Ansara (2005) Memória Política Da Ditadura Militar e Repressão No Brasil
Ansara (2005) Memória Política Da Ditadura Militar e Repressão No Brasil
Ansara (2005) Memória Política Da Ditadura Militar e Repressão No Brasil
SORAIA ANSARA
BANCA EXAMINADORA
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AGRADECIMENTOS
_________________________________________________________________________
A todos os amigos e amigas que estiveram próximos nos momentos mais difíceis,
em particular à Rita, em quem sempre encontrei uma palavra de alento e coragem nos
momentos de desânimo.
Ao Alessandro, amigo, leitor atento dos meus trabalhos e grande interlocutor desde
o princípio deste doutorado.
6
À querida Rosa, companheira de doutorado com quem troquei muitas idéias e que
me acolheu em sua casa durante a pesquisa de campo em Curitiba, indicando-me os
contatos para as entrevistas.
À Alejandra, amiga sincera, que admiro muito pela integração que faz entre a dança
e a vida acadêmica e que sempre proporcionou um toque de leveza e fluidez às nossas
conversas acadêmicas.
Aos meus pais, por serem uma presença especial nos momentos em que eu me
sentia tão isolada da família, sobretudo quando estive no exterior.
Aos meus irmãos, de maneira especial à Marlene, pela ajuda na transcrição das
entrevistas e tabulação dos questionários e à Magali, pelo cuidado em revisar parte dos
meus textos.
À Mirinha e à Doroti que tão prontamente aceitaram fazer a revisão atenta destes
intermináveis capítulos.
À Deborah que foi um apoio fundamental tanto nos momentos mais angustiantes
quanto naqueles mais bem-sucedidos da minha trajetória pessoal e acadêmica.
Aos professores Antonio da Costa Ciampa, Maritza Montero e Graciela Motta pelas
contribuições no exame de qualificação.
Soraia Ansara
8
RESUMO
_________________________________________________________________________
O presente trabalho traz para o campo da Psicologia Política a noção de memória política
que desenvolvemos a partir desta pesquisa de doutorado, realizada em três capitais
brasileiras (Belo Horizonte, Curitiba e São Paulo) sobre a memória coletiva da ditadura
militar e repressão no Brasil.
Com base nos discursos e nos referenciais teóricos de Gamson (1992a/b), Sandoval (1994,
2001), Halbwachs (1990) analisamos as interfaces entre memória coletiva e consciência
política, procurando compreender as implicações da memória coletiva no comportamento
político de pessoas que constituem diferentes gerações e que vivenciaram contextos
históricos e políticos distintos.
Percebemos ainda que, mais do que uma reflexão sobre o passado, a memória coletiva
aparece como uma memória política capaz de subverter as versões instituídas e fixadas
pela história oficial, como uma estratégia de resistência e luta política e cria um espaço
público de disputa que pode desmontar os mecanismos de institucionalização da memória
social.
ABSTRAT
_________________________________________________________________________
This study brings to the field of Political Psychology a new perspective on the concept of
political memory raised by the results of a doctorate research project about the collective
memory regarding the military dictatorship and its repression in Brazil. The research was
conducted in three Brazilian capitals: Belo Horizonte, São Paulo and Curitiba.
Based on the theories of authors such as Gamson (1992a/b), Sandoval (1994, 2001) and
Halbwachs (1990), the interface between collective memory and political consciousness
was analyzed. Under the light of these theories we also tried to understand the influence
and impact that collective memory has on the political behavior of people who represent
different generations and have lived in different historical and political contexts.
In this study it was possible to note that memory might stimulate the political
consciousness allowing collective actions to emerge. In like manner, political
consciousness may be a determining factor when it comes to political memory as well.
We also found that collective memory is more than a reflection about the past. It appeared
to be a political memory that enables the subversion of the fixed and stated versions
elaborated by the official history, as well as a resistance strategy in the political battle for
creating a public space of dispute that disassembles the mechanisms that lead to the
institutionalization of the social history in memory.
RESUMEN
_________________________________________________________________________
A lo largo de esta tesis intentamos analizar la memoria colectiva que se construyó desde el
proceso de redemocratización brasileño (pos dictadura militar) a través de entrevistas
semidirectivas con líderes comunitarios y sindicales y de encuestas aplicadas a estudiantes
universitarios.
Con base en los discursos y en los referenciales teóricos de Gamson (1992a/b), Sandoval
(1994, 2001), Halbwachs (1990) analizamos las conexiones entre memoria colectiva y
conciencia política, con el objetivo de comprender las implicaciones de la memoria
colectiva en el comportamiento político de las personas que forman las diferentes
generaciones y que vivieron contextos históricos y políticos distintos.
Todavía percibimos que, más que una reflexión sobre el pasado, la memoria colectiva
aparece como una memoria política capaz de subvertir las versiones instituidas y fijadas
por la historia oficial, como una estrategia de resistencia y lucha política y crea un espacio
público de disputa que puede desmontar los mecanismos de institucionalización de la
memoria social.
SUMÁRIO
_________________________________________________________________________
INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 15
CAPÍTULO VIII – A memória como estratégia de resistência e luta política ... 359
1. Políticas de esquecimento .............................................................................. 363
2. Políticas da Memória: a luta contra o esquecimento ..................................... 366
Introdução
_________________________________________________________________________
Esta frase não só introduz o tema da memória política como também sintetiza muito
do que encontramos nesta pesquisa. Com certeza esta tese traz para a academia uma das
militar no Brasil. Traz uma das maneiras de narrar a história, quase sempre relegada aos
subterrâneos da História e da memória oficial. Mais que isso, traz à luz a memória da
resistência e da luta política dos movimentos sociais populares que recusam, como
Embora o período da ditadura militar tenha fomentado muitas pesquisas por parte
obra, editada em cinco volumes - não encontramos estudos específicos sobre a memória
1
O jornalista Elio Gaspari fez um longo trabalho de pesquisa sobre o período da ditadura militar no Brasil
que resultou na publicação destes quatro volumes que indicamos para os que têm interesse no tema. O quinto
volume desta série ainda não foi publicado. Ver Gaspari, Elio. (2002). A Ditadura Envergonhada. Vol 1. São
Paulo: Cia das Letras; Gaspari, Elio. (2002). A Ditadura Escancarada. Vol 2. São Paulo: Cia das Letras;
Gaspari, Elio. (2003). A Ditadura Derrotada. Vol 3. São Paulo: Cia das Letras; Gaspari, Elio. (2004). A
Ditadura Encurralada. São Paulo: Cia das Letras.
16
pesquisa: Qual seria o significado da repressão e das lutas de resistência para as novas
manifesta na atualidade ou, se ela estiver se perdendo, qual a razão desse fenômeno.
Cabe assinalar, que nosso interesse pelo estudo da memória coletiva teve início
de Psicologia Social. Na referida dissertação nos limitamos a estudar o caso de uma longa
greve (a Greve dos Queixadas)2 ocorrida na época da ditadura militar no Brasil. Entretanto,
muitas das questões que motivaram, inicialmente o estudo da memória coletiva dessa
greve, ocorrida num contexto de repressão, não foram resolvidas em nossa pesquisa. Haja
vista que acabou enfocando muito mais a resistência dos trabalhadores do que
propriamente a repressão sofrida por eles na época, o que nos manteve motivados a
continuar com nosso propósito de investigar a memória coletiva dos brasileiros sobre a
2
Esta greve iniciou-se em 1962 se prolongando ao longo de sete anos durante o período da ditadura militar
no Brasil. Ficou conhecida como a greve dos Queixadas, pois foi o nome atribuído aos operários grevistas
pelo seu estilo de luta. O nome “Queixadas” significa porcos do mato que ao perceberem o perigo, reúnem-
se em manadas, obrigando o inimigo a refugiar-se.
17
comunitárias não enfatizarem, nem mencionarem a repressão daquele periodo, o quê nos
nem familiares atingidos pela repressão ou que militassem na época da ditadura, de modo
distanciamento entre suas histórias pessoais e a história do país, ou seja, existe pouca
relação com os acontecimentos da Nação, principalmente por ser uma realidade vivida há
trinta anos. Estas duas primeiras hipóteses estão fundamentadas nos argumentos de
Halbwachs (1990) para explicar o esquecimento, mas, a nosso ver, não são capazes de
explicar totalmente por que a repressão “foi esquecida”, o quê nos fez levantar outras
hipóteses: c) o fato de os sindicalistas entrevistados por nós não verem diferença entre
fazer uma greve em plena ditadura ou em outros contextos, nos leva a pensar que a
trabalhadores e, portanto, não é apontada como algo que distingue a época da repressão
militar de outros períodos; d) pode haver um efeito psicológico em que as pessoas tendem
que levaram as pessoas a serem sacrificadas; e) existe uma tendência entre os sindicalistas,
esquecimento, não seria possível evocar a repressão na época da ditadura militar porque
esta não fez parte da história pessoal e das relações interpessoais das pessoas entrevistadas.
continente latino americano, os anos de forte repressão vividos no Brasil entre 1964-1985
18
mais aprofundado, o quê nos levou a desenvolver a pesquisa de doutorado, que ora
(que participam de alguma organização popular), com lideranças sindicais e com jovens
práticas políticas atuais ou como a construção da memória e das práticas políticas atuais
nos marcos de referência da psicologia social, desenvolvidos por Tajfel (1983), Gamson
19
(1992a/b), Sandoval (1994, 2001), Martin-Baró (1998) e Blanco (1996) - a partir das
aproximações que faz entre Lewin, Vygotski e Mead - enfatizando a dimensão interativa
dos aspectos macro e micro social que compreendem os estudos psicossociais. Além disso,
tensões existentes entre perspectivas individualistas e sociais que permanecem até hoje na
psicologia. Não é nossa intenção descrever historicamente essas tradições, mas situá-las
dentro dos estudos psicossociais sobre a memória, procurando enfatizar aquelas que
outras palavras, procuramos nos apropriar das noções de memória coletiva e social,
dialogando com estas tradições a fim de perceber em que medida estas contribuíram e
contribuem ainda hoje para a construção de uma memória política, que é a noção que
levado a cabo na Espanha, país que viveu sob uma guerra civil e uma longa ditadura
redemocratização.
políticos, que não enfatizam o trauma político, dos estudos que se referem à memória de
Ainda que nosso enfoque não seja o trauma político, que marcou muito a
porque grande parte dos estudos da memória destacam o trauma sofrido pelas vítimas da
autoritárias que geraram um número incontável de vítimas, mas que também provocaram a
brasileira que teve uma alternância de generais no poder e, nesse sentido, diferenciando-se
defesa dos direitos humanos que se iniciaram durante a ditadura e se estenderam ao longo
apresentando o perfil dos nossos sujeitos de pesquisa bem como os principais eixos e
categorias de análise que elaboramos para facilitar as análises dos capítulos seguintes.
21
análise das entrevistas e dos questionários que aplicamos aos estudantes universitários.
sindicais e nos questionários, destacando aquilo que foi conservado na memória dessas
lideranças comunitárias e sindicais tendo identificado três importantes aspectos nos relatos
dos entrevistados: o primeiro aspecto, que se refere ao legado ditatorial como a repressão
resquícios que encontramos nas relações sociais e em todas as esferas da vida cotidiana; o
acontecimentos ocorridos no período da ditadura militar; e o terceiro que diz respeito aos
(2001), articulando-o com o discurso dos entrevistados, por meio de alguns eixos de
análise, que nos permitiram perceber que a consciência política dos entrevistados que
militar), do mesmo modo que a memória construída pelos movimentos sociais, em que os
tem implicações no comportamento político das pessoas que constituem essas diferentes
descobertas que encontramos ao longo da nossa pesquisa que apontam para um trabalho de
memória oficial que utilizou todos os artifícios para levar ao esquecimento aquilo que
Psicologia Política, a relevância deste estudo está na sua contribuição para a compreensão
da memória coletiva enquanto uma memória política, que foi sendo reconstruída a partir
das contradições da sociedade brasileira nos últimos quarenta anos e que é capaz de gerar
brasileira, entendemos que este trabalho nos permite abrir um campo distinto daqueles que
modo, este estudo abre um novo debate tanto na Psicologia Social quanto na Psicologia
Política no Brasil.
24
CAPÍTULO I
As Possibilidades da Memória e
seus desdobramentos Epistemológicos
_________________________________________________________________________
memória e a política. De alguma maneira, nosso estudo, se insere dentro dos grandes
memória histórica que, é segundo Blanco (2001), “(...) una de las tareas arduas y más
política3.
3
Em seus últimos escritos Martín-Baró defende que a Psicologia social é uma Psicologia política e faz isso
considerando que o poder impregna toda nossa vida, sendo a fonte mais importante do significado da
ideologia e a Psicologia social o estudo da ação enquanto ideológica.
25
pessoas não são donas de si mesmas nem de seu destino; d) e por fim, da necessidade de
uma memória, como ele mesmo afirma “(...) una clarividente memoria histórica para
la memoria colectiva, elementos del pasado que fueron eficaces para defender los
intereses de las clases explotadas y que vuelven otra vez a ser útiles para los objetivos de
lucha y concientización” 4 (Fals Borda, 1985, citado por Martín-Baró et al., 1998: 301).
histórico e de um novo sujeito histórico. Não se pode forjar um projeto histórico novo sem
institucionalizada e pela transformação das formas de poder que, ao longo de décadas, vêm
4
Martín-Baró se apropria da idéia de conscientização de Paulo Freire e, a partir dela é que defende a
possibilidade da construção de uma memória história. Um pouco mais adiante desenvolvemos o conceito de
consciência política de Sandoval que é diferente do conceito de conscientização freiriano, entretanto, no que
se refere ao estudo da memória coletiva como uma memória política, ambos os conceitos permitem algumas
aproximações conforme veremos no tópico seguinte deste capítulo.
5
Este texto foi originalmente publicado em 1987 no capítulo intitulado “El latino indolente: carácter
ideológico del fatalismo latinoamericano”. In. MONTERO, M. (coord). Psicología Política
Latinoamericana. (pp.135-162). Caracas: Panapo.
26
necesitan uma clara memoria historica, para rastrear los dinamismos de su história, para
saber donde buscar las causas de su opresión secular y de su situación presente” (Martín-
Baró 1998:99). É preciso reconhecer que nosso passado não pode ser repetido e não
podemos nos manter passivos aceitando os acontecimentos como uma fatalidade. Resgatar
histórica que, evidentemente, implica pensar num novo sujeito sócio-histórico que
reconhece sua condição de oprimido e que, conhecendo criticamente sua realidade, não
poupa esforços para lutar contra essa condição. Pensada desta maneira, a memória coletiva
não pode ser entendida apenas como transmissão geracional da experiência ou a guarda das
tradições nacionais e sim como estratégia de resistência e luta política, especialmente por
aqueles que se vêem excluídos dos direitos à cidadania e que passam assumir uma
cidadania ativa, configurando-se num sujeito que rompe com o fatalismo e que assume seu
próprio destino.
histórica, Martín-Baró, não só oferece contribuições para a práxis social, como também
estudo psicossocial, segundo Blanco é a realidade social que é “(...) siempre tan
estudos psicossociais, visto que, como o próprio Martín-Baró insistia, não são os conceitos
e as teorias que devem definir quais problemas devemos estudar, muito pelo contrário, a
própria realidade, com os problemas sociais que apresentam é que deve indicar quais
psicossociais seriam muito mais úteis, haja vista que os autores, que são nossas referências,
elaborar teorias que pudessem oferecer uma compreensão psicossocial dos fenômenos
sociais, das interações sociais, dos conflitos inter-grupais, o que exigiu uma postura
memória coletiva da repressão e que é outro marco de referência fundamental deste estudo.
Dito de outra maneira, assumimos uma postura epistemológica que tem como
sociais.
A própria noção de memória social e memória coletiva não nos exime das
vez que não existe uma definição única e unívoca deste conceito6. Haja vista que quando
como: é um individuo que recorda ou uma coletividade que recorda? É a memória uma
investigar como as pessoas que não viveram a ditadura militar no Brasil recordam, e
reconstroem esse evento político e em que medida estas lembranças influem ou são
ditadura militar no Brasil) que na memória coletiva se traduz em fato psicossocial, ou seja,
uma postura mais crítica, enfatizaremos o caráter interativo que existe entre as esferas
creacion de uma afirmación sobre estados de cosas pasadas, por medio de um marco
autores como Vygotski, Mead e Lewin, que, criticando a psicologia dominante, justamente
6
Ver Aguilar, P. (1996). Memória y olvido de la guerra civil española. Alianza Editorial; Vazquez, F.
(2001). La Memoria como acción social. Paidós.
29
Tajfel (1984), em sua teoria da identidade social, Gamson (1992) e Sandoval (1994,
2001), através do conceito que desenvolvem sobre consciência política, reforçam esse
significados. Sandoval, por sua vez, afirma que a consciência política consiste em
informações que permitem aos indivíduos decidir como agir em contextos políticos e
consciência, que consiste em “(...) sete dimensões, analiticamente distintas que, ao mesmo
sociedade como um ator político” (p.185). Estas dimensões, que serão detalhadas na seção
cotidiana e a interação das pessoas com atores políticos e organizações e as influências das
interfaces com a consciência política, o fazemos situando-a neste campo relacional entre o
“eu” e a “sociedade” – proposto por estes autores – procurando articular o universo micro
político.
corrente dominante da psicologia7 que se centrava no indivíduo e que, como aponta Tajfel
(1984), não se interessavam pela sociedade em geral, ficando essa preocupação relegada a
áreas marginais da corrente principal. Fazendo à crítica àqueles que defendiam uma
propio como psicólogo social, la integración de las interacciones individuales con sus
marcos sociales más amplios” (Tajfel, 1984:24). O autor chama a atenção dos psicólogos
sociais para um dos problemas mais importantes que a psicologia social enfrentava em sua
época e que continua enfrentando ainda hoje, que é, justamente, procurar explicar os
problema teórico e aplicado ao mesmo tempo, já que “(…) implica algunos de los
aspectos básicos de la conducta del hombre hacia el hombre en tanto que están adaptados
7
Não nos esqueçamos que esta polêmica sempre alimentou os debates filosóficos e, posteriormente,
sociológicos, em princípios do século XX, por um lado, a tradição durkheimiana, dos que defendiam que as
propriedades de uma sociedade explicam a dos indivíduos e, por outro lado, a vertente individualista que
defendia que as propriedades dos indivíduos explicam as da sociedade.
31
a y modificados por, y son determinantes del contexto social y de los rasgos relevantes del
Isso nos permite afirmar que a realidade social define a realidade psicológica, ou
seja, as pessoas são produtos da história, da cultura e da sociedade, sendo que suas
opiniões, valores, visões, significados e práticas são apreendidos ou adquiridos através dos
outros. Nesse sentido, os grupos aos quais as pessoas pertencem têm, portanto, um
profundo impacto sobre a identidade dos indivíduos, de modo que a identidade individual
Todos estes aspectos são fundamentais para o estudo da memória coletiva, pois
demarcam nossa opção teórica, já que não entendemos a memória coletiva como a soma
identificação para a memória, já que as pessoas têm o hábito de lembrar como membros do
grupo e se utilizam, para isso, das mesmas noções comuns a seus membros.
emocionais, produz um significado para os membros do grupo que, a nosso ver, favorece a
psicológico”, esteja envolvido ou, de alguma maneira, tenha vivenciado. Por isso,
sentimento de pertença, e quanto mais positiva for a avaliação do próprio grupo sobre si
mesmo, mais implicações incidirão sobre a memória coletiva do evento, de modo que, o
identificado com o grupo, mais consistente será a memória sobre os eventos que o grupo
das relações que os indivíduos estabelecem com seus grupos de pertença e sua cultura, e,
nesse sentido, como processos que são configurados a partir de significados sociais
veiculados pelos símbolos, idéias, ideologias, valores, códigos culturais presentes nos
grupos e na sociedade.
Blanco, nos deixa claro que o que é comum a esses autores é o fenômeno da interação e
realidad el nivel orgánico, el cultural y el más puramente psicológico” (Blanco, 1996: 36)
indivíduos têm de adaptar-se a este meio social. Dito em outras palavras, a perspectiva
para a conduta social e, como afirma Blanco: “(…) la conducta social de una persona
medida de las acciones ejecutadas por los otros y las consecuencias que de ellas se
derivan” (Blanco, 1996:45). E na seqüência aponta que há todo um processo anterior que
relação com o outro por meio do gesto, depois a consciência do significado e só depois o
34
para a consciência.
partir dessas interações, têm um caráter socialmente compartilhado, pois “(...) cuando lo
“(...) la conciencia forma parte de una realidad más amplia en la que están
incluidos los otros en su vertiente individual y en su acepción grupal (el otro
generalizado), y todo lo que pertenece a ese mundo de símbolos y significados
que utilizan en sus interrelaciones” (Blanco: 1996:49)8.
consciência:
“(…) lo que hay que resaltar es que la relación entre cultura y conciencia
acontece a través (y solo a través) de la mediación, de la capacidad que el
individuo tiene de dotarse y de usar esas herramientas que permiten la
transmisión de afuera hacia adentro” (Blanco, 1996:34).
consciente se dá por meio das relações sociais que o indivíduo mantém com seu mundo
8
A esse respeito podemos encontrar algumas aproximações teóricas, entre a Teoria Social do Self, de Mead e
o Modelo de Estudo da Consciência Política de Sandoval, com o qual trabalhamos feitas por Silva (2001) em
artigo publicado na Revista Interações. Ver artigo: Silva, A. S. (2001). Consciência e Participação Política:
uma abordagem psicopolítica. 6 (12) (pp. 69-90).
35
exterior, cuja vida social se apresenta como um processo dinâmico em que cada sujeito é
ativo, havendo uma interação entre o mundo cultural e o mundo subjetivo de cada um.
Esta interação faz com que as pessoas construam significados sobre a questão
política a partir da relação que elas estabelecem em sua vida cotidiana, de modo que, como
aponta Gamson (1992), estas não são passivas e estão constantemente negociando
entre cultura e cognição, entre opiniões individuais sobre o mundo cultural e social e
opiniões sobre os sistemas de ideologias, sejam eles instituições, mídia, símbolos, códigos
culturais, etc.
enfocam o discurso e a ideologia, sendo parte do processo de dominação da elite, que tem a
habilidade de formar a visão de mundo das pessoas, de modo que, qualquer mudança na
interpretações dos fatos, onde as instituições sociais como escola, igreja, movimentos
36
sociais, bem como a ideologia veiculada pelos meios de comunicação e mesmo o senso
comum, atuam como instrumentos de mediação destes significados e exercem uma grande
significa que o estudo da memória coletiva exige uma análise psicossocial que compreenda
teórico, claramente proposto por Martín-Baró e muito bem ressaltado por Blanco (2001):
que ao longo dos séculos, foram dadas como boas e que encobriram falácias teóricas
significa transmitir um novo saber sobre a realidade que ajude a modificar as relações que
as pessoas têm com seu meio econômico e social (Blanco, 2001). Essa desideologização,
que implica, também, um “(...) proceso de descodificación, nuevo saber sobre la realidad
problemas sociais, que vai contra a mentira social, que rompe com a dinâmica que mantém
pelas classes populares e abrimos a possibilidade de pensar uma “memória política” que
mostre que não existe uma única memória, mais bem existem “memórias subterrâneas”
política, entretanto nos parece fundamental, além de circunscrever nosso estudo nos
A memória coletiva que, amiúde, vem sendo estudada em outros campos das
ciências sociais e humanas, começa a fazer parte deste universo da psicologia política no
Brasil a partir do nosso estudo “Repressão e lutas operárias na memória coletiva da classe
9
Esta perspectiva de conscientização tem claramente suas bases na filosofia de Paulo Freire, muito defendida
pela psicologia da libertação de Martin-Baró.
10
Extraído da Linha Editorial da Revista de Psicologia Política da SBPP.
38
trabalhadora em São Paulo” (Ansara, 2000). A nosso ver, estamos abrindo novas
interpretações, por vezes polêmicas à que está sujeita a noção de memória. Nesse sentido,
dimensão social e política, sem reduzir o indivíduo a um mero agente passivo da vontade
coletiva.
comportamento político das pessoas que constituem diferentes gerações e que vivenciaram
que nos permite introduzir a noção de memória política que pretendemos desenvolver ao
mister fazer uma breve fundamentação teórica a partir das contribuições de autores como
política e das reflexões, já iniciadas por nós em nossa dissertação de mestrado, em que
11
Sobre as diferentes denominações da memória podemos encontrar uma reflexão em Vázquez (2001). In.
La Memoria como Acción Social: relaciones, significados e imaginários (pp. 26-28).
39
conceito. Nesse sentido, queremos deixar claro que consciência política não se refere à
que faz com que o sujeito participe da sociedade como ator político, sendo crenças e
valores societais uma das sete dimensões, por ele proposta, que constituem a consciência
Freire (1982) e mesmo corroborada por Martín-Baró (1987; 1998) – o que não nos impede
1994:61). Em outras palavras, o esquema teórico proposto por Sandoval (1994a; 2001),
como ele próprio sugere, permite uma análise empírica da consciência política que é viável
operacionalmente.
consciência política tendo em vista a utilização deste modelo na análise das entrevistas,
Sandoval sobre consciência política, entendendo-a como um conceito amplo que agrega
da consciência política, desenvolvido por estes autores, enfatiza seu caráter psicossocial e
desenvolver, nesta seção à parte, por considerarmos essencial para a noção de memória
política.
Gamson (1992b) enfatiza o aspecto psicossocial que envolve a relação entre o “eu” e a
Neste processo, como aponta Gamson (1992b), as pessoas são ativas e processam
significados e, ainda que não forjem o que encontramos no mundo político, estes
significados revelam uma latente consciência política que pode ser ativada mediante uma
apropriada estimulação. Isso equivale a dizer que a memória pode estimular a consciência
41
uma consciência política pode ser determinante na construção de uma memória política.
Podemos dizer que entre elas existe uma via de mão dupla, motivo pelo qual a memória
coletiva não está separada da consciência política, ou seja, ela é atravessada pela
consciência política.
Desta feita, não dá para separar a construção de uma memória política, dos grupos e
movimentos sociais, pois entendemos que as construções do passado são sustentadas por
estruturas coletivas, como aponta Halbwachs (1990, 2004)) e criadas por atores sociais,
O que nos permite apontar a intrínseca relação entre memória coletiva e consciência
imágenes compartidas del pasado histórico son un tipo de recuerdos que tienen una
Isso quer dizer que as relações que as pessoas têm com o grupo social, a classe
social – com seus valores ideológicos, com seus juízos de valor – têm um papel
processo de formação da consciência política e como este se dirige às ações coletivas. Para
análise que integra os aspectos macro e micro sociológicos, bem como psicossociológicos,
uma vez que não queremos privilegiar um aspecto em detrimento do outro, mas, pelo
a oposição e a totalidade. Sandoval (1994) admite que este esquema apresenta aspectos
que possibilita as formas de ação coletiva e que não pode ser deixada de lado no estudo da
classe.
43
que se refere às identificações sociais com a classe que inclui características culturais, de
consumo e que dizem respeito aos papéis desempenhados na estrutura social; Interesses e
antagonismos ao sistema - onde o indivíduo percebe que existem outras classes sociais
social: que se refere à relação do indivíduo com a estrutura social, seja pelos significados
que se atribui à estrutura social ou pelas relações mesmas ocorridas dentro dessa estrutura e
consciência que diz respeito a percepção dos indivíduos sobre os tipos de ações
sancionadas para atingir seus interesses individuais e ou coletivos. Segundo Sandoval “(...)
possui um elemento mais histórico que favorece a recordação do passado. Agora vamos
descrever o modelo teórico de consciência política de Sandoval, ampliado por ele em 2001,
predisposição para a intervenção” - que no modelo atual de Sandoval (2001) estão mais
bem descritos e aprofundados - são questões muito mais ligadas à atualidade e podem
44
elaboração de visões de mundo e, em seu artigo13 “The Crisis of the Brazilian Labor
1990s, elabora um modelo teórico que descreve sete dimensões psicossociais que
Sentimento
de Justiça
Identificação de e Injustiça
Identidade Adversários e
de Interesses Formas de Ação
}
Coletiva Antagônicos Metas de
Ação Coletiva Individual
Crenças e
Valores Eficácia e Coletiva
Societais Política Vontade de
Agir
Coletivamente
Fonte:: Sandoval, S. (2001) in. Revista Psicologia Politica llno 1; N° I (1). (tradução Alessandro Soares da
Silva, 2001)
Tajfel (1983), em sua teoria da identidade social – e considera os aspectos que estão
12
Trataremos de desenvolver, ao longo da tese a noçao de memória política relacionando-o com as sete
dimensões da consciência política.
13
Artigo publicado na Revista Psicologia Política VOL. 1,(1).2001.
45
assimiladas pelos indivíduos e a percepção que os indivíduos têm dos contextos sociais e
mesma, mas sim a partir dos significados que os indivíduos atribuem à realidade social.
interpessoais que levam a um sentimento de coesão social que faz com que o indivíduo se
identifique com alguma categoria social. Isso quer dizer que as pessoas adquirem um
pessoas dentro e fora do grupo. Além desse sentimento, existe a identificação com
social/coletiva defendida pelos os autores Tajfel (1985); Hogg e Abrams (1990); Jenkins
(1996); Melucci (1996) e Gamson (1992a/b) e a define, num sentido restrito, como “uma
14
As dimensões aqui apresentadas seguem quase literalmente o artigo de Sandoval (2001) publicado na
Revista de Psicologia Política. 1, (1), JAN./JUN. 2001.
46
Esse aspecto da identidade coletiva foi especialmente destacado por nós, no estudo
da memória coletiva de uma greve operária no qual apontamos a identidade como uma
interação social (Tajfel, 1983). Nessa interação, ocorre um processo de identificação social
que se estabelece a partir das relações intergrupais e dos processos grupais que os
que os indivíduos lembram de seu passado na medida em que se colocam sob o ponto de
vista de uma ou mais correntes do pensamento coletivo. Dito de outra maneira, fazer parte
eventos passados, já que as pessoas “não perderam o hábito de lembrar como membros do
grupo” (Halbwachs, 1990:28) e se utilizam, para isso, das mesmas noções comuns a seus
membros.
quais faz parte, que envolve aspectos cognitivos, avaliativos e emocionais (Tajfel, 1983), o
que o leva a construção de uma memória que comumente enfatiza os eventos que o grupo
15
Tradução nossa.
47
Halbwachs ainda aponta que “(...) a memória coletiva avança, no passado até certo
limite, mais ou menos longínquo, aliás, segundo se trate deste ou daquele grupo”
que vive e que expressa, claramente, a ideologia política e a visão de mundo dos mesmos.
Estas podem ser entendidas como a representação social que os indivíduos constroem
sobre a estrutura social, as práticas e finalidades das relações sociais. São os significados
categorias sociais e as próprias intenções das pessoas que constituem essas categorias.
Essas representações são produtos das interações sociais e da experiência dos indivíduos
sujeito, ao narrar suas memórias, manifesta seus valores, suas crenças, suas opiniões. Além
disso, ele não é uma testemunha neutra, pois, ao narrar os fatos, afirma sua posição
política, ou seja, quer também julgar marcando bem o lado em que estava naquele
por suas testemunhas de maneira “neutra”, mas apresenta claramente, juízos de valor,
48
comodismo do sujeito, como pode romper com essa estabilidade na medida em que seja
capaz de reinterpretar seu cotidiano por meio de valores e crenças que negam esse
comodismo.
ocupa um lugar chave na consciência política, pois sustenta a ação coletiva, visto que, sem
adversários. Ela é expressa no “(...) caráter antagonístico das relações de classe (na
medida em que esses são conflitos de interesse) e no significado que o indivíduo atribui ao
(Sandoval, 1994a:67).
podem influenciar de maneira decisiva a memória política, visto que esta se expressa na
interesses simbólicos e materiais de diferentes grupos sociais. Por isso mesmo, a memória
pela história oficial, rompendo com o caráter ideológico e alienante da memória oficial.
Não obstante, ela não se exime do risco de institucionalizar-se através das comemorações,
4. A Eficácia Política refere-se aos sentimentos que as pessoas têm sobre sua
atribuição de Hewstone (1989), que mostra que as pessoas podem dar três tipos de
indivíduo atribui que os eventos são resultantes de forças transcendentais como tendências
nos indivíduos sentimentos de baixa eficácia política, ou seja, quanto mais acreditarem que
os eventos têm como causas as forças transcendentais, mais baixo será o sentimento de
eficácia política frente às ações que possam realizar para transcender as forças da natureza.
angústia social.
Uma segunda forma de interpretação pode ser a individual. Neste caso, as pessoas
capacidade da pessoa em lidar com uma situação específica. As pessoas atribuem as causas
(Sandoval, 2001).
Por fim, a terceira forma de interpretação das motivações e causas sociais atribui a
força às ações de outros indivíduos e/ou grupos. As pessoas acreditam que situações de
angústia social são o resultado das ações de certos grupos ou indivíduos. Isso faz com que
50
permitem que as pessoas sintam que suas ações contra os responsáveis pela situação de
angústia social podem ter um efeito de mudança social. É por meio dessa interpretação que
sentem que são capazes de mudar a sua própria vida e a vida dos outros. Isto,
acordos representam um nível de reciprocidade social entre os atores que ele considera
como justos. Com base em Berrington Moore (1978), Sandoval (2001) aponta que a justiça
termos de injustiça sempre que sentirem que o equilíbrio das relações de reciprocidade
forem ameaçados.
relação equilibrada de reciprocidade e que fazem com que os indivíduos percebam que
essa reciprocidade pode ser violada. Dessa maneira, uma grande parte dos critérios
alguma maneira, deixam de existir ou são violados, se estabelece uma situação de injustiça
Freqüentemente, diz o autor, notamos que toda reivindicação dos movimentos sociais vai
51
contra uma situação de injustiça, consequentemente observamos que, por trás do que as
pessoas falam sobre sua participação nos movimentos sociais, em suas representações, se
ocultam referências à noção de injustiça que servem para legitimar suas reivindicações e
responsabilizar os adversários.
compensar as injustiças que são cometidas contra ele mesmo. Essa dimensão tem as suas
raízes nos estudos de Bert Klandermans (1992) e enfoca três aspectos ou situações que
não no movimento; a segunda diz respeito à percepção dos ganhos ou perdas de benefícios
movimentos sociais avaliam sua capacidade para implementar suas propostas de ação
coletiva.
1989:62).
52
eficácia política. Esta dimensão trata de “avaliar” até que ponto as metas e propostas dos
movimentos sociais e das suas lideranças correspondem aos próprios interesses materiais e
simbólicos de seus participantes. Nesse sentido, suas propostas de ação coletiva e seu
percepção das capacidades de seus membros tem provocado sérias mudanças de posturas
tanto para as lideranças quanto para as pessoas comuns. Essa dimensão produz, ao mesmo
coletiva.
“Vontade de agir coletivamente” quanto “Metas e ações do movimento social”, têm suas
bases em alguns teóricos da escolha racional como Olson (1965), que tem contribuído para
fazem uma escolha dos elementos significativos que influenciam sua participação e o seu
Sandoval entende que estas escolhas são elementos que se tornam significativos
para o pensamento individual através das suas identidades coletivas; suas crenças, valores
para a tomada de decisão dos indivíduos, o que leva o autor a afirmar que a escolha de
essas metas e estratégias são percebidas como formas relevantes de ação coletiva que
teórico de Sandoval (2001), nos parece oportuno fazer algumas aproximações entre o seu
Sandoval.
de vistas políticos, os modismos estão presentes na vida cotidiana dos indivíduos e são
expressos de maneira não-racional e espontânea, visto que “(...) o cotidiano impõe sobre
pensamento superficial” (p. 64) que leva ao comodismo e à alienação do sujeito que é
Por essa razão, não são poucos os autores que admitem que a sociedade capitalista,
rotina cotidiana para que possa emergir outras modalidades de consciência política
(Sandoval, 1994a).
Martín-Baró (1998), por sua vez, afirma que as instituições sociais como a família,
a escola e a moral (entendida como as normas reais que regem o comportamento concreto
para Martín-Baró
pessoas se relaciona consigo mesmas e como estas se situam diante do mundo em que
vivem.
aceitação prática da ordem social opressiva. O fatalismo passa a ser um grande aliado do
1998:171).
Podemos dizer que o fatalismo está presente em nossa sociedade como uma
possibilita o rompimento desse fatalismo, desse conformismo porque provoca uma ruptura
no cotidiano16.
recuperação da memória histórica que, para ele, constitui um dos objetivos da Psicología
16
Sobre a consciência de senso comum que encontramos na vida cotidiana e a possibilidade de ruptura com
esse senso comum, ver Heller, Agnes (1972). Cotidiano e História.
56
“reclama, por necesidad una psicología política, es decir, una psicología que
tome en cuenta el poder social en la configuración del psiquismo humano y
que, por tanto, contribuya a construir un nuevo poder histórico como requisito
de una nueva identidad psicosocial de las mayorías hasta hoy dominadas”
(Martín-Baró, 1998:341).
comportamentos, Sandoval, por sua vez, recorre à teoria da atribuição de Hewnstone para
intervenção numa determinada situação política. Entre elas, como vimos, encontramos as
Baró, aquelas em que os indivíduos buscam soluções individuais para situações sociais e
perpassamos pelas dimensões da consciência política proposta por Sandoval, visto que este
coletivamente e estabelecer metas de ação que possam gerar, de fato, uma ação coletiva em
memória, uma vez que, como bem aponta Martín-Baró (1998), recuperar a memória
histórica significa descobrir elementos que foram eficazes na luta das classes exploradas e
que poderão ser de utilidade para os objetivos de luta e conscientização. Deste modo, é um
Desta feita, tanto o modelo da consciência política proposto por Sandoval, quanto a
proposta do realismo crítico de Martin-Baró, são referenciais consistentes para este estudo
e nesse sentido, na construção de uma memória política que, como defendemos nesta tese,
comportamento político.
Haja vista que toda memória coletiva politizada ou não é construída socialmente a
partir do universo simbólico de cada sujeito, universo este que, segundo Sandoval “(...)
tem suas raízes em suas experiências históricas de vida e da sociedade a que pertence”
(Sandoval, 1994a:61).
58
psicossociais que fundamentam nosso estudo, vamos procurar refletir sobre os diferentes
Mais do que descrever as grandes tradições dos estudos sobre a memória, queremos
dialogar com elas, recuperando aquelas que estudam a memória em sua dimensão
política e, ao mesmo tempo procurando perceber como estas tradições se articulam com a
memória política.
preocupação com a memória tem sido uma constante na reflexão filosófica e até nossos
dias, cientistas sociais, psicólogos, filósofos, com maior ou menor intensidade, vem
procurando compreender a memória. Não há dúvidas, como aponta Vazquez (2003), que,
práticas sociais que imperam em cada época. A Psicologia não deixou de ostentar a
memória como seu objeto de estudo e o fez seguindo a linha da evolução do pensamento
anteriores. Algumas delas foram bem assimiladas pela psicologia dominante até por volta
dos anos cinqüenta do sec. XX, como é o caso de Ebbinghaus (1850-1909) e outras foram
que passa a ser estudado bem posteriormente. Haja vista que até fins dos anos 70, a
A psicologia da memória tem uma longa tradição na Psicologia que vem desde
sentido, abrindo perspectivas para o estudo da memória como fenômeno social e interativo.
17
Na tradição filosófica antiga grega, a memória era concebida como uma identidade sobrenatural ou divina,
de onde provém a figura de Mnemosyne. Posteriormente e na então filosofia antiga, os romanos
desenvolveram a arte da retórica, utilizada para persuadir e criar emoções nos ouvintes através do uso eficaz
da linguagem. Eles treinavam os oradores através de técnicas mnemônicas que eles chamavam “memória
artificial”. Nesta época, a memória era considerada um ramo da retórica. Em seguida, criaram os teatros de
memória onde se buscava imagens perfeitas que auxiliassem na recordação. A partir de Descartes, e isso
continuou com Bacon, Hobbes e outros, a memória passa ser entendida através dos sistemas de categorias
lógicas e causas cientificas seguindo, desde então, a linha do pensamento filosófico e cientifico. Ver Fentress
e Wickham (2003).
60
Ebbinghaus queria fazer da Psicologia uma ciência experimental que fosse semelhante,
deixando um legado que, até hoje, continua vigente em nossos dias, haja vista que ainda
atual.
(1995), que faz uma forte crítica aos estudos experimentais de Ebbinghaus, argumentando
eliminar o significado dos estímulos e que, ao fazê-lo, se cria uma situação muito artificial
Psicologia cognitiva, a ênfase que ele dava aos determinantes sociais e institucionais da
lembrança ficou deixada para segundo plano. Como aponta Baddeley (1990) - outro grande
estudioso da memória - desde que Bartlett publicou sua obra Remembering em 1932,
houve muito pouco desenvolvimento teórico sobre a linha proposta por ele para o estudo
da memória e, ainda hoje, recebe pouca atenção por parte da investigação psicológica. Esta
omissão, como afirma Vázquez (2003) se explica porque a proposta de Bartlett (1995) não
memória política.
Ebbinghaus que se preocupa apenas com as reações dos indivíduos aos estímulos
“El psicólogo tanto si utiliza métodos experimentales como si no, trata con
seres humanos y no simplemente con reacciones. (...) he intentado investigar
sobre las condiciones sociales del recuerdo; aclarar algunos problemas de la
determinación, dirección y modificación social de los procesos de recordar”
(Bartlett, 1995: 62).
Ele chama a atenção da Psicologia para o fato de que, nas pesquisas, lidamos com
seres humanos e não apenas com suas reações, de modo que devemos considerar as
condições sociais em que ocorrem a lembrança. O autor não tem dúvidas quanto à
influência dos fatores de origem social no processo da lembrança: “No cabe duda de que
existen factores de origen social que influyen directa y poderosamente en buena parte del
E isso podemos verificar, ao longo de sua obra e, também, na importância que ele
encontra o grupo como unidade organizada que condiciona as reações humanas, reações
que são específicas dos grupos e que só vamos encontrar dentro dos mesmos e não fora
psicologia social”18 que ele divide em duas categorias: a) casos ou tipos de experiências e
condutas que são diretamente determinados por fatores sociais encontrados dentro dos
grupos e não fora deles - na teoria da identidade social denominaríamos (ingroup); b) casos
que, estar dentro de um grupo significa ser suscetível às crenças, costumes, tradições,
essas categorias, sugere um terceiro conjunto de fatos que devem ser estudados, que é a
interação entre dois grupos (x e y), com suas peculiares crenças, tradições, costumes,
sentimentos e instituições, no qual ambos se modificam por meio do que ele chama
As mudanças que são produzidas por estas modificações, provocadas pelo processo
de convencionalização são, para Bartlett, dados relevantes para o psicólogo social. Ele
premissa:
contínua entre respostas que se modificam num meio que também varia, de modo
que nunca será possível uma evocação literal ou exata - tal situação, segundo
18
Ele define a psicologia social como “o estudo sistemático das modificações na experiência e das respostas
do indivíduo que se devem diretamente a sua pertença a um grupo” (Bartlett, 1995:311).
64
memória, na época, e por muitos anos seguintes – e porque não dizer despertando, ainda
hoje, pouco interesse dos psicólogos sociais – Bartlett argumentava que “(...) la
determinación social del recuerdo proporciona a menudo la base para esa naturaleza
1995:323).
lembrança ele acreditava que “(...) la forma misma y el estilo del recuerdo variaba con los
Bartlett estava atento ao fato que estas condutas individuais se manifestavam como
modo, a forma como a lembrança individual se apresenta é muito influenciada por essas
tendências que ele denomina de “tendências sociais persistentes e dominantes” que nada
sociedade. Estas se constituem como um tipo de esquema social duradouro em cuja base
estudo das interações sociais ou dos conflitos de um grupo quando este tem que adaptar-se
a novas situações sociais, econômicas, políticas ou religiosas introduzidas por pessoas que
se incorporam ao mesmo. Bartlett enuncia que os períodos de forte tensão social, ameaças
65
Isso quer dizer que a maneira como as pessoas manifestam suas lembranças possue
uma carga emotiva que está suscetível a invenções e todo tipo de imprecisão ou distorção.
generalizações descontextualizadas.
Tendo claro esta postura metodológica, Bartlett não se intimida em afirmar que as
“Me aventuro a concluir que la manera más fácil de justificar las tendencias
grupales persistentes y dominantes es se basarse e el estudio del patrimonio
cultural – relatos populares, arte, prensa, chistes y refranes de la actualidad,
quizá el cine y el teatro popular –; pero, sea cual sea el lugar donde logremos
descubrirlas, nunca podremos sostener que se apliquen al grupo en general, a
menos que encontremos en otros lugares datos que también las confirmen”
(Bartlett: 1995:334).
Ao considerar o caráter construtivo da memória, Bartllet não deixa de lado seu rigor
metodológico, também não deixa de enfatizar uma série de elementos sócio-culturais que
un marco persistente en el que debe encajar toda evocación, e influye muy poderosamente
Vale destacar que esses elementos sócio-culturais, bem como as convenções sociais
não determinam de forma mecânica a memória, antes passam pelo crivo da percepção e
dos significados, ou seja, estas só exercem influência na memória na medida em que são
percebidas pelos indivíduos e tenham significado para eles. De modo que, recordamos dos
fatos que os grupos sociais e a sociedade, de alguma maneira, conferem algum valor:
Para Bartlett nada pode ser lembrado sem que antes tenha sido percebido, ou seja,
nada pode ser vivenciado como algo familiar sem que tenha sido apresentado ou
vivenciado de algum outro modo. Aqui nos parece interessante a distinção que ele faz dos
consciente; e “formar imagens” diz respeito ao que é imaginado, portanto é algo mais
fluido, já que pode ser alterado de distintas formas, bem como recombinar de modo a
formar estruturas que não correspondam a nenhuma que tenha sido presenciado de forma
“Deberíamos decir que una persona está recordando sólo cuando se halla
orientada de forma precisa hacia su pasado y es conciente de que intenta
rastrear algunos hechos que una vez se encontraron en su percepción
sensorial, pero que ya no lo están” (Bartlett, 1995:63).
Esta distinção permite relacionar memória e percepção sem cair no erro de reduzir
Ele trata de elucidar que somos capazes de recordar o que nos interessa, o que é
para nós parte de tarefas preferenciais, que tem algum sentido para nós, que tem uma
função social. Para que as determinações sociais exerçam influência sobre os indivíduos é
pela psicologia da memória: a tradição de Ebbinghaus, para se ter uma idéia de que, nas
Bartlett, em que apenas destacamos algumas premissas que sustentam o estudo da memória
68
enquanto fenômeno social, nos oferecendo pistas para se poder pensar a noção de memória
política.
serem considerados em nossa análise, pois permitem concatenar fatores que estão presentes
política.
um dos primeiros a estudar a memória coletiva, e que, com certeza, é leitura obrigatória
(1990) define a memória coletiva como um fenômeno social que deve ser compreendido
19
Originalmente suas obras foram publicadas em francês em 1925, Les Cuadres Sociaux de la Mémoire e,
em 1950, La mémoire colective. Utilizaremos as versões em castelhano e português de 2004 e 1990,
respectivamente.
69
elementos chaves para compreensão da memória coletiva dos quais depreendem algumas
estruturas coletivas que representam uma ou mais correntes de pensamento coletivo e que
servem de referência para a memória: “No existe posibilidad de memoria fuera de los
marcos utilizados por los hombres que viven en sociedad para fijar y recuperar sus
coletiva a partir dos grupos, enfocando a família, os grupos religiosos e as classes sociais.
Por trás desta atenção detalhada à memória destes grupos, encontramos uma
segunda premissa: a memória cumpre uma função para a identidade do grupo social,
ou seja, o grupo é condição necessária para a memória da mesma maneira que a memória é
coletiva reforça a importância destes quadros sociais já que, para ele, nossas lembranças
sobre um evento sempre serão coletivas, mesmo que somente nós estivemos envolvidos:
“Cuando el hombre cree encontrarse solo, cara a cara consigo mismo, otros hombres
surgen y, con ellos, los grupos de los cuales han desprendido (Halbwachs, 2004: 134).
Os grupos têm necessidade de reconstruir seu passado e o fazem a partir do que está
20
Les Cuadres Sociaux de la Mémoire foi recentemente publicada em castelhano com o título: “Los Marcos
sociales de la memória”.
