A Revolução Dos Bichos de George Orwel, o Nazismo e A Fundamentação Do Direito em Gustav Radbruch - Uma Reflexão Prática Acerca Da Injustiça Extrema

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A REVOLUÇÃO DOS BICHOS DE GEORGE ORWEL, O NAZISMO E A

FUNDAMENTAÇÃO DO DIREITO EM GUSTAV RADBRUCH: UMA REFLEXÃO


PRÁTICA ACERCA DA INJUSTIÇA EXTREMA

THE REVOLUTION OF CRITTERS OF GEORGE ORWELL, NAZISM AND


RATIONALE OF THE LAW IN GUSTAV RADBRUCH: A REFLECTION OF
PRACTICE ABOUT EXTREME INJUSTICE

CRISTIAN KIEFER DA SILVA1

IARA ALVES ETTI FRÓES2

RESUMO

Este artigo faz uma análise substancial acerca da fundamentação do direito no livro “A
Revolução dos Bichos” de George Orwel, servindo de uma reflexão prática para a “fórmula
da injustiça extrema” em Gustav Radbruch. O grande jurista alemão há muito já criticava a
inconsistência que advém da falta de uma concepção adequada de justiça, quando dizia que a
disciplina da vida social não pode ficar entregue, como é óbvio, às mil e uma opiniões dos
homens que a constituem nas suas recíprocas relações. Pelo fato de esses homens terem ou
poderem ter opiniões e crença opostas, é que a vida social tem necessariamente de ser
disciplinada de uma maneira uniforme por uma força que se ache colocada acima dos
indivíduos. O problema da falta de justiça não aflige apenas o sistema jurídico. Outros
sistemas sociais apresentam injustiças gritantes, mas é equivocado, em qualquer lugar,
destruir alicerces quando não se pode propor uma base melhor ou mais sólida. De tal modo, o
conceito de direito que serve de base à prática jurídica é postulado como evidente, e, em casos
comuns, mesmo quando sua solução é contestável, considera-se desnecessário fazer reflexões
acerca de tal conceito. O mesmo não acontece nos casos incomuns. Nestes, o conceito de
direito que existe por trás de toda prática jurídica vem à luz e torna-se um problema premente.

PALAVRAS-CHAVE: DIREITO; LEGITIMIDADE; INJUSTIÇA EXTREMA.

1
Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em Direito pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Processo Civil Aplicado pelo
CEAJUFE/IEJA. Bacharel em Administração pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Bacharel em Direito pela Universidade José do Rosário Vellano. Professor e Pesquisador da Faculdade
Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor e Pesquisador da
Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Professor e Pesquisador da Faculdade de Minas
(FAMINAS-BH). Membro associado do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito
(CONPEDI). Membro da Associação Brasileira de Sociologia do Direito e Filosofia do Direito (ABRAFI).
Integrante dos Grupos de Pesquisas: Direito, Constituição e Processo “Professor Doutor José Alfredo de
Oliveira Baracho Júnior” e Direito, Sociedade e Modernidade “Professora Doutora Rita de Cássia Fazzi”.
E-mail para contato: [email protected]
2
Doutoranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em Direito pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bolsista CAPES. Especialista em Direito Público pela
Universidade Cândido Mendes/RJ. Bacharel em Direito no UNIFEMM. E-mail para contato:
[email protected]
ABSTRACT

This article makes a substantial analysis on the grounds of law in the book "The Revolution of
Animals" George Orwell, serving a practical reflection for the "formula of extreme injustice"
in Gustav Radbruch. The great German jurist had long criticized the inconsistency that arises
from the lack of an adequate conception of justice, when he said that the discipline of social
life can not be left as is obvious, the thousand and one opinions of men who are in their
reciprocal relationships. Because these men have or may have opposing opinions and belief, is
that social life necessarily have to be disciplined in a uniform manner by a force that ache
placed above individuals. The problem of lack of justice not only afflicts the legal system.
Other systems have social injustices, but it is wrong, anywhere, destroy foundations when you
can not propose a better or more solid base. In this way, the concept of law that underpins the
legal practice is postulated as obvious, and ordinary cases, even when its solution is
questionable, it is unnecessary to make reflections on the concept. The same is not true in
unusual cases. In these, the concept of law that exists behind all legal practice comes to light
and becomes a pressing problem.

KEYWORDS: LAW; LEGITIMACY; EXTREME INJUSTICE.

