Athayde - o Ornitorrinco de Chuteiras
Athayde - o Ornitorrinco de Chuteiras
Athayde - o Ornitorrinco de Chuteiras
________________________________________________
Professor Dr. Carlos Alberto Ferreira Lima
(Orientador)
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Profª. Drª. Potyara Amazoneida Pereira Pereira
(Membro Interno vinculado ao Programa)
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Profª. Drª. Elaine Rossetti Behring
(Membro Externo não vinculado ao Programa)
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Prof. Dr. Lino Castellani Filho
(Membro Externo não vinculado ao Programa)
________________________________________________
Prof. Dr. Fernando Mascarenhas
(Membro Interno não vinculado ao Programa)
iv
DEDICATÓRIA
A escolha de dedicar o resultado dos últimos quatro anos de sua vida a uma única
pessoa pode se transformar em uma tarefa complicada, principalmente considerando os
vários sujeitos deque tem importante influência nessa trajetória. No entanto, quando
nossa história é marcada por alguém que sempre esteve disposto a dedicar muito mais
do que um simples trabalho acadêmico para a realização de nossos sonhos, não resta
incerteza a quem se deve apontar tamanha dedicação.
Eu tive a sorte de ter uma pessoa assim em minha vida! Uma pessoa que, mais do que o
nome que tenho, me legou ensinamentos importantes, aprendizados que nenhuma
instituição acadêmica é capaz de transmitir! Uma pessoa que deu sentido à palavra
caráter e honestidade! Uma pessoa que se tornou uma referência de homem, pai e
irmão! Uma pessoa que, apesar das nossas inúmeras e abissais diferenças ideopolíticas,
sempre me respeitou e demonstrou enorme orgulho por cada ato ou escolha que eu
realizava. Estou me referindo ao meu avô Pedro Fernando Santa Rita Carvalho de
Athayde.
A relação que tive com ele não pode ser traduzida em palavras. Aliás, palavras nunca
tiveram uma presença marcante em nossa relação. William Shakespeare disse certa vez
que “os homens de poucas palavras são os melhores”. E assim sempre foi o senhor
Pedro – um homem de escassa palavra, mas que com o pouco discursar, muito me
ensinou. Possivelmente, a melhor tradução para os anos que vivi ao seu lado estejam
nas palavras de Graciliano Ramos, ao afirmar que “quando se quer bem a uma pessoa a
presença dela conforta. Só a presença, não é necessário mais nada”.
Pedro Fernando Santa Rita Carvalho de Athayde: dedico a você meu silêncio
característico, mas que tanto incomoda a quem não consegue interpretá-lo! Dedico a
você as muitas palavras contidas no presente estudo! Dedico a você todas as minhas
conquistas futuras que, com toda certeza, serão apenas pequenos frutos das sementes
que me ajudaste a plantar.
v
AGRADECIMENTOS
Todo trabalho consignado na presente Tese não é fruto de uma dedicação individual e
hermética, mas o resultado de reflexões coletivas e de muitas influências externas. Neste
sentido, me dedico, neste momento, a prestar o reconhecimento e os agradecimentos
merecidos e absolutamente indispensáveis.
Primeiramente, agradeço por todo apoio ofertado por minha família, que – a despeito de
não ter uma clareza acerca daquilo que realizava – sempre manifestou enorme respeito,
compreensão e orgulho pela minha opção de me dedicar à formação acadêmica
continuada, mesmo que tal escolha significasse no imediato abrir mão de ganhos
econômicos advindos de uma melhor colocação no mercado profissional. Muito
obrigado avós, mãe, pai, irmãos e sobrinhos! Sem o apoio de vocês, jamais chegaria
com sucesso ao final desta longa caminhada! Sou eternamente grato por tê-los em
minha vida!
Agradeço aos amigos de sempre, em especial, àqueles que estão comigo desde minha
adolescência. Nossa proximidade e cumplicidade até os dias de hoje, apesar de algumas
diferenças, é a maior prova da força de nossa amizade. Adovaldo, Ricardo, Daniel,
Shiko e Enéias: vocês são mais do que amigos; são irmãos por opção, que carregarei
comigo para sempre!
Agradeço a meu orientador, o professor Dr. Carlos Ferreira Lima. Nosso convívio,
embora pequeno em termos presenciais, não impossibilitou que eu reconhecesse sua
enorme experiência e capacidade teórica. Seus apontamentos e correções foram
fundamentais para a qualificação deste trabalho e para o enriquecimento de minha
formação! Mais do que escrever uma Tese, por meio de suas indicações bibliográficas
pude conhecer melhor a história do Brasil e as múltiplas determinações da realidade em
que vivemos! Sou eternamente grato por esse aprendizado!
Por fim, mas não menos importante, gostaria de agradecer à minha namorada, Amanda!
Mais do que namorada, é minha melhor amiga e companheira. Foi cúmplice das
angústias, dificuldades e sofrimentos engendrados pelo tortuoso caminho de construção
de uma Tese de Doutorado. Além de agradecê-la, aproveito para pedir desculpas pelas
minhas ausências, impaciências e chatices, características intrínsecas a uma
personalidade introvertida como a minha, mas que se avolumaram diante da tarefa de
cumprir as exigências de um curso de Doutorado. Você jamais cogitou deixar de me
apoiar! Pelo contrário! Sempre me incentivou, sobretudo, declarando inúmeras vezes
sua admiração pelo meu trabalho. Apesar de sua teimosia (risos), o convívio com você é
prazeroso e me faz um ser humano melhor. Eu te amo e desejo compartilhar os
próximos anos de vida contigo!
vii
RESUMO
A presente Tese tem como objeto de estudo a política esportiva do Governo Lula, tendo
como objetivo identificar e problematizar os determinantes econômicos, sociais e
políticos que delineiam e configuram as prioridades da política brasileira de esporte no
período 2003-2010. Trata-se de uma pesquisa social de nível exploratório, cuja
abordagem teórico-metodológica se fundamenta no materialismo histórico. Para a coleta
dos dados e formação do arcabouço teórico e categorial, foram utilizados os
procedimentos/instrumentos metodológicos da pesquisa bibliográfica e documental,
com base nas seguintes fontes: (i) publicações oficiais governamentais; (ii) sistemas de
acompanhamento do orçamento e financiamento público federal; (iii) relatórios dos
órgãos de controle da União; (iv) relatórios e notas técnicas de Organizações Não
Governamentais; (v) estudos econométricos de fundações privadas e consultorias
internacionais. As discussões e problematizações desenvolvidas nos dois primeiros
capítulos priorizam o resgate histórico da constituição do esporte, reafirmando o
entendimento acerca de seu papel social como uma das necessidades intermediárias para
a garantia dos direitos de cidadania. Ao mesmo tempo, buscou-se localizar e enfatizar –
a partir do Estado Novo – as interfaces entre a evolução do sistema capitalista brasileiro
e a organização esportiva nacional. Os dois últimos capítulos foram dedicados à
abordagem do esporte dentro do Governo Lula, com ênfase em suas correlações com a
política econômica e social do período supramencionado. As análises demonstram que
as prioridades da política esportiva de 2003-2010 foram redirecionadas a partir da
realização dos Jogos Pan-americanos de 2007 e da realização da III Conferência
Nacional de Esporte em 2010. Tal redirecionamento teve como intuito privilegiar a
realização de grandes eventos esportivos (Copa do Mundo FIFA (2014) e Jogos
Olímpicos do Rio de Janeiro (2016)) no Brasil. A confirmação do País como sede dos
megaeventos esportivos é consequência de uma ampla gama de fatores, entre os quais,
um proeminente engajamento e participação estatal. A acentuada presença do Estado na
conquista pelo direito de sediar tais eventos transparece os vínculos entre a política
esportiva e as determinações econômicas e sociais do modelo neodesenvolvimentista
gestado pelo Governo Lula, além de acentuar as funções estatais de acumulação e
legitimação, destacadas por O’Connor (1977).
ABSTRACT
The focus of this study is the federal sport policy during Lula´s government, and it aims
to identify and discuss the economical, social and political determinants that outline and
characterize Brazilian sport policy from 2003 to 2010. This is an exploratory social
research in which the theoretical and methodological approach is anchored on historical
materialism. The collection of data and the development of categorical and theoretical
frameworks have been informed by methodological procedures/instruments associated
with bibliographical and documental research, concentrating particularly in the
following sources: (i) official government publications; (ii) systems for monitoring the
budget and public expenditure at the federal level; (iii) reports from control bodies of
the State; (iv) non-governmental organizations reports and technical notes; (v)
econometric studies carried out by private foundations and international consultants.
The discussions and arguments developed in the two first chapters prioritize a historical
review of the consolidation of sport in Brazil, reinforcing the understanding of its social
role as an intermediate necessity to the attainment of citizenship rights. At the same
time, these chapters attempt to locate and lay emphasis on – from the period of the
Estado Novo onwards – the interfaces between the evolution of the Brazilian capitalist
system and its national sport system. The last two chapters concentrate on sport in the
scope of Lula´s Government and place emphasis on its interaction with the economic
and social policies of that time. The analyses show that the sport policy’s priorities of
the period between 2003-2010 were redirected because of the Pan American Games in
2007 and the III Sport National Conference in 2010. This redirection aimed to privilege
the sport mega events (World Cup in 2014 and Olympic Games in 2016) to be organized
in Brazil. The confirmation of the country as the host of these sports mega events is a
consequence of a range of factors, among which a salient engagement and involvement
on the part of the State. The sharp presence of the federal government in obtaining the
right to host those events shows the bonds between the sport policies and the social and
economic determinants of the neo-developmentalist model conceived by Lula´s
Administration, and it also emphasizes the State functions of accumulation and
legitimacy highlighted by O´Connor (1997).
RESUMEN
Esta tesis tiene como objeto de estudio la política de deportes del Gobierno Lula,
tenendo como objetivo identificar y problematizar los determinantes económicos,
sociales y políticos que trazan y establecen las prioridades de la política de deporte
brasileña de 2003 a 2010. Viene a ser una búsqueda social de nivel exploratorio, cuyo
enfoque teórico y metodológico se basa en el materialismo histórico. Para la copilación
de datos y la formación de la parte teórica y categórica se utilizó
procedimientos/herramientas metodológicas de la búsqueda bibliográfica y documentos,
tomando como referencia: (i) publicaciones oficiales del gobierno; (ii) sistemas para el
seguimiento del presupuesto y la financiación pública federal; (iii) informes de los
órganos de control del Estado; (iv) informes y notas técnicas de organizaciones no
gubernamentale; (v) estudios econométricos de las fundaciones privadas y consultores
internacionales. Las discusiones y problematizaciones desarrolladas en los dos primeros
capítulos dan prioridad a la retomada histórica de la constitución del deporte,
reafirmando la comprensión de su rol social como intermediario para garantizar los
derechos de la ciudadanía. Al mismo tiempo, se buscó localizar y hacer hincapié – desde
el Estado Nuevo – las interfaces entre la evolución del sistema capitalista y la
organización deportiva nacional brasileña. En los dos últimos capítulos se dedicó a
abordar el deporte en el Gobierno Lula, con énfasis en su relación con la política
económica y social de la época. Los análisis mostraron que las prioridades de la política
deportiva de 2003-2010 fueron redirigidos desde la realización de los Juegos
Panamericanos de 2007 e de la III Conferencia Nacional de Deporte en 2010. Esta
redirección fue centrarse en el propósito de realizar los grandes eventos deportivos
(Copa del Mundo de 2014 y Juegos Olímpicos de 2016) en Brasil. La confirmación del
país como sede de megaeventos deportivos es el resultado de una amplia gama de
factores, entre ellos la actuación y participación preponderante del Estado. La fuerte
presencia del Estado en ganar el derecho a organizar este tipo de eventos transpira
vínculos entre la política deportiva y las determinaciones económicas y social del
modelo neodesenvolvimentista gestados por el Gobierno Lula, también aumentó sus
funciones estatales de acumulación y legitimación, destacado por O'Connor (1977).
LISTA DE FIGURAS
LISTA DE QUADROS
LISTA DE TABELAS
Tabela 21. Valores em R$ pagos por programa no período de 2004 a 2010 (em
milhões), deflacionados pelo IGP-DI.
Tabela 22. Execução orçamentária (em %) por programa, no período de 2004 a
2010.
Tabela 23. Destinação dos recursos provenientes da Lei Agnelo/Piva (em milhões de
R$), valores deflacionados pelo IGP-DI.
Tabela 24. Mapa dos investimentos e seus efeitos sobre os PIBs regionais.
Tabela 25. Situação dos Financiamentos dos Estádios da Copa de 2014, em 06 de
dezembro de 2012.
xiv
LISTA DE GRÁFICOS
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 20
INTRODUÇÃO
como o Brasil foi constituído. Trata-se de uma sociedade onde, sob a mácula decadente,
confeccionou-se um sistema econômico que tem setores mais avançados convivendo e
funcionalizando o atraso, a pobreza, o desemprego, a miséria, a migração, entre outros
problemas sociais. A pobreza, que chegou a representar um desafio para os cientistas
sociais e governos do século XIX e XX, é um fenômeno funcional ao desenvolvimento
do sistema capitalista para os neoliberais.
A alusão metafórica é, igualmente, utilizada pelo sociólogo para sublinhar a
feição incongruente da sociedade brasileira. Uma sociedade onde habitam no mesmo
“corpo” classes sociais em condições socioeconômicas radicalmente distintas, ou seja,
um país marcado por diferenças abissais. Para Oliveira (2003), o ornitorrinco brasileiro
guarda a incongruência de, a despeito de ter convivido com prolongadas ondas de
crescimento econômico, manter-se entre as economias mais díspares do mundo.
De acordo com Francisco de Oliveira, a transformação do Brasil em ornitorrinco
se completou com o salto das forças produtivas assistidas em nossos dias. O capitalismo
transformou a exceção em regra e fez com que o Estado renunciasse à promessa da
modernidade de elevar todos os cidadãos à condição de igualdade. Neste sentido, o
subdesenvolvimento consubstanciou-se “na forma da exceção permanente do sistema
capitalista na sua periferia” (OLIVEIRA, 2003: 131).
O subdesenvolvimento finalmente é a exceção sobre os oprimidos: o
mutirão é a autoconstrução como exceção da cidade, o trabalho
informal como exceção da mercadoria, o patrimonialismo como
exceção da concorrência entre capitais, a coerção estatal como
exceção da acumulação privada [...] (OLIVEIRA, 2003: 131).
1
O comportamento avesso à política, em larga medida, é explicado pela passividade e despolitização a
que a sociedade brasileira foi submetida ao longo dos últimos anos, sobretudo na década de 1990 e
primeira década do século XXI.
22
O ornitorrinco empacou no processo evolutivo capitalista, uma vez que não pode
permanecer preso à condição de subdesenvolvimento, mas, ao mesmo tempo, não
possui os genes econômicos necessários para avançar em sua condição de país
periférico. “Restam apenas as ‘acumulações primitivas’” [...] “O ornitorrinco
capitalista é uma acumulação truncada e uma sociedade desigualitária sem remissão”
(OLIVEIRA, 2003: 150).
Francisco de Oliveira não explicita taxativamente que o Governo Lula
corresponda ou reforce a imagem do ornitorrinco. Entretanto, mais recentemente, no
programa Roda Viva da TV Cultura, exibido no dia 02 de julho de 2012, o sociólogo
confirmou que o Brasil ainda é um ornitorrinco. Fato é que o personagem Lula não é
uma figura de fácil decifração. Suas falas e ações têm como padrão não respeitar
protocolos, rumar ao encontro dos ventos daquilo que o público espera ouvir. O próprio
ex-presidente Lula – se não pode ser considerado uma criatura tão anômala e esdrúxula
como o ornitorrinco – afirmou sua preferência por “ser uma metamorfose ambulante.
Mudar como as coisas mudam”2.
Diante do exposto, o objeto principal de análise da presente Tese – a política
esportiva do Governo Lula (2003-2010) – reproduz muitas das características da
sociedade brasileira descrita por Francisco de Oliveira, tais como: mescla entre atributos
arcaicos e modernos; desigualdades de acesso a direitos; discrepâncias de poder;
hegemonia das determinações econômicas sobre as dimensões sociais e políticas. Neste
sentido, tivemos a ousadia de utilizar no título deste trabalho – com pequenas
modificações – a metáfora construída por Francisco de Oliveira.
Sem embargo do atual crescimento das pesquisas e trabalhos acadêmicos
dedicados à análise das políticas públicas sociais no âmbito esportivo, em tempo
recente, verifica-se que a abrangência de estudos relacionados à referida temática ainda
mantém-se reduzida quando comparada ao quantitativo de pesquisas dedicadas ao
exame de outras áreas sociais (saúde, educação, assistência social, trabalho etc.).
Pressupomos que tal quadro – incipiente – é produto de uma somatória de fatores, entre
os quais se destaca, inicialmente, a irrefletida compreensão de que o esporte constitui
um direito de menor relevância para atendimento das necessidades humano-sociais
contemporâneas.
2
Trecho retirado de matéria intitulada “Antes contrário à CPMF, Lula diz ser ‘metamorfose ambulante’”.
O Estado de S. Paulo, 05 dez. 2007.
23
3
Vitor M. Oliveira (1994) ao abordar o consenso e o conflito na Educação Física Brasileira, identifica nos
estudos realizados dentro da Educação Física, nos anos 1980, de abordagem marxista, o surgimento de
uma oposição sistemática ao conservadorismo. Conforme Oliveira (1994: 26 e 27): os estudos em nível
de mestrado na Educação Física e na Educação representam “uma intelectualidade que, sem descartar
influências conservadoras, já revela a existência de um pensamento progressista”.
4
Vitor M. Oliveira (1994: 26) destaca que: “Medina (1983) inaugura uma fase de crítica mais apurada.
Apoiado na teoria de Paulo Freire, o autor distingue três níveis de consciência, cada qual correspondendo
a uma concepção da Educação Física. Ao lado das opções convencional e modernizadora, aponta para
uma concepção revolucionária”. De acordo com Medina (1992): “A Educação Física Revolucionária pode
se definir como a arte e a ciência do movimento humano que, através de atividades específicas, auxiliam
no desenvolvimento integral dos seres humanos, renovando-os e transformando-os no sentido de sua auto
realização e em conformidade com a própria realização de uma sociedade mais justa e livre”.
24
5
“[...] finalmente vem um tempo em que tudo o que os homens haviam pensado como inalienável torna-
se objeto de troca, de tráfico e pode ser alienado. É o tempo em que as próprias coisas que até então eram
transmitidas, mas jamais trocadas; dadas, mas jamais vendidas; adquiridas, mas jamais compradas –
virtude, amor, opinião, ciência, consciência etc., em que tudo, enfim, passou a ser objeto de comércio. É o
tempo da corrupção geral, da venalidade universal, ou, para falar em termos de economia política, o
tempo em que qualquer coisa, moral ou física, torna-se valor venal, é posta no mercado para ser apreciada
por seu justo valor” (Tradução livre) (MARX, 1977, apud LIMA 2010: 54).