70
além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a
“Los hombres que viven en sociedad usan palabras cuyo sentido comprenden:
esta es la condición del pensamiento colectivo. Así cada palabra
(comprendida), se acompaña de recuerdos, y no hay recuerdos a los que no
podamos hacer corresponder palabras. Hablamos de nuestros recuerdos antes
de evocarlos; es el lenguaje y es todo el sistema de convenciones sociales que
le son solidarias el que nos permite, en cada instante, reconstruir nuestro
pasado” (Halbwachs, 2004: 324).
que teve lugar na vida de nosso grupo e que considerávamos e consideramos no momento
1990:128).
suas lembranças. Esse tempo social ou psicológico acompanha a duração própria de cada
grupo e muda quando o grupo se transforma, “Não há um tempo universal e único, mas a
sociedade se decompõe em uma multiplicidade de grupos, nos quais cada um tem sua
passado aquilo que está vivo na consciência do grupo que a mantém, ou seja, a memória
Para que a nossa memória contribua com as dos outros na construção da memória
pessoas e das pessoas com o grupo. Só assim, a memória poderá ser reconhecida e
um sentimento comum ou porque já não experimentam mais, o que pode fazer com que a
Assim sendo, a memória funciona como um ponto de referência que nos permite
situar em meio à constante variação dos quadros sociais e da própria experiência coletiva
72
histórica. Um acontecimento provoca mudanças nas relações do grupo com o lugar - seja
Nesse sentido, fica claro que, para Halbwachs, a memória é um fenômeno que não
pertence a nenhum indivíduo em particular, uma vez que evoca a experiência de outros que
nos fazem olhar o evento de uma forma diferente. Isso significa que cada indivíduo
constrói a sua memória sobre um mesmo fato coletivo, o que mostra que a memória se
“(...) cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva e que este
ponto de vista muda conforme o lugar que ali ocupo e que este lugar mesmo muda
operária que ocorreu na época de ditadura no Brasil e elegemos, para entrevistas, três
grupos com diferentes vínculos com os autores da greve: netos – vínculo familiar;
Nesse estudo, pudemos reconhecer a influência dos “quadros sociais” a que se refere
memória coletiva: por um lado, o grupo aparece como referência da memória coletiva,
mesmo desativada - no bairro atuando como um estímulo para a memória. Observamos que
do ponto de vista dos grupos com os quais estão identificados social e politicamente. As
constatar que a identificação social funciona como um prisma para a memória coletiva, ou
seja, para cada grupo a reconstituição do evento é feita via prisma identificatório:
permite reafirmar, concordando com Halbwachs (1990), que é a partir dos grupos com os
grupo” (Halbwachs, 1990:28) e se utilizam, para isso, das mesmas noções comuns a seus
membros. Quando o indivíduo lembra um fato do passado, sua história se confunde com a
história do grupo, há uma identificação com o grupo que muitas vezes determina as formas
de comportamento.
Portanto, a memória coletiva que perpassa esses três diferentes grupos de distintas
orientações específicas que os grupos fornecem e pelos quais são conservados (Halbwachs,
74
2004). Nesta perspectiva, existe uma “memória grupal” que retém e reforça as lembranças,
objetos que marcam a vida do grupo, são lugares que contribuem para evocação da vida
Não obstante, como pudemos verificar em nossa pesquisa, estes lugares também
podem ser convertidos em símbolos por aquilo que é vivido pelos grupos. Por exemplo, a
Fábrica de Cimento – onde ocorreu a greve operária - permanece no bairro e é, ainda hoje,
O lugar onde está a Fábrica de Cimento, neste caso, fez com que o evento não fosse
esquecido e, pelos diferentes significados que foram atribuídos a ela, aparece como “(...)
resistiu ao tempo, aos grupos, a demolição. O lugar em si é sinal da existência das lutas
Se por um lado a memória coletiva tem como referência os grupos, sendo evocação
de pensamentos e preocupações ligadas à história pessoal de cada um, aos destinos de sua
família, as suas relações de amizade, por outro lado, o local da fábrica, como “lugar
simbólico”, aparece como um elemento novo, não abordado pela literatura e que pode ser
dominados.
aprisionada unicamente a estas em seu sentido restrito, pois ao considerar, como quadros
sociais a linguagem, o tempo e o espaço, ele enfatiza a influência do presente com toda a
que ela não é nem “reprodução”, nem pura “representação”. Ela se ancora nas
longo do tempo:
“Os grupos dos quais faço parte nas diversas épocas não são mais os mesmos.
Ora é do ponto de vista deles que considero o passado. É preciso, então, que à
medida que estou mais engajado nesses grupos e que participo mais
estritamente em sua memória, minhas lembranças se renovem e se completem”
(Halbwachs, 1990:74).
76
especial no seu livro póstumo “A memória coletiva”, que tem sido a nossa referência, de
modo que suas reflexões continuam servindo de base para psicólogos sociais, historiadores
numa linha mais culturalista, sociólogos e outros campos das ciências humanas.
pensamento dominante.
Vale ressaltar, que nas obras de Halbwachs esteve presente um acirrado debate com
psicologia e com o historiador Marc Bloch. Como aponta Santos (2003), a obra “Quadros
memória coletiva”, Halbwachs procura responder as críticas de Charles Bondel de que ele
2003).
sobre memória coletiva, seguem presentes nos debates atuais dentro da psicologia e entre
77
filosofia, demonstrando que o fenômeno da memória coletiva, para ser estudado em sua
Halbwachs, que é muito complexa em seus enfoques, mas quisemos indicar por onde
grande proveito para nosso estudo, em que pretendemos abordar questões referentes a
(1968) e Leontiev (1981), e nos Estados Unidos, o norte americano George Mead (1982)
que também foram e são contribuições importantes para a Psicologia Social mais orientada
para a dimensão social. Não nos escapam também os autores que vêm da tradição francesa
como o psiquiatra Pierre Janet (1928), e o antropólogo Evans-Pritchard (1977), este último
não tem o monopólio da Psicologia e o interesse pelos estudos que apontam para a
costumes e práticas sociais que vão muito além de conceber a lembrança como propriedade
nos parece importante mostrar outros autores mais contemporâneos que retomam a
memória como construção social como por exemplo Middleton e Edwards (1990) e Félix
1991, citado em Vazquez, 2001), Gergen (1982, 1989, 1994, citado em Vazquez, 2001) e
Tomas Ibañez (1989, 1990, 1994, citado em Vazquez, 2001), atualmente vem se dedicando
ao estudo da memória social dentro de uma perspectiva construcionista e em seu livro “La
social como um processo dinâmico e conflitual que está fortemente vinculado a cenários
Vázquez (2001) analisa a memória como processo e produto relacional, onde a linguagem
dominantes nos estudos sobre memória, que se atêm aos processos cognitivos ou à maneira
papel joga a relação nesta construção e o significado que tem dentro dos processos sociais.
O autor compreende a memória como uma obra sempre aberta que se constitui a
partir de elementos que ajudam a dar sentido e a construir, com materiais variados, um
discurso. Ele afirma que a memória não só compõe uma narração (um discurso) ou
estabelece um diálogo com o passado, mas está aberta a uma multiplicidade de versões.
Vázquez não deixa de apontar a relevância da memória social nos estudos dos
processos sociais, entendendo que a realidade social é uma construção conjunta dos seres
onde a memória social é um componente indissociável que incorpora boa parte dos
(Vázquez, 2001:25).
sociais está em seu caráter de processos que contribuem, definindo e articulando a ordem
social. “(…) Vivir en sociedad implica hacer memoria y hacer olvido” (Vázquez,
seja, como processo e produto dos significados compartilhados e construídos pela ação
Apoiado nas idéias de Ibáñez (1989), o autor procura fazer uma distinção entre o
radica “nas” pessoas e sim “entre” as pessoas, ou seja, por meio da “intersubjetividade”, no
Vale ressaltar que Vázquez (2001) faz um levantamento intenso dos estudos da
memória social e não deixa de mencionar os autores que ele considera relevantes nos
estudos sobre a memória, que enfatizam o caráter social da memória e que o ajudam a
fundamentar suas reflexões, como por exemplo: Bartlett (1995) e Halbwachs (1990, 2004);
Billig (1990) e Middleton e Edwards (1990). Entre outros, destaca autores como Mead
(1929, citado em Vázquez, 2001), Douglas (1986, citado em Vazquez, 2001); Ricoeur
(1986); Yerushalmi (1982, 1988, citado em Vazquez, 2001); Middleton e Edwards (1992)
e Shotter (1987, 1990, citado em Vazquez, 2001) que enfatizam que a memória responde
muito mais a interesses do presente do que do passado, que incluem também Halbwachs e
Bartlett. E ainda os autores como Billig, Condor, Edwards, Gane, Middleton e Radley
(1988, citados em Vázquez, 2001); Billig (1990); Douglas (1986) que destacam que a
ordem social veicula valores, normas e crenças que possibilitam ou inibem as memórias e
social.
Ao enfatizar o caráter social da memória, o autor faz uma forte crítica à psicologia
cognitiva, pois afirma que os cognitivistas têm se descuidado da função social que possui a
memória. Não obstante, ainda predominam os estudos de memória a partir dos processos
social, vem alimentando as discussões, por vezes polêmicas, dentro dessa área.
Para mostrar a flexibilidade da linguagem, num dos capítulos do livro “La Memoria como
acontecimentos vividos na sua infância na escola e afirma ser este um discurso mais
que faz alusão a experiências pessoais, mas que é mais objetivo, mais moderado e distante.
Ele se utiliza destes recursos de linguagem para mostrar que, ao fazermos memória,
social.
ato de recordar é, antes de mais nada uma ação que se realiza a partir de um processo de
Nesse sentido, por meio da memória não só se constrói o passado, como também se
criam novos cenários e novas condições para fazer memória e para empreender outras
ações. A memória concebida desta maneira está sempre aberta a novas interpretações,
presente e do futuro, podendo dar lugar a novas ações e projetos a partir da vinculação com
o imaginário social.
(Vázquez, 2001:130).
relacionado com cenários sócio-comunicativos, de modo que fazendo memória, através dos
espaço das relações humanas e da produção dos discursos, nesse sentido, reforça que o
“fazer memória” não é transpor o passado para o presente, e sim dotar de significado o
reprodução.
O estudo da memória não pára por aí; nas últimas décadas outros autores vêm
estudando o tema. O próprio Vázquez destaca a ampla gama de enfoques dos estudos sobre
(1995); os estudos, cujo enfoque são os processos cognitivos, que é a grande maioria:
Neisser (1982); Delclaux e Seoane (1982, citado em Vazquez, 2001); Cohen (1989, citado
em Vazquez, 2001); Lieury (1989, citado em Vazquez, 2001); Baddley (1990); Rui Vargas
(1991, 1994); Cano e Huici (1992, citado em Vazquez, 2001); Garzón (1993); Clark e
Stephenson (1995, citado em Vazquez, 2001); Schacter (1996, citado em Vazquez, 2001).
(1962, citado em Vazquez, 2001); Connerton (1989); Middleton e Edwards (1990); Billig
(1990); Shotter (1987; 1990); Férnandez Christlieb (1991, 1994, citado em Vazquez,
Psicologia, com suas tensões e “veladas relações de poder”, como afirma o próprio autor.
memória que se articulam com os referenciais teóricos expostos na primeira parte deste
capítulo – que em parte já iniciamos – tendo em vista desenvolver uma linha argumental
CAPÍTULO II
Memória Coletiva de Eventos Políticos
_________________________________________________________________________
(Pablo Milanes)
investigações sobre a memória que vem sendo realizada nas últimas décadas em diferentes
mostrar a convergência existente entre tradições bem distintas que vão desde a psicologia
experimental até as áreas das ciências sociais que se utilizam dos instrumentos da análise
abordam o trauma psicológico sofrido pelas vítimas dos regimes ditatoriais, especialmente
na Espanha e nos países do Cone Sul. Nesse sentido, teremos o cuidado de diferenciar os
estudos que enfocam a memória de eventos políticos, que não abordam o trauma
psicológico, daqueles estudos que se referem mais diretamente ao trauma, provocado pela
85
violência política, que atingiu grande número de pessoas, tanto nos países do Cone Sul -
como Argentina, Brasil, Chile, Uruguai, Paraguai – quanto em países como a Espanha, que
viveu uma guerra civil seguida da longa ditadura franquista e os países diretamente
Cabe ressaltar, como aponta Huyssen (2000), que desde os anos 80, vivemos uma
fatores, especialmente por eventos políticos marcantes como o fim das ditaduras na
do regime sul-africano do apartheid, bem como o crescente foco cultural nas histórias de
Embora o trauma político não seja o objeto de nosso trabalho, pois não trabalhamos
com as testemunhas que viveram diretamente o período da ditadura militar no Brasil, não
podemos deixar de apontar os trabalhos que versam sobre a memória a partir do trauma
político, visto que grande parte dos estudos sobre a memória enfatiza o trauma sofrido
experiência latino-americana.
como Espanha, Bélgica, Itália, Inglaterra, França e EUA. E, uma segunda parte, em que
daremos ênfase aos estudos sobre o trauma sofrido pelas testemunhas diretas destas
na América Latina.
86
Desta maneira, nos interessa, tanto os eventos que são analisados do ponto de vista
quanto os que denominamos “eventos traumáticos”, que são analisados do ponto de vista
do trauma que provocam e das ações de resistência contra a violência política dos governos
aqui, as pesquisas sobre memória realizadas na Europa, ressaltando que uma grande parte
produzidos pela Guerra Civil Espanhola e a repressão política exercida pela ditadura
proporcionada pelo apoio financeiro da CAPES21, por meio de seu programa PDEE22 e
com a colaboração do professor Dr. Amalio Blanco, contribuiu, de maneira especial, para o
acesso a uma vasta bibliografia espanhola e a um bom número de estudos realizadas por
21
CAPES – Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
22
PDEE - Programa de Doutorado no País com Estágio no Exterior.
87
Lupicinio Iñiguez, a cientista política Paloma Aguilar e o psicólogo chileno Darío Paez,
estudos sobre a memória realizados na Espanha, explicitando sobre o que versam e sobre
Guerra Civil Española”. Nesse estudo, a autora utilizou diferentes fontes escritas sobre o
franquismo. Entre elas, encontram-se uma coleção dos noticiários e documentos oficiais,
livros de textos sobre a história e formação política – utilizados nos diferentes níveis do
ensino obrigatório no período que ia do final da Guerra Civil até a morte de Franco – e
uma série de gráficos denominados No-Do, que contém indicações das porcentagens e
tempo dedicados às notícias sobre a Guerra Civil. Para aprofundar o estudo do período da
Espanhola (GCE) e, por meio dessas múltiplas fontes, compreender como foi transmitida
essas lembranças e qual a importância que tiveram nos inícios da política democrática.
vasta produção de material literário e cinematográfico sobre o tema da Guerra Civil, por
outro lado, a insistente difusão, por parte da imprensa, da idéia de que “os espanhóis não
têm memória”, dado que a memória coletiva traumática da Guerra Civil Espanhola,
segundo ela e outros autores, parecia ter sido esquecida (Aguilar, 1996). Além disso, a
autora afirma que houve, na Espanha, um pacto entre as elites para silenciar as vozes do
guerra. Em outras palavras, podemos dizer que houve um “consenso” forçado na Espanha.
Por essa razão, Aguilar procura responder em sua pesquisa: Por que a função da
lembrança da Guerra Civil na Espanha foi pacificadora? Por que prevaleceu a manutenção
da ordem pública e a paz social? Por que se adotou o consenso como forma de atuação
política? Para isto, se propõe a analisar que tipo de tratamento oficial se deu a este
Aguilar chama a atenção para o fato de que houve um tipo de socialização política
durante o regime franquista que instaurou um clima de medo nos espanhóis - como se a
democracia fosse instaurar o caos e a violência – o que explica a atitude dos espanhóis em
evitar, a qualquer custo, que os acontecimentos da guerra civil se repitam: “(...) solo un
recuerdo de la guerra civil del tipo que existía en Espanha debido, entre outros fatores, a
1996:57).
franquismo, contribuiu para explicar a atitude dos espanhóis nesse período, tendo em conta
89
os valores que o regime tentou inculcar, os instrumentos que foram utilizados e o grau de
nível de vida das pessoas (Aguilar, 1996), de modo que, houve uma clarividente
manipulação das lembranças. E para fazer essa análise a autora parte do princípio que o
franquismo
Por esta razão, Aguilar (1996) não deixa de analisar os inúmeros símbolos
unificação, dia da rebelião, dia do caudillho, dia dos caídos, etc). São elementos que
conforme propõe Pierre Nora (1984), mas, neste caso, servindo à manutenção da “memória
dos vencedores”. Esses símbolos franquistas são considerados pela autora como
uma sociedade.
Não nos restam dúvidas de que seu trabalho contribuiu e contribui para
23
Sobre “os lugares da memória” ver Pierre Nora (1984), autor francês e um dos primeiros a dedicar-se aos
estudos dos lugares da memória em que destaca os lugares enquanto espaço material onde se dá as
lembranças, as comemorações, os monumentos, os museus, as festas e os símbolos e os “lugares”
90
Cabe ressaltar que, embora a autora tivesse como ponto de partida a existência de uma
“memória traumática” que “forçou” uma atitude pacificadora, dada a manipulação por
parte do poder ditatorial, situamos seu trabalho nesta seção de “Eventos políticos” pela
desse período.
muitos estudos, encontramos, sim, uma enorme gama de livros publicados por
historiadores, com especial destaque para aqueles que se dedicam ao estudo da “História da
Espanha”. Dentre elas, vale destacar a obra de Nicolás Sartorius e Javier Alfaya (2002),
intitulada “La memoria insumisa: sobre la dictadura de Franco”, na qual fazem uma
Embora não seja um estudo que se pretenda histórico, os autores acabam por fazer uma
constituídos pelos sujeitos coletivos, responsáveis pela transmissão da memória: a família, a escola, a igreja,
o Estado.
91
mostrar às novas gerações, o que foi a ditadura de Franco, com uma séria preocupação de
Como diz José Maria Vargas24 (1997), o estudo da memória significa muitas coisas
para muita gente. Por esta razão, encontramos vários autores que desenvolvem estudos da
memória coletiva e centram sua preocupação em questões mais teóricas, e muitos que se
utilizam das pesquisas de campo para desenvolver suas teorias ou sustentar teorias já
existentes. Dentre os autores que se voltam mais para questões teóricas, encontramos
Alberto Rosa, Guglielmo Bellelli e David Bakhurst (2000), que estão interessados nas
identidade nacional, afirmando que memória, história, nação e identidade são palavras que
estão presentes no discurso público cotidiano, como conceitos explicativos dos conflitos
sociais.
psicológico e social, esses autores buscam uma articulação entre a ciência cognitiva
interesses que atuam como fundamento, tanto para legitimação contínua do Estado, quanto
24
José Maria Ruiz-Vargas é pesquisador e professor titular de psicologia da memória da Universidad
Autónoma de Madrid e tem se dedicado ao estudo experimental da memória, preocupando-se em
compreender como funciona memória, a lembrança e o esquecimento. Nesta perspectiva , tem desenvolvido
já alguns anos debates encontros e pesquisas sobre a memória humana especialmente dentro da psicologia
cognitiva.
92
Cabe ressaltar, que as formas de ação, que se dão na sociedade nacional com seus
aparecer como fato natural e constitutivo do ser individual e coletivo. Nesse sentido, a
identidade nacional não fica restrita à dimensão cognitiva, mas invade os âmbitos
emocionais e morais “(...) la identidad nacional se muestra tanto en el plano de lo que uno
siente que es, como en el de lo que debe y quiere ser.” (Rosa, Bellelli & Bakhurst,
2000:21).
comum, entre elas a história (científica e transmitida no ensino obrigatório), estão entre os
componentes da lembrança coletiva que fazem parte das memórias sociais. E, ao fazer
parte das representações culturais do grupo cultural constituem, elas mesmas, uma das
bases da identidade (Rosa, Bellelli & Bakhurst, 2000). Portanto, os autores apontam para o
podendo ser uma das causas da dificuldade de se conseguir mudanças nas mentalidades
coletivas.
Para eles, “(…) la identidad es imposible sin la memoria, pero también sin alguna
forma de conciencia” (Rosa, Bellelli & Bakhurst, 2000:43). Segundo os autores, fazemos
que se refere tanto a um “eu permanente”, que perdura através do tempo, quanto à
que na memória inter-atua passado, presente e futuro. Nosso presente é o que herdamos do
passado para construir o futuro com os recursos que o próprio passado nos legou. A
memória, assim “(...) torna acessível o passado através de processos de lembranças que
são o resultado da ativação das marcas de experiências passadas a serviço das ações
atuais” (Rosa, Bellelli & Bakhurst (2000:44). Além das marcas da experiência passada, os
93
de anotações, poemas, histórias, que são utilizados como formas de manter a memória, de
manter as experiências para muito além do limitado tempo da vida humana. Estes artefatos
fazem com que um indivíduo acesse a experiência acumulada pelo grupo, tornando
Não obstante, por mais artefatos que se possa criar para recuperar o passado, como
sustentam muitos autores, nem tudo se recupera. Temos que considerar que “(…) solo se
recuerda aquello que sirve para algo en el curso de las acciones presentes” (Rosa, Bellelli
& Bakhurst, 2000:44). Dessa forma, tão importante quanto à lembrança é o esquecimento,
que poderíamos considerar como a não ativação dos rastros do passado. Segundo os
autores, quando não se ativa uma memória durante certo tempo, torna-se mais difícil ativá-
Rosa, Bellelli e Bakhurst (2000) seguem os mesmos passos de Bartlett, que dizia
que não existem memórias específicas armazenadas na mente e no cérebro, mas somente
traços deixados por experiências (esquemas) que se transformam cada vez que se ativam
para produzir uma experiência concreta no curso de uma ação. Nesse sentido, as memórias
25
Para mais detalhes ver o texto de Radley, A. (1992). “Artefactos, memoria y sentidos del pasado”.
94
não são fixas, são recriações do passado que produzem um sentido de continuidade, um
sentimento de ser uma entidade com passado e com futuro. Desse modo
chamam história (Rosa, Bellelli & Bakhurst, 2000). De qualquer maneira, ambas se
apresentam como produto, como uma produção lingüística de um ator, seja ele individual
ou coletivo, podendo ser submetida, como afirmam os autores, à análise de discurso. Não
fica muito claro se Rosa, Bellelli e Bakhurst fazem distinção entre o conceito de memória
conceito desenvolvido por Halbwachs (1990), de que toda memória humana tem uma
espaço e tempo).
contêm informações relativas ao eu. Muitas dessas memórias são compartilhadas com o
autobiografias do período da ditadura militar, muitas são uma denúncia ao que ocorreu no
regime). Algumas dessas memórias recebem uma atenção pública especial, conservando-se
26
Desenvolvemos este conceito no primeiro capítulo.
95
por meio de rituais, representações gráficas, estátuas, edifícios etc., outras, entretanto, são
totalmente esquecidas.
social da memória. A autora procura esclarecer alguns aspectos básicos das pesquisas
atuais sobre memória coletiva, assinalando que os dois pontos principais, no estudo dos
memória.
De acordo com Garzón (1998), existem formas de abordar a memória: uma mais
radical, que entende como memória coletiva a atividade mental realizada por um sujeito
outra, que define memória coletiva em função do seu conteúdo (o que é armazenado pela
memória) – que seria a memória de fatos coletivos, em que o ator tanto pode ser um,
quanto vários sujeitos independentes ou isolados. Garzón afirma que, mesmo as pesquisas
sobre a lembrança de fatos sociais como uma guerra, uma catástrofe, um acontecimento
político relevante - que se entendem como memória coletiva - às vezes, não deixam de ser
Como a maioria dos estudiosos sobre memória, Garzón compartilha a idéia de que
Blondel (1964), admite que a memória, em seu aspecto mais pessoal, tem sua origem no
desloca do marco ao quadro e não o inverso: “Por exemplo, para recordar a data de um
(marco) e a partir dele se reconstrói o momento de ocorrência do fato político com mais
Valencia e Páez (1999) que analisam o efeito geracional nas lembranças de fatos
diferentes cortes geracionais, a saber: menos de 25 anos; 25-29 anos; 30-35; 36-40; 41-45;
Guerra Civil e a transição, chegando à conclusão de que, de uma forma geral, pelo menos
50% de todos os cortes geracionais mencionavam a Guerra Civil como um dos fatos
históricos do século XX. Os autores supõem que a grande produção de obras de artes,
filmes, novelas, séries, inclusive as comemorações que retratam esse período, permitem
que estes eventos sejam ativamente lembrados pelas diferentes gerações. Contudo, existe
no período de sua adolescência e juventude, período este que os autores consideram como
o período de formação da identidade. Isto quer dizer que aqueles que eram adolescentes e
jovens, naquele período, lembram muito mais que as gerações anteriores e posteriores.
Schuman, Belli e Bischoping (1998), por James W. Pennebaker e Becky Basanick (1998) e
Na segunda pesquisa, José Valencia e Darío Páez (1999), a partir dos processos de
memória coletiva, que são considerados por meio da comunicação (falar), da reavaliação
re-atualizam o passado. Eles analisaram o efeito provocado por uma novela chamada
provocou muita polêmica na sociedade espanhola, que se mobilizou contra a novela para
evento foram mais intensas nos lugares onde a realização da novela reavivou a polêmica
sobre o que ocorreu durante a Guerra Civil, levando-os a concluir que “(...) las polémicas
refuerzante de los procesos interpersonales e intra personales del recuerdo del passado
colectivo” (Valencia & Páez, 1999:28-29). Eles concluíram também, que existe uma
associação linear entre a idade e as proximidades com o fato histórico (Guerra e pós-guerra
anos, e a geração que viveu os inícios do franquismo, entre 53-63 anos, mostraram menor
geração que foi socializada na democracia, ou seja, os que hoje têm menos de 30 anos,
além de falar mais, procuravam saber o significado da polêmica pública. Sendo assim, os
(1999), num estudo sobre a identidade nacional, ideologia, política e memória coletiva,
analisam a relação entre identidade social (nacional e étnica)27 e a Guerra Civil Espanhola
mesmas estruturas de pesquisa dos autores Valencia e Paez (1999): uma primeira pergunta
aberta para analisar uma das variáveis que Herranz e Basabe (1999) denominam
“recuerdo libre de hechos históricos” que versa sobre o que as pessoas falam sobre os
afetaram as suas famílias. Em seus resultados, os autores mostram que mais de 60% dos
(espanhola); a identidade étnica (basca), por sua vez, se vincula aos acontecimentos
políticos relevantes como a transição política. No que diz respeito à ideologia política, os
27
Para estes autores existe uma relação estreita entre identidade social e memória coletiva. Sendo que a
memória coletiva é entendida como um atributo da identidade social, como estratégia de construção da
identidade ou como um processo que reflete a identificação étnica. A identidade social “se refleja en um
recuerdo selectivo de lo positivo, un olvido de los hechos negativos y una reconstrucción positiva del pasado
del grupo étnico o nacional” (Herranz & Basabe, 1999:33). A identidade nacional e étnica têm em comum os
seguintes atributos: um nome próprio comum que define a comunidade; um território histórico ou um lugar
de origem; uma cultura compartilhada ou pública como a religião, os costumes e a linguagem e uma memória
coletiva que corresponde a mitos e memória de um passado comum. Além dos atributos comuns, a identidade
nacional diz respeito a uma série de direitos e obrigações comuns; a identidade étnica, por sua vez, se define
por um sentido de solidariedade e um mito de ascendência comum e ressalta uma representação de
continuidade e homogeneidade de uma comunidade, através da língua, cultura e raça (Herranz & Basabe,
1999:32).
28
A Espanha está dividida em comunidades autônomas – que possuem idiomas próprios como País Basco,
cuja língua é o Euskeda; Catalunia, cujo idioma é o catalão; Andaluzia e Madri, que falam o castelhano, com
diferenças na pronúncia e Galicia, que fala o galego. Nesse sentido, há que se considerar a presença de um
forte nacionalismo étnico entre os espanhóis do País Basco, e a ausência de nacionalismo étnico entre os
espanhóis de outras localidades como Madri, Sevilha e Salamanca. A questão étnica é muito forte e tem
chamado muito a atenção para inúmeros estudos sobre identidade nacional.
29
Esta distinção entre identidade étnica (basca) e identidade nacional (espanhola) são os próprios autores
Herranz e Basabe (1999) que fazem.
99
sujeitos, com orientação mais de esquerda, lembram muito mais os eventos da ditadura de
Franco que os sujeitos com orientação de direita (Herranz & Basabe, 1999).
étnica) está associada tanto à lembrança dos fatos históricos quanto aos processos de
comunicação (falar, pensar ou evitar falar). E, nesse sentido, a identificação com o grupo
se associa às lembranças dos usos, costumes e valores dos grupos. Por essa razão, os
autores concluem que, o grupo basco, lembra mais dos acontecimentos de sofrimento, as
lutas e conquistas, acontecimentos estes que são esquecidos pelo grupo espanhol.
Dos estudos vistos até agora, grande parte deles pertencem à tradição cognitivista
essencialmente, quantitativas.
alguns chamam, construcionismo social, que concebem a memória como construção social.
Félix Vázquez, que como dissemos no capítulo anterior, faz fortes críticas a esta
“Acostumbra ser el/la analista quien define el status factual y cognitivo de las
30
O sócio-construcionismo ou construcionismo social (Hoffman, 1996) defende que as idéias, os conceitos e
as lembranças surgem do intercambio social e são mediatizados pela linguagem. Todo conhecimento é
resultado de uma construção coletiva e as práticas sociais constroem a realidade. O sócio-construcionismo
tem como antecedentes, na vertente sociológica, o interacionismo simbólico de Mead (1982); a
etnometodologia de Garfinkel (1967) e Heritage (1984) e o trabalho de Berger e Luckman (1973) “A
construção Social da realidade” e na vertente psicológica, uma das principais referências tem sido os
trabalhos de Gergen (1973; 1990; 1996), seguido dos trabalhos Armistead (1974) e mais recentemente
Bruner (1990) e os estudos dos psicólogos que, na linha de um construcionismo prático, desenvolvem a
psicologia discursiva Billig (1987); Edwards (1997); Edwards e Potter, 1992; Parker, 1992; Potter, 1998;
Potter e Wetherel,1987).
100
contrapõe-se a esta postura ao defender que a memória é uma prática relacional concebida
como processo e produto social e, como tal, não é expressão de estados mentais e, sim, de
práticas discursivas como maneira de falar sobre diferentes temas mediante os quais
em que fazem uma descrição geral lexicométrica, a partir do número de vezes que as
palavras aparecem, neste caso, utilizaram as que apareciam mais de 20 vezes; b) uma
polarizadores; c) e uma classificação das formas léxicas que permitiu extrair categorias
que configuram as diversas opções da Guerra Civil Espanhola (Iñiguez, Valencia &
Vázquez , 1998).
Não muito diferente das conclusões dos autores com tendência mais cognitivista,
Vázquez, Iñiguez e Valencia (1998) identificaram várias narrativas diferentes que dizem
respeito à pertença ao grupo social que influencia a forma de construção da memória e que
reforçam as teses de Halbwachs (1990), de que, por mais individual que seja nossas
lembranças, estas sempre estão relacionadas com aquilo que compartilhamos com outras
coletivos sociais constroem diferentes memórias sociais que moldam e são moldadas por
suas subjetividades.
também, dos psicólogos do Reino Unido como Michael Billig (1992), David Middleton e
Derek Edwards (1992), que estão preocupados com a forma como a lembrança e o
Assim como Vázquez, a memória coletiva é estudada por eles numa perspectiva
relação entre a ideologia e a família britânica. Seu trabalho chama a atenção para
períodos repressivos, já que existe uma forte manipulação por parte do poder instituído,
Bruno Mazzara, Giovanna Leone e Paolo Jedlowisk (2000), os quais estão mais voltados
coletiva e que trazem à luz as polêmicas que giram em torno deste conceito. Mazzara
construtivistas31.
estudo da memória coletiva e defende a necessidade de uma relação mais flexível entre as
31
Entendemos que o autor utiliza o termo sócio-construtivista como sinônimo de sócio-construcionista, já
que vinculam o termo à psicologia discursiva, indicando os mesmos autores que apontamos como sócio-
construcionistas (Edwards e Potter, 1992; Parker, 1992; Potter e Wetherel,1987). Ver nota de rodapé nº 30.
Cabe ressaltar que, o termo socioconstrutivismo é muito utilizado no Brasil pelos que trabalham com o
ensino-aprendizagem e, apesar de contemplar muitas questões divergentes, normalmente, se entende o
socioconstrutivismo como uma teoria que vem sendo desenvolvida a partir dos estudos de Vygotski e seus
seguidores. A grosso modo, podemos dizer que o socioconstrutivismo enfatiza a construção do conhecimento
numa visão social, histórica e cultural, destacando o papel da linguagem como uma poderosa "ferramenta
cultural". Ao nos referirmos às idéias deste autor, Mazzara, manteremos o mesmo termo utilizado por ele
(sócio-construtivista) na perspectiva dos autores sócio-construcionistas.
103
entre as mesmas. Ele ressalta que, dentro desse debate, encontramos claramente duas
posições: uma que enfatiza a oposição entre as duas perspectivas, considerando-as como
nos métodos de investigação; a segunda, que considera que cada um dos pontos de vistas
o ato de lembrar é tratado como uma manifestação externa de um processo interno que se
denomina memória. Esta é pensada como o fenômeno a ser estudado que constitui a
expressam sobremaneira uma relação entre pontos de vistas antagônicos (Mazzara, 2000).
2000).
formalizados e padronizados do modelo clássico estão muito distantes da vida real e, por
essa razão, os resultados produzidos pelos experimentalistas não são possíveis de serem
elas, o autor questiona o radicalismo das duas vertentes afirmando que nem os cognitivistas
aqueles que procuraram estudar a memória em seu contexto real, como Ulric Neisser
negociação de significados.
Nessa perspectiva, concordam outros autores como Leone (2000), que também
da validade ou não das técnicas que ambos utilizam. Esta autora afirma que existe uma
perspectiva teórica, traz questões referentes à sociologia da memória e afirma que não
dos aspectos sociais dos processos mnêmicos e destaca que, a partir do marco teórico
1991);
com o problema da definição de memória coletiva. Segundo o autor, num plano geral, a
que cada sociedade tende, necessariamente, a conservar seu próprio patrimônio cultural e a
transmití-lo a seus membros de geração a geração. Assim, o patrimônio cultural que cada
Portanto, “la memoria colectiva tiende así a ser entendida por los sociólogos como el
Contudo, o autor afirma que o que torna uma memória propriamente coletiva não é
o caráter comum dos seus conteúdos, mas o fato de serem elaborados em comum, ou seja,
O autor afirma ainda que nem toda representação do passado é memória coletiva.
relevante, que estão à disposição da sociedade, entretanto não são memória coletiva, são
uma memória da sociedade, uma memória social, um conjunto virtual de retalhos que se
tornam atuais somente quando um sujeito concreto é movido por seus próprios interesses
Numa sociedade constituída por uma pluralidade de grupos, não é possível falar de
uma única memória coletiva, pois cada grupo elabora aquela representação do passado que
mais se adapta a seus interesses. Além disso, outro aspecto importante apontado é o papel
relevante que exerce os meios de comunicação social, que funcionam como agências de
108
difusão de conhecimento de segunda mão sobre o passado que vem da estrutura de uma
memória pública.
Curci e Leone (2000), que abordam a questão das memórias flashs como lembranças
coletivas, fazendo uma crítica aos estudos de memórias flashs que, em geral, se ocupam de
que produzem nas pessoas, ou seja, sempre privilegiando os aspectos individuais. Estes
autores criticam o estudo de Brown e Kulik (1977) sobre as lembranças que norte-
Belelli, Curci e Leone (2000) fazem uma lista dos estudos sobre memória flash de
acontecimentos públicos ocorridos nos anos 70 e 80, dos quais apontamos o assassinato de
Kennedy, estudado por Brown e Kulik (1977) e Winograd e Killinger (1983); o atentado
ocorrida em 1986, estudada por Bohannon (1988), McCloskey, Wible e Cohen (1988) e
também por Neisser e Harsh. Merecem destaque também os estudos sobre o assassinato do
primeiro ministro sueco Olof Palme e a demissão da primeira ministra Margareth Tacher,
que foi estudada por Wright Gaskell e O´Muircheartaigh. Tradicionalmente, grande parte
dimensões mais coletivas como, planos e expectativas pessoais, grupos e pertenças sociais
vividos pessoalmente.
Para mostrar o aspecto coletivo, que deve ser incluído no estudo das memórias
flash, os autores apontam o trabalho das belgas Catrin Finkenauer, Lydia Gisle e Olívia
Luminet (2000), que analisam a morte inesperada do rei Balduíno (que será descrita a
seguir), cujo episódio emocionou fortemente a população belga, já que ele teve um papel
estruturais, que permite examinar as relações causais entre os diversos fatores que influem
Nessa mesma linha dos estudos sobre memórias flash, encontram-se os trabalhos
das belgas Finkenauer, Gisle e Luminet (2000), que analisam como se criam e se mantém
as memórias flash em torno de um acontecimento que abala toda nação: a morte do rei
Balduíno. Elas apresentam o modelo teórico de Brown e Kulik (1977), que afirmam que
Depois desse efeito surpresa causado pela novidade do evento, é necessário avaliar as
são equiparados à ativação emocional, ou seja, nesse modelo, se admite que, quanto maior
Repassar para outras pessoas, conversar (contar e recontar) sobre o evento faz com que
haja uma nova elaboração das memórias flashs, de modo que as pessoas vão construindo
rei Balduino, as autoras ampliam o modelo, inicialmente proposto por Brown e Kulik
informações sobre esse fato, a ponto de todos os canais de televisão e rádio substituírem
suas programações rotineiras por histórias acerca da morte do rei, da família real e do
importante papel do rei na política belga. As autoras concordam com Brown e Kulik que
este evento foi extremamente novo para a população belga, entretanto procuram combinar
emocional (...) y la emocionalidade tiene uma influencia directa sobre las MFs” (Belelli,
Curci e Leone, 2000:171). Essa ativação emocional, por sua vez, afeta indiretamente as
memórias flashs, na medida em que o evento é repassado para outros, ou seja, quanto
meios de comunicação.
memória flash não é a memória coletiva, ou seja, ela é um aspecto da memória que
impacto na sociedade.
111
questão geracional e discutem o efeito geracional, que como bem aponta Aguilar (1996),
está intimamente ligado ao estudo da memória coletiva. A questão geracional tem sido
grande parte delas tem sido preocupação dos norte-americanos como Schuman e Scott
sobre diferentes cortes geracionais. A distinção que Schuman faz sobre corte geracional e
geração nos parecem bem interessante para os que estudam a memória das novas gerações.
Embora utilizem os dois termos como mais ou menos equivalentes, eles possuem
“La cohorte se centra en rangos de edad que están trazadas con un grado de
precisión bastante claro en términos de fecha de nacimiento, pero no nos
restringimos (...) a la unidad temporal de estructura de parentesco o afinidad.
La generación se refiere de manera más vaga y general a agrupamientos en
términos de años de nacimiento, pero también sugiere el moldeamiento de
creencias por un periodo histórico significativo” (Schuman, Belli &
Bischoping, 1992).
Schuman e Scott (1989), muito estimulados pelas idéias de Mannheim (1952) – que
foi uma das mais importantes contribuições para o estudo das gerações como fenômeno
social – mostraram que as pessoas tendem a atribuir maior importância aos acontecimentos
veremos a seguir, semelhante conclusão também foi apontada nos estudos de Pennebaker.
112
culturais que ocorreram ao longo dos últimos sessenta anos, procurando compreender as
razões pelas quais estes eventos podem ou não ter diferentes impactos sobre os cortes
geracionais.
se tinham ouvido faltar a respeito destes eventos e personalidades e a que se referiam. Eles
utilizaram também doze categorias33 de idade, sendo que, para combinar a relação
Não é nossa intenção descrever toda a análise dos autores, visto que estes estudam,
conclusões mais gerais a que chegaram e que mais nos interessam para o desenvolvimento
simples e corresponde à “versão linear simples”. Essa versão sustenta que é menos
provável que as pessoas tenham um conhecimento preciso dos fatos ou eventos que
aconteceram antes do seu nascimento sobre os quais tenham ouvido falar, por meio de seus
pais e avós. Sendo assim, o conhecimento do passado diminui de forma gradual entre os
cortes geracionais, de modo que os fatos que aconteceram há cinqüenta ou sessenta anos
atrás são mais bem conhecidos pelas pessoas que viveram aquele momento, enquanto que
são, cada vez menos conhecidos, pelas gerações posteriores. Dessa forma, o conhecimento
32
Os nomes e fatos apresentados foram: WPA, Holocausto, Plano Marshall, Joe McCarthy, Rosa Parks,
Ofensiva Tet, A Aldeia de Mylai, Woodstock, Watergate, Jonh Dean, Christa McAuliffe.
33
As categorias de idade foram: 18-23, 24-29, 30-34, 35-39, 40-44, 45-49, 50-54, 55-59, 60-64, 65-69, 70-
74, 75-79.
34
De 8-11, 12, 13-15, 16.
35
Para mais detalhes sobre essas análises ver Schuman, Belli e Bischoping (1992). “La base generacional del
conocimiento histórico”.
113
afirmação se pauta no conhecimento que os sujeitos manifestaram sobre o WPA, que foi
muito alto entre aqueles que estavam no final de sua adolescência e muito baixo entre os
que são jovens atualmente. Entretanto, é importante esclarecer que o fato de depender
exclusivamente da idade tem a ver com a natureza do fato e do grau em que se recria o
evento para as novas gerações. Sendo assim, os eventos que não foram vividos pelas novas
gerações, mas são repetidamente lembrados e recriados de diferentes maneiras, por meio
de filmes, documentários, fotos etc, como foi o caso do Holocausto nessa pesquisa, são
que os anos da adolescência e início da fase adulta é o período em que os fatos têm maior
impacto sobre o conhecimento do evento, do que para as pessoas que já passaram dessa
faixa etária e daquelas que não haviam nascido. Isso apareceu com respeito à guerra do
também do evento cultural Woodstock, ocorrido no mesmo período. Para explicar por que
as pessoas que tinham por volta dos trinta anos, na época do evento, não o recordaram,
Schuman, Belli e Bischoping (1992) afirmam que é porque as pessoas não tinham interesse
por aqueles acontecimentos. Como eles dizem, “(...) não estavam psicologicamente ou
E, por fim, o terceiro importante resultado a que chegaram os autores é que não
Jonh Dean. Nesse sentido, Schuman, Belli e Bischoping (1992), chamam a atenção para o
fato de que nem todos os eventos têm efeitos duradouros sobre adolescentes e jovens, já
que os dados mostraram que tanto adolescentes quanto aqueles que já haviam passado
114
sobre o caso.
Crow (2000), que procuram explicar por que, quando e como alguns eventos políticos têm
importância social a longo prazo e outros não. Para responder a esse questionamento, os
autores analisam alguns eventos que tiveram impacto nos Estados Unidos a saber: a
1998, 2000)36.
evento como as circunstâncias pessoais do momento em que ouviram e/ou viram a notícia.
E, com base em Neisser (1982), assinalam que as memórias flashs não se estabelecem no
36
Pennebaker desenvolve essas pesquisas em co-autoria com Basanick (Pennebaker & Basanick, 1998).
Creacción y mantenimiento de las memórias coletivas e em co-autoria com Crow (Pennebaker & Crow,
2000). Pennebaker & Crow (2000). Memorias colectivas: la Evolución y la Durabilidad de la Historia.
115
fato a outros, nas suas memórias flash, as pessoas podem incluir-se no evento (Pennebaker
Basanick (1998) afirmam que apenas duas delas tiveram impactos psicológicos na
população americana, por provocarem uma mudança na visão dos americanos sobre si
mesmos. Eles admitem que a população americana reconhece que os EUA se tornou o
principal líder econômico e militar mundial a partir da Segunda Guerra e pós Vietnam e
passa a questionar o papel dos EUA no mundo. Segundo os autores, é necessário que haja
que as pessoas não costumam recordar eventos ou objetos que não tenham impacto pessoal
Basanick (1998), é fundamental que apresentem algumas características básicas, uma vez
116
que, é mais provável que os indivíduos recordem mais objetos ou eventos que: a) sejam
Os autores defendem que, quanto mais se fala e pensa sobre os eventos, mais estes
se consolidam na memória coletiva. Falar dos eventos pode ser uma forma importante de
tradições, como bem aponta Paul Connerton (1989), são formas eficazes de garantir o
caráter comum das memórias coletivas sociais e contribuem, inclusive, para aumentar a
a) Os eventos políticos que produzem mudanças significativas a longo prazo na vida das
modelar as percepções fazendo com que surja uma maneira comum de interpretá-lo. Além
sobre eles. Por exemplo, a repressão política que não permite que se fale abertamente sobre
presidente dos EUA, quando lhe foi diagnosticado um câncer. Nos dias que sucederam a
mama. Por meio de um outro estudo, eles também observaram que, após a morte de
eram alvos de críticas nos meios de comunicação. Além disso, notaram que depois de
f) Por fim, há uma tendência das pessoas em comemorar o passado em ciclos de vinte ou
trinta anos, construindo monumentos, fazendo filmes e escrevendo livros sobre eventos
políticos nacionais.
encontramos o trabalho de Schudson (1992), que estuda a memória coletiva sobre o caso
Watergate. Esse autor utiliza uma série de fontes documentais como jornais, programas de
televisão, filmes, literatura e livros de textos para analisar em que medida a memória sobre
Watergate influencia o pensamento das pessoas sobre temas da atualidade. Dessa forma,
procura analisar o impacto que teve tal evento sobre a mentalidade do povo norte
modo que a memória social ou coletiva diz respeito a maneira como “(...) los recuerdos
37
Os autores apontam uma série de dados que explicitam esta afirmação.
118
grupales, institucionales y culturales del pasado modelan las acciones presentes de los
Para esse autor, as sociedades constroem seu passado não sob sua própria vontade,
pois existem obstáculos que impedem uma livre reconstrução do passado. O primeiro
obstáculo, apontado por ele, é a existência de uma memória viva sobre os acontecimentos
que se pretende manipular, sempre quando existir uma geração que os presenciou
passado costumam conviver num mesmo período histórico, sobretudo nas sociedades
historiadores na hora de manipular a história, visto que terão que submeter a critérios de
rigor científico; por fim, o quarto obstáculo, que diz respeito ao fato de que o passado
traumático deixa marcas de tal calibre que não podem ser facilmente ocultadas por
políticos e historiadores. O autor salienta ainda que, na medida em que o caso Watergate
foi perdendo relevância política entre os que vivenciaram a época, o conflito sobre a
memória social é tratada pelos soviéticos Vygotski, Voloshinov e Ilyenkov, que concebem
formas de atividade coletiva representam uma forma de memória social essencial para a
como por exemplo, a memória autobiográfica, ela sempre será uma expressão social em
um meio social (uma linguagem mediada por mecanismos narrativos específicos), que é
dirigida a outros e submetida as suas críticas. Deste modo, contribui para formar um
119
quadro que é sustentado coletivamente e cujo significado depende desse extenso quadro. A
palavra escrita, a fotografia, o cinema, o vídeo, o ritual e o memorial, como meios sociais,
Fundamentado nas idéias dos soviéticos de que toda memória, mesmo em seus
aspectos mais íntimos, está imbuída do social, Bakhurst procurou estabelecer uma relação
vividas. Este hecho es central para entendernos a nosotros mismos” (Bakhurst, 2000: 93).
psicologia discursiva, entretanto ele defende a idéia de um “eu” concreto, que não é um
produto das narrativas – como defendem os construcionistas radicais. Ele diz: “hay algo
que yo soy y que hay una verdad en mi vida que es en parte algo que se me manifiesta y en
parte algo que hay que descubrir” (Bakhurst, 2000:104). Nesse sentido, trata de aproximar
Não são poucos os autores que têm estudado a influência do trauma psicológico
transtornam, ainda hoje, a vida de muitas pessoas, sejam elas vítimas diretas ou familiares.
produção da psicologia latino-americana entre 1956 e 1986, apontando que os estudos que
se referem ao trauma político seguem duas linhas principais de investigação: uma advinda,
repressão e da tortura sobre os indivíduos, grupos e sociedade, como é o caso das pesquisas
realizadas por Lira e Castillo (1991); Lira e Weinstein (1984); Becker e Calderón (1990;
1993) entre outros; outra refere-se aos estudos desenvolvidos por Martín-Baró, que analisa
ideologia e à alienação.
especialmente no que se refere à relação entre “Trauma político e memória coletiva”, além
das pesquisas que vem realizando, em parceria com outros autores, organizou um número
exclusivamente a esse tema. Nesse número, ele reuniu diversas pesquisas realizadas, tanto
Na França, autores como Pollack (1989), Jodelet (1993) e Ricouer (2003) são
Nos estudos desenvolvidos por Páez e Basabe (1993), os autores discorrem sobre os
são, para as vítimas e seus familiares, então, uma forma de reconhecer o evento
publicamente, mostrando que foi injusto e que não deve se repetir (ver também Jodelet,
1992). No entanto, para os responsáveis pelos atos de violência política, evitar a lembrança
acordo com Páez e Basabe (1993), adota as seguintes fases: num primeiro momento,
por parte “dos vencedores” quanto por parte “dos vencidos”. Em seguida, ocorre a
a causa perdida e, por fim, se produz uma lembrança idealizada, em que se valoriza
positivamente a atuação do grupo (Paez & Basabe, 1993:29). Assim, existe uma tendência
“(…) parece haber una paradoja: para controlar los recuerdos intrusivos y
para evitar el rechazo social, es necesario resaltar lo positivo de lo ocurrido y
comunicarlo de forma desdramatizada. Esto sirve para defender la identidad
122
Para esses autores, o processo de reconstrução do passado, tanto das vítimas quanto
dos agressores expressam o caráter conflitivo da memória coletiva, visto que os fatos
coletiva ou apresentam uma versão distorcida dos fatos. Esse caráter conflitivo da memória
trabalhos de Michael Pollack (1989), Denise Jodelet (1993) e Paul Ricouer (2003).