1 INTRODUÇÃO

Em meados do século XX, devido à experiência com o positivismo nazista, Gustav


Radbruch desenvolveu uma teoria de proteção aos direitos fundamentais que levava em conta
a ausência, pelo positivismo de então, de uma percepção de valores jurídicos que
sustentassem o direito positivo em um sentido não dependente dos poderes (governos)
constituídos eventualmente totalitários nem afeito ao dogma da unidade do ordenamento de
modo prioritário.

A tão referida fórmula radbruchiana foi criada em 1946, na tentativa de superar a


separação entre Direito e Moral, defendida pelo positivismo e que, em sua concepção, teria
propiciado ao regime nazista cometer seus atos de barbárie dentro da legalidade. Nesse
sentido, destaca-se que o jusfilósofo alemão jamais nomeou sua construção teórica de fórmula
(este foi um trabalho da doutrina e da jurisprudência que, posteriormente, ocuparam-se de sua
aplicação).

A publicação do texto Injustiça Legal e Direito Supralegal causou grande polêmica


em sua época, principalmente porque evidenciava uma considerável modificação de
posicionamento do autor, que antes da Guerra se dizia adepto do positivismo e, depois, passou
a criticá-lo ferrenhamente, dentro de um contexto que ainda era predominantemente
positivista. Pois bem, impressionado com as atrocidades cometidas pelos nazistas, Gustav
Radbruch denuncia o positivismo como culpado pela situação de arbítrio implantada na
Alemanha durante o nazismo (Gesetz und Recht, 1947), e busca uma fórmula teórica de
compatibilização entre a positividade e a justiça; em Injustiça Legal e Direito Supralegal
(Gesetzliches Unrecht und übergesetzliches Recht, 1946), depois de reconhecer que o
positivismo, com sua afirmação de que “lei é lei” deixou os juristas alemães sem defesa
contra leis arbitrárias e criminosas.

Diante disso, Gustav Radbruch passou a compreender na segunda fase de seu


pensamento (após a experiência nazista), que o mundo dos valores jurídicos, mesmo no
âmbito de uma visão neokantiana, é voltado, em última análise, para a concreção do direito na
sociedade, conferindo aos homens aquilo que eles necessitam como bens existenciais, afeitos
à vida em sua expressão comum, e não a fins imaginários ou utópicos (como no pensamento
jurídico nazista).

No livro “A Revolução dos Bichos”, que é uma fábula criada por George Orwel em
1945, tendo sido dita como uma crítica a Revolução Russa, traz algo para ser paradigma
também, da crítica à qual Gustav Radbruch, percebeu em sua análise filosófica, que o mundo
jurídico é afeito a concreção do direito na sociedade, devendo afastar do ser humano os fins
imaginários e utópicos, conforme dito acima, na afirmação a “lei é lei” os porcos conseguiram
dominar os demais bichos, subjugando-os e dando-lhes uma existência ainda mais miserável
que tinham ao serem “governados” pelos seres humanos.

Porém, o positivismo, sintetizado sob a fórmula “a lei é a lei”, deixou os juristas e a


magistratura da Alemanha indefesos no regime Nazista, assim como na obra literária “A
Revolução dos Bichos”, diante das monstruosidades, crueldades e arbitrariedades perpetradas,
por terem sido praticadas pelos “detentores do poder” sob a forma de lei.

Depois de um século de positivismo jurídico, permanece a ideia de um direito


supralegal, no qual as leis positivas podem ser consideradas injustas. Com isso, é possível
formular alguns questionamentos relevantes que direcionam a presente pesquisa em Direito e
Literatura, quais sejam: até que ponto pode-se afirmar que existe efetivamente justiça, quando
se impõe considerar inválidas regras positivas? Ou mesmo, até que ponto pode ser exigível a
segurança jurídica quando ela imponha que leis devam ser reconhecidas como válidas, apesar
da injustiça de seu conteúdo? Ou ainda, é possível compreender sobre que bases se constituía
a autoridade do direito e a que influencias políticas ele estava sujeito?
2 UMA BREVE ANÁLISE A RESPEITO DA REVOLUÇÃO DOS BICHOS

A “Revolução dos Bichos" é uma fábula, publicada em 1945, sobre o poder que é
implementado através do Direito, advindo de regras postas. Narra a insurreição dos animais
de uma granja contra seus donos. Progressivamente, porém, a revolução degenera numa
tirania dos porcos, ainda mais opressiva que a dos seres humanos.