6
Trecho de entrevista intitulada “A corrida do ouro”. Isto É Independente, Caderno Isto É Entrevista, 04
ago. 1999. Disponível em:
<http://www.istoe.com.br/assuntos/entrevista/detalhe/32991_A+CORRIDA+DO+OURO>. Acesso em:
08 jan. 2012.
7
Trecho de matéria intitulada “Campanha Rio 2016 mobiliza iniciativa privada”. ASCOM/ME, 07 abr.
2009. Disponível em: <http://www.esporte.gov.br/ascom/noticiaDetalhe.jsp?idnoticia=5494>. Acesso
em: 08 jan. 2012.
8
Trecho de matéria intitulada “Eike Batista se lança no esporte”. Folha de S. Paulo, Caderno de Esporte,
10 nov. 2010.
25
9
De acordo com Pereira-Pereira (2009b: 102), o princípio da equidade refere-se a “dar mais a quem mais
precisa”.
26
10
Para os autores citados, o fundo público expressa as disputas inerentes a uma sociedade de classes. Por
um lado, a classe trabalhadora busca assegurar a utilização do recurso público para o financiamento de
suas necessidades, materializadas em políticas públicas; por outro lado, os capitalistas, valendo-se de sua
hegemonia, conseguem determinar que a participação do Estado direcione-se para a reprodução do capital
por meio de políticas de subsídios econômicos, de participação no mercado financeiro, sobretudo para a
rolagem da dívida pública, um elemento central na política econômica de alocação do orçamento público.
11
De acordo com dados recolhidos do sistema SIGA Brasil, em valores corrigidos pelo IGP-DI, no ano de
2004 foram destinados R$ 530,14 milhões à função orçamentária “Desporto e Lazer”, já no ano de 2010,
esse montante alcançou R$ 1.601,69 milhões.
12
Estimativas de valores atualizadas até dia 16 set. 2013.
27
13
STEWART, J. & RANSON, S. (1988), Management in the public domain. UKELES, J. (1982), Doing
more with less: turning public management around. BUTLER, R. (1993), The evolution of the civil
service — a progress repor”. CAIDEN, G.E. (1991), Administrative reform comes of age. BRESSER
PEREIRA, L.C. (1996), Managerial Public Administration: strategy and structure for a new state.
POLLITT, C. (1990), Managerialism and the public services.
30
dizer que categorias próprias de um determinado objeto têm sua validade plena atrelada
ao marco desse objeto.
Frente às considerações de Netto (2009b), elencamos categorias-chave referentes
a nosso objeto de análise, dentre as quais, destacamos: a) política econômica: ações e
interesses empreendidos pelo Estado para atingir determinadas finalidades relacionadas
à situação econômica do país; b) política social: espécie do gênero da política pública e
que tem como uma de suas principais funções a concretização de direitos de cidadania
(sociais) conquistados pela sociedade e amparados pela lei; c) frações de classe:
determinadas facções dentro das classes burguesa e trabalhadora que buscam defender
seus interesses particulares, sem romper com os interesses que os identificam como
classe; d) sistema esportivo: organização e estruturação das entidades responsáveis pela
administração e prática esportiva no âmbito internacional e nacional; e) reestruturação
urbana: processo de valorização/gentrificação de regiões urbanas degradadas, além da
construção de atrações para o consumo e entretenimento, tendo como objetivo
maximizar a atratividade para o desenvolvimento capitalista; Considerando que os
modos de investigação e de exposição se diferem, é necessário ressaltar que as
categorias assinaladas aparecem diluídas ao longo dos capítulos que
organizam/estruturam esta tese.
Em consonância com as categorias identitárias do objeto específico, nosso
estudo abrangeu as categorias teórico-metodológicas constitutivas do materialismo
histórico, quais sejam: i) totalidade: a sociedade burguesa como um todo dinâmico e
contraditório e bastante complexo, constituído por totalidades mais simples; ii)
historicidade: consideração dos determinantes históricos que precederam a realidade
contemporânea, bem como a compreensão de que a realidade social está em constante
transformação (vir a ser), ou seja, a história em constante movimento; iii) contradição:
característica que confere dinamicidade à totalidade; e iv) mediação: são relações entre
as diversas totalidades que compõem o objeto em análise e a totalidade, “relações que
nunca são diretas; elas são mediadas não apenas pelos distintos níveis de
complexidade, mas, sobretudo, pela estrutura peculiar de cada totalidade” (NETTO,
2009b: 691).
Orientados pelos pressupostos epistemológicos apresentados até o momento,
optamos por realizar uma pesquisa social de nível exploratório, cuja abordagem
fundamenta-se em aspectos qualitativos. Em relação aos procedimentos metodológicos,
iniciamos pela realização de uma revisão bibliográfica, que compreendeu temas como:
31
cobertura realizada pela mídia impressa e eletrônica. Para seleção dos jornais impressos
e virtuais utilizamos os critérios de representatividade nacional, de acessibilidade ao
acervo eletrônico e de fascículo específico para acompanhamento dos grandes eventos
esportivos. Essas condicionalidades iniciais nos levaram a selecionar os seguintes
periódicos: O Globo, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e o portal UOL Esporte.
Posteriormente, identificamos a necessidade de agregar a essa compilação a abordagem
dos órgãos de imprensa oficiais do governo e uma linha editorial diferenciada,
caracterizada por uma abordagem crítica e dialética; essas demandas nos conduziram,
respectivamente, à incorporação das notícias publicadas pela Assessoria de
Comunicação do Ministério do Esporte e do jornal Le Monde Diplomatique.
As matérias recolhidas passaram por uma triagem inicial na qual foi realizada a
leitura dos títulos, palavras-chave e resumos capitulares. Após o descarte daquelas
notícias que não tinham relação direta com o objeto de pesquisa, o restante foi dividido
por ano de publicação e temática abordada. A apresentação de trechos das notícias não
segue um parâmetro, pois ocorre durante todo o trabalho, especialmente nos dois
últimos capítulos, os quais contribuem para ilustração das afirmações realizadas e das
problematizações desenvolvidas.
A análise documental teve um segundo momento referente ao exame das bases
de dados orçamentários e financeiros. As informações acerca do financiamento público
para o setor esportivo foram obtidas por meio eletrônico no sistema de informações
sobre orçamento público do Senado Federal (SF) (SIGA Brasil). A opção por esse
sistema justifica-se pela atualização constante dos dados disponibilizados, bem como
pela possibilidade de realização de diferentes cruzamentos das informações
orçamentárias dentro do próprio programa. Pontualmente, consultamos outras fontes de
informação acerca do financiamento e orçamento público, tais como: i) os portais da
Transparência específicos da Copa de 2014 e dos Jogos Rio 2016; ii) o portal eletrônico
do Ministério do Esporte (ME) e do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão
(MPOG); iii) base de dados macroeconômico, regional e social do IPEA (Ipeadata); iv)
portais eletrônicos de instituições não governamentais (INESC, CPS/FGV, Contas
Abertas etc.)14.
14
Considerando o objeto da investigação, registramos que o levantamento orçamentário foi realizado nos
marcos de um recorte cronológico correspondente ao período de 2004 a 2011. O interstício de tempo
selecionado corresponde à vigência dos Planos Plurianuais que atravessam as duas gestões presidenciais
do Governo Lula.
33
O primeiro capítulo desta tese traz a indagação acerca de que esporte estamos
tratando. Ao propor esse questionamento busca demarcar o entendimento sobre o papel
social do esporte que norteará este trabalho, bem como acentuar que essa compreensão
vincula-se a uma determinada matriz teórica e posicionamento ideopolítico. O debate
proposto no presente capítulo traz como hipótese a possibilidade de que o esporte
componha o rol das necessidades intermediárias ou satisfadores universais, que,
conforme Pereira-Pereira (2007), são capazes de contribuir com a satisfação das
necessidades sociais básicas e com a concretização dos direitos de cidadania, e,
portanto, devem ser alvo das políticas sociais públicas.
Para justificar e ratificar os supostos acima, iniciamos o capítulo pelo debate
conceitual acerca das necessidades humano-sociais e dos direitos de cidadania.
Problematizamos o conceito bastante em voga de cidadania, incluindo as interpretações
marshallianas. Nossas apreciações baseiam-se nos apontamentos de Abreu (2008), para
quem a cidadania moderna não pode ser pensada apartada das condições de existência
da sociedade, mas sim avaliada a partir das condicionalidades impostas pela hegemonia
do capital. Concomitantemente, acentuamos nossa concordância com o conceito de
cidadania apresentado por Coutinho (2005: 2), que se refere à capacidade conquistada
pelo conjunto dos sujeitos “de se apropriarem dos bens socialmente criados, de
atualizarem todas as potencialidades de realização humana abertas pela vida social em
cada contexto historicamente determinado”.
Ao mesmo tempo, apresentamos e analisamos criticamente as diferentes
interpretações sobre as necessidades humanas básicas, corroborando com as conclusões
de Pereira-Pereira (2007) acerca da necessidade e possibilidade de generalização e
universalização dessas necessidades. A autora destaca que a satisfação das necessidades
básicas e intermediárias deve assumir o estatuto de direitos sociais e, por conseguinte,
ser atendida/garantida por políticas públicas.
Dando prosseguimento ao capítulo, destacamos que as políticas econômicas e
sociais são indissociáveis e ambas estão diretamente vinculadas à evolução do
capitalismo, representando expressões contemporâneas da radical contradição entre
capital e trabalho. Tais pressuposições constituem eixos orientadores das análises
realizadas ao longo de todo o trabalho. No caso do capitalismo brasileiro, marcado por
uma combinação de estruturas modernas e arcaicas – que o assemelham à figura do
ornitorrinco (Oliveira, 2003) –, verifica-se um histórico servilismo das políticas sociais
em relação aos ditames econômicos. Essa submissão repercute sobre a repartição do
34
crescentes gastos públicos ligados ao advento dos megaeventos esportivos e pelo aporte
expressivo de recursos por meio das empresas estatais em entidades de administração e
prática esportiva.
Devido à proeminência que os megaeventos esportivos ganham no âmbito da
política esportiva brasileira, o quarto e último capítulo realiza a apreciação crítica dos
determinantes econômicos e sociais vinculados a esses eventos, buscando identificar os
sujeitos históricos, as temáticas centrais e os interesses que permeiam sua organização e
chegada ao Brasil. Para consecução desses objetivos, utilizamo-nos das categorias
analíticas – acumulação e legitimação – empregadas por O’Connor (1977) para
interpretar a intervenção estatal.
Em concordância com alguns autores dedicados à análise dos megaeventos,
adotamos o pressuposto de que os Jogos Pan-americanos de 2007, realizados na cidade
do Rio de Janeiro, são um marco na trajetória histórica de promoção de grandes eventos
esportivos no país. Ao mesmo tempo, ratificamos as conclusões de que o referido
evento promoveu um redirecionamento das prioridades da política esportiva nacional.
Conquanto seja apresentado pelo COB e pelas esferas de governo como uma
experiência exitosa e fundamental para aquisição de expertise, os Jogos Pan-
Americanos de 2007 deixou como heranças denúncias de malversação do dinheiro
público, superfaturamento do custo inicialmente previsto e ausência de legado urbano,
social e esportivo.
O exame das interfaces entre megaeventos esportivos e os determinantes
econômicos demonstrou que esses eventos impulsionam a acumulação de capital,
inclusive promovendo a transferência de patrimônio público para a esfera privada por
meio de práticas espoliatórias, que nos remetem ao processo destacado por Harvey
(2004) de acumulação por espoliação.
A problematização acerca do conceito de legados expõe que, a despeito das
várias dimensões em que são apresentados, há uma manifesta supremacia dos interesses
econômicos, ou seja, de maximizar os ganhos econômico-financeiros. Diante desta
constatação, apresentamos uma série de argumentos e dados que preconizam a
existência de reflexos positivos na economia nacional e no mercado de trabalho devido
à realização dos megaeventos.
Contudo, considerando a abordagem teórico-metodológica que orienta este
trabalho, entendemos ser imprescindível esmiuçar esses dados favoráveis à luz das
contradições da totalidade analisada, que, por vezes, não podem ser apreendidas quando
40
A indagação que intitula esse capítulo não se limita a mero exercício de retórica
e tampouco permite solução banal. Possivelmente, a questão suscite ao leitor a
realização de uma nova pergunta: Enfim, existe mais de um esporte? (evidentemente
não estamos aqui nos referindo às múltiplas modalidades esportivas e suas diferentes
variações). A resposta para a última interrogação é parcialmente positiva e para
chegarmos a essa conclusão basta olharmos para o art. 217 de nossa Carta Magna, onde
o esporte é submetido a algumas classificações antinômicas, tais como: formal e não
formal; educacional e alto rendimento; profissional e não profissional.
Por um olhar histórico e filosófico, a pergunta capitular também destaca a
inexistência de um conceito unívoco do que venha a ser o esporte. Cabe destacar que
subsiste entre as áreas do conhecimento que se dedicam ao estudo deste fenômeno, uma
declarada controvérsia sobre suas raízes ontogênicas. Por ora, apresentaremos
sucintamente duas interpretações que polarizam esse polêmico debate, uma vez que no
próximo capítulo retomaremos essa discussão, utilizando as análises de Rouyer (1977) e
Bracht (2005).
Uma primeira interpretação histórica sobre a gênese do esporte é formulada por
correntes teóricas que identificam nas antigas práticas e rituais da cultura greco-romana,
alguns com manifesto caráter bélico e religioso, a proto-forma do esporte
contemporâneo. A chave heurística dessa concepção fundamenta-se em uma ontogênese
linear, na qual os jogos olímpicos da era antiga teriam dado origem aos atuais jogos da
era moderna. No entanto, parte dessas análises ignora que as atividades helênicas
assumiam o caráter ritualístico permeado por preceitos hedonistas, divinos e politeístas,
os quais se distanciam radicalmente da sistematização e dos interesses da prática
esportiva moderna, que se caracteriza – especialmente na sua gênese – pela
racionalização, pela competição, pela sobrepujança etc.
De outro lado, os estudiosos, que observam o esporte como um produto da
modernidade, defendem um nascimento historicamente datado. Para esses autores, a
prática esportiva foi forjada no interior da aristocracia europeia, como consequência da
riqueza e liberdade das classes dirigentes, condição que possibilitava o gozo de ócios
marcados. Neste sentido, localizam – entre os séculos XVIII e XIX – a “invenção” da
prática esportiva com o intuito de atender às necessidades das classes dominantes. De
acordo com Bracht (2005), esse esporte moderno seria corolário da esportivização de
43
Se, por um lado, Pierson (1991) demonstra que, no final do século XIX – em
decorrência da luta da classe trabalhadora – as políticas sociais foram responsáveis por
ampliar a noção de cidadania e desfocalizar suas ações, antes direcionadas apenas para a
pobreza extrema, é igualmente verdade que, no contexto da crise de 1929, essas mesmas
políticas englobaram o conjunto de estratégias de amortecimento da crise, compondo o
rol de medidas anticíclicas daquele período (BEHRING & BOSCHETTI, 2008). Mas,
afinal, a quem servem as políticas sociais? Longe de uma reposta simples e definitiva a
essa questão, nosso objetivo é o de identificar o papel desempenhado por essas políticas
dentro das contradições capitalistas, examinando suas implicações tanto para o processo
de acumulação de capital, quanto para o fortalecimento do conjunto das reivindicações
da classe trabalhadora, marcadamente no período contemporâneo da realidade
brasileira.
Em momento anterior do texto, afirmamos nosso consentimento com a ideia de
Pereira-Pereira (2009b) de que as políticas públicas devem se identificar e concretizar
46
15
De acordo com Pereira-Pereira (2009b: 102): “A identificação das políticas públicas com os direitos
sociais decorre do fato de esses direitos terem como perspectiva a equidade, a justiça social, e permitirem
à sociedade exigir atitudes positivas, ativas do Estado para transformar esses valores em realidade”.
47
Limpar um campo ou uma quadra esportiva – ainda que possa parecer uma
tarefa trivial – demanda certo rigor metodológico e considerável aplicação. Afinal, não
se pode incorrer no risco de deixar no gramado marcas, detritos e objetos que possam
causar danos aos jogadores ou impedir a realização do espetáculo. Ademais, muitas
vezes a limpeza necessita ser complementada pela remarcação das linhas que limitam o
espaço de jogo para que, dessa forma, as marcações do campo possam ser mais bem
visualizadas pelos árbitros, jogadores e torcedores.
O uso da referência metafórica – “limpando o campo” – justifica-se pelo fato de
almejarmos a construção de um debate conceitual – sobre as necessidades humanas e os
direitos de cidadania – liberto das marcas, detritos e objetos veiculados por correntes
políticas e ideológicas que insistem em descaracterizá-los e reduzi-los ao domínio do
mercado. Ao mesmo tempo, precisamos (re)marcar as linhas que limitam e orientam
nossa análise, clarificando nossa compreensão de que a ampliação da cidadania reclama
o atendimento das necessidades sociais, bem como a conquista e garantia do acesso aos
direitos e à participação democrática.
Mais do que uma simples demarcação linguística, a afirmação de determinados
conceitos – como o de cidadania - trazem em si a luta pela hegemonia de um projeto
histórico de sociedade e de uma concepção de mundo. A título de ilustração, podemos
recordar, conforme informação de Abreu (2008), que ao final dos anos 1970, no Brasil,
havia – por parte dos dirigentes ditatoriais e dos segmentos conservadores de oposição –
48
se sobrepõe à sociedade cindida em classes sociais distintas. Para essa tarefa, o autor
desenvolve uma taxinomia para diferenciar o “status social geral” daqueles referentes às
castas, aos estamentos, às classes, às profissões etc.
Coutinho (2005) reconhece que a classificação proposta por Marshall tem o
mérito não só de delimitar essas três determinações “modernas” da cidadania (civil,
política e social), mas também de insistir na dimensão histórica e processual do conceito
e da prática da cidadania na modernidade. Coimbra (1987) destaca que as principais
contribuições de Marshall não estão no plano conceitual, mas sim na ideia de que
igualdade e cidadania são inseparáveis. De acordo com o autor, embora tivesse claras
insuficiências teóricas, a “teoria da cidadania” de Marshall atribuiu papel destacado à
política social dentro da sociedade moderna, além de elaborar um discurso e um temário
de defesa da política social e de sua expansão em direção de formatos universalistas.
Assim, em que pesem as limitações de sua análise ao caso inglês e
apesar dos problemas na sua explicação histórica, o efeito das ideias
de Marshall foi trazer a discussão das políticas sociais para a “sala de
visitas” da sociedade contemporânea, tirando-a da “cozinha” a que
estava relegada. Depois de Marshall, a política social passou a ser
muito mais respeitada, fora dos círculos tradicional e imediatamente
envolvidos com ela, como os administradores públicos, os sociólogos
e os profissionais do serviço social (COIMBRA, 1987: 83).
16
Carvalho (2012) chama de “estadania” a cultura brasileira de uma ação política orientada para a
negociação direta com o governo, ignorando a mediação das instâncias de representação. Segundo o
autor, isso é decorrente da implantação de direitos sociais em períodos ditatoriais, num contexto onde o
Legislativo ou estava fechado ou era apenas decorativo, criando para a população a imagem de
centralidade do Executivo.