No estudo de Pollack (1989), ele aponta que o silêncio sobre o passado dos
coletiva da nação:
Para Pollack, parte deste silêncio diz respeito às razões políticas e parte está
diretamente relacionada às questões pessoais dos sobreviventes, que preferem poupar seus
filhos de crescerem na lembrança das suas feridas. Não obstante, passados quarenta anos,
militante. Sendo ela, a memória dos que foram recrutados à força, é também uma memória
subterrânea, que assume seu trabalho de subversão no silêncio tendo em vista eliminar o
estigma da vergonha. Pollack defende que diante do trauma sofrido e depois de um longo
silêncio (muitas vezes interpretado como esquecimento) sobre o passado, podem irromper
discursos oficiais. São memórias que esperam o momento oportuno para invadir o espaço
público: “(...) essas memórias subterrâneas que prosseguem seu trabalho de subversão no
(que possui um caráter destruidor, uniformizador e opressor), segundo este autor, são
transmitidas pela família e pelas redes de sociabilidade afetiva e/ou política. São memórias
proibidas (no caso dos crimes stalinistas), indizíveis (no caso dos deportados) ou
vergonhosas (no caso dos recrutados à força) que são cuidadosamente guardadas em
(Pollack, 1989).
apontado por Denise Jodelet (1993), que analisa as memórias coletivas dos grupos
mesmo tempo, permitiu que as pessoas, que não viveram diretamente o holocausto
A autora explicita que este processo destaca, por um lado, o “conflito entre
representa os povos colonizados e, por outro lado, “a memória da repressão”, que aparece
novas gerações.
Para Jodelet (1993), a memória pode ser estudada a partir de várias perspectivas:
“del presente hacia el pasado”, que entende que o presente intervém no passado por meio
“del pasado hacia el presente”, que se centra em como o passado retorna ao presente em
esquecimentos, etc.; e ainda “los choques entre el pasado y el presente”, que enfocam o
conflito entre a tradição e o novo, aqueles aspectos do passado que impedem o progresso
do presente, “(...) el olvido y ocultación del passado, de los que son testigos ciertos
1993:54).
diferentes versões do passado, que podem ser utilizadas pelos grupos para diferentes
propósitos políticos, seja como defesa, seja como acusação. A partir daí, Jodelet ressalta,
que diante dos eventos traumáticos, é necessário o dever da memória como uma exigência
esquecimento é uma falta política, que equivale a um crime social (Jodelet, 1993).
relação entre memória e consciência política, objeto de nossa tese, e muito embora não
aprofunde essa relação, ela faz considerações importantes na qual a memória possibilita
um posicionamento político que nos remete a uma ação coletiva de apuração e reparação
lembrança é
Por trás desse dever de memória, está presente a idéia de uma consciência ética e a
social. Sobre essa questão, Paul Ricouer (2003) dedica um capítulo, em seu livro “La
imposta, celebrada e comemorada e que, para ele, é uma forma de impor o esquecimento,
esquecimento. E é exatamente isso que Ricouer (2003) aponta, ao se referir aos processos
se, por via legal, o esquecimento. Para o autor, os processos de anistia equivalem a “(…)
questão dos direitos humanos que estão vinculados aos estudos e disputas pela memória
processos políticos violentos da questão da memória coletiva, já que o trauma que deixa
marcas indeléveis na vida das pessoas ou dos grupos sociais, só pode ser manifestado por
Nesta seção nos interessa apontar os estudos que discutem o trauma proveniente de
conflitos sócio-políticos e que dizem respeito à luta política, particularmente acerca das
nas afirmações de Martín-Baró que define trauma psicossocial enfatizando “el caráter
sido bastante desenvolvida, especialmente por uma parcela significativa de autores latino-
americanos nas últimas décadas. Desta feita, por todo o continente latino-americano, não
faltam estudos sobre a repressão das ditaduras militares que assolaram grande parte do
memória coletiva.
no que se refere aos efeitos psicossociais da repressão política. Num estudo coordenado
por Elizabeth Lira e Maria Isabel Castillo (1991), realizado entre 1988 e 1991, por meio do
violações dos direitos humanos, que se constituiu como ameaça permanente ao longo do
período militar no Chile (caracterizado como terrorismo de Estado) e que produziu uma
resposta de medo39 crônico, que atingia tanto as pessoas afetadas diretamente pela
resposta de medo individual e coletiva são parte de processos psicológicos e políticos que
38
Existem outros estudos sobre a repressão chilena que são apontados na seção Memórias da Repressão
Política no Cone Sul, que optamos por desenvolver à parte, por se tratar de pesquisas realizadas através do
Programa “Memoria Colectiva y Represión”, desenvolvido pelo “Painel Regional da América Latina
(RAP)” da Social Science Research Concil, que reúne pesquisas de todos os países do Cone Sul como
Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai.
129
estão implicados dialeticamente. Nesse sentido, Lira e Castillo (1991) procuram integrar as
perspectivas psicológicas e políticas, analisando o fenômeno por meio das relações sociais,
Desta maneira, as autoras desenvolvem, numa mesma pesquisa, quatro estudos que
chileno: os conflitos sociais e trabalhistas que tiveram como desfechos a morte, desde o
pesquisas de Opinião Pública (realizadas entre 1986 e 1989), documentos sobre a realidade
nacional e estudos sobre as campanhas de terror nos meios de comunicação, tendo em vista
Por fim, o quarto estudo, que se refere ao trabalho terapêutico41 grupal. Foram
religiosos, donas de casa, lideranças sociais e políticas que eram contra o regime político.
39
O medo é entendido, por Lira e Castillo (1991), como um efeito da permanente ameaça política na
sociedade chilena num contexto político determinado.
40
No Plebiscito, realizado em 1988, mais da metade dos chilenos decidiram que não queriam Pinochet como
presidente da República. Cabe ressaltar, que a ditadura termina, formalmente, depois deste plebiscito.
Posteriormente, se convoca eleições e, em 1989, Patricio Aylwin é eleito, tomando posse em março de 1990.
No entanto, o novo presidente não teve como destituir do cargo Pinochet, que continuou como Comandante-
chefe do Exército (Lira, 1993).
41
Um estudo mais detalhado sobre o trabalho terapêutico grupal pode ser encontrado em Lira e Weinstein
(1984), num livro que reúne as experiências de um coletivo de trabalho de saúde mental, intitulado
“Psicoterapia y represión política”.
130
Muitos que participaram destes grupos haviam sofrido ameaças e algumas das
organizações das quais participavam haviam sido fortemente reprimidas. O objetivo desse
estudo foi registrar o impacto do medo e fazer uma intervenção no sentido de modificar
política, o que, segundo Lira e Castillo (1991), possibilitou “(...) elaborar y transformar su
A relação que existe entre o trauma político e a memória social foi, posteriormente,
desenvolvida por Lira (1993) na qual a autora afirma que a memória social se define como
o significado atribuído aos eventos traumáticos do passado e seus efeitos nas relações
Dessa maneira, essa memória está sempre aberta a novos significados. Cabe
esquecimento, ou seja, pode ser impossível lembrar aquilo que foi traumático, assim como
das pessoas. Lembrar o passado traumático é como revivê-lo, é como abrir as feridas ainda
não cicatrizadas. A autora aponta ainda a necessidade de se falar coletivamente dos eventos
deseo de olvidar y dar vuelta a la página de unos y otros y seguir viviendo” (Lira,
1993:113).
pela repressão no Chile, Lira e Castillo (1998) afirmam que “El recuerdo es una
reconstrução não diz respeito somente às experiências privadas, mas também estão
diretamente relacionadas à história social, não afeta somente as vítimas, mas toda a
sociedade chilena. Enquanto existir a impunidade dos responsáveis pelos crimes cometidos
contextos históricos, convive com o antagonismo entre duas versões do passado: uma que
a lei e a ordem, que criou as bases constitucionais para a democracia moderna e que
permitiu uma pacífica transição e a outra versão, a das vítimas e dos grupos de direitos
ocorridas na sociedade chilena. Segundo Lira e Castillo (1998), embora os dados das
pesquisas de opinião demonstrem que a maior parte da população chilena acha necessário
público deste sofrimento. “Sin el reconocimiento social, los traumas llegan a ser
solamente sufrimiento privado y no pueden ser confrontados” (Lira & Castillo, 1998:253).
Além disso, destacam o papel das “arpilleristas”42 que contavam suas histórias de
dor e sofrimento por meio das arpilleras (tapetes bordados). Esposas e mães de mortos e
Chile dividido e do sofrimento cotidiano dos pobres: a fome, a tortura, a família ferida.
fueron una forma de resistencia política durante la dictadura militar” (Lira & Castillo,
1998, 256).
Por meio da arte de seus tapetes, as arpilleristas, além de representar o horror que as
42
Os tapetes coloridos são uma arte tradicional no Chile. As primeiras arpilleristas eram grupos politizados
de mães que procuravam seus filhos e esposos que foram presos e, posteriormente, desaparecidos.
Atualmente, as arpilleras políticas já não existem mais, somente as que confeccionam para fins turísticos
(Lira & Castillo, 1998).
133
“Toda la vida social queda marcada por este terrorismo político, cuyos
propósitos es la internalización del miedo. En consecuencia tenemos una
población aterrorizada, que ha internalizado el miedo y que no tiene casi otra
alternativa que conformarse con las opciones políticas que le han sido
impuestas” (Martín-Baró, 2003:264-265)43.
civil que provoca uma verdadeira guerra psicológica. Para o autor, “en la medida en que el
las personas a un orden opresivo que los enajena y deshumaniza, en esa medida el proceso
1985:408).
43
Vários textos de Martín-Baró foram reunidos, por iniciativa de Amalio Blanco e Luis de la Corte, num
único livro intitulado “Poder, Ideologia y Violencia”, publicado postumamente em 2003, pelo Editorial
Trotta na Espanha.
134
Páez (1999) sobre a memória coletiva e o genocídio político na Guatemala. Esses autores
guatemaltecos, vítimas de um genocídio nos anos 80. O estudo44 foi realizado nos anos de
1996 a 1997, dez anos depois do massacre – ocorrido no período que vai de 1981 a 1985 -
rituais. E destacam que ser vítima se relaciona com maior reação emocional, com mais
política. É curioso observar que, neste processo podemos ver, claramente, como dimensões
44
Este estudo fez parte de um projeto de Direitos Humanos do Arcebispado da Guatemala (ODHAG), que
tinha o objetivo de “Recuperar a memória histórica”.
135
Nesse sentido, a relação entre memória e consciência política está marcada por um
processo dinâmico e dialético, visto que mantém uma relação de interdependência que,
dependendo de cada sujeito ou coletivo, pode-se tornar mais ou menos pro-ativa ou reativa,
transformadora ou cristalizada.
direção de Elizabeth Jelin e Carlos Ivan Degregori - iniciado em 2001 até o momento -
Regional da América Latina (RAP)”, da Social Science Research Concil. Esse programa
Uruguai, que apontaremos nas linhas que seguem. Em tais estudos, os autores aprofundam
referir aos arquivos da repressão que, segundo a autora, são espaços que se constituem para
fazer memória e construir memórias, visto que tornam visível à opinião pública os debates,
memória, o arquivo:
45
O “Projeto Brasil Nunca Mais” foi um projeto coordenado pela arquidiocese de São Paulo que organizou
um arquivo próprio sobre as violações dos Direitos Humanos no Brasil reunindo cópias dos processos
políticos que tramitaram na Justiça Militar brasileira entre abril de 1964 e março de 1979. Cabe ressaltar que
essas cópias foram feitas, clandestinamente, durante vários anos pelos advogados dos presos políticos e
exilados e, posteriormente classificadas e organizadas, resultando em doze volumes, sendo que, em São
Paulo, uma cópia encontra-se na Comissão Justiça e Paz e, no Rio de Janeiro, uma cópia encontra-se sob o
poder do Grupo Tortura Nunca Mais (GTMN-RJ) e uma outra na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A
síntese deste trabalho foi publicada no livro Brasil Nunca Mais editado pela Vozes e é considerada por
Coimbra (2004) uma das mais completas radiografias da repressão exercida pelo Regime Militar no Brasil. É
importante esclarecer que o livro Brasil Nunca Mais não é do GTNM-RJ. O referido grupo foi criado em
1985 por iniciativa de ex-presos políticos que viveram situações de tortura durante o regime militar e por
familiares de mortos e desaparecidos políticos e tornou-se, através das lutas em defesa dos direitos humanos
de que tem participado e desenvolvido, uma referência importante no cenário nacional. O Grupo tem atuação
forte na luta contra as violações dos direitos humanos hoje, pelo esclarecimento das circunstâncias de morte e
desaparecimento de militantes políticos, pelo resgate da memória histórica e pelo afastamento imediato dos
cargos públicos das pessoas envolvidas com a tortura. Posteriormente foram criados outros GTNMs em
outros estados brasileiros como Bahia, São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Pernambuco.
137
do passado para manter e transmitir a memória coletiva, faz um estudo sobre os arquivos
(CONADEP); as causas judiciais que tramitaram na Câmara Federal entre 1984 e 1987; as
vale ressaltar que, todos estes estudos mostram a importância da abertura e debate público
dos arquivos estatais e dos arquivos organizados pelas entidades de direitos humanos e
destacam as lutas sociais e políticas pelo acesso público aos arquivos considerados
repressão servirão de chave para a memória das vítimas – na medida em que contribui para
direitos humanos; no plano jurídico são provas concretas dos atos violentos; no plano da
pesquisa histórica, são importantes fontes documentais e por fim, podem proporcionar
46
A Operação Condor, instalada nos anos 70, foi uma operação conjunta feita pelos serviços de informações
dos regimes militares do Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai, sob a liderança do Chile.
47
Este arquivo foi criado pela Igreja Católica e depois transferido para a Fundação de Documentação e
Arquivo da Vicaria de Solidariedade.
138
vinculadas às ditaduras militares no Cone Sul, são abordadas por Azun Candina Polomer
(2002), que analisa aquelas que se referem ao golpe militar no Chile, em 11 de setembro de
Stroessner no Paraguai são analisados por Myrian Gonzalez (2002b); a data de 14 de abril
de 1972, a chamada guerra dos caídos no Uruguai, é analisada por Aldo Marchesi (2002) e
Ludmila da Silva Catela (2002). São datas “in-felices”48, que marcaram os processos
versões e interpretações do passado que são, ainda nos dias de hoje, objetos de muitas
disputas e conflitos.
públicos como porta de entrada para analisar as lutas pelas memórias e os sentidos sociais
processos políticos que marcaram os espaços onde ocorreram a violência estatal nas
homenajeen a sus vítimas” (Jelin & Langland, 2003:2). Nesse sentido, as autoras
48
Este termo é utilizado no título do livro, publicado pelo Programa “Memórias da Repressão”, que reúne
estes estudos sobre as comemorações em vários países do Cone Sul. É uma maneira de demonstrar, já no
título, as disputas que existem entre diferentes versões dessas comemorações – felizes para uns, infelizes para
outros.
139
lugar carregado de sentidos e sentimentos para os sujeitos que viveram essa violência, ou
seja, os processos políticos de elaboração das “marcas territoriais” que fazem o nexo entre
o passado e o presente. Por mais que os monumentos tradicionais tentem ocultar os fatos e
promover o esquecimento, por meio de seus heróis nacionais cristalizados numa única
presentes.
tempo. A questão dos novos sentidos que vão sendo construídos em torno dos monumentos
é também apontada por Langland (2003) em seu estudo sobre o Edifício da União Nacional
dos Estudantes (UNE) no Rio de Janeiro e por Michael Lazzara (2003) sobre o Parque de
regime militar, principalmente por ter sido invadido e incendiado no momento do golpe
militar em 1º de abril de 1964. Entre os anos de 1964 até 1978 se desenvolveram ali muitas
período.
locais, incluindo a sua dimensão estética. Nesse sentido, a autora afirma que este
metade dos anos oitenta, tornando-se canalizador das lutas que antes se concentravam nos
comitês pró-Anistia. Mais do que remeter à lembrança daqueles que foram vítimas da
140
ditadura, Brito enfatiza que o nome Tortura Nunca Mais atribuído a esse monumento
significa:
espaço de luta.
Lazzara (2003), por sua vez, analisando o valor simbólico que se atribui ao Parque
de La Paz, destaca a estreita relação entre lugar, subjetividade e narração, já que sujeitos
analisado por Patrícia Tappatá de Valdez (2003) que discorre sobre os processos de debate
evidencia a importância dos arquivos, das comemorações, dos monumentos e das marcas
territoriais como “veículos da memória”, que trazem à luz as lutas políticas pela memória,
documentação elaborada pela historiografia e pelas ciências sociais, visto que a temática
produzidos durante o exílio de seus autores – que discorrem sobre suas experiências
procuram fazer a mediação entre o singular e o universal para explicar o passado, a partir
Gabeira e Syrkis resgatam e reconstroem a memória deste período e procuram, por meio
dos seus relatos, sensibilizar o leitor para a gravidade da situação. Syrkis (1980),
participante ativo da luta armada, rememora as denúncias das torturas sofridas pelos
atrocidades praticadas durante a ditadura militar, bem como a luta pelos ideais de justiça. O
livro de Betto (1982) é um denso relato sobre os acontecimentos vividos pelo autor, em
cuja obra ele revela a participação dos dominicanos durante o período de acirramento do
142
Freitas (1981) faz um relato dos fatos que testemunha, denunciando a opressão
vivida nos cárceres durante a atuação militar. Seu relato descreve o cotidiano vivido na
convivência com os presos políticos e comuns e a terrível experiência das torturas da qual
Segundo Lucileide Cardoso (1993), esses autores são memorialistas que se opõem
reportagem da história que nos foi censurada durante a atuação do regime militar no Brasil.
São memórias que, além de relatarem as cenas de prisões, expressam a resistência contra o
(1993), como base em onze livros de memórias autobiográficas acerca do período, procura
Se, por um lado encontramos publicações que são memórias da repressão e que são
verdadeiras denúncias contra o regime militar e a violação dos direitos humanos, por outro
lado, não faltaram trabalhos, também autobiográficos, como aponta Cardoso (1993), que
são memórias que defendem o regime, o autoritarismo e o poder, como por exemplo, os de
Falcão (1989) e Abreu (1979), que são ideólogos do regime militar. Falcão (1989) destaca
subversão.
Ustra (1987) e Lobo50 (1989), por sua vez, têm como questão central, em seus
hierarquia militar. O relato de Ustra (1987) consiste numa ardorosa defesa do combate à
subversão bem como numa tentativa de provar, por meio de seu testemunho que nunca
esteve envolvido com os mecanismos de tortura, pois estes não existiram. Já Lobo (1989)
reconhece a existência real das práticas de tortura, mas se isenta de qualquer tipo de
envolvimento na aplicação das técnicas de tortura. O autor legitima a reação militar frente
por seus autores. São trajetórias individuais que revelam um posicionamento político: uma
reflitam as contradições vividas pela sociedade brasileira, essas são autobiografias que não
gozavam de algum reconhecimento público e/ou com acesso para publicar suas
49
Colocamos entre aspas “revolução de 1964”, porque é a forma pela qual estes autores, partidários do
regime militar, se referem ao golpe militar de 1964 e também porque é uma forma muito comum das pessoas
se referirem a este período. É também uma forma irônica de falar em revolução já que não teve nenhuma
característica revolucionária.
50
Amilcar Lobo era médico psiquiatra e foi um dos torturadores que, nos anos 70, atuava no DOI-CODI/RJ.
O Grupo Tortura Nunca, em 1987, ganhou o processo de cassação do registro profissional do médico,
conforme “Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos: Resgatando a Memória Brasileira” (p.8).
144
história por meio da cultura, não encontramos estudos sobre a memória coletiva popular
(se assim podemos chamar), que expressem as memórias dos segmentos populares, que
Naquela ocasião, a Social Science Research Concil (SSRC) estava iniciando seu Programa
de pesquisa, com jovens pesquisadores de diferentes áreas das ciências humanas, sobre a
Memória da Repressão Política no Cone Sul que, conforme vimos, incluem pesquisas
científicas realizadas, no Brasil. Sendo assim, a partir de 2001, passamos a ter a nossa
disposição, por meio da publicação da coleção Memórias de la repressión, boa parte dessas
pesquisas.
memória, que são fundamentais para a construção da memória coletiva das novas gerações,
mas que estão mais voltadas à análise dos arquivos da repressão do DOPS do Rio de
Janeiro e dos arquivos do Projeto Brasil Nunca Mais; as comemorações do Golpe Militar
União Nacional dos Estudantes (UNE), no Rio de Janeiro e do monumento “Tortura Nunca
Mais”, em Recife.
Nesse sentido, não enfocam as memórias construídas por meio das narrativas e
discursos de sujeitos que não viveram o período da repressão no Brasil. De modo que estes
estudos, pelo menos por enquanto, não têm a pretensão de analisar os impactos da memória
da repressão no comportamento político das novas gerações, nem tampouco discorrer sobre
(1995). Embora não seja o objetivo da autora estudar a memória da repressão, ela nos
violência política, apontando alguns elementos que podem explicar o esquecimento, visto
Jacoby denomina amnésia social, assinalando que o passado esquecido, apagado, ocultado
Assim, a lembrança pode ser entendida como uma forma de resistência aos
psicanalistas como Caniato e Jacoby, mas de sociólogos, como é o caso de Irene Cardoso
aponta o silêncio imposto pelo terrorismo de Estado, afirmando que houve “uma estratégia
fundamentais para se interpretar os acontecimentos de 68, uma vez que, por meio da
interdição do passado:
acordo com Cardoso, torna difícil a própria interpretação dos acontecimentos de 68 e exige
subjetividades.
Essa preocupação com as subjetividades produzidas pelo terror político foi também
desenvolvida pela psicóloga Cecília Coimbra (1995), por meio de um estudo – que
pesquisam a memória da repressão no Brasil. Nessa obra, a autora faz uma retrospectiva
de algumas práticas psicoterapêuticas - “práticas psi”, como ela mesma denomina – que
foram desenvolvidas nos anos 70, procurando analisar os modelos e subjetividades que tais
regime, atentando para o fato de que o período em que mais se torturou no Brasil (1969-
e levando-a a um torpor social. Além disso, a utilização da tortura como prática comum e
oficial dos aparelhos repressivos, segundo a autora, cumpre a função social de produzir
a ordem social que está sendo produzida, fortalecida e imposta” (Coimbra, 1995:22).
Embora a autora não tenha a pretensão de fazer um estudo da memória histórica, como ela
mesma afirma, seu trabalho aponta para a reconstrução de uma memória coletiva de
(...) Não pretendo fazer a reconstrução de uma memória histórica, mas de uma
‘outra’, sempre ocultada, sempre impedida de aparecer, sempre estigmatizada.
Com isso em realidade proponho a desconstrução de uma história conhecida
como ‘oficial’, instituída, fazendo surgir daí uma ‘outra’ memória, uma
‘outra’ história” (Coimbra, 1995: XIV).
Uma obra mais recente que merece destaque é o livro Clínica e Política:
subjetividade e violação dos Direitos Humanos organizado por Rauter, Passos e Benevides
(2002) que reúne trabalhos escritos pela equipe Clínico-grupal do Grupo Tortura Nunca
Mais do Rio de Janeiro e de alguns autores que discutem temáticas pertinentes à violência
política. É um trabalho pioneiro que procura fazer a interface entre a clínica e a política
década, do trabalho clínico deste grupo com os afetados pela violência do Estado. Para nós
Estado, a relação entre clínica e política no que tange à violação dos direitos humanos e, ao
campo da psicologia política, que tem como epicentro a reflexão sobre o comportamento
americano, em particular na sociedade brasileira, visto que não se pode separar o estudo da
memória coletiva da repressão do seu caráter político e ideológico. Desta forma, em nossa
repressão por parte dos que estão predispostos a agir contra os mecanismos repressivos.
Assim, podemos falar de uma memória política fazendo uma leitura crítica do
ditadura e repressão é, pois, discutir as relações de poder, as questões que dizem respeito
efetivos, que necessitam ampliar a sua capacidade de compreensão do mundo para nele
poder viver e intervir politicamente. Dessa forma, desafiando-nos a - como afirma Lê Goff
(1992) - “trabalhar para que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a
CAPÍTULO III
Da ditadura à democracia: conhecendo
a história para compreender a memória
_________________________________________________________________________
Num tempo
Página infeliz da nossa história
Passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações
Dormia
A nossa pátria mãe tão distraída
Sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações
próprio período da ditadura militar no Brasil sobre o qual faremos uma breve história e
caracterização, apontando aspectos que são comuns a outras ditaduras militares e também
democracia, visto que nossos sujeitos de pesquisa, nasceram e/ou vivenciaram esse período
51
Este é um trecho de uma canção de Francis Hime e Chico Buarque que faz referência ao golpe militar de
1964 como "Página infeliz da nossa história”.
151
Ambos os contextos são significativos para nossa análise, uma vez que a memória
dissemos no início – dentro dos grandes dilemas políticos a que se confrontam os povos
A Ditadura Militar no Brasil foi instaurada por meio de um golpe militar que
Não podemos deixar de assinalar que os anos que antecederam o Golpe Militar de
reformas de base – bandeira de luta do então presidente João Goulart. Neste período, o
movimento estudantil tinha uma intensa atuação política tendo na UNE (União Nacional
dos Estudantes) sua principal entidade representativa. Havia, portanto, uma polarização da
das esquerdas pelas reformas de base e, do outro, as elites econômicas tradicionais, grupos
empresariais, direita política patrocinada pelo capital estrangeiro, grande parte das classes
médias e até mesmo parcelas dos setores populares, que queriam “salvar” o Brasil da
Goulart e intervirem violentamente com o golpe militar de 1964 que instaura no Brasil um
governo ditatorial que compreende um período que vai de 1964 a 1985. Foram vinte e um
poder por meio de eleições indiretas, na qual o presidente era eleito pelo Colégio Eleitoral
Essa seqüência de governos militares teve, segundo Sandoval (1994b), três fases: a
primeira fase que se dá entre 1964 a 1968, abrangendo os governos de Castelo Branco e
Costa e Silva; uma segunda fase, entre 1969 a 1974, que compreende o governo do general
Emílio Garrastazu Médici, caracterizado por uma rigorosa repressão política e uma
acelerada industrialização; e uma terceira fase, entre 1974 a 1985, caracterizada por um
período de abertura política, que compreende os governos de Ernesto Geisel e João Batista
Logo após o golpe uma junta militar toma o poder e elege para presidente da
República o General Castelo Branco, que governa de 1964 a 1967. Embora esse general
declarasse defender a democracia contra o avanço comunista, inicia seu governo com uma
seu governo, para tentar demonstrar tolerância e também solapar a articulação da oposição,
Democrático Brasileiro), considerado partido de oposição. Foi também imposta uma nova
regime militar.
trabalhadores em todo o país. Haja vista que, em 1968, explodiram as greves operárias em
Édson Luis foi morto no confronto com os policiais provocando um protesto organizado
pela UNE (União Nacional dos Estudantes) que levou cerca de cem mil pessoas às ruas em
passeata contra o regime; em várias partes do país ocorreram muitos confrontos; em São
Paulo, cerca de novecentos estudantes vindos de diferentes regiões do país, foram presos
doutrina fascista. Essa doutrina, apregoada pelos militares da Escola Superior de Guerra
(ESG), não se limitava à defesa do país face a uma suposta “agressão comunista”, mas se
referia, como nos aponta Alves (1984) ao “inimigo interno”, ou seja, garantir a Segurança
intelectuais e religiosos.
defender a luta armada. A guerrilha urbana, formada por jovens idealistas de esquerda
implacavelmente.
Emílio Garrastazu Médici. É a fase mais dura e repressiva do regime militar, na qual as
perseguições políticas se tornaram mais violentas, motivo pelo qual, o período de seu
52
O Ato Institucional era um importante instrumento legal de repressão e controle social que foi utilizado
pelos militares para legislar e subtrair direitos constitucionais dos cidadãos brasileiros. Durante o período dos
155
Durante esse governo a repressão à luta armada cresceu instaurando uma severa
política de censura à imprensa, sendo proibidos livros, peças de teatro, filmes, músicas e
se, por todo Brasil, os centros de tortura do regime, ligados ao DOI-CODI (Destacamento
centro de investigação e repressão do governo militar. Com a criação desses órgãos oficiais
reprimida pelas forças militares e acaba enfraquecida e liquidada. Mesmo com a derrota
das guerrilhas, o governo continuou usando seu aparato repressivo que sofisticava cada vez
atraindo muitos investimentos externos para projetos de grande porte no setor industrial,
governos ditatoriais foram instituídos cinco Atos Constitucionais, dos quais o mais rigoroso e feroz foi o AI-
5.
53
A região do Araguaia está localizada no atual Estado do Tocantins, desmembrado do então Estado de
Goiás e instituído como Estado a partir da Constituição Federal de 1988.
156
vertiginoso, em função dos empréstimos estrangeiros, levou a uma dívida externa de mais
Essa situação se agrava com a crise mundial do petróleo, em 1973, que quebrou a
economia provocando um impacto no governo militar que já não contava com total apoio
movimentos sociais, que se fortaleciam na luta contra a ditadura militar, e das denúncias
contra os atos repressivos feitas no exterior, promete uma distensão gradativa do regime
ditatorial ou, como ele mesmo afirmava, uma “abertura, lenta, gradual e segura”. Além
econômico” que estava com seus dias contados. Inicia-se a terceira fase da ditadura com a
abertura política.
manteve o pleito eleitoral tendo, inclusive durante o período, a vitória da oposição. Nas
oposição, conquistou mais de 50% dos votos para o Senado, e quase 50% para a Câmara
dos Deputados ganhando, também as eleições para prefeito na maioria das grandes cidades.
157
Apesar deste período caracterizar-se pela abertura política, a linha dura resiste à
nos documentos oficiais como suicidas54, o que posteriormente, foi provado ser uma farsa.
Essas mortes levaram Geisel a afastar os militares da linha dura, que atuavam nos
censura à imprensa.
do governo perdia forças, em abril de 1977, Geisel faz uma “manobra” no Congresso e o
substituir Geisel e prosseguir com o projeto de abertura política. Figueiredo aprovou a Lei
de Anistia que libertava os condenados por crime político e permitia a volta dos políticos,
pressão dos movimentos sociais, as penas severas, impostas no auge da repressão, foram
reduzidas nos tribunais e muitos exilados políticos puderam voltar ao Brasil. Havia uma
mobilização, desde 1978, para que a anistia fosse ampla, geral e irrestrita, entretanto, a lei
54
As mortes dos opositores políticos eram divulgadas, oficialmente, como sendo “suicídio”, tiroteio ou
atropelamentos.
158
passou a ser PDS (Partido da Democratização Social), o MDB passou a ser PMDB (Partido
Trabalhadores (PT) - que foi o primeiro partido organizado por núcleos de base ligados aos
movimentos populares - e que, desde o princípio, teve como líder nacional Luís Inácio
Todas estas medidas criavam uma idéia de aparente democracia, uma vez que essa
o país à “volta à democracia”, sem disputa, sem luta, sem revolução, ou seja, mantendo as
Fato é que esta estratégia foi amplamente apoiada pela classe média e por aqueles
que defendiam o regime. Nesse sentido, a abertura política, como bem assinalava
burguesia. Não fosse essa abertura lenta, gradual e segura, a supremacia militar estaria
seriamente comprometida já que, como aponta o autor, se abriria espaço para as classes
Contudo, a linha dura que se opunha ao processo de abertura, não deixou de atuar e
Brasil (OAB). O episódio mais grave foi uma bomba que explodiu durante um show no
sindicais não eram bem vistos pelos órgãos oficiais e a repressão a esses movimentos ainda
fazia parte das ações do governo federal, visto que o processo de abertura foi altamente
dos movimentos sociais contra a ditadura e da situação econômica que se agravava com a
aceitem ou não, o fim da ditadura foi caracterizado pela desmoralização dos militares em
termos econômicos, pois estes levaram o país a atravessar uma das mais forte recessão,
entregando o governo aos civis, em 1985, com os índices de inflação anual superior a
200%, e com uma escandalosa dívida externa. Só para se ter uma idéia, a dívida externa55,
segundo fonte do Banco Central do Brasil, passou de US$ 3,3 bilhões para US$ 102
bilhões, entre 1964 e 1984, ou seja, a dívida cresceu cerca de 3900% em 20 anos, o que
campanha pelas eleições diretas para presidente. O deputado federal Dante de Oliveira
55
A dívida externa brasileira durante o regime militar (Fonte: Banco Central do Brasil)
1964: US$ 3,3 bilhões
1969: US$ 4,4 bilhões
1973: US$ 13,8 bilhões (Pres. E.G. Médici)
1978: US$ 52,2 bilhões (Pres. E. Geisel)
1984: US$ 102,0 bilhões (Pres. J.B.Figueiredo)
160
elabora uma emenda pró-diretas para ser votada no Congresso Nacional. Em 1984,
aumenta a pressão popular para que os deputados votem a favor dessa emenda
constitucional e ocorre uma grande mobilização popular na campanha pelas Diretas Já,
tradicional que fazia oposição ao regime militar, mas que era considerado confiável pelas
forças armadas. Tancredo Neves (PMDB), derrota o candidato Paulo Maluf (PDS) que era
pelo PMDB e pela Frente Liberal, que era uma dissidência do PDS. Essa eleição marca o
a eleição de presidentes civis que, somente a partir de 1989, passam a ser eleitos pelo voto
direto. Tancredo Neves nem chegou a tomar posse, pois adoeceu vindo a falecer em abril
de 1985. Em seu lugar, toma posse seu vice, José Sarney, que dá início ao período
avançada no que se refere aos direitos sociais, do ponto de vista econômico ela manteve
Embora a política da Nova República não tenha rompido com a política do período
militar, visto que o país continuou tutelado pelas Forças Armadas e aberto ao capital
Assim sendo, seu governo foi marcado por muitas denúncias de corrupção, por
muitos protestos e manifestações populares, por uma onda de greves56 e pela atuação
Em 1989, após quase trinta anos, finalmente o povo brasileiro pôde eleger, por voto
Fernando Collor de Melo que assumiu o poder em 1990. Cabe ressaltar que se atribui a
eleição de Collor a manipulação dos meios de comunicação de massa, já que ele não era
56
Segundo Sandoval (1994b), “a atividade grevista começa a subir por volta do final do último governo
militar; conhece então seus aumentos mais expressivos no final do governo civil do presidente Sarney,
quando ocorreram 3.164 em 1989, em comparação com 144 em 1980. Não é preciso dizer que um dos
fatores subjacentes à atividade grevista aumentada pode ser atribuída ao processo de redemocratização da
Nova República, quando certamente houve maior tolerância com respeito ao protesto dos trabalhadores que
nos anos de governo militar” (p. 161).
57
O novo sindicalismo surge como uma alternativa ao “modelo autoritário” enfatizado pelos governos
ditatoriais do regime militar. Para Sader (1988) o novo sindicalismo tinha a pretensão de ser independente do
Estado e dos partidos políticos. Segundo Santana (1998), a categoria “novo sindicalismo “foi sendo cunhada
na junção entre o movimento social e a reflexão acadêmica. Ao mesmo tempo em que se gestavam as ações
dos novos atores, que entravam em cena rasgando o pano de fundo criado pela ditadura militar e
disputavam um espaço no interior do campo político e sindical da esquerda brasileira” (p.6) [grifo do
autor].
162
militar.
Collor de Mello foi afastado do governo, dois anos depois, com um inédito
forte mobilização popular em que se destacava como novidade o movimento dos "caras
Após sua deposição, o Brasil, mais uma vez, passa a ser governado por um vice,
Itamar Franco, que assumiu a Presidência até 1994, quando ocorreram novas e
Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que assumiu a presidência em 1995, sendo reeleito
Em seu governo, foi publicada a lei 9140/95, que diz respeito ao reconhecimento da
indenização financeira a seus familiares. Segundo Coimbra (2001, setembro), essa lei “foi
uma Comissão Especial, vinculada ao Ministério da Justiça para analisar caso a caso, nada
foi feito para garantir a execução dessa lei, como denuncia Coimbra “a Lei 9.140/95,
apesar de suas limitações, não chegou a ser cumprida pelo próprio governo que a
militar, permitindo que aqueles considerados ultra-secretos tenham sigilo para os próximos
dez anos; o sigilo por vinte anos, para os documentos marcados como confidenciais, e
Inácio Lula da Silva, o primeiro presidente brasileiro que emerge do movimento sindical.
ministérios, compõe a comissão especial para analisar e determinar a liberação ou não dos
arquivos da ditadura em poder do governo federal, tendo em conta as questões que dizem
conforme informou, no dia 17/11/2004, o Correio Braziliense – que o governo vai abrir os
arquivos da ditadura militar, esse tema tem trazido muitas controvérsias com relação aos
Mortos e Desaparecidos Políticos e porque, até agora, não se teve nenhuma atitude mais
enérgica com relação a revogação do decreto 4553/02. Haja vista que existem pelo menos
quatro projetos58, que propõem mudanças na atual legislação relacionada aos documentos
58
O projeto 1025/95, de autoria do ex-deputado Aldo Arantes (Pc do B-GO), propõe a abertura de todos os
arquivos da época da ditadura, e também determina que eles fiquem à disposição da sociedade no Arquivo
Nacional e nas Universidades Federais; o projeto 1150/95, de autoria do deputado Fernando Ferro (PT-PE),
164
do regime militar, tramitando, desde 1995, na câmara dos deputados e que até agora não
foram aprovados.
presidente Lula, em 05 de maio de 2005, que considera que todos os documentos que
mortes, não apuraram as responsabilidades dos agentes do Estado pela prática dessas
arbitrariedades e não localizaram nem entregaram os restos mortais, da maioria dos mortos
Faz parte da luta por uma memória dos vencidos, a busca incessante pelo
que propõem a redução, de 30 para 15 anos o prazo para que documentos referentes à segurança da sociedade
e do Estado sejam mantidos sob sigilo; outro projeto do ex-deputado Aldo Arantes, que propõem a redução
de 100 para 50 anos o acesso a documentos referentes à honra e à imagem de pessoas e, por fim, o projeto de
Decreto Legislativo da deputada Alice Portugal (Pc do B-BA), que propõem a extinção do decreto do ex-
presidente Fernando Henrique Cardoso com a regulamentação sobre os documentos sigilosos.
59
Sobre esse assunto ver página do GTNM/RJ: www.torturanuncamais-rj.org.br/noticias.asp.
165
algumas dessas lutas, que aconteceram ao longo da ditadura, prolongam-se até nossos dias
e dizem respeito a uma das formas de luta por políticas da memória. Exemplo disso foi a
luta pela anistia, cujo lema era “Anistia, Ampla, Geral e Irrestrita” e a luta pela apuração
dos casos de torturas, mortes e desaparecimentos que teve seu início em meados dos anos
movimento pela anistia no Brasil e das adesões que tiveram de outros movimentos sociais,
que assumiram esta bandeira de luta, a primeira lei de anistia de 1979 não foi ampla, nem
geral e nem irrestrita como queria o povo brasileiro. Para a decepção da sociedade
Além disso, a anistia não acabou com as atrocidades dos governos militares propôs
considerada como a mais atrasada de todas as anistias da América Latina, como bem
60
Com relação aos crimes conexos Coimbra (2004, agosto) enfatiza a análise crítica de Helio Bicudo e Fabio
Konder Comparato sobre a interpretação que o regime militar deu a lei de anistia e esclarece “A
interpretação hegemônica afirma que este parágrafo da lei anistia todos os que praticaram ‘crimes de
qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política’, ou seja, os
torturadores. O significado da palavra conexo refere-se a ‘alguma coisa que tenha relação com outra, que
tenha dependência, nexo. Pretende-se com isso, além de anistiar assassinos, perversamente, igualar os atos
dos opositores políticos com os que foram praticados pelo Estado ditatorial terrorista”.
166
A segunda lei de anistia, de 1995, foi fruto da pressão das organizações não-
2003).
brasileiros, se voltou mais para as perdas materiais, pois até hoje o governo brasileiro não
reconheceu que violou os direitos humanos, não se desculpou à população, nem sequer
internacionais de direitos humanos. Além disso, não houve nenhuma preocupação em criar
uma comissão da verdade que pudesse esclarecer a Guerrilha do Araguaia e as torturas dos
porões da ditadura como nos aponta Mezarobba (2003). Mesmo depois da promulgação da
61
O Movimento Tortura Nunca Mais, organizado em vários estados brasileiros tem o objetivo de
“Esclarecer as prisões e mortes, localizar os restos mortais e realizar, quando possível, o sepultamento,
acompanhar as investigações das ossadas de Perus e de outras, assim como levantar subsídios para abrir
ações de esclarecimento das mortes e desaparecimentos. Denunciar permanentemente à sociedade os crimes
e assassinatos perpetrados pela ditadura militar e exigir a responsabilização judicial dos envolvidos”.
(MTNM/PE, 1995:9). “(...) pesquisar documentos do IML em S.Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco e nos
arquivos do DOPS de Pernambuco, Paraná, Paraíba, São Paulo e Rio de Janeiro. (...) Realizamos também
pesquisas junto ao Projeto Brasil Nunca Mais – coordenado pela Arquidiocese de São Paulo, em 1985 – e
167
No início, a luta pela anistia foi assumida por grupos de familiares que começaram
sofridas pelos presos políticos na época. Naquele momento, esses grupos contavam com o
apoio de alguns setores da Igreja Católica, por meio das Comissões de Justiça e Paz, e de
Brasileiro pela Anistia (CBA) publicou, em 1984, um dossiê que relatava os casos dos
circunstâncias das mortes e a localização dos restos mortais de seus familiares, desde
que teve como resultado a microfilmagem de todos os processos do STM – Superior Tribunal Militar, de
1964 a 1979. A prioridade do nosso trabalho é a busca de informações a respeito dos mortos e
desaparecidos políticos, as denúncias a respeito dos policiais responsáveis pela prática de torturas e a
divulgação para toda a sociedade brasileira do que foram os horrores cometidos pela Ditadura Militar.
Temos sistematicamente enviado nossas reivindicações às autoridades constituídas para não nomear
torturadores para cargos de confiança”. (MTNM/PE, 1995:7).
62
Essas citações foram extraídas do “DOSSIÊ dos MORTOS e DESAPARECIDOS POLÍTICOS a
PARTIR de 1964” (CEPE - Companhia Editora de Pernambuco Governo do Estado de Pernambuco, Recife,
1995), publicada no site do Movimento Tortura Nunca Mais (MTNM/PE):
http://www.torturanuncamais.org.br/mtnm_mor/mor_introducao/mor_resgatando1.htm.
63
É uma lei de n.º 9.507, regulamentada em 12 de novembro de 1997, permite o acesso aos registros de
informações e dados sobre si mesmo, possibilitando desde a simples visualização à retificação de tais dados
ou informações. Essas informações referem-se aquelas que estão em registros, ou bancos de dados de
entidades do governo, de caráter público.
168
Em 1990, num dos bairros da periferia de São Paulo, onde realizamos parte das
entrevistas da nossa pesquisa, foi aberta a Vala de Perus, uma vala comum localizada no
Cemitério Dom Bosco. Nesse cemitério, também segundo dados do Movimento Tortura
Nunca Mais, foram encontradas “1.049 ossadas de indigentes, presos políticos e vítimas
dos Esquadrões da Morte. Pelo menos as ossadas de seis presos políticos deveriam estar
Logo após a descoberta da Vala, a então prefeita Luiza Erundina criou uma
e médicos legistas da UNICAMP para apurar o caso: “A iniciativa da Prefeita foi seguida
pesquisas nos Institutos Médico Legal (IML), polícias técnicas e cemitérios das periferias
e, segundo o MTNM:
“(...) outras valas clandestinas foram abertas, graças às pesquisas feitas pelos
Grupos Tortura Nunca Mais: no Cemitério de Ricardo Albuquerque, no Rio de
Janeiro, e no Cemitério de Santo Amaro, em Recife, Pernambuco. Nelas se
encontram despojos de presos políticos. Na vala comum do Rio, há pelo menos os
restos mortais de 14 presos políticos e em Recife há os despojos dos mortos da
"Chacina São Bento", quando, em 1973, o delegado da polícia paulista, Sérgio
Paranhos Fleury, foi até lá, orientado pelo agente infiltrado Cabo Anselmo, matar
militantes da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária)” (MTNM/PE, 1995:6).
169
estados brasileiros. A abertura dessas valas comuns é considerada pelo MTNM um marco
na luta pelo resgate dos mortos e desaparecidos, principalmente porque a partir disso, o
Infelizmente o mesmo não ocorreu em São Paulo e no Rio de Janeiro, pois estes arquivos
estavam em poder da Polícia Federal, desde 198364, sob a guarda de policiais vinculados
insistindo, junto ao governo do Estado, para terem acesso aos arquivos tentando negociar
para que, pelo menos, alguns representantes dos familiares pudessem realizar as pesquisas.
(DOPS) foram abertos para o público em geral no final de 1994, por iniciativa da
encontram em poder dos órgãos federais, que ainda não foram disponibilizados para o
público.
64
Segundo Coimbra (2004, novembro), “com a vitória de Franco Montoro em São Paulo e Leonel Brizola
no Rio, ainda período da ditadura Figueiredo, os arquivos do DOPS foram passados pra Polícia Federal, e
ficaram até 1992 nas mãos do seu Romeu Tuma, como guardião” (p.33).
170
O MTNM afirma que, “no Rio de Janeiro, os arquivos do DOPS foram entregues
CENIMAR, CIEx, SNI, DOI-CODIs, DOPS etc.) ainda são considerados confidenciais e
indefinidamente por iguais períodos para abertura desses arquivos, portanto, acima do que
prevê a lei de arquivos (número 8.159/91) que fixa em 60 anos o prazo máximo de
restrição.
Até agora esse decreto está sendo mantido pelo governo Lula dificultando o acesso
plenamente a história do país. Segundo o atual governo brasileiro este prazo está sendo
analisado, visto que envolve questões de política externa do país no século passado e
ONGs, Grupos Tortura Nunca Mais têm se mobilizado contra a revogação desse decreto e
em favor da abertura dos arquivos, por meio de campanhas65 em todo o Brasil. Conforme
aponta a Agência de Informação Frei Tito para América Latina (Adital) em 03/10/2005:
65
Em Pernambuco, por exemplo, foi lançada uma campanha que pretende sensibilizar a sociedade brasileira
para a necessidade da abertura dos arquivos da ditadura. A campanha, segundo o Diário Vermelho “já
recebeu a adesão de ONGs, sindicatos, partidos políticos (inclusive do PC do B), associações estudantis,
entre outros órgãos” (Ver http://www.vermelho.org.br/diario/2005/0315/0315_arquivo-ditadura-pe.asp de
05/04/2005).
171
e seus familiares o acesso às informações que lhes dizem respeito e que estão sob o poder
sigiloso do Estado, a fim de serem apuradas, pela justiça, as violações aos direitos
desses arquivos que mantém a conivência com as atrocidades que foram cometidas contra
"A recusa dos recentes governos em abrir os arquivos dos horrores praticados
durante o regime militar contra os então dissidentes funda-se, na verdade, em
outras razões, bem conhecidas de todos. É a proteção ignominiosa dos
torturadores, assassinos, estupradores e todos os que lhes deram apoio, nos
mais diversos órgãos do Estado, muitos dos quais estão vivos ainda hoje, a
gozar de escandalosa impunidade. É, ainda, o indigno temor de enfrentar uma
revolta no oficialato das Forças Armadas, adestrado tradicionalmente a
defender a corporação militar acima de tudo." (Fábio Konder Comparato,
Folha de S. Paulo de 26/12/2004).
É inadmissível que se negue à população esse direito e que, ainda hoje, os governos
em fins de 200466 – afinal tais medidas eram práticas comuns na época da escravidão no
Brasil.
66
Cf. O GLOBO, 13/12/2004 – “Documentos produzidos por órgãos de informação da Aeronáutica, da
Marinha, do Exército e de outras instituições ligadas à repressão foram incinerados na Base Aérea de
Salvador. Foi o que mostrou ontem reportagem do “Fantástico”, da Rede Globo. O programa exibiu 78
172
Por isso, ressaltamos que a luta pela construção da democracia não se tornará
efetiva enquanto não se “passar a limpo” esse passado. Nesse sentido, é fundamental
trazer à cena pública a memória política de segmentos das classes populares procurando
desmascarar a “memória oficial" que foi produzida, como bem aponta Coimbra (2001),
pelo poder ditatorial para apagar as marcas da resistência e luta das classes populares numa
tentativa de ocultar da sociedade brasileira a história dos “vencidos” como se estes não
atuação dos movimentos sociais no processo de transição à democracia, haja vista que
estes tiveram um papel preponderante nas lutas contra a ditadura. Além disso, nossos
atuação dos movimentos sociais desse período com a atuação dos movimentos sociais hoje.
regime militar. A prova maior disso foi o próprio número de presos políticos, mortos e
movimentos sociais, sindicais, visto que a qualquer ação considerada suspeita o governo
respondia com a violência, a perseguição e a morte. Embora admitamos que houve uma
fragmentos de fichas, prontuários e relatórios produzidos ou recebidos pela Base Aérea. Os papéis datam de
1964, quando se instalou a ditadura militar no Brasil, até 1994, época em que o país já vivia em regime
173
que traz novamente à cena política o movimento operário que teve, na greve dos
“Agora, de fato o movimento sindical no Brasil ele surge como ator, como
grande ator social nos anos 78 e 80 no ABC, quer dizer, depois na construção
do PT, da CUT. (...) o movimento sindical da forma que eu conheço, como a
gente conhece, como a gente aprendeu, eu aprendi a conhecer, por exemplo,
na CUT, que é essa experiência que vem desde 1980, ela tem diferença porque
esses anos o operário industrial, a coisa do metalúrgico, né, pra gente
bancário, os setores urbanos, quer dizer, cê tem nos diversos setores você
conseguiu forma de organização, quer dizer, o movimento tem uma... Esses
anos da ditadura militar de 68, 70 e início dos anos 80 têm a coisa da Igreja,
né, a importância da Igreja, quer dizer. Não fosse a Igreja cê teria muito
pouco de movimento social no Brasil, inclusive nos 70 nos 80, inclusive eu,
nós, o PT, a CUT, a gente é produto um pouco disso, dessa experiência, né”
(Edílson).
criaram alternativas para dissimular suas ações políticas. Um exemplo claro disso foi o
papel que desempenhou a Igreja Católica por meio das Comunidades Eclesiais de Base que
movimentos que estavam na clandestinidade durante todo o período militar, criando meios
de disfarçarem suas ações como atos exclusivamente religiosos. Sob as ditaduras militares
na América Latina, a Igreja progressista forneceu, como nos aponta Lernoux (citado em
como para os sindicatos operários e as federações dos camponeses, que de outra forma
democrático”.
