura afro-brasileira.

Tal estranhamento, que desde o começo de


minha trajetória profissional intrigou, acabou culminando
no hábito de conversar com outros professores, colegas
de escola e de rede, principalmente os de artes, mas
também sempre que possível, com os de outras
disciplinas, sobre os desdobramentos de suas
experiencias no ensino de arte e cultura afro-brasileira.

Aos alunos, coube a observação atenta e sempre


que necessário, a prática reflexiva, através de
perguntas, vídeos explicativos e leituras inspiradoras
que os levassem a refletir sobre seus preconceitos e

98
resistências em torno da estética, da história e da
cultura afro-brasileiras. O que nem sempre é bem-visto
pelas famílias.

Sem o afã de tomar minha experiência como


universal e levando em consideração o contexto dessas
escolas, uma vez que se trata de escolas de periferia,
numa cidade de interior, este trabalho visa apenas
levantar questões para serem desenvolvidas com mais
profundidade num momento posterior, mediante um
estudo mais estruturado sobre o tema. Mas ainda
assim, na iminência dos vinte anos de lei 10.639, me
cabe questionar sobre o que afinal produz tanto
desconforto e resistência no ensino da arte e cultura
afro-brasileira?

Não raro, nas aulas em que uma obra de arte de


matriz afro é apresentada aos alunos, ou mesmo um
artista negro que não esteja vinculado a cultura pop, há
o questionamento sobre os aspectos religiosos da obra,
ou personalidade em questão. Música, dança, pinturas,
esculturas, desenhos, performances afro-brasileiras
estão sempre sujeitos ao termo pejorativo “macumba”.
Estaria tudo bem, que se resgatasse o aspecto religioso
presente em muitas das produções artísticas afro-
brasileiras, ou que se associasse essas obras à

99
religiosidade de matriz afro devido às proximidades e
mesmo correspondências estéticas, dado que assim
como ocorre na arte ocidental no decorrer do processo
histórico, a temática religiosa é também muito presente
na produção deste segmento. Mas o que ocorre com a
arte afro-brasileira, é que mesmo em casos de obras
não religiosas, a questão da religiosidade é apontada de
forma marginalizada. Não raro, há alunos que se valem
do argumento da religiosidade para não participarem
das aulas, ou mesmo sequer entrarem em contato com
os conteúdos e visualidades ao longo das propostas. E
dentre aqueles que se identificam com o assunto, há na
grande maioria das vezes, um silêncio de medo e
constrangimento.

Tornar-se alvo de piadas ou ofensas religiosas é


algo que nenhuma criança ou adolescente deseja para
si. No entanto, deveria produzir um enorme
estranhamento não apenas em nós professores, mas
também em todas as famílias, que esse fenômeno com
tanta frequência aconteça nas escolas, não apenas do
municipal ao qual se volta este estudo, como de toda a
nossa região e arrisco dizer, de nosso país. Infelizmente
não é bem isso o que acontece. O que tenho
observado, no decorrer dessa década de ensino é que
com triste frequência, há famílias que reproduzem este

100
movimento de taxar como “macumbeiros”, num sentido
pejorativo e demasiadamente marginalizado do termo,
professores que abordem temáticas de matriz afro e
fazem de um ensino antirracista o norte de suas
práticas, assim como o movimento de marginalização
dos alunos de religiões de matriz afro. O que por vezes
trás desdobramentos no mínimo desconcertantes aos
professores, em especial quando não há o devido
respaldo da equipe diretiva e demais membros da
escola.

Na busca de tentar compreender as raízes deste


preconceito, tanto o que se dirige às produções
artísticas afro-brasileira, quanto o que envolve sua
religiosidade, retomei aos dados do passado, registros
histórico de subjugação do indivíduo negro e de sua
cultura, dado que suas manifestações culturais foram
por décadas criminalizadas e, mesmo hoje, quase um
século depois dos processos de descriminalização das
religiões de matriz afro, ainda é grande a batalhas no
campo ideológico para que sejam socialmente
respeitadas ou para que não se reduzam apenas ao
fetichismo e à descaracterização.

Na construção deste olhar depreciativo dirigido às


manifestações artísticas e culturais afro-brasileira,

101
também tiveram o seu papel os primeiros estudiosos do
campo. Estudiosos, em geral homens brancos, que
influenciados por teorias evolucionistas e baseados no
modelo eurocêntrico de racionalidade, monoteísta e
cristão, produziram historiografias (Nascimento, 2010,
pag. 925) na qual o negro era retratado enquanto
indivíduo subalternizado, passivo, e suas manifestações
culturais medíocres e primitivas. O que vem sendo
revisto ao posso que o debate étnico racial avança,
produzindo novas literaturas que elucidam narrativas
factuais que descontroem tais argumentos, restituindo
assim, o protagonismo narrativo negro no Brasil.

Também as políticas de criminalização da cultura


negra, e em especial das religiões de matriz afro,
predominantes no começo do século vinte, exerceram
grande influência na cristalização do racismo no Brasil e
pautam, na perspectiva do cenário pós abolicionista, as
bases da intolerância que identificamos ainda nos dias
de hoje.

Durante o período de criminalização das religiões


de matriz afro, que teve seu fim na década de trinta,
com a política do estado novo, implementada por
Getúlio Vargas, que legalizou as ações dos terreiros
visando promover uma política cultural pautada numa

102
problemática narrativa de democracia racial, muitos dos
objetos ritualísticos utilizados em cultos negros no Brasil
foram apreendidos, a exemplo dos objetos que ficaram
presos no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro, até
que no ano de dois mil e vinte foram finalmente
transferidos para o Museu da República, em detrimento
da campanha “Liberte Nosso Sagrado”.

A criminalização de uma cosmovisão e sua


estética remanescente, evidência as graves ofensivas
na implementação de um processo de aculturação ao
qual os indivíduos e comunidades afro diaspóricos
foram expostos no Brasil. E o fato dos impactos e
investidas dessas dinâmicas se preservarem ainda nos
dias de hoje, evidencia o quanto ainda há para ser feito
no sentido da construção de uma sociedade
verdadeiramente antirracista, onde se dê um panorama
de fato, de reparação histórica aos povos negros no
Brasil, que, ao contrário do que sonham as mentes
progressistas deste país, se vê atolado cada vez mais
no conservadorismo.