52
17
Wanderley Guilherme dos Santos apresenta seu entendimento sobre a cidadania regulada em três de
suas obras. O termo é utilizado pela primeira vez em seu livro “Cidadania e Justiça: a política social na
ordem brasileira” (1979). Em 1998, o autor lança o livro “Décadas de Espanto e uma Apologia
Democrática”, no qual reafirma seu conceito de cidadania regulada, porém atualizando os dados e
prolongando o período de estudo. Para o autor, cidadania regulada é um "conceito de cidadania cujas
raízes encontram-se, não em um código de valores políticos, mas em um sistema de estratificação
ocupacional. [...] são cidadãos todos aqueles membros da comunidade que se encontram localizados em
qualquer uma das ocupações reconhecidas e definidas em lei” (SANTOS, 1979:75; 1998:103).
53
18
É importante ressaltar que compartilhamos da compreensão de Pereira-Pereira (2007), que utiliza os
termos necessidades humanas e sociais como sinônimos por não conceber o aspecto humano dissociado
do social.
55
atendimento permite aos seres humanos se constituírem como tais e projetarem novos
objetivos e desejos, quais sejam: a saúde física e a autonomia. O conceito dessas
necessidades humanas coaduna-se com o pensamento de Marx sobre o salário, ou seja,
de que este não deve ser concebido apenas com base em parâmetros naturais,
biológicos, mas deve ser definido historicamente, como resultado das lutas sociais.
A saúde física é aqui concebida como condição sine qua non para usufruto da
participação consciente com horizonte à libertação humana de qualquer forma de
opressão, inclusive a pobreza e a desigualdade social. Por conseguinte, o conceito de
saúde física empregado extrapola a dimensão biológica. Já a concepção de autonomia é
utilizada em sentido contrário ao da noção de autossuficiência do sujeito ante as
instituições coletivas – difundida pelos liberais, uma vez que a noção de autonomia
almeja, “em última instância, a defesa da democracia como elemento capaz de livrar os
indivíduos não só da opressão sobre as liberdades (de escolha e de ação), mas também
da miséria e do desamparo” (PEREIRA-PEREIRA, 2007: 70).
Embora possamos identificar um conjunto de necessidades básicas comuns, a
forma de satisfação dessas demandas é heterogênea. Cientes dessa diversificação, Doyal
e Gough (1991 apud PEREIRA-PEREIRA, 2007) localizam uma ampla gama de
“satisfadores” (satisfiers), tais como: bens, serviços, atividades, relações, medidas,
políticas etc. Os referidos autores subdividem os “satisfadores” em dois grupos: os
universais e os específicos.
Os “satisfadores universais22” – também chamados de necessidades
intermediárias – são competentes para contribuir com a melhoria da saúde física e da
autonomia do gênero humano em sua totalidade. Vale destacar que nossa hipótese é de
que o esporte localiza-se no rol desses “satisfadores”. Contudo, considerando que as
necessidades intermediárias são insuficientes para prover demandas particularizadas de
minorias sociais, existem os “satisfadores específicos”, que possibilitam aprimorar as
condições de vida e de cidadania das pessoas em situações sociais particulares
(PEREIRA-PEREIRA, 2007).
Cabrero (1994, apud PEREIRA-PEREIRA, 2007) adverte que as necessidades
humanas básicas se apresentam inicialmente como direitos morais e que,
22
Os “satisfadores universais” ou “necessidades intermediárias” são: 1) alimentação nutritiva e água
potável; 2) habitação adequada; 3) ambiente de trabalho desprovido de riscos; 4) ambiente físico
saudável; 5) cuidados de saúde apropriados; 6) proteção à infância; 7) relações primárias significativas; 8)
segurança física; 9) segurança econômica; 10) educação apropriada; e 11) segurança no planejamento
familiar, na gestação e no parto (PEREIRA-PEREIRA, 2007: 76).
57
Esta parte do primeiro capítulo é orientada pela assertiva de Vieira (1992) de que
as políticas econômica e social formam uma totalidade relativa, em que ambas se
distinguem apenas formalmente, dando a enganosa impressão de que tratam de coisas
muito diferentes. Para Vieira (1992), não há como analisar a política social sem se
remeter à questão do desenvolvimento econômico, sendo o contrário igualmente
verdade.
Behring (2009a: 316) afirma que “os ciclos econômicos, que não se definem por
qualquer movimento natural da economia, mas pela interação de um conjunto de
decisões ético-políticas e econômicas de homens de carne e osso, balizam as
possibilidades e limites da política social”. Em conformidade com a autora, Bracht
(2005: 70) assevera que:
A política social brasileira – como qualquer outra política social –
precisa ser compreendida não em termos assistencialistas, mas sim,
em termos econômicos e políticos, como um instrumento usado pelo
estado para manter as bases de funcionamento do sistema de
acumulação.
23
Título inspirado no livro do professor Dr. Valter Bracht (1999).
59
uma e outra política estão vinculadas à acumulação de capital, sendo claras expressões
da contradição mais básica deste sistema, ou seja, a tensão entre capital e trabalho.
Conquanto as racionalizações ideológicas do sistema do capital busquem – por
meio de suas determinações fetichistas – ofuscar o antagonismo estrutural
fundamental24 entre capital e trabalho, entendemos que se faz necessário realizar uma
sucinta trajetória histórica, procurando identificar as implicações das transformações do
modo de produção capitalista – que acirraram a tensão entre capital e trabalho - na
relação e constituição das políticas sociais e econômicas.
Segundo Netto e Braz (2009), durante o capitalismo concorrencial ocorreu a
consolidação e desenvolvimento de um sistema econômico internacional, mais
especificamente, de uma economia mundial. Ao mesmo tempo, trata-se de um período
em que se verificou o surgimento da questão social25 e a consolidação da luta de classes
na sua expressão moderna, assinalada pela contradição entre capital-trabalho.
Netto (2001) informa que, nesse período, se, por um lado, a desigualdade entre
as diferentes camadas sociais e a polarização entre ricos e pobres não eram inéditas, por
outro lado, era radicalmente nova a dinâmica de pobreza que se alastrava.
Pela primeira vez na história registrada, a pobreza crescia na razão
direta em que aumentava a capacidade social de produzir riquezas.
Tanto mais a sociedade se revelava capaz de progressivamente
produzir mais bens e serviços, tanto mais aumentava o contingente de
seus membros que, além de não ter acesso efetivo a tais bens e
serviços, viam-se despossuídos das condições materiais de vida de que
dispunham anteriormente. [...] Numa palavra, a pobreza acentuada e
generalizada no primeiro terço do século XIX – o pauperismo –
aparecia como nova precisamente porque ela se produzia pelas
mesmas condições que propiciavam os supostos, no plano imediato,
da sua redução e, no limite, da sua supressão (IDEM, IBIDEM: 42-43,
grifos do autor).
24
Termo utilizado por Mészáros (2009a).
25
É imperioso destacar que, segundo Netto (2001: 41), a expressão “’questão social’ não é
semanticamente unívoca, registrando-se em torno dela uma ampla gama de compreensões diferenciadas”.
26
Compreendemos como “avanço do capitalismo” a sua transição pelos estágios comercial ou mercantil;
concorrencial, liberal ou clássico; monopolista; financeiro e imperialista, conforme classificação de Netto
e Braz (2009).
60
27
Conhecida como a “Primavera dos Povos”, as Revoluções de 1848 são a eclosão de processos
moblizatórios derrotados anteriormente (movimento ludista inglês e o movimento cartista) e de rebeliões
e insurreições que se acentuavam pelo continente europeu. Cf. Hobsbawm (1981).
28
A categoria “decadência ideológica” corresponde a um dos pilares da operação crítico–analítica,
sustentada no caráter ontológico que Lukács atribui à teoria social de Marx. De acordo com Netto (2010:
243), Lukács, em sua obra A destruição da razão, privilegia a contraposição entre razão e irrazão e
demonstra que o moderno irracionalismo (cujos suportes são lançados por Schelling, mas cuja instauração
cabe mesmo a Nietzsche), terminando por abrir o caminho ideológico para o horror nazista, fornece uma
resposta evasionista em face da realidade histórico-social – e a evasão diante de dilemas histórico-sociais
mais decisivos é um traço peculiar ao pensamento decadente. Para compreender melhor a categoria da
decadência ideológica, cf. Coutinho (2010a).
29
A Grande Depressão (1929-1933) ocorreu pouco mais de dez anos após o final a 1ª Guerra Mundial.
Caracterizou-se por um período em que milhões de trabalhadores nos Estados Unidos da América (EUA)
e na Europa foram lançados ao desemprego, em uma crise econômica nunca antes presenciada.
62
Mazzucchelli (2012: n.p.) – “não era mais concebível que homens e mulheres
permanecessem indefesos frente aos ventos do mercado”.
No contexto específico do pós-guerra e da bipolaridade entre os Estados Unidos
da América (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS),
Mazzucchelli (2012: n.p.) destaca que foram criadas condições políticas e econômicas
para o funcionamento ordenado e disciplinado do capitalismo:
Havia controle sobre os fluxos internacionais de capital; havia o
direcionamento do sistema de crédito para a acumulação produtiva;
havia a participação efetiva do Estado na regulação das relações
econômicas; havia um clima de colaboração entre empresários e
sindicatos; havia compromissos inarredáveis com a ampliação e a
consolidação do Welfare State e havia uma defesa comum – quer dos
partidos mais à esquerda ou à direita – com a busca de níveis máximos
de ocupação. [...] Cresceu a produtividade, cresceram os salários reais,
cresceram os lucros, aumentou a oferta de empregos, melhoraram as
condições de saúde, educação e trabalho, ampliaram-se os direitos dos
cidadãos, a inflação permaneceu baixíssima e não houve qualquer
desequilíbrio estrutural nas contas públicas (os gastos públicos
cresciam, mas as receitas públicas também, por conta do crescimento
econômico e do aumento da base de tributação). A Golden Age [Era
de Ouro] se estendeu, grosso modo, de 1947 a 197330.
30
Texto intitulado “Nem Sempre Foi Assim!”, consolidado a partir de uma conferência proferida nas
Faculdades de Campinas (FACAMP) em 2012. Disponível em:
http://www.politicasocial.net.br/index.php/caderno/caderno-tematico1/133-caderno-tematico1.html.
Acesso em: 19 nov. 2012.
63
31
De acordo com Chesnais (2003), os acionistas institucionais do mercado financeiro não se satisfazem
tão somente em embolsar dividendos. Tais sujeitos buscam especialmente a plena liquidez de suas
aplicações, ou seja, a possibilidade de realizarem ganhos de capital em bolsa de valores e, por
conseguinte, rever suas escolhas a cada instante e de se desfazerem de determinados títulos. Todavia, para
que essas escolhas sejam possíveis, os acionistas necessitam de mercados financeiros amplos, que sejam o
64
local de formação de um mercado fictício de enormes proporções, das quais a capitalização em bolsa
torna-se uma opção. Chesnais (2003) ainda lembra que Marx foi o único grande economista – no sentido
shumpeteriano – a conceder lugar em suas análises ao capital fictício. À época de Marx, tal capital
assumia basicamente três formas, quais sejam: as ações, os títulos da dívida pública e o crédito. De
acordo com Mollo (2010 apud LIMA, 2011: 9), esta categoria é definida, por Marx “em contraposição ao
capital real. Enquanto o capital real, no processo de produção, por meio da exploração da força de
trabalho, gera mais-valia que garante sua própria expansão, o capital fictício é analisado como aquele que
surge quando o sistema de crédito se desenvolve, porque com ele o capital parece dobrar, triplicar, graças
ao fato de que o mesmo capital aparece de diversas maneiras, em várias mãos. Apesar de surgir e se
desenvolver com o aumento do crédito, o capital fictício não é o crédito em si mesmo. O crédito, usado
pelo capitalista industrial, potencializa a produção apressando e aumentando a sua escala e permitindo a
geração maior de mais-valia. O capital fictício, ao contrário, surge quando o crédito está desenvolvido, e
suas operações difundidas suficientemente para que ‘toda renda em dinheiro determinada e regular
apareça como juros de um capital, seja essa renda proveniente ou não de um capital’ (Marx)".
32
Sobre o processo de financeirização da economia e o protagonismo do capital fictício no cenário
econômico contemporâneo, cf. Chesnais et al. (2003).
65
Gráfico 2 - Taxa de escolarização das pessoas de 4 anos ou mais de idade, por classes de
rendimento mensal domiciliar per capita, segundo os grupos de idade – Brasil – 2011.
98,2%
97,4%
97,7%
98,8%
99,2%
88,9%
100,0%
87,8%
83,7%
83,4%
81,6%
80,5%
77,8%
77,4%
72,2%
Total
69,1%
75,0%
Sem rendimento ou
1/4 do salário mínimo
50,0% 1/4 a menos de
34,8%
1/2 salário mínimo
28,9%
26,3%
23,7%
22,8%
1/2 a menos de
25,0% 1 salário mínimo
1 salário mínimo ou
5,3%
4,5%
4,0%
3,7%
3,5%
mais
0,0%
4 ou 5 anos 6 a 14 anos 15 a 17 anos 18 a 24 anos 25 anos ou
mais
33
Segundo Behring (2009b: 51): “[...] em fins de 2007, no contexto da disputas políticas sobre o fim da
CPMF, a DRU mostrou-se extremamente resistente a mudanças, sendo mantida através de uma rara
unanimidade entre ‘oposição’ e a ‘situação’ no parlamento brasileiro, o que mostra sua importância para a
política fiscal brasileira. A incidência da DRU nos recursos da seguridade tem sido nefasta, fazendo com
que esse mecanismo transfira recursos crescentes para o mercado financeiro, já que as fontes da
seguridade - as contribuições sociais – vêm tendo um desempenho crescente em termos de arrecadação,
em especial a COFINS, e estão sendo apropriadas para a formação do superávit primário e pagamento de
serviços da dívida pública”.
70
34
De acordo com Pereira-Pereira (2013: 2-3), a focalização é “uma tradução dos vocábulos ingleses
targeting ou target-oriented, oriundos dos Estados Unidos e adotados pelos governos conservadores
europeus, principalmente o da ex-primeira ministra inglesa Margareth Thatcher - que concebem a pobreza
como um fenômeno absoluto, e não relativo, com todas as implicações políticas que tal concepção
acarreta, dentre as quais ressaltam: a restrição do papel do Estado na proteção social; o apelo à
generosidade dos ricos e afortunados para ajudarem os mais pobres; a ênfase na família e no mercado,
como principais agentes de provisão de bem-estar; a proclamação da desigualdade social como um fato
natural”.
35
Para Pereira-Pereira (2003:1): “O princípio da universalidade é o que melhor contempla e exige a
relação entre políticas públicas e direitos sociais, sem descartar naturalmente os direitos individuais (civis
e políticos). Uma razão histórica fundamental para a adoção desse princípio foi o objetivo democrático de
não discriminar cidadãos no seu acesso a bens e serviços que, por serem públicos, são indivisíveis e
devem estar à disposição de todos”.
73
36
São exemplos concretos da ideia de planificação na organização governamental atual o Plano Nacional
de Educação (PNE) e o Plano Decenal de Esporte e Lazer.
74
1.3 Bola dividida: o papel das políticas sociais dentro da tensão entre capital e
trabalho.
Poulantzas (2000: 147), o Estado deve ser compreendido como uma relação, “mais
exatamente como a condensação material de uma relação de forças entre classes e
frações de classe, tal como ele expressa, de maneira sempre específica, no seio do
Estado”.
A feição heterogênea do Estado reverbera na própria política do Estado,
determinando sua organização específica. Neste sentido, Neves e Pronko (2010)
afirmam que a política de Estado, embora pareça incoerente e caótica, constitui-se na
materialização do processo efetivo de contradições internas, configurando o Estado
como lugar de organização estratégica da classe dominante.
O Estado organiza e reproduz a hegemonia de classe ao fixar um
campo variável de compromissos entre as classes dominantes e classes
dominadas, ao impor muitas vezes até às classes dominantes certos
sacrifícios materiais a curto prazo com o fim de permitir a reprodução
de sua dominação a longo termo (POULANTZAS, 2000: 213).
37
Para maiores informações sobre os diferentes regimes de Bem-Estar social, recomenda-se a leitura de
Esping-Andersen (1991) e Abrahamson (1995).
78
Quadro 1 – Resumo das principais características dos diversos tipos de regimes de Welfare State nos
países centrais.
Regime wfs Liberal Regime wfs Social- Regime wfs
Democrático Conservador
Funções por Segmento
Social:
Família Marginal Marginal Central
Mercado Central Marginal Marginal
Estado Marginal Central Subsidiário
Welfare State:
Unidade social da Indivíduo Coletividade Parentesco, corporações
solidariedade e Estado
Local prevalecente da Mercado Estado Família
solidariedade
Grau de Mínimo Máximo Alto (p/ trabalhadores
desmercantilização chefes de família)
Caso nacional EUA Suécia Alemanha e Itália
paradigmático
Fonte: adaptado de Esping-Andersen (2000: 146, cf. tab. 5.4).
38
Segundo Fagnani (2012: 10-11), os anos dourados ou gloriosos “trata-se de fase inédita de capitalismo
regulado, construída no contexto da bipolaridade entre Estados Unidos e União Soviética, que se
consolidou no pós-guerra sob a hegemonia americana. O pacto entre capital e trabalho que foi selado
nesse período representou uma inédita possibilidade de se conciliar a propriedade privada dos meios de
produção com o planejamento estatal; a gestão mais democrática da economia; e a elevação do padrão de
vida dos trabalhadores”.
79
39
De acordo com Antunes, as consequências das mutações do processo produtivo no mundo do trabalho
são: “[...] desregulamentação enorme de direitos do trabalho, que são eliminados cotidianamente em
quase todas as partes do mundo onde há produção industrial e de serviços; aumento da fragmentação no
interior da classe trabalhadora; precarização e terceirização da força humana que trabalha; destruição do
sindicalismo de classe e sua conversão num sindicalismo dócil, de parceria (partnership), ou mesmo em
um sindicalismo de empresa” (2009: 53).
81
40
Anderson (2008) demonstra que, apesar de todas as medidas tomadas para conter os gastos sociais, o
neoliberalismo não conseguiu diminuir acentuadamente o peso do Estado de bem-estar. “Embora o
crescimento da proporção do produto nacional consumida pelo Estado tenha desacelerado, a proporção
absoluta não caiu, mas aumentou, de mais ou menos 46% para 48% do PNB médio dos países da OCDE
durante os anos 80. Duas razões básicas explicam este paradoxo: o aumento dos gastos sociais com o
desemprego, que custaram bilhões ao Estado, e o aumento demográfico dos aposentados na população,
que levou o Estado a gastar outros bilhões em pensões” (IDEM, IBIDEM: 16).
41
Fagnani (2012) afirma que as últimas quatro décadas de capitalismo desregulado deixaram um saldo
social dramático, caracterizado pelo aumento das desigualdades sociais e pela piora na distribuição de
renda, que acentuou sua polarização.