174
quarenta mil para setenta mil o número de Cebs. E como nos aponta Scherer-Warren
Esse crescimento das Cebs em todo o continente coincide com o período das
ditaduras militares, haja vista que estas Cebs surgem em meados da década de 60 e início
por estes trabalhadores, que leva a população a buscar formas de solução para os seus
problemas, a partir dessas pequenas comunidades; de outro lado, estão o Concílio Vaticano
abertura da Igreja à participação dos leigos, maior comprometimento com os setores mais
67
Medellín é a forma como as pessoas normalmente se referem à II Conferência Episcopal Latino Americana
realizada em Medellín na Colômbia em 1968.
68
Puebla se refere a III Conferência Episcopal Latino Americana que foi realizada em Puebla, no México, em
1979.
175
exploração das populações mais pobres. A Igreja condena com veemência o modelo
seja, como pequenas comunidades e não paróquias – como “novo modo de ser Igreja” –
“Durante os anos de maior repressão as Cebs que florescem nos anos 70, são
as únicas organizações que resistem no dia a dia a toda sorte de violência
institucionalizada. Tanto que no período de 69 a 73, assiste-se uma série de
perseguições e prisões de padres, freiras, agentes pastorais e leigos
comprometidos com diferentes trabalhos ‘comunitários’. O aparato de
repressão liga-os a algumas organizações clandestinas em atividade na época.
Em 1969, por exemplo, é assassinado, com requintes de crueldade e
barbarismo, o padre Antonio Pereira Neto, um auxiliar de D. Helder Câmara,
no Recife e até hoje os culpados não foram punidos” (Coimbra, 1995: 42).
creches, clubes de mães, movimentos sociais de saúde, educação, moradia. Sua forma de
na mão de leigos eleitos pelas próprias comunidades, a solidariedade entre seus membros –
Das Cebs emergem “novos movimentos sociais” que contribuíram, como aponta
Ilse Scherer-Warren (1996) para “a corrosão das práticas autoritárias que ocorrem tanto
no nível da sociedade civil como do Estado propriamente dito” (p. 49). Tais movimentos,
gestados durante a ditadura militar através das suas práticas de resistência, emergem como
um novo sujeito coletivo, que como define Sader configura-se como: “uma coletividade
onde se elabora uma identidade e se organizam práticas através das quais seus membros
Esse novo sujeito coletivo surge como uma alternativa ao “modelo autoritário”
enfatizado pelos governos ditatoriais do regime militar. Esses movimentos, de acordo com
enfrentamentos do dia-a-dia que vão emergir esses novos significados, operando fissuras
44).
personagens entram em cena” forjando uma nova prática que já não se pauta nos moldes
marxistas, exclusivamente classistas, mas que trazem em seu bojo novas demandas.
“Ao final da década [de 70] vários textos passaram a referir-se à irrupção de
movimentos operários e populares que emergiam com a marca da autonomia e
da contestação à ordem estabelecida. Era o ‘novo sindicalismo’, que se
pretendeu independente do Estado e dos partidos; eram os’ novos movimentos
de bairro’, que se constituíram num processo de auto-organização,
reivindicando direitos e não trocando favores como os do passado; era o
surgimento de uma ‘nova sociabilidade’ em associações comunitárias onde a
solidariedade e a auto-ajuda se contrapunham aos valores da sociedade
inclusiva; eram os ‘novos movimentos sociais’, que politizavam espaços antes
silenciados na esfera privada. De onde ninguém esperava, pareciam emergir
177
novos sujeitos coletivos, que criavam seu próprio espaço e requeriam novas
categorias para a sua inteligibilidade” (Sader, 1988: 35-36).
negra, os movimentos de defesa dos direitos humanos, incluindo a defesa dos direitos das
movimentos sociais têm como característica a busca pela sua autonomia, ou seja, pela sua
independência frente aos partidos, igrejas, Estado, visto que procurando romper com os
Warren (1996) discute o papel dos movimentos sociais na superação das formas de
que
Como sujeito coletivo estes novos movimentos sociais, dirigem suas ações contra o
Estado procurando
Nesta perspectiva, a própria noção de política se amplia, uma vez que já não é
entendida apenas como a participação do voto nas eleições, mas refere-se a toda prática
reduzida ao Estado e as atividades relacionadas a ele. Desse modo, eles politizam suas
demandas e criam um campo político de força social na sociedade civil” (Gohn, 1995: 44)
antagonismos.
torno das Diretas Já, (1983-1984) na qual a sociedade civil reivindicava mudanças políticas
e econômicas imediatas.
“Paralelo a isso houve algumas coisas boas, como o movimento das diretas já,
né, que talvez, foi um grande movimento nacional como há muito não se via,
né, de participação popular e de conscientização da população da necessidade
de voltar a democracia no país. É, mas, na verdade não foi uma conquista, né,
naquele período, foi uma concessão, tanto é uma concessão que eles
continuam fortemente e politicamente atuando no país, né” (Anderson).
179
descontentamento da sociedade civil, mas por outro lado bastante fomentado pelo impacto
“Se você pegar, surgiu um movimento muito mais festivo depois foi os caras
pintadas na questão do Collor, né. O Collor só criou aquela comoção popular
tudo, mais, em função de aberrações de corrupção, que é uma mudança de
percentual” (Armando).
mobilizou importantes setores da população, os movimentos sociais ainda têm muito por
entrevistados: “Agora, nós temos muito ainda a caminhar pra chegar a uma
política, né, pra é, a gente dizer que o povo brasileiro tá, efetivamente decidindo o rumo
Não nos estenderemos mais, pois a própria construção da memória política dos
sociais e mesmo seus limites nesse processo de luta pela construção de uma sociedade
democrática. Todavia, não podemos deixar de ressaltar que a noção deste novo sujeito
coletivo que tem por base uma identidade coletiva que decorre da luta política e dos
do passado.
180
CAPÍTULO IV
sobre a memória política da ditadura militar no Brasil, que vai desde a escolha do nosso
faz relevante, pois, para investigar tal temática no enfoque psicopolítico, o rigor
perspectiva.
expressão dos elementos que estão presentes na memória e permitem perceber a existência
seguem uma ordem diversa da cronológica, pois se apóiam em marcos de referência que
estão inscritos na memória que estes compartilham em seus grupos de pertença. Marcos
estes de experiências que foram significativos em suas vidas que são capazes de modificar
o seu cotidiano, alterar o ritmo de suas existências e que os levam a constituir uma outra
história. Aqui se faz presente o referencial teórico de Halbwachs (1990) que afirma que o
181
tempo da memória é o tempo vivido, é aquele em que cada classe, cada grupo, cada pessoa
dito, o que nos faz centrar nossa atenção nas falas, expressões, silêncios com vistas a
importância, uma vez que nele encontramos uma trama que é suscetível ao ideológico, o
que exige de nós pesquisadores, cautela na condução das entrevistas, cautela esta que,
como sugere Bosi (2004), deve “respeitar os caminhos que os recordadores vão abrindo
na sua evocação porque são o mapa afetivo da sua experiência e da experiência de seu
grupo” (p. 56). Essa cautela se estendeu a análise de dados que fizemos, uma vez que as
entrevistados até a elaboração das categorias de análise propriamente ditas, que foram
metodológicos:
referência deles tiveram com a ditadura militar e a repressão no Brasil e para perceber a
atribuem ao passado;
e algumas questões abertas, aos estudantes universitários para saber o que conhecem sobre
Cabe ressaltar que a opção pelo questionário e não pela entrevista, no caso dos
estudantes, se deu em função de que num teste preliminar com entrevista semi-estruturada,
esses terem encontrado muitas dificuldades em falar do tema, argumentando não saber
nada sobre o período. Além disso, em virtude do questionário atingir um maior número de
estudantes.
na sociedade brasileira, que levam ao esquecimento e dos elementos que são significativos
A pesquisa foi realizada em três grandes capitais brasileiras: São Paulo, Belo
Horizonte e Curitiba. Como não teríamos recursos para realizar a pesquisa nas principais
capitais brasileiras, como era nosso interesse inicial, escolhemos São Paulo por ter sido
uma das cidades que sofreu grande impacto no período da repressão no Brasil e por
época; a cidade de Belo Horizonte, por ser considerada o berço do golpe militar e, pelo
menos, uma cidade do sul brasileiro, Curitiba, que teve um impacto um pouco menor que
as capitais do sudeste brasileiro, como Rio, São Paulo e Belo Horizonte. Cabe ressaltar
que, neste estudo da memória coletiva, a nossa preocupação principal não é com a
atribuídos aos eventos políticos por parte de algumas categorias sociais que pertencem a
psicopolítica. Lócus este constituído por lideranças sindicais e comunitárias (adultos que
por lideranças sindicais que estão atuando nos sindicatos e que não vivenciaram a época da
nos sindicatos e que também não vivenciaram a época da repressão no Brasil; o grupo C,
Vale dizer que nossos critérios de seleção variaram de acordo com cada grupo. Para
o grupo A, o critério principal para escolha dos sindicalistas foi o de estar atuando, no
momento, no sindicato, seja como dirigente ou não e estar na faixa etária de 25 a 40 anos.
Foram selecionados três sindicalistas de cada cidade. Para o grupo B, a seleção das
de estar atuando nos movimentos sociais do bairro. Foram selecionadas três lideranças
comunitárias de cada cidade. Por fim, o grupo C, de estudantes universitários, cujo critério
foi o de estar na graduação (1º ao 4º ano), não importando a área. Para selecioná-los,
fizemos contato com uma universidade pública e uma privada em cada cidade. Com
184
2. As Entrevistas
existe uma contínua interação entre o indivíduo e o seu meio social, tanto no nível
emocional quanto cognitivo, mediante o qual o aqui e agora mobiliza, altera e, muitas
vezes, determina os conteúdos manifestados pelos sujeitos. Por esse motivo, o uso de
entrevistas semi-estruturadas é considerado por nós uma técnica adequada para a revelação
ênfase será na descrição verbal das pessoas. Nesse sentido, a “análise dos significados de
expressão verbal das pessoas é uma tarefa de juntar não apenas elementos 'atitudinais',
mas de combiná-los com os dados do contexto do qual emergiu e a que devem estar
evocada, através da descrição verbal, constrói-se a partir do material que está à disposição
dos sujeitos no presente, ou seja, o contexto social e as experiências atuais dos sujeitos
refere à veracidade das narrativas. Entretanto, no estudo da memória política, que ora
realizamos, nossa preocupação não é com a veracidade da descrição verbal dos sujeitos,
vivenciado pelos sujeitos. Nesta perspectiva, estamos de acordo com Galindo (1999) que
afirma que
importantes, nós optamos por utilizar entrevistas semi-estruturadas que nos oferecem um
roteiro, sem que seja necessário nos prendermos rigidamente a ele. Vale ressaltar que a
sindicais e comunitárias nas cidades de São Paulo, Curitiba e Belo Horizonte. Em São
Paulo, o contato com os sindicalistas foi feito através de um líder sindical que conhecíamos
e que foi também um dos nossos entrevistados. Essas lideranças sindicais são de diferentes
categorias sindicais: Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de São Paulo, Sindicato
dos Vidreiros de São Paulo e Sindicato dos Bancários de São Paulo. O contato com as
lideranças comunitárias foi feito através das Comunidades Eclesiais de Base (CEBS) que
186
desenvolvido pesquisas anteriores e onde existe uma vala comum da época da ditadura.
CEFURIA (Centro de Formação Urbano Rural Irmã Araújo) que trabalha com a formação
lideranças que preenchiam o perfil que nos interessava. Os sindicalistas pertencem aos
sedes dos Sindicatos nos quais as lideranças sindicais atuam. Com relação às lideranças
comunitárias, as entrevistas se realizaram na casa das pessoas, que nos receberam com
muita disponibilidade.
Para facilitar a análise dos dados, todas as entrevistas foram gravadas com prévia
3. Os Questionários
informações que os entrevistados tinham a respeito do período nos fizeram admitir que o
uso do questionário seria mais adequado para essa categoria de entrevistados e atingiria um
O questionário (Anexo II) foi constituído por vinte e oito questões, sendo as sete
primeiras referentes a dados mais pessoais69 como idade, sexo, ano que está cursando; as
no Brasil, sendo que intercalamos sete questões fechadas de múltipla escolha e seis
Estado; e) a repercussão que tem esse período nos dias atuais; f) o que significou o fim da
69
Os questionários foram anônimos, portanto não constam dados pessoais do tipo nome, endereço, etc.
188
ditadura militar; h) o contato que tiveram com pessoas que viveram a época; i) onde
análise de dados SSPS for Windows 10.0, especialmente para saber a freqüência com que
Office Word para construirmos os gráficos sobre o perfil dos estudantes, que apresentamos
ainda neste capítulo, e os gráficos que aparecerão nos capítulos de análise. Cabe ressaltar
que as perguntas abertas abriu um leque de múltiplas e variadas respostas que agrupamos
em algumas frases - deles mesmos - que expressavam uma mesma idéia, por exemplo:
Antes de entrarmos na análise propriamente dita vamos fazer uma breve descrição
dos perfis dos entrevistados (quem são, o que fazem, qual a sua atuação política), visto que
memória. E como já afirmamos, existe uma relação muito estreita entre a memória coletiva
duas gerações que não vivenciaram diretamente a ditadura militar. Alguns deles não eram
nascidos, outros eram crianças e bem poucos eram adolescentes no período da ditadura.
partidos políticos.
anos.
delas, simultaneamente, atuam em partidos políticos. A maioria delas são lideranças que
atuam na periferia das capitais onde realizamos a pesquisa. Em Belo Horizonte, essas
orçamento participativo da cidade. Em São Paulo e Curitiba grande parte das lideranças
sociais de saúde, educação e no Partido dos Trabalhadores (PT). Algumas delas participam
Centros de Educação Popular em Curitiba, e atuam não só nas periferias destas cidades,
190
nacional.
No caso dos estudantes, apresentamos seus perfis através de uma série de gráficos
50
40
30
20
10
0
Cidades
30
25
PUC-PR
20 UFPR
15 PUC-MG
UFMG
10
PUC-SP
5 USP
0
Universidades
No perfil dos estudantes apresentamos a faixa etária, sexo, ano que está cursando, o
curso que está freqüentando, se está trabalhando ou não, se é em regime parcial ou integral,
alguma participação política. Além disso, apresentamos os gráficos sobre seus hábitos de
Idade
80
70
60
50 18 a 22
40 23 a 27
30 28 a 35
20 Acima de 35
10
0
Idade
192
Sexo
60
50
40
Feminino
30
Masculino
20
10
0
Sexo
50
40
30
20
10
0
Ano que está cursando
1º 2º 3º 4º
universidades pelo fato de nossos colegas dos cursos de psicologia facilitar-nos o acesso
Curso
70
60
Psicologia
50
Engenharia Mecânica
40
Jornalismo
30 Artes Plásticas
20 Comunicação Social
10 Direito
0
Curso
193
A grande maioria dos estudantes não trabalha, sendo que os que trabalham o fazem,
Trabalho
70
60
50
40 Parcial
30 Integral
Não trabalha
20
10
0
Tabalho
Como podemos observar no gráfico que segue, a grande maioria dos estudantes
universitários não têm participação política nem dentro da universidade nem fora dela.
Participação Política
90
80
70
60
50
40
Participa
30
20 Não Participa
10
0
Organização Organizações
Universitária fora da
unversidade
194
através da universidade, lêem com uma certa periodicidade os jornais de grande circulação
Leitura de Jornais
40
35
30 Sim
25 Não
20 Algumas vezes no mês
15 1 vez por semana
10 2 a 4 vezes por semana
5 diariamente
0
Lê Jornais? Frequência de
leitura
e astrologia (14%), seguidos de policial (13%), religião (12%), economia (11%), esporte e
Observemos:
195
Assuntos de
interesse
20
18
16
13 14 14
14
11 12
12 10 10
10 8 8 8
8 6 6 5 6 6
6
4 3
2
0
Temas de interesse
Para a análise das entrevistas fizemos uso da análise qualitativa, que, segundo
de estos significados que brotan de la interacción simbólica entre los individuos (p. 15).
Depois de uma atenta leitura dos discursos, aliás, várias leituras, identificamos os
que os próprios enunciados das perguntas nos serviram como categorias, que analisamos
discursos dos entrevistados, as quais consideramos como unidades significativas que foram
nosso ver, apresenta um quadro da memória das lideranças comunitárias, sindicais e dos
1. As tramas da memória política: marcas do que ficou, em que analisamos o que foi
informação, em que procuramos analisar como foi sendo transmitida essa memória
representações que nos levou a criar subcategorias extraídas dos próprios discursos
nossos entrevistados, onde nos centramos em alguns aspectos que consideramos relevantes
política, sistematizamos o conjunto das informações obtidas, através das nossas entrevistas,
no modelo teórico de Sandoval (2001). Desenvolvemos essa relação a partir três eixos de
análise:
Essas relações ficarão mais claras ao longo dos Capítulos V, VI e VII em que
fazemos uma análise pormenorizada dos eixos e das categorias de análise que julgamos
construir, de maneira sólida, uma análise psicopolítica da memória coletiva nos remetendo
à noção de memória política que defendemos nesta tese e que confere a esta um caráter de
originalidade.
198
CAPÍTULO V
Estudantes universitários, lideranças comunitárias e
sindicais construindo a memória política
da ditadura militar no Brasil
_________________________________________________________________________
população não sabe nada ou que sabe muito pouco:“Eu creio que não (referindo-se ao
199
conhecimento que a população brasileira tem da ditadura). Não porque muitos fatos foram
esquecidos. Que tem a ver com... o povo não faz memória” (Ciça).
De acordo com Lucila Edelman (2002) - que também admite a presença desta
classes sociais e os diferentes interesses dos setores de classe, bem como os fatores que
traumáticas, segundo a autora, é necessário uma distância geracional de pelo menos vinte
informação e a baixa escolaridade das classes mais pobres contribui para a falta de
conhecimento que se tem do passado: “Muito pouco, muito pouco. Pelo conhecimento que
eu tenho, o povo é muito pouco informado sobre isso, principalmente por parte, assim, né,
da classe mais baixa, eles têm muita pouca informação, quase nenhuma” (Maria).
Essa idéia é reforçada por Fabíola, ao considerar que o nível cultural brasileiro é
muito baixo, o que se acentua com a própria deficiência da escola ao transmitir ou ensinar
a história do Brasil:
“Eu acho que muito pouco. É, primeiro porque o nível cultural brasileiro ele é
muito pouco. Segundo, porque a história, ela é a própria história nossa dentro
das escolas, das universidades, ela não, não tenta trabalhar a história,
inclusive do povo brasileiro. A gente ainda tem uma, eu diria que as matérias
de história, sociologia, filosofia, elas trabalham pouco a própria identidade, a
história do povo brasileiro. Eu mesmo, eu venho de uma trajetória que ela né,
ela se dá pela militância e quando você me falou que ia entrevistar eu fiquei
totalmente envergonhada. Gente, o que que eu sei do período militar? Então,
aí, é até auto-crítica da gente buscar mais, é, vivenciar um período que é tão
próximo e que é a nossa história. Eu acho que a gente trabalha pouco isso”
(Fabíola).
200
Ronaldo acredita que a classe média, justamente por ter mais acesso às
informações, tem mais conhecimento da ditadura enquanto que a classe mais pobre só tem
“Acho que a classe, a classe média, acho que sim. Acho que a classe mais
pobre, pelo, né, por não ter acesso à informação, acho que eles conhecem
aquilo que os seus parentes viveram, e podem estar relatando. E também
alguma coisa que passa na televisão, aquelas minisséries, da Rede Globo, que
mostram alguma coisa. Mas eles não têm acesso, né, a tá estudando, a uma
faculdade, a um. Acho que da classe média, assim, média-baixa, né, pra cima,
acho que todos tem consciência do que foi a ditadura. E você pode peneirar ali
nas mães, na escola, que com certeza, tem muita gente que sabe” (Ronaldo).
de livros, jornais, revistas, etc tenha alguma implicação, existem mecanismos muito
democráticos que corroboram muito mais para que povo não tenha memória dos
acontecimentos políticos. Haja vista que esta falta de conhecimento não atinge só as
pessoas com baixa escolaridade, pois nos salta aos olhos o fato de que muitas
pessoas, entre elas universitárias, afirmarem que o período militar foi um período
bom para o país, um período de ordem em que, inclusive, muita gente sente
“Eu acho que se o povo conhecesse um pouco mais da sua história não
defenderia a ditadura militar. Esse ano mesmo eu fiquei assim indignada na
sala de aula, companheiras, 3o ano de Serviço Social, defendendo assim de que
foi o melhor momento que nós vivemos no período da ditadura, quer dizer, né,
quer dizer o militarismo, porque daí colocou ordem no país, porque num sei o
quê. Então quer dizer, se a gente vê isso de pessoas que hoje estão dentro de
uma faculdade, no 3o ano, num curso como Serviço Social, então eu imagino
assim que tem muita gente que não, não tem conhecimento do que foi isso pro
país. Da matança que foi tudo isso, da destruição, do que trouxe como
201
seqüelas pro país mesmo, né. Então acho que tem muita gente que não tem
esse conhecimento. Até porque aquilo que a gente falava, o próprio material
oficial que fala é de uma maneira muito superficial, e não profundamente.
Talvez esse, esse conhecimento mais profundo, se as pessoas tivessem,
valorizariam muito mais o movimento popular hoje e seria uma força maior”
(Luciara).
superficial. A saudade de um período bom para o povo brasileiro é também apontada por
Sara que observa esssa atitude por parte das pessoas mais velhas, que vivenciaram a
“É, eu acho que (...) porque eu ouvi muito já, principalmente, as pessoas que
viveram a ditadura, no período da ditadura, mas não foram torturados, né,
claro, mas assim essas pessoas que, que, assistiram, né, não tiveram uma
participação efetiva na ditadura, elas têm saudades desse tempo. Muitas
pessoas que viveram essa época, pessoas mais velhas falaram que no tempo
da ditadura a gente tinha trabalho, tinha o que comer e tal. E não é bem
assim, né, a gente sabe. Só que eu vejo, que as pessoas têm saudades desse
tempo. Acho que justamente por não conhecer, porque que é assim. É, tipo
assim, não é o caso da minha mãe, né, mas vamos dizer, pessoas como ela, que
não tinham informações, muitos, sabiam, né, que tava acontecendo alguma
coisa assim, mas tinha lá sua casa pra morar, quer dizer, tinha pra sua
família, aquela coisa. Então acho que é, e hoje assim, a sobrevivência tem que
ser batalhada muito mais, parece, num sei e acabam tendo saudades daquele
tempo. ‘A segurança era muito maior’, né. Essas coisas assim. (...) É bem
diferente a realidade hoje do que a da época da ditadura, né, mas tem
saudades” (Sara) [grifos nossos].
como é o caso de Inesita, que se inclui entre aqueles que têm pouco conhecimento da
202
ditadura. Ela, inclusive, se sente envergonhada por saber muito pouco a respeito do
assunto.
“Eu acredito que não. Cê viu por mim mesma, né. Ai que vergonha! Não tem.
Porque tem uma frase que fala assim, né, que o ‘povo brasileiro não tem
memória’. E em partes é verdade, nem todo o povo, né. Mas, não só
conhecimento da ditadura, mas muitas outras coisas aí. Quando a gente, por
exemplo, trabalha numa campanha, a gente vê que as pessoas não tem
conhecimento político, digamos assim. Nem eu mesmo tenho muito, sabe eu tô
aprendendo” (Inesita).
Assim como Inesita, Vilivaldo também se reconhece como alguém que sabe muito
pouco, apesar de ter uma militância, e compara: imagine o que dizer da população em
“Pra você ter uma idéia, você tira por mim. Eu que tô dentro do movimento
sindical tenho uma certa dificuldade de tá falando sobre a ditadura, agora cê
imagina quem não está e que não viveu essa época, né. Eu acho que é, a
população, acho que não chega a trinta por cento que deve saber sobre a
ditadura” (Vilibaldo).
Essas afirmações parecem fazer parte do senso comum na sociedade brasileira e nos
remete a pensar o quão eficaz foi o papel da memória oficial que, desde a época da
ditadura militar, fomentou a idéia de que os generais, através da sua autoridade, mantinham
econômico”, que havia menos violência, levando a população a acreditar que foi um dos
melhores períodos vividos na história do Brasil. Ainda que encontremos uma grande
parcela da população que “lembra com saudades” as “maravilhas” da ditadura, esta falsa
Sobre isso Andréa nos permite ver que existe uma ausência de memória, cujo
“Respondendo objetivamente eu acho que não tem. Tem muita coisa que
aconteceu que, primeiro, eu acho que essa história, quando o povo fala que a
gente tem memória curta, tem mesmo, tem mesmo. É um, é um fato, né. Mesmo
quem vivenciou a época da ditadura eu acho que o medo foi tanto, que até hoje
ainda tem medo de dizer as coisas. (...) Então assim, eu acho que as pessoas
que têm ainda na memória, tem isso reprimido, né, e a grande maioria tem
esse conhecimento que eu tenho, que é o escolar, né” (Andréa).
No que diz respeito a esse conhecimento “reprimido”, provocado pelo medo, Irene
Cardoso (2001) afirma que ele foi imposto pela repressão, produzindo, ao longo de toda a
Além desse conhecimento reprimido, Anderson aponta que a população sabe muito
“Pouca coisa. Muito pouca coisa. É a própria questão que tá colocada aí, da
abertura dos documentos da época é um fato, né. A gente não tem consciência
efetivamente e nos oprimiram esse conhecimento, né, pra saber o que que
aconteceu naquela época, né, os documentos todos, né, inclusive pessoas que
foram mortas e não se sabe realmente se morreram ou não, né. Então a gente
ainda vive num, num, numa repressão muito grande, né, que é a repressão da
informação daquele período que houve naturalmente, né. E em função disso
ainda tem muita gente que, que suspira de saudade daquele período, porque
era, mostra bem a falta de politização das pessoas e de consciência
efetivamente do que foi aquele período. E do que que significou aquele período
204
de atraso, né. (...) Então acho que a grande maioria da população não tem
esse conhecimento” (Anderson).
José, por sua vez, assinala que a população sabe que houve ditadura no Brasil, mas
reconhece que esse conhecimento é superficial, uma vez que o regime procurava esconder
“Então eu acho que sabe, mas não detém o que de fato significou até o fim,
porque até hoje a gente ainda vê pessoas dizendo que: ‘Ah, mas pelo menos na
ditadura não tinha inflação’, não sei o quê. É mentira né, porque, não é que
não tinha, é que se escondia, né. Então, todo o dinheiro era canalizado para
outra coisa, né. Então, as pessoas acho que não têm um conhecimento
profundo, mas que sabe, sabe que existiu a ditadura, que teve os porões, que
teve gente perseguida” (José).
que houve um período violento no país, mas não tem dimensão do desastre que foi a
“Olha, eu acho que não, acho que boa parte não. Da ditadura como ela foi
não, né, da violência que foi, do desastre que foi pra esse país acho que a
população brasileira não tem essa informação. Ela sabe que a ditadura foi um
período de violência do país, que cerceava o direito de falar e isso o cidadão
brasileiro, hoje, parece que tá querendo, tá querendo ter esse direito, mas
como ela foi exatamente, do prejuízo histórico e político que nós tivemos pro
Brasil, eu acho que ainda não, eu acho que ainda não. Eu espero que venha a
ter, porque se tiver é um grande avanço, vai ser um grande avanço (Emerson).
“Conhecimento eu acredito que tenha, só que ela não tem a lembrança do que
se passou na ditadura. Eu acho que conhecimento acho que todo o povo sabe
que o Brasil teve uma, uma opressão forte, né, mas, assim, de ter na memória,
né, os acontecimentos, aí eu acho que não tem, se perdeu, se perdeu”
(Rosane).
Por isso nos perguntamos: pode-se afirmar que existe uma memória política dos
Os próprios entrevistados através dos seus discursos, deixam entrever que existe
subterrâneo da história como uma memória de resistência e que merece uma análise mais
alicerçada na efetiva participação política que se dá nos espaços de luta cotidiana, apontada
diz que se as pessoas não têm uma participação nos movimentos sociais, acabam por não
ter acesso a nenhum conhecimento, já que em outras esferas da sociedade não existe
“Eu sempre falo pras pessoas que elas só vão aprender na luta mesmo, no dia
a dia. Eu também, naquela época que eu tava na escola eu não entendia. Eu só
fui entender o que ela falava (referindo-se a professora de história) depois,
participando. Então eu acho que é isso, também. Se as pessoas não entrarem
no movimento popular, numa luta, elas não vão entender, não vão tomar
gosto assim pela coisa e ver que vale a pena” (Sandra) [grifos nossos].
Vitor, por sua vez, deixa claro a importância e necessidade de se conhecer esse
passado para poder resistir contra qualquer tipo de tentativa autoritária ou de golpe de
Estado. Para isso, ele sugere que a escola inclua em seus currículos, esse conhecimento que
permitirá às gerações mais jovens resistirem às tentativas de autoritarismo. Isso nos remete
à frase “Lembrar é resistir”70 de uma obra de teatro que foi encenada nos espaços dos
70
Esta peça foi encenada no edifício do DOI-CODI, em São Paulo, em 1999 e nas dependências do DOPS no
Rio de Janeiro, em 2001. “Lembrar é resistir – um recorte no tempo e no espaço” é uma recompilação de
testemunhos de ex-presos políticos da prisão de Tiradentes, no Rio de Janeiro e descreve sessões de tortura.
O público participa da cena se deslocando de uma cela a outra com os atores, o que gera um profundo
206
antigos centros de repressão política em São Paulo e Rio de Janeiro. Vitor reforça a
“Eu acho que as escolas deveriam ter em seu currículo, sabe, é, deveriam ter
na parte de história deveria ter isso com muita inserção pra que não se perca
esse, o que houve nesse país e possibilite hoje, que principalmente os jovens
não deixem que isso aconteça, resista à qualquer iniciativa nesse sentido, sabe,
de golpe, de regime militarista. É, eu, na minha opinião, eu acho que procê
resistir cê tem que conhecer, né. Então, eu acho que falta isso, inclusive, nas
escolas, isso deveria fazer parte do currículo, sabe, é fundamental a gente
conhecer a história, inclusive ou pra aprimorar ou pra resistir, né.
Seguramente, nesse caso da ditadura, é literalmente pra resistir” (Vitor)
[grifos nossos].
que, como eles mesmos apontaram, tem trabalhado esse tema de maneira muito superficial.
Quando pensamos nas marcas que foram deixadas pelo passado, naquilo que foi
mantido pelas gerações que nos antecederam, não estamos falando de algo cristalizado,
que marcaram também a vida e a história dos entrevistados ou, como diria Bartlett (1995),
aquilo que teve e tem um significado para suas vidas. Em outras palavras, estamos nos
impacto e emoção, já que se revivem ao longo da peça as cenas de prisão e de torturas. Na ocasião da peça,
em 1999, o edifício do DOI-CODI, em São Paulo, tinha o seu interior exatamente como era no período da
ditadura, o que nos permitia sentir como eram de fato os espaços das prisões dos presos políticos. Mas,
infelizmente, o prédio foi todo reformado, preservou-se, apenas a estrutura estreita das celas, retirando-se
toda a sua originalidade, ou seja, elas foram totalmente rebocadas e pintadas, eliminando-se assim a
possibilidade de que as gerações mais novas saibam de fato como eram estes centros de repressão.
207
memória coletiva aparece como um “mosaico”, uma vez que os eventos passados são
ressignificados a partir do presente e das identificações sociais que as pessoas têm com os
grupos de pertença. Nesse sentido, cada grupo reconstrói múltiplas memórias revelando os
diferentes significados, que foram construídos a partir dos diversos grupos com os quais os
desenvolve.
Desta feita, vamos tecer esse mosaico apontando algumas descobertas que o
conjunto dos relatos nos forneceram e as questões e/ou hipóteses que estes suscitaram. Este
trabalho é como costurar uma grande “colcha de retalhos”, visto que recolhemos os
dos estudantes universitários, tentando alinhavar cada fio disposto ao longo dessa costura.
Na confecção de uma colcha de retalhos, um retalho solto pode parecer algo desprezível,
entretanto, na medida que vamos tecendo, retalho por retalho, a colcha vai tomando forma,
nos surpreendendo pela sua forma e pelos seus coloridos. É uma unidade construída pelos
diferentes. Não tem parte que não se faça necessária ou que seja desprezível. Igualmente
dispersos) a fim de reconstruir uma nova trama, a da memória política da ditadura militar
no Brasil.
Tecer agora essa memória política é reconstruir tudo aquilo que estava disperso ou
que se dispersou, que estava oculto ou foi ocultado pelo regime militar e pelo próprio
pedregosos e cheios de obstáculos e que exige trabalho e cuidado, porque nasce das nossas
entranhas, das nossas percepções, da nossa interpretação, mas que está aberto a novas
interpretações e ressignificações.
porque nos remete a questões fundamentais sobre os elementos que compõem a urdidura
variadas tramas que são organizadas por estes sujeitos. Portanto, o que ficou na memória
das lideranças sindicais, comunitárias e dos estudantes? Como eles reconstróem essa
memória?
saber muito pouco sobre o período, apontando que tem um conhecimento superficial e
alegando ter apenas uma idéia da dificuldade que foi viver sob o regime militar:
normal. Uma época até meio apática, né de um sistema repressor que existia
na época, né. A sociedade continuava, é claro que não na normalidade, mas
como se aparentasse, né, tá na normalidade. Então na verdade é eu tenho até
uma certa dificuldade de entender, né, como é que se transcorreu todo aquele
período lá. É quando a gente começa, eu comecei a entender o que foi aquele
período já tava no, no né, começa a ter uma consciência política já tava no
final, numa época de transição, né. E, historicamente é difícil entender, né,
porque a gente consegue saber do período, é o que a gente lê, né, de
movimento estudantil, de alguns movimentos pontuais de guerrilha que houve,
mas fora isso, né, parece que a sociedade conseguiu captar isso e levar a vida
na normalidade” (Anderson).
brasileira na época da ditadura é explicada tanto por Nelly Richard (1999) quanto por Irene
utilizado pelas ditaduras latino-americanas para fazer com que a sociedade acreditasse na
imagine para aqueles que não viveram diretamente o período. Os entrevistados, apesar de
ressaltam que os fatos desse passado próximo são obscuros para as pessoas que não
viveram a ditadura, uma vez que houve uma manipulação ideológica, através da
atinge a sua família que concebia o que ocorreu em 1964 como uma “revolução” e não um
golpe militar, como era divulgado e transmitido de geração a geração, por meio da escola,
da mídia televisiva e outros meios informativos. Por isso mesmo, ainda hoje, boa parcela
Eliana demonstra sua indignação por sentir-se “enganada” quanto àquilo que
aconteceu no passado e de perceber como a sua família era “cega” tendo uma visão
que a memória coletiva que foi construída por uma grande parcela da sociedade brasileira
coincide com a “memória oficial” que foi forjada pelos governos militares ao longo da
Ela continua seu discurso mostrando como sentiu necessidade de ultrapassar aquilo
que foi construído pelo seu grupo familiar e ir atrás de outras informações para conhecer
melhor o passado:
211
“(...)Então assim, eu acho que hoje eu sou militante, é, porque eu não quero
ser cega como meus pais foram, de achar que a gente tinha um presidente
escolhido entre os militares, e era um militar por mero acaso. E que o Chico
Buarque não fazia músicas do jeito que ele fazia de mero acaso, só porque ele
é um poeta. Ele é um poeta baseado na realidade, né. Então assim, o que eu sei
da ditadura, eu aprendi muito sozinha. Eu fui autodidata, porque na minha
casa ninguém gosta muito de política, né. E aí eu fui descobrindo meio que
tateando mesmo, pela curiosidade de uma criança, de uma adolescente, que foi
sabendo que tinha gente que violentava outras pessoas moralmente,
psicologicamente ou fisicamente. E, é, fui, é, assim por interesse pessoal
descobrindo alguns filmes que falavam disso, ouvindo alguns artistas que
falavam disso, ouvindo é, alguns políticos que falavam disso e prestando
atenção nisso. E eu dizia isso pra minha mãe: - Mãe, teve gente que morreu,
teve gente que estupraram, teve gente que as pessoas cortavam (...). E ela dizia
assim: Isso que acontece é lá na Rússia, minha filha, que lá é o comunismo, e
eu dizia: - Não mãe, é aqui perto da gente. E aí, eles se revoltavam por eu ta
dizendo isso. Então eu era a ovelha negra da família, como dizia a música da
Rita Lee” (Eliana).
“Então é assim, é, o que eu sei da ditadura é que foi um tempo muito ruim
para o Brasil. Eu acho que esse tempo, eu associo a ditadura com o futebol. Eu
não suporto futebol. Porque eu sei que usaram o futebol pra fazer com que o
povo não olhasse o lado político do país, né. (...) O que eu sei é que teve muita
gente que sofreu e que o povo brasileiro até hoje sofre a conseqüência, e hoje
no meu dia-a-dia do sindicato, quando alguém fala mal do sindicato, eu sei
que ela tá falando ainda porque ela foi ideologicamente programada pra
pensar assim. Programada pra achar que o Estado nas mãos dos militares é
melhor do que hoje, né. E que, então, pra mim é uma história de muita revolta
e se, eu não quero usar dos mesmos artifícios e da mesma violência que eles
usaram, mas me dói muito e, eu tenho vontade, às vezes, de fazer a vingança
da mesma forma, né” (Eliana).
“Bom, o que eu sei é que foi um período de repressão, né. Um período em que
é, o poder é, anti-democrático, né, tomou o poder e o poder militar, né. Em que
não havia liberdade de imprensa, liberdade de, de comunicação, né, de
expressão, né. Foi uma época de torturas, de, de perseguição, a,
principalmente aos atores, né, do movimento comunista, que tentavam, que
lutaram contra esse sistema que tinha sido colocado, principalmente o
movimento estudantil, que na época era muito forte, né. Hoje em dia já não, já
não tem a mesma força. Em geral, é mais ou menos isso” (Ronaldo).
política, social e também enfatiza a supressão das liberdades democráticas, dentre elas a
liberdade sindical:
“Bom, o que eu sei é que foi uma época muito dura para o povo brasileiro, que
foi cassadas as liberdades democráticas, as liberdades, dentro delas a
liberdade sindical, quer dizer, a gente não podia, a gente não, o pessoal não
podia ter nenhuma forma de expressão, nem política, nem social, né, que eram
totalmente cassados, nem mesmo o Congresso Nacional funcionou. Foi uma
época muito dura porque, praticamente, os militares mandavam e era a
política oficial, era só isso” (José).
Andréa e Vitor tiveram mais dificuldades de dizer o que aconteceu naquele período,
“Não sei nem se vou lembrar nomes de quem é que foi que instituiu, que
assinou lá o tal do AI 5, acho que foi isso, né. São, são memórias bem pontuais
de questões da escolarização, né. Então, da ditadura militar o que a gente sabe
é isso, né. O processo de tomada de poder pelos militares e todo o processo de
repressão que acontecia. Bem o que tá no superficial do, né” (Andréa).
Alguns sindicalistas disseram não ter certeza dos fatos, sempre insistindo em
afirmar que sabem pouco da história. Apesar disso, Edílson apontou uma série de fatos
militância é de outra época, de uma outra geração, (a chamada “geração que não tinha
memória”), e faz algumas comparações com os dias de hoje, afirmando que ainda hoje
existe repressão.
“Olha, eu não, eu sei um pouco da história né, assim, que a gente aprende aí
na universidade, na militância. Eu, particularmente nunca procurei ler muito a
coisa do porão da repressão, da tortura, porque é uma coisa que deixa muito
indignado e que sempre, agora é obvio, também, cê não pode abster dessa
coisa aí. Esquecer que teve tortura, muito pelo contrário, tem que saber disso.
Mas eu imagino que saiba, uma questão é, dos aspectos econômicos, sociais e
políticos, né. Do modelo econômico, do que a ditadura fez com o país nesse
momento. Agora também a repressão ao movimento, às liberdades, à
democracia, à organização, à liberdade de greve, ao direito de organização,
que pra quem milita num partido e pra quem milita num sindicato era
fundamental. Mesmo nos anos oitenta. Eu não, eu comecei a militar, já no
início, militar nos movimento sindical em 1990, quer dizer, primeiro ano do
governo Collor, tal. Eu sou de uma outra geração, né. É e uma geração que
não tinha memória, também não tinha, era jovem, mas assim, minha militância
é de uma outra, né. Mas e a gente percebe, quer dizer, se hoje tem dificuldade,
as pessoas, às vezes, não militam ou não se expõem, ou não organizam uma
greve, ou não participam de uma greve, por exemplo, uma greve, que é uma
coisa imediata, concreta com medo de perder emprego, quer dizer, como é que
seria isso na ditadura militar que além do emprego cê tinha, ser enquadrado
na Lei de Segurança Nacional, né. É muito mais em risco e a própria vida, né.
Muitos pagaram com a vida, né. (Edílson).
“Olha, sobre a ditadura militar eu sei muito pouco. Porque é aquilo que eu
estava te dizendo anterior. A gente, nessa época era criança, né. A gente sabe
que a ditadura militar, ela reprimiu muito o trabalhador, né. (...) a gente sabe
que, é hoje a gente temos uma certa liberdade, uma democracia que, entre
aspas também, mas que na ditadura militar a gente não conseguia nem essa
“entre aspas” porque, é, no sindicalismo não tinha essa liberdade que hoje
tem, né. Era reprimido, (...) quando tinha greve a gente ouvia falar pela
televisão, pelos jornais que eles reprimia de uma forma, né, bem pior do que
hoje. Apesar que hoje também, não deixa de reprimir. Mas é, assim, é o pouco
que eu sei da ditadura, não sei muito porque a gente não viveu diretamente,
né, militando. Mas é, foi uma época, pelo que a gente ouve dizer, foi uma
época que foi muito difícil para a classe trabalhadora por conta dessa
repressão da elite” (Vilibaldo).
pelo movimento sindical e pela classe trabalhadora. Em seus discursos está presente uma
memória que foi construída a partir da identificação social com a categoria social sindical.
O que eles sabem está diretamente vinculado à experiência sindical vivida por eles que
reforça o que já apontávamos em nosso estudo anterior: “(...) os discursos são construídos
no interior dos grupos com os quais nos identificamos e a partir dos quais reconstruímos
No que tange a memória das lideranças comunitárias a maioria delas destaca que a
ditadura militar no Brasil foi uma época de repressão, de falta de liberdade de expressão,
de perseguições e morte:
“Foi uma época que nós vivemos, de muita repressão, é, onde não havia
democracia, né. E a gente éramos é, muito sofrido, né, pressionados. Muitas
coisas que hoje nós fazemos, né, entendeu, nós não tínhamos liberdade para
fazer. Hoje, é, em relação ao passado nós estamos no paraíso” (Arnaldo)
215
“Eu sei que foi um período assim muito duro, né, de repressão tanto de
artistas, estudantes. De você não poder falar o que pensa, né. Então foi um
período assim bem de perseguição, né, tortura. Quem era contra esse regime,
né, era torturado, expulso e assim por diante, né” (Sara).
“Bom. Eu sei que foi uma época de repressão, onde nada podia ser dito, tudo
era censurado, vamos dizer, o que seria basicamente a verdade, o que a gente
vê hoje, né, num podia ter uma imprensa que divulgasse o que é dito hoje, que
tudo era reprimido, não tinha uma, como uma, dar continuidade, alguma
coisa. Quem tinha um pouquinho mais de voz ativa ou era extraditado ou era,
praticamente, extraditado não, exilado, né? Exilado e num tinha assim uma,
não tinha liberdade, praticamente. Todo mundo tinha que ficar calado com
aquilo que sabia” (Ciça).
“Olha, eu sei que foi uma barra, matou muita gente, é não se tinha abertura
pra nada, né, era muita repressão houve-se, é, como que se fala, dava-se fim
nas pessoas que queria mudar a situação, né, tanto é que tem a cova dos
indigentes aí que foram no cemitério de Perus (referindo-se a vala comum), né,
que foram achados desse período né, no período da ditadura” (Rosane).
“(...)Então eu sei assim, que as pessoas que se mobilizavam assim, tipo nosso
trabalho assim de liderança, de articular o povo, de acontecer alguma coisa,
elas eram muito perseguidas, mortas. É tudo que eu sei, assim. Ou se não eram
as próprias pessoas eram as famílias. Muitas desapareceram. Isso é tudo que
eu sei” (Inesita).
“O que fica pra mim do período militar é uma identidade, um pouco coletiva,
que o próprio, os próprios movimentos eles passam no sentido da repressão, é,
da luta política que se travou no período. Então é mais essa memória coletiva
mesmo do que conhecimento de fatos, de pessoas do período” (Fabíola).
Já Emerson aponta que o golpe militar foi aplicado pela burguesia que almejava a
Além disso, ele enfatiza que muitas pessoas, atualmente, acreditam que a ditadura
foi boa porque não tiveram acesso às informações e assinala que, economicamente, houve
privilégio de um grupo, visto que muitas pessoas cresceram, porém a grande maioria não
“(...)Hoje a gente conversa com as pessoas, “mas a ditadura era boa”, mas
boa porque as pessoas não tinha acesso a comunicação. É, era o chamado
policinco, aonde algumas pessoas se desenvolveram e muitas, muitas não
desenvolveram e o país, nesse período, se empobreceu muito porque foi nesse
período que se fizeram vários empréstimos internacionais e eu acho que, hoje,
se o pais tá nessa situação que tá, se nós temos, hoje, mais de cinqüenta
milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza é devido ao período da
ditadura, né” (Emerson).
Emerson acrescenta ainda que a situação de pobreza que o Brasil vive hoje é
isso, quem dissesse aquilo que tava pensando sobre isso, com certeza era
punido, né, com certeza” (Emerson).
É bem interessante a fala de Sandra que destaca a inversão ideológica que se fazia
com relação aos que lutavam contra a repressão, visto que ela assinala que havia uma
como “perigosos”. É exatamente a idéia de que existia um inimigo interno que devia ser
“(...) Agora o que eu sei da ditadura é assim, é que o governo passava uma
coisa, né, e o povo acreditava. Por exemplo, quem tava lutando era visto como
uma pessoa perigosa. Então os perigosos era o povo, no caso, que lutava e não
o, não o governo. Então na época eles viam assim. Depois que isso foi se
passando e hoje as pessoas que tão um pouco mais na militância entendem um
pouco mais” (Sandra).
Neste aspecto, vale destacar o que diz Cardoso (2001) com respeito a ideologia da
Doutrina de Segurança Nacional que foi uma das estratégias de implantação do terror
apontam para a existência de uma memória política que está sendo construída pelos
movimentos sociais e pelas classes populares que contradiz aquilo que foi transmitido pela
memória oficial.
Nesse sentido, essa memória política rompe com o caráter ideológico e alienante da
memória oficial, uma vez que se contrapõem, claramente às versões que foram instituídas e
fixadas pela história oficial, através dos mecanismos de manipulação como a escola e a
mídia.
gráficos para facilitar a visualização, já que as informações que eles nos forneceram se
deram através de questionários. Ressaltamos que, apesar de serem bem jovens, nos pareceu
80
70
60
50
40
30
20
10
0
o i l a al
lha vo nc
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dic ise lic tu
Ve No lism a S é e b a
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Go
Nao sei Quase nada Pouca Repressao Bastante Repressao Muita repressao
Gráfico nº 11
Podemos notar que os governos em que houve mais repressão foram os de Costa e
Silva e Médici, sendo este último considerado o mais repressor, que coincide com o
período posterior a instauração do AI-5, que foi a fase mais dura e repressiva da ditadura
democrática, os estudantes, na sua grande maioria, apontam que foi um período em que
existiu pouca repressão, demonstrando que eles reconhecem que a repressão não havia
sido banida com o fim da ditadura, permanecendo ao longo de todo o governo da Nova
República.
Com relação ao governo atual notamos que o item quase nada de repressão
predomina sobre os demais itens, o que significa, para a maioria deles, que quase não
existe repressão neste governo. Não obstante, nos parece relevante as indicações de “pouca
repressão” que aparece não só no governo da Nova República como também no governo
220
atual, o que é um indicativo de que, para eles, a sociedade atual ainda convive com algum
tipo de repressão.
tortura” seguida da “violação dos direitos humanos”. Notamos que os dois aspectos
apontados como de maior gravidade se referem a atos que violam a integridade física e
mental das pessoas ficando, mais ou menos, no mesmo nível de gravidade as questões
que é conseqüência dos atos repressivos praticados pelo Estado. Referente a esta violência
arbitrários do governo.