Em seu primeiro capítulo, o Major discursa sobre como os animais são


abusados pelos humanos, introduz a ideia da Revolução e conta que sonhou com um mundo
onde o homem não existia. O Major morre no segundo capítulo, e os bichos, incentivados
pelo discurso animador, planejam a revolução, que acaba acontecendo rapidamente. Expulsam
o dono da fazenda, Sr. Jones e os outros humanos da granja. Bola de Neve e Napoleão
assumem o controle e criam leis (mandamentos) para os animais.

Nos capítulos seguintes, os demais proprietários das fazendas vizinhas, temem a


revolta de seus bichos. Sr. Jones, seus homens e mais alguns homens de Foxwood e
Pinchfiels, tentam tomar a Granja de volta. Os animais, já preparados, conseguem conter a
revolta, chamando-a de Batalha do Estábulo. Depois da Batalha, um dos porcos, Napoleão,
começa a se indispor com o outro, Bola de Neve, e este é posto para fora da fazenda pelos
cães.

A partir daí, Garganta (outro porco), por ordem de Napoleão, discursa para os outros
bichos a fim de convencê-los de que Bola de Neve roubara as ideias de Napoleão, e que este
era um porco inteligente e honesto. No capítulo 6, foi feita a construção do moinho de vento.
Napoleão anunciou que passariam a comerciar com as outras granjas, para obterem recursos
usados no moinho. Em determinando momento, os animais alegam que isso era contra as
resoluções impostas após a Revolução, mas Garganta os convence de que tal resolução nunca
fora aprovada. Conseguiram um representante para que fizessem o comércio. Os porcos
estavam mudando os mandamentos para se beneficiarem e abusando dos outros animais.

Certo dia, viu-se que o moinho fora destruído durante a noite. Bola de Neve foi
culpado por Napoleão, que ofereceu recompensas por sua captura. A partir daí a situação
começou a piorar na granja e, para enganar o representante, os animais fingiam não estar com
fome e encheram as tulhas para que parecessem cheias.
As galinhas, que foram submetidas a entregar seus ovos, fizeram uma revolta, mas
depois de terem sua ração cortada, desistiram. Começaram boatos de que Bola de Neve
andava pela granja à noite roubando e destruindo. Este era culpado por tudo que acontecia de
errado. Garganta então discursou para colocar os outros animais contra Bola De Neve.

Não obstante, Napoleão matou em uma reunião todos que confessaram ajudar Bola
De Neve. No capítulo 9, o dinheiro da granja diminui e a ração dos animais cada vez mais era
reduzida, apesar dos porcos continuarem engordando. A Granja foi proclamada República e
Napoleão foi eleito presidente.

No capítulo final, passados vários anos da revolução, muita coisa acontece. A granja
estava mais organizada, mas os animais continuavam com pouca comida, com exceção dos
porcos. Certo dia, os porcos foram vistos andando sobre duas patas e usando roupas. Estavam
se tornando iguais a seres humanos. Os mandamentos haviam sumido e havia apenas um
novo. Napoleão passou então a ter amizade com o Sr. Pilkington e convidou-o a visitar a
granja. Este dizia se espelhar na granja, pois os animais trabalhavam muito e comiam pouco.
Cada vez mais Napoleão ia se tornando igual a seres humanos. (ORWEL, 2006).

É uma obra rica em possibilidades de exemplos e paradigmas para diversas


discussões, mas o que interessa a este texto é a utilização das regras transcritas pelos porcos, e
refeitas por eles, para manipular e controlar os demais animais, fazendo isto, conseguiram
controlar e injustiçar os outros, através de normas positivas que iriam se refazendo.

3 O PROBLEMA ACERCA DO POSITIVISMO JURÍDICO

Se levanta um combate, por toda parte, contra o positivismo a partir da ideia de que há
“leis que não são Direito e que há Direito acima das leis”. Não há dúvidas de que na época do
Nazismo e da publicação da Revolução dos Bichos, o positivismo jurídico com o seu lema
“acima de tudo deve-se cumprir as leis” reinou de modo absoluto. Na visão de Gustav
Radbruch:

O positivismo deixou desarmados os juristas alemães ante as leis de conteúdo


arbitrário e injusto. Com isso se ficava sem a possibilidade de estabelecer a validez
jurídica das leis. É certo que o positivismo pensa haver provado a validez de uma lei
pelo fato de ter a força suficiente para lhe impor. É certo que, independentemente do
seu conteúdo, toda lei positiva leva consigo um valor: porque sempre será melhor
que a total ausência de leis, ao dar lugar à segurança jurídica. Mas a segurança
jurídica não é o único, nem sequer o valor decisivo que tem de realizar o Direito. Ao
lado da segurança jurídica, há outros dois valores, que são o da utilidade e o da
justiça. A hierarquia destes valores assinala o último posto para a utilidade com
respeito ao bem comum. De nenhum modo se há de admitir que é Direito tudo o que
é útil ao povo, mas que ao povo é útil tão-só o que é Direito, o que traz segurança e
tende à justiça. A segurança jurídica, que corresponde a qualquer lei já pelo fato de
sua mesma positividade, ocupa um lugar intermediário entre a utilidade e a justiça; a
exige, por um lado, o bem comum, e por outro, a justiça. Quando há um conflito
entre a segurança jurídica e a justiça, entre uma lei que falha em seu conteúdo, mas
que é positiva, e um Direito justo, mas que não adquiriu a consistência da lei,
estamos realmente frente a um conflito da justiça consigo mesma, um conflito entre
a justiça aparente e a verdadeira (RADBRUCH, 1971, p. 159).

Pois bem, objeta-se que com o fim da Segunda Guerra Mundial e a queda do
Terceiro Reich, as cortes alemãs receberam o intenso desafio de se manifestar sobre o direito
nazista e suas consequências. Em tal período, a lista de monstruosidades cometidas se
enquadrava em um catálogo de horrores. Nenhum meio-século testemunhou tanto massacre
em escala, crueldades, desumanidades, condenação de povos inteiros à escravidão e
aniquilamentos de minorias.

A perseguição implacável de adversários políticos, a selvageria na busca da vitória, o


saque, o derramamento de sangue, o estupro e o assassinato por parte de uma soldadesca
brutalizada, foram traços marcantes de um período onde reinava a “injustiça extrema”. É
horrível que tivessem que ocorrer no século XX, e no coração da Europa, mas não estavam
fora dos padrões reconhecidos do comportamento humano.

O processo sistemático, prolongado e burocraticamente controlado de exterminar


milhões de vítimas que não ofereciam nenhum perigo e cuja morte não dava nenhuma
vantagem aos assassinos, só podia ser interpretado como a manifestação de uma mente
enferma; e toda a nação alemã parecia estar afetada pela doença imposta por um regime não
democrático.

Assim também, na “Revolução dos bichos”, os porcos massacravam e aniquilavam


os seus oponentes com torturas psicológicas e atos de violência. Não havia qualquer limite
para a imposição de leis, reinando sempre a chamada “injustiça extrema”. No texto de Orwel,
diante das barbáries evidenciadas pela ameaça dos cachorros em domínio dos porcos, é
possível extrair as sete regras principais, que eram comumente chamadas de “OS SETE
MANDAMENTOS”:

1. Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo.

2. Qualquer coisa que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo.
3. Nenhum animal usará roupas.

4. Nenhum animal dormirá em cama.

5. Nenhum animal beberá álcool.

6. Nenhum animal matará outro animal.

7. Todos os animais são iguais.

Em regra, virou apenas um único mandamento: Todos os animais são iguais, mas
alguns animais são mais iguais do que outros.

Pois bem, assinala Robert Alexy (2011) que o principal problema acerca do conceito
de direito é a relação entre direito e moral, vez que apesar de uma discussão de mais de dois
mil anos, duas posições fundamentais continuam se contrapondo: a positividade e a não
positividade. Veja-se que todas as teorias positivistas defendem a tese da separação, pois esta
determina que o conceito de direito deve ser definido de modo que não inclua elementos
morais. Já a tese da separação, postula que não existe nenhuma conexão conceitualmente
necessária entre o direito e a moral, entre aquilo que o direito ordena e aquilo que a justiça
exige, ou entre direito como ele é e como ele deve ser.

Assim, o exame dos conceitos positivistas de direito mostra que, no âmbito do


positivismo jurídico, posições muito distintas são defendidas. Comum a todas elas é apenas a
tese da separação entre direito e moral. Se houvesse certeza de que a tese positivista da
separação é correta, a análise do conceito de direito poderia limitar-se inteiramente à questão
acerca da melhor interpretação dos elementos da eficácia e legalidade, bem como da melhor
forma de relacionar esses dois elementos. Por isso, cabe perguntar se um conceito positivista
de direito é realmente adequado como tal.