83
42
Nogueira (1998: 11) sinaliza que “o processo de modernização capitalista brasileira – a nossa revolução
burguesa...se faz sem rupturas políticas fortes, sem construir uma institucionalidade democrática e sem
incorporação social”. Nogueira (1998: 266) afirma, ainda, que “nossa modernização tem sido
conservadora, aliás, duplamente conservadora. Em primeiro lugar, porque se tem feito com base na
preservação de expressivos elementos do passado”. E, em segundo lugar, a modernização tem ocorrido de
forma antidemocrática, ou seja, sem a participação popular, e sob hegemonia conservadora.
85
43
Cabe destacar que o retardamento da opção não foi uma ação deliberada do governo, mas um reflexo da
conjuntura política e social nacional. O movimento social que lutava pela redemocratização do país
construiu uma agenda de mudanças, cujo objetivo central era o acerto de contas com a ditadura militar,
que impediu a germinação da investida neoliberal naquele momento histórico.
44
De acordo com Silva e Silva et al. (2008), outro fator que dificultou a universalização dos direitos
sociais consignados na Constituição Federal (CF) de 1988, pela ausência de regulamentação, foi a forte
reação das elites conservadoras no Congresso.
86
Segundo Fagnani (2012), programas direcionados aos mais pobres têm como
objetivo final a reforma do Estado e o ajuste fiscal, tendo em vista que programas dessa
natureza são baratos em termos de gastos como proporção do PIB. Essa compreensão
ideológica orienta o objetivo tácito dos organismos internacionais de alçar o PBF –
implantado pelo Governo Lula45 – em um case internacional de sucesso. Fagnani (2012)
conclui que essa estratégia parece ser útil para convencer os governos acerca das
virtudes da iniciativa de PPS.
Os objetivos camuflados acabam se revelando quando confrontados com as
referências da Organização Internacional no Trabalho (OIT) sobre o PBF. De acordo
com a entidade, o Bolsa-Família é “um dos programas de assistência social de maior
envergadura no mundo”. Todavia, a própria OIT evidencia os fundamentos que
baseiam sua conclusão ao afirmar que a cobertura de 47 milhões de pessoas foi possível
“com um nível de gastos de 0,4% do PIB, o que representa 1,8% do gasto do Governo
Federal” (CICHON et al., 2011 apud FAGNANI, 2012: 26).
Sem embargo do crescimento orçamentário do PBF durante as últimas gestões
do Governo Federal (vide Tabela 3), é preciso ter clareza que seus recursos são ínfimos
quando comparados àqueles destinados ao mercado financeiro. A título de exemplo, o
INESC (2011a: 3) informa que “o valor previsto no Projeto de Lei Orçamentária Anual
(PLOA 2011) para o programa Bolsa Família, por exemplo, é de R$ 13,99 bilhões. Esta
cifra é 12 vezes menor do que o valor previsto para o pagamento de juros a dívida
pública”.
45
O Programa Bolsa Família (PBF) resultou da proposta do Governo Federal, lançada dia 20 de outubro
de 2003, para unificação dos Programas de Transferência de Renda, inicialmente restrita a unificação de
quatro programas federais: Bolsa-Escola, Bolsa-Alimentação, Vale-Gás e Cartão-Alimentação. Foi
instituído pela MP nº 132, de 20 de outubro de 2003, transformada na lei nº 10.836, de 09 de janeiro de
2004, e regulamentado pelo Decreto nº 5.209, de 17 de setembro de 2004. Segundo Silva e Silva et al.
(2008: 135), a criação do referido Programa tinha “como propósito mais amplo manter um único
Programa de Transferência de Renda, articulando programas nacionais, estaduais e municipais em
implementação, na perspectiva de instituição de uma Política Nacional de Transferência de Renda”.
87
Tabela 4 - Proporção de Miseráveis - Renda de Todas as Fontes (Linha CPS): Pobreza - Linha CPS/FGV.
População Total
Categoria 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
Total 27,54 26,66 28,12 25,4 22,8 19,32 18,26 16,02 15,32
Fonte: CPS/FGV, baseado nos microdados da PNAD/IBGE.
Embora se exima de apontar qual foi o leitmotiv dessa relação, Fagnani (2012)
tem o cuidado de frisar que os dados positivos no combate à pobreza foram corolários
de um amplo leque de ações, tais como: criação de novas vagas no mercado de trabalho
formal; crescimento real do salário mínimo; extensão do Benefício de Prestação
Continuada; transferências da Seguridade Social, sobretudo por meio da Previdência
Rural, entre outros. Para Fagnani (2012), é um equívoco atribuir exclusivamente o
progresso social recente no Brasil a uma ação estatal isolada. O autor assevera que é
uma postura inadmissível, tanto em termos técnicos, como em termos éticos, reduzir a
proteção social brasileira ao PBF.
À conjuntura descrita até o momento, soma-se o registro histórico de
vivenciarmos no Brasil um Estado de bem-estar social permeado por axiomas atávicos
que engendram um modelo marcado por uma base meritocrática com traços
corporativistas e clientelistas. Outras características comumente reproduzidas pelas
políticas sociais brasileiras dizem respeito à privatização e ao voluntariado. A lógica
46
Apesar da crise econômica mundial, que vem se acentuando e aumentando as desigualdades em vários
países, no Brasil, a pobreza caiu 7,9% entre janeiro de 2011 e janeiro de 2012 e as desigualdades
continuam a diminuir. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/noticias/arquivos/2012/03/07/apesar-de-
crise-mundial-desigualdade-e-pobreza-diminuem-no-brasil-diz-fgv>. Acesso em: 17 dez. 2012.
89
47
De acordo com Fagnani (2012: 44): “Entre 2003 a 2011, a taxa de desemprego caiu pela metade
(12,4% para 6%). O rendimento mensal médio dos trabalhadores subiu 18% e mais de 14 milhões de
empregos formais foram criados (apenas em 2010, foram criados 2,5 milhões de vagas)”.
48
“O Plano Brasil Sem Miséria agrega transferência de renda, acesso a serviços públicos, nas áreas de
educação, saúde, assistência social, saneamento e energia elétrica, e inclusão produtiva. Com um conjunto
de ações que envolvem a criação de novos programas e a ampliação de iniciativas já existentes, em
parceria com estados, municípios, empresas públicas e privadas e organizações da sociedade civil [...]”
Disponível em: <http://www.mds.gov.br/falemds/perguntas-frequentes/superacao-da-extrema-
pobreza%20/plano-brasil-sem-miseria-1/plano-brasil-sem-miseria>. Acesso em: 05 dez. 2013.
90
49
O Olimpismo é uma filosofia de vida que exalta e combina de forma equilibrada as qualidades do
corpo, da vontade e do espírito. Aliando o desporto à cultura e educação, o Olimpismo é criador de um
estilo de vida fundado no prazer do esforço, no valor educativo do bom exemplo e no respeito pelos
princípios éticos fundamentais universais. Disponível em:
<http://www.comiteolimpicoportugal.pt/olimpismo/definicao-olimpismo>. Acesso em: 27 dez. 2012.
50
Neste caso, notava-se a intenção do Estado nazista de demonstrar a superioridade da raça ariana sobre o
resto do mundo a partir das conquistas esportivas da delegação alemã.
95
Helsinki, em 1952; o forte aporte financeiro para as preparações esportivas nos EUA; e,
os boicotes estadunidense e soviético, respectivamente, aos jogos de Moscou (1980) e
Los Angeles (1984). Para Tubino (1992: 132): “O conflito anterior, amadorismo versus
profissionalismo, começa a deixar seu lugar para a batalha permanente entre
capitalismo e socialismo [...]”. Marques et al. (2009: 639) asseveram que “o esporte
transformou-se numa extensão e campo de comparações diretas próprias da
competição política, militar e econômica que caracterizou o relacionamento entre os
blocos econômicos”.
O período de Guerra Fria contribuiu para a corrosão dos nobres valores do
esporte amador e da ética esportiva, construídos nos tempos de prevalência do ideário
olímpico. Tais axiomas foram substituídos por um “chauvinismo” pela vitória que
deveria vir a qualquer preço – busca acentuada pelo ethos competitivo exacerbado
recorrente em uma disputa esportiva. Dessa forma, a conquista da vitória tornou-se mais
importante do que o modo como se jogava. Não por acaso, é nesse momento que o
suborno e o doping aparecem no cenário esportivo.
Com a queda do muro de Berlim, o fenecimento da Guerra Fria e o
fortalecimento do capitalismo como formação social hegemônica, os investimentos no
esporte mudaram de sentido. Para além de sua finalidade ideopolítica, como possuía a
capacidade de mobilizar grandes agrupamentos humanos, o esporte passou a ser
identificado e valorizado pelo seu potencial mercadológico. Segundo Tubino (1992:
134):
Depois de ultrapassar o conflito “amadorismo versus
profissionalismo” no primeiro paradigma, o conflito “capitalismo
versus socialismo”, no segundo paradigma, atualmente, o grande
conflito passou a ser o confronto permanente entre a “lógica do
mercantilismo e a ética esportiva”.
51
Vale destacar que, embora os custos operacionais do megaevento sejam custeados por empresas
multinacionais, os gastos com infraestrutura esportiva e urbana – necessários para o recebimento desses
eventos e cuja magnitude é acentuadamente maior – são de responsabilidade dos Governos Federal,
Estadual e Municipal.
97
produto atrativo e rentável aos meios de comunicação, alguns esportes tiveram que
adequar suas normas e regras, além de promover certa dose de “espetacularização”.
Ademais, um segundo registro refere-se ao fato de que, durante as competições
esportivas internacionais atuais, muitos atletas renomados, além da bandeira de seu país,
carregarem consigo os emblemas de outras “pátrias”, referimo-nos a seus
patrocinadores pessoais.
trabalho no processo de produção. Para Rigauer (1969 apud VAZ, 2008 ), no âmbito do
esporte de rendimento, a alienação ganha materialidade na exacerbada especialização e
fragmentação do gesto motor, bem como na introdução de métodos de treinamento
sistematizados e racionalizados.
A alienação da prática esportiva se completa quando somada ao que Milton
Santos (2000: 143) denominava de “empenho vertical unificador, homogeneizador,
conduzido por um mercado cego, indiferente às heranças e às realidades atuais dos
lugares e das sociedades”. Impondo elementos maciços da cultura de massa,
indispensáveis ao reino do mercado e à expansão da globalização econômica,
financeira, técnica e cultural, o capitalismo engendra uma uniformização/padronização
da prática esportiva. É bem verdade que, conforme alerta o próprio Milton Santos
(2000:144), “essa conquista, mais ou menos eficaz segundo os lugares e as sociedades,
jamais é completa, pois encontra a resistência da cultura preexistente”.
Medina (1992) alerta que a evolução do esporte não é um fenômeno apartado do
processo evolutivo da civilização contemporânea. Neste sentido, a tendência esportiva
de valorizar a performance e o lucro material e financeiro é um reflexo dos axiomas
predominantes nos dias de hoje.
[...] podemos dizer que, de certa forma e em grandes linhas, o esporte
reproduz os valores dominantes da sociedade. Não é sem razão,
portanto, que o esporte de alta competição como é praticado hoje em
dia, estimule, mesmo que de forma sutil, o doping, a violência, a
mentira, a aparência, o individualismo, a alienação ou o nacionalismo
exacerbado (MEDINA, 1992: 145).
Não é fácil produzir homens quando o sistema pede robôs. Não é fácil
desenvolver atletas-cidadãos, críticos, conscientes, educados e
criativos, quando o sistema pede apenas ‘máquinas’ obedientes e
automaticamente descartáveis, quando deixam de produzir o
rendimento esperado (MEDINA, 1992: 152).
mera casualidade que o referido evento tenha sido idealizado e criado por um nobre
francês, que ostentava o título de “barão54”.
As mutações empreendidas na dinâmica do capital levam-no a novos estágios
evolutivos, tendo como finalidades precípuas a manutenção/perpetuação do modelo
societal hegemônico e a aceleração do circuito de valorização do processo de
acumulação de capital. A mutabilidade capitalista engendra convulsões sobre a estrutura
social, que perpassam as relações entre Estado e Sociedade, o mundo do trabalho, as
correntes de pensamento ideológicas, entre outros.
Diante de tal cenário, é evidente que o esporte não poderia ficar imune a essas
alterações e, por conseguinte, precisaria se transformar como condição de adaptação a
esses novos estágios do capitalismo. Durante o referido processo, os elementos
ideopolíticos, sociais e econômicos do esporte foram sendo manobrados e explorados,
com acento mais agudo naquele que possuísse em um determinado momento histórico
uma maior funcionalidade à manutenção do status quo. A empatia entre capitalismo e
esporte, no que diz respeito à acumulação e valorização do capital, foi sempre uma
relação bastante simbiótica, embora tenha atribuído ao fenômeno esportivo uma
condição caudatária55.
No decorrer do “progresso” global do sistema capitalista, o fenômeno esportivo
desempenhou diferentes papéis/funções. Em tempos de acentuada tensão entre
burguesia e proletariado (capital e trabalho), o Estado e a burguesia operaram as práticas
esportivas como uma estratégia de alienação, despolitização e arrefecimento das
reivindicações políticas e trabalhistas. Observa-se a reprodução conspícua e caricata da
política do panis et circenses. A abertura dos portões das fábricas para a entrada do
esporte é um dos diversos protótipos de ações vinculadas a tais interesses. Criaram-se
representações esportivas cuja identidade vinculava-se à indústria, bem como eventos
esportivos específicos voltados à classe trabalhadora.
No interstício de tempo demarcado pela 2ª. Guerra Mundial, o esporte foi
subjugado a sua dimensão sociopolítica, utilizado como aparelho ideológico de
determinados regimes políticos específicos (fascismo e nazismo). Ilustra tal condição a
organização e realização dos Jogos Olímpicos de 1936, realizados em Berlim, nas
54
Referimo-nos a Pierre de Frédy, mais conhecido como “Barão de Coubertin”, que ganhou notoriedade
como o fundador dos Jogos Olímpicos da era moderna.
55
É importante destacar que o esporte também foi utilizado, principalmente na sua dimensão ideopolítica,
por sociedades organizadas, a partir de uma formação social diferente do capitalismo, como, por exemplo,
os sistemas políticos socialistas e comunistas.
106
56
De acordo com Netto (1996: 97), a dinâmica cultural de nossa época está fundada em dois vetores:
“(...) a translação da lógica do capital para todos os processos do espaço cultural (produção, divulgação e
consumo) e desenvolvimento de formas culturais socializáveis pelos meios eletrônicos (a televisão, o
vídeo, a chamada multimídia)”.
108
estrutural e/ou universal. Karl Marx, em carta endereçada à militante populista russa
Vera Zasulich, ressaltava a incerteza de que sua teoria das condições sociais de
florescimento do socialismo na Europa Ocidental fosse reproduzida integralmente a
países com desenvolvimento histórico distinto. Florestan Fernandes (2006: 34) assevera
que:
[...] seria ilógico negar a existência do “burguês” e da “burguesia” no
Brasil. Poder-se-ia dizer, no máximo, que se trata de entidades que
aqui aparecem tardiamente, segundo um curso marcadamente distinto
do que foi seguido na evolução da Europa, mas dentro de tendências
que prefiguram funções e destinos sociais análogos tanto para o tipo
de personalidade quanto para o tipo de formação social.
57
Destacam-se nessa temática os estudos realizados por Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda,
Gilberto Freyre, Raymundo Faoro, Florestan Fernandes, Nelson Werneck Sodré, Luiz Werneck Vianna,
entre outros.
110
58
Ressalta-se a rica e competente análise de Florestan Fernandes sobre o papel dos fazendeiros de café e
dos imigrantes no processo de consolidação do capitalismo no Brasil.
59
Uma observação minimamente comprometida com uma análise crítica é capaz de verificar que a
cultura patrimonialista persiste atualmente nas ações políticas e nas instâncias administrativas do Estado
brasileiro.
111
De acordo com Fausto (1989), nos albores dos anos 1930, a formação social
brasileira era composta por uma contradição básica entre setor agrário exportador,
representado pelo latifúndio semifeudal e associado ao imperialismo, e os interesses
voltados para o mercado interno, representados pela burguesia nacional. Os setores
latifundiários buscavam perpetuar sua hegemonia mantendo um modelo primário-
exportador responsável por uma distribuição de renda extremamente desigual. Essa
conspícua desigualdade engendrava um cenário, no qual, por um lado, a maior parte da
população auferia níveis de renda muito baixos, ficando à margem dos mercados
monetários, e, por outro lado, as minoritárias classes de alta renda apresentavam
60
Reforçando as conclusões de Fernando Henrique Cardoso (FHC) (1977), Mazzeo (1995) relata que –
em 1845 – o parlamento britânico promulgou o Bill Aberdeen, no qual reconhecia o direito inglês de
perseguir, afundar e julgar as tripulações dos navios negreiros, travando uma manifesta guerra ao tráfico
de escravos. Tais impedimentos encareciam o preço do escravo. De acordo com o autor, essa conjuntura
engendrou as origens materiais da abolição da escravatura, da introdução do trabalho assalariado e da
imigração estrangeira, na produção agroexportadora brasileira.
113
padrões de consumo similares aos dos grandes centros europeus (é dramático perceber
que pouco se alterou).
Tavares (1982) destaca que, assim como os demais países latino-americanos, o
Brasil encontrava-se na periferia dos centros dominantes e, por conseguinte, com um
processo de desenvolvimento refém do crescimento da demanda pelos seus produtos de
exportação pelas economias líderes. Assim, a autora conclui que o país, ao adotar uma
economia primário-exportadora tradicional e concentrada em um ou dois produtos,
encontrava-se extremamente vulnerável às flutuações ocorridas nos preços
internacionais dos produtos de exportação.
A mudança das variáveis dinâmicas da economia, sobretudo a crise econômica
de 1929, resultou em uma retração das exportações. Neste sentido, Tavares (1982)
identifica a perda da importância relativa do setor externo no processo de formação da
renda nacional e, concomitantemente, um aumento da participação e dinamismo da
atividade interna. Para a autora, o setor externo não abandonou sua importante função
na economia nacional, mas sim deslocou sua atuação do aumento das exportações para
contribuir com a diversificação da estrutura produtiva.
Face ao exposto, Tavares (1982) defende a tese central,
[...] de que a dinâmica do processo de desenvolvimento pela via da
substituição de importações pode atribuir-se, em síntese, a uma série
de respostas aos sucessivos desafios colocados pelo estrangulamento
do setor externo, através dos quais a economia vai-se tornando
quantitativamente menos dependente do exterior e mudando
qualitativamente a natureza dessa dependência (IDEM, IBIDEM: 41).
Santos (1993, apud LINHALES, 1996: 79) ressalta que a oferta de políticas
sociais protecionistas, durante o período estado-novista, tinha como intuito “conquistar,
em troca, a domesticação política e a adesão ao estilo burocrático autoritário que
caracterizará a relação entre Estado e sociedade até 1945”. Obedecendo a essa lógica,
observa-se que a ação do Estado no setor esportivo decorre de interesses intrínsecos à
própria estrutura estatal, ao invés de uma reconhecida demanda da sociedade brasileira,
sobretudo aquela organizada esportivamente.