60
50
40
30
20
10
0
Gráfico nº 12
221
questionário aplicado aos estudantes e as frases que aparecem nos respectivos gráficos são
frases apresentadas pelos próprios estudantes. Estas foram sintetizadas em frases que
expressavam uma mesma idéia, seja de poder, violência, falta de liberdade de expressão,
conhecimento que os estudantes têm da ditadura e enfatizar aqueles aspectos que mais
aqueles que consideramos relevantes, apesar de não terem sido apontados pela maioria dos
estudantes. Cabe ressaltar que os enunciados dos gráficos correspondem aos enunciados
20
15
10
0
Há submissao ao poder
Prática de atos arbitrários
Supressao dos direitos constitucionais
Um grupo toma o poder e comanda por meio da força e do medo
Há imposição e concentraçao de poder
Há violação de direitos humanos
Não existe liberdade de expressao
Não há escolha de respresentantes pelo voto democrático
Dominaçao das elites e exército
Os militares decidem os rumos do país sem consulta popular
Interesses econômicos e manipulaçao internacional
A populaçao nao participa da política nacional
Não respondeu
Gráfico nº 13
222
poder, pela violação dos direitos humanos, pela supressão dos direitos constitucionais e
pela tomada do poder pelos militares que decidiam os rumos do país sem a participação
da população e exercendo o comando do país por meio da força e do medo, o que implicou
Para eles, uma conduta ditatorial seria principalmente “impor interesses do governo
30
25
20
15
10
Gráfico nº 14
223
utilizadas pelos regimes ditatoriais militares foram apontadas como os atos arbitrários do
liberdade de expressão.
pautaram, principalmente, por aquilo que eles conhecem das condutas praticadas pelo
regime militar no Brasil, já que os exemplos que eles utilizaram se referia à situação
brasileira.
Para que possamos comparar as características de uma conduta ditatorial com uma
conduta pouco democrática dirigimos agora nossa atenção para aquilo que os estudantes
20
10
0
Decidir o destino do país sem o aval da população
O consenso
Centralizar o poder privilegiando um pequeño grupo
Suprimir a liberdade de expressão
Ignorar opinioes diversas e ter suas crenças como dogmas
Ser eleito e nao responder aos ideais políticos populares
Cooptar membros de partidos e realizar troca de favores
Reprimir os movimentos sociais
Desrespeitar a constituiçao
Um autoritarismo que esmaga a consciência
Estar no poder sem ter sido eleito democráticamente
Controlar a imprensa
Expulsar pessoas que tenham opinião contrária ao governo
Retroceder a ditadura
Obrigatoriedade do voto
Não lutar pelos seus direitos
Manter o povo ignorante sem consciência da sua cidadania
Não respondeu
Gráfico nº 15
224
O leque de características das atitudes pouco democráticas foi muito maior do que
algumas carcterísticas que destacamos agora como “decidir o destino do país sem aval da
população”. Esta categoria é bem próxima daquela apontada como conduta ditatorial
“impor interesses do governo ignorando os anseios do povo”, ambas apontam que não
Notamos também que parte significativa dos estudantes não responderam a esta
questão, o que parece expressar uma certa dificuldade em caracterizar esta conduta. Em
enunciados.
Estado, e conforme podemos observar no gráfico, a seguir, as razões apontadas por eles
25
20
15
10
Gráfico nº 16
Nota-se que as três principais razões assinaladas por eles “Razões econômicas e
políticas que ameaçam o poder”, “interesse e ambição pelo poder” e “as disputas de
interesses políticos” referem-se às elites que tinham interesses econômicos e que queriam
contestação”, apontado por eles, corresponde ao período de grande agitação política que se
vivia nos últimos meses que antecederam ao golpe. Esses movimentos, marcados
que amedrontava as elites que trataram de se unir para instaurar a ditadura militar no
golpe de Estado.
governo” como uma das razões que costumam levar a um golpe. Embora no caso
226
brasileiro não tenha sido o descontentamento popular que levou ao golpe e sim o
Um dos enunciados dizia respeito aos piores aspectos da ditadura militar e nos
humanos” foram também indicadas por um grande número de estudantes. De modo que,
todas aquelas práticas que atentam contra a vida humana, especialmente as geradas pela
Conquanto, não podemos deixar de assinalar que, apesar de alguns aspectos como
democrática.
Com relação aos melhores aspectos da ditadura militar, não faltou a devolução de
uma pergunta “e teve algum?”, o que nos parece muito significativo. Nesta questão,
de estudantes que não responderam a questão, que tanto pode revelar que não sabem,
quanto pode revelar que não existiram melhores aspectos na ditadura. Entretanto, as frases
significativamente nas respostas dos estudantes. Lembremos que esta também foi uma
questão aberta, sendo as frases livremente respondidas por eles e não enunciadas por nós.
estabilidade econômica” do país. Aqui cabe assinalar que esta idéia foi muito propalada
essa idéia de crescimento econômico, tão defendida por grande parte da população
brasileira como a melhor coisa que foi feita pelos militares, tomamos novamente as
“milagre econômico dos anos 70” (p.149), sendo um dos fatores que contribuíram para a
muito objetivos afirmando, em sua maioria, que o fim da ditadura militar significou “a
volta à democracia, ampla abertura política, econômica e social”. Observamos que essa
Alguns chegam até a dizer que significou o “começo da democracia”. Muito associada à
“volta à democracia” está o retorno à “liberdade de expressão, que significa, para eles,
merecem a nossa atenção, especialmente porque são apontadas por um número mais ou
menos equivalente de estudantes e, a nosso ver, são também bem expressivas e dignas de
de esperança num regime democrático que coincide com toda a mobilização em torno das
Diretas Já71.
que não tenha sido apontado pela maioria, um grupo muito pequeno de estudantes indicou
controle rígido possibilitou o avanço do país. Essa idéia contradiz aquela em que
afirmaram que o crescimento econômico foi um dos melhores aspectos, visto que para
Os estudantes demonstram ser muito críticos e reconhecem que não vivemos numa
democracia em seu sentido pleno. Isso observamos em dois outros significados, com
eles manifestam que a democracia que vivemos hoje é uma falsa democracia, até porque
eles reconhecem que existem ainda hoje arbitrariedades e corrupção que desvirtua a idéia
de democracia. Ao que podemos aludir a Rancière (1996) que afirma que a democracia
democracia. Se por um lado há uma esperança na democracia, por outro lado há um certo
descrédito no que diz respeito à democracia que vivemos atualmente em nosso país.
estudantes, a atuação dos movimentos estudantis e das lutas populares parecem ter
produzido muito impacto. Mais uma vez aqui a questão da identificação com a categoria
71
Durante seis meses, milhões de brasileiros foram às ruas reafirmando o direito de votar para presidente. A
campanha teve início em novembro de 1983, com um comício em São Paulo, que reuniu 10 mil pessoas.
Prosseguiu em janeiro de 1984 com um comício em Curitiba e a concentração de 300 mil pessoas na Praça da
Sé, em São Paulo. E no dia 16 de abril, cerca de 1,7 milhão de pessoas se mobilizaram e saíram às ruas
novamente na capital paulista.
229
Por outro lado, um grande número não respondeu a esta questão – o que pode revelar um
enfraquecimento do regime ditatorial e, por isso assinalam que a transição se deu pela
análise feita por alguns estudantes de que a ditadura militar não terminou por mera pressão
popular e sim pelo próprio enfraquecimento do poder militar. Isso corresponde de fato aos
acontecimentos e aquilo que foi apontado pelas lideranças sindicais e comunitárias, visto
que havia um desgaste do poder militar e já não havia mais condições objetivas para se
negociação, haja vista que a própria indicação de Tancredo Neves para o cargo de
comunitárias que destacaram que a transição política brasileira foi resultado de uma
“Então acho que teve algumas coisas boas, né. Agora existe uma diferença
básica entre conquista e concessão, né. É, o regime militar já tava num
decrescente. Não tinha mais como continuar. Já tava ficando insustentável e
eles mesmo identificavam isso e viam a necessidade de haver uma transição.
Paralelo a isso houve algumas coisas boas, como o movimento das diretas já,
né, que talvez, foi um grande movimento nacional como há muito não se via,
né, de participação popular e de conscientização da população da necessidade
de voltar a democracia no país. É, mas, na verdade não foi uma conquista, né,
230
naquele período, foi uma concessão, tanto é uma concessão que eles
continuam fortemente e politicamente atuando no país, né” (Anderson).
Outro aspecto que podemos comparar é a afirmação dos estudantes de que havia
contra ditadura que parece predominar no meio estudantil e aqui encontramos uma clara
que foi este período de transição – que se refletiu no grande número de respostas em
branco, já que quase trinta por cento dos estudantes deixaram de responder essa questão.
existência de uma memória política da ditadura militar construída por uma parcela de
estudantes universitários, que elimina aquela generalização de que os “jovens não têm
veículos de informação
evidentemente nos lança a curiosidade e a necessidade de saber quais teriam sido as fontes
pelas quais souberam desse período. E indo às fontes, não encontramos grandes diferenças
fundamentalmente através do colégio. A mídia para eles também foi uma importante fonte
de informação, seguida do contato com pessoas que viveram a época, do vídeo, cinema e
de leitura e informação política. Chama-nos a atenção o fato da universidade não ter sido o
100
90
80
70
60
50
40
30
20
10
0
Colégio Universidade
Leitura e informaçao política Participação política
Pessoas que viveram a época Mídia
Vídeo ou cinema Outros
Gráfico nº 17
232
No que se refere aos contatos que eles tiveram com pessoas que viveram a época é
importante destacar que eles apontaram que o principal contato foi com familiares, sendo
atuação nos movimentos sindicais ou sociais. Nas suas falas, elas descrevem com alguns
A escola parece ter sido um dos primeiros meios de informação sobre a ditadura
militar, uma vez que muitos deles afirmam que souberam da ditadura militar através da
escola:
Além das informações recebidas na escola, a maioria deles apontou que soube da
ditadura por meio da sua participação nos movimentos em que eles atuam, especialmente
através dos cursos de formação, seminários, debates. E, nesse sentido, é bem interessante o
“Através da escola, né, que a gente estuda um pouco mais, um pouco que a
gente sabe foi nessa convivência do movimento sindical, né. Muitos anos que
233
“Por meios, até mesmo de muitas palestras na Igreja e escola, livros e também
investigando um pouquinho, assim a época dos Queixadas, fazendo trabalhos
sobre eles, uma pesquisa que eu fiz. Eu peguei muita coisa da época da
ditadura” (Ciça).
“É de ouvir as pessoas falar mesmo, em reuniões, assim, a gente vê. Até, por
exemplo, preparando a missa da Vala comum essas coisas, a gente vai
resgatando um pouco. Igual, eu entrei naquele site das famílias dos
desaparecidos, então você começa a ler, né” (Sandra).
Nas fala de Luciara é bem interessante a ênfase que ela dá à memória histórica
“Na caminhada, eu acho que muita gente fala hoje nas comunidades, tenta
fazer essa memória histórica porque a gente precisa, a partir do momento que
você vem participar de um movimento, de uma comunidade é necessário a
gente ter essa abertura de conhecer quais são, qual é a nossa história, quais
são as nossas raízes, né. Então assim, eu participei de muitos encontros,
formações que me deram esse suporte pra conhecer um pouco mais da onde
que o que leva a gente hoje a se organizar enquanto comunidade. E
logicamente hoje, na faculdade a gente retoma isso. O curso que eu faço é
serviço social, então a gente tem que, tem que tá fazendo, tá tendo esse
contexto histórico tudo, né” (Luciara) [grifos nossos].
234
O destaque dado à memória histórica coincide com o apelo feito por Martin Baró em
seus escritos sobre a Psicologia da Libertação, em que ele aponta que o trabalho de
criticamente seu passado e seu presente em vista dos projetos futuros, tanto pessoal quanto
No caso de Emerson, o fato de ter participado dos debates, seminários, etc sobre a
Sara, além de apontar que a maior parte das informações que ela teve sobre a
ditadura foi pela sua participação nos movimentos sociais, faz uma crítica à forma como a
escola aborda o tema da ditadura, uma vez que não desperta o interesse sobre o assunto,
“Eu acho, nos movimentos eu acredito que foi maior, a informação. Lendo
alguma coisa, muito pouco, né. Mas, porque período escolar eu lembro que
tinha algumas coisas assim, mas na época a gente não é, não tem muito
interesse. Por quê? Eu vejo assim que os professores acabam passando aquilo
como uma matéria e só, sabe. Não dão uma, uma ênfase maior à história
mesmo do país, né. Então é, não cria um, assim um interesse muito grande. A
235
gente inclusive achava as aulas super chatas, né. Os alunos acabam, puxa,
mas é bem aula chata, aquela coisa de datas e só, só... Era isso que
interessava, parece, né? Então, a gente acaba não se interessando muito.
Então, depois, assim na participação, é, nos movimentos, né, populares, aí
você começa a se interessar mais pelo assunto, buscar mais, saber, né” (Sara)
informativos como a leitura, a televisão e contatos com pessoas que viveram a época, como
“Olha. Grande parte por livro e algumas coisas, né, que meus pais tinham
passado já. Que viveram não diretamente, mas indiretamente também, tinham
tido alguma influência daquele período, é, principalmente que era a época da
faculdade deles também, é mas a maioria é por, por literatura, né”
(Anderson).
foi também por meio do contato com pessoas que testemunharam o período:
“É, por leituras, escola, e também a gente acaba tendo contato com pessoas
que vivenciaram aquele período, né. Então, por exemplo, no meu trabalho eu
tenho uma colega de trabalho que teve um tio que foi morto no período militar.
Então a gente, nesse tipo de contato também (Fabíola).
Conversando também com outras pessoas, aqui no próprio sindicato, né. Tem,
tem pessoas aqui que viveram essa época e sofreram torturas, foram
torturados, foram presos” (Ronaldo).
foram vários e vão desde o processo de escolarização, passando pelo contato direto com
militância política. Há que se destacar ainda que nem sempre aquilo que souberam através
comunitária.
período da ditadura militar para a sociedade brasileira, tanto para as lideranças sindicais e
72
Para nós, como já apontamos, a memória não é representação do passado, nem “reprodução”, mas se
ancora nas “representações coletivas” que estão presentes nas sociedades e nos grupos para reconstruir o
passado com os significados do presente.
237
Apesar das lutas populares, da participação mais efetiva dos movimentos sociais
contra a repressão, grande parte dos entrevistados afirmam que o período da ditadura
“Acho que representou um, um período de atraso, né, porque nosso, o período
da ditadura atrasou a gente, entendeu. Nós podíamos estar muito mais
avançados, entendeu. Nós podíamos ser uma população muito mais
democrática, né, entendeu. Porque hoje nos, nos programas sociais, né, e tal
ainda há muita, entendeu, muita política de repressão, entendeu. Mesmo na
democracia, entendeu, ainda tentam tirar muito a liberdade da gente, de
expressão, de trabalho, né, entendeu. Então, é, hoje, a gente tem que hoje lutar
bastante, entendeu, mesmo na democracia pra que essas coisas não voltem”
(Arnaldo).
“Pra população no geral. Eu acho que acaba sendo um atraso. Não tem como
um regime desse, por mais que os caras digam que, economicamente, foi um
período de estabilização a gente sabe que não foi, né. Que, que a população,
que o povo, continuou sendo mais pobre ainda, que o bolo, até hoje, não foi
dividido. Então assim, eu acho que foi um grande atraso ideológico, político,
social, econômico. É um atraso pra vida das pessoas, né. (...) qualquer que,
qualquer movimento que se faça, que, que, né, que venha a cercear o direito
das pessoas, de qualquer forma, ele vai sempre representar um atraso. Ainda
mais com a concepção de que ficou por tanto tempo, né. Então, eu acho que se
eu fosse resumir o caso, eu acho que foi um grande atraso no desenvolvimento
do país, eu diria isso. Foi um atraso” (Andréa).
“Eu acho assim que o problema maior é o endividamento do país, porque aí,
com certeza, a geração dos meus pais, a geração, a minha geração e a
geração, a nova geração que tá vindo agora perde muito com isso porque o
Brasil tá totalmente endividado, foi nesse período que o Brasil se endividou,
até essas pessoas que têm o seu mundinho particular, tem seu sobradinho tal,
tão perdendo muito com isso porque não têm acesso à cultura, não têm acesso
à educação, não têm acesso à quase nada nesse pais então é, foi um período
drástico e até hoje a gente perde muito, historicamente, politicamente e
economicamente” (Emerson).
238
Muitas falas foram marcadas por silêncios, e como apontam Luciara e Rosane a
ditadura representou um choque para população, uma coisa muito ruim: “Um choque”
(Luciara).
Contudo, a representação da luta também marca esse período como expressa Maria:
“Foi um período de muita luta, muita mudança, muita mudança naquela época” (Maria).
“(Longo silêncio). Acho que foi, talvez a resistência mesmo, né. A resistência
dessas pessoas que estavam engajadas em combater, né. Porque acho que em
todo o período existem aqueles que tão alheios a qualquer coisa, né, como
aqueles que tão, né, por dentro do que que tá acontecendo e vão ser contra ou
a favor, né, existem vários. Então, eu imagino que naquela época também
existiam aqueles que não, não sabiam muito bem o que tava se passando e
aqueles que resistiram e combateram, né, é, fortemente contra isso daí, né”
(Sara).
Ciça chega a afirmar que foi um período que marcou a história e onde as pessoas
começaram a se organizar:
“É, acho que foi um marco na história onde começaram se, as pessoas
começaram a se organizar, a fazer mais... quem teve a coragem de se mostrar,
embora ter sido exilado, quando voltou, voltou com mais força e foi
239
reconhecido pelos outros. Então, acho que começou a ter mais respeito por
essas pessoas” (Ciça).
Sandra faz uma distinção do que representa para a população em geral, que tem
pouco conhecimento da ditadura e das pessoas que estudam, que têm mais acesso às
informações ou que participam. Ela acredita que a população em geral não tem muita
“Eu acho que pra população eles não têm muito conhecimento, não. Pra
população eu acho que eles não têm noção o que foi isso, o que serviu, se
serviu pra alguma coisa. Eu acho que, aparentemente, talvez assim pro pessoal
mais de faculdade, que estuda tem uma consciência, né. Mas pra população
que não tem essa vida, essa coisa, eu acho que não tem muita” (Sandra).
uma conquista:
Eu acho que, é, pra essas pessoas eu acho que se torna um compromisso, eles
começaram e a gente tem que dar continuidade, porque não foi pouco o que
eles passaram e eu acho que é uma conquista, né, com todo esse sofrimento,
com toda essa luta, eu acho que é uma coisa assim que vai acontecendo, né. É,
a gente sabe que a democracia hoje tá conturbada, tudo, mas eu acho assim,
eles tinham, por exemplo você vai lutando, você tem um ideal, no meio do
caminho cê fala: é não vamos chegar nisso, mas vamos conseguir isso. No
meio do caminho a coisa vai acontecendo, as idéias vão mudando. Eu acho
assim, é, o ideal deles vai se conseguindo aos poucos, não foi uma coisa que
regrediu, foi uma coisa que avançou” (Sandra).
“Olha, eu acho que representou uma época, é, assim, pras pessoas refletirem e
tomar algumas posições, assim, é... porque qual é o objetivo da ditadura? O
objetivo da ditadura é que as pessoas, é, tinha que obedecer, tinha que falar o
que eles queriam. Então eu acho que serviu pra que as pessoas tomassem
posição em relação a vários aspectos, várias questões, é, sobre a própria vida,
sobre o futuro dos filhos, sobre o que eles queriam, é, pro futuro, porque, é, na
minha opinião, eu acho que a ditadura, num certo ponto, é, foi positivo pra que
as pessoas acordassem, acordar e ver que não é a forma de viver da forma que
tava vivendo na época da ditadura. Então, vamos despertar todo mundo.
Vamos lutar por um outro regime, vamos lutar pra gente ter direito de se
organizar, ter direito de falar, ter direito de, de, até de sair de casa porque,
antigamente... É o direito de ir e vir que a constituição garante, né. Então eu
acho que serviu pra todo mundo, é, refletir, é, e caminhar pra uma outra, pra
um outro regime, né, claro que, não é esse que tá hoje mas... que caminha,
né” (Vilibaldo).
representou a letargia do povo brasileiro, ou seja, um período em que o povo não reagia:
241
“Uma letargia completa, né. Eu acho que foi uma letargia do povo brasileiro e
da América Latina como um todo, né, embora não dê também para generalizar
isso, né. Teve, é, os reflexos culturais importantes, né, que não dá pra
menosprezar é, mas na história do povo brasileiro, né, não dá muito para
dissociar da América Latina. O que aconteceu aqui foi muito próximo com o
que aconteceu com a grande maioria da América Latina. É, a gente ficou à
deriva, né, dos países mais desenvolvidos aí, do egocentrismo da América do
Norte e que a gente continua sendo colônia e que nos dificulta cada vez mais a
tomada de consciência, né, que justamente a globalização, ela tem que ir no
caminho inverso” (Anderson).
Para José, esse período marcou a vida do povo brasileiro e representou um vácuo
porque privou a sociedade de sua liberdade. Para ele é como se a história tivesse parado no
tempo.
“Olha, pra população eu penso o seguinte: pro povo brasileiro, como eu disse
é uma marca, é um período um pouco nebuloso, né que o povo buscava se
expressar de alguma maneira, e que, portanto a ditadura, na verdade ela
cerra, né quer dizer, toda a possibilidade do pessoal poder ter uma forma de
avanço coletivo da sociedade, né, porque as escolas são controladas, as
universidades são controladas, tudo é controlado, né, e o povo não consegue
dar esse passo, né, de construção social. Então para o povo eu acho que
representou um vácuo, entendeu, na história do povo, é um tempo, (...) não
tem uma representação, não tem um salto histórico, né, pro povo brasileiro, foi
um período que nós ficamos parado, propriamente na construção dos nossos
movimentos da história” (José).
nem toda a sociedade brasileira sabe que foi um período em que morreram muitas pessoas
para que a sociedade conheça a história. É necessário também falar dos “verdadeiros
heróis” brasileiros como Santo Dias e Margarida Alves que foram mortos naquele período
porque lutaram contra a ditadura e que são um exemplo para nós hoje:
“Então, acho que é uma lacuna da história brasileira, né, porque, quando se
fala em ditadura, algumas pessoas relembram alguma coisa, alguns como, a
questão de ter um ente perdido, que sofreu ou por ter sofrido esse processo
todo ou de outros acharem, não, era um grupo de baderneiros que foram lá.
Acho que o conhecer essa história, essa, abri realmente essa, os fatos
verdadeiros desse processo vai ser assim uma compreensão interessante pra
própria sociedade. Pra ela ter uma idéia de, não oh, teve um grupo de pessoas
que lá trás brigaram pela gente. Ter, ter isso como, por que na realidade essas
pessoas que se insurgiram antes do golpe, esses movimentos sociais, né, foram
um exemplo que a gente deveria tá seguindo e na realidade, foi um após golpe
toda a repressão que houve no período militar. Então, e pouco se fala dos
heróis brasileiros. Os verdadeiros, o Santo Dias, outros que não são tão
conhecidos, Margarida Alves. Alguns outros que são conhecidos, líderes que
foram claramente sacrificados, né. O próprio Chico Mendes, que não tão
distante mas pela repressão muito mais econômica, embora posterior por
organizar os seringueiros contra os grilheiros e contra os fazendeiros, teve
um fim, né. Então, os nossos heróis lá trás que a gente pouco sabe, pouco
conhece deles, acho que a sociedade perdeu muito com essa lacuna da
história. Acho que o grande prejuízo pra sociedade como um todo foi a lacuna
na história. A gente não ter conhecimento” (Armando).
Cabe aqui uma comparação entre as falas de José e Armando: para Armando a
conhecimento do que aconteceu: “Acho que o grande prejuízo pra sociedade como um
todo foi a lacuna na história. A gente não ter conhecimento” (Armando). Tanto que
Armando mostra que a história não enfatiza a luta dos movimentos sociais e dos
verdadeiros heróis, aqueles que deram a vida para ter um país diferente. Para José, no
em que não houve nenhum tipo de avanço dos movimentos: “um período que nós ficamos
Ronaldo destaca, de um lado a união das pessoas que queriam mudar a situação e
de outro, uma fase negra73 da história, o lado negro do poder. O adjetivo negro é entendido
por ele como algo ruim, uma fase difícil pela qual passou sociedade brasileira:
vários estudantes. Exemplo claro é que a maioria dos estudantes de todas as cidades
bastante enfatizada foi que a ditadura significou “Uma mancha (marco) na história
brasileira”. Com relação a esta última, um bom número de estudantes fez referência a uma
“mancha negra”74 para dar ênfase ao aspecto negativo da ditadura, outros apontavam como
negativamente a sociedade brasileira, deixando seqüelas que estão presentes até hoje e que
estudantes, assim como para as lideranças sindicais e comunitárias, esse período foi um
73
Não concordamos com o uso desse adjetivo para representar “coisas ruins”, pois julgamos ser um uso
inadequado e preconceituoso e que, infelizmente está muito introjetado na linguagem dos brasileiros. No caso
de nossa pesquisa foram várias as vezes e situações em que esta expressão foi utilizada. Apenas um dos
entrevistados, se auto-corrigiu imediatamente após mencionar essa expressão: “Eu espero que essa história
morra, cada ano que passa ela vá sumindo, que os nossos filhos e nossos netos não percebam essa, essa
244
sociais”.
das representações e significados atribuídos à ditadura, tanto por parte das lideranças
sindicais e comunitárias quanto por parte dos estudantes que apresentamos a seguir:
lideranças e estudantes
marca, né, essa coisa, essa mancha negra que passou pelo Brasil. Acho que nem negra, porque os negros
não tem nada a ver com isso, mas essa, essa mancha horrível que passou pelo processo no país” (Emerson).
74
Novamente aqui a expressão “mancha negra” utilizada para indicar elementos negativos.
245
Tentamos estabelecer alguns paralelos entre aquilo que apontaram estes dois
grupos.
período militar representou um atraso para o país que repercute até nossos dias
aos direitos, que se expressa através da negação do ser humano, além de ter
reproduzido uma política elitista, que com certeza está intimamente relacionada à
estudantes, o fato de ter sido um período de extrema repressão e coerção, ele ainda
repercute nos dias de hoje tanto que os leva a afirmar que foi uma vergonha para o
história que deixam de contar, ou seja, a que foi suprimida pelo poder militar e
pelo processo de transição com respeito aos desaparecimentos até hoje não
contra o regime militar. Para os estudantes, isso é expresso como “um período
que concorrem para o esquecimento. Essa lacuna, essa interdição faz com que o
período seja nebuloso para a grande maioria da população que fica paralisada
246
isto implica em uma marca, uma mancha, um vácuo, algo que marcou de maneira
de resistência contra o governo é claramente apontada pelos dois grupos, sendo que
movimentos sociais.
São significados e representações que passam pela consciência política tanto dos
estudantes, que não estão engajados políticamente, quanto dos militantes que atuam nos
uma memória política que não é simples evocação do passado, mas que apresenta os juízos
período da ditadura, fica evidente que foi um período que ainda repercute na nossa
80
70
60
50
40
30
20
10
0
Estudantes Universitários Lideranças comunitárias e
sindicais
“pouca” e “muita” repercussão nos dias de hoje. Podemos dizer que a grande maioria deles
acha que existe pouca repercussão ao lado de um número considerável de estudantes que
afirma que ainda existe muita repressão. Entretando, entre as lideranças cerca de 80 %
que vinte anos depois do fim da ditadura, ainda o legado ditatorial repercute na sociedade
universitários não deixam de reconhecer alguns elementos desse legado que prevalecem
ditadura militar que estão presentes na memória dos estudantes e das lideranças sindicais e
comunitárias.
248
CAPÍTULO VI
Os impactos sociais e psicopolíticos
na construção social da memória
_________________________________________________________________________
Morte vela sentinela sou do corpo desse meu irmão que já se vai
Desejo nessa hora tudo que ocorreu, memória não morrerá
Vulto negro em meu rumo vem
Mostrar a sua dor plantada nesse chão
Seu rosto brilha em reza, brilha em faca e flor
História vem me contar
Longe, longe, ou ouço essa voz
Que o tempo não vai levar
A ditadura militar brasileira, com todo seu aparato repressivo, deixou muitos
legados para as gerações que a sucederam, tanto negativos – que permanecem na sociedade
aspectos que encontramos nos relatos dos entrevistados: o primeiro que se refere à
enraizados na sociedade brasileira por meio das instituições políticas, policiais e, inclusive,
Em seus aspectos subjetivos, podemos apontar todas aquelas coisas que afetaram e
afetam ainda hoje essa geração, visto que nossos sujeitos reconhecem que foram, e são,
afetados pela ditadura em função do autoritarismo que ainda permanece nas relações
sociais hoje.
que os anos da ditadura ainda estão presentes na sociedade brasileira, uma vez que,
segundo eles, a ditadura afetou todo o povo brasileiro, não só os que viveram aquela época,
mas as gerações posteriores, já que muito do que vivemos hoje é herança do regime
ainda permanece nas formas autoritárias que se manifestam na nossa sociedade de maneira
camuflada, no meio político e nos próprios movimentos em que participam, por meio das
atitudes de certos líderes. E apontam que ainda temos muito que caminhar para chegar a
uma consciência política democrática com maior autonomia, em que o povo brasileiro,
“Ela (a ditadura) continua de alguma maneira. Meia que encoberta, mas ela
continua hoje no nosso meio. Seja através de lideranças que hoje se colocam
como meio, né, como povo, né, que tão aí pra ajudar o povo e tudo mais, mas
que no fundo são só uma casca, né, que carregam toda aquela exposta na
ditadura, né. Então eu acredito que continua hoje, normalmente no meio
político, né. A gente percebe isso claramente e nas formas de como fazem esse
tapar a boca do povo, né. Passando melzinho, cuidando para as pessoas não
falarem, dando uma coisinha ali, outra coisinha lá. Então acho assim, que é
uma forma de se manter, querer se manter no poder, querer continuar
dominando, né, toda a linha política que a gente vive, né. Então eu acho que
ela continua aí, permeando nosso meio, de uma maneira muito, né, mais
camuflada, mas tá aí”. (Luciara)
“Muito das coisas que a gente ainda vive hoje é herança daquele período, né ,
que não precisava ter ocorrido essas questões. A própria dificuldade que gente
251
referem à democracia atual, que, para Vilibaldo, não deixa de ser uma forma de ditadura:
“Existe uma ditadura hoje que é a ditadura, como eu posso dizer, uma
ditadura (...), que é, o cara tá na fábrica, ele trabalha, não tem a garantia de
emprego, ele tem que trabalhar, ás vezes, mais do que o seu horário, tem que
fazer o banco de horas e ganha menos, e às vezes, ele tem que se submeter
aquilo ali porque ele tá precisando do salário. Então é a ditadura do
desemprego. Ele tá agarrado naquele negócio que tem que tá no emprego.
Então, de certa forma é uma ditadura, diferente, mais é. Mais é com mais
democracia, vamos dizer, né, entre aspas. Ele tem, ele pode, por exemplo falar
o que ele pensa, ele pode fazer greve também, entre aspas, né” (Vilibaldo).
“E hoje o que a gente vive é uma falsa democracia. Porque existe a repressão
de um lado, mas como nós vivemos sobre essa nuvem de democracia, a gente
acha que tá tudo bem. E as pessoas estão morrendo, os movimentos estão
sendo massacrados, a repressão continua em vigor na sociedade” (Fabíola).
252
1.3. A concentração do poder que leva uma idéia de política como coisa ruim, é uma
coisa nefasta
coisa ruim, como uma coisa nefasta que tem como conseqüência o descrédito na política e
questões.
“Eu acho que hoje eu, ainda tem algumas marcas, eu acho que hoje eu tô
percebendo o mal que a ditadura fez pro meus pais, né, pro meus irmãos e pra
geração que eu tô vivendo. A ditadura ainda faz mal porque ela deixou essas
marcas, da concentração do poder, de dizer que a política é uma coisa ruim,
que a política é uma coisa nefasta, não liberta, acho que isso a ditadura
influenciou na minha pessoa, acho que graças a Deus estou conseguindo a se
libertar aos poucos desse processo” (Emerson)
“Uma coisa que, acho que a própria concepção de política. As pessoas, ‘ah,
eu não gosto de política’. Não, eu sempre costumo dizer, você pode até não
gostar de politicagem, porque política você faz quando você levanta e quando
você deita. Então, a questão política de convivência, de lutar pelos seus
direitos, de manter seus direitos é uma questão diária. É uma coisa que as
pessoas tem que fazer até pra, como sobrevivência, né. Você se omitir e deixar
que as pessoas façam, então, quer dizer, você pode até não gostar da
politicagem que alguns políticos fazem, que a grande maioria dos políticos
fazem. Então, nesse sentido, hoje você vê, que as pessoas são muito mais
acomodadas politicamente. São poucas as pessoas que se expõe ou que resolve
se expor ou que, porque sabem, que, quer dizer, eles tem medo de serem, é,
como na ditadura, quem se sobrepõe como liderança era reprimido, eles têm
medo de serem pressionados. Então eles preferem levar uma vida pacatinha,
tendo o mínimo de conforto e tal, a tô bem, muito obrigado, às vezes se
engajam muito mais na torcida de seu time organizado do que propriamente
buscar seus direitos ou lutar pelos seus direitos enquanto categoria bancária,
enquanto é, problemas do bairro, de asfaltar uma rua, de acabar com o esgoto
de céu aberto. Se organizam por outras coisas, quer dizer, outros interesses
menos, digamos assim, de expressão política e preferem,’ ah, não, em política
não quero me meter” (Armando).
253
criticando o regime militar ,faz com que, ainda hoje, muitas pessoas tenham receio de fazer
suas críticas, de expressar suas opiniões, de participar, de inclusive lutar pelos seu direitos.
muitas pessoas nas lutas sociais. Como podemos ver, Luciara, Sandra e Eliana apontam os
resquícios da ditadura que ainda existem na atualidade, enfatizando o medo que leva
“Eu acho que as seqüelas estão aí, né. E muitas, muitas pessoas, muito do
medo hoje do povo se organizar também ta aí. Principalmente das pessoas
mais antigas. As pessoas mais antigas, os mais velhos, né. Que eu acho assim
que isso acabou querendo ou não colocando muita, muito medo, muita
insegurança nas pessoas. Então hoje quando os jovens, principalmente querem
fazer alguma coisa de novo, acaba que as pessoas ficam não, não é por aí,
tem que ter cuidado, né. Então ainda existe isso. E de uma forma meio
indireta acaba afetando a gente, né. Porque barra de você também buscar
uma organização mais, mais coletiva, né, de poder realmente implantar o
novo, de ir pra rua sem ter medo, com mais segurança, né”(Luciara).
“É porque eu vejo assim, por exemplo, podia dizer assim. Hoje as pessoas não
lutam porque têm medo daquela época, né” (Sandra).
254
Como bem aponta Irene Cardoso (2001), durante o regime militar no Brasil houve
Com toda essa estratégia repressiva, esse medo se prolonga em outras esferas da
vida em sociedade e é igualmente expresso em outras relações pessoais e sociais que ainda
obediente.
em outras instituições sociais como a escola, que mantém, em sua grande maioria uma
relação absolutamente autoritária entre seus pares, direção, professores e alunos, baseada
Fabíola fala de um medo coletivo, vivido ainda hoje pela população e que é herança
“Eu acho que o processo militar, ele deixou marcas na sociedade, que estão
até hoje, um certo medo coletivo, inclusive da participação. E, como eu, eu
atuo na área do direito, e eu estudo muito a questão e tô dentro da Secretaria
de Defesa Social e Trabalho, a questão de policiamento e segurança popular,
a gente tem uma identidade muito da polícia, muito de polícia ainda, de
segurança ser feita através da polícia, e eu acho que essa é uma característica
que vem do processo militar. Quer dizer, você não trabalha a segurança
pública através de projetos sociais. Você trabalha através do policiamento, da
repressão ainda. Então isso tá muito forte ainda na sociedade brasileira.
Apesar da gente viver um processo democrático. Eu acho que é democrático,
entre aspas. A gente ainda tem, vive, efetivamente, um processo de repressão,
de ditadura, das classes mais marginalizadas serem o tempo inteiro. E é o
povo marginalizado que tá morrendo! Então a gente vive ainda sob o efeito, eu
acho, um pouco desse período militar, do processo de repressão” (Fabíola).
É fato que nos chamados organismos de repressão toda estrutura policial permanece
“suspeitas”, o faz usando de grande violência, tanto física quanto moral, agindo, quase
sempre, com preconceito contra negros e pobres. Embora exista a liberdade de manifestar-
despejar famílias, utilizando-se da mais brutal violência, por meio dos batalhões de choque
contra a população civil desarmada. Essa ação policial é um atentado contra a democracia
resquícios da ditadura com os quais convivemos na nossa sociedade, resquícios estes que,
“(...) com certeza, nós ainda temos alguns resquícios da ditadura nesse país.
As polícias militares dos Estados têm muito resquício da ditadura, é, muita
coisa nesse país vem de cima pra baixo, as leis são feitas muito de cima pra
baixo, justamente por causa dos resquícios da ditadura. Nos não temos acesso,
a população mais pobre não tem acesso às informações ainda, não tem acesso
a liberdade graças ainda a essa bendita ditadura, né. Então eu acho que a
gente vai sofrer, a gente sofre e o Brasil ainda vai sofrer pra se libertar desse
processo, pra sair dessa marca da ditadura vai levar algum tempo ainda.
Algumas gerações ainda vão ter que passar, os nossos filhos, quem sabe os
nossos netos, pra nascerem livres desse processo, dessa marca” (Emerson).
256
repressivas permanecem, visto que ainda hoje se reprime greves, ocupações de terra e
direito a terra e moradia, direito de reivindicar como caso de polícia, caso de exército,
“(...) na greve de 95, né, algo muito similar e que pareceu natural para a
grande maioria da população. Nós fizemos, né, fizemos uma greve histórica de
32 dias e tava com o exército tomando a refinaria ali, né. Nós tendo que entrar
, né, descontar do salário. Ficamos sem salário, sem as férias, né e nós ia
trabalhar lá, efetivamente pra manter, porque a não se pára, tem que manter
ela né, com um número mínimo. (...) e com o fuzil lado a lado ali, né, tanque,
metralhadora, né. (...) Qual que foi a resposta daquele, do movimento sindical,
talvez eu tenha clareza disso. Aquela greve de 95 é, quando o Fernando
Henrique jogou a força que jogou, inclusive com as forças armadas ali, é, a
crise que, que aconteceu no movimento sindical se deu a partir dali, né”
(Anderson).
Para Vitor, esse é um legado que sobrevive por causa do uso de práticas de tortura
que mostra a ineficácia da segurança pública que, com sua forma de atuar, cria rechaço da
população:
nesse país hoje, adota um pouco daquele sistema de repressão, né, que não
deveria, porque o papel não só da polícia como do exército não deveria ser
esse de forma nenhuma, né, deveria ser de integração com a população,
proximidade ao máximo da população. O que existe hoje é o que existe,
inclusive naquela época. O cidadão, hoje, ele não respeita a polícia, ele,
literalmente, ele tem pavor, ele tem medo da polícia exatamente por causa
desse legado que se vem dessa época” (Vitor).
Apesar destas gerações não terem vivido diretamente o “terror político” imposto
pela ditadura militar ficam evidentes as “cicatrizes” desse passado próximo que subsiste na
humanos, haja vista que o fato de não se punir os responsáveis pelas torturas demonstra a
ineficácia do Estado em solucionar os atos de violação aos direitos humanos que ocorreram
conforme vem sendo denunciado pelo Grupo Tortura Nunca Mais – RJ. No que diz
respeito às violações dos direitos humanos por parte do Estado, ainda nos deparamos com
denúncias destes casos nos órgãos de defesa dos direitos humanos, que encontramos várias
incidências deles. Evidentemente, nestes casos de violação por parte do Estado, a situação
258
é ainda mais grave, já que este deveria ser o principal responsável por zelar pela
abertura dos arquivos, ou seja, defende a sua abertura e entende que esse ato significa
“escancarar feridas ou imposições da ditadura”, e que tornar isso público nos ajudará a
“Ah, como é que fala, ao total apoio dos meios de comunicação aos militares.
É, tanto pra encobrir certas coisas, pra não divulgar e tanto, também, pra é,
259
você tentar maquiar uma situação. É o caso até da, da Copa de 70, que eles
maquiaram, né. Deram ampla divulgação, é festa, e como se tudo tivesse as
mil maravilhas aqui e não tava, né. Então, os meios de comunicação. Você não
tinha liberdade, mas tinha aquelas que, aqueles meios de comunicação, que
eram os incentivadores, né. Tinham, né, você, a repressão mesmo no meio
cultural, as torturas, os, as mortes, os exílios” (Ronaldo).
“Eu acho que esse tempo, eu associo a ditadura com o futebol. Eu não suporto
futebol. Porque eu sei que usaram o futebol pra fazer com que o povo não
olhasse o lado político do país, né. (...) O que eu sei é que teve muita gente que
sofreu e que o povo brasileiro até hoje sofre a conseqüência, e hoje no meu
dia-a-dia do sindicato, quando alguém fala mal do sindicato, eu sei que ela tá
falando ainda porque ela foi ideologicamente programada pra pensar assim.
Programada pra achar que o Estado, né, nas mãos dos militares é melhor do
que hoje, né. E que, então, pra mim é uma história de muita revolta” (Eliana).
Nota-se que os entrevistados, ainda que não tendo vivenciado diretamente esse
passado, sentem-se afetados por ele, uma vez que o legado deixado pelo regime militar,
Nesse sentido, é muito ilustrativa a fala de José, que reforça também a relação que
existe entre passado e presente, ou seja, de como este passado é trazido para as
experiências do presente:
“Eu acho que repercute porque a história do povo, né, ela é carregada pro
presente. Eu acho que repercute. É, muitas vezes as pessoas ainda temem, né,
ainda temem do passado, é um passado marcado, tanto que a gente vê o
envolvimento do povo brasileiro, (...) a gente vê que o povo brasileiro ainda
carrega uma marca da ditadura que é uma marca de não organização efetiva
dos seus movimentos sociais, né. Eu acho que carrega, aliás, a gente carrega
em leis hoje, quer dizer, por incrível que pareça, o SNI não foi desmontado
pelo governo Lula. Tudo bem, temos um ano de governo Lula, os doze anos de
Collor e, de Sarney... é 16 anos de Sarney, Collor, Itamar e os oito anos de
Fernando Henrique Cardoso que a estrutura de vigilância, espião, araponga
não foi desmontada, né, quer dizer e isso pesa na história de nosso povo, né. É,
a gente conseguiu pôr o povo na rua pra derrubar o Collor, mas foi uma longa
batalha, né, porque eu acho que é carregado sim, a história da ditadura pesa
ainda na história do povo brasileiro” (José).
260
Sociais
por uma “memória oficial”, que ao longo dessas décadas vem ocultando da população
brasileira esse passado repressivo, e ainda um efeito desmobilizador das lutas provocado
luta contra o esquecimento, que vem sendo construída pelas classes populares.
Cabe ressaltar que a experiência passada tem uma forte implicação na construção
da memória coletiva presente, visto que, como nos aponta Connerton (1999) “as nossas
passado e que as nossas imagens do passado servem para legitimar a ordem social
vigente” (p.: 4). Para este autor, as experiências do presente estão ligadas aos objetos do
passado, de modo que “viveremos nosso presente de forma diferente de acordo com os
no interior dos seus grupos de pertença, sejam eles sindicatos, movimentos sociais,
entrevistados.
brasileira que não se envolve em ações políticas, nossos dados mostram que, a experiência
rompe com essa alienação por meio da crítica a memória oficial, potencializando as
pessoas que hoje atuam nos movimentos sociais a continuarem a luta contra todo tipo de
repressão e autoritarismo.
apontar alguns elementos que nos permitem afirmar que as lideranças sindicais e
um golpe, né, através do colégio eleitoral, mas foi uma vitória da classe
trabalhadora, com certeza (José).
contra a ditadura, ainda permanece entre as pessoas que estão na luta hoje, e garante a
ditadura é atribuída à classe trabalhadora, visto que os movimentos sociais, segundo eles,
iniciaram sua força de organização na ditadura e tinham um poder de atuação muito mais
forte que em nossos dias. Desta feita, apontam que a luta pela liberdade, o enfrentamento
corrupção exigiram organização do movimento. Saber que muitas pessoas derramaram seu
sangue e perderam suas vidas por uma causa justa, pela liberdade, os impulsiona a lutar e
“Ele é impulsionador. Eu acho que ele faz com que a gente perceba que há
muito mais a fazer ainda, né. Porque esse processo que, que muitos passaram,
o sangue de muitas pessoas derramado merece receber justiça de alguma
263
neoliberalismo.
“(...) mas eu também acredito, quer dizer, essa mudança só vai vim com o
povo organizado, o povo na rua e aí o papel do movimento social é
fundamental. E aí essa imagem da luta pela liberdade, de enfrentar os
governos é importante porque, é também essa coisa é importante, né, porque o
povo também derrubou uma ditadura militar. (...) quer dizer, e o nosso papel
aqui no movimento é organizar esse povo pra derrubar essa coisa que se
chama capitalismo. É, e pô, mas vamos olhar ali, os caras ali enfrentavam o
exército, você só precisa enfrentar, entendeu (bate palmas) que não é fácil, a
gente sabe, é o neoliberalismo. (...) É, e uma construção, né de anos que se foi
formando isso, né, agora também é isso, quer dizer, se, continuar esse modelo
econômico a exploração do povo aumenta, quer dizer, e o nosso papel aqui no
movimento é organizar esse povo pra derrubar essa coisa que se chama
capitalismo. Se vamos conseguir a história é que dirá, né” (Edílson).
O espírito de luta do passado, que mobilizou o povo para derrubar a ditadura, é uma
referência que potencializa os movimentos para derrubar algo ainda maior que é o
dominação, tornando difícil de se identificar contra o quê se está lutando, coisa que,
“Eu acho assim, que na época da ditadura o teu inimigo tava muito mais
claro, né. Então você sabia que queria um outro tipo de governo, né. Então
assim, contra a repressão, claro, violência e tudo que aquilo gerava, então. Eu
vejo assim, que hoje os movimentos sociais não têm tão claro qual que é o,
contra quem nós tamo lutando, sabe?” (Sara).
A força que mobilizava os que lutaram contra a ditadura era também mais eficaz
porque o “inimigo” (o regime militar, com suas técnicas repressivas) era concreto, visível,
“Eu acho que eu volto um pouco naquilo que eu falei, né. Da necessidade das
pessoas se organizarem coletivamente para derrubar algo que cerceava, né, a
liberdade mesmo de todos. Então, foi o momento em que os movimentos sociais
se fortaleceram muito. Porque passa por isso que eu disse. Cê tem um inimigo
concreto, real, palpável, que tava matando pessoas, que tava torturando.
Então, mesmo o sujeito, eu penso, né, mais alienado, ele tinha um motivo pra
ser contra aquilo, né. Que podia falar, que dizem que foi uma época de uma
estabilidade econômica, de um certo desenvolvimento no país, mas ninguém
podia passar alheio à tortura, né, ao direito de vida, né. (...) não tinha como as
pessoas passarem a margem daquilo, né. Fazer de conta que não era com elas,
né” (Andréa).
Observamos que são memórias que resgatam o acontecimento real, que são
reconstruídas e mantidas, neste caso, pelos movimentos sociais e sindicais, por parte dos
estes sujeitos começam a ter uma consciência política por meio da participação no
sindicato e nos movimentos, visto que souberam da ditadura nos encontros, nos seminários
promovidos pelos movimentos sociais e nas comunidades onde participam, nos espaços de
“Eu sempre falo pras pessoas que elas só vão aprender na luta mesmo, no dia
a dia. Eu também, naquela época que eu tava na escola, eu não entendia. Eu
só fui entender depois, participando. Então eu acho que é isso, também. Se as
pessoas não entrarem no movimento popular, numa luta, elas não vão
entender, não vão tomar gosto assim pela coisa e ver que vale a pena”
(Sandra).
75
Estas “escolas” populares são aquelas escolas alternativas de formação de lideranças organizadas por
ONGs, Igrejas ou coletivos de movimentos sociais.
266
Desta feita, constroem uma memória coletiva que se situa dentro destas categorias
conhecer o passado para agir no presente. É uma memória coletiva, que por suas
características e por sua relação com a ação política se constrói como uma memória
política.
existência de seqüelas da ditadura, como medo, que leva muitas pessoas a não se
envolverem nas lutas populares, ela afirma que esse medo não a intimida a participar dos
movimentos sociais. E, além desta força concreta dos movimentos sociais, ela fala da
mística que existe nas comunidades eclesiais de base (CEBs) – que estão inseridas na luta
proposta pela teologia da libertação e, como já apontamos no primeiro capítulo, foi muito
“Eu acho assim que a convicção que faz com que a gente hoje participe das
comunidades, todo o processo feito pra vim a participar de uma comunidade
eclesial de base, que eu acho que essa igreja que eu entrei e que eu me sinto
parte, ela te dá suporte pra você não ter medo, né. Pra você ter a segurança
de, que é através da organização, que é a através da participação que você vai
conseguir um mundo mais justo. Então não tem como você ficar se intimidado
frente a algumas situações. Acho assim que nós já fomos pra muitas
movimentações assim conflitantes, na frente do Palácio do Remo76, na frente
da Prefeitura, é, né, nas próprias romarias que se participa, a gente acaba
enfrentando pela, pela mística que nos envolve, eu acho. Essa mística de, essa
espiritualidade forte, né, de acreditar que tem um Deus que te impulsiona. Tem
um Deus que não ficou calado diante da injustiça, quer dizer, então, essas
coisas me fortalecem e o fato do próprio companheirismo, né. A gente tem
muitas pessoas que junto com a gente nos dão essa segurança” (Luciara).
se refere aos acontecimentos do passado nos permite afirmar que: “(...) la experiencia
pasada recordada y las imágenes compartidas del pasado histórico son un tipo de
recuerdos que tienen una importancia particular para la constitución de grupos sociales
Por isso mesmo, como já apontamos no primeiro capítulo, não podemos separar a
construção de uma memória política, dos grupos e movimentos sociais, pois entendemos
que as construções do passado são sustentadas por estruturas coletivas, como aponta
Halbwachs (1990, 2004) e criadas por atores sociais, sejam eles grupos ou indivíduos.