Retomando a experiência de sala de aula, é


interessante frisar que em atividades em que são
utilizadas imagens clássicas da historiografia da arte
tradicional, imagens renascentistas, barrocas, em que a

103
iconografia religiosa cristã se faz visivelmente presente,
assim como a estética euro referenciada, não é comum
que aconteça nenhum tipo de questionamento quanto
ao caráter religioso das obras, tanto por parte dos
alunos, quanto por parte da equipe e responsáveis.
Considerando que os paradigmas religiosos católicos e
protestantes são divergentes em vários aspectos, como
em relação a representatividade da figura de Maria, por
exemplo. E mesmo quando esta aparece representada,
ou em destaque nessas obras, não ocorrem
questionamentos de cunho religioso nas aulas. No
entanto, já presenciei situações em que a equipe
diretiva de uma escola sugeriu a mudança no
planejamento de atividades até mesmo já concluídas,
por conter alguma referência religiosa de matriz afro, e,
em um caso ainda mais extremo, uma ocasião em que a
prática de capoeira foi excluída de uma atividade
recreativa cultural extraclasse, por medo dos
questionamentos que alunos, e principalmente, de
familiares evangélicos.

É claro que situações como as anteriormente


mencionadas, em que manifestações da cultura afro,
dentre elas a capoeira, é excluída de atividades
escolares por conta do receio quanto ao que os alunos
protestantes e seus familiares possam vir a demandar

104
da escola, aponta para aspectos pessoais dos
indivíduos envolvidos nessas decisões, em suas
preferências, perspectivas religiosas e políticas próprias.
Mas também, tais receios evidenciam o impacto social
das ações de intolerância religiosa nos ambientes
institucionais públicos da nossa sociedade. Não
podemos ignorar que tais impactos operam desde as
situações mais corriqueiras do nosso cotidiano, até as
decisões de nível macro no cenário político nacional. O
que reforça ainda mais, a importância de um ensino
antirracista para a manutenção de um estado
democrático, no sentido mais amplo possível do termo.

Sendo assim, mesmo em uma breve análise,


arrisco dizer que a intolerância religiosa é hoje um
grande entrave para um ensino antirracista, onde a
história e a cultura afro-brasileiras sejam abordadas em
toda a sua magnitude e contribuição para a constituição
do que hoje chamamos Brasil. Ouso mais ainda em
afirmar que um ensino antirracista é uma importante
ferramenta, que inclusive vem sendo bastante
negligenciada, para a construção e manutenção de um
estado democrático de direito no Brasil atual.

Então, como fica a implementação da Lei 10639


de 2003, que garante o resgate da identidade afro-

105
brasileira através da obrigatoriedade do ensino de sua
história e cultura?

Para discutir tal questão busquei a troca com


alguns colegas de profissão. Disponibilizei um
questionário num grupo de arte educadores da rede
municipal de Angra dos Reis e, mesmo tendo feito uma
apresentação gentil, onde explicava que os dados desta
pesquisa seriam utilizados unicamente na produção de
um artigo acadêmico, com toda responsabilidade e
discrição possível, não vindo a serem compartilhados
com supervisores dentre outras autoridades da rede,
somente uma professora com a qual já possuo um
contato de amizade de outros contextos, se interessou
em participar respondendo ao questionário.

Professora da rede já há alguns anos, L é um


caso particularmente interessante pois atuou em uma
comunidade quilombola e possui um interesse particular
pela temática em questão.

Em seu relato, me contou que sempre que


possível, inseria artistas afro-brasileiros e manifestações
culturais de matriz afro em suas aulas. No entanto,
disse ter encontrado pouco interesse dos alunos com a
temática e pouco autorreconhecimento destes enquanto
negros. Disse ainda, que mesmo se tratando de uma

106
comunidade escolar composta por alguns alunos
quilombolas, não há uma forte identificação com a
cultura de matriz afro e nem mesmo com a cultura local.

Apesar de tal dificuldade, L disse ter recebido


liberdade e apoio por parte da equipe da escola para
trabalhar tais temáticas, mais destacou ainda, que
gostaria de fazer um trabalho mais específico e
direcionado, cogitando até mesmo a elaboração de um
currículo específico para tal comunidade, pois
reconhece que ainda há muito a ser feito para a
implementação efetiva de um ensino antirracista na rede
e, em especial, em sua escola.

Quanto a questão religiosa, L disse ter lidado


eventualmente com falas de intolerância e que
demonstrassem certo grau de racismo religioso,
proferidas em geral por alunos, no decorrer das aulas
nas quais a visualidade negra fora abordada. Em suas
palavras, L descreve:

Vários trabalhos apresentados a


eles são considerados, por eles,
"macumba " e/ou "feitiçaria".
Percebo que, o que é desconhecido
e estranho é visto com muita
desconfiança por um número
considerável e alunos. Meus
esforços são sempre para transpor
esse estranhamento. Eu adorava
trabalhar com o Auto do Boi Bumbá,

107
não trabalho mais, porque parte dos
alunos debocham, praticamente
todos não se reconhecem os
personagens, se recusam a ser
aqueles personagens na fantasia...
outra parte diz que precisa
perguntar para o pastor se eles
podem fazer, e ainda há uma outra
parte que se recusa a tudo, de
imediato, afirmando que " isso não é
de Deus". Cansativo, não faço mais
esse trabalho. Eu tive algumas
turmas, poucas, que gostaram da
história, fizeram o teatro, fizeram
desenhos e tudo deu certo. Eu
construí um boi de papietagem e
tecido (lindo!), eu tinha os figurinos
e acessórios. Com o tempo e essas
reações cada vez mais frequentes,
me desfiz de tudo.
Em outra circunstância, uma aluna
se recusou a fazer um trabalho de
desenho alegando que a mãe não
permitiu. Isso foi em 2021. Ela disse
que a mãe falou que aquilo eram
runas. E eu pedi que ela me
explicasse sobre as runas (eu tenho
um jogo de runas, mas ela não
sabia disso). Todo o entendimento
da aluna estava equivocado, ela
acreditava que as runas eram para
fazer um feitiço. Ela explicou que a
mãe não permitia que ela fizesse
aquele trabalho. Percebi, muito
claramente, que as ideias eram da
mãe (e outras pessoas, talvez)
tentando convencê-la de que era
errado. Afirmo isso porque a aluna
era muito boa, inteligente,
participativa, educada, caprichosa,
ela fazia os trabalhos na aula, mas

108
quando ela ia pra casa e nos
encontrávamos na semana
seguinte, ela estava cheia de
questionamentos que ela mal sabia
justificar, acredito muito que o que
acontecia é que ela falava em casa
e aí a mãe trazia todo esse
entendimento errado pra ela.”

Na fala de L fica evidente o quanto a discussão


em torno da intolerância religiosa extrapola até mesmo
os contornos do debate sobre negritude.

Na conversa, L me indicou uma amiga, em


dinâmica de bola de neve, também professora de
história e pedagoga, que atua no ensino fundamental I,
na rede municipal de Angra dos Reis, com crianças em
fase de alfabetização, e com jovens no ensino médio,
pela rede estadual de ensino deste mesmo município.