Reforça o entendimento dos autores acima o fato de datar do Estado Novo a
promulgação do Decreto-Lei nº. 3.199/1941, que estabeleceu as bases de organização
do desporto em todo país. Além disso, é daquela época a criação da Divisão de
Educação Física no âmbito do Ministério da Educação e Saúde, bem como do Conselho
Nacional de Desporto (CND), órgão criado, conforme Manhães (2002), para se sobrepor
a toda e qualquer organização esportiva do país, demonstrando alto grau de
totalitarismo.
Imbuído de plenos poderes, o CND advoga para si o controle rígido das
entidades esportivas, tornando-se assim o braço estatal da ação disciplinar, corporativa e
117
63
O Decreto-Lei nº. 3.199/1941 permaneceu em vigor até o ano de 1975, quando foi revogado pela Lei
nº. 6.251, que, regulamentada dois anos mais tarde, passou a cuidar dos destinos da Educação Física e do
Desporto.
119
64
Alguns dos sociólogos a que fazemos referência foram assistentes de Florestan Fernandes na Faculdade
de Filosofia da Universidade de São Paulo, entre os quais, destacamos: Fernando Henrique Cardoso,
Octavio Ianni, Marialice Mencarini Foracchi, Maria Sylvia de Carvalho Franco, entre outros.
120
Oliveira (1989) ressalta que o capital estrangeiro poderia ter assumido algumas
das tarefas realizadas pelo Estado brasileiro, contudo optou por dificultar o surgimento e
desenvolvimento de certas atividades econômicas no território brasileiro.
O Estado vem e realiza, através de uma socialização das perdas, certas
tarefas da acumulação que a contradição burguesia nacional versus
imperialismo tornava incapaz de fazer nascer, consolidar e aprofundar
na economia brasileira (IDEM, IBIDEM: 117-118).
65
Maracanazo ou Maracanaço corresponde ao termo cunhado para se referir à derrota brasileira na final
da Copa de 1950. Na ocasião, a seleção uruguaia de futebol derrotou o escrete brasileiro, deixando
desolados os torcedores. A partida ocorreu no estádio do Maracanã e é considerada um dos maiores
reveses da história do futebol.
66
Termo cunhado por Nelson Rodrigues, após a eliminação brasileira pelos húngaros na Copa de 1954. A
expressão tinha como objetivo caracterizar a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente,
em face do resto do mundo. Tal expressão foi posteriormente superada pelas vitórias na Copa de 58, 62 e
70. Recentemente, a “superação do complexo de vira-latas” foi retomada por alguns analistas da política
econômica externa brasileira, durante o Governo Lula.
121
(1992: 21) reconhece em tal postura as marcas de “uma orientação mais trabalhista,
voltada para os interesses populares em detrimento da composição com setores
conservadores”. Os marcos simbólicos dessa reorientação seriam a reforma ministerial
de junho/julho de 195367 e a instrução 70 da Superintendência da Moeda e do Crédito
(Sumoc)68. Segundo D’Araújo (1992: 21), “Interpretada como uma guinada para a
esquerda, a nova orientação teria despertado a reação direta da classe média e dos
grupos econômicos, em aliança com as Forças Armadas, contra o Governo”.
Diante do exposto, o governo Vargas é caracterizado por uma ambiguidade,
oscilando entre posições nacionalistas e soluções conciliatórias, esta representada pelo
objetivo de harmonizar os interesses econômicos nacionais aos do grande capital
internacional. Soma-se a essa tentativa de conciliação conflitante, a questão do
populismo, que se tornou a vertente política no período pós-1945. O getulismo
(expressão do populismo na Era Vargas) extrapolava a existência formal dos partidos e,
ao mesmo tempo, abria espaço para o enfraquecimento de compromissos em relação às
organizações partidárias. Em síntese, podemos dizer que a eleição de Vargas, em 1950,
era a manifestação de irrupção do eleitorado contra os partidos.
No que se refere à fragilidade democrática do sistema partidário, que havia sido
recém-conquistado, é importante destacar que essa ferida foi exposta anteriormente. Nas
eleições de 1945, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) obteve um significativo
crescimento no parlamento69. Tal resultado aguçou a preocupação das forças políticas
conservadoras, que arquitetaram a cassação de seu registro. Em abril de 1947, durante o
mandato de Eurico Gaspar Dutra, o Tribunal Eleitoral cassou o registro do PCB. Não
satisfeitos com aquela medida despótica, as forças reacionárias, em janeiro de 1948,
cassaram também o mandato dos parlamentares comunistas eleitos, sob a alegação de
que constitucionalmente o PCB era antidemocrático, uma vez que seu programa não era
67
Durante essa reforma ministerial, Osvaldo Aranha seria escolhido para substituir Horácio Lafer à frente
do Ministério da Fazenda.
68
Segundo Vianna (1987), a instrução 70 da Sumoc introduziu importantes mudanças no sistema cambial
brasileiro. D’Araújo (1992: 21) ressalta que a instrução 70 da Sumoc teria sido “um golpe contra os
grupos comerciais em prol da industrialização – o que teria desgostado boa parte dos setores econômicos
dominantes”. A aludida instrução reestabeleceu o monopólio cambial do Banco do Brasil e instituiu um
sistema de leilões de câmbio à importação. Segundo Fonseca (1999), tal organização diferenciava as
importações conforme sua essencialidade, adotando o critério de necessidade ou não da importação para a
indústria e para a agricultura. Neste sentido, estabelecia-se um sistema de taxas múltiplas de câmbio, em
consonância com os interesses industrializantes e desenvolvimentistas. As críticas e resistências à
proposta da Sumoc advinham da grande indústria e pontualmente do FMI.
69
O PCB tinha obtido 10% dos votos nas eleições de 2 de dezembro de 1945 e com isso eleito 15
deputados federais e um senador – Luís Carlos Prestes, o segundo mais votado, perdendo apenas para
Getúlio Vargas.
123
70
O restante do mandato de Vargas foi cumprido temporariamente pelo vice-presidente Café Filho, que,
antes mesmo da conclusão do referido mandato, foi afastado e substituído por Nereu Ramos, presidente
da Câmara dos Deputados, até a posse de Juscelino Kubitschek em 1956.
126
71
Os mecanismos elencados foram compilados – em parte – do Programa de Metas, elaborado pelo
Conselho do Desenvolvimento da Presidência da República.
128
72
É importante destacar que, no contexto da teoria marxista do Estado, o conceito de bloco no poder
designa, de acordo com a obra de Nicos Poulantzas, a unidade contraditória da burguesia organizada
como classe dominante. Segundo Boito Jr. (2006: 240), “o conceito de bloco no poder opera, [...], com
dois aspectos básicos: de um lado a unidade contraditória da burguesia e de outro, o papel ativo que o
Estado desempenha na organização da dominação de classe da burguesia e da hegemonia de uma de suas
frações”.
130
73
Digno de nota é verificarmos que a Copa do Mundo FIFA de 1958 marcou a primeira vez que a
Confederação Brasileira de Desportos (CBD) – que antecedeu a Confederação Brasileira de Futebol
(CBF) – pôde contar com o efetivo apoio do Governo Federal, o que se materializou em verbas adequadas
para garantir o início antecipado dos treinamentos e a formação de um bom time – evidentemente não
estamos aqui desprezando o talento individual presente naquela equipe.
131
74
Vide referência completa da obra na bibliografia do presente estudo.
133
75
A vitória eleitoral de Jânio Quadros – que representava as forças conservadoras – foi possibilitada pela
exploração das sequelas do processo inflacionário, que agravavam os sofrimentos da massa popular, e
pelos episódios de corrupção que pontuaram o Governo de Juscelino Kubitschek (GORENDER, 2004).
134
76
Sobre a atuação estadunidense para elaboração e articulação do golpe de 1964, recomendamos o
documentário de Flávio e Camilo Tavares, “O Dia que durou 21 anos”.
77
O IPES foi fundado em 1962 por empresários do Rio de Janeiro e de São Paulo. De acordo com
Carvalho (2012: 159), “o IPES lutava contra o comunismo e pela preservação da sociedade capitalista.
Mas, ao mesmo tempo, propunha várias reformas econômicas e sociais”. Uma das ações articuladas pelo
Instituto e de grande repercussão foi a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em 19 de março de
1964, contra o governo pró-comunista de Jango. Em verdade, a referida manifestação materializava o
descontentamento da classe média com as numerosas greves e com a inflação incontida e confirmava o
afastamento daquela classe do movimento nacionalista.
136
78
De acordo com Santos (1998: 50), após 1964, “[...] o controle estatal da economia tornou-se ainda mais
forte, todos os setores produtivos estratégicos - petróleo, energia elétrica, tecnologia das comunicações,
álcalis – foram monopolizados ou quase pelo Estado, e os programas governamentais tornaram-se
responsáveis pela maior parte da taxa anual de investimento”.
79
Singer (1989) observa que a concentração do capital acompanha necessariamente o desenvolvimento
capitalista em qualquer país, e sua promoção pelo Estado como meio de acelerar o desenvolvimento não é
ineditismo brasileiro, uma vez que possui precedentes históricos na Europa.
138
Outro desafio enfrentado pela ditadura militar em seu princípio dizia respeito à
necessidade de descobrir uma saída para a crise inflacionária. A primeira solução
encontrada se referiu à centralização das decisões de política econômica. Dessa forma, o
governo militar proibiu os reajustamentos salariais em intervalos menores do que um
ano. Vale ressaltar que, à época, o custo de vida havia subido mais de 80% (SINGER,
1989). As greves por aumento de salários foram impedidas e, em 1965, foi imposta uma
política salarial uniforme para todo o país, ficando a cargo do Governo Federal a
incumbência de decidir sobre novos reajustamentos salariais. Segundo Singer (1989), o
resultado dessa política salarial foi uma redução ponderável do salário mínimo e, por
extensão, dos salários daqueles trabalhadores menos qualificados, cujo nível está
vinculado ao mínimo.
A restrição salarial não se instituiu como a única estratégia adotada pelo governo
no combate à crise inflacionária. A limitação do déficit do orçamento da União foi
viabilizada pela diminuição dos investimentos públicos em um primeiro momento, além
de ser financiada, em grande parte, pela ampliação da dívida pública, o que foi
possibilitado pelo lançamento de títulos com reajustamento monetário.
Concomitantemente, ocorreram modificações no sistema de arrecadação estatal e no
sistema tributário, promovendo uma acentuada centralização dos impostos sob o
domínio da União, engendrando um aumento da receita do Governo. Perante o leque de
ações e estratégias, a inflação – que alcançou seu auge em 1964 – começou a regredir,
estabilizando-se em 1967.
Com a inflação controlada e institucionalizada, o governo começou a arrefecer
sua política de recessão, incluindo em seu escopo a adoção de uma postura de
favorecimento ao crédito, culminando com o retorno do crescimento econômico
nacional a partir do segundo semestre de 1967. De acordo com Singer (1989: 61):
o boom iniciado em 1968 teve como causa básica uma política liberal
de crédito que encontrou a economia, após vários anos de recessões,
com baixa utilização da capacidade produtiva, taxas relativamente
altas de desemprego e custo reduzido da mão-de-obra de pouca
qualificação (grifo do autor).
Essa nova fase caracterizada por taxas de crescimento elevadas e uma inflação
declinante foi ufanisticamente denominada de “milagre econômico” ou “milagre
139
80
O “milagre brasileiro” caracteriza-se como um período da história brasileira de acentuado crescimento
econômico. De acordo com Netto (2009a), o deslocamento da atenção nacional para a promoção do
desenvolvimento econômico pelo Governo foi uma solução à falta de legitimidade na esfera política, bem
como uma alternativa de arquitetar um consenso passivo.
140
Singer (1989) é taxativo ao afirmar que se existe algum modelo de fato novo no
Brasil, ele diz respeito, sobretudo, ao político. O advento do regime autocrático afasta-
se da experiência política democrática populista e inaugura um novo modus operandi de
feições autoritárias e hostis à democracia. Neste sentido, não é mera casualidade que em
meados de 1968, quando tem início a saga econômica milagrosa e o governo se deleita
com elevadas taxas de crescimento econômico, o regime ditatorial empreenda um
enrijecimento político antidemocrático, materializado pela publicação dos atos
institucionais, com destaque para o Ato Institucional nº. 05 (AI-5)81.
No princípio da década de 1970, o capitalismo foi acometido novamente por seu
problema endêmico de ininterruptas crises, ocasionadas pelo comportamento
“anárquico” dos mercados. Segundo Hobsbawm (1995: 393), “a história dos vinte anos
após 1973 é a de um mundo que perdeu suas referências e resvalou para a
instabilidade e a crise”. Os primeiros anos daquela década seriam marcados pelo
falecimento do modelo econômico baseado no pleno emprego e na intervenção estatal
na economia, culminando na explosão da crise econômica em 1973.
A maior parte dos programas de governos da década de 1970, bem como suas
políticas estatais, ostentava o entendimento de que a convulsão econômica tinha um
caráter provisório. Neste sentido, acreditavam que em um curto espaço de tempo seria
retomada a antiga prosperidade e crescimento. Diante daquele contexto apático, a única
concepção que se apresentava como uma provável alternativa ao colapso existente
advinha de uma minoria de teólogos econômicos ultraliberais82.
81
O referido instrumento legal concedeu ao regime militar poderes absolutos, tendo como consequência o
fechamento do Congresso Nacional por quase um ano e a cassação de diversos mandatos políticos. Digno
de nota é observarmos que os militares que tomaram o poder sob o discurso de assegurar a democracia,
adotavam uma linha de ação política totalmente antidemocrática. A Câmara de Comércio paulista apoiou
sem restrições o AI-5, afirmando que sua implementação era de suma importância para garantir a
estabilidade econômica e a manutenção dos investimentos externos no Brasil. Assim, evidenciava-se o
irrefutável alinhamento entre as frações de classe privilegiadas pela acumulação capitalista e as forças
repressivas do regime militar, que naquela altura torturavam um crescente número de cidadãos e violavam
os direitos democráticos.
82
Hobsbawm (1995) atenta sobre o apoio dado pelo recém-criado (1969) Prêmio Nobel de economia às
ideias do livre mercado irrestrito. Tal constatação é confirmada pela entrega do referido prêmio a
141
O cenário pós-crise de 1973 foi representado por uma polarização entre duas
concepções ideológicas concorrentes, a despeito de ambas, ao fim e ao cabo, almejarem
a perpetuação do sistema capitalista. De acordo com Hobsbawm (1995), tanto
keynesianos quanto neoliberais apresentavam argumentos econômicos que
extrapolavam a dimensão puramente técnica, transparecendo seu conteúdo ideológico.
Os keynesianos afirmavam que altos salários, pleno emprego e o
Estado de Bem-estar haviam criado a demanda de consumo que
alimentara a expansão, e que bombear mais demanda na economia era
a melhor maneira de lidar com depressões econômicas. Os neoliberais
afirmavam que a economia e a política da Era de Ouro impediam o
controle da inflação e o corte de custos tanto no governo quanto nas
empresas privadas, assim permitindo que os lucros, verdadeiro motor
do crescimento econômico numa economia capitalista, aumentassem.
De qualquer modo, afirmavam, a “mão oculta” smithiana do livre
mercado tinha de produzir maior crescimento da “Riqueza das
Nações” e a melhor distribuição sustentável da riqueza e renda dentro
dela; uma afirmação que os keynesianos negavam (HOBSBAWM,
1995: 399).
Friedrich von Hayek, em 1974, e a Milton Friedman, em 1976, ambos defensores do ultraliberalismo
econômico.
83
Segundo Habert (1996: 42), a dívida externa brasileira saltou de 12,5 bilhões de dólares, em 1974, para
43 bilhões, em 1978, alcançando algo em torno de 60 bilhões em 1980, tornando-se a maior do mundo à
época.
142
84
Habert (1996) demonstra que, conforme dados de 1975, 72 milhões de brasileiros (67% da população)
eram subnutridos.
85
Em 1970, de cada 1000 crianças nascidas vivas, 114 morriam em menos de um ano, tendência esta
crescente nos anos seguintes (HABERT, 1996: 12).
86
Segundo Habert (1996), em meados da década de 1970, o Brasil chegou a ser considerado o campeão
mundial de acidentes de trabalho. Os números sobre esse tema são sempre imprecisos, uma vez que as
empresas procuram ofuscar uma significativa parte desses acidentes. Entretanto, de acordo com a autora,
estima-se que das 36 milhões de pessoas que compunham a População Economicamente Ativa (PEA),
pelo menos 2 milhões sofreram algum tipo de acidente no ambiente de trabalho.
143
87
Conforme Diniz (1994: 220): “[...] a crítica à estatização enfatizaria o crescimento excessivo do Estado
brasileiro sob os governos militares, os excessos da intervenção estatal, sobretudo em alguns setores
como siderurgia, fertilizantes, transportes, comunicação e mineração, além de condenar vivamente o
gigantismo das empresas estatais. Os pronunciamentos criticavam a distorção do objetivo de todo sistema
capitalista, que deveria ser o desenvolvimento da livre iniciativa”.
88
De acordo com Loreiro (1992, apud DINIZ, 1994: 200-201), a ditadura militar (1964-85) ratificou dois
traços fundamentais na política brasileira. Um destes foi o estilo tecnocrático de gestão da economia,
fechado e excludente, reforçando a concepção acerca da supremacia da abordagem técnica e abrindo
caminho para a ascensão dos economistas notáveis às instâncias decisórias estratégicas para a definição
dos rumos do capitalismo industrial no País.
145
89
Carvalho (2012) também destaca o importante papel político desempenhado pela Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência (SBPC), fundada em 1948, que, a partir da década de 1970, começou a fazer
oposição ao governo em suas reuniões anuais, que congregavam cientistas e pesquisadores de diversas
áreas do conhecimento. De acordo com o autor, as reuniões anuais da entidade começaram a adquirir
crescente conotação política de oposição. Esse fato fez com que o governo suspendesse o apoio financeiro
concedido à entidade no ano de 1977, quando sua reunião anual ocorreu na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP), atingindo 6 mil participantes.
146
90
Manuel Francisco dos Santos (18 de outubro de 1933 a 20 de janeiro de 1983), o Mané Garrincha, foi
um futebolista brasileiro que se notabilizou por seus dribles desconcertantes, apesar do fato de ter suas
pernas tortas. Representou a seleção brasileira de futebol nas Copas do Mundo FIFA de 1958 e 1962,
sendo campeão em ambas edições.
148
91
Segundo Linhales (1996: 139): “O Diagnóstico, coordenado por Lamartine Pereira da Costa, abrangeu
os mais diferentes dados e setores relativos à Educação Física e aos esportes, a partir dos quais o poder
público poderia ‘determinar uma política nacional para o setor, fundada em bases científicas e racionais’”.