4 O DIREITO É A REALIDADE CUJO SENTIDO É SERVIR À JUSTIÇA

Toda ordem que encontramos na diversidade da existência, ou que nos empenhamos


em fomentar, emprestou do direito o seu nome: falamos de leis da natureza, de leis da
moralidade e de costume, de leis da lógica e da estética. Que posição ocupam entre todos
esses tipos de leis, e portanto no todo, em nosso conhecimento de mundo, as leis no sentido
primeiro da palavra, as leis do direito?
A respeito da lei, Gustav Radbruch assevera que:

A cada atividade básica do espírito humano corresponde um tipo especial de leis do


dever: a lógica trata das leis do modo de pensar verdadeiro, correto, científico; a
estética trata da maneira certa de vivenciar com sentimento a arte e a beleza; todavia,
o dever ético, que apresenta sua lei ao nosso querer agir, é de natureza tríplice: as
regras de um agir bom, adequado e justo produzem a moralidade, o costume e
finalmente o direito. (RADBRUCH, 1999, p. 1).

Como enunciado de um observador, acredita-se que a fundamentação do direito em


Gustav Radbruch é uma questão central e essencial a toda vida em sociedade. Por sua vez, o
problema da aplicação da lei injusta é muito mais um problema prático; um problema, aliás,
inevitável do agir humano, que pertence mais à ética do que o próprio direito. A ideia de
direito proposta pelo autor não é outra coisa senão a justiça (o direito é a realidade cujo
sentido é servir à justiça).

A ideia de justiça adotada pelo autor baseia-se no princípio da igualdade, fazendo


transparecer as influências aristotélicas de Radbruch. O justo, assim como o bom, o
verdadeiro e o belo, é absoluto, ou seja, é um valor que não deriva de nenhum outro valor.
Mas esta noção de justiça como igualdade, embora absoluta, é uma ideia formal, razão pela
qual Gustav Radbruch irá inserir, em seu conceito de direito, outros dois elementos: o fim e a
segurança jurídica.

Sendo a justiça apenas a forma do direto, Radbruch acrescenta a este um princípio


material, a ideia de fim ou finalidade, que toma seu conteúdo da ética. O princípio da
finalidade atuará no conteúdo do direito de modo relativo, dependendo do valor moral a que
fizer referência. A ética, que se divide em teoria dos deveres morais e em teoria dos bens
morais, identifica três tipos de valores diferentes: os valores individuais, os valores supra-
individuais e os transpessoais.

Embora já afirmado, o direito deve se basear em critérios fundamentalmente seguros


e racionais, para só assim posicionar-se no sentido de afastar do meio social não só a sensação
de incerteza, mas principalmente a sensação de injustiça. Nesse aspecto, o crescente valor que
se atribui à segurança jurídica revela o reconhecimento de que ela é exigência fundamental até
para as ideologias jurídicas orientadas exclusivamente pelo bem comum. E mais, ainda que
uma lei positiva não se alicerce nas exigências da justiça ou da conformidade a fins, busca de
alguma forma, um valor: a segurança jurídica.
De fato, é impossível traçar uma linha precisa entre os casos em que a lei escrita deve
dar lugar à justiça e aqueles onde uma lei precisa ser reconhecida como válida a despeito de
seu conteúdo danoso e injusto.

Há, porém, uma linha distintiva que pode ser traçada com absoluta clareza: se a
igualdade, que é o cerne da justiça, é repudiada deliberadamente ao editar-se uma regra de
direito positivo, então a regra não só é injusta, mas não possui a verdadeira natureza de
direito, porque este não pode ser definido senão como uma instituição ou ordem das relações
humanas cujo sentido e propósito é servir à justiça.

5 A FUNDAMENTAÇÃO DO DIREITO: ARBITRARIEDADE LEGAL X DIREITO


SUPRALEGAL

Na concepção de Gustav Radbruch, o positivismo desarmou os juristas frente a leis


de conteúdo arbitrário e delituoso. Utilizando-se do princípio (“a lei é a lei”), máxima do
positivismo (que não conhecia qualquer limitação), o regime nazista manipulou seus juízes e
perpetrou as mais terríveis atrocidades sob a proteção da legalidade. Termos como
“arbitrariedade legal” ou “direito supralegal” eram contradições em si (RADBRUCH, 1980,
p. 21-22).