Em seu relato, C diz que durante alguns anos


desenvolveu junto de suas turmas de alfabetização um
trabalho sobre relações étnico raciais. Diz que foi
motivada, pelo relato de uma aluna ainda criança que,
vinda de outra escola, contou que havia ouvido da ex-
professora que não poderia se vestir de princesa porque
era negra e não havia princesas negras. A partir de
então, a professora contou que fez um trabalho a partir
da literatura infantil sobre diversidade étnico racial,
enfatizando a negritude. Conta que abordava a temática

109
de forma indireta, inserindo o debate étnico racial nos
conteúdos das aulas. Ressaltou a importância de ter
sensibilidade e tato ao tratar do tema, mas destacou
que com as crianças da primeira fase do ensino
fundamental, nunca vivenciou um episódio explícito de
racismo. O que não se deu na experiência com os
jovens, na qual a professora disse ter mais dificuldades
em abordar o tema, evitando de fato inseri-los em suas
aulas, por conta dos desdobramentos, por vezes
polêmicos, que ocorrem.

Quanto à questão da intolerância religiosa, C


disse nunca ter falado de religiões de matriz afro
diretamente em suas aulas, mas, quando surge alguma
questão relacionada ao tema com as crianças, C disse
fazer uma fala sobre a importância da coexistência de
múltiplas perspectivas religiosas e afirmou que em
geral, os menores acabam acatando e concordando
com a fala da professora, ao passo que com os
adolescentes, ocorrem mais expressões de intolerância.

A professora, que hoje atua na direção de uma


escola, fez questão de destacar que todas as vezes em
que trouxe a temática da negritude e afro-brasilidade
para suas aulas o fez de forma autônoma, sem o apoio
da direção da escola ou dos demais colegas. Disse

110
ainda já ter ouvido falas racistas sobre o seu interesse
pelo tema, como a de que era preciso falar de “gente
bonita e não de gente feia” e de “povos bem-sucedidos”,
“que deram certo” e não de povos “fracassados”. Hoje
como auxiliar de direção, C diz ter dificuldades de
implementar projetos com temáticas étnico raciais por
falta de adesão dos professores.

Uma vez que surge nos relatos a questão da


indisposição dos professores e até mesmo despreparo
para um efetivo ensino voltado para as questões étnico
raciais, me recordo de minha formação. Inicie no curso
de Licenciatura em Artes Visuais em 2006, e em 2009
me transferi para o curso de Licenciatura em Educação
Artística com habilitação em Artes plásticas pela UFRJ,
de onde sai em 2011, sem que fizesse parte do
currículo dos dois cursos uma disciplina sequer onde
conteúdos de arte e cultura afro-brasileiras fossem
verdadeiramente abordados.

É verdade que de 2011 para cá muitas mudanças


ocorreram nos currículos das instituições universitárias
do Brasil, e foi possível acompanhar mesmo que de
longe, a ocorrência de vários eventos acadêmicos e
formações complementares que visassem esta pauta.

111
No âmbito das artes, a Universidade Estadual do
Rio de Janeiro é expoente em ações voltadas para o
estudo da história e cultura afro-brasileiras. Também os
Institutos Federais e o Colégio Pedro II estão a
empreender importantes ações, que vão desde cursos
de extensão, pós-graduações à seminários, no fomento
do debate étnico racial na educação. Optei por restringir
a minha breve análise à realidade de algumas
instituições do estado do Rio de Janeiro, por ser esta a
região onde atuo e acompanho mais de perto, mas
também por se tratar das instituições onde muito dos
professores da rede pública de Angra dos Reis e região
se formaram e vão em busca das complementações de
suas formações.

No entanto, ainda é grande o número de


professores cuja formação não deu suporte teórico para
o ensino de história e cultura afro-brasileira. E
infelizmente, na disciplina artes esta carência em geral é
suprida com a supressão do tema do currículo. Ou com
a difusão de equívocos comuns como, apresentar num
mesmo pacote arte africana e arte afro-brasileira, sem
que seja feita uma detalhada distinção entre ambas.

Outro exemplo comum, é o uso comum das


máscaras africanas, referência que inspirou artistas de

112
renome para a arte europeia, e que exclusivamente por
isso, acabam sendo muitas das vezes a primeira
referência que surge em artes para falar de arte negra,
e muitas das vezes acabam sendo exploradas de forma
descontextualizada e muito mais pelo seu valor ao olhar
do homem branco, do que por sua relevância simbólica
para o contexto do povo negro que as produziu.

Não raro a pintura de máscaras africanas é a


atividade escolhida em artes para se trabalhar a
semana de consciência negra, sem que haja nenhuma
contextualização ou paralelo com a realidade da
negritude no Brasil. Deixando a margem a produção dos
inúmeros artistas brasileiros que trabalham com a
temática. Nestas ocasiões, acaba-se criando uma
enorme confusão na cabeça do educando, que coaduna
com as perspectivas de uma África única, ou da
negritude como o outro, a África, ao passo que
negritude também somos nós, o Brasil.

Veja que não é meu interesse desqualificar a


expressividade estética das máscaras africanas,
tampouco sua relevância para o diálogo da arte africana
com a arte ocidental. Sugiro apenas que o arte-
educador, sendo ele um especialista, tenha outras
“cartas na manga”, e que também explore junto de seus

113
alunos o rico e plural universo da arte afro-brasileira. E
se possível, que também indague nas manifestações
artísticas genuinamente brasileiras, que são postas para
o campo da arte desvencilhadas do rótulo de afro
remanescente, aspectos de sua afro-brasilidade. Como
ocorre com o barroco brasileiro, que foi produzido por
negros e mulatos, com aspectos de iconografia afro,
misturados com elementos da predominante iconografia
cristã europeia, como bem desenvolveu o historiador
Roberto Conduru em seu livro intitulado: arte afro-
brasileira.

A própria discussão acerca dos contornos do que


é a arte afro-brasileira precisa ser popularizada para
fomentar a compreensão da relevância desta vertente
para a construção de uma cultura genuinamente
brasileira.

Sobre tal questão, Conduru sintetiza dizendo que

é preciso pensar coisas e ações


indicadas pelo cruzamento de arte e
afro-brasilidade: de obras de arte à
cultura material e imaterial. Sendo
assim a expressão arte afro-
brasileira indicaria não um estilo ou
um movimento artístico produzido
apenas por afrodescendentes
brasileiros-, ou deles representativo,
mas um campo plural, composto por
objetos e práticas diversificados,

114
vinculados de maneiras diversas à
cultura afro-brasileira, a partir da
qual tensões artísticas, culturais e
sociais podem ser problematizadas
estética e artisticamente (Conduru
2007, p. 11).