92
Diferentemente dos interesses que perpassavam os debates da década de 1970, o CBCE acredita que a
criação do CT-Esporte representa o estabelecimento de um novo padrão de financiamento para o setor,
151
93
O Esporte para Todos (EPT) não é uma invenção brasileira, uma vez que tem sua origem na Noruega,
em 1967, quando do lançamento da campanha TRIM, que buscava estimular as pessoas a sair do
sedentarismo. O EPT foi implementado no Brasil em 1977 para efetivar o esporte de massa a partir de um
convênio firmado entre o Departamento de Educação Física e Desportos (DED), o MEC e o Movimento
Brasileiro de Alfabetização (Mobral). Segundo Bracht (2005: 112-113): “Outro elemento de
determinação da diferenciação interna da instituição esportiva foi gerado pelas políticas esportivas do
Welfare State de alguns países europeus nas décadas de 60 e 70. Estas políticas tiveram como objetivo
expandir a prática do esporte, enquanto atividade de lazer, para a maioria da população. Incentivou-se o
surgimento de um movimento, através de campanhas, que posteriormente foi levado pela UNESCO para
o mundo todo e que ficou conhecido como o Movimento do Esporte para Todos - no Brasil inicialmente
apresentado via campanha do Mexa-se”.
153
Compreendemos que essa aliança pode ser justificada a partir de dois motivos,
quais sejam: primeiro, para “conter a autonomia que começava a ganhar força no
sistema esportivo”, e segundo, para implementar o “projeto de subordinação da
educação física escolar ao sistema esportivo” (LINHALES, 1996: 93). Ao longo do
governo Geisel, o DED sofreria algumas modificações burocrático-administrativas, até
a criação, em 1978, da Secretaria de Educação Física e Desportos (SEED), considerada
órgão central de direção superior do ministério.
154
política amparada pelo apoio popular; para esse objetivo utilizou-se do futebol. São
vários os relatos da figura presidencial frequentando estádios e partidas futebolísticas,
palpitando sobre a temática e realizando homenagens públicas aos jogadores da seleção.
Logo, se criou um cenário de aparente contradição, no qual um dos períodos ditatoriais
de maior índice repressivo é, simultaneamente, reconhecido como um momento de
elevados níveis de aceitação popular.
O triunfo da seleção brasileira sobre a equipe italiana por 4 a 1, na final da Copa
do Mundo FIFA de 1970, no México, foi bastante explorado pela propaganda daquele
governo, traduzida em slogans do tipo: “Ninguém segura este país” ou “Brasil, ame-o
ou deixe-o”94. Ao mesmo tempo, a vitória brasileira no campeonato mundial serviu
como instrumento de fortalecimento e adesão ao ideário governamental de “unificação
do território nacional”. Para essa tarefa o governo militar utilizou-se dos jogadores do
escrete brasileiro, que, naquela altura, tinham sido alçados à condição de heróis
nacionais95.
Outras duas ações que chamam a atenção dentro dessa relação entre Ditadura
Militar e futebol dizem respeito à construção desregrada de vários estádios esportivos
pelo país e à criação do Campeonato Brasileiro de Futebol nos moldes em que é
disputado atualmente. Damo (2006) pondera que não é mero acaso que o primeiro
campeonato brasileiro de clubes tenha sido disputado em 1971, durante os chamados
“anos de chumbo”. Emblemático dos interesses em jogo é notarmos que, preocupados
em manipular predicados nacionalistas, os militares exigiram a participação de clubes
de todos os estados do Brasil na primeira edição do Campeonato Brasileiro de Futebol,
incluindo localidades sem qualquer tradição naquela modalidade esportiva.
Os vínculos de subserviência estabelecidos entre a política esportiva e o projeto
de desenvolvimento capitalista nacional, presentes na década de 1950, permanecem
inalterados na ditadura militar, ganhando apenas novas conformações. Entretanto,
Veronez (2005) chama atenção para o fato de que o setor esportivo – assim como outros
94
A interferência do regime militar sobre a seleção brasileira de futebol estendia-se até mesmo sobre a
comissão técnica da equipe. Em relação a tal afirmação, é esclarecedor relembrarmos que o técnico que
classificou o Brasil para a Copa de 1970 foi João Saldanha, que acabou substituído por Mario Zagalo
durante a competição. Alguns acreditam que a troca de Saldanha por Zagalo teria sido resultado de uma
suposta interferência de Médici. Naquela época, o então presidente da República teria dado palpite na
escalação do time feita por Saldanha, que teria respondido que Médici mandava nos Ministérios, mas que
quem mandava na seleção era ele [Saldanha].
95
A indústria cultural brasileira, que se mostrava em franco desenvolvimento, também encontrou na
figura dos jogadores de futebol um bom filão a ser explorado, transformando-os em “heróis” da
propaganda e do consumo, tomando emprestado sua “imagem vitoriosa” para vender de cigarros a
eletrodomésticos.
156
96
José Paulo Netto, em sua obra Crise do Socialismo e Ofensiva Neoliberal, ao analisar a crise do
socialismo, faz interessantes observações sobre suas razões e consequências. Para o autor, embora a crise
tenha atingido o campo socialista como um todo, ela não deve ser equalizada, pois cada um dos Estados
constitutivos do chamado socialismo real “experimentava um complexo de tensões e contradições que
[...] possuía causalidades, conexões e rebatimentos próprios, relacionados às particularidades (históricas,
econômicas, sociais, políticas e ideoculturais) das várias sociedades nacionais” (NETTO, 1993: 13). De
acordo com o autor, embora a crise do socialismo real possa ser explicada pelas suas especificidades
internas, houve toda uma tentativa, por parte do pensamento burguês, de caracterizá-la como o fim da
alternativa socialista e das formulações teóricas que a embasaram, sobretudo, o marxismo.
97
Hobsbawm (1995) recorda que a década de 1980, por meio dos conflitos Inglaterra-Argentina de 1983
e do Irã-Iraque de 1980-1988, demonstrou que a possibilidade de guerras que não envolvessem o
confronto global de grandes superpotências não estava descartada. Os anos após 1989 confirmariam tal
pressuposto, registrando um número singular de operações militares por diferentes partes do globo e
ratificando o importante papel dos gastos destrutivos para a acumulação capitalista. Hobsbawm (1995:
539) assevera que “o perigo de guerra global não havia desaparecido. Apenas mudara [de região]”.
158
Para Rodrigues (1994: 16): “Os caminhos adotados para a abertura implicavam
o restabelecimento de alguns aspectos institucionais básicos”. Entre tais aspectos, a
autora destaca a reforma partidária de 1979 e o retorno das eleições diretas para
governador, aprovado pelo CN no final de 1980. A reforma partidária de 1979 suprimiu
o modelo bipartidário e resultou na organização de partidos com maior clareza quanto
aos interesses e frações de classe que representavam98. A aludida reforma também tinha
98
O Partido Democrático Social (PDS), antiga Arena, apoiava o governo e reunia setores da burguesia e
proprietários rurais. O antigo MDB, em torno do qual durante a ditadura agrupava-se a oposição de
diversos matizes, tornou-se Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Além disso, outros
partidos se formaram em torno de antigos políticos – como o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), de
Ivete Vargas, o Partido Democrático Trabalhista (PDT), de Leonel Brizola, e o Partido Popular (PP), de
Magalhães Pinto e Tancredo Neves, liberal-conservador, reunindo parte da alta burguesia brasileira e que,
posteriormente, foi absorvido pelo PMDB. Em 1982, foi concedido registro ao Partido dos Trabalhadores
159
(PT), originado das experiências de reivindicações dos metalúrgicos do ABC paulista (RODRIGUES,
1994: 16).
99
O referido documento – cuja autoria pertencia a Ulysses Guimarães e Teotônio Vilela – defendia as
“Diretas já”, a moratória e a constituinte.
100
As “Diretas Já” dizem respeito à mobilização social, ocorrida em 1983-1984, que reivindicava eleições
presidenciais diretas no Brasil. Adiante, voltaremos a abordar mais detidamente esse momento da história
nacional.
101
A Frente Liberal tratava-se de uma fração partidária liderada por Aureliano Chaves e Marco Maciel,
que futuramente se transformara no Partido da Frente Liberal (PFL), atualmente denominado de
Democratas (DEM).
160
oposição que haviam liderado as “Diretas já” com o apoio da esquerda faziam questão
de esquecê-la, aceitando a permanência das eleições indiretas.
Concomitantemente, Tancredo Neves proferia declarações nas quais se dispunha
a liderar as negociações entre os setores oposicionistas e o governo para a formação de
um governo de transição que restaurasse a ordem institucional. Nesse momento,
brotavam os indícios de uma solução conciliatória de interesses. Para Mazzeo (1995:
56), a movimentação junto ao Colégio Eleitoral, para a eleição de Tancredo Neves e
José Sarney, ratificou dois aspectos, constantemente presentes na história da sociedade
brasileira, quais sejam: “primeiro, a debilidade das organizações populares e dos
partidos de esquerda. [...]. segundo, a burguesia brasileira mais uma vez deixou clara
sua sagacidade, que os séculos de poder consolidaram”.
A despeito das eleições serem disputadas no sistema indireto, Tancredo Neves
não hesitou em realizar uma série de comícios em várias capitais, algo pouco usual
nesse formato eleitoral. Essa estratégia serviu para a formação de uma imagem,
posteriormente consolidada pela imprensa de “salvador da pátria” e de um “pai dos
pobres”, ressuscitando o verniz populista da era Vargas. Essa construção simbólica era
favorecida pelo anseio da população brasileira por uma solução/saída democrática dos
anos de autocracia militar e pela identificação do candidato com a campanha das
“Diretas já”.
Tancredo Neves foi eleito pelo Colégio Eleitoral, com uma ampla diferença de
votos em relação a seu adversário, Paulo Maluf. Passados 21 anos, o Brasil voltava a ser
governado por um presidente civil. Mazzeo (1995) afirma que a vitória da denominada
moderação, de fato, simboliza o êxito da institucionalização da autocracia burguesa, em
substituição à forma desgastada do bonapartismo102. De acordo com o autor, não foi
consolidada a transição entre a legalidade burguesa para a democracia burguesa plena,
ao contrário, solidificou-se a “conciliação” nacional, com a subjugação da democracia à
“moderação”, que se resume à continuidade do tradicional liberal-conservadorismo
assumido pelas classes detentoras do poder no Brasil.
102
Para Mazzeo (1995), o bonapartismo brasileiro, assim como o francês, surgiu com o intuito de
suprimir qualquer perspectiva de revolução. Entretanto, segundo o autor, o modelo brasileiro assumiu
características similares à variante bonapartista alemã, representada por Bismarck, uma vez que ambas
pretendiam arrefecer os movimentos populares e, dessa forma, assumir um caráter contrarrevolucionário.
A diferença entre os dois arquétipos bonapartistas repousa no fato de que a burguesia brasileira, ao
contrário da alemã, decidiu ceder seu poder econômico para manter seus privilégios políticos. Daí ser o
tipo bonapartismo brasileiro um bonapartismo colonial, reflexo da própria debilidade intrínseca da
estrutura de produção latifundiária e monocultora.
161
103
Cabe destacar que tais representantes da classe capitalista foram posteriormente procurados por Sarney
para negociar o reescalonamento da dívida. Neste sentido, aquela opção fez com que – ao final do
governo – a cifra total do pagamento de juros superasse o montante absoluto da dívida.
104
De acordo com Barelli (1986), o menor crescimento das importações, sobretudo nos últimos meses de
1985, é reflexo da redução das compras de petróleo, uma vez que essas caíram 23,8% devido tanto à
redução do preço quanto ao volume importado.
163
governo viu-se obrigado a optar pela interrupção do pagamento dos juros da dívida até
que fosse capaz de negociar condições “mais justas” de amortização.
É importante ressaltar que a definição acerca das diretrizes econômicas
protagonizou o primeiro grande embate dentro do novo governo, cindindo os grupos
políticos que lhe davam sustentação em duas proposições díspares. Para Mantega
(1986), o debate sobre a política econômica da Nova República constituiu dois grupos,
os estruturalistas e os ortodoxos. No cerne das discussões estavam a contenção dos
gastos públicos e a supressão do déficit estatal. Os ortodoxos buscando “seguir à risca
os ditames ‘saneadores’ do FMI, de zerar o déficit e conter as despesas estatais a
qualquer custo, e os estruturalistas brigando pela manutenção de nível razoável de
dispêndio público, de modo a não aprofundar a recessão” (IDEM, IBIDEM: 34).
De acordo com Singer (1986), os primeiros anos da economia da Nova
República registraram uma situação contraditória composta por dois modelos
antagônicos, representada sinteticamente pela figura de uma economia estruturada para
crescer para fora, mas que de fato estava crescendo para dentro. Estimuladas pelas altas
taxas de lucro – superiores à taxa de juros – as empresas privadas nacionais mantiveram
alto investimento. Porém, condicionaram a manutenção daqueles investimentos à
perpetuação de lucros elevados. Singer (1986: 21) ressalta que:
[...] essa condição é incompatível com a recuperação dos salários reais
simultaneamente, o que por sua vez é imprescindível para que o
mercado interno se expanda já que não dá para crescer para fora
enquanto a economia mundial mantiver um crescimento lento.
105
O “gatilho” consistia em um mecanismo de reajustamento salarial, que propunha reajustes automáticos
sempre que a inflação atingisse os 20%.
165
O período da gestão Sarney é permeado por uma paisagem formada por muitos
contrastes e disputas. Se, por um lado, teve seu início marcado pelas promessas de
redemocratização e implementação de políticas que se direcionavam para saldar a
secular dívida social existente no país e dar curso ao desenvolvimento econômico, por
outro lado, teve seu epílogo assinalado pela obtenção de pífios resultados concretos.
Diante desse cenário de abatimento e consternação social, retomamos a primeira
árdua tarefa atribuída ao Governo Sarney, a organização da ANC. O processo de
construção da referida Assembleia orbitava em torno de pontos polêmicos, que
versavam principalmente sobre: a) a estabilidade de emprego; b) a jornada de trabalho;
c) a liberdade sindical e de greve; d) a reforma agrária; e) o sistema de governo a ser
adotado; f) a duração do mandato presidencial; e, g) o sistema eleitoral. Essas temáticas
acabaram por dividir as opiniões do plenário. As discordâncias engendraram rupturas e
conformando dois blocos partidários com posições e projetos políticos bem distintos.
As idiossincrasias que permearam os debates da Constituinte se
consubstanciaram em limites inextrincáveis à Carta Constitucional. Neste sentido, sem
embargo da importância deste documento - sobretudo no que tange ao reconhecimento
dos direitos -, é necessário destacar que os avanços consignados no texto constitucional
não se consubstanciaram natural e imediatamente em ações estatais favoráveis às
classes subalternas. O jurista Fábio Konder Camparato, citado por Rodrigues (1994:
28), recorda que “embora a nova Constituição tenha ampliado direitos e liberdades
individuais, ela atribui a garantia de tais direitos ao Estado”. Tal característica impõe à
classe trabalhadora e suas representações o desafio de manter uma ação organizada para
pressionar e controlar as deliberações estatais.
Segundo Draibe (1995), as proposições constitucionais sinalizam - à primeira
vista - um deslocamento que vai do modelo meritocrático-particularista em direção ao
modelo institucional-redistributivo, ou seja, em direção a uma forma mais universalista
e igualitária de organização da proteção social no país. “Isto porque, vistas em
conjunto, as inovações introduzidas sugerem um adensamento do caráter redistributivo
das políticas sociais, assim como de uma maior responsabilidade pública na sua
regulação, produção e operação” (IDEM, IBIDEM: 211). Todavia, a própria autora
167
conclui que o alcance desses avanços foram limitados pelas determinações econômicas
da inflação e da crise, bem como pelas políticas concebidas para administrá-las.
As eleições municipais, previstas para o ano de 1988, constituíam-se num
momento singular para que a classe trabalhadora e outros setores de representação
popular provassem sua unidade/mobilização e reafirmassem o grau de insatisfação com
o modus operandi da política nacional. Os resultados satisfatórios obtidos por alguns
setores oposicionistas nessas eleições ratificaram a insatisfação popular tanto com a
histórica hegemonia política exercida pelas elites brasileiras, quanto pela sua exclusão
nos processos decisórios envolvendo as “Diretas Já” e a ANC, além de abrir espaço para
a polaridade política imprescindível à livre expressão das forças sociais.
Após 29 anos, os brasileiros vivenciavam novamente a experiência de eleger seu
representante máximo. O excessivo número de concorrentes produziu um cenário
entrecortado por múltiplos matizes políticos, composto por propostas e concepções
políticas distintas e, por vezes, radicalmente opostas. Dentre os pleiteantes ao cargo de
presidente, encontravam-se aqueles cuja experiência remontava ao período populista e
que de alguma forma tinham se oposto ao regime militar; outros, que construíram suas
carreiras políticas durante a vigência da ditadura e tinham ocupado cargos eletivos por
indicação indireta, alguns candidatos marcados por uma manifesta posição
conservadora, bem como aqueles – ainda que em minoria – que representavam as
demandas da classe trabalhadora e, por conseguinte, localizavam-se à esquerda política.
Para Oliveira (1992), o primeiro turno eleitoral não pode ser considerado um
conflito de classes.
A quantidade de candidatos e o espectro político que representavam
apelavam menos a conteúdos de classe – com insólita exceção da
Frente Brasil Popular – e mais a diferentes variações de agregação de
interesses, propriamente partidários, ou setoriais, ou regionais (IDEM,
IBIDEM: 22).
106
O primeiro turno das eleições de 1989 contou com 21 candidatos. Os cinco mais votados foram: Collor
(PRN) - 28,52%, Lula (PT) - 16,08%, Leonel Brizola (PDT) - 15,45%, Mário Covas (PSDB) – 10,78% e
Paulo Maluf (PDS) – 8,28%.
107
Para Senra (2001: 47-48): “[...] Collor foi não apenas o primeiro candidato oriundo do meio midiático,
mas o primeiro ‘a usar uma estratégia coerente de marketing’ para conceber sua campanha, um
planejamento detalhado a ponto de abranger seus gestos (o V da vitória), seu discurso (“minha gente”), as
suas cores (da bandeira nacional) e a música de seus comícios”.
169
Para Bresser Pereira (1995), o impeachment de Collor não foi consequência dos
insucessos da equipe governamental e do próprio presidente no direcionamento da
política econômica e na estabilização da economia. Sua cassação é corolário das
comprovadas acusações de corrupção, que transpareceram na figura de um presidente
discrepante e controverso, absolutamente incapaz de separar a esfera pública de seus
interesses particulares.
Ao subestimar os meios políticos necessários para sua consecução, a estratégia
neoliberal do Governo Collor assumiu caráter utópico. Equívoco estratégico clarificado
pela soberba à política e pelo intento de impor seus objetivos por mecanismos
autocráticos. Em resumo, a gestão presidencial de Collor conformou uma transição
entre dois momentos distintos da política brasileira, o período antecessor no qual
predominou a democratização política e o momento pós-eleições de 1989, que teve
como seu impulso básico a liberalização econômica.