De maneira geral, Gustav Radbruch analisa que o positivismo é incapaz de fundar,


com suas próprias forças, a validade das leis, uma vez que confunde a validade com a mera
confirmação da vigência. No entanto, isso não significa que deva ser de todo abandonado,
pois “toda a lei positiva já traz consigo um valor - uma lei é sempre melhor que nenhuma lei -,
independente de seu conteúdo, pois ao menos cria segurança jurídica” (RADBRUCH, 1980,
p. 35-36).

Pois bem, o conflito existente entre segurança jurídica e justiça, ou seja, entre uma lei
positiva discutível quanto ao conteúdo e um direito justo não positivado, se apresenta, em
verdade, como um conflito da justiça consigo própria, pois trata-se de um conflito entre
justiça aparente e justiça verdadeira. É através desta análise que Gustav Radbruch propõe, nos
seguintes termos, sua reconhecida formulação: O conflito entre a justiça e a segurança jurídica
poderia ser bem solucionado no sentido de que o direito positivo estatuído e assegurado pelo
poder tem prevalência, ainda que por seu conteúdo seja injusto e inconveniente, salvo quando
o conflito da lei positiva com a justiça alcance uma medida tão insuportável que a lei, como
direito injusto, deva ceder lugar à justiça (RADBRUCH, 1980, p. 37).

Na base dessas constatações, Gustav Radbruch esclarece que é impossível traçar uma
linha exata quanto ao que difere a arbitrariedade legal de uma lei válida, porém com conteúdo
injusto. Mas, há, sim, uma outra delimitação que pode ser feita com absoluta exatidão. E esta
se refere aos casos em que não se pretende alcançar a justiça, nos quais a igualdade que
constitui a medula da justiça é negada claramente pelo direito positivo. Nesses casos, não
somente o direito é injusto, mas também carece de qualquer natureza jurídica (RADBRUCH,
1962, p. 38).

Entretanto, assinala o jusfilósofo alemão que as leis de conteúdo muito injusto,


mesmo que vigentes pelos critérios do ordenamento jurídico a que pertencem, perdem sua
natureza jurídica, deixando de ser direito. A modificação no status da lei não se dá na
vigência, mas, sim, na validade.

Da mesma forma, não se pode definir o direito, inclusive o direito positivista, de


outra forma que não como uma instituição que, por seu próprio sentido, está determinada a
servir à justiça. Todavia, conclui-se que, adotando-se estes padrões, setores inteiros do direito
nazista jamais atingiram a qualidade de direito.

Numa incursão histórica, assim como a personalidade de Hitler, o direito nazista se


caracterizava por uma completa falta de sentido, de verdade e de direito, e estava baseado no
exato oposto do elemento essencial à justiça: o tratamento igualitário.

Como consequência disso, carecia totalmente de natureza jurídica, não era um direito
talvez injusto, não era direito sob nenhum aspecto.

Isto é especialmente válido para todas as legislações que denominavam alguns


homens de subhomens, negando-Ihes direitos humanos. Outro exemplo de legislações que
sequer chegaram a possuir natureza jurídica eram as cláusulas que previam indistintamente as
mesmas punições para os mais diferentes delitos, sem consideração de quaisquer variáveis,
permitindo a aplicação da mesma pena (em muitos casos a morte) para o cometimento de
delitos com as mais diversas naturezas e gravidades.

A esse respeito, Gustav Radbruch reconhece especialmente após doze anos de


experiência nazista, que o conceito de arbitrariedade legal - e a negação da natureza jurídica
que esta pode gerar em leis de conteúdo insuportavelmente injusto -, significa terríveis
perigos para a noção de segurança jurídica (RADBRUCH, 1980, p. 40-41).
Entretanto, pontua sua esperança de que as arbitrariedades cometidas sejam um
desvio jamais repetido pelo povo alemão, e alerta que é preciso prevenir o retorno das
arbitrariedades através da superação fundamental do positivismo.

6 A FÓRMULA TEÓRICA DE COMPATIBILIZAÇÃO ENTRE A POSITIVIDADE E


A JUSTIÇA

Gustav Radbruch nunca foi um positivista pleno, pois sempre considerou


problemática a aplicação da lei com conteúdo injusto ou imoral. Prova disso é a sua
afirmação, em 1914, de que "não se pode conceber nenhuma justificação para a vigência do
direito manifestamente injusto" (KAUFMANN, 2002, p. 65-66).