Nessa perspectiva, a memória depende das relações que estes atores sociais estabelecem e
desenvolvem com a família, com a classe social, com os movimentos sociais, com a escola,
com a igreja, com os partidos públicos, ou seja, com toda a gama de grupos com os quais
76
O Palácio do Remo está situado em Curitiba.
268
2.3. Os que vivenciaram a violência política, a tortura deram uma lição de cidadania
para o país!
violência política e que mostraram que nosso país não tem um dono, é uma nação e tem
preso, torturado, morto, mas foi uma geração que lutou e enfrentou tudo isso e, por isso
democracia, da liberdade, que significou o início de um novo tempo: “Eu sei, mas assim, a
importância porque depois de tudo isso começou um novo tempo, né, apesar de tanto
Arnaldo, por sua vez, considera esta liberdade de um valor inquestionável, pois foi
“Eu acho que é de uma importância assim, de valor, assim, inquestionável, né.
Porque se nós tamos vivendo hoje uma liberdade de expressão, entendeu, uma
liberdade conjunta da comunidade, poder fazer o que nós fazemos hoje, é
graças a esse período, entendeu, de luta, de questionamento, né, do que é
certo, o que é errado, né. E acho que ainda tem muito a melhorar, entendeu.
Porque hoje nós questionamos também entendeu e tal. Mas hoje é um período
bem mais fácil, bem, mais tranqüilo. Então assim, aquele, se não fosse aquele
período, a pressão popular, os líderes, naquela época, lutando é, pra por suas
idéias no papel e na cabeça de outras pessoas, hoje nós seríamos muito mais
oprimidos, entendeu? Talvez hoje nós ainda era os mesmos escravos daquela
época” (Arnaldo).
Essa conquista, obtida por meio do sofrimento e da luta, foi um aprendizado que
trouxe perspectivas para o país e nos ajuda a vislumbrar que o Brasil de hoje tem solução,
“Eu acho que é isso a importância das pessoas conhecerem, é que daí
conseguiriam olhar um pouco mais a história, olhar o país com mais
perspectivas, né. Quer dizer, mostrar assim que ele tem solução, ele tem
chance, né, de se construir algo diferente, né, e a valorizar também a própria
organização, né, olhando essas pessoas todas que derramaram seu sangue
pela, por amor ao país, não por amor ao poder, por amor ao país. Então eu
270
acho que, é, nesse sentido, era importantíssimo que as pessoas tivessem esse
conhecimento” (Luciara).
outras organizações populares demonstram que construíram uma visão mais crítica da
sociedade, da polícia militar e das situações autoritárias que vivenciam na sociedade como
“Eu acho que fica, o que fica um pouco. Diretamente, não. Porque eu não
vivenciei, nem tive familiares que vivenciaram. Como eu tenho uma atuação
mais política fica é, uma, uma certa identidade, né, é, com a luta política das
pessoas que, que deram a vida por aquela causa e também a gente passa a ter,
inclusive um certo, é, é, uma visão mais crítica, é, é, da polícia militar, de, de
vivências autoritárias, né, política. Então, mais diretamente afetada não.
Diria,essa, essa visão mais crítica, politicamente” (Fabíola).
que vivem em Perus assinalam que sabem da ditadura por causa da vala comum existente
“Olha, eu sei que foi uma barra, matou muita gente, é não se tinha abertura
pra nada, né, era muita repressão houve-se, é, como que se fala, dava-se fim
nas pessoas que queria mudar a situação, né, tanto é que tem a cova dos
indigentes aí que foram no cemitério de Perus, né, que foram achados desse
período né, no período da ditadura”. (Rosane)
271
Paulo, talvez não proporcionaria a memória do que aconteceu ali na época da ditadura. O
que realmente faz com que se construa uma memória política da ditadura são as atividades
que fazem deste espaço um espaço memorial, “um lugar de memória”, onde se celebra e se
“(...) através da vala comum, por exemplo, aqui em Perus foi feito um trabalho
pelo grupo de direitos humanos, muito grande em cima da vala comum, com
filmes, com palestras. Eles fizeram um trabalho grande, embora as pessoas
que eles conseguiram mostrar, proporcionar isso, foram poucas, né” (Ciça).
“Olha, a única memória que eu tenho, assim de, de, desse fato pra não se
perder foi é, grupo de Fé e Política mesmo, porque, em outras áreas você não
vê nada disso, né. A não ser no grupo de Fé e Política da Igreja lá, né, que
num determinado momento apareceu, foi mais uma palestra (...)” (Rosane).
A respeito das comemorações, Paul Connerton (2001) destaca que é por meio das
e conserva o conhecimento do passado. Para ele tais cerimônias nos permitem “ver que as
conservados por perfomances (mais ou menos) rituais” (Connerton, 2001: 45). Segundo
esse autor, ao estudarmos como se constitui a memória social, estamos estudando os “atos
Connerton (2001) discorre sobre a importante função das celebrações realizadas como um
recurso para se fazer memória de eventos passados, como é o caso das celebrações
comemorações são processos ativos da memória coletiva, como bem aponta Cardoso
(2001):
referindo-se ao que ocorreu no período da repressão, quanto podem ser utilizadas pelos
próprios poderes dominantes para manter a memória oficial. Essa advertência é feita por
Ricouer (1996) ao afirmar que existe um uso político abusivo das comemorações
nacionais, das grandes datas caracterizadas, tanto pelas vitórias quanto pelas derrotas e que,
da própria “Revolução de 1964” (que já pelo nome oficial atribuído ao Golpe de 1964
diferentes sentidos que se atribuem ao passado, sentidos estes que negam as grandes datas
273
comemorativas nacionais, que não dizem respeito às lutas levadas a cabo pelas classes
populares. Lembremos o caso do monumento Tortura Nunca Mais, em Recife, que citamos
no Capítulo II, construído não só para rememorar aqueles que foram vítimas da ditadura,
mas como espaço de luta, de mobilização social contra a tortura e a violação dos direitos
humanos.
Portanto, com base na memória construída por nossos entrevistados, podemos dizer
coletivas do presente, uma vez que a memória permite reconhecer aquilo que ficou nos
longo de décadas. Esta irrupção provocada pela luz da memória exige procura cuidadosa,
faz por meio das manifestações públicas, comemorações, cerimônias e rituais. Rememorar
e comemorar aquilo que estava perdido e foi encontrado, aquilo que estava encoberto e foi
memória histórica é, em si mesmo, a construção de uma memória política, que se faz por
1998:171).
possível construir nenhum projeto político novo se não se conhece o passado. Faz-se mister
mesmo que Martín-Baró vai insistir na importância de “una clara memoria historica, para
rastrear los dinamismos de su história, para saber donde buscar las causas de su opresión
acontecimentos como uma fatalidade e contribui para que os erros do passado não sejam
repetidos. Nesse sentido, o processo de reconstrução de uma memória política rompe com
participação política dos atores sociais que atuam hoje nos movimentos sociais, uma vez
que permite a essas gerações descobrir, seletivamente, aqueles “elementos del pasado que
275
fueron eficaces para defender los intereses de las clases explotadas y que vuelven otra vez
a ser útiles para los objetivos de lucha y concientización” (Fals Borda, 1985, citado por
permitem afirmar que há implicações das práticas de resistência dos movimentos sociais e
política, que se reflete, atualmente, na memória política das gerações que não viveram a
ditadura militar brasileira. Deste modo, por meio da participação nos movimentos sociais e
lutaram contra a ditadura militar e encontram nessas experiências motivação para suas
“Eu acho que tem uma importância fundamental. Eu acho que é um dos
processos mais próximos, mais ricos da, digo na questão política, que deixa
essa identidade de luta, de engajamento, de participação popular, e, inclusive,
por ser tão recente, deveria ser aquele, aquele período que a gente deveria tá
buscando, até pra buscar hoje uma atuação mais efetiva (...) e da gente vê que,
que existe uma, é, falta essa participação. Então acho que ela, por ser um dos
períodos políticos mais ricos, que estão mais próximos, dessa geração agora, é
aquele que a gente deveria se, até espelhar pra luta política da atualidade”
(Fabíola).
atores políticos das novas gerações para as ações coletivas do presente. Sendo assim, não
democrática, a experiência dos entrevistados foi muito mais próxima. Alguns dizem saber
muito pouco a respeito como é o caso de Arnaldo, Maria e Ronaldo. Arnaldo se diz muito
garotão nessa época e que o que ele sabe foi por meio das informações que recebeu de
outras pessoas.
“As informações que eu recebi e tal. É que teve muita pressão, né, caiu, né.
Caiu a, a ditadura, né. E teve eleição, né, e através da eleição, né, se elegeu e
aí começou a democracia, entendeu. Eu não tenho muita informação de como
foi passado isso não. Uma falha aqui” (Arnaldo).
“Ah, isso eu sei muito pouco. É, eu acho assim, né, mais liberdade, né, do
povo, né, mais liberdade pra falar, os próprios governos, né, quando trocaram,
né, tudo, os próprios governos que já esteve em outros... Eles mesmos podiam
expor o pensamento deles, né, os governos, os prefeitos, a política que ficou
uma coisa mais maleável, mais participativa, mais democrática, eles ouviram,
passou a ouvir mais o povo” (Maria).
Tancredo Neves, que foi o primeiro presidente da democracia. Mas não têm certeza se
“Vou te ser sincero que eu não tenho muita informação sobre isso. Mas, o que
me veio aqui agora foi: Tancredo Neves. Foi o primeiro presidente da
democracia, não foi isso? Eu não sei se, se como é que se deu isso. Se foi, se
foram os deputados, se foi o povo que, se foi o desgaste, o próprio desgaste da,
da, do. Eu não sei te falar. Mas, eu sei que foi na época, né, que o Tancredo
Neves ia ser eleito e que, que a partir daí foi, né, uma nova realidade, né, pra,
pras pessoas. Eu acho que, apesar de que com a década perdida, né, do Brasil,
que eles falaram, né. Uma década perdida, a década de 80, o Brasil só
277
regrediu, né. Mas, foi, foi o principio, né, de tudo. Eu não, eu não tenho
informações assim, pra te falar, eu não sei é” (Ronaldo).
“Eu guardo algumas coisas bem recente, né, que era da época do Figueiredo
e a transição e a saída do Figueiredo e a eleição se dá pra se dizer assim do
Tancredo e já que ele, né , e pra tudo ajudar, né, aquela complicação que
houve, né, com o Tancredo indo pra presidente e não assumindo já e
assumindo o vice, né. Esse é um passado bem mais recente que infelizmente eu
começo a ter uma percepção extra pela vida normal de adolescente e começar
a ter consciência do que tá ao redor. Então é um passado bem recente,
infelizmente” (Anderson)
neste período de redemocratização e vivenciaram um pouco mais esta época que a época
da ditadura. Andréa lembra os nomes de políticos que fizeram parte do cenário da transição
democrática.
Inesita lembra a Campanha pelas eleições diretas para presidente - “Diretas Já”
- que conquista as ruas em fins de 1983 e inícios de 1984 - e que marca a fase final da
ditadura militar. Ela aponta ainda alguns fatos do período democrático, como por exemplo,
“Primeiro é que teve aquelas eleições diretas, né. “Diretas já” que a gente
teve um presidente daí, né. E o regime escolhido foi república, é isso? É então
o pessoal escolheu presidencialismo, né. Então acho que daí, de lá pra cá, a
gente já tem mais ou menos uma idéia, né. A gente já tava grandinho. Daí as
pessoas também tiveram direito ao voto, né, que nós não votávamos, né, a
população toda” (Inesita).
Sara, lembra também a campanha pelas “Diretas Já” e chega a relatar o dia da
eleição de Tancredo, que foi realizada pelo Congresso Nacional e transmitida em cadeia
“Das diretas. Eu lembro assim, muito bem o dia, não tinha muita consciência
disso, né, foi em 88 [sic], as diretas. É, não, 88 [sic]? Eu lembro assim do dia,
no Congresso lá todo mundo reunido. E eu torcia não sei por que, pro
Tancredo Neves. E daí ele ganhou e tal e tal, então. Aí depois teve todo aquele
processo das diretas, né, que foi um movimento assim, muito, foi
importantíssimo pra a redemocratização do país, né. Muitas pessoas aí
próximas, companheiros que é participaram desse processo de luta pelas
diretas e tal. Eu ainda não, né. Eu ainda tava meio fora ainda, né, tava
começando realmente, né. Talvez percebia algumas coisas assim, mas muito
superficialmente ainda, né” (Sara).
Vamos nos dando conta de que a memória, por ter muito mais elementos do
presente, contribui para que, grande parte das lembranças consideradas por eles mais
significativas, refira-se àquelas que foram vividas por eles no período de transição como a
Claramente, estamos diante de uma memória política que se configura dentro do dilema
ditadura-democracia:
“Olha, pra ser sincero, que eu possa marcar mesmo, né, acho que é mais o fim
da ditadura, né, a luta que aí eu me envolvi, de certa forma, que era a luta
pelas diretas, né, que foi exatamente o momento da abertura democrática no
país, que era um combate político, né, pelas diretas, que foi o momento que eu
participei, né. É mais o que chama a atenção também é a própria garra do
pessoal da época que manteve, né, a esperança e a vontade de lutar contra a
279
ditadura que fez com a gente chegasse comemorar as diretas, mesmo que as
diretas foi dado um golpe, né, através do colégio eleitoral, mas foi uma vitória
da classe trabalhadora, com certeza” (José).
Anderson, por exemplo, diferentemente dos que atribuem o fim da ditadura a uma
conquista da classe trabalhadora ou do povo brasileiro, afirma enfaticamente que foi mais
segundo ele, é uma ditadura econômica. Ele também acredita que o fim das ditaduras da
Ele lembra também o movimento dos “caras pintadas”, que para ele foi um
movimento mais festivo e, julga que as mudanças ocorridas na sociedade brasileira foram
“Se você pegar, surgiu um movimento muito mais festivo, depois foi os caras
pintadas, na questão do Collor, né. O Collor só criou aquela comoção popular
tudo, mais, em função de aberrações de corrupção, que é uma mudança de
percentual. Na ditadura aconteceram aberrações com relação à corrupção e
nem por isso foram apuradas. Há uma mudança na sociedade? Há e tal, mas
foi uma coisa muito mais consentida, de consenso dentro da sociedade, né. A
OAB próxima e tal. Então hoje você tem a, com a liberalização da economia
como um todo você tira um pouco do poder da questão política. Hoje o poder
político, ele não tinha a força que o poder político tinha na época. Então, hoje
você, a gente pode falar, mas hoje você tem a política do país calcada na
política internacional, ancorada numa política internacional. Eu acho que
hoje você tem muito mais dependente de uma política internacional. Então
hoje o poder político ele é muito mais, né. Ele é menor do que se tinha na
época da ditadura” (Armando).
depois da ditadura militar que foi no ano de 1989 e enfatiza toda a mobilização política
“Ó, eu , eu, o período mais forte político que eu vivi, que eu ainda era
adolescente foi o período de eleição de 89. Aí , eu me lembro, que, na época eu
morava na Bahia então o Lula passou lá com a caravana. Então tinha aquela,
aquela questão do povo na rua que, pra mim, foi mais marcante. Que hoje
também a gente vê que tá, até que teve isso depois da eleição de Lula, o povo
foi pra rua. Mas assim, não existe aquela característica de luta mesmo,
entendeu? Quer dizer, as pessoas vão pra luta num, num, num período, num
dia e voltam para casa. Então não existe é, e acabou. Não existe uma vivência
diária da militância como existia naquele período. Mas assim, é, esse processo
de democratização pra mim, tem muito é, uma certa esperança com a
participação popular, mas eu acho que ainda é pouco, porque a gente precisa
de um Brasil de, de luta social ainda pra os problemas sociais que a gente
enfrenta. Então eu acho que há essa, essa ida pra rua da população a partir da
abertura só que essa, essa ida não significa uma participação efetiva,
inclusive, dos próprios movimentos sociais e dos movimentos sociais, é, eu
acho que começa um processo que é muito de luta específica na sua área.
Então os movimentos não se encontram. Então o movimento de mulher, que
luta pela questão da mulher. O movimento de terra que luta pela questão da
terra e não há um encontro pra uma luta coletiva, pra uma vida é, mais digna,
né, da sociedade brasileira” (Fabíola).
principalmente porque, após vinte e cinco anos, se consolidaria a primeira eleição direta
escolha de um governo que, sendo legitimado pelas urnas, poderia promover as mudanças
lugar na memória do brasileiro que hoje é adulto, especialmente porque houve uma
repercussão extremamente midiática com relação a esse período, que foi de novembro de
1989, com a eleição de Fernando Collor de Mello, até o seu impeachment, em 1992. Para
este autor, que estudou a memória do governo Collor nas páginas do jornal “O Globo”:
“a memória que compartilhamos desses fatos vem em grande parte dos relatos
ou versões que acompanhamos na época pelos jornais, rádios e TVs. Para a
282
Nesse sentido, as gerações atuais estão sendo muito mais submetidas aos efeitos da
Esse efeito midiático é apontado por Armando quando diz que “o Collor só criou
aquela comoção popular” e, reconhecendo que a sociedade passou por mudanças, ele
critica que estas foram provocadas pelo consenso “Há uma mudança na sociedade? Há e
tal, mas foi uma coisa muito mais consentida, de consenso dentro da sociedade, né”
(Armando). Consenso este produzido pela realidade social criada pela mídia, que acaba
sendo acatado pela sociedade brasileira como um todo. Com base nas afirmações de
Franceschini, podemos dizer que a memória social, presente nos discursos produzidos pela
construída pela população brasileira. Por isso mesmo, nos chama a atenção a crítica que as
77
O “ll” (a letra l duplicada) grifada foi destacada pelo próprio autor, pois este era o símbolo do presidente
Fernando Collor.
283
lideranças comunitárias e sindicais fazem desse período. Há, pois, elementos que vão além
própria democracia, que sofre muita manipulação ideológica, sobretudo por meio da mídia,
“Ah, eu acho que ainda nós não tamo vivendo um processo democrático
ainda, né. Eu acho que, que ainda há resquícios. Olha, o processo democrático
em si mesmo, na verdade ele, quer dizer, que eu vejo é assim, que ele é muito
feito na massa de manobra, né. Eu acho que o processo em si da democracia
no país, ela foi mais feita pelo interesse de algumas, de algumas lideranças
políticas, né, e eu acho que ainda temos muito a avançar na democracia, temos
muito, né, porque democracia pra mim é acesso e só ter direito a falar não
quer dizer muita coisa. Então, acho que foi uma democracia cerceada, uma
democracia, meia democracia e meia democracia não é democracia. Então
acho que, é, foi muito mais assim preocupado com a, nesse período foi muito
mais preocupado com a crítica internacional, se tentou fazer isso preocupado
com a critica nacional, claro que foi, se esse processo foi tentado também é
porque tinha muitas lideranças, né, o povo, essa parcela da população tava
exigindo isso porque acho que chegou um período que a ditadura já não era
mais, já não era mais aquilo que a população acreditava naquele momento ali.
Então eu acho que a ditadura se perdeu pra ela mesma. Então eu acho que a
democracia é uma meia democracia ainda e foi uma meia democracia. Tudo se
tentou fazer pela televisão, né, acho que tem que avançar muito ainda da
repressão” (Emerson).
E no que se refere à democracia, Eliana diz que ainda falta muito para uma
verdadeira democracia, para que o povo brasileiro tenha de fato a democracia como um
valor e, nesse sentido, ela questiona que toda a mobilização em torno da campanha pelas
diretas foi fomentada muito mais pelas elites do que pela população em geral:
“Eu acho que falta muito. Eu acho que falta muito, porque é assim, apesar de
ter muita gente na rua naquele momento, eu acho ainda que foi um momento
de muitos intelectuais e de pouco do povo. Eu me refiro às diretas. E eu me
refiro à valorização da democracia. É como assim, é, uma vez diziam que o
PT, tinha, é, a elite que mandava, né. Tinha a elite de pensamento, que era o
284
Ela afirma que o povo brasileiro não tem enraizado que a democracia é um valor e
que a ditadura foi responsável por toda essa exclusão social que se vive hoje no Brasil e,
apesar de valorizar muito a organização e luta dos movimentos sociais, faz uma crítica aos
“Então, hoje eu vejo assim ó, nós não temos enraizado no povo brasileiro, que
a democracia é um valor, que a gente não pode abrir mão. Que a ditadura foi
um momento ruim, que foi um momento de escuridão, de falta de transparência
política, financeira. Que tráz hoje imensos prejuízos sociais, econômicos. Que
ela, ela aumentou a exclusão social, que ela botou gente pra fora do país, né.
Que hoje quem ainda procura ir embora, é por conta também disso, é um
reflexo ainda. Enfim, nós não temos enraizado. Porque é assim, acho que os
nossos movimentos, apesar de toda sua grandeza, de todo seu valor, não
trabalhou isso, e não conseguiu dar conta dessa tarefa. Porque talvez, pela
necessidade de trabalhar o imediato, esquece isso” (Eliana).
Vitor concorda que ainda falta muito a fazer para se consolidar a democracia,
“Houve sim uma passagem da ditadura pra esse regime, mas que falta muita
coisa ainda pra se colocar em prática. Eu destacaria a liberdade de expressão,
acho que é uma, o surgimento de vários movimentos sociais, eu destacaria, é,
que culminou exatamente com essa transformação, com o fim, inclusive, foi
que, as eleições das diretas é um e fundamentalmente a resistência. Isso aqui
pra mim, na minha opinião, é uma das coisas que mais a gente deve ter em
mente. Resistência naquele período pra lutar contra o fim e resistência no
momento de transição e, nos dias de hoje, resistência pra não deixar perder o
pouco que foi conquistado, que eu acho que ainda falta muito. Na minha
opinião talvez o regime é que tá longe ainda nesse país de se colocar em
prática, mas sem dúvida nenhuma que o melhor regime, sem dúvida nenhuma
que seria o socialismo, né, onde daria sim, cê teria um pouco mais de divisão,
distribuição de renda, né, liberdade. Então eu destacaria sem dúvida nenhuma
são esses pontos eu destacaria” (Vitor).
Luciara reforça esse papel de organização dos movimentos sociais e destaca como
Emerson, por sua vez, embora se posicione de maneira bem crítica, também
afirma que os movimentos fizeram aquilo que era possível naquela conjuntura, mas
“Com certeza, o movimento social foi importante, por mais que essa meia
democracia foi feita, mas houve um esforço tremendo do movimento social,
houve um esforço tremendo. Eu não tenho dúvida que as pessoas que tinham
em mente a democracia, que queriam essa abertura queriam o melhor para o
Brasil, queriam o melhor pra população. Eu não tenho dúvida disso, agora, é,
pra sair de uma ditadura e ir pra um processo democrático não vai ser assim,
não é assim, não é de um estalo, né, não é. Pra mim o que eu consigo perceber
é que naquele momento a democracia interessava muito mais por causa da
eleição por isso que é um processo equivocado. Mas que a visão das
lideranças naquele período era a melhor visão possível, era, e foi feito aquilo
que era possível fazer diante do histórico que a gente tava vivendo no país.
Não tinha, talvez não tivesse outra maneira, se não fizesse aquilo a ditadura
poderia continuar, o processo continuaria fechado. Então acho que isso é uma
coisa que tem que ser valorizada, com certeza, e as lideranças que viviam num
momento e até hoje vivem queriam o melhor para o país. Eu acho que a gente
tem avançado, mas ainda falta muito, mas a gente tem avançado, né, tem
avançado. Temo tentado democratizar o meio de comunicação, temo tentado
democratizar a política partidária, eleitoral, temos tentado democratizar.
Vamos ver se conseguimos avançar mais ainda” (Emerson).
destacar que, se não fosse os movimentos populares, a sociedade brasileira não teria
chegado à democracia. Além disso, expressa, com muita emoção, a energia, a garra, a
vontade de lutar e o desejo de mudança que está vivo no interior desses movimentos,
“Com toda essa fragmentação que eu te falei, né, sobre eles (os movimentos),
eu acho que se não fosse os movimentos populares nós não estaríamos no
patamar que nós estamos hoje no país. Que é esse patamar de esperança, de
vontade de mudar, de acreditar, né, e eu acredito que é, junto a esses
movimentos que eu consigo ver essa, ver perspectiva, ver horizonte, né. Então
mesmo com toda essa, essa, esse rebaixamento que teve em alguns momentos
aí, eu acho que ele, ele contribuiu e muito, o movimento social nesse sentido,
né. É uma pena, eu gostaria muito de ver novamente o povo na rua. Isso era, é
um dos sonhos assim, de ver realmente o povo na rua de novo, acreditando, se
organizando em conjunto, né, fazendo realmente o país ir pra frente através
desse, desse balanço é, alegre, feliz. Porque a gente, é uma das coisas que
mais me, me anima na caminhada é que o povo que participa dos movimentos
populares, que participa das Comunidades de Base é um povo que é feliz,
287
naquilo que faz. E faz com convicção, né. Então todas as pessoas que hoje
estão dentro de um movimento social e, principalmente das comunidades
eclesiais de base são pessoas que sentem uma energia muito grande. E isso
impulsiona pra luta, né. E isso faz você não ter medo, não ter insegurança.
Você sabe que tem alguém do teu lado, que tá junto, que tem a mesma garra,
que tem a mesma vontade, né” (Luciara).
Desta feita, eles trazem à luz um passado construído por memórias esquecidas, ou
seja, memórias não contadas pelas narrativas oficiais, mas que passa a ser contada, agora,
por eles mesmos como uma memória política de resistência que os potencializa a
CAPITULO VII
Memória Política: As Interfaces entre
Memória Coletiva e Consciência Política
_________________________________________________________________________
interfaces com a consciência política, fomos, pouco a pouco, delineando o que ora
coletiva da ditadura que garante a existência de uma memória política. Não obstante, são
crenças e valores, símbolos, idéias e posicionamentos políticos que vão indicando o caráter
política da população brasileira em geral, não seria somente o passado da ditadura que faria
parte dessa reconstrução, talvez nem o fizesse. Entretanto, o caráter particular na análise
289
memória política, já que entendemos que toda memória política é coletiva, mas nem toda
memória coletiva é política. O que, então, diferencia a memória coletiva de uma memória
política?
nos discursos dos entrevistados, tendo em vista analisá-los, considerando as sete dimensões
apresentamos no segundo capítulo. Para isso, estabelecemos três eixos de análise a fim de
78
Les Lieux de la Mémoire.
290
primeiro eixo que inclui o que os entrevistados sabem da ditadura, os destaques do período
e as lembranças significativas.
E no terceiro eixo, procuramos perceber se o contato que eles tiveram com pessoas
Neste primeiro eixo, relacionamos as histórias contadas pelas pessoas que viveram
a ditadura com as lembranças dos entrevistados (vividas ou não vividas por eles) –
principalmente no que se refere aos destaques que eles deram ao período e às lembranças
que esses sujeitos fazem a partir do intercâmbio de experiências com os atores que
vivenciaram o período.
que ele organiza, de maneira idiossincrática, a partir das identificações com seus grupos
de pertença, seus valores e crenças, seus significados, enquanto que os grupos que não
viveram os fatos diretamente, recordam a partir das suas identificações com aquilo que é
contado por outras gerações, ou seja, ressignificando aquele passado a partir das suas
“representação”, mas, como nos aponta Halbwachs (1992), se ancora nas “representações
coletivas” presentes nas sociedades e nos grupos para reconstruir o passado com os
Embora alguns dos entrevistados afirmam que não tiveram contato com pessoas
que viveram aquela época, a maioria deles teve algum tipo de contato ou com pessoas mais
próximas, como familiares e amigos ou com militantes que viveram aquela época ou
atuaram na época. Inclusive uma grande parte desses contatos se deram no interior dos
Não foram muitos os contatos com não militantes, entretanto, a maioria dos não
militantes com os quais tiveram contato foram seus próprios familiares que, segundo eles,
apontam amigos que viveram a época e que contam que foram perseguidos.
Eles também tiveram contato com não-militantes que sofreram perseguições e com
“E, é hoje eu conheço muita gente próxima de mim, que fugiu muito dos
militares, da perseguição policial dos militares, né, que saía de uma cidade
pra outra, que abandonou a família, que inclusive chegou a ser presa, né.
292
Conheço sim. Hoje eu conheço muitas pessoas. (...) E conheço as pessoas que
também passaram pelo processo e nunca se manifestaram e confessam que
tinham medo. Porque elas sabiam de histórias de amigos, né. Então assim, eu
tenho pessoas das minhas relações que também relata isso, que na época foi
covarde, né, as pessoas se intitulam assim, né” (Eliana).
E eu acredito assim que a própria, muito em casa a gente ouvia também meu
pai falava muito, na comunidade, o padre que a gente participa aqui era um
padre muito atuante, então muitas vezes dele retomar e contar situações
vivenciadas na ditadura, né, através de depoimentos” (Luciara).
“Sim, o meu avô, a minha mãe, mas minha mãe era bem criança ainda, mas
ela se lembra de muita coisa” (Ciça).
“Não. Meus pais moravam no interior, né. Então até eu cheguei a perguntar
pra minha mãe assim, algumas coisas, mas é, eles não tinham ligação. Ela
dizia que tinha um tio dela que morava na cidade, lá no Rio Grande do Sul e
ele sempre vinha na casa deles, né, que era tio dela e falava algumas coisas
assim, mas ela, também, não. Ela é de 1931, quer dizer, ela tinha uma idade já
adulta né, mas não, né, a pessoa morava no interior, não tinha muita
instrução, ficava, né. Vivia naquele mundinho ali e o que eles sabiam era de
alguém que trazia de fora, assim né” (Sara)
Com relação ao contato com militantes, quase todos os entrevistados disseram ter
movimentos sociais.
“Agora, aqui no sindicato sim. Nós temos, inclusive nosso assessor político,
ele é um ex-exilado, né, dessa época que é o Quincas, Manoel Cação, ele é um
que vivenciou, de fato, esse movimento, participou, inclusive de lutas,
manifestações, né, nessa época” (Vitor).
“Tem algumas pessoas que a gente tem assim como nossos antecessores aqui
no sindicato, que preside, o próprio Serginho. São pessoas que a gente
conhece que passaram por esse período. Conhecidos sim, né, que atuaram na
época, que tiveram uma história. Não só no sindicalismo bancário, como em
293
“Na época. Olha. Eu, eu conheço, tenho amigos, amigos que viveram nessa
época, né, amigos e companheiros aqui da militância. Nós temos aqui na
categoria bancária que milita aqui conosco, um companheiro que foi, é Oliver
Simione, né, ele era do partido comunista e era advogado e ajudou muita
gente. É, além dele teve mais companheiros, os companheiros que passaram
por aqui, que foram cassados, que eram dirigentes do sindicato e que foram
cassados. Então, a gente tem uma relação com todo esses, essas pessoas que
eram diretoria, cassados, presas pela polícia federal, que teve sua vida
vasculhada. Não pegou o AI-5, mas tem, eu tive também uma, uma amiga, quer
dizer, eu tenho uma amiga que a família dela, quer dizer, o pai teve que,
casou-se num outro país e teve um filho” (Edílson).
“Tenho, tenho bastante contato ainda hoje. Já tive com outras pessoas,
inclusive pessoas que foram presas, torturadas, sofreram processo até hoje
tenho relações” (José).
“É, eu tenho alguns contatos, né. Muitas pessoas que ficaram exiladas, outras
pessoas que chegaram até ser presa, tomar choque, inclusive aqui no sindicato
mesmo nós temos pessoas que na época da ditadura chegou a ser preso, né,
não ficou muito tempo, mas chegou a ser preso pelo DOPS, né. É, chegou a ir
pro DOPS, tudo. E tem pessoas também que chegou a tomar choque mesmo,
ficou até seqüela. Conheço algumas pessoas” (Vilibaldo).
“Eu conheço pessoas, eu conheço pessoas que hoje ainda estão atuando, né. A
Ligia Mendonça, que foi uma presa política, o seu França, que é um militante
político que atua nas Comunidades de Base, que atua nos Conselhos de Saúde,
eu conheço, conheço um advogado Cláudio Ribeiro, que foi preso político. Eu
conheço pessoas que estão num envolvimento hoje com o partido (ele se refere
ao PT), que tão no movimento social que, essas pessoas eu conheço, mas
assim, conheço elas porque são do movimento, mas não tenho nenhuma
proximidade com pessoas que foram presas políticas ou que viveram nesse
período, né, conheço, conheço essas pessoas. As pessoas que eu mais tenho
contato hoje são pessoas que pegaram o finalzinho da ditadura, já não
viveram esse processo. As pessoas que eu tenho hoje convivência, que eu
discuto politicamente, que eu convivo, que vem na minha casa, que eu vou na
casa delas, essas pessoas pegaram o finalzinho da ditadura” (Emerson).
exilar, né, do país. É, outras que tiveram seqüelas mesmo, por causa disso.
Tiveram assim momentos de depressão, né. Então assim, depoimentos que a
gente ouve” (Luciara).
Ora, e o que contam essas pessoas e esses militantes que viveram diretamente o
sindicais e comunitárias, com respeito àquilo que lhes contam as pessoas que vivenciaram
a ditadura.
“Elas contam que é, muitas coisas não podiam falar. Não podiam fazer,
entendeu? Muitos policiais, né, na rua, né, e tal. Então. As pessoas sumiam,
né. Essas coisas eles contam” (Arnaldo).
295
“Ah, foi mais ou menos esse relato que eu disse, né, que, simplesmente, você vê
seu direito cerceado, né, por todos os lados. Você sequer pode, né, falar
contra. Você já seria, você já é preso. Já, sofre ameaça sua família sofre
ameaça. Você ser exilado do, do seu país, puramente, porque, só porque você
não concorda com aquele sistema. Quer dizer, você, né, é uma forma de te, te
punirem, injusta, né. É, foi uma época muito ruim (Ronaldo).
Contam também que qualquer reunião era considerada suspeita e, muitas vezes, as
pessoas deixavam de se reunir pra discutir questões sociais porque ficavam com medo de
serem reprimidas.
“É assim, é, (breve silêncio), o que elas diziam é que, às vezes, elas não tavam
em atuação direta contra o regime militar, mas que elas tavam querendo, de
alguma forma, discutir a sua profissão, discutir alguns direitos, seja direito da
mulher. É, conheço algumas mulheres que queriam discutir a questão de
gênero, a questão da discriminação financeira, né. E que ainda sim elas não
tinha onde, quando elas discutiam, elas discutiam com medo. E que muitas
vezes elas marcavam alguns encontros, mas que, quando elas, vamos dizer
assim, elas estavam se encaminhando para o local e elas viam qualquer coisa
suspeita elas já recuavam e voltavam pra casa, de medo que aquela reunião,
tá, pudesse ser entendida como um ato de subversão e aí elas se acuavam,
assim. Diziam, não vou me meter nisso, eu tenho filho, ou eu tenho família, eu
tenho mãe, eu tenho pai doente e voltavam pra casa” (Eliana).
“Que foi uma época onde se sofreu muito, onde tiveram muitas mortes, que foi,
inclusive quando surgiu a vala comum. Essa parte assim das mortes. Muita
repressão” (Ciça).
296
“É, ela conta que na verdade, eu não sei dizer a história toda, que, porque
assim, eles prendiam as pessoas, né, e davam choque pra as pessoas entregar
as outras pessoas e ela conta muito, né, que teve pessoas que chegou, inclusive
até morrer, mas não dedurou as outras pessoas. E essa pessoa ela, assim ela
conta, inclusive que teve pessoas da época que sumiram e ninguém sabe até
hoje aonde foi parar e que pessoas que tá hoje, inclusive no governo também
foi reprimida” (Vilibaldo).
“Muito a questão das prisões assim arbitrárias, né. Achavam motivos para que
eles fossem interrogados. Tem um senhor que eu achei muito interessante a
história dele. Na época ele era portuário, não sei se foi 63 ou 65. Ele foi preso,
ficou anos na prisão, depois foi liberado tal. Quer dizer, motivo aparente
assim, por participar de movimento ou por ser comunista ou por ser, entendeu.
Assim uma coisa que até mesmo acho que as pessoas, os soldados, as pessoas
que foram instrumentos desse processo não sabiam direito o que era, não
sabiam direito o que era isso. Porque tinham tanto medo, tanto receio que não
sabiam exatamente.. (...) Que era a lei da obediência dentro do militar, do
exercício do exército, uma coisa bastante, né” (Armando).
E esta repressão provoca o trauma psicológico nas famílias que tiveram entes
queridos assassinados, que tiveram que conviver com a perseguição tendo que fugir da
própria cidade:
“É, é uma família que, que teve uma atuação política muito grande aqui em
Belo Horizonte, né, família Mata Machado e que teve um tio é, teve, a, a
297
esposa desse tio, ele foi assassinado e a esposa, em função disso, passou a ter
problemas psicológicos. Eles tiveram que fugir de Belo Horizonte. Então, teve
toda a vivência política mesmo do período. É, basicamente é essa história que
eles me contam, que ela, ela vivenciou” (Fabíola).
Em função do trauma, até hoje, muitos não querem, nem gostam de falar sobre esse
passado, silenciando-se:
“Olha, essas pessoas, elas têm uma característica, né, elas não gostam de
falar muito porque, porque foram, sofreram muito com esse processo, mas a
gente sente e percebe. Por isso que eu acho que foi um processo, né, muito
duro. E foi, eu fico imaginando isso e não quero que volte nunca porque essas
pessoas, elas, até hoje estão com esses sinais. Eu costumo freqüentar a noite
aqui nas sextas feiras pra dar uma relaxada, a gente vai num barzinho
chamado Bacaxeri, lá no Bacaxeri vão muito dessas pessoas, né. Nós temos
hoje um professor da rede estadual, e ele foi um preso político e um dia eu
tentei conversar com ele sobre isso e ele falou ‘olha eu não consigo falar, eu
não consigo falar sobre esse período, é foi um período muito duro, eu não
consigo falar sobre isso, por mais que eu quisesse falar com você sobre isso,
mas eu não consigo’. Aí tive acesso a esses documentários, né, tanto que seu
França, Ligia, Cláudio Ribeiro são pessoas que eu tive, eles tiveram em
palestras e eu tive nessas palestras acompanhando essas histórias, né, mas
assim, conviver, ter a proximidade com essas pessoas eu não tenho e quando
tentei, não consegui porque essas pessoas não querem falar sobre isso pelo
sofrimento, né, e aí a gente tem que respeitar mesmo” (Emerson).
“É, e assim como que se davam os encontros, né. Era bem clandestino, né,
porque a perseguição tava ali. Então, jornais que eles tinham, panfletos,
assim, de divulgação de algumas atividades ou contra mesmo a ditadura, era
tudo assim muito clandestino, né. Elas contavam que chegava na rodoviária,
298
tudo assim né, vinha de São Paulo aí todo mundo disfarçado. Achei muito
interessante assim” (Sara).
“Ah, é legal ele falando, né, das reuniões secretas que eles faziam. Ele disse
que fez parte do grupo que planejou aquele seqüestro do embaixador. Então
ele conta das pessoas que ele conhecia. Ele tinha muita amizade, eu esqueci o
nome dele agora. Eu esqueci o nome. Mas eu não lembro o nome. É, ele é um
dos fundadores do PCB, do PCB, um dos fundadores do PCB. Não é o. É o
Prestes, né, que ele chegou a conhecer e ter contato com o Prestes e tem uma
outra pessoa também que eu não tô lembrando o nome agora. E aí, assim, dele
chegando em casa, né. E a polícia vinha tirando ele de dentro de casa, as
cenas, né. A mãe em pânico, ele ficou sumido muito tempo, depois conseguiu
voltar. Eram algumas das histórias que ele conta é essa. A questão da
guerrilha do Araguaia, também ele conta, né” (Andréa).
“É, algumas contam assim, que elas militavam no partido comunista e que
eles, é, tudo era falado com código, que tinha tanto na linguagem, quanto no
gestual, né. (...) Ah, assim de, de botar peruca, de botar uma roupa diferente.
É, algumas coisas assim, né, de tentar se, mudar sua aparência física ou de
ficar escondido muitos dias na casa de um parente, de um amigo, né, que
tinha. E eles contam umas coisas assim, que todo mundo era muito solidário.
Quem era da luta, sabia o risco que o outro tava correndo. E que eles tinha
uma união assim, uma solidariedade, um acolhimento, sabe. Uma coisa de
saber que o risco era muito grande. Que todo mundo ia precisar de todo
mundo. E que quando alguém precisasse, tava aberto a receber a pessoa na
casa, esconder, dar de comer, enfim, né. E que isso era uma situação também
muito humilhante, né, muito humilhante” (Eliana).
Eles contam que a manipulação política era tão forte que as pessoas eram capazes
de entregar aqueles que atuavam contra o regime militar, tamanha era a pressão que faziam
através:
“Por exemplo, teve uma que viveu na época, mas ela não era militante, né.
Então, ela falava assim que, realmente eles faziam aquela pressão, o governo,
299
não sei, não sei se a mídia da época. Eles faziam uma pressão tão grande que
se ela visse uma pessoa daquelas que eles mostravam no cartaz, ela seria
capaz de entregar. Então depois de um tempo que ela viu e falou: Nossa! Hoje
ela é militante, tudo. Então ela viveu os dois lados, né. Então hoje ela entende,
mas na época a repressão era tão grande, eles faziam tanto a cabeça das
pessoas que se ela visse uma daquelas pessoas que era, que tava lutando por
um ideal, mas ela achava que aquela pessoa, realmente era perigosa, ela
falou: se eu tivesse uma oportunidade, eu visse eu entregaria. Então, pra ver
como que era uma repressão realmente, né” (Sandra).
• da manipulação da mídia
“(...) É que na realidade, da minha família em si, como nós viemos de uma
formação mais de agricultores, né. Agricultores, meu pai, meus tios. Então a
gente tem contato um pouco mais com a história só do que ouvimos, mas
também na mesma linha de conhecer pessoas, posteriormente, né. Então a
realidade pra eles no campo, dificilmente chegava a realidade da repressão na
época. Se ouvia, por exemplo pela própria censura que se passava pelos
rádios, então pouco se chegava a eles, né. É, meu pai até fala, a gente notava
que tinha algo estranho em dados momentos, porque chegava uma informação.
Depois no jornal chegava a outra, as pessoas falavam diferenciadas, mas
sempre acabava se tomando a posição pelo meio de comunicação da época,
era rádio, né, depois a televisão. Mas, sempre tinha um posicionamento mais
pautado pelo veículo oficial, né. Não tanto assim de, se conversava tal, mas
não se tinha um conhecimento real, não se tinha um canal de comunicação pra
que você visse, né” (Armando).
que se perceber a ênfase dada à resistência a essa repressão. Haja vista que apontam vários
destaques que expressam muito de seus sentimentos com relação aos acontecimentos do
x resistência.
Um dos primeiros aspectos que chama a nossa atenção é a relação entre repressão e
resistência apontada pelas lideranças, que reflete a forte correlação de forças que existia na
política que deixaram cicatrizes profundas, conforme vemos nos seus discursos.
“Eu diria assim que foi um período de muita, muita dor, de muita tristeza. Mas
que por mais que ocorreram tudo isso jamais mataram a esperança do povo.
Acho que essa é uma das coisas assim, que marca, né, a esperança vence em
301
“(Silêncio). Olha, de bom, se é que tem alguma coisa boa, eu acho assim que
serviu pra mostrar que, é, que assim, que a sociedade organizada, apesar de
tudo o que aconteceu, ela tem um poder muito grande. Eu acredito que
qualquer transformação que venha a acontecer, em qualquer circunstância,
tem que ser através da organização, da sociedade organizada realmente, né.
Agora, o que eu destacaria.... (Silêncio). Como, como ai não sei dizer assim,
mas como que a crueldade da, da do poder assim militar, sem medir qualquer
conseqüência, né, impondo assim, sem escrúpulo nenhum, sabe. Acho que isso
é abominável” (Sara).
1.2.2. Repressão
A repressão, imposta por meio da violência, do abuso de poder, das torturas, das
dos entrevistados:
302
“(Silêncio). Na minha opinião a repressão, esse que pra mim é o que mais é, se
ocê pedi, se ocê falasse comigo assim, cê me dá um exemplo de ditadura, eu ia
dizer de repressão. Nos dias de hoje me dê um exemplo, eu ia te dizer,
democracia. Então, na minha opinião a repressão é uma falta de liberdade,
isso, de fato é o que representa a ditadura, na minha opinião” (Vitor).
“Você não tinha liberdade, mas tinha aquelas que, aqueles meios de
comunicação, que eram os incentivadores, né. Tinham né, você, a repressão
mesmo no meio cultural, as torturas, as mortes, os exílios (Ronaldo).
b) A manipulação da mídia
Ronaldo foi o apoio da mídia aos militares e a manipulação ideológica realizada através da
“Ah, como é que fala, ao total apoio dos meios de comunicação aos militares.
É, tanto pra encobrir certas coisas, pra não divulgar e tanto, também, pra é,
você tentar maquiar uma situação. É o caso até da Copa de 70, que eles
maquiaram, né. Deram ampla divulgação, é festa, e como se tudo tivesse as
mil maravilhas aqui e não tava, né. Então, os meios de comunicação”
(Ronaldo).
A esse respeito Coimbra (2001) afirma que os meios de comunicação de massa são
até hoje “um dos responsáveis pelo fortalecimento dessa história oficial, sendo o lugar
Emerson, inclusive avalia que o estrago no país foi tão grande que é irrecuperável,
principalmente em função das conseqüências econômicas que repercute até hoje e das
“Olha, eu acho que é um pouco isso, esse retrocesso do país, esse andar pra
trás, né, essa, esse cerceamento do modo de pensar, da cultura brasileira que
foi cerceada de se expressar, do momento econômico que o Brasil viveu que foi
dramático pra todos nós. Acho que até hoje nós estamos vivendo isso. Eu
destacaria isso é, essa, porque esse pais ele é tão grande, é tão, é tão imenso
que é inaceitável, é inaceitável que um país como o nosso, o Brasil, nesse
período ele andar pra trás. Ele andou pra trás e isso é uma coisa que eu acho
que vai demorar séculos, séculos pra, pra gente recuperar isso. É uma perca,
uma perca, acho que não tem como corrigir. Vai ser muito difícil corrigir essa
perca. Não tem, não tem pagamento dos presos políticos, não tem, não tem
palestras, não tem nada que vá fazer esse período ser menos drástico. Acho
que esse é o destaque” (Emerson).
Contudo não foi só o sofrimento e a dor, provocado pela repressão que marcou esse
período, nas suas memórias estão presentes as formas de resistência que floresceram
contrapondo-se à repressão.
A ditadura militar pelo seu endurecimento acabou sendo um campo fértil para a
artimanhas para superar situações tão repressivas, como bem aponta Eliana: “buscaram
outras palavras e buscaram a alegria e o humor pra conseguir passar tempos tão
difíceis”.
Este trecho da fala de Eliana – que provocou muita emoção – ilustra bem a
“alienou” para superar esse período, os artistas desafiaram o poder resistindo através de
falarem e falando”.
305
José destaca os acontecimentos que ele vivenciou e que dizem respeito ao período
da abertura política em que ele destaca, especialmente a luta pelas Diretas Já, afirmando
que o povo foi para as ruas e “derrubou a ditadura”. Nesse sentido, aponta a pressão
popular realizada nos últimos anos do período militar como a possibilidade de encerrar
“Eu destaco o que eu lembro, né, eu destaco o que eu lembro, que eu vivi que é
a luta das diretas, né, não vivi diretamente, confesso, não fui um ativista na
linha de frente, mas que eu lembro mais é isso, né. A luta pelas diretas Já, o
povo indo na rua de forma, bom vamos encerrar um capítulo da história,
vamos virar a página da história. Então eu acho que isso marcou. E hoje a
gente olha, olha pra trás, né, essa história e é muito bonito, né, ver que o povo
foi pra rua pra derrubar a ditadura pelas suas próprias mãos, inclusive contra
a bandalia de Sarney e companhia que foram dar o golpe no colégio eleitoral”
(José).
c) O exemplo daqueles que arriscaram a própria vida na luta contra o regime militar
Aqueles que lutaram contra a ditadura passam a ser reconhecidos como heróis,
como exemplo de luta. O fato de terem arriscado a vida na luta contra o regime os converte
em heróis da resistência política. Na figura desses heróis está presente também a riqueza da
organização popular.
“Eu, de certa forma, sinto inveja daquele pessoal que tava naquela época e
que se expôs, é inclusive com a própria vida pra tentar mudar aquele sistema.
É, acho que esse pessoal é, também não dá pra generalizar, houve problemas
também naquela época, mas era um exemplo, de que, do papel que cada um
tem na sociedade, né, e mesmo que por mais difícil que, que possa ser, é, tem
que participar e se fazer escutar, né, dentro da teleologia pra conseguir pelo
menos fazer um debate e tentar fazer a discussão ideológica do que que é
306
melhor pra todo mundo, né. É, fora isso é, é tudo uma vergonha que passou,
né” (Anderson).