Mesmo que existisse controvérsia sobre a essência neoliberal das políticas
econômicas e da reforma administrativa do Governo Collor, é possível afirmar –
lançando mão de uma análise pouco aprofundada – que tais ações foram precursoras do
projeto neoliberal no Brasil. Projeto que seria efetivamente implantado e hipertrofiado
pela gestão presidencial de Fernando Henrique Cardoso, conforme trataremos
posteriormente. Para Oliveira (1992: 162): “Longe de ser o primeiro presidente de um
Estado moderno e renovado, Collor na verdade foi o último presidente de um Estado
falido, que sua pirotecnia e sua megalomania exibiram quase obscenamente”.
Os ares progressistas do início da década de 1980 e do advento do processo de
redemocratização também sopraram sobre a Educação Física, fazendo com que o caráter
autoritário, burocrático e seletivo do esporte brasileiro passasse a ser identificado - em
diversos níveis e por diferentes atores - como uma enfermidade a ser expurgada.
Atitudes de protesto e crítica ao modelo esportivo vigente marcaram o período, que
inclui o último governo militar e o início da Nova República. Observa-se uma aparente
172
De acordo com Linhales (1996), uma parte das críticas ungidas nesse período foi
estimulada pelo “Panorama do Esporte Brasileiro”. A referida ação, de iniciativa do
Deputado Márcio Braga, na Comissão de Esporte e Turismo da Câmara dos Deputados,
ocorreu em outubro de 1983 e promoveu um ciclo de debates em torno de seis
diferentes painéis relacionados à temática esportiva109. Cabe destacar que, segundo
Linhales (1996), conquanto tenham sido realizadas muitas considerações sobre o
sistema esportivo formal e o esporte de alto rendimento, foram escassas as apreciações
acerca da socialização do esporte e de sua realização como direito social.
A despeito das críticas, sob a vigência da Lei nº. 6.251/1975 e do Decreto nº.
80.228/1977, o Estado, por meio da SEED/MEC, continuava a priorizar o
financiamento para esporte de alto rendimento110. Concomitantemente, observa-se
naquele período um crescimento do investimento de empresas privadas em diferentes
modalidades esportivas. Esse interesse é impulsionado pela possibilidade de equipes
108
Os reflexos dessas críticas podem ser verificados na publicação das Diretrizes Gerais para a Educação
Física/Desporto – 1980/1985. O referido documento: “Embora preservando ainda os mesmos subsistemas
– Educação Física, Desporto (de alto rendimento) e Esporte para Todos – as novas Diretrizes
questionavam o modelo piramidal que embasou essa forma de organização, afirmando que cada um dos
três níveis possui um fim em si mesmo, e que o grau de desenvolvimento do setor não deveria ser
determinado pelas vitórias e recordes esportivos” (LINHALES, 1996: 162).
109
Os painéis temáticos que compuseram o ciclo de debates foram: 1) A legislação esportiva; 2)
Profissionalismo no futebol e a estrutura atual; 3) Treinadores, árbitros, auxiliares e torcedores; 4) O
jogador de futebol profissional; 5) O esporte profissional (estrutura); 6) A Educação Física na formação
do atleta, massificação e recreação.
110
Para a verificação dos dados sobre a referida priorização orçamentária, cf. Caran (1989).
173
111
“A comissão foi composta por 33 membros, presidida por Manuel José Gomes Tubino, então
Presidente do Conselho Nacional de Desporto (CND), e teve como Secretário-Executivo o Coronel
Octávio Teixeira. Embora a composição da comissão tenha sido apresentada por seu Presidente como
capaz de integrar ‘personalidades originárias dos mais variados setores e regiões de procedência, todos
com larga vivência no campo esportivo’, o que se observa é uma heterogeneidade de atores, que, embora
possuíssem notoriedade nacional e, por vezes, internacional, não podem ser necessariamente considerados
como representantes da pluralidade de interesses que permeava o setor esportivo” (LINHALES, 1996:
172, grifo da autora).
174
112
a) reconceituação do esporte e sua natureza; b) redefinição do papel dos diversos segmentos e setores
da sociedade e do Estado em relação ao esporte; c) mudanças jurídico-institucionais; d) carência de
recursos humanos, físicos e financeiros, comprometidos com o desenvolvimento das atividades
esportivas; e) insuficiência de conhecimentos científicos aplicados ao esporte; e, f) imprescindibilidade da
modernização de meios e práticas do esporte.
175
113
De acordo com Veronez (2005: 289): “[...] a criação da Secretaria de Desportos, vinculada à estrutura
da Presidência da República, era uma demanda antiga das entidades esportivas (confederações e
federações), que queriam uma estrutura administrativa específica para tratar das questões do esporte, e já
tinha sido contemplada nas propostas elaboradas pela Comissão de Reformulação do Esporte, em 1985”.
176
na sua mais expressiva queda da taxa de lucro, bem como no abalo ao projeto
hegemônico da classe dominante.
Segundo Antunes (2009), para além dessas sequelas, a crise capitalista dos anos
1970 decretou a exaustão do padrão de acumulação taylorista/fordista de produção;
contribuiu para a hipertrofia da esfera financeira, com relativa autonomia frente aos
capitais produtivos; provocou o reordenamento do Estado Social; e estimulou o
incremento das privatizações. Antunes (2009) afirma que a busca pela reversão do
colapso capitalista convergiu em um processo de reorganização do capital e de seu
fundamento ideológico e político. Essa reformulação teve como aporte ideopolítico o
receituário neoliberal, tendo como expressões conspícuas a privatização do Estado, a
desregulamentação dos direitos trabalhistas e o intenso processo de reestruturação
produtiva das relações trabalhistas.
De acordo com Therbon (2008: 182):
início dos anos 1980, “a crise de dívida vai promover o FMI ao papel de tutor das
políticas econômicas dos países em desenvolvimento” (SALVADOR, 2010b: 45).
Face ao exposto, coube aos EUA aplicar – por intermédio dos organismos
internacionais e norteados pelas proposições do Consenso de Washington114 – o ajuste
estrutural na América Latina. Chesnais (1996: 41) afirma que: “foram eles [os Estados
Unidos], então, que impuseram, graças às suas posições no FMI e no Banco Mundial,
as políticas de ajuste estrutural, em primeiro lugar, e de liberalização e de
desregulamentação, em seguida, aos países mais fracos”. Sucintamente, Belluzo (1993:
18) descreve em que consiste o amoldamento imposto à América Latina:
Um conjunto, abrangente, de regras de condicionalidade aplicadas de
forma cada vez mais padronizada entre os países e regiões do mundo,
para obter, o apoio político e econômico dos governos centrais e dos
organismos internacionais. Trata-se também de políticas
macroeconômicas de estabilização acompanhadas de reformas
estruturais liberalizantes.
114
Segundo Alconfarado (1998: 102-103): “O Consenso de Washington designa uma estratégia de
ajustamento econômico neoliberal que prevê três passos a serem dados na seguinte ordem: 1)
Estabilização da economia (combate à inflação); 2) Realização de reformas estruturais (privatizações,
desregulamentação de mercados, liberalização financeira e comercial); e 3) Retomada dos investimentos
estrangeiros para alavancar o desenvolvimento”.
179
De acordo com Alcoforado (1998: 36), o que se verificou, na prática, foi que o
Governo Itamar “não reverteu as desigualdades sociais, não promoveu o crescimento
econômico nacional e ampliou a abertura econômica brasileira em relação ao exterior,
em vez de implementar uma estratégia gradualista conforme anunciado”. O Governo
avançou no sentido de se aproximar das teses neoliberais consignadas no Consenso de
Washington, sendo incapaz de promover o crescimento da economia nacional. No
entanto, a estabilidade macroeconômica prometida foi alcançada por Itamar Franco com
a introdução do Plano Real, tendo no comando do MF aquele que viria a ser seu
sucessor: Fernando Henrique Cardoso (FHC).
Para Netto (1999: 78), o insucesso – em todas as latitudes – do Governo Collor
“teve a função de deixar claro para a burguesia a necessidade de um projeto político
orgânico e menos imediatista”. Frente àquela conclusão, a gestão Itamar assumiu a
figura de um laboratório onde os experimentos realizados almejavam produzir uma
liderança política apta para emprestar a este projeto de hegemonia uma feição mais
tolerável. O êxito inicial do Plano Real edificou FHC na condição de homem confiável
para conduzir o neoprojeto burguês para o Estado brasileiro.
180
Façamos um pequeno parêntese acerca das eleições de 1994, conquanto esse não
seja o objetivo deste subcapítulo. Alcoforado (1998) identifica naquelas eleições
presidenciais a disputa entre duas visões de mundo diametralmente opostas: a primeira -
representada pelo bloco liderado por FHC – almejava por em prática as teses neoliberais
de abertura do mercado, de privatização das estatais e de implementação do Estado
Mínimo, ratificando a posição de subordinação do Brasil aos interesses das empresas
transnacionais com base no Consenso de Washington. Por outro lado, a segunda visão –
defendida pelo bloco encabeçado por Lula – visando promover profundas mudanças
econômicas e sociais beneficiando a classe trabalhadora e as camadas marginalizadas da
população, propunha uma postura autônoma dentro do contexto de integração do país à
economia mundial.
As significativas diferenças presentes nas duas propostas de governo poderiam
favorecer o florescimento de um amplo debate no âmago da sociedade brasileira acerca
das orientações de um projeto de nação, estimulando a participação social na definição
das atribuições estatais, na reivindicação pelo acesso aos direitos sociais, na exigência
de um conjunto de reformas de base necessárias ao desenvolvimento econômico
sustentado, ou seja, na efetiva concretização da redemocratização iniciada em 1988. Em
contrário, todas essas possibilidades foram ofuscadas pelos impactos produzidos pela
estabilização monetária do Plano Real, pela forte aliança conservadora e pela poderosa
campanha midiática que garantiram o sucesso eleitoral de FHC, que obteve a vitória no
primeiro turno das eleições. Behring (2008: 155) relembra que,
[...] o Plano Real promoveu, poucos meses antes da eleição, uma
verdadeira chantagem eleitoral: ou se votava no candidato do Plano ou
estava em risco a estabilidade da moeda, promovendo-se a volta da
inflação, a ciranda financeira e escalada dos preços. Os brasileiros,
traumatizados com uma inflação de 50% ao mês (junho de 1994) e
esgotados com a incapacidade de planejar sua vida cotidiana, votaram
na moeda e na promessa de que, com a estabilidade, viriam o
crescimento e dias melhores.
Singer (1999) assevera que o Plano Real tornou-se palatável à opinião pública
exatamente por não ser autoritário como foram seus antecessores, característica
reforçada pela possibilidade que existia de emendá-lo e aperfeiçoá-lo nas casas do CN.
Além disso, seu sucesso inicial foi potencializado pela conjuntura internacional
favorável de vultosa transferência de capitais para os países em desenvolvimento –
cunhados pelo FMI de “mercados emergentes”.
181
reforma estatal desde sua gênese. Neste sentido, o ex-ministro tratou de nominar sua
proposta como social-liberal.
É um Estado social-liberal porque está comprometido com a defesa e
a implementação dos direitos sociais definidos no século XIX, mas é
também liberal porque acredita no mercado, porque se integra no
processo de globalização em curso, com o qual a competição
internacional ganhou uma amplitude e uma intensidade historicamente
novas, porque é resultado de reformas orientadas para o mercado
(BRESSER PEREIRA, 1996, apud BEHRING, 1998: 173).
com ênfase nas normas e processos em detrimento dos resultados” (BEHRING, 2008:
180-181). Behring (2008) enfatiza que os alvos da crítica promovida pelo PDRAE são o
modelo de descentralização consignado na CF e a legislação trabalhista; o primeiro
estimularia o comportamento dependente e parasitário dos estados e municípios, já o
segundo teria um caráter protecionista e inibidor do “espírito empreendedor”.
Tendo como referências as críticas ao engessamento e hipertrofia estatal, o
PDRAE propõe uma nova estrutura estatal baseada em quatro setores:
[...] o Núcleo Estratégico, que formula as políticas públicas, legisla e
controla sua execução; o Setor de Atividades Exclusivas, onde são
prestados serviços que só o Estado pode realizar; o Setor de Serviços
Não-Exclusivos, onde o Estado atua simultaneamente com outras
organizações públicas não estatais e privadas, como as universidades,
hospitais, centros de pesquisa e museus; e o Setor de Bens e Serviços
para o Mercado, a exemplo de empresas não assumidas pelo capital
privado (BEHRING, 2008: 182).
Dentro desse arquétipo, fica claro o desprestígio da área social e científica, uma
vez que esses setores são rotulados pela alcunha de serviços públicos não estatais, os
quais seriam oferecidos à população por meio das organizações sociais115. Um
entendimento reforçado pela proposição de transferência dos servidores públicos dessas
áreas para o regime celetista, adaptando-os às regras e dinâmica do setor privado.
Segundo Behring (2008), outro problema da estrutura organizacional proposta
está na separação entre formulação e execução das políticas, onde o núcleo duro do
Estado formula e as agências autônomas implementam. Tal arquitetura reforça o modelo
de gestão de políticas top down geradas exogenamente pelo governo e sem uma
consulta diagnóstica das demandas e especificidades locais. Ademais, de acordo com
Diniz (1998, apud BEHRING, 2008: 206):
A ênfase na capacidade técnica concentrada nos altos escalões
burocráticos e o reforço do núcleo duro do Estado acentuariam o
divórcio com a política percebida, crescentemente, como fonte de
distorções e de irracionalidade ou ainda como foco de práticas
predatórias, como clientelismo e a defesa de privilégios corporativos.
115
De acordo com Bressan (2002: 379-380): “trata-se [s organizações sociais] de uma parceria entre
governo e sociedade, que permite a instituições sociais assumir o controle e a administração de atividades
e órgãos públicos. [...]. A fórmula básica dessas organizações é: contratar funcionários pelas leis da
iniciativa privada e realizar compras conforme os princípios da administração pública”. O próprio autor se
incumbe de elogiar o referido modelo de gestão a partir da seguinte informação: “O sistema permitiu ao
governo [de São Paulo] entregar mais de uma dúzia de novos hospitais sem a contratação de um único
funcionário” (IDEM; IBIDEM: 380). O argumento utilizado pelo autor, além de deixar manifestas suas
convicções ideopolíticas, é no mínimo incompreensível. Afinal, qual a finalidade para a população de
hospitais sem funcionários?
186
116
Teixeira (2005) alerta que o montante de R$ 85,2 bilhões, arrecadado com as privatizações e divulgado
pelo governo FHC, não contabiliza as despesas inerentes ao processo de desnacionalização. A autora
demonstra que a somatória dessas despesas é da ordem de R$ 87,6 bilhões, resultando, portanto, em um
prejuízo aos cofres públicos.
188
vulnerabilidade aos choques externos, agravado pela tendência para importar das
indústrias desnacionalizadas.
Segundo Alcoforado (1998), a privatização das estatais é parte constitutiva da
estratégia neoliberal de busca pelo Estado Mínimo, situação na qual a “mão invisível”
do mercado dita as decisões de investimento no país. Para os defensores do
neoliberalismo, a esfera econômica deve estar apartada da ação reguladora estatal. Cabe
destacar que, no caso brasileiro, a retirada do poder regulatório do Estado no âmbito
econômico e a privatização em massa das empresas estatais contribui para a escassez de
instrumentos que possibilitem a minimização das disparidades sociais e regionais de
renda por meio de políticas sociais, ainda que na perspectiva focalista e transitória.
Conforme Fagnani (1999), tem-se um entendimento generalizado de que a
política social do Governo FHC limitou-se ou centrou-se no Programa Comunidade
Solidária117. O próprio presidente refutava essa compreensão, afirmando que o
Comunidade Solidária possuía foco no compromisso de combate a fome e a pobreza e
que, portanto, o conjunto dos programas governamentais se estendiam para além dessa
ação. Naquela oportunidade, FHC também ressaltava que a estratégia para a área social,
além de incorporar medidas de caráter universal, não estava dissociada da política
econômica.
Na tentativa de ratificar a união entre social e econômico o Governo FHC
buscou traçar uma estratégia de desenvolvimento social, consubstanciada em
documento cujo objetivo era “sistematizar as diretrizes básicas do governo do
Presidente Fernando Henrique Cardoso para a área social e apresentar, de forma
sucinta, suas principais políticas e programas” (BRASIL, 1996: 13). O referido
documento também se encarregava de recusar o rótulo “neoliberal” ao explicitar que a
política social proposta tem “inspiração nitidamente socialdemocrata” e objetiva
“caminhar, tanto quanto possível, na direção dos ideais de uma sociedade de bem-
estar” (Brasil, 1996: 19).
No entendimento de Draibe (2003), o documento “Uma estratégia de
desenvolvimento social”, publicado em março de 1996, exprime opiniões e propostas
apresentadas desde o início do governo. De acordo com a autora, nesse documento está
presente:
117
Segundo Fagnani (1999: 172), “o modelo institucional e operacional dessa vertente da ação
governamental foi inspirado na experiência de países subdesenvolvidos que adotaram programas
compensatórios para minimizar os efeitos negativos dos programas neoliberais de ajustamento econômico
e de reforma do Estado”.
189
Olhando para as ações do Governo FHC nas áreas econômica e social, Fagnani
(1999: 159) reconhece uma “extrema incompatibilidade entre o programa de
ajustamento macroeconômico – central e hegemônico – e a estratégia de
desenvolvimento social”. Em síntese, a manutenção da estabilidade e a retomada do
crescimento econômico – entendidas pelo governo como condições sine qua non para a
promoção do bem-estar social – mostraram-se conflitantes e implicitamente
irreconciliáveis no programa de ajuste macroeconômico adotado. Na prática, em um
cenário tingido pelo agravamento da exclusão social, o que se verificou - em curto
espaço de tempo de Governo FHC – foi o crescimento do endividamento interno e
externo de forma substancial, restringindo os raios de ação do Estado, em geral, e das
políticas sociais, em particular.
Segundo Fernandes et al. (1998, apud FAGNANI, 1999), é bastante ilustrativo
das ações prioritárias do Governo FHC e da secundarização das políticas sociais a
constatação de que, entre 1995 e 1997, a participação das despesas financeiras da União
no dispêndio total consubstanciado no Balanço Geral da União, saltou de 36,8% para
57,8%; ao passo que a participação relativa do gasto social federal subiu apenas 0,9%.
190
Diante desse contexto, Fagnani (1999: 174) conclui que: “A marca desta década é a
convergência da exclusão social com a supressão de direitos e a fragilização da
capacidade de intervenção do Estado via políticas sociais”.
Segundo Netto (1999), a direção social do primeiro mandato do Governo FHC
colide com os interesses e as aspirações da massa de trabalhadores brasileiros, o que é
comprovado pela condução da sua política social. Para o autor, FHC se encarregou de
inviabilizar a construção de um Estado com amplas responsabilidades sociais e
garantidor de direitos sociais universalizados, sentenciando sua gestão à implementação
do projeto político do grande capital.
Tratava-se de implementar uma orientação política macroscópica que,
sem ferir grosseiramente os aspectos formais da democracia
representativa, assegurasse ao Executivo federal a margem de ação
necessária para promover uma integração mais vigorosa ao sistema
econômico mundializado – integração conforme às exigências do
grande capital e, portanto, sumamente subalterna (NETTO, 1999: 79,
grifo do autor).