Muitos autores defendem que Gustav Radbruch, apesar de abandonar o positivismo


em 1945, nunca modificou suas noções acerca da filosofia e do conceito de direito. É certo
que ele foi o responsável pela reabilitação da filosofia do direito, ao superar o conflito entre as
posições estanques do positivismo e do direito natural.

Depois de 1945, Gustav Radbruch continuou a operar com o mesmo conceito de


direito. Entretanto, a partir da constatação de que o positivismo é incapaz de explicar a
validade do direito através da separação absoluta entre direito e moral e, verificando as
consequências morais da aplicação desta teoria no contexto da Alemanha Nazista, o autor fez
uma importante inversão na relação existente entre os elementos de seu conceito de direto.

Robert Alexy, um dos autores contemporâneos que mais se ocupa da Fórmula


Radbruch, afirma que aquele que sustenta a Fórmula abandona a tese positivista. Os
ensinamentos de Radbruch são especialmente valiosos para a teoria da validade de Alexy,
desenvolvida no Begriff und Geltunhgdes Rechts, onde a Fórmula Radbruch integra seu
conceito de direito não positivista, sob a denominação argumento da injustiça.

Em seus textos, Robert Alexy utiliza-se de até quatro versões da fórmula,


dependendo da extensão adotada. A forma mais breve e simplificada é "a injustiça extrema
não é direito''; a mais extensa é: o conflito entre a justiça e a segurança jurídica deveria poder
solucionar-se no sentido de que o direito positivo afiançado pela promulgação e a força tenha
também preferência quando seja injusto e inadequado quanto ao conteúdo, a não ser que a
contradição entre lei positiva e justiça alcance uma medida tão insuportável que a lei deva
ceder como "direito injusto" ante a justiça (ALEXY, 2004, p. 227-228).

Não é demasiado referir que Robert Alexy entende que a fórmula radbruchiana, em
uma versão mais extensa, divide-se em duas partes ou subfórmulas (intolerância e negação).
A fórmula da intolerância se dá pela afirmação de que as leis positivas perdem sua validade
jurídica quando sua contradição com a justiça se dá em medida insuportável. A fórmula da
negação surge com a idéia de que as leis que negam, de forma consciente, a igualdade, núcleo
da justiça, perdem sua própria natureza jurídica (ALEXY, 2004, p. 228).

Enquanto a fórmula da intolerância, que é a mais aplicada pela jurisprudência, possui


um caráter objetivo, pois aplica a fórmula da injustiça, a fórmula da negação possui um
caráter subjetivo, pois diz respeito aos propósitos e às intenções do legislador. Por esta
diferença, Robert Alexy assinala que é possível imaginar casos em que ambas as fórmulas
levem a resultados diferentes. Por exemplo, um legislador que busca a igualdade e, entretanto,
leva a cabo uma injustiça insuportável, e outro que deseja realizar o injusto, mas não o faz na
medida do insuportável.

Em regra, ao se falar de uma injustiça insuportável, deveriam coincidir resultado e


intenção, podendo-se falar, então, de uma sobreposição (overlapping) de ambas as fórmulas.
Todavia, Robert Alexy entende que a fórmula radbruchiana pressupõe um direito
suprapositivo, no sentido de que a aplicação da fórmula conduz a uma fundamentação que se
utiliza de princípios jurídicos que não estão positivados (ALEXY, 2004, p. 217).

Em outras palavras, para Robert Alexy, a característica de destaque da fórmula


radbruchiana é que esta não exige uma coincidência completa entre direito e moral, uma vez
que permite que o direito positivado e eficaz seja válido mesmo que seu conteúdo seja injusto;
já Gustav Radbruch não exige uma orientação da totalidade do direito à moral, mas, sim,
incorpora ao direito um limite externo (ALEXY, 2004, p. 228-229).

Enquanto os positivistas (que adotam a teoria da separação entre direito e moral)


trabalham com um conceito de direto baseado somente na legalidade conforme o
ordenamento e na eficácia social, sendo indiferente o conteúdo do direto, como o prova a
célebre frase de Hans Kelsen, "portanto, qualquer conteúdo pode ser direito" (ALEXY, 2004,
p. 229); os não positivistas que seguem a fórmula radbruchiana permanecem adotando a
legalidade segundo o ordenamento e a eficácia social, entretanto, incorporarão um terceiro
elemento ao seu conceito de direito, qual seja, a correção material do conteúdo como critério
limitativo.