Recentemente, algumas prefeituras têm investido


em formações próprias para capacitar os profissionais
de educação a atuarem de forma acertada no ensino da
história e cultura afro-brasileiras. A cidade de Angra dos
Reis foi uma dessas cidades a ofertar no decorrer dos
últimos anos uma formação voltada para o ensino
antirracista, vinculada à sua secretaria municipal de
educação e ofertada de forma optativa aos professores
de dentro e fora da rede.

Na formação, também a história e cultura dos


povos indígenas é contemplada, abordando tanto
aspectos legais que envolvem um ensino plural em
étnico racialidade, quando uma bibliografia que de conta
do assunto. Também contemplam visitas às aldeias
localizadas no município e região, e ao quilombo do
Bracuí.

Apesar do sucesso do curso, dado que as turmas


em geral costumam ser cheias, com adesão de
professores até mesmo de outros municípios, ainda é
modesta a implementação de projetos educacionais

115
específicos para a questão no município, que ainda
convive com situações como as já identificadas e
pontuadas nos relatos anteriores.

Do ponto de vista político institucional, o contexto


de Angra favorece a implementação deste tipo de ação,
como a proposta formativa mencionada anteriormente,
pois trata-se de uma cidade que tem como
particularidade a origem caiçara e a presença de
comunidades quilombolas afro-brasileiras e indígenas, e
que por seu patrimônio cultural e natural recebeu, junto
do município vizinho de Paraty, o título de Patrimônio
Mundial da UNESCO em 2019, lançando ainda mais luz
e investimentos para a elaboração de projetos voltados
para diversidade presente na região.

No entanto, ainda sim falar de arte afro-brasileira


tem sido um desafio que ilustrarei através de dois
relatos de aulas que tive em outubro de 2017 e maio de
2022.

O tema da aula era “a multiplicidade da arte visual


afro-brasileira”, o público composto por adolescentes do
oitavo ano, em uma escola municipal de periferia. O
perfil étnico-racial da turma era bastante plural, e dentre
os alunos, havia um grupo significativo auto declarante
evangélico.

116
Apresentei-lhes imagens de pinturas presentes no
catálogo da exposição “Negros Pintores” que aconteceu
em 2008 no Museu Afro Brasil, desenvolvidas pelos
artistas negros, Arthur Timótheo, Benedito José de
Andrade, Benedito José Tobias, Emmanuel Zamor,
Estevão Silva, Firmino Monteiro, Horácio Hora, João
Timótheo, Rafael Pinto Bandeira e Wilson Tibério, obras
estas pintadas dentro do contexto acadêmico do século
XIX e começo do século XX (ARAÚJO, 2008).

Num primeiro momento, foi feita a devida


contextualização, que passava por uma breve
explicação do que foi a Academia Imperial de Belas
Artes, que posteriormente veio a designar-se como
Escola de Belas Artes, e hoje funciona junto a UFRJ.
Também foi abordada a importância da ocupação deste
espaço institucional e formal por estes artistas neste
momento histórico, dentro e fora do Brasil, destacando o
fato de que em geral, essas obras não apresentavam
elementos óbvios da estética afro-brasileira, e o porquê
disto, como bem apresenta José Roberto Teixeira Leite,
no texto “A cor de sua epiderme”. Mas ainda assim,
reforçando o pioneirismo destes artistas.

Leite, ainda questiona a falta de possibilidade de


legitimação desses artistas enquanto pintores neste

117
momento, agindo de forma autônoma aos padrões
estéticos eurocêntricos da academia (2008. Pág. 8),
dado que foi exposto aos alunos. No entanto, nesta
etapa do trabalho a turma reagiu com naturalidade às
imagens expostas, havendo inclusive um bom
envolvimento dos alunos com a proposta e bastante
interesse pela trajetória dos artistas.

Num segundo momento, apresentei imagens de


obras do escultor Mestre Didi, que também tem sua
produção artística marcada pelo diálogo com a
academia, embora a atuação do artista dentro desta,
não estivesse diretamente ligada ao curso de artes.
Mestre Didi, foi também sacerdote do candomblé e do
culto do egungum. Sua poética aborda elementos
religiosos ligados principalmente aos orixás
pertencentes ao panteão da terra, embora sua obra não
seja de um figurativismo obvio. Trata-se de obras onde
não aparecem entidades ou passagens ritualísticas do
candomblé, ou de qualquer outro culto religioso afro-
brasileiro figurativamente retratadas. As imagens que
foram utilizadas nesta aula possuíam formas que
remetiam ao xaxará de Obaluaiê e o Ibirí de Nanã, dois
objetos ritualísticos, mas em dimensões diferentes e
ornamentação que foge da iconografia clássica
religiosa. Tratava-se de objetos não religiosos,

118
confeccionados para a experiência estética visual, que
apenas faziam referências em suas formas a objetos
religiosos.

Este foi o momento em que um silêncio


desconfortante invadiu a sala, quebrado apenas por um
aluno negro que ergueu o braço e disse: “eu não me
identifico com este tipo de arte professora, porque sou
evangélico”.

A atitude do aluno não foi desrespeitosa e de


forma alguma desrespeitada. Compreendi que se
tratava de uma particularidade deste aluno, e então
propus que cada um se pronunciasse quanto as suas
impressões sobre o tema. Não houve nenhuma
afirmação de reconhecimento ou simpatia com as obras
em questão.

Não cabe a mim, de forma alguma, questionar


paradigmas religiosos dos meus alunos. Tampouco
querer impor gosto ou identificação estética. Também
não é pertinente construir generalizações a partir de
uma experiência específica. No entanto, esta fala
carregada de complexidade, me trouxe uma série de
questionamentos que me levaram a formular este
trabalho. A impressão de que mesmo diante de
indivíduos das classes mais populares, em ambientes

119
formais como a escola, é esperado e mais aceito o
contato com a estética euro referenciada. A maior
identificação de indivíduos negros com uma estética
branca. A questão religiosa como um impeditivo para o
contato com o outro, o novo ou o desconhecido.

O segundo relato se deu em maio de 2022,


quando em uma aula em que eram abordados os
paralelos entre a ciranda caiçara e a ciranda
pernambucana, em turmas de sextos e sétimos anos,
exibi um documentário biográfico sobre a grande diva
cirandeira Lia de Itamaracá. Passaram-se poucas
semanas para que numa reunião do conselho desta
mesma escola, surgisse a reclamação de um grupo de
responsáveis, que ganhou corpo através da fala da mãe
conselheira, de que a professora de artes estava a
ensinar macumba para os seus filhos. Os pais absortos,
compartilhavam entre si, através de um grupo de
WhatsApp a indignação de terem seus filhos expostos à
uma imagem de Iemanjá, que aparece de relance no
filme, e à fala da cantora, que afirmou cantar para a
grande mãe das águas.