“Olha, é. Acho que eu já tinha comentado anteriormente, que eu acho que foi
(...) a força de vontade de uma grande, dos nossos heróis ali de, custasse o que
custasse estar buscando, se expondo, né. Muitos fugiram, outros não tiveram a
chance de fugir, acabaram sendo mortos, né. Mas eu acho que foi, o momento
foi de extrema riqueza de organização popular e o durante a ditadura. Eu acho
que ele foi, uma coisa que dá pra se ter como marcante, foi a crueldade dela,
em termos de você ter, simplesmente você tirar a vida de pessoas, você, né,
que tinha um ideal, que tinha uma visão de mundo diferente” (Armando).
Não é só a imagem do herói, que marca, mas o ideal coletivo que eles
possuíam, por isso muitos afirmam “sentir inveja” daqueles que abriam mão de sua
vida pessoal por causa do ideal coletivo, o que já não se encontra na sociedade atual
“É, e a força dos militantes daquela época. É, eu, eu invejo um pouco aquele
engajamento de total desprendimento com a própria vida, né, em função de
uma vida coletiva. Isso acho que, é, aquilo que eu coloquei. A gente hoje é
militante, em parte. A gente tem uma vida que, né, uma vida individual,
particular, privada e uma vida militante. E, aquelas pessoas não. Era a vida
inteira é, completamente doada pra causa. Isso é o que mais me, me inveja, no
sentido positivo. Que fica de positivo, daquele período” (Fabíola).
“Eu acho que, é, sempre tem, as pessoas tem o ideal, né, então o que destaca é
assim: as pessoas lutam, é importante a gente ver que tem pessoas que não
pensam só em si, pensam nos outros, pensam num Brasil melhor, então acho
que o importante que eu tiro disso é que essas pessoas lutaram, não pensavam
só em si, deixavam tudo, sofreram, então eu acho que isso foi uma coisa
importante, as pessoas não pensarem só em si, né” (Sandra).
307
A fala de Vilibaldo é bem significativa, visto que ele coloca que a experiência da
ou num outro regime político, nesse sentido, ele destaca que se escolheu a mudança, a
organização, a constituição de partidos, sindicatos. Notamos que sua fala é bem situada, ou
seja, ele se reporta a escolha das classes populares pela mudança social, o que não significa
que foi á escolha de toda a sociedade brasileira. Em todo o caso, podemos dizer que a
escolha pela mudança produziu um efeito para toda sociedade brasileira, já que existe um
regime.
foram regados de forte emoção e identificação com a luta política de uma classe
esses elementos que fazem dessa “página da história” uma página onde está inscrita a
ditadura como uma “memória dos vencidos”, uma memória marcadamente popular
identificação social dessas lideranças com os movimentos sociais que lutaram contra a
ditadura, portanto, a uma identidade coletiva que os fortalece e que produz nos sujeitos a
Mas eu acho que a luta, ela tem que existir sempre” (Vilibaldo).
período, em quase todas as entrevistas, o silêncio marcou essa resposta, já que eles
309
próprios afirmam não terem lembranças diretas daquela época, mas principalmente
“Não sei te falar (...), como você mesmo viu, né. Falou as pessoas que não
viveram, que não presenciaram, né. Então, eu sei do que foram falado de
outros né, não o que eu vi, então eu não sei um fato que destacasse mesmo o
período, né. Não tenho lembrança que se possa, que possa falar” (Rosane).
Rosane diz não ter nenhuma lembrança porque não vivenciou o período, não
principalmente, aos fatos que foram vividos por eles, como por exemplo, a atuação dos
movimentos sociais, dos movimentos estudantis, a luta pelo fim da ditadura, o movimento
Andréa, que foi militante estudantil em período posterior a ditadura aponta como
humanos:
“Eu acho, são as coisas que são mais trabalhadas, é como eu te falei. A gente
fica com, com o superficial, né. Que é a coisa dos movimentos estudantis.
Assim, a gente vê fotos, igual, Belo Horizonte, Praça Sete79, como que foram
aqueles enfrentamentos, aquela correria, aquela, aquele tanto de gente sendo
presa. Então, as imagens que ficam. Eu acho que o movimento estudantil,
naquela época, né, muito, muito forte, muito atuante, eu acho. (...) Então, que
fica na lembrança é isso, é a organização do movimento estudantil muito forte,
aquele bendito seqüestro do embaixador lá, que todo mundo fala também,
então isso também é muito forte e as torturas, né, que as pessoas sofreram.
Isso pra mim, eu acho que é o pior de tudo, né. Que é, por exemplo, você violar
o direito de vida do outro, né. Isso é muito, é ruim pensar que isso existiu e,
que, de certa forma, ainda existe, né. Não com tanta, tanto enfoque assim, mas
ainda existe” (Andréa).
79
A Praça Sete está localizada no centro de Belo Horizonte é o lugar onde se realizam as grandes
manifestações populares.
310
“O que mais me marca são as lutas, sabe, exatamente pra libertação. Isso é o
que mais marca, sabe. São os enfrentamentos que houveram por parte de
várias organizações, inclusive do nosso partido, é, nesse sentido, sabe, de
resgatar a democracia, dignidade, respeito por parte do cidadão como um
todo. Isso é uma coisa que mais me marca” (Vitor).
Ronaldo, por sua vez aponta o AI-5, as torturas e o exílio daqueles que protestavam
através da música:
“É, o AI-5, né. É isso mesmo o AI-5, né? O Ato Institucional 5, as torturas, né,
o exílio da classe cultural, principalmente, né, a classe cultural aí, do Brasil,
que é contra. E a forma como eles, sutilmente, transformam o protesto em
músicas, em, em gestos, né” (Ronaldo).
“Pois é, eu guardo algumas coisas bem recentes, né, que era já a época do
Figueiredo e a transição e a saída do Figueiredo e a eleição, se dá pra se
dizer assim do Tancredo, e já que ele, né, e pra tudo ajudar, né, aquela
complicação que houve, né, com o Tancredo indo pra presidente e não
assumindo já e assumindo o vice, né. Esse é um passado bem mais recente que,
infelizmente, eu começo a ter uma percepção extra pela vida normal de
adolescente e começar a ter consciência do que tá ao redor. Então é um
passado bem recente, infelizmente” (Anderson).
José, não tem dúvidas, o que foi extremamente significativo para ele refere-se ao
período que ele vivenciou, que também foi o período final da ditadura, o da abertura
80
O Partido em que ele atua é o PC do B (Partido Comunista do Brasil).
311
“Da ditadura? Olha pra ser sincero que eu possa marcar mesmo, né, acho que
é mais o fim da ditadura, né, a luta que aí eu me envolvi, de certa forma, que
era a luta pelas diretas, né, que foi exatamente o momento da abertura
democrática no país, que era um combate político, né, pelas diretas, que foi o
momento que eu participei, né. É mais o que chama a atenção também é a
própria garra do pessoal da época que manteve, né, a esperança e a vontade
de lutar contra a ditadura que fez com a gente chegasse comemorar as diretas,
mesmo que as diretas foi dado um golpe, né, através do colégio eleitoral, mas
foi uma vitória da classe trabalhadora, com certeza” (José).
aquilo que lembra referente aos livros que leu, ressaltando destas leituras, um levantamento
“Lembranças? Que, que pra mim ficaram foi mais o processo de abertura
mesmo. Então, da volta dos, dos asilados, né, dos asilados políticos. Por que
foi um período, né. Aí já entra a década de 80, que foi a que eu mais, que eu
me lembro, tenho memória desse fato. É, e aí, eu acho que entra é, um pouco
do que a gente aprende também dos livros, que é, dos, dos encarcerados, quer
dizer, da luta política que, que vivenciou”. “(...) Eu acabei de ler agora a, a,
um livro sobre a questão, que tem a ver com o crime, né, a organização
criminosa do Brasil e que faz um levantamento também dos presos políticos,
daquele período. É, a, a, como que foi a vivência dessas pessoas, né, no
presídio, por serem, é, por terem é, pela ditadura ter tentado passar uma visão
de que eram presos comuns, de que não havia uma identidade política. Então,
acho que pra mim tem mais esse, o que vem mais é esse conteúdo” (Fabíola).
desaparecimentos das vítimas da ditadura e destaca que ficou uma lacuna na história uma
vez que ainda hoje existem famílias que não sabem se seus parentes que desapareceram
era a vontade popular de estar nas ruas, de estar gritando. (...)Então acho,
embora pra mim dou um positivo, que é a questão da, não sei se chamaria de
comoção social, mas da organização popular. De tá indo pra rua como um
todo. Assim desde camponês até estudantes, principalmente puxados pelos
estudantes, naquele momento tal, em relação ao momento posterior a ele, que
houve aquela, aquele momento marcante positivo que foi da organização e o
negativo que foi de ter deixado apagar um pouco aquela chama de luta, chama
da continuidade, né. Embora tem outros pequenos sinais tal, mais acho que
isso que ficou assim pra história. Tanto que você vê, vira e volta ela surge nas
manchetes novamente, né. Tantas pessoas desaparecidas sem saber aonde
estão. Famílias assim sem ter, filhos órfãos da ditadura, que não sabem se teu
pai tá vivo, se não tá, se foi exilado ou não foi, quer dizer, sabe-se que uma
grande maioria está morto, mas saber aonde e em que condições, né. (...)
Imagine a pessoa que foi injustiçada, foi morta por isso, por ter brigado por
uma coisa e, de repente, nem a própria família sabe o que aconteceu com ela.
Ficou essa lacuna na história. Realmente é uma coisa assim bem, bem ruim,
né” (Armando).
significativas apontadas por ela, foram aquelas que ela vivenciou diretamente na sua
infância e adolescência. E ela fala, com toda a emoção, que ela viveu a situação da Copa de
medo nas pessoas e a situação vivida por ela, quando, a partir do filme “Pra frente
Brasil”81 que ela assistiu - já adulta - descobriu o quanto ela e sua família foram
manipuladas pelas informações que circulavam no período militar e que coincide com a
sua infância.
“Pois é, né. É a copa do mundo de 70. Aquela musiquinha, né, ‘Esse é um país
que vai pra frente’, né. E que pra mim aquilo, né. Eu nasci em 63, 70 eu tinha
7 anos. E que assim, eu lembro muito bem da final, de todo, que o Brasil
ganhava sempre de 4 a 0, 4 a 1, 4 a 0, 4 a 1, 4 a 0, 4 a 1 e a gente assistia. E
televisão não era, na minha casa tinha televisão, então o pessoal do sítio vinha
81
O filme “Pra frente Brasil” foi produzido e dirigido por Roberto Farias tendo sido censurado no ano de
1982 e tendo seu lançamento no ano de 1983. O filme retrata o contexto do milagre econômico e da vitória
da seleção na Copa de 70. Enquanto o Brasil inteiro torce e vibra com a seleção de futebol, prisioneiros
políticos são torturados nos porões da ditadura militar e inocentes são vítimas desta violência. Todos estes
acontecimentos são vistos pela ótica de uma família quando um dos seus integrantes, um pacato trabalhador
da classe média, é confundido com um ativista político e "desaparece".
313
pra assistir na minha casa. E eu lembro que no final, na final nós fizemos uma
fogueira. Eu fiz uma fogueira junto com meu irmão, com a criançada da rua,
uma fogueira no fundo de casa pra comemorar. Então eu tenho esse dia muito
marcado que era de felicidade. E aí eu lembro também do filme Pra frente
Brasil. (...) E que eu lembro assim o quanto eu fui idiota. O quanto eu fui
manipulada, o quanto eu fui ridícula e todo mundo junto, né. Assim não é, não
tô me massacrando e nem massacrando o povo, mas como a gente foi usado,
usado, usado, usado. E aí, é, acho que tem uma coisa assim que é, que
enquanto a gente tava se divertindo, tinha gente sofrendo e que a gente não
entendia os motivos e que, inclusive é, a gente dizia que eles queriam o mal do
Brasil. É, uma das minhas tias era servidora pública, numa cidadezinha
pequenininha e eles recebiam mensagens dos militares e ela comentava muito
isso em casa. Dizendo assim, que ela tinha recebido uma carta, que tinha
vindo de Brasília, e que era de uma pessoa que estava vivendo na Rússia, eu
me lembro muito, na União Soviética, ela dizia. E que lá não tinha luz à noite,
que lá tinha toque de recolher todos os dias, que lá eles não podiam falar ao
telefone, que sempre tinha alguém escutando. Que lá, sabe, então eu lembro
assim, tinha um bombardeamento e essa cidade onde eu morei até os 8 anos é
uma cidade que hoje tem 8 mil habitantes, que na época não tinha muito mais
do que isso. É de zona rural e urbana. Então eu fico pensando, que poder eles
tinham. Que, eles usavam todos os aparelhos do Estado pra ficar
bombardeando a gente de notícias, e fazendo a cabeça da gente, não deixando
a gente ter crítica. E eu, né. E aí eu via isso assim, ó: porque que o Brizola foi
asilado, porque que o Caetano Veloso, aquelas coisas assim. Uma pessoa do
Brasil ter que ir embora? Tudo aquilo me botava ponto de interrogação, né”
(Eliana).
O mesmo acontece com Vilibaldo que aponta uma experiência vivida por ele
quando era adolescente, experiência esta que o fez sentir a brutalidade e a atitude
repressiva da polícia:
“Eu lembro que minha irmã estudava à noite e eu ia buscar, eu e meu pai ia
buscar ela no ponto, né e muitas vezes, naquela época, é, a gente tinha muito
aquele negócio de usar aquele cinto do exército, calça do exército e teve uma
vez que dez horas da noite eu tava esperando no ponto, chegou a polícia, eu
tava com esse cinto, aquele verdinho, eles chegaram, revistou, aí viu o cinto,
pegou e puxou, puxou com tudo, saiu até, rasgou até a calça e quase me leva
preso porque eu tava com o cinto do exército. E também lembro que eu tinha
um amigo que ele servia o exército e ele deu uma calça daquela do exército
pro amigo meu e ele foi trabalhar e tomaram a calça dele, levaram ele preso,
tomaram a calça dele porque eles não deixavam usar aquilo ali. Então era
uma coisa assim que a gente passou, né, que a gente, foi mais ou menos, o que
a gente viveu. Então, assim, coisas que a gente passou. E não passei igual as
pessoas mais velha, né, mas o que a gente conseguiu, na época viver foi isso.
314
(...) Então era uma coisa assim que as pessoas não tinha, a polícia não tinha
respeito por ninguém, né, podia ser jovem, podia ser adolescente, eles
chegavam e, então é uma coisa de dizer, é, vocês tem que fazer o que a gente
quer e acabou, é, de intimidar mesmo, se a pessoa fosse falar alguma coisa,
talvez ia lá pro cemitério clandestino. (...) Então é uma questão bem, que a
gente tem que refletir, aí” (Vilibaldo).
ainda quando crianças ou adolescentes, estas contêm muitos detalhes e refletem aquilo que
foi vivenciado no interior das famílias, no cotidiano da rua, com os amigos. Cabe destacar
que tanto Vilibaldo quanto Eliana são os entrevistados mais velhos, que completaram
quarenta anos no ano da entrevista. Eles foram os únicos que narraram estas vivências
diretas do período que reflete o que vivia a população brasileira, ainda que não estivessem
engajados politicamente.
das greves vividas por ele e pelos cidadãos da classe mais pobre, destacando a repressão
que sente que as lembranças que ele tem do período são muito vagas, uma vez que ele
vivia numa cidade pequena do interior, portanto, recordando mais da experiência difícil
315
emblemática é sua frase: “Lembrança? (silêncio). Não sei se eu tenho, a minha lembrança
De fato, são lembranças de algo não vivido pessoalmente, são lembranças que são
recordadas a partir do que outras pessoas contam, deste modo suas lembranças são as
lembranças daqueles que lutaram contra a ditadura, por isso Edílson se coloca no lugar
“(...) Vivia numa cidade do interior, nesse período. Agora todas as vezes que
vem a ditadura, vem essa coisa da situação daqueles que, dos socialistas por
exemplo, dos revolucionários, dos, numa situação como essa: como é que fica
a vida de quem milita organizadamente, quer dizer, e aí é uma situação mais
difícil, né, porque a falta de liberdade, que mais acho que acaba prejudicando
todo mundo. (...) Mas acho que a lembrança maior é essa. Pra um militante
socialista, acho que o pior impacto é você saber por onde passa você ser um
militante numa situação como essa de repressão, né. E aí a lembrança é
sempre essa, a reverência aos que lutaram” (Edilson).
“O que me deixou mais, assim, o que eu ficava mais revoltado, né, é quando,
nos filmes, né. É, quando as pessoas me contavam, quando eles entravam nas
casas das pessoas e pegavam as pessoas. Arrastavam, né, e nunca mais a
pessoa aparecia, né. E também outros, outros casos aí, que a gente conhece aí,
com atores famosos, né, que foram obrigadas a sair do seu próprio país, né,
porque defendiam a liberdade, né. Então essas coisas ficaram fortes, assim,
né” (Arnaldo).
“Acho que o que fica muito forte assim é a questão mais violenta mesmo, né. A
questão da tortura. Eu cheguei a ler, é, um livro chamado “Brasil Nunca
Mais”, né. Então, isso faz muito anos já, uns 15 anos atrás. Eu li ele, eu tinha
uns 15 anos, 17 por aí. Então eu, aquilo me revoltava bastante, sabe. Meu
Deus como é que um ser humano pode chegar a cometer tudo aquilo que
cometeu e - muito que a gente nem sabe - com outra pessoa. Então acho que
o que mais marca assim é a questão violenta, mesmo, né. É a violência contra
a pessoa humana e contra, principalmente, o pensamento, né” (Sara).
muito significativa a coragem e a garra das pessoas que lutaram contra a ditadura.
submetidas à tortura:
“Eu acho que a violência. A violência é uma das lembranças assim que a gente
vê nos relatos, via nos documentários e a violência é uma coisa inaceitável, né,
em qualquer âmbito, mas naquele período a violência era pra deixar, era pra
deixar, era pra fazer história, era pra, era pra dizer assim, eu tô te dando um
recado, se você, vocês aí que querem um país diferente, se vocês quiserem
fazer isso, se vocês quiserem, se vocês quiserem questionar essa maneira de
governar, vocês vão sofrer mais do que essas pessoas aqui estão sofrendo.
Relatos do Frei Tito, por exemplo, né, de ser queimado com bituca de cigarro,
né, de ser torturado, de ser afogado. Eu fico imaginando isso gente, a
violência que era isso, esse período! Isso chega a arrepiar e deixa a gente
emocionado porque você imagina a violência que essas pessoas sofreram e ao
mesmo tempo, uma coisa que, uma marca também que eu acho que era
interessante é a coragem dessas pessoas, porque essas pessoas, de fato, deram
uma aula de cidadania pro Brasil, mostraram pra esse país que, de fato esse
país tem que ser diferente, esse país é do povo, esse país é plural e eu acho que
são duas marcas: a violência de um lado e a coragem desses militantes, dessas
pessoas que disseram assim, olha esse país não é assim, esse pais não é, não
tem um dono, esse país é de uma nação e nós queremos um país diferente”
(Emerson).
Tanto Emerson quanto Luciara remetem-se às histórias que lhes foram contadas,
“Como eu não vivenciei, mas eu, eu, né, eu falo, eu visualizo, né, a partir do
momento das histórias contadas, daquilo que a gente lê nos livros, nos livros
escritos pelo próprio povo que passou por isso, né, não nos livros que a gente
317
apontando que a lembrança mais significativa é a luta e o aprendizado como sujeito que faz
“Eu acho que a luta. A vontade de mudar, sabe assim. E que sozinho ninguém
chega a lugar nenhum. Isso eu aprendi assim, ter reunião de família, de luta,
porque é gostoso. Você fazer parte da história e não ficar vendo a história
passar por você, vendo a banda passar, ou melhor, a história passar. Eu acho,
eu aprendi também que. É cada dia, cada reunião, cada encontro do Talher
assim, você sempre aprende algo com o povo. Como a gente cresce com o ser
humano, tudo isso, sabe” (Inesita).
especialmente daqueles presos políticos que lutaram contra o regime militar e que foram
82
Música de 1966.
318
“Eu acho assim, eu sempre falo pras pessoas desse filme84 da vala comum, que
eu acho que lá dá um gosto, assim, você entende um pouquinho e dá um gosto
de você pegar mais coisas, entender e abrir um pouco a cabeça da gente, né”
(Sandra).
em nossa memória um quadro real dos sentimentos que nos acompanham no momento em
que as imagens “ferem o nosso olhar”. Segundo este autor: “Nossos sentimentos e nossos
pensamentos mais pessoais buscam sua fonte nos meios e circunstâncias sociais
uma memória que permite algumas aproximações com a história do período, mas que não
se vincula com aquela “memória oficial” construída pelos governos militares, muito pelo
83
Essa Vala comum foi aberta por ordem da prefeita Luiza Erundina de Souza, em setembro de 1990, como
apontamos no Capítulo III.
84
Sandra se refere ao filme “Vala Comum”, que é um documentário dirigido e produzido pelo cineasta João
Godoy que resgata o triste episódio conhecido como As ossadas de Perus. O filme aborda a abertura da vala
comum no Cemitério de Perus em São Paulo, além de retratar a época da ditadura, apresenta entrevistas com
familiares dos mortos enterrados nesta vala e com ex-presos políticos que ainda estão vivos. As pesquisas da
UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas) para descobrir de quem são as ossadas também fazem
parte deste filme.
319
elementos comuns que existem entre essas memórias. Notamos que as lembranças
significativas vão além do que contam seus protagonistas, visto que se acrescentam, em
seus relatos, suas trajetórias individuais e coletivas, suas práticas sociais, os conhecimentos
passado.
histórias contadas pelas testemunhas e do outro lado, aqueles aspectos que foram
evidenciados nas lembranças dos entrevistados que foram seus destaques e lembranças
significativas:
liberdade aparecem tanto naquilo que contam as testemunhas, quanto nos destaques dados
pelos entrevistados. O mesmo ocorre com a questão da repressão, por meio das
lhes foram contadas pelas testemunhas no que diz respeito à repressão da época como:
a questão dos desaparecimentos das vítimas da ditadura que até hoje suas famílias
presos políticos que lutaram contra o regime militar e que foram mortos e
injustiça é uma das dimensões da consciência política em que o individuo percebe que
convivência direta com as pessoas que viveram a repressão, o fato destes contatos terem
sido feitos, em sua maioria, através da militância política, levou-os a estabelecer uma forte
identificação social com essas pessoas que tiveram garra, e com os próprios movimentos
sociais responsáveis pela força da organização popular. A nosso ver, é essa identificação
que os leva a ir além da memória narrada pelas testemunhas, visto que, está contido, em
seus discursos, o valor que eles atribuem as lutas do passado e com as quais eles se
identificam. Essa identificação passa também pelas crenças e valores societais que foram
construídas no interior de seus grupos de pertença em que eles mantêm, ou pelo menos
tentam manter o espírito de luta daqueles militantes que deram suas vidas por uma causa
coletiva.
Assim sendo, nas lembranças dos entrevistados, a repressão sempre aparece com o
popular.
Entretanto, nas história contadas pelas testemunhas, a ênfase maior está nas
regime): “Olha, essas pessoas, elas têm uma característica, né, elas não gostam de falar
muito porque, porque foram, sofreram muito com esse processo” (Emerson).
“Eu de certa forma sinto inveja daquele pessoal que tava naquela época e que
se expôs e, é inclusive com a própria vida, né, pra tentar mudar aquele
sistema. É, acho que esse pessoal é, também não dá pra generalizar, houve
problemas também naquela época, mas era um exemplo, né, de que do papel
que cada um tem na sociedade, né, e mesmo que por mais difícil que, que
possa ser, é, tem que participar e se fazer escutar” (Anderson).
e as frases são fiéis ao que ocorria: “Tinham que se organizar às escondidas, nos porões,
né” (Luciara).
“É, e assim como que se davam os encontros, né. Era bem clandestino, né,
porque a perseguição tava ali. Então, jornais que eles tinham, panfletos,
assim, de divulgação de algumas atividades ou contra mesmo a ditadura, era
tudo assim muito clandestino, né. Elas contavam que chegava na rodoviária,
tudo assim né. Vinha de São Paulo aí todo mundo disfarçado. Achei muito
interessante assim” (Sara).
que queriam, mas que de alguma forma não se deixaram oprimir pela falta de
liberdade de expressão. E buscaram outras palavras e buscaram a alegria e o
humor pra conseguir passar tempos tão difíceis.(Eliana)
naquilo que os entrevistados destacam, entretanto, com relação aquilo que contam, aparece
Nas lembranças dos entrevistados, portanto, surgem elementos que não aparecem
naquilo que contam, visto que a memória de uma geração que não viveu aquele passado,
acrescenta os dados das suas vivências mais recentes, como é o caso das “Diretas já”, que
pelos direitos em vistas da mudança social e o rechaço à ditadura militar que, para eles,
Notamos, portanto, que suas lembranças são perpassadas tanto pelas dimensões da
provocam, ainda hoje, nas novas gerações e que os levam a uma identificação social,
sob o prisma da consciência política e das suas vivências políticas do presente o que faz
Tanto nos destaques que os entrevistados fizeram sobre o período quanto nas
realidade política;
que suas memórias são também memórias da experiência dos novos movimentos sociais,
ou seja, memória daquele sujeito coletivo que emerge nos anos oitenta como o grande ator
social das grandes mobilizações e manifestações públicas contra o Estado. Esta afirmação
abertura política e para o momento presente, sendo as lutas políticas dos movimentos
Nesse sentido, a memória coletiva transita por estes tempos que incluem períodos
as idéias e as imagens de hoje. Lowenthal (1992) nos diria, o passado como tal é
incognoscível uma vez que novos significados do presente alteram o conteúdo e o valor do
evento passado.
85
Os Partidos em que eles fazem parte são o PC do B (Partido Comunista do Brasil) e o PT (Partido dos
Trabalhadores).
325
que percorrem, inclusive, diferentes gerações, visto que estes pertencem a diferentes
No caso de Eliana, ela fala, com toda a emoção, que ela viveu a situação da Copa
impunha medo nas pessoas e a situação vivida por ela quando descobre que ela e
militar que coincide com a sua infância. Claramente aqui está presente a ideologia
No caso de Vilibaldo, uma experiência vivida por ele quando era adolescente,
(1995) de que os indivíduos recordam daquilo que antes foi percebido e que teve um
“Deberíamos decir que una persona está recordando sólo cuando se halla
orientada de forma precisa hacia su pasado y es conciente de que intenta
rastrear algunos hechos que una vez se encontraron en su percepción
sensorial, pero que ya no lo están” (Bartlett, 1995:63).
as lembranças que Edílson tem do período são muito vagas, uma vez que ele vivia
numa cidade pequena do interior, portanto, ele recorda mais da experiência difícil
“Para que nossa memória se auxilie com as dos outros, não bastam que eles
tragam seus depoimentos: é necessário ainda que ela tenha cessado em concordar
com suas memórias e que haja bastante pontos de contato entre umas e as outras
para que a lembrança que nos recordam possa ser reconstruída sobre um
fundamento comum. Não é suficiente reconstituir peça por peça a imagem de um
acontecimento do passado para se obter uma lembrança. É necessário que essa
reconstrução se opere a partir de dados ou noções comuns que se encontram tanto
em nosso espírito como no dos outros, porque eles passam incessantemente desses
para aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer
parte de uma mesma sociedade. Somente assim podemos entender que uma
lembrança possa ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída” (Halbwachs,
1990:34).
referência comum às histórias contadas que é o da luta política. A nosso ver, ambas as
Não obstante, essas memórias se diferenciam da história, uma vez que nossos
sujeitos não as fixam numa época, num tempo e espaço determinados, mas vão atribuindo
àquilo que foi transmitido oficialmente, mas demonstra uma ruptura com aquilo que foi
difundido pela memória oficial na medida em que esses sujeitos reinterpretam esse passado
pelo prisma de uma consciência política que recusa a história “não contada” ou “mal
reflexão nas dimensões como identidade social, crenças e valores societais, sentimentos
Como pudemos notar nos capítulos anteriores, os entrevistados deixam bem claro
que eles tomaram conhecimento da ditadura militar, principalmente por meio da sua
participação política, ou seja, da militância política nos sindicatos, nas CEBs, nos
movimentos sociais, onde foi se constituindo uma consciência política que os levou a se
interessar pela questão da ditadura militar, e que a nosso ver favoreceu a construção de
identificação social” está fortemente presente em suas memórias coletivas. Fabíola, por
exemplo, utiliza o próprio termo identidade coletiva para expressar que foi o aspecto
significativo na memória coletiva. Ela, inclusive ressalta que é essa identidade coletiva que
“O que fica pra mim do período militar é uma identidade, um pouco coletiva,
que o próprio, os próprios movimentos eles passam é, no sentido da repressão,
é, da luta política que se travou no período. Então, é mais essa memória
coletiva mesmo do que conhecimento de fatos, de pessoas do período”
(Fabíola).
Para ela, a repressão também marcou, mas o que mais se destaca é a força dos
Do ponto de vista de uma análise psicopolítica, podemos dizer que Fabíola sente-
engajamento dos militantes que constituem esses movimentos. Para ela, esse sentimento de
coesão social existente naqueles movimentos que atuaram no passado, a faz sentir inveja e
ela não deixa de comparar com as pessoas que participam hoje nos movimentos sociais,
“Eu acho que, é, sempre tem, as pessoas tem o ideal, né, então o que destaca é
assim: as pessoas lutam, é importante a gente ver que tem pessoas que não
329
pensam só em si, pensam nos outros, pensam num Brasil melhor, então acho
que o importante que eu tiro disso é que essas pessoas lutaram, não pensavam
só em si, deixavam tudo, sofreram, então eu acho que isso foi uma coisa
importante, as pessoas não pensarem só em si, né” (Sandra).
desenvolvida por Sandoval (2001), que é entendida como sentimento de solidariedade que
o indivíduo desenvolve por meio dos laços interpessoais que geram um sentimento de
coesão social e que o faz identificar-se com diferentes categorias sociais. Nesse processo, o
quebrar a solidariedade grupal e ainda atribuindo valor à reação de outras pessoas dentro e
fora do grupo.
reivindicações coletivas, de modo que atribuem valor às metas grupais e à mudança social
desejada.
se identifica com os movimentos sociais – outros discursos apontam que aquilo que os
entrevistados sabem tem uma estreita relação com as experiências que eles desenvolvem
“Olha, sobre a ditadura militar eu sei muito pouco. Porque é aquilo que eu
estava te dizendo anterior. A gente, nessa época era criança, né. A gente sabe
que, é, a ditadura militar, ela reprimiu muito o trabalhador, né. (...)E a
questão da ditadura militar a gente sabe que, é hoje a gente temos uma certa
liberdade, uma democracia que, entre aspas também, mas que na ditadura
militar a gente não conseguia nem essa “entre aspas” porque, é, no
sindicalismo não tinha essa liberdade que hoje tem, né. Era reprimido, era...
greve, quando tinha greve a gente ouvia falar pela televisão, pelos jornais que
eles reprimia de uma forma, né, bem pior do que hoje. Apesar que hoje
330
também, não deixa de reprimir. (...) Mas é, foi uma época, pelo que a gente
ouve dizer, foi uma época que foi muito difícil para a classe trabalhadora por
conta dessa repressão da elite” (Vilibaldo).
“(...) os discursos são construídos no interior dos grupos com os quais nos identificamos e
aqui para ficar mais clara em nossa análise. Essa dimensão expressa a ideologia política e a
práticas e finalidades das relações sociais. Por isso, é muito interessante as críticas que
Eliana e Anderson fazem com relação à estrutura social do regime militar, que veremos a
seguir.
Notamos que Eliana faz uma leitura crítica do período, manifestando que existiu
toda uma ideologia na sociedade que fez com que a população da época acreditasse que a
“Então é assim, é, o que eu sei da ditadura é que foi um tempo muito ruim
para o Brasil. Eu acho que esse tempo, eu associo a ditadura com o futebol. Eu
não suporto futebol. Porque eu sei que usaram o futebol pra fazer com que o
povo não olhasse o lado político do país, né. (...) O que eu sei é que teve muita
gente que sofreu e que o povo brasileiro até hoje sofre a conseqüência, e hoje
no meu dia-a-dia do sindicato, quando alguém fala mal do sindicato, eu sei
que ela tá falando ainda porque ela foi ideologicamente programada pra
pensar assim. Programada pra achar que o Estado, né, nas mãos dos militares
é melhor do que hoje, né. E que, então, pra mim é uma história de muita
revolta e se, eu não quero usar dos mesmos artifícios e da mesma violência
que eles usaram, mas me dói muito e, eu tenho vontade, às vezes, de fazer a
vingança da mesma forma, né” (Eliana).
331
Ao constatar essa ideologia fomentada pelo regime militar ela, inclusive, afirma
sentir revolta e chega a manifestar um desejo de vingança. Parece que por trás desse
sentimento de revolta, existe um profundo sentimento de injustiça com respeito ao que foi
Valores e Expectativas societais é uma dimensão extremamente importante, visto que toda
construção da memória possui um conteúdo ideológico bastante visível, uma vez que é
inevitável que o sujeito narre os fatos sem que manifeste seus valores, suas crenças, suas
Em se tratando da memória política, esse aspecto parece ainda mais forte, pois ao
identificações sociais, que expressam suas posições políticas ou mesmo a posição política
alienação e ao comodismo do sujeito, como pode romper com essa estabilidade na medida
em que seja capaz de reinterpretar o cotidiano através de valores e crenças que negam esse
“(...) a rotina quotidiana é aquele aspecto da realidade social que mais se presta à
alienação, a qual se manifesta na co-existência silenciosa entre as tarefas
envolventes do viver diário e da ordem social maior que o determina. Alienação é
tipicamente expressa em suposições não-questionadas da inevitabilidade da rotina
diária e o ‘natural’ das desigualdades e dominação nas relações de poder na
sociedade, tal como se encontram estruturadas. A aceitação espontânea de
normas sociais e em última instância da estruturação de classes, desigualdades
sociais, e submissão política disfarçada de ‘requisito’ do viver rotineiro, podem
ter o efeito de tornar o indivíduo um conformista na medida em que carece da
instrumentação intelectual para um raciocínio sistemático e crítico, e das práticas
diárias do exercício democrático de direitos e obrigações de cidadania. Essa
332
No momento em que Anderson afirma ter adquirido consciência política, ele exerce
fica difícil para ele entender como que a sociedade brasileira conseguia levar a vida na
normalidade, com toda a repressão daquela época. Em outras palavras, fica difícil, para ele,
compreender a alienação das pessoas, fica difícil entender como a população aceitava
fazem uma ruptura com a rotina cotidiana e deixam claro que sua visão política referente à
sociedade é totalmente distinta daquela apregoada pelo regime militar e que provocou a
para os entrevistados, o regime militar é um claro adversário político que deve ser
combatido.
“Eu acho assim que na época da ditadura, era um, o teu inimigo tava muito
mais claro, né. Então, você sabia que queria um outro tipo de, de governo, né.
Então assim, contra a repressão, claro, violência e tudo que, que aquilo
gerava” (Sara).
“Bom, o que eu sei é que foi um período de repressão, né. Um período em que
é, o poder é, antidemocrático, né, tomou o poder e o poder militar, né. Em que
não havia liberdade de imprensa, liberdade de, de comunicação, né, de
expressão, né. Foi uma época de torturas, de, de perseguição, a,
principalmente aos atores, né, do movimento comunista, que tentavam, que
lutaram contra esse sistema que tinha sido colocado, principalmente o
movimento estudantil, que na época era muito forte, né. Hoje em dia já não, já
não tem a mesma força. Em geral, é mais ou menos isso” (Ronaldo).
ao modo como os interesses simbólicos e materiais são opostos aos interesses de outros
coletivos na sociedade (Sandoval, 2001). Dentro do modelo proposto por Sandoval, essa
dimensão tem um papel chave na consciência política, uma vez que leva à ação coletiva.
334
Base que lutaram contra a ditadura. E, reconhecendo que o regime militar provocou danos
enormes à sociedade, destaca as lutas por direitos sociais como, saneamento básico,
“Esses dias mesmo eu tava comentando que, algumas coisas que a gente fala
hoje, falei se fosse na época da ditadura, tava no paredão, né. Tava no
paredão. E assim. Pela minha militância nas Comunidades Eclesiais de Base,
e também estudando um pouco a formação das CEBs a gente percebia assim
que, percebe que as CEBs tiveram um papel muito importante contra a
335
ditadura, né. Foi ali, é, acho que, um espaço aí que começou a formação de
lideranças, da base mesmo pra começar a lutar pelos seus direitos mínimos,
né, básicos de saneamento, educação, creches para as crianças, moradias,
assim, né. Então é, já era, quer dizer, já era visto como um grupo que tava
contra, né, a ditadura, porque né, começaram ali essas reuniões em casas e
depois começaram a formar as comunidades, né, mas basicamente foi aí que
começou assim pra, pra, é como se diz, as questões básicas mesmo de
sobrevivência, né” (Sara).
“O que mais me marca são as lutas, sabe, exatamente pra libertação. Isso é o
que mais marca, sabe. São os enfrentamentos que houveram por parte de
várias organizações, inclusive do nosso partido, é, nesse sentido, sabe, de
resgatar a democracia, dignidade, respeito por parte do cidadão como um
todo. Isso é uma coisa que mais me marca” (Vitor).
político à memória impressionante, pois revela que conhecer o passado permite as pessoas
identificar interesses que lhes são comuns e que lhes são antagônicos na sociedade e nas
luta dos movimentos sociais e sindicais; permite identificar adversários políticos ou mesmo
projetos políticos que não vão de encontro à democracia e, como já afirmamos no Capítulo
Quando dizemos que toda memória política é coletiva, queremos dizer que essas se
constróem a partir dos grupos sociais e do contexto político presente como defende
Halbwachs (1990). Entretanto, nem toda a memória coletiva é política, visto que estas
podem ser apenas expressões ritualísticas ou festivas de determinados grupos sociais, sem
sociedade.
336
“Olha, eu não, eu sei um pouco da história né, assim, que a gente aprende aí
na universidade, na militância. Eu, particularmente nunca procurei ler muito a
coisa do porão da repressão, da tortura, porque é uma coisa que deixa muito
indignado e que sempre, agora é obvio, também, cê não pode abster dessa
coisa aí. Esquecer que teve tortura, muito pelo contrário, tem que saber disso.
Mas eu imagino que saiba, uma questão é dos aspectos econômicos, sociais e
políticos, né. Do modelo econômico, do que a ditadura fez com o país nesse
momento. Agora também a repressão ao movimento, as liberdades, a
democracia, a organização, a liberdade de greve, ao direito de organização,
que pra quem milita num partido e pra quem milita num sindicato era
fundamental” (Edílson).
decisiva a memória política, visto que esta se expressa na disputa entre diferentes versões
É bem por isso que afirmamos com insistência, desde o início dessa tese, que a
memória política das classes populares se contrapõem claramente às versões que foram
337
memória oficial.
interpretação ou ainda na imposição de uma outra versão “oficial” por meio das
“sentimentos de eficácia e ineficácia política, que se refere aos sentimentos que as pessoas
têm sobre sua capacidade de intervir em uma situação política. Os relatos anteriores
de Sara. Entretanto, o discurso de Armando nos chama a atenção, por manifestar tanto
sentimento de eficácia quanto de ineficácia política. Ele aponta que, de um lado a ditadura
provocou uma acomodação por parte daqueles que não estão engajados politicamente, que
são aqueles que acham que “não adianta lutar porque não vai mudar”. Por outro lado, ele
“Acho que mesmo com toda repressão que se apontava, a organização popular
foi algo assim, né, acho que um momento que o país passou que dificilmente a
gente, não que a gente não consiga reconstruir, mas talvez não nos moldes, de
tão, era a vontade popular de estar nas ruas, de estar gritando. Então, eu acho
que aquele momento, ele quebrou um ciclo onde as pessoas hoje se
questionam, principalmente as que passam de uma certa idade, são mais
antigas, caem naquela acomodação, não, não adianta nada, não adianta lutar
porque não vai mudar, né. (...) Embora pra mim dou um positivo, que é a
questão, da, não sei se chamaria de comoção social, mas da organização
popular. De tá indo pra rua como um todo. Assim desde camponês até
estudantes, principalmente puxados pelos estudantes, naquele momento tal
[das Diretas Já], em relação ao momento posterior a ele, que houve aquela,
aquele momento marcante positivo que foi da organização e o negativo que foi
de ter deixado apagar um pouco aquela chama de luta, chama da
continuidade, né. Embora tem outros pequenos sinais tal, mais acho que isso
que ficou assim pra história” (Armando).
338
reconhece a violência praticada pelo regime, que utilizou todos os artifícios para conter as
mobilizações e a luta dos militantes, mas que gerou um sentimento de eficácia política dos
que lutaram contra a ditadura. A atitude dos que lutaram contra o regime da ditadura teve
um efeito de mudança social que, até hoje, continua demonstrando a sua eficácia àqueles
“Eu acho que a violência. A violência é uma das lembranças assim que a gente
vê nos relatos, via nos documentários. E a violência é uma coisa inaceitável,
né, em qualquer âmbito, mas naquele período a violência era pra deixar, era
pra deixar, era pra fazer história, era pra, era pra dizer assim, eu tô te dando
um recado, se você, vocês aí que querem um país diferente, se vocês quiserem
fazer isso, se vocês quiserem, se vocês quiserem questionar essa maneira de
governar, vocês vão sofrer mais do que essas pessoas aqui estão sofrendo.
(...)Isso chega a arrepiar e deixa a gente emocionado porque você imagina a
violência que essas pessoas sofreram e ao mesmo tempo uma coisa que, uma
marca também que eu acho que era interessante é a coragem dessas pessoas,
porque essas pessoas, de fato, deram uma aula de cidadania pro Brasil,
mostraram pro esse país que, de fato esse país tem que ser diferente, esse país
é do povo, esse país é plural e eu acho que são duas marcas: a violência de um
lado e a coragem desses militantes, dessas pessoas que disseram assim, olha
esse país não é assim, esse pais não é, não tem um dono, esse país é de uma
nação e nós queremos um país diferente” (Emerson).
momentos: quando ele afirma que “a violência é uma coisa inaceitável, né, em qualquer
âmbito” e que “isso chega a arrepiar e deixa a gente emocionado porque você imagina a
violência que essas pessoas sofreram”. A violência política quebra qualquer laço de
Sandoval (2001) mesmo, ao falar dos Sentimentos de justiça e injustiça , indica que
memória política, visto que entendemos que a memória política passa por um prisma que
político.
Nosso estudo vai demonstrando, aquilo que já havíamos acenado em nosso capítulo
teórico, que a memória coletiva tem implicações no comportamento político das pessoas
processo de formação da consciência política, uma vez que a consciência política, como
Isso permite entender - como sugere Sandoval (1994) – que, através da consciência
como atores políticos. Nesse sentido, a memória política destes atores políticos, quais
340
ação coletiva.
memória política?
Vimos nos capítulos anteriores e no primeiro eixo que na memória das lideranças
comunitárias e sindicais, estão presentes muitos elementos que foram mantidos e/ou
transmitidos de geração a geração, por meio das narrativas das testemunhas, da mídia,
Agora, neste terceiro eixo, procuramos analisar em que medida nossos entrevistados se
sentiram afetados pela ditadura militar, nos detendo aos aspectos psicopolíticos como a
político, aspectos que podem mobilizar para a ação ou que podem provocar
desmobilização.
Os discursos deixam entrever que existe uma forte relação de continuidade com o
passado, visto que a maioria dos entrevistados manifesta que chegamos aonde chegamos
porque houve pessoas, grupos e movimentos que lutaram no passado. A partir do que eles
341
apontam como impacto, sejam eles pessoais, que nós chamamos diretos, sejam políticos,
apenas didática, visto que ambos os aspectos estão muito imbricados, ou seja, ao mesmo
tempo em que algo afeta diretamente alguém, tem implicações sociais, morais, éticas e
políticas e isso podemos notar ao longo dos próprios discursos dos sujeitos. Haja vista que
respostas se entrecruzam. Parece-nos que quanto mais os sujeitos se identificam com a luta
política, mais as questões que eles dizem afetá-los, diretamente se vinculam ao aspecto
político.
O discurso de Andréa mostra claramente esta imbricação que falávamos acima. Ela
afirma que o impacto da ditadura é muito mais político, pois a consciência que ela adquiriu
com relação ao direito de se organizar foi em função das lutas que os militantes fizeram no
“Eu fico pensando, deixe eu ver. Que impacto (breve silêncio)? Eu não
consigo perceber algo diferente disso que eu te disse agora não. De pensar que
era um momento que as pessoas não tinham, eu acho que essa coisa da
liberdade, o cerceamento da liberdade é um troço muito forte, né. Então
quando você pensa que as pessoas não tinham liberdade e que lutava pra
consegui-la, né, eu acho que é o que fica mais forte assim. (...) Como eu não
tive nenhum caso próximo a mim, de pessoas que foram presas ou alguma
coisa assim, então eu não sinto, né, esse impacto do ponto de vista pessoal. É
mais do ponto de vista político mesmo, de pensar que pra que eu tenha, o que
eu tenho hoje de liberdade, de direito de me organizar, constitucional, muitas
pessoas morreram, foram espancadas. Então, o impacto que fica é nesse
sentido” (Andréa).
342
Esse passado teve um impacto pessoal muito forte, gerando frustração, revolta e
sentimento de justiça e injustiça aparece como uma dimensão da consciência política que
pode levar à mobilização ou acomodação, que como diz Anderson, “cai na fatia ou não faz
mais nada”, mas fundamentalmente que os ajuda a ver hoje que “tem muita coisa pra ser
mudada”.
“Olha, eu acho que o maior impacto que a gente sente hoje é de revolta, viu, é
de revolta, saber que hoje pouca gente tem, é foi fruto de muita luta naquele
período para se chegar ao pouco que se chegou hoje porque é preciso muita
coisa ainda, mudar-se muita coisa. Assim, nos revolta ver tanta, é, tanta
indignação, sabe, que a gente vê, que, o pouquinho que a gente lê e prum país
igual esse tá ainda caminhando ainda prum desenvolvimento, né, um
subdesenvolvimento que existe hoje, então, assim é um sentimento um pouco
mais é de revolta, sabe, jamais espero que isso volte” (Vitor).
3.1.3. Aprendizado – consciência do que passou para nunca mais voltar a se repetir
Para Ronaldo foi um aprendizado que ele pode passar para outras pessoas, visto que
a consciência do que foi a ditadura faz com que ele lute para que nunca mais volte a se
“(Silêncio). Olha. (silêncio). É um, é um aprendizado, né, que você tem. Que a
gente tem e pode tá passando, né, pras outras pessoas. E o que eu sei é que eu
não, não aceitaria hoje, se viesse a, a ter algum, algum movimento, por
exemplo, pra eu participar. Eu nunca participaria de algum movimento, assim,
repressivo e não apoiaria de forma alguma. O impacto que eu sei, é assim, é a
consciência, né, que cê tem de um mal que passou que a gente não quer ver
nunca mais no país, né” (Ronaldo).
“Olha só, o impacto disso é o seguinte, a gente começa, a minha família como
eu disse nunca foi muito envolvida em movimentos sociais, movimento político,
mas isso, essa situação de vida acabou alertando, né, da necessidade do
envolvimento político, né. E eu acho que isso contribuiu, essa forma de ver
contribuiu pra depois eu começar a enxergar essas coisas e começar combater
também contra esse tipo de coisa. Inicialmente numa militância na Igreja e
depois uma militância partidária no Partido dos Trabalhadores e no
movimento sindical. Então isso, quer dizer, de certa forma abriu os olhos, né,
que era necessário ter algum tipo de militância contra este estado de coisas”
(José).
popular, a própria Cebs, foram tiradas, deixadas, foram usadas, repressão pra
que não acontecesse ou era o segmento mais organizado naquele período, né,
que gerou. Então aquilo dava um motivador a mais, mas digamos assim em
termos, na formação sócio-política, né. Isso, mas muito mais na formação, não
na vivência dela, né” (Armando).
individualistas alimentados pela sua família, que inclusive a deprimia (em um outro
momento da entrevista ela afirma que foi uma adolescente de classe média que tudo que
queria tinha e que seus valores eram todos individualistas), uma vez que ela passou a
assumir um papel político na sociedade, como alguém que “pode fazer a história”.
Impacto semelhante encontramos na fala de Sara que afirma que isso gerou uma
vontade de lutar para manter a democracia levando-a a agir no sentido de fazer com que as
Tanto Eliana quanto Sara saem da esfera do mundo privado ligada mais às questões
Nesses discursos está presente a Vontade de agir coletivamente, aquela dimensão que diz
que levou à formação da própria identidade de militante, identidade essa que permite uma
relação que fazem entre uma identidade “individualista” imposta pelos valores defendidos
pela ditadura e uma identidade coletiva, que é a da luta coletiva dos movimentos sociais.
“Eu acho que eu já fui criada é, a partir, quer dizer, meu, meu processo de
vida, ela se deu é. Minha vida política, ela é, ela é posterior. Então, não tive
uma afetação direta. Então, eu já cresci é, conhecendo, tendo uma visão
crítica é, de uma luta posterior, inclusive. É, eu acho que aquele período foi
um período mais rico, politicamente, e a gente tem muito, é, uma identidade de
militantes daquele período. Eu acho que eles são, eles são de uma geração que
346
era muito mais politizada. Então, eu acho que pra mim vem mais essa
identidade de pessoas que se engajavam e davam a vida pela causa, que é
muito diferente da minha geração política. Que a gente tem uma vida, é tem,
eu acho que até mais de um perfil de vida. É uma vida privada, de trabalho e,
fora desse processo, vem a militância. E aquela geração não, a vida dela era
totalmente ligada na questão política. Então é essa identidade que eu tenho”
(Fabíola).