O abandono do positivismo em sentido axiológico teve como consequência mais


radical a doutrina da subordinação da lei à justiça. No “Quinto minuto de Filosofia do
Direito”, escrito por Gustav Radbruch, temos que: há também princípios fundamentais de
todo direito que são mais fortes do que todo e qualquer preceito jurídico positivo, de tal modo
que toda lei que os contrarie não poderá deixar de ser privada de validade. Há quem lhes
chame direito natural e quem lhes chame direito racional. Sem dúvida, tais princípios acham-
se, no seu pormenor, envoltos em graves dúvidas. Contudo, o esforço de séculos conseguiu
extrair deles um núcleo seguro e fixo, que reuniu nas chamadas declarações de direitos do
homem e do cidadão, e fê-lo com um consentimento de tal modo universal que, com relação a
muitos deles, só um sistemático cepticismo poderá levantar dúvidas (RADBRUCH, 1974, p.
474).

De tal maneira, Gustav Radbruch atinge o ponto máximo de seu racionalismo com a
afirmativa conclusiva de que os direitos humanos estão abrigados em normas supra-estatais, a
que qualquer Direito Positivo deve se coadunar, sob pena de ser considerado inválido.

Por fim, Gustav Radbruch critica a ordenação jurídica nazista com fulcro na
respeitabilidade e imposição forçosas dos valores jurídicos e dos direitos humanos supra-
estatais, os quais afastam de vez qualquer pretensão positivista de justificar todo totalitarismo.
Ainda assim, a priorização material da justiça na segunda fase do pensamento radbruchiano
foi uma necessidade histórica e social de honorabilidade aos direitos humanos a partir do
reconhecimento de que só a justiça e o conjunto dos Direitos Humanos postos como
prioridade efetivada pelo Estado, seriam capazes de realizar a correta acepção dos direitos
humanos que deveriam ser positivados como fundamentais (legais) garantidos às pessoas
humanas.

7 CONCLUSÃO

Em resumo, a fórmula radbruchiana, que foi criada na tentativa de superar a


separação entre direito e moral, defendida pelo positivismo, bem como o conflito entre as
posições estanques deste e do direito natural, adquire importância na medida em que se refere
aos casos em que não se pretende alcançar a justiça, nos quais a igualdade, que constitui a
medula da justiça, é negada claramente pelo direito positivo.

Nesses casos, não somente o direito é injusto, mas também carece de qualquer
natureza jurídica, isto é, as leis de conteúdo muito injusto, mesmo que vigentes pelos critérios
do ordenamento jurídico a que pertencem, perdem sua natureza jurídica, ou seja, deixam de
ser direito. Disso resulta que a modificação no status da lei não se dá na vigência, mas, sim,
na validade. Desta maneira, conclui-se que a injustiça extrema não é direito.

O ideal jurídico é ideal para o direito, e mais ainda para o direito de uma determinada
época, de um determinado povo e para relações sociológicas e históricas muito específicas,
assim como no livro de Orwel, em que claramente, vê-se que a regra que regia, era uma regra
injusta. No Nazismo também ocorreu da mesma forma. A diferença é que a primeira é
literária, enquanto a segunda, é fato histórico, e que diante da sensibilidade em que houve
injustiça, conseguiu condenar responsáveis e acabar com o regime liderado por Adolf Hitler.

Robert Alexy, através do seu conceito de direito, tem a pretensão de superar o


modelo positivista da tese da separação total entre direito e moral e, para tanto, acrescenta aos
já conhecidos elementos da legalidade conforme o ordenamento e da eficácia social, um novo
e terceiro elemento, que possibilita a correção material do conteúdo jurídico, uma vez que o
direito será permeado por elementos morais.

Independente do motivo escolhido, o qual não se tem aqui a pretensão de identificar,


o tema em questão é, com absoluta certeza, um dos mais importantes trabalhos jurídicos do
século XX e merece ser estudado em profundidade, como estudiosos de todo o mundo (à
infeliz exceção do Brasil) têm feito há mais de meio século. De nossas considerações resultou
que a justiça é a ideia específica do direito, suficiente para desenvolver o seu conceito, mas
que, assim mesmo, a ideia de direito não se esgota na justiça, vai muito além do seu próprio
horizonte.
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