Tão logo soube do motim que se instaurava,


cogitando até mesmo a possibilidade da troca da
professora, tratei de buscar respaldo legal, e me

120
valendo de uma reunião já previamente agendada com
os responsáveis para tratar de outros assuntos, e com
apoio da equipe diretiva, pedi a liberdade para fazer
uma fala explicativa sobre o filme, em qual contexto ele
havia sido exposto, e sobre o panorama legal que
respalda a abordagem de tais temáticas em sala de
aula, me valendo inclusive dos tópicos na BNCC.

Ouvi de alguns pais, que se dera uma


incompreensão por parte dos filhos da proposta da aula,
e que os relatos destes apontavam para uma situação
muito mais grave do que a que de fato havia acontecido.
Alguns compreenderam os meus argumentos e me
prestaram apoio, outros, seguiram a me olhar com
desconfiança, que ainda permanece até o presente
momento presente.

Vale destacar que em momento algum os alunos


e famílias vinculados às religiões afro-brasileiras foram
considerados nesta discussão. E estes existem, ainda
que em minoria muita das vezes não autodeclarada.
Fato este que se rompeu quando após a exibição do
filme, dois alunos vieram até mim e se afirmaram
membros de uma comunidade umbandista, assim como
os seus familiares.

121
Quem acolhe a criança negra na escola? Quem
acolhe a criança de religiões de matriz africana? A
criança que não se reconhece nos padrões estéticos,
culturais e religiosos vigentes?! Quem acolhe?

O simples fato de alguns alunos se


escandalizarem ao verem a imagem de uma entidade
do candomblé, e com a fala de uma artista negra que
cultua um Deus diferente, já elucida muita coisa e
promove uma outra ampla gama de questionamentos.
Por que só uma menção ofende ou assusta tanto?
Como falar de arte afro-brasileira sem mencionar o
aspecto da religiosidade? Se fosse a fala de culto à uma
divindade branca geraria o mesmo espanto, ou
indignação? Como superar através da estética, da arte,
da história e da cultura as ramificações do racismo no
Brasil? Como vencer a intolerância religiosa a favor da
pluralidade cultural e do respeito à coexistência das
múltiplas cosmovisões? Cabe a arte afro-brasileira
dentro dessa perspectiva de ensino preconceituosa, se
adaptar?! Ou Cabe ao ensino se reformular de forma a
priorizar valores verdadeiramente importantes para a
construção de uma sociedade pacífica e respeitosa para
com as diferenças? Todas as diferenças. Como pode a
educação ser agente catalizador de uma reparação
histórica para com o povo negro brasileiro? Estão as

122
medidas institucionais até então implementadas a
promoverem de forma efetiva mudanças em nossa
sociedade?

Léa Austrelina questiona em seu artigo intitulado


“Odara a linguagem educativa dos contos de Mestre
Didi”, publicado em 27 de setembro de 2017, no blog da
Associação “Crianças Raízes do Abaeté” a eficácia das
políticas para questões étnico-raciais, em especial no
que tange a afro-brasilidade, caso não ocorra uma
reflexão de fato sobre os referenciais existenciais da
população afro-brasileira:

Atualmente, uma série de políticas


estruturam-se no nosso entorno:
ensino sobre História e Cultura dos
afro-brasileiros, políticas afirmativas,
programa de cotas para ingresso
em universidades, diretrizes
curriculares para o ensino. A
validade de todas essas políticas
deve ser questionada caso uma
reflexão profunda sobre os
referenciais existenciais da
população africano-brasileira não
seja feita.

E então, a pedagoga, Doutoranda e Mestre em


Educação, propõe aos professores e demais
profissionais de educação, “saírem do continente
teórico-epistemológico ocidental e conhecerem outras

123
formas de pensamento, de elaboração do mundo e da
vida”.

No entanto, em tempos em que se discute tanto o


potencial doutrinário da educação e se recrimina por
isso o educador. Diante da pluralidade do público
discente, principalmente nas escolas públicas, onde é
cada vez maior o número de alunos por turma e a
polarização se faz a tônica na dinâmica de boa parte
das discussões que ocorrem na esfera pública. Como
abordar a arte e cultura afro-brasileira na escola,
cumprindo com o que prevê a lei 10.639, quando só
mencionar a religiosidade afro-brasileira para muitos é
ainda hoje um tabu? E neste sentido, o que respalda a
ação dos professores? Como assegurar um espaço de
fato seguro para o ensino e aprendizagens plurais neste
contexto? Nesta conjuntura de conservadorismo e
intolerância religiosa como garantir um ensino que
contemple a pluralidade do povo brasileiro? A quantas
anda a laicidade do Brasil, quando em pleno 2022,
ainda se faz necessário pudor ao falar das religiões de
matriz afro?

A necessidade de se empreender ações voltadas


para uma educação inclusiva do ponto de vista étnico
racial, o que na arte educação se dá através de

124
propostas que incluam arte afro-brasileira e indígena, o
que não se faz possível, sem que junto mencionemos a
religiosidade tão presente nessas expressões, coaduna
com a construção de uma sociedade verdadeiramente
democrática, onde todos os indivíduos possam se sentir
de fato representados e pertencentes.

No entanto, para que haja de fato um


compromisso por parte do ensino para com a
construção desta sociedade democrática e inclusiva é
necessário muito mais do que tolerar, reconhecer o
valor, admirar e até mesmo exaltar uma estética. É
necessário verdadeiro interesse por visões e narrativas
plurais de mundo. Precisamos admitir que há muita
hipocrisia, para não dizer má fé, no uso de toda a
riqueza imagética, gestual e sonora de um povo,
esvaziando-lhes os verdadeiros sentidos e significados.
A este processo chamamos apropriação cultural, uma
ferramenta muito potente no processo de aculturação,
enfraquecimento e desmembramento de um povo.

Deve o ensino ser uma via de reparação e


empoderamento ou mais uma ferramenta de produção e
reprodução de silenciamentos e sócio opressões?

125
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128
O PNAE e a participação popular na
construção da soberania alimentar

Leila Maribondo Barboza15

15 Doutora em Antropologia (PPGA/ UFF), mestre em Sociologia


(PPGS/ UFF) e graduada em Serviço Social (ESS/ UFF). Realiza
estágio pós-doutoral em Sociologia (PPGS/ UFF), vinculado ao
Grupo de Pesquisa Fronteiras (UFF). Realizou estágio pós-doutoral
em Política Social (PPGPS/ UFF), vinculado ao LASSAL (UFF). Atua
como editora responsável da Editora Uaná. Tem experiência nas
áreas de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, com ênfase em:
mudanças climáticas; sistemas alimentares sustentáveis; economia
solidária; políticas sociais; participação popular.