“Eu acho que deve ter tido muitos impactos, eu acho que, se não fosse o
movimento social, se não fosse, se não fosse os ensinamentos, se não fosse as
lideranças e as pessoas que tem hoje no movimento social, com certeza, eu
taria é, taria em casa pensando no meu indivíduo só, pensando somente na
minha pessoa, pensando só no que eu tenho que ter pra mim, pensando no meu
mundo em particular, né. Eu acho que isso é uma marca que a ditadura deixa,
né, nas pessoas. Ela diz assim ‘olha você tem que se preocupar com seu mundo
e o restante da população, a tua comunidade onde você vive não interessa’. Eu
acho que isso, isso ela influenciou por vinte e quatro anos, vinte e quatro anos.
Eu acho que hoje eu, ainda tem algumas marcas, mas eu acho que hoje eu to,
to conseguindo perceber o mal que a ditadura fez pra, pra, pro meus pais, né,
pro meus irmãos e pra geração que eu to vivendo, ainda, a ditadura ainda faz
mal porque ela deixou essas marcas, né, essa marca do egoísmo, essa marca
da concentração do poder, né, de dizer, de dizer que a política é uma coisa
ruim, que a política é nefasta, que a política não liberta. Eu acho que isso a
ditadura influenciou muito na minha pessoa, acho que graças a Deus estou
conseguindo a se libertar aos poucos desse processo” (Emerson).
aos impactos políticos, no que se refere ao impacto pessoal, eles se voltam muito mais à
política. Dito de outra maneira, são questões que dizem respeito à relação entre o “eu” e a
“sociedade”. Os impactos políticos, por sua vez, se dirigem mais para a relação entre o
política, ou seja, questões que dizem respeito à relação entre os “movimentos” e seu papel
político na “sociedade”.
chega a falar que sente saudades de algo que ela não viveu, que foi a organização da
sociedade contra um inimigo concreto, que era a ditadura, e compara dizendo que hoje é
“Porque eu, eu acho que me afetou nesse sentido, eu fico imaginando. Que
hoje eu tenho uma liberdade de expressão que as pessoas não tinham, naquela
época, mas, em contrapartida, elas tinham uma coisa muito mais concreta,
contra o quê se organizar. Então, o inimigo, ele tinha forma, né. E hoje o
inimigo que a gente tem não tem forma. Então, seu trabalho de convencimento
com as pessoas é muito mais difícil, né. Naquela época você tinha um
cerceamento de uma imprensa, mas se tinha meios de comunicação
alternativos que conseguiam sobreviver. Hoje, você vive numa ditadura que é
a imprensa toda comprada, né. Então se tem hoje é, eu acho que ela me afeta
dessa forma. Eu sinto saudade de algo que eu não vivi. Porque foi um
momento de luta, de organização real da sociedade. Eu tenho isso no
imaginário. Porque a sociedade de alguma forma conseguiu se organizar
contra alguma coisa. Que hoje a gente percebe que é o oposto. É cada vez
mais o individualismo. (...) Porque eu penso que hoje tudo é muito mais difícil.
Engraçado, porque, teoricamente, era pra ser mais difícil lá porque cê tinha
repressão física, né. Então, era pra ser mais difícil lá. Mas, hoje, com todo o
sistema que a gente tem, político, econômico, então, eu acho que hoje é muito
mais difícil das pessoas acreditarem na luta coletiva, sabe. O empobrecimento
da sociedade também leva cada vez mais, a pessoa a buscar soluções
individuais para os seus problemas. (...) É, Salve-se quem puder. E se você fala
que a organização coletiva sindical é uma alternativa. Não, não, é não! ‘A lá,
o sindicalista ta lá, já, trampolim. Tá lá, tá numa boa e a gente continua se
ferrando’. Então nossa, esse trabalho de convencimento é muito difícil. E, e
não temos nenhuma repressão física, né”. Naquela época, eu tenho a
sensação. É uma sensação, porque eu não vivi, mas que as pessoas
conseguiam se organizar e tinham algo mais concreto, né, a que se ligar”.
(Andréa).
348
Vitor, por sua vez compara as greves de hoje com a situação de repressão da
ditadura:
têm de formar uma consciência política democrática em função dos anos de autoritarismo e
“Olha, eu, pra mim, creio que afetou todo o povo brasileiro, né. Embora, é, eu
não tenha sofrido aquele período diretamente, eu acho que muito, muito das
coisas que a gente ainda vive hoje é, é herança daquele período, né, que não
precisava ter ocorrido essas questões. A própria dificuldade que gente tem de
criar uma consciência política e democrática, né, foi bastante prejudicada em
função do período militar, daquela época. Se for colocar é, na ponta do lápis
quanto tempo a gente teve de período democrático no país, né, se resume ao
período recente aí, né. Isso desde a descoberta, entre aspas do Brasil, que a
gente não tem e não pode é muito fácil, simplesmente, jogar a culpa, né, desde
a colônia portuguesa lá, né, mas na verdade é que a gente não teve um período
de experiência democrática, né, porque é algo que se constrói também, né,
essa questão de consciência. E isso não se tem, né. É algo que a gente tá
começando a construir nesse momento e com muita dificuldade” (Anderson).
implica uma “trabalhosa luta simbólica”, que envolve significados e interpretações dos
349
fatos, já que essa consciência, em seu aspecto cultural, é representada por tradições que
enfocam o discurso e a ideologia, sendo parte do processo de dominação da elite, que tem a
sociedade, uma vez que os sindicatos, na visão dele, não devem ficar restritos à categoria
sindical, mas devem fazer um trabalho de mudança de consciência junto à população. Ele
“(...) Tem muita coisa pra ser mudada e, né. A gente comemora vitórias
pontuais, muito pequenas, né, e seja na categoria, mas principalmente, né, a
visão que tem tido, né, nesses anos até na gestão passada, na atuação do
sindicato-cidadão – que o sindicato nosso tem é, de tentar construir com o
restante da sociedade um projeto maior, por isso que a gente chama de
sindicato-cidadão – tá inserido, né, porque o sindicato tem um papel
importante enquanto parte organizada da sociedade, né. Tem um papel de
reproduzir algo, na tentativa de algo melhor para eles. Então, a gente não
pode ao mesmo tempo ficar restrito à categoria, né, e sem tá inserido na
sociedade para tentar mudar tudo em conjunto, né. Não existe ganho sozinho.
Então, essa que é a maior dificuldade. Isso que a gente percebe quando se
insere nos movimentos sociais. Se na categoria é difícil, muito mais difícil é
tentar chegar junto à população e fazer esse trabalho de mudança de
consciência. Muito mais difícil. Nós tivemos uma experiência recente aí,
embora seja um tema que a gente teja mais próximo aí, que foi contra a 6a.
rodada de licitação, né, entrega das reservas de petróleo. E a dificuldade,
montamos barraquinha na Quinze86, né. É a dificuldade que é tu conversar
com a população e tentar, conscientizar, né, que essa legislação que tá aí, tá
entregando as nossas reservas, tá entregando a riqueza do país. Aí tu sente, né
a dificuldade que é tirar, né, do individualismo que existe todo dia , né, até
fruto do próprio sistema que a gente tá, cada vez mais complicado, né, do
86
Quinze é uma rua importante do Centro de Curitiba.
350
Sandoval considera chave para mobilizar para a ação coletiva tendo em vista a mudança
social. Lembremos que uma das explicações para a compreensão do sentimento de eficácia
grupos, indivíduos, instituições, governos concretos que são responsáveis pela situação de
injustiça. Reconhecer isso faz com que as pessoas e/ou movimentos confiem que suas
ações coletivas são uma possibilidade de mudança social. Embora Anderson aponte a
no sentido de dizer quem pode e quem não pode comer. Se você levar
estritamente que você tem quase 40 milhões de pessoas sobrevivendo abaixo
do nível de pobreza, né. Então, essa eu acho ela mais perversa do que aquela
que se você falasse você apanhava e ia preso. Tudo bem, ela foi cruel? Foi
cruel. Cê tinha uma situação econômica no país diferenciada na época? Tinha.
Era um país um pouco menor, tinha recursos pra todo mundo. Hoje são mais
de 160 milhões de pessoas, né, então acho que hoje, nesse sentido, a gente
continua a luta ainda de você conseguir ter uma igualdade social, né, mesmo
que por um inimigo muito mais perverso, capitalismo como um todo, né. Ele
não fica dentro das suas fronteiras. Ele está muito além das suas fronteiras,
mas e não existe uma saída individual para um país. Você tem uma saída, no
meu ponto de vista, você pode até melhorar as condições, mas uma saída pra
uma população como um todo, ou pra uma região do país tem que ser uma
saída coletiva, né” (Armando).
antagônicos, entre eles, os econômicos e suas implicações na desigualdade social. Ele fala
de uma ditadura econômica perversa que precisa ser combatida tendo em vista uma
Desta feita, a análise que fizemos desses três eixos, permite- nos afirmar que a
maneira que a consciência política – como mostraram os relatos – pode ser determinante
na construção de uma memória política. Nesse sentido, reafirmamos que entre elas existe
uma via de mão dupla, motivo pelo qual a memória coletiva não está separada da
perpassamos pelas dimensões da consciência política proposta por Sandoval, visto que este
coletivamente e estabelecer metas de ação que possa suscitar, de fato, uma ação coletiva
sujeitos tomam consciência de seu passado, da sua realidade social e política construindo
uma memória política que os potencializa e os mobiliza a participar das lutas políticas.
353
CAPÍTULO VIII
A Memória como estratégia
de resistência e luta política
_________________________________________________________________________
Este último capítulo pretende finalizar a presente tese apontando os elementos mais
importantes que encontramos ao longo deste trabalho de pesquisa que, na verdade, não se
encerra aqui, muito pelo contrário, inicia-se aqui, pois inaugura um campo de pesquisa na
Ao longo desta tese pudemos perceber que, tanto na memória das lideranças
torturas e perseguições aos movimentos sociais, sindicais e estudantis, bem como uma
87
Coimbra, C.(2001). Operação Rio: o mito das classes perigosas. Niterói-RJ: Intertexto/ Oficina do autor.
(p.51).
354
que privilegiam o importante papel do movimento estudantil na luta contra ditadura e que
parece predominar no meio estudantil, revelando uma forte tendência dos estudantes em
“mitificar” o que foi esse movimento no passado e, aqui, encontramos, ao mesmo tempo
uma clara identificação social; outras memórias, que reconhecem os limites do poder
refletiu num certo número de respostas em branco, mas que não representou a maioria.
uma memória política da ditadura militar construída por uma parcela de estudantes
universitários suplantando aquelas generalizações que se fazem de que os “jovens não têm
importância dos espaços de participação política como um meio eficaz para conhecer
Para ambos os grupos, ficou evidente que o legado ditatorial ainda repercute na
estudantes universitários não deixam de reconhecer alguns elementos desse legado, que
democracia e, por outro lado, a existência de uma memória política construída pelos
movimentos sociais que se manifestam nas práticas de resistência dos movimentos sociais.
Com base em suas memórias, podemos dizer que conhecer o passado aumenta o
poder de intervenção, ou seja, potencializa as ações coletivas do presente, uma vez que a
memória política permite reconhecer aquilo que ficou nos “subterrâneos” da história como
algo perdido, velado, escondido irrompendo no cotidiano e tornando visível “a ótica dos
implicações das práticas de resistência dos movimentos sociais e sindicais que atuaram na
atualmente, na memória política das gerações que não viveram a ditadura militar brasileira.
militar e encontram nessas experiências motivação para suas práticas políticas atuais.
experiência dos novos movimentos sociais, ou seja, memória daquele sujeito coletivo que
emerge nos anos oitenta como o grande ator social das grandes mobilizações e
coletiva os tempos se misturam, ou seja, não estão marcados por uma ordem cronológica,
visto que essas memórias se deslocam do período da ditadura para o da abertura política e
para o momento presente, sendo as lutas políticas dos movimentos sociais um marco de
Notamos que as lembranças significativas vão além do que contam aqueles que
vivenciaram a ditadura, visto que nos relatos dos entrevistados se acrescentam suas
somente àquilo que foi transmitido oficialmente, mas rompe com aquilo que foi propagado
pela memória oficial, uma vez que esses sujeitos reinterpretam o passado pelo prisma de
uma consciência política que recusa a história “não contada” ou “mal contada”,
memórias esquecidas, ou seja, por memórias não contadas pelas narrativas oficiais, mas
que passam a ser contadas, agora, por eles mesmos como uma memória política de
dominação e a injustiça, em busca de uma sociedade que de fato seja justa e democrática.
resistência e luta política, ou seja, como um campo de disputa entre versões antagônicas
sobre um período político ditatorial que marcou a vida dos sujeitos e a história da
sociedade brasileira. Portanto, muito além de nos fecharmos em conclusões, nossa pesquisa
nos foi apontando que o processo de construção da memória política é uma verdadeira luta
Desta feita, nos defrontamos com o grande desafio de pensar políticas da memória
que levem em conta as demandas dos movimentos que lutam pela construção de uma
memória popular ou, por assim dizer, de uma “memória dos vencidos”, ou seja, pelos
grupos e minorias que criam novos suportes e lugares da memória, através de seus
de seus arquivos e da luta pela abertura dos arquivos da ditadura. Faz parte da luta por uma
passado, esses movimentos começam a recriar lugares da memória88 visto ser esta uma
reivindicação dos grupos populares pelo direito ao passado. Nesse sentido, trava-se uma
luta política, o confronto entre memória contra memória, em que se disputa os sentidos
Nossa pesquisa mostrou claramente que não existe uma única memória, mas sim
manifestando-se como uma estratégia de resistência e luta política dos grupos minoritários
e populares. Na medida em que esta luta for assumida por outras esferas da sociedade
brasileira ela pode contribuir, por meio de políticas de memória, na luta contra o
esquecimento.
civil e expandir a natureza do debate público tentando curar as feridas provocadas pelo
88
Lugares da memória é uma expressão utilizada e desenvolvida por Pierre Nora em seu livro: NORA, P.
(1984). Les Lieux de Mémoire. Paris: Gallimard.
358
passado e construir uma memória coletiva que se contraponha à memória oficial. Dito de
outra maneira, significa criar e manter espaços memoriais que ajudem a construir e
alimentar uma memória coletiva que questione as versões instituídas como “memória
oficial” de modo que a política da memória seja assumida como uma atividade vital na luta
memória como dissenso, como o questionamento do consenso que tem levado a uma
política de esquecimento deliberada em toda América Latina, visto que, como bem aponta
Perrone:
(1996 a/b) e o relato dos nossos entrevistados vamos mostrar como as políticas da memória
podem impor uma memória oficial que tenta levar ao esquecimento determinados eventos
políticos – se não interessar aos que estão no poder – e como muitos grupos e movimentos,
de políticas da memória que possam se contrapor a uma memória oficial e consensual que
coletivos que acabam sendo assimilados pelos indivíduos negando a esses mesmos
Vale ressaltar, que a política da memória não pode confundir-se com as políticas de
senão se converteria em história. Grosso modo, poderíamos dizer que a história é uma
memória, na medida em que se cristaliza na escrita da história oficial. A memória, por sua
vez, é um fenômeno sempre atual que mantém os vínculos entre o que foi vivido e o eterno
presente. Como afirma Decca, “A memória é a vida, sempre guardada pelos grupos vivos
esquecimento” (Decca, 1992: 130), visto que supera os limites da historiografia e se abre a
oposição entre ambas suscita um paradoxo, muito bem apontado por Decca que diz: “Se a
89
Para Decca (1992) a “memória histórica está definitivamente datada, ainda que possa ressurgir em nome
de outras bandeiras e outras lutas” e “está ligada a afirmação do Estado Nacional e até muito recentemente
era controlada pelos jogos insinuosos do poder que estabeleciam a história oficial” (pp.134-135). Cabe
diferenciar aqui que Martín-Baró utiliza a idéia de memória histórica num sentido absolutamente oposto ao
de Decca, visto que para Martín-Baró (1998) a memória histórica não está vinculada a nenhum tipo de
controle de poder, muito pelo contrário, está diretamente vinculada ao processo de conscientização que
permite as pessoas e grupos sociais (...) asumir lo más autentico de su pasado, a depurar lo más genuino de
su presente y a proyectar todo ello en un proyecto personal y nacional” (Martín-Baró, 1998:171) e, nesse
sentido, perceber tudo aquilo que oprime e marginaliza o povo latino-americano.
360
sociedade histórica destrói as bases da memória coletiva espontânea, ela ao mesmo tempo
desenvolve uma percepção histórica que, diante do perigo da perda definitiva do passado,
De alguma maneira, é nessa luta por criar lugares de memória que parece inserir-se
as políticas de memória, como uma reivindicação dos grupos sociais pelo direito ao
dos movimentos que lutam pela construção de uma memória popular ou, como afirmam
alguns autores, por uma memória dos vencidos, ou seja, por aqueles grupos e minorias que
fazer uso da crítica que Rancière (1996 a/b) faz à idéia de política, que em nossos dias, é
a própria idéia de política e de democracia. Para esse autor, a política não é a maneira
como indivíduos e grupos combinam seus interesses e seus sentimentos, como comumente
se afirma. Para o autor, a política “É antes um modo de ser da comunidade que se opõe a
outro modo de ser, um recorte do mundo sensível que se opõe a outro recorte do mundo
política só pode ser entendida enquanto “dissenso” e não consenso, pois a política rompe
com o jogo normal da dominação, pois não advém naturalmente nas sociedades humanas.
Muito pelo contrário “advém como um desvio extraordinário, como uma ruptura no
O que normalmente se entende por política, ou seja, o conjunto dos processos pelos
poderes, a gestão das populações, a distribuição dos lugares e das funções e os sistemas de
legitimação dessa distribuição, ele denomina “polícia”. Quer dizer, nesta idéia de política,
que ele chama “polícia”, se encontra a idéia de ordem, vigilância e repressão quando se
transgride essa ordem. Nesse sentido, a palavra política significa “o conjunto das
Para deixar isso ainda mais claro, Rancière resgata a definição de Aristóteles de que
o homem é um animal político que se distingue dos outros animais por possuir o “logos”, a
palavra. A voz (phone) é comum ao homem e aos outros animais, mas somente o homem
tem a palavra que lhe permite manifestar o útil, o prejudicial, o justo e o injusto. Assim
sendo, somente aqueles que possuem a palavra como “ser falante” participam do mundo
político. Recorrendo à fábula de Balanche, que descreve uma cena conflituosa entre
plebeus e patrícios, demonstra a existência de dois mundos sensíveis: o mundo dos plebeus
que não falam (que é o mundo daqueles que só manifestam ruídos, o mundo daqueles que
não têm um nome e, portanto, não estão inscritos na pólis) e o mundo daqueles que falam
Na fábula, os plebeus insistem em provar que eles falam e aí reside o conflito. Isso
pressupõe a igualdade de um ser falante com qualquer outro ser falante. Igualdade essa que
não se inscreve na ordem social, senão que se manifesta pelo dissenso como “uma
(Rancière, 1996b: 372). Os plebeus começam a falar como seres que têm nome e “(...)
instituem uma outra ordem, uma outra divisão do sensível, constituindo-se não como
guerreiros iguais a outros guerreiros, mas como seres falantes repartindo as mesmas
mundos distintos:
para fazer emergir uma cena pública, na qual se exponha a existência dos dois mundos e se
estabeleça uma relação que só é possível existir se nos fazemos ouvir, entender, enxergar,
ou seja, se nos tornamos visíveis. O político, portanto, apresenta-se como dissenso que
desestrutura a ordem social e faz com que o mundo dos sem visibilidade, sem voz e sem
Rancière (1996b) ilustra bem esse dissenso, esse desentendimento (que é o conflito
entre dois mundos distintos) apontando, como exemplo, o movimento operário que, a
partir do momento em que vários empregados interrompem juntos o trabalho para negociar
com o empregador suas condições de trabalho, esta questão é levada ao Estado e à opinião
pública. Seu movimento é audível apenas como um ruído que a autoridade pública deve
assunto para ser discutido publicamente, ou seja, eles falam num mundo que não existe e
de coisas que não existem, coisas que para sua enunciação não possuem nenhum título. A
“(...) construir a relação entre esses dois mundos separados: não somente
obrigar o outro a discussão, mas provar que entre o mundo público da fala e
do debate e o mundo 'privado' do trabalho havia uma relação e que, portanto,
o vínculo igualitário, constitutivo de um mundo comum, podia operar”
(Rancière, 1996:376).
Esta estratégia consistiu, não apenas em provar logicamente esse vínculo, mas em
caso do movimento operário se contrapõe à ordem dominante estes ocupam a cena pública
e ganham visibilidade.
De acordo com Paoli (1989) é por meio do confronto que os trabalhadores buscam
sua condição de cidadania como “sujeito de direitos” que lutam por um espaço público no
qual suas demandas possam ser reconhecidas e onde a justiça social possa ser realizada
(Paoli, 1989). Nesse sentido, a vida cotidiana aparece como base para a ação e concepção
ordem dominante.
confronto entre versões antagônicas que se apresentam – como sugere Huyssen (2000) –
como “esferas públicas de memória real” que contestam a memória oficial ou, como
podemos dizer, as formas de memória consensual coletiva que foram construídas pelos
regimes pós-ditatoriais, não só no Brasil, mas em toda América Latina (Perrone, 2002).
364
1. As políticas de esquecimento
nos remetemos a uma realidade comum a vários países da América Latina que viveram,
simultaneamente, sob ditaduras militares e nos demos conta de que os regimes pós-
ditatoriais neste continente, promoveram, por meio de seus aparelhos repressivos, políticas
2002), são formas de recuperação da harmonia nacional utilizada pelos governos pós-
ditatoriais como estratégia para apagar o passado e promover o esquecimento. Isso faz
parte de uma política do esquecimento, que pode ser mais bem entendida como Rancière
(1996) denomina “polícia”, que se estrutura para manter a “harmonia nacional”, ocultando
negar que a luta do movimento pela anistia no Brasil, levada a cabo a partir de meados dos
anos 70, foi uma forte bandeira de luta contra a ditadura. Impulsionada, fundamentalmente,
por familiares e amigos dos envolvidos nos movimentos revolucionários e por ex-presos,
brasileiros e estrangeiros, esta luta buscava a anistia, ampla, geral e irrestrita, a erradicação
movimento e das adesões de outros movimentos sociais que assumiram essa bandeira de
luta, a lei de anistia no Brasil, como vimos no Capítulo III, não foi ampla, nem geral e nem
irrestrita como queria a sociedade brasileira, muito pelo contrário, foi parcial e limitada
não atingindo todos aqueles que foram perseguidos pela ditadura e, além disso
Acertadamente, Ricoeur (2003) aponta os limites dos processos de anistia, visto que
provocam o esquecimento institucional. Nesse sentido, a anistia tem um alcance para além
suspende todas as ações judiciais impedindo a apuração dos crimes políticos e apagando a
memória como se nada houvesse acontecido. Como bem afirma Olgária Mattos (1992),
“(...) a paz é o nome que os vitoriosos dão ao silêncio dos vencidos, para figurá-la como
Essa política de esquecimento parece ter sido muito eficaz, haja vista, que se iniciou
durante o próprio regime militar com o ocultamento dos assassinatos de presos políticos
366
acontecimentos.
Esta manipulação, como vimos ao longo da tese, está bem presente na memória das
lideranças sindicais e comunitárias, e como elas próprias apontam eram praticadas através
dos meios de comunicação oficiais; da escola formal; do futebol, com toda ênfase que se
democracia, através da impunidade, uma vez que – como já apontamos no Capítulo III – o
Brasil não puniu os torturadores e assassinos do período, como ocorreu em outros países da
sobre os crimes praticados na ditadura, esse reconhecimento não atingiu aqueles que
morreram nos confrontos com a polícia e os que cometeram suicídio motivados pelo
arquivos, visto que muitos dos arquivos da época foram destruídos no final da ditadura –
inclusive, há cerca de um ano, foi divulgada pela imprensa uma denúncia da queima de
arquivos na base aérea de Salvador na Bahia, fatos estes também presente na memória das
Ressaltamos que uma política da memória deve trabalhar em torno da disputa pela
1992:27).
público trazendo à luz a memória coletiva das classes populares que se contrapõe à
memória oficial e que possibilita o fortalecimento das esferas públicas da sociedade civil,
justamente por tornar visível a existência de dois mundos, como nos sugere Rancière
(1996a/b).
Para isso destacamos os elementos que apareceram nos discursos dos entrevistados
e que consideramos, a nosso ver, devem fazer parte das políticas da memória:
368
memória é reconhecer que existe uma memória de resistência construída pelas classes
populares. Nesse sentido, nos interessa mostrar que não existe uma única memória, mais
bem existem “memórias subterrâneas” que “como parte integrante das culturas
Os relatos dos nossos entrevistados ilustram bem o que vimos afirmando ao longo
deste capítulo, visto que na memória coletiva construída por lideranças, que hoje atuam
esquecimento.
as formas de repressão impostas pelo regime militar que impedia qualquer tipo de luta ou
expressão política dos movimentos sindicais e populares contra o regime, e a coragem dos
“Muitos pagaram com a vida, né. Essa coisa é uma pergunta que eu sempre
me faço, quer dizer, a nossa geração, mesmo hoje com as dificuldades e as
dificuldades são objetivas, né, o desemprego, são coisas que retraem,
dificultam a organização e a luta, mas tem que se perguntar, aquela geração
lutou, tinha tudo isso e ainda tinha: cê poderia ser morto, poderia... tortura,
quer dizer, é muito mais difícil. Então é uma geração que a gente tem que
reverenciar” (Edilson).
369
trabalhadora, versão jamais assumida pela memória oficial: “mas foi uma vitória da classe
movimentos sindicais e sociais, ou seja, por aqueles que normalmente estão predispostos a
agir contra os aparelhos repressivos e que provocam uma ruptura com o cotidiano
justifica a repressão:
“Mas eu também acredito, quer dizer, essa mudança só vai vim com o povo
organizado, o povo na rua e aí o papel do movimento social é fundamental. E
aí essa imagem da luta pela liberdade, de enfrentar os governos é importante
porque, é também essa coisa é importante, né, porque o povo também
derrubou uma ditadura militar, né” (Edílson).
partir dos espaços memoriais criados por essas mesmas comunidades e movimentos que
realizam suas celebrações e reflexões sobre os eventos passados que marcaram suas vidas,
Direitos Humanos, em cujo lugar se reflete sobre as vítimas do regime militar no Brasil.
proporcionaria a memória do que aconteceu, naquele lugar, mas seu caráter celebrativo, ou
momento certo para emergir e que talvez não sejam capazes de vir à luz, espontaneamente.
classes populares, apresentam-se como uma memória política capaz de produzir cenas
memórias subterrâneas e, como sugere Paoli (1992), recriando “a memória dos que
perderam não só o poder, mas a visibilidade de suas ações, resistências e projetos” (p.
27).
É interessante destacar que a cada dia aumenta a pressão para que sejam abertos e
pelo presidente Lula, que impede a abertura dos arquivos da ditadura no prazo de 50 anos.
memória que permite às vítimas e aos seus familiares terem acesso às informações que lhes
dizem respeito e que estão sob o poder sigiloso do Estado fazendo com que as violações
desaparecimentos do período da ditadura militar jamais será em vão, pois diz respeito à
nossa história, à nossa cultura e à formação das gerações atuais e das futuras gerações.
O fato de se terem sido abertos alguns dos arquivos, como foi o caso dos arquivos
do DOPS, em São Paulo e os do Rio de Janeiro, no ano de 1994, nos anima a insistir nesta
luta. Entretanto, não podemos deixar de destacar que, infelizmente, nesses arquivos, os
documentos. De qualquer maneira, a sua abertura foi fundamental para que o público em
geral pudesse ter acesso às fichas das personagens políticas e culturais brasileiras que
foram vitimas da prisão e, consequentemente das torturas e outras violações dos direitos
humanos.
importância da abertura dos arquivos, expressando, claramente que isso é “nosso direito”90:
“Acho que tem que, né, os jornais de hoje (14/12/2004) tão, tão tocando nesse
assunto e muita gente não tem a opinião formada, né. E deveria ser algo, né,
natural, né. É nosso direito a informação, o que que aconteceu efetivamente,
né. Historicamente tem um papel relevante. E a gente tem muito a aprender
com o que houve, né, naquele período, né, e sentir vergonha inclusive, do que
houve naquele período. (...) Então, essas questões tem muito a, a, a nos formar
e nos ensinar. Então a gente não pode simplesmente apagar o que é ruim na
história do país, né, e fazer de conta que nada aconteceu” (Anderson).
Então ontem (12/12/2004) teve um, um escândalo colocado pelo fantástico, né.
A queima de arquivos, lá em Salvador, na base aérea de Salvador. Mais um
ingrediente, mais um temperinho do que já vinha há duas semanas com a
intenção de abrir ou não abrir os arquivos, né, do que é confidencial e o que
não é, então tem uma série de coisas. Na verdade a gente vai ta trabalhando
com feridas, né. Você vai ta abrindo, escancarando feridas ou imposições da
ditadura militar, quer dizer, é, autoritarismo mesmo, né” (Armando).
90
Vale destacar que estas entrevistas foram realizadas nos meses de dezembro de 2004 e janeiro de 2005,
período em que estava sendo divulgada pela mídia a discussão da abertura dos arquivos e da queima dos
arquivos em Salvador-BA. (O Fantástico divulgou isso no domingo dia 12/12/2004).
372
da grave violação aos direitos humanos, a não repetição dos erros do passado, a não
Para além da luta pela abertura dos arquivos é necessária a reparação dos danos e
perdas das vítimas da violência política no Brasil, bem como aos seus familiares que não
cessam em querer dar aos seus entes queridos o direito de serem enterrados com dignidade.
Cabe ressaltar, que indenizar os que foram diretamente lesados ou aos seus familiares, bem
como punir os responsáveis pelas atrocidades cometidas durante o regime militar no Brasil,
faz parte dessa reparação e significa para a sociedade brasileira dizer não à impunidade!
Armando chama a atenção para o direito das famílias de saberem qual foi o fim de
“Tantas pessoas desaparecidas sem saber aonde estão! Famílias assim sem
ter, filhos órfãos da ditadura, que não sabem se teu pai tá vivo, se não tá, se foi
exilado ou não foi, quer dizer, sabe-se que uma grande maioria está morto,
mas saber aonde e em que condições? (...) Pra saber, ‘não meu pai morreu’,
então aconteceu assim. Não digo que isso vai acalentar por ter perdido um
ente da família, mas pelo menos saber qual a condição. (...) É um direito, né. E
até mesmo tendo as questões de luto, a questão mais de você, concepções de
pós vida, né. As pessoas pensam, não, essa pessoa não se libertou, tá lá
sofrendo até hoje. Imagine a pessoa que foi injustiçada, foi morta por isso, por
ter brigado por uma coisa e, de repente, nem a própria família sabe o que
aconteceu com ela? Ficou essa lacuna na história. Realmente é uma coisa
assim bem, bem ruim, né” (Armando).
373
Por isso, apurar os fatos, resgatar a trajetória dos mortos e desaparecidos deste
período recente é importante, não apenas do ponto de vista do direito de seus familiares
obterem uma satisfação dos governos sobre como e porque morreram seus filhos, pais,
Desafio grande, mas necessário, que só será possível através do resgate desta
memória política ocultada ao longo dessas décadas e que precisa urgentemente ser
rompendo com as formas de memória consensual. Para isso, são fundamentais os trabalhos
Muito nos anima a importância que os próprios entrevistados atribuem aos nossos
trabalhos de pesquisa sobre a memória da ditadura militar brasileira, como foi o caso de
Vitor, ao afirmar que o alcance da universidade é muito mais amplo do que os da própria
categoria sindical:
“Uma das atividades pra manter a história viva, uma memória viva, são
através de vocês, principalmente vocês acadêmicos, porque nós enquanto
gente, enquanto uma entidade aqui, temos limites, não conseguimos atingir
todo mundo, é obvio que podíamos fazer muito mais do que fazemos, mas
infelizmente tem outros sindicatos com outras mentalidades, mas eu acho que,
através de vocês, que são tal qual a nós, talvez com uma facilidade maior de
formar opinião e manter a memória viva em relação a esses períodos que
trouxe muita tristeza para o país, com certeza” (Vitor).
pois, para eles, conhecer a história, o passado, o que foi e o que significou a ditadura
Desta feita, reforçamos o que já afirmamos logo no primeiro capítulo desta tese:
“(...) ‘descubrir selectivamente (...) elementos del pasado que fueron eficaces
para defender los intereses de las clases explotadas y que vuelven a ser útiles
para los objetivos de lucha y conscientización’ (Fals Borda, 1985: 139). Se
trata de recuperar, no sólo el sentido de la propia identidad, no sólo el orgullo
de pertenecer a un pueblo así como contar con una tradición y una cultura,
sino, sobre todo, de rescatar aquelllos aspectos que sirvieron ayer y servirán
hoy para la liberación” (Martín-Baró, 1998: 301).
376
contra a mentira institucionalizada e pela transformação das formas de poder que, ao longo
“Olha, taí uma tarefa que eu acho que os movimentos sociais tinham que
pensar em como atingir, em como falar melhor disso. E aí eu me incluo nisso,
nessa deficiência de abordar esse tema no dia-a-dia do sindicato ou no dia-a-
dia com as conversas com a categoria. É, eu acho que assim ó, se a gente
trabalhasse isso, nós poderíamos ter uma sociedade, brasileiros e brasileiras
mais atentos pra realidade nacional e internacional. (...) Então se a gente
trabalhasse melhor o que foi a ditadura, tá, talvez temos insipiência em
trabalhar esse tema e quais as conseqüências, eu acho que a gente poderia
usar a ditadura pra ter uma sociedade mais, é, altiva hoje. De entender que a
gente foi muito oprimido naquela época e que essa opressão, o tempo dessa
opressão ideológica tem que acabar, até pra que as televisões não sejam tão
imbecis e não queiram transformar a gente em mais imbecil ainda, sabe.
Então, acho que assim, foi importante, naquela época, assim, é importante até
hoje, mas eu sinto que hoje é um assunto adormecido, não tá na lembrança,
não ta na memória imediata das pessoas. (...) E se a gente trabalhar pode
recuperar a sua importância hoje no imaginário das pessoas” (Eliana).
Tal tarefa, estando nas mãos dos movimentos sociais nos leva a perguntar: E o
que estão fazendo estes movimentos no que diz respeito à preservação da memória da
afirmam que há muito pouca preocupação por parte das lideranças e dos movimentos
sociais, em geral, em preservar essa memória. Contudo, não deixam de sugerir o que
poderia ser feito, além de justificar a importância da memória da ditadura para as novas
gerações.
377
Emerson acredita haver algumas iniciativas de preservar essa memória, mas ela é
muito insipiente:
“Eu acho que se tenta, mas ainda muito, muito, muito, a iniciativa ela tá muito
pequena ainda, né, pelas limitações que essas pessoas têm porque nós estamos
vivendo num mundo que tá praticamente arrastando as pessoas a viverem,
né”. “(...) As iniciativas que se tem são iniciativas de pessoas que, como
sempre, tão andando contra a maré, nadando contra a maré, né, e aí acaba
atingindo muito poucas pessoas, né, não consegue atingir a maior parte das
pessoas, atinge aquelas pessoas que são interessadas. Eu, eu tenho um pouco
de acesso porque milito no movimento social e participo, mas eu gostaria que
isso fosse acesso nas escolas, poderia ter acesso nas escolas, nas
comunidades, aonde a gente atua poderia ser feito esse, esse debate, essa
conversa” (Emerson).
Para Luciara, os movimentos sociais são um lugar de memória, pois ela própria
“Sim, através da Vala comum, por exemplo, aqui em Perus foi feito um
trabalho pelo grupo de direitos humanos, muito grande em cima da vala
comum, com filmes, com palestras. Eles fizeram um trabalho grande, embora
378
E destacam que tem sido realizados alguns eventos sobre a Vala comum:
“Que foi a partir do momento que teve, que foi descoberta a cova, né, é que
começou a fazer a missa de finados lá no cemitério. Então aí é que colocou e
sempre tem a memória nesse dia. Isso, recordar os indigentes, né, como é que
fala? É os desaparecidos, enterrados indigentes. É desaparecidos políticos, né,
desaparecidos políticos” (Rosane).
“(...) Um exemplo, este ano teve a festa de São Mateus, o tríduo, então, por
exemplo, a gente passou a fita da “Vala Comum”. No ano que a gente, que a
Paróquia São José foi preparar a missa da Vala Comum, a gente passou o
filme da Vala comum porque assim, a gente vê que esse filme é pequenininho,
não sei se você já chegou a ver. Então ele é pequeno, mas ele mostra, assim, te
dá pistas do que acontecia, tal, né. Então, é, nós passamos na comunidade S.
Mateus. Foi passado na Paróquia Santa Rosa, foi passado o filme, acho que há
uns dois anos quando eu vi, foi passado o filme e teve debate. (...) o objetivo é
de resgatar a memória e celebrar, né, celebrar porque eles lutaram também”
(Sandra).
sugere Perrone (2002), “criar e manter espaços memoriais que ajudem a construir e
alimentar uma memória coletiva” (p. 109) que questione as versões instituídas como
política traz à cena pública as tensões existentes entre a História e as histórias dos
Os sindicalistas, quase em sua maioria, dizem que os sindicatos não têm essa
“Olha, em relação a nossa, aqui eu sou muito suspeito pra falar porque o
Sindicato dos Metalúrgicos de Betim ele é literalmente dirigido, quase na sua
totalidade, por membros do Partido Comunista do Brasil (PC do B). Então,
sem dúvida nenhuma, nós fazemos questão de deixar isso, a história viva, né,
pra servir exatamente de exemplo do que é possível, que é possível mudar a
sociedade desde que haja mobilização, desde que haja resistência, né. Então
no nosso caso aqui eu posso te afirmar que há, há, sem dúvida nenhuma, não
só através de revistas, através de jornais, mas através de seminários, através
de debates, principalmente o nosso, a nossa entidade aqui nós deixamos isso
muito vivo” (Vitor).
Andréa, ao contrário deles, diz que não há essa preocupação no sindicato que ela
Vilibaldo afirma que a entrevista, inclusive o despertou para a importância do tema ser
debatido no sindicato:
380
“Olha eu vou te dizer que sim, mas bem pouco, bem pouco, é, eu acho que é
uma questão até que você coloca que é até tema pra gente debater aqui no
sindicato, porque a gente acaba vivendo no outro mundo e acaba aí. Você
lembra, as vezes você coloca, na época da ditadura a gente não tinha essa tal
liberdade, mas nunca tentando mostrar pra categoria, pros movimentos sociais
o que foi a ditadura, o que significou, tal. Então eu acho que isso ai é até um
tema de debate, né, pra gente, é, tentar, né passar pro povo, pra categoria o
que significou porque a gente, a gente vê a dificuldade das pessoas que não
viveram aquela época, né, de entender, né. Eu acho que é uma forma, até de
formação porque o que vivemos naquela época, o que tamo vivendo hoje e
porque nós temos que se organizar pra não chegar ao ponto que chegou a
ditadura, né. Então eu acho que... (...) Sinceramente aqui eu acho que nunca
foi feito, se foi feito foi antes de eu tá aqui, né, mais e outros sindicatos
também, não lembro de ter participado de nada” (Vilibaldo).
têm sido realizadas para preservar a memória. Em função das diferentes dinâmicas e
lugar onde realizamos a pesquisa, consideramos mais apropriado apresentá-las por cidade:
Vale a pena destacar algumas falas dos entrevistados sobre a importância dos
“(...) Então busca sempre fazer esse resgate. É a partir da base, da história, do
chão do país é que a gente vai vendo porque que o país tá nessa situação hoje.
Então é esse processo mesmo, né. Então é necessário se fazer esse, essa volta,
senão não tem como entender porque que o país hoje tá no buraco que tá, né”
(Luciara).
“Foi muito bonito porque teve várias fotos, teve vídeos, teve, foi muito bonito,
as músicas da época. Então são músicas que eu gosto (risos. Na época foram
reprimidas. E a gente acaba se sentindo em casa nesses lugares” (Emerson).
“A gente vê que esse filme (Vala Comum) é pequenininho, não sei se você já
chegou a ver. Então ele é pequeno, mas ele mostra, assim, te dá pistas do que
acontecia, tal, né. Quem fez o filme também veio. Então foi interessante. Eu
acho que foi interessante, assim, porque você vê os vários lados, as pessoas
que viveram na época. (...) E quando mostra assim pega o crânio da pessoa
que morreu, eles fazendo estudo pra ver se aquele é da pessoa. Quando pega o
rosto e coloca lá no crânio mesmo, que vê, que identifica, mesmo, né. Nossa!
Aí a mãe fala que é bom você saber que realmente vai poder velar, tudo. Mas é
um choque. (...) O objetivo é de resgatar a memória e celebrar, né, celebrar
porque eles lutaram também” (Sandra).
“Saiu um livro agora, né, dos 72 anos do sindicato, que conta a história desde
a repressão até hoje. É um, é uma das coisas assim, que a gente preserva, pelo
menos no Sindicato dos Bancários. (...) A gente faz constantemente, nas
campanha salariais, a gente faz teatros, é, a gente faz. E dentro desse teatro,
né, dependendo do tema, a gente faz comparações. Com certeza tem, tem essa,
essa memória” (Ronaldo).
382
Estas frases atestam a importância dos lugares de memória que promovam o debate
público de questões que afetaram diretamente o país, como foi o caso da ditadura,
afirma, Jelin e Lagland (2003), uma vez que permite às novas gerações estabelecer os
Vimos, no capítulo VI, que ainda convivemos com os legados da ditadura militar. A
estrutura policial permanece igual à do período militar, visto que, ainda hoje, a polícia se
utiliza de práticas violentas contra a população, agindo com preconceito contra negros e
por Vilibaldo:
“A gente sabe que hoje, não só no Brasil, mais em vários países que tem
discriminação, e a ditadura ajudava pra isso porque quem sofria era a classe
trabalhadora, era os negros, os pobres, apesar que hoje também não é
diferente, mas a época da ditadura isso aumentava, né. Então isso foi
importante pra que as pessoas conseguissem enxergar que não era, não é um
bom negócio, é a ditadura. Polícia não significa segurança, muita polícia na
rua. É, então a gente vê que esse tema, talvez, seria um tema super importante
pra que hoje nas escolas os estudantes estudassem essa época aí e tivesse uma
relação com a época de hoje pra fazer, assim, uma análise mais precisa, né”
(Vilibaldo).
383
utilização da repressão policial para conter greves, despejar famílias, através dos batalhões
de choque contra a população civil. Essa violência bruta, típica da ação policial é um
também deve fazer parte das políticas da memória, que devem indicar pistas para banir da
continente viver em regimes democráticos, ainda permanece em nosso meio uma cultura
política.
relações sociais são extremamente hierarquizadas, onde as relações políticas ainda se dão
através do favor e clientelismo e onde ainda são utilizados mecanismos repressivos para
violência que atenta contra os direitos humanos. A impunidade é também responsável pela
continuidade da violação dos direitos humanos, haja vista que o fato de não se punir os
violação aos direitos humanos que ocorreram ao longo de todo período repressivo.
Estamos nos referindo aqui à demora em tornar públicos os arquivos da ditadura militar e
No que diz respeito às violações dos direitos humanos por parte do Estado, ainda
nos deparamos com o uso de torturas e espancamentos por parte de policiais, por abuso da
as denúncias desses casos, nos órgãos de defesa dos direitos humanos, que encontramos
várias incidências deles. Evidentemente, nos casos de violação por parte do Estado, a
situação é ainda mais grave, já que este deveria ser o principal responsável por zelar pela
Há ainda, como nos aponta Chauí (1998), uma violência permanente, fruto da
desigualdade social, que nem sempre é percebida como violência e autoritarismo que é o
cidadãos. E aos que defendem esses direitos e se manifestam contra essa “des-ordem” se
fomenta, através da mídia uma falsa idéia de que estes são sujeitos e agentes da violência
grande impacto como o Movimento Sem Terra (MST). É comum responsabilizá-los como
instigadores da violência eximindo a polícia desta responsabilidade, uma vez que esta se
apresenta para “manter a ordem”. Nesta lógica, os sujeitos da ação coletiva, sejam sem-
terras, grevistas, etc, são considerados como “gente desqualificada”, “gente perigosa”,
portanto, não-pessoas. Nesta ótica, o “popular” é visto como não pertinente à ordem social.
aponta Chauí (1998), “são considerados perigo, crise, desordem e a eles se oferece uma
385
condescendente, para os opositores em geral” (p.12). Ao criar uma imagem negativa dos
seus direitos, o Estado os submete à violência com o objetivo de frear sua organização e
ação coletiva.
populares. Não é diferente do que acontecia no regime militar: aos que combatiam o
regime a resposta era a violência política fomentando a idéia de que eram subversivos,
Nessa mesma linha de reflexão, Coimbra (2001) nos aponta que se cria e se
difunde, através dos meios de comunicação social, a idéia de “classes perigosas” que
ameaça a segurança da sociedade e que, portanto, precisa ser combatida. Nesse sentido, a
autora assinala o quão eficaz tem sido a lei aplicada a todos os pobres:
memória que procurem tornar público o que a história oficial ocultou nos períodos de
que deve garantir, em todos os níveis, o direito ao passado e a cultura a toda população,
91
Barcellos, Caco (1992). Rota 66: A história da polícia que mata. São Paulo: Globo.
387
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394
ANEXOS
_________________________________________________________________________
400
ANEXO I
Roteiro de Entrevistas
_________________________________________________________________________
I - Informações gerais:
1. Idade: ____
2. Sexo: ( ) M ( ) F
3. Estado Civil: ____________________
4. Bairro onde reside: ________________
5. Nível escolar: ( ) 1o. Grau ( ) 2o. Grau ( ) Superior
6. Profissão: _______________________________________
13. Você acredita que a população brasileira tem conhecimento da ditadura militar no
Brasil?
14. Qual a importância deste período para a sociedade brasileira?
15. Que tipo de repercussão teve a ditadura militar para a população da época?
16. Você acha que tem alguma repercussão nos dias de hoje?
17. Em sua opinião, o que representou esse período para a população brasileira?
18. Em algum momento houve preocupação das lideranças comunitárias, sindicais em
preservar ou transmitir a memória da ditadura militar para as novas gerações?
Como foi que isso aconteceu?
19. O que você destacaria deste período?
20. Você teria mais alguma coisa a dizer sobre aquela época?
402
ANEXO II
Questionário
_________________________________________________________________________
Jovens universitários
1. Idade: ____
2. Sexo: ( ) M ( ) F
3. Nível universitário: ( ) 1o. Ano ( ) 2o. Ano ( ) 3o. Ano ( ) 4o. Ano
4. Área que está cursando: _______________________________________
5. Trabalha: ( ) Sim ( ) Não
6. Tempo de trabalho: ( ) parcial ( ) integral
7. Tipo de atividade que exerce no trabalho: _______________________________
8. Você participa de Centro Acadêmico (C.A.), Diretório Acadêmico (D. A.),
Movimento estudantil ou outra organização universitária? ( ) Sim ( ) Não
Quais? a) ________________________________________________________
b) ________________________________________________________
9. Desde quando? ___________________________________________________
10. Exerce alguma função nesta organização? ( ) Sim ( ) Não
Qual? __________________________________________________________
11. Você participa de alguma associação, ONG, movimento social ou outras
organizações fora da universidade? ( ) Sim ( ) Não
Qual? (nome da organização) Desde quando? Teve ou tem alguma
função? Qual?
16. Em sua opinião quanto de repressão houve nos seguintes períodos políticos no
Brasil? Colocar um X.
17. Na sua opinião, dos períodos mencionados acima (pergunta no. 16), quais foram os
dois períodos em que houve mais violação de direitos humanos?
1- ______________________________________________________________
2- ______________________________________________________________
19. A seguir vou lhe pedir para completar as seguintes frases segundo seu critério:
20. Você acha que a ditadura militar tem alguma repercussão ainda nos dias de hoje?
( ) Muita
( ) Pouca
( ) Nenhuma
405
23. Você tem ou teve algum contato com pessoas que viveram durante a ditadura
militar no Brasil?
MAIS MENOS
1. LULA
2. PMDB
3. JANIO QUADROS
4. PSDB
5. ORESTES QUÉRCIA
6. PT
7. FIESP (Federação de Industrias e Comércio de São Paulo)
8. PAULO MALUF
9. CNBB (Conselho Nacional de Bispos do Brasil)
10. JOSÉ SARNEY
11. PTB
12. FORÇAS ARMADAS
13. FORÇA SINDICAL
406
25. Onde você adquiriu essas informações sobre a ditadura militar de 1964? Colocar
um (X) em todos os itens que te ofereceram alguma informação sobre o período
militar.
1. No Colégio
2. Na Universidade
3. Através de leitura e acompanhamento de informação política
4. Participando em alguma organização comunitária ou política
5. Através de familiares ou pessoas que viveram aquela época
6. Através da mídia (jornais, revistas, TV, internet)
7. Vídeo ou cinema
8. Outros
28. Você teria mais alguma coisa a dizer sobre a ditadura militar?
.......................................................................................................................................
.......................................................................................................................................