Email: [email protected]
Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/0317750569062175

129
Resumo:

A Política Nacional de Segurança Alimentar e


Nutricional (PNSAN) visa promover a Segurança
Alimentar e Nutricional (SAN) e garantir o acesso ao
Direito Humano a Alimentação Adequada (DHAA),
direcionando políticas públicas de nutrição e combate a
fome, no Brasil. O presente estudo tem como objetivo
refletir sobre o Programa Nacional de Alimentação
Escolar (PNAE) e a importância da participação popular,
como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar
(CONSEA) e o Conselho de Alimentação Escolar (CAE),
para a construção da soberania alimentar. A
metodologia utilizada é a pesquisa bibliográfica, na qual
são realizadas análises sobre os conceitos acerca da
trajetória do PNAE e do CONSEA, em uma sociedade
desigual de forte herança escravista.

Palavras-chave: segurança alimentar e nutricional;


alimentação escolar; direitos humanos.

130
Introdução

O presente capítulo tem como objetivo refletir


sobre a importância da participação popular para a
construção da democracia alimentar, no que tange o
Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
Tendo em vista os debates do campo agroalimentar, no
cenário do capitalismo e suas transformações, a
alimentação evidencia a necessidade de ser associada
como direito humano, no âmbito, sobretudo, das
políticas públicas. Nesse sentido, compreender a
interlocução da temática com a promoção da
biodiversidade perfaz a necessidade de construção de
projetos e ações interdisciplinares, sem perder de vista
o protagonismo do campo da cultura alimentar.

Para tanto, o estudo utiliza conceitos presentes na


temática a fim de tecer uma reflexão sobre os principais
programas da agenda pública, compreendendo a
potência da participação popular, no controle social em
ações de combate à fome e à desnutrição. Ao
compreender a alimentação como instrumento
pedagógico, o capítulo versa sobre o alerta de manter
vivo o PNAE, frente aos desafios postos no mundo do
capital, o qual possui uma lógica de acúmulo de

131
desigualdades sociais e violação de direitos
fundamentais.

A investigação utilizou a pesquisa bibliográfica


para costurar o manto da temática alimentar,
caminhando pelas legislações brasileiras e teorias,
como Josué de Castro, em Geografia da Fome (1980) e
Elaine Behring e Ivanete Bochetti, em Política Social:
Fundamentos e História (2009).

É válido destacar que o tema da alimentação,


enquanto direito humano básico, perfaz uma
característica que versa na transversalidade bio,
política, histórica e social do indivíduo, evidenciando a
necessidade de ações igualmente transversas, capazes
de alcançar sua eficácia, no cotidiano da classe
trabalhadora. O combate à fome deve estar inserido nas
agendas das diferentes Secretarias – de Educação, de
Assistência Social, de Saúde – a fim de garantir não
apenas o acesso aos alimentos, mas também à sua
qualidade nutricional. Além do ato do comer em si, cabe
sinalizar sobre o processo de produção do alimento. A
saúde do trabalhador rural e a exposição ao uso de
agrotóxicos, bem como a manutenção da cultura
alimentar no manejo sustentável de terras, evidencia
sua importância, no debate sobre a alimentação e os

132
direitos humanos. Nessa medida, os ativismos, os
movimentos sociais, os conselhos, dentre outras formas
de participação popular, evidenciam sua importância em
manter vivas as concepções de defesa da classe
trabalhadora, em reforçar o Estado para a importância
da alimentação pública.

Para tal, o capítulo é dividido em duas partes. O


primeiro momento é dedicado à compreensão do
Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), a
fim de compreender o processo de construção de
legislações e contexto sociohistórico. No segundo
momento, o estudo se atém à refletir sobre a
importância da participação popular na manutenção e
monitoramento das ações da agenda pública, buscando
evidenciar sua potência transformadora e garantidora de
direitos.

O PNAE e a história da alimentação escolar


brasileira

O Programa Nacional de Alimentação Escolar


(PNAE, Lei nº 11.947, de 16/6/2009) se constitui como
uma das iniciativas da Segurança Alimentar e
Nutricional (SAN), que busca garantir o aporte das

133
necessidades nutricionais de estudantes, durante o
período em que estão em ambiente escolar. O
Programa visa realizar uma interlocução com outras
políticas, como a Educação Alimentar e Nutricional
(EAN), instrumento de mobilização de práticas
alimentares saudáveis.

A década de 40 retrata os primeiros passos do


PNAE, quando instituições, como o Instituto de Nutrição,
reivindicavam pela criação de uma política pública a
nível nacional que fosse capaz de oferecer merenda
escolar. Nesse período, o problema da fome assolava o
cenário brasileiro. Josué de Castro (1980) apontava que
o fluxo migratório das massas para as cidades tornava
insuficiente o abastecimento de alimentos. Diversos
fatores, como as técnicas rudimentares de cultivo e falta
de incentivos do governo, contribuíam para a ineficácia
da cadeia produtiva. As estruturas de comercialização
eram precárias evidenciando um descompasso entre o
mundo do trabalho e o consumo, ao passo que a
pobreza e a fome se tornavam aspectos cada vez mais
frequentes na vida cotidiana. O cenário internacional é
de uma devastação causada pelas consecutivas
guerras mundiais e crise de 1929.

134
A fome, como pontua Josué de Castro (1980),
além de atingir “endêmica ou epidemicamente as
grandes massas humanas”, possui ainda sua forma
“oculta”. Isto é, não apenas a falta de alimentos que
caracteriza-se a fome, mas também a falta de
determinados “elementos nutritivos […]”, os quais são
necessários ao funcionamento da “máquina humana”
(CASTRO, 1980). É importante destacar que as raízes
da fome brasileira vão ao encontro da formação sócio-
histórica do país, tendo suas origens no período
colonial, marcado pela escravidão. Durans (2014) afirma
que a produção escravista criou uma cultura escravista,
organizando, profundamente, a dinâmica do
desenvolvimento socioeconômico do Brasil pós-
escravidão. A economia colonial se configurou à serviço
das necessidades do mercado europeu, tendo como
pilar o trabalho escravo, a monocultura e o latifúndio. O
Brasil, assim como toda a América Latina, se constituiu
a partir de relações de subordinação e pilhagem, fatores
fundamentais para a acumulação do capital (MANDEL,
1980, p.58), evidenciando um alvorecer da produção
capitalista.

Nos anos 50, nasce os primeiros conceitos que


irão consolidar o futuro Plano Nacional de Alimentação
e Nutrição (PNAN) que se conhece hoje, com diferentes

135
programas de nutrição e combate à fome. No entanto,
apenas o Campanha de Merenda Escolar perdurou,
devido à, sobretudo, recursos internacionais, por meio
de campanhas para promover a oferta de alimentos, nas
escolas, como o Fundo Internacional de Socorro à
Infância, atualmente UNICEF. Ao longo do tempo, o
programa adquiriu maior independência e seu nome
mudou para Programa Nacional de Alimentação Escolar
(PNAE), embora a categoria merenda escolar tenha
perdurado até os dias atuais, no vocabulário cotidiano.
Com a Constituição Federal de 1988, a alimentação
torna-se obrigatória, sendo de responsabilidade dos
governos federais estaduais e municipais.

Fruto de um processo de conquista da classe


trabalhadora, as políticas sociais se constituem como
uma concessão do Estado como mediação de conflitos
e desigualdades sociais presentes entre classes sociais
(BEHRING e BOCHETTI, 2009). Como resultado de
relações contraditórias e complexas, as políticas sociais
se estabelecem na negociação entre Estado e
sociedade civil, nô âmbito da luta de classes na
construção e garantia de direitos sociais. A Segurança
Alimentar e Nutricional (SAN) torna-se tema de debate
mais intenso a partir da década de 90, período pós-
Constituição de 88, tendo como marco histórico a Lei

136
Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional
(LOSAN, Lei 11346/ 2006), sendo criado o Sistema
Nacional de SAN (SISAN), constituindo as bases da
Política Nacional e do Plano Nacional de SAN. A
LOSAN passa a definir o conceito de SAN, que vai ao
encontro do conceito de saúde pública, admitindo seu
caráter transversal e intersetorial.

Art. 3º A segurança alimentar e


nutricional consiste na realização do
direito de todos ao acesso regular e
permanente a alimentos de
qualidade, em quantidade suficiente,
sem comprometer o acesso a outras
necessidades essenciais, tendo
como base práticas alimentares
promotoras de saúde que respeitem
a diversidade cultural e sejam
ambiental, cultural, econômica e
socialmente sustentáveis. (BRASIL,
2006)

Compreendendo o aspecto nutricional – ingestão


do alimento e os impactos na saúde – e alimentar –
produção, comercialização e consumo –, o conceito da
SAN enfatiza o acesso ao alimento, comercialização, os
processos participativos de produção, usos
sustentáveis, manejo da terra e manutenção da
biodiversidade e as diferenças culturais das populações
locais, imprimindo uma ampla gama de subtemas que
configuram o sentido do alimento e seus múltiplos

137
efeitos. Ou seja, o conceito de SAN tem como pilar a
garantia pela sua qualidade enquanto promotora da
saúde, visando consolidar o norteamento de políticas
públicas, ações e iniciativas. Nesse sentido, o SISAN se
constitui como um sistema pública em construção, fruto
de um processo participativo, como o CONSEA. A
PNSAN (2010), que possui a SAN e a DHAA como
princípios, compreender a “alimentação como elemento
de humanização das práticas de saúde” e o

respeito à diversidade e à cultura


alimentar: a alimentação brasileira,
com suas particularidades regionais,
é a síntese do processo histórico de
intercâmbio cultural, entre as
matrizes indígena, portuguesa e
africana que se somam, por meio
dos fluxos migratórios, às
influências de práticas e saberes
alimentares de outros povos que
compõem a diversidade sócio-
cultural brasileira. Reconhecer,
respeitar, preservar, resgatar e
difundir a riqueza incomensurável
de alimentos e práticas alimentares
correspondem ao desenvolvimento
de ações com base no respeito à
identidade e cultura alimentar da
população (BRASIL, 2013, p.22).

O PNAE apresentou avanços importantes,


evidenciando estabilidade para SAN, atendendo
universalmente os estudantes da educação básica –
educação infantil, ensino fundamental e ensino médio –,

138
e articulando diferentes setores, como Saúde,
Agricultura e Assistência social. A partir de uma
estrutura descentralizada, na qual os “estados e
municípios possuem autonomia administrativa”, sendo
“responsáveis pelo uso do recurso repassado e também
pela qualidade da alimentação fornecida”
(CARVALHOSA, 2015, p.04), o PNAE possui uma
legislação de apoio à agricultura familiar e preocupação
com a promoção de saúde: isto é, na compreensão da
escola como espaço promotor da saúde.

Vinculada ao Fundo Nacional de Desenvolvimento


da Educação do Ministério da Educação (FNDE, MEC),
o PNAE, objetiva contribuir com o

desenvolvimento biopsicossocial, o
rendimento escolar, a aprendizagem
e a formação de práticas
alimentares saudáveis dos alunos,
por meio da realização de ações de
educação alimentar e nutricional
(EAN) e da oferta de refeições que
garantam as necessidades
nutricionais dos estudantes no
período em que estes se encontram
na escola (SILVA, MONEGO,
SOUZA, ALMEIDA, ANO, p.2672,
2018).

Nesse sentido, é possível dizer que o PNAE


possui um caráter formativo, utilizando o alimento como
ferramenta pedagógica, de modo transversal na

139
construção da democracia alimentar. É, nesse sentido,
que aponta-se a importância permanente da
participação da sociedade civil no processo de
consolidação de programas e políticas de SAN, como as
instâncias deliberativas, a exemplo do CONSEA e do
CAE.

A importância da participação popular na


construção da soberania alimentar

Segundo a avaliação de transição para o governo


de Luiz Inácio Lula da Silva, realizado no início de 2023,
o Brasil retornou ao Mapa da Fome (Organização das
Nações Unidas, ONU), evidenciando o desmonte das
políticas sociais ocorrido, nos últimos quatro anos. A
insegurança alimentar e nutricional afeta os
seguimentos da sociedade de forma desigual,
necessitando da articulação de ações transversais e
convergentes. O Conselho Nacional de Segurança
Alimentar (CONSEA), instrumento responsável por
aproximar a sociedade civil organizada e apresentar as
necessidades locais, se constitui como um órgão capaz
de acompanhar, fiscalizar e avaliar as eficácias e
demandas dos programas de SAN.

140
O CONSEA, extinto com a MP 870/2019, teve seu
retorno, em 2023, apresentando um novo respiro da
sociedade brasileira. Oliveira e Carvalho (2020) afirmam
que para que os conselhos funcionem é necessário que
a sociedade civil conheça suas atribuições e potências,
se impondo nas situações que exijam atenção. O
CONSEA carrega a possibilidade, direta e indireta, de
construção de uma sociedade democrática apontando
não tão somente as lacunas das políticas sociais nas
regiões, mas também garantindo que as ações
governamentais não comprometam a qualidade de vida
da população, combatendo ideais que atendam as
demandas capital em detrimento dos direitos humanos,
como uso descontrolado e abusivo de agrotóxicos na
produção de alimentos, o qual afeta a saúde dos
trabalhadores urbanos e rurais, as terras por eles
manejadas e a biodiversidade. O CONSEA, dessa
maneira, contribui desde a concepção das políticas
públicas na garantia da soberania e segurança
alimentar e nutricional até o seu aprimoramento, em um
fluxo progressivo do DHAA. A extinção do CONSEA
fragilizou a instância participativa, comprometendo o
desenvolvimento do SISAN e os processos pertinentes
ao DAHH.

141
Criado em 1993, o CONSEA compunha o Sistema
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN),
como fruto de conquistas da classe trabalhadora
materializadas na Constituição Federal de 1988,
enfrentando um cenário neoliberal, que se estruturava
em um processo de globalização e privatização e
desmonte de políticas públicas, ainda em construção.
Em 2019, com a extinção do CONSEA, uma rede de
movimentos sociais e ativismos se reuniram para incidir
na agenda pública da soberania alimentar, buscando
garantir o acesso da população às políticas públicas. O
Projeto de Lei 5695/2019, que colocava em ameaça o
PNAE, teve seu embarreiramento a partir da
intervenção, dentre outros atores, do Fórum Brasileiro
de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional
(FBSSAN), buscando manter viva a agenda pública do
SISAN.

Em resposta ao contexto crise democrática que


assolou o país e a impossibilidade da realização da 6a
Conferência Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional, organizado pelo CONSEA – extinto, na
época –, o FBSSAB organizou uma nova reunião
autônoma – chamada de “Conferência em movimento” –
permitindo um rearranjo da sociedade civil, de modo
garantir um espaço de discussão, avaliação,

142
monitoramento das instâncias do SISAN na busca por
construir estratégias de intervenção. Em 2020, com o
acirramento das desigualdades sociais em suas
especificidades, bem como o surgimento de demandas
sanitárias da pandemia COVID-19, como o
distanciamento social e outras medidas emergenciais, a
necessidade por políticas públicas eficazes se tornou
ainda mais destaque. A construção de um espaço capaz
de discutir e construir formas alternativas na luta por
direitos sociais evidenciava sua importância.

Em 2020, a rede de atores, que surgiu com a


organização da Conferência, contribuiu na construção
de ações emergenciais de combate à fome, mobilizando
agências de fomento e direitos sociais, como a Lei Aldir
Blanc (Lei 14.017/2020) e o conceito estruturado como
cultura alimentar16. Durante a pandemia Covid-19, a
defesa por direitos sociais destacou a importância de
preservação da cultura alimentar, tanto dos seus
conceitos, quanto dos seus fazedores e os respectivos

16 A Lei Aldir Blanc acolhe o conceito de cultura alimentar,


compreendendo o comer como um ato social, cultural e político. A
Conferência Popular por Soberania e Segurança Alimentar e
Nutricional mobiliza a cultura alimentar como patrimônio – o saber
fazer, o falar, o ritual, a ancestralidade, as técnicas artesanais, etc.,
guardadas pelos processos de resistência de povos originários e
comunidades tradicionais, detentoras desse patrimônio
(Conferência SSAN: https://conferenciassan.org.br/).

143
espaços de produção. Tainá Marajoara (Rede de
Cultura Alimentar e Coletivo Indígena do FBSSAN)
destaca que a cultura alimentar estava inserida dentro
dos espaços de economia solidária, evidenciando a
trajetória histórico-social das lutas e conquistas dos
processos de alimentação e transversalidade nas
políticas sociais.

No entanto, como afirma Marajoara (, a cultura


alimentar necessitava se compreendida sob um novo
olhar epistemológico, reconhecendo-a como
protagonista de um segmento cultural próprio. Essa
atualização do conceito e seu lugar no debate e
execução de ações e políticas públicas foi posta pelo
movimento social ao Ministério da Cultura, ao CONSEA
e ao Ministério do Meio Ambiente. Nesse sentido,
cultura alimentar se estrutura como indissociável da
soberania alimentar. Edgar Aparecido Moura (Agentes
da Pastoral Negra, APNs) diz que a tradição, os hábitos
de fazer e comer são saberes tradicionais, sendo a
cultura alimentar a “salvaguarda de direitos”, protegendo
os povos. A partir da compreensão como cultura
material e imaterial, a cultura alimentar, como reflete
Glenn Makuta (Slow Food), carrega as identidades de
território, bem como protege a biodiversidade e a
manifestação de modos de vida específicos. E ao passo

144
das ameaças do capital que marginalizam e excluem
segmentos da sociedade, violando seus direitos, a
cultura alimentar promove a apropriação das narrativas
na salvaguarda dos direitos.

No âmbito específico do PNAE, a constituição dos


Conselhos de Alimentação Escolar (CAE), órgão
colegiado de caráter fiscalizados, permanente,
deliberativo e de assessoramento, no que tange a
execução das políticas governamentais de alimentação
escolar. Iniciado em 1994, como fruto do “processo de
descentralização dos recursos para a execução do
PNAE [...]”, o CAE “é considerado um instrumento de
controle social” (BRASIL, ANO), importante na garantia
ao acesso à alimentação de qualidade no ambiente
escolar. Cabe destacar que o conceito de soberania
alimentar surge na década de 1990, defendendo a
autonomia alimentar dos povos e associando a geração
de renda com as culturas locais. É nesse berço que é
acolhido o CAE (PNAE) e seus princípios e objetivos,
trazendo à tona a potência de atuação desse e dos
coletivos da participação popular.

145
Considerações finais

Os conceitos de soberania alimentar e cultura


alimentar demonstram sua potencialidade de manter
vivo a luta dos trabalhadores na garantia e promoção de
seus direitos sociais, servindo de aporte teórico tanto
para nortear as ações governamentais, quanto para
agregar os princípios da participação popular. Apesar de
diferentes, ambos os conceitos se conectam,
mutuamente, sendo um o pilar do outro, se constituindo
como propostas transformadoras na relação Natureza e
Cultura, evidenciando a transversalidade dos seus
objetivos.

A manutenção da biodiversidade, a construção de


formas sustentáveis de produção de alimentos, a
resistência de culturas locais no manejo da terra,
hábitos alimentares e seus territórios, o consumo de
alimentos saudáveis, dentre outros processos que
englobam os conceitos de soberania alimentar e cultura
alimentar, perfazem uma gama de direitos humanos os
quais expressam o atravessamento com a construção,
planejamento e execução do PNAE. Em face da crise
climática que assola o mundo atual, é necessário que o
Programa esteja afinado com as orientações de
proteção ambiental, tendo em vista estreitar a atuação

146
do CAE, do CONSEA, e dos demais movimentos
sociais, ativismos, e coletivos, capazes de trazer à tona
as demandas e suas especificidades.

147
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150
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