118
De acordo com Veronez (2005: 332): “Dos 222 convênios celebrados pelo INDESP, 134 foram feitos
com entidades administradoras do esporte (confederações e associações esportivas), 23 com
universidades, 32 com prefeituras, 10 com secretarias de Estados, 6 com o Distrito Federal, 15 com
entidades filantrópicas e um com o sistema ‘s’”.
193
Problemas similares aos descritos acima eram uma constante desde a criação do
INDESP, órgão que sempre esteve às voltas com denúncias e suspeitas de improbidade
administrativa como, por exemplo, nos casos de superfaturamento de convênios em
1996, episódio que culminou com a exoneração de parte da cúpula da autarquia,
inclusive seu presidente. As auditorias realizadas no órgão constataram a ocorrência de
novos atos ilícitos e, em 1999, devido à denúncia do esquema de favorecimento para
liberação de autorização para funcionamento de bingos, o Governo Federal decidiu
extingui-lo. Em outubro de 2000, o referido Instituto foi extinto e substituído pela
Secretaria Nacional de Esporte (SNE), que permaneceu ligada à estrutura do MET.
De acordo com Veronez (2005: 338): “É interessante perceber que esses
problemas de gestão não interferiram nas ações referentes ao esporte de rendimento”.
O autor constata que, salvo a exceção do ano de 1996, ações efetivamente
implementadas, como a realização de competições nacionais e internacionais, atingiram
altos percentuais de execução orçamentária (vide Tabela 6). Neste caso, os dados falam
por si, além de demonstrar que a política para o esporte de alto rendimento foi
sumarizada pela realização de competições nacionais e internacionais – cenário
semelhante àquele verificado na política esportiva atual.
119
O caso mais emblemático desse modelo de cogestão foi a parceria entre a Sociedade Esportiva
Palmeiras e a empresa italiana de lacticínios Parmalat, firmado em 07 de abril de 1992.
196
Comitê Paraolímpico Brasileiro (CPB). Voltaremos a tratar dessa legislação quando nos
debruçarmos sobre o financiamento público para o esporte no Governo Lula.
Outras alterações na Lei Pelé derivaram das apurações e conclusões da
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI CBF/Nike)120. De acordo com Boudens
(2002), desde sua instalação, a CPI CBF/Nike assumira o compromisso de rever a
legislação desportiva então vigente. Entretanto, neste primeiro momento, ao invés de
averiguarmos as mudanças legislativas promovidas pela CPI, examinaremos o conteúdo
daquilo que foi apurado durante suas investigações.
Em 1999, o deputado Aldo Rebelo (atual Ministro do Esporte) iniciou sua
peregrinação pelos corredores da Câmara dos Deputados em busca das assinaturas
necessárias para instalação da CPI com o propósito de esmiuçar o contrato “CBF-Nike”.
A iniciativa de Rebelo foi alvo de escárnio pela “bancada da bola” 121. Confiantes em
sua influência e ingerência sobre os parlamentares, julgavam excêntrica a tentativa de
coleta das assinaturas necessárias. Todavia, Rebelo conseguiu mais do que as 171
assinaturas necessárias, recolheu 206 e teve seu pedido de abertura da CPI acolhido pela
Mesa da Câmara.
A partir de então, o que se viu foi um leque de estratagemas da CBF, encabeçada
por Ricardo Teixeira, no sentido de inviabilizar o início da CPI122. Segundo Azevedo
(2001), desencadeou-se uma campanha muito forte contra a CPI, de tal forma que a
Comissão de Constituição e Justiça decidiu extingui-la. Contudo, Aldo avisou Michel
Temer, na ocasião presidente da Câmara dos Deputados (CD), que iria ao Supremo
Tribunal Federal (STF) porque estava sendo desrespeitado o art. 5º da CF de 1988, que
diz que uma CPI, após seu acolhimento, somente poderá ser extinta por decisão da
própria CPI. As ameaças de Aldo tiveram efeito e Temer recuou, determinando a
instalação da CPI. Complementarmente, por iniciativa do senador Álvaro Dias, o
120
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a "apurar a regularidade do contrato celebrado
entre a CBF e a Nike", objeto do Requerimento de CPI nº 3, de 11 de março de 1999, constituída em 16
de outubro de 2000 e instalada em 17 de outubro de 2000, apresentou Relatório Final em 06 de junho de
2001. Os trabalhos foram encerrados em 13 de junho de 2001, sem votação do Relatório. Disponível em:
<http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/parlamentar-de-
inquerito/51-legislatura/cpinike>. Acesso em: 08 out. 2012.
121
Terminologia utilizada para caracterizar o grupo de parlamentares que atua, de forma corporativista,
em prol de interesses advindos dos grandes clubes e federações do futebol do País, alguns deles tendo
exercido o cargo de dirigentes e/ou presidentes dessas entidades.
122
Membros da Comissão Técnica da Seleção Brasileira (Zagallo e Wanderley Luxemburgo), não se sabe
se por opção ou obrigação, enviaram cartas ao Congresso informando que a seleção não sofria ingerência
da Nike e, portanto, a CPI era desnecessária (AZEVEDO, 2001).
197
Senado Federal criou também uma CPI para investigar o futebol brasileiro de modo
geral123.
Embora as denúncias apuradas pela CPI da CD fossem significativas,
municiando o Ministério Público (MP) e o Poder Judiciário, seu relatório não chegou a
ser votado, em razão das medidas protelatórias e atentatórias ao decoro empreendidas
pela súcia da CBF, articulada pelo então presidente Ricardo Teixeira e liderada pelo
deputado Eurico Miranda. De acordo com Azevedo (2001), a decisão de encerrar a CPI
sem a votação do relatório foi tomada pelos próprios deputados empenhados em suas
investigações. Diante de uma plenária com maioria favorável à “bancada da bola”, o
grupo liderado por Aldo Rebelo e Silvio Torres decidiu impedir a votação do relatório
para preservar sua integridade.
Segundo Manhães (2002), a decepção engendrada pelo desfecho circense da CPI
da Câmara foi sucedida por uma indignação unânime da opinião pública que, catalisada
pelos meios de comunicação, deu sustentação a um movimento político que culminou
com a aprovação unânime do relatório da CPI do Senado, de responsabilidade do
senador Geraldo Althoff, que recomendava o indiciamento dos envolvidos e a tomada
de medidas administrativas e legislativas transformadoras, de caráter moralizador, que
impusessem o cumprimento do mandamento constitucional que determina tratamento
diferenciado para os desportos profissional e não profissional.
A CPI do futebol produziu um Relatório Final com quatro volumes e um anexo,
totalizando mais de mil páginas. Além disso, foram expedidas proposições legislativas
consubstanciadas na forma de Projeto de Lei com o intuito de regulamentar a atividade
relacionada com o futebol praticado por profissionais, estabelecendo normas orgânicas
específicas para a prática e administração transparente das ligas e entidades e para a
responsabilidade de seus administradores.
Conforme Manhães (2002), os principais problemas identificados pela CPI do
Futebol foram os seguintes: a) administração temerária; b) oligarquização das elites
dirigentes; c) impunidade patrimonial; d) ilícitos administrativos e fiscais; e) falta de
transparência; f) contabilidade inconsistente; g) manipulação dos conselhos e dos
mecanismos estatutários de controle pelas elites dirigentes; h) gestão financeira sem
referencial mercadológico; i) calendários organizados para atender a interesses
123
A referida CPI foi criada por meio do Requerimento nº 497, de 2000-SF e “destinada a investigar fatos
envolvendo as associações brasileiras de futebol”.
198
124
O projeto de Estatuto do Desporto apresentado pela subcomissão foi incorporado ao Relatório Final da
CPI com ligeiras alterações, que contemplavam, principalmente, sugestões feitas ao relator por diversos
parlamentares. Como o Relatório Final da CPI CBF/NIKE não foi votado, o relator, deputado Sílvio
Torres, apresentou esta segunda versão como Projeto de Lei de sua autoria (BOUDENS, 2002: 7).
201
O setor esportivo, assim como os demais setores das políticas sociais, sofreram
os impactos das ações implementadas no setor econômico. Todavia, tal fato não
significou um descuido estatal para com as elites dirigentes. A insuficiência e o
contingenciamento de recursos do OGU, em função dos compromissos assumidos com
o grande capital transnacional, não afetaram de forma decisiva a fração da elite
esportiva vinculada aos interesses das entidades federais de administração do esporte,
que não tiveram grandes motivos para descontentamento com o Governo FHC.
De alguma forma, as apurações da CPI CBF/Nike engendraram certo
afastamento e estremecimento na relação entre o Governo Federal e os dirigentes das
entidades esportivas, uma vez que os “cartolas” – pouco acostumados em prestar contas
perante a sociedade – sentiram-se constrangidos e ofendidos pela exposição pública de
suas práticas corruptivas. Tal fato não foi impeditivo para que, além dos recursos
provenientes das empresas estatais, o governo aprovasse, em 2001, uma Lei que repassa
diretamente recursos de concursos prognósticos para o COB. Assim, conclui-se que
nessa partida entre o público e o privado, disputada durante os oito anos de Governo
FHC, o Estado tem sido um árbitro altamente tendencioso para o capital.
202
126
Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de sanção da Lei da
Timemania. Brasília - DF, 14 set. 2006.
127
Referimo-nos a fala do presidente dos EUA, Barak Obama, em reunião do G20, na cidade de Londres,
em 02 de abril de 2009.
204
128
Trecho da entrevista intitulada “Lula deixou de ser o Lula que conhecíamos”. Caderno o País, Jornal
O Globo, 03 set. 2004.
205
129
A ação do governo FHC reforça as conclusões de Poulantzas, ressaltadas por Boito Jr. (2006), de que o
Estado burguês, de um modo geral, organiza a dominação de classe da burguesia e, simultaneamente,
organiza a hegemonia de uma determinada fração burguesa, ou seja, organiza os interesses gerais da
burguesia priorizando, ao mesmo tempo, os interesses específicos de uma determinada fração burguesa
frente aos interesses das demais frações.
206
expressa no PIB requer outra metade de riqueza social virtual para sua
sustentação, que somente se materializa via coerção do Estado
(OLIVEIRA, 2007a: 33).
130
Termo cunhado pelo professor Francisco de Oliveira.
207
almejavam a transformação social do País. A esperança era constituída por uma ampla
gama de anseios populares, capitaneados precipuamente pelo enorme desejo de redução
da desigualdade social, de melhoria das condições de trabalho, de reforma agrária e de
garantia de acesso à habitação.
O resultado eleitoral de 2002 expressou, sem nenhuma dúvida, a
rejeição da grande maioria da população às políticas econômico-
sociais implementadas pelos dois Governos FHC. Portanto, a vitória
das forças políticas comandadas pelo Partido dos Trabalhadores (PT)
também expressou, como contrapartida, uma grande vontade de
mudança por parte dos brasileiros, descontentes com os rumos do país
e, principalmente, com as duras consequências sociais decorrentes
dessas políticas (FILGUEIRAS & PINTO, 2004: 9).
sentido, organizou-se uma conspícua reação por parte dos setores conservadores, os
quais trataram logo de criar uma paisagem de instabilidade e insegurança em volta dessa
provável conquista.
A possibilidade concreta do triunfo de Lula teve como resposta um movimento
que se convencionou chamar de “terrorismo eleitoral”. Esse discurso terrorista,
orquestrado pelas elites nacionais e internacionais, gerou uma aura especulativa que
afetou diretamente três indicadores econômicos, tomados como parâmetro para
diagnosticar a “saúde” econômica do País, a saber: o preço do dólar norte-americano, a
cotação do C-Bond (título brasileiro negociado nos mercados internacionais) e o risco-
país131 (PAULANI, 2008).
No próximo tópico, ao tratar da política econômica do Governo Lula,
demonstraremos que esse cenário econômico desfavorável também foi hábil e
politicamente utilizado como justificativa para o direcionamento seguido pela área
econômica do governo empossado. Por ora, vale mencionar que, a despeito do
comportamento atípico das variáveis citadas, o panorama econômico herdado por Lula
não era tão nefasto. Isso porque, o comportamento do nível de reservas e as boas
perspectivas da balança comercial já eram perceptíveis no final de 2002.
Seja como reflexo da especulação preconizada pelo terrorismo eleitoral, seja
como consequência das opções adotadas pela equipe econômica do governo anterior, o
fato é que a desconfiança do mercado internacional sobre a postura econômica do novo
governo contribuíram para que fossem realizadas uma série de transformações pré-
eleitorais na candidatura de Lula. Conforme veremos adiante, algumas dessas alterações
se consolidariam como modus operandi do governo mesmo após a conquista da
presidência e o arrefecimento da vulnerabilidade econômica.
É um discurso de caráter tautológico afirmar que a transição presidencial de
2003 foi um marco na história política brasileira. Afinal, era um momento marcado – na
esfera subjetiva – por contornos cinematográficos devido à singular e emocionante
vitória pessoal de um retirante nordestino, ex-líder operário e sindical. O ineditismo
também se fazia presente na esfera institucional, em razão da chegada ao Governo
Federal daquele que foi intitulado – em determinado período – o “maior partido de
esquerda do mundo”. Uma entidade cujas raízes eram advindas das reivindicações do
131
“De fato, essas variáveis encontravam-se, ao fim de 2002, em níveis indesejados. O dólar chegou a
atingir R$ 4 (fechou o ano em R$ 3,50), a cotação do C-Bond ficou abaixo dos 50% do valor de face e o
risco Brasil alcançou os 2 mil pontos” (PAULANI, 2008: 36).
209
132
No referido documento, Lula e o PT comprometeram-se a dar sequência às mesmas políticas
econômicas adotadas até ali, bem como a respeitar todos os contratos firmados pelo Governo que estava
saindo. Segundo Borges Neto (2003: 13), a Carta ao Povo Brasileiro “procurava apresentar uma face
mais moderada, o que foi feito fundamentalmente com a definição da existência de um ‘período de
transição’ entre a situação herdada e a plena implementação do programa”. Segundo Mercadante (2010b),
os economistas do PT, para a eleição de 2002, que elaboraram o documento “Um outro Brasil é possível”,
defenderam uma ruptura com o neoliberalismo por meio de políticas de inserção soberana no mercado
mundial, de inclusão social e de crescimento econômico orientado pelo planejamento estatal. Entretanto,
em 2002, em plena campanha presidencial, os analistas do PT refizeram sua análise de conjuntura e
210
chegaram à conclusão de que a correlação de forças era desfavorável a uma ruptura, e anunciaram, por
meio da “Carta ao povo brasileiro”, uma “necessária revisão tática” de abdicar da ruptura e assumir “o
compromisso com uma transição progressiva e pactuada”.
133
É a tendência majoritária entre as muitas tendências partidárias que compõe o PT.
211
134
Trecho da entrevista “As transformações do PT e os rumos da esquerda no Brasil”. Bom Texto, 2003.
135
Segundo Coutinho (2010, apud PEREIRA-PEREIRA, 2012: 731), o transformismo é um fenômeno
político caracterizado “pela cooptação de lideranças políticas e culturais das classes subalternas [visando]
excluí‑ las de todo efetivo protagonismo nos processos de transformação social”. Na concepção
gramsciana, o fenômeno também se refere à obtenção de consenso estratégico pelo bloco no poder,
212
financiamento das campanhas eleitorais, nos programas de governo, nos discursos, nas
alianças político-eleitorais e, mesmo, nas formas de recrutamento e de fazer
campanhas [...]” (FILGUEIRAS & GONÇALVES, 2007: 186).
A título de ilustração, vale apresentar evidência empírica relativa ao
financiamento de campanhas à Presidência da República em 2002 e 2006. Em ambas as
oportunidades localizam-se entre os principais financiadores das campanhas as
empresas ligadas à indústria da construção civil e do setor financeiro, ou seja, as
empreiteiras e os bancos (vide Tabela 7). Evidentemente, tais setores não deixariam de
cobrar essa conta – devidamente atualizada –, inclusive com repercussões sobre a
política esportiva conforme demonstraremos mais adiante.
Tabela 7 – Financiamento das campanhas eleitorais para Presidência da República, segundo o setor
econômico: 2002 e 2006 (valores em R$ milhões e participação em %).
2002 Lula Serra
Valor Participação Valor Participação
Financeiro 6.080 10,9 12.750 22,9
Construção e imobiliário 2.490 4,5 750 1,3
Primário-exportador 1.610 2,9 4.440 8,0
Subtotal 10.180 18,3 17.940 32,2
Valor total 55.808 100 55.711 100
mediante a incorporação passiva de personalidades opositoras e/ou de grupos radicais, que se tornam
moderados.
213
136
Trecho de entrevista concedida por Olavo Setúbal (fundador do Banco Itaú e presidente do Conselho
Administrativo da Itaúsa) ao jornal Folha de S. Paulo, 13 ago. 2006.
214
137
A hipótese de que Lula assumiria o papel de pacificador foi confirmada pelo seu envolvimento direto
em uma série de conflitos mundiais, sobretudo na América Latina e Caribe. Não podemos desprezar que
por trás desse comprometimento pessoal, havia o desejo do Governo em incluir o Brasil entre os membros
permanentes do Conselho de Segurança da ONU.
215
Figura 2 – Frações de classe burguesa dentro do Bloco de Poder formado pelo Governo Lula.
Grande Capital
Financeiro
De acordo com Boito Jr. (2006: 247), a singularidade do Governo Lula foi “a
promoção de uma operação política complexa que consistiu em possibilitar a ascensão
política da grande burguesia interna industrial e agrária voltada para o comércio de
exportação”. Com o sucesso de seus negócios, a grande burguesia interna teve uma
colocação favorável dentro da economia nacional durante o período Lula.
O estímulo à produção dentro dos limites estabelecidos pelos interesses do
grande capital financeiro é possível devido a, basicamente, duas estratégias adotadas
pelo Governo Lula, quais sejam:
Em primeiro lugar, ele [o Governo Lula] estimula a produção voltada
para a exportação. Do ponto de vista das finanças, não teria sentido
estimular a produção voltada para o mercado interno. O grande capital
financeiro necessita reduzir o desequilíbrio das contas externas, sem
que sua livre circulação e elevada remuneração possam ficar
comprometidas. [...]. Em segundo lugar, mesmo na política de
estímulo à exportação, tudo deve ser feito de modo a não ultrapassar a
medida daquilo que interessa às finanças. Corrida aos dólares, sim,
mas desde que os dólares obtidos sejam direcionados para o
pagamento dos juros da dívida. Assim sendo, o superávit primário e os
juros devem permanecer elevadíssimos, mesmo que isso limite o
próprio crescimento das exportações. (BOITO JR., 2006: 254).
Ademais, são visíveis outras ações do Governo Lula que acabaram por
beneficiar os rentistas do capital financeiro. Além de concluir a reforma da Previdência,
iniciada no governo anterior, estendendo aos trabalhadores do setor público as
alterações imputadas por FHC ao setor privado, o governo, com a Lei de Falências139,
138
Trecho de matéria intitulada “Na Era Lula, bancos tiveram lucro recorde de R$ 199 bilhões”. O Globo
(Caderno Economia), 21 out. 2010. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/economia/na-era-lula-
bancos-tiveram-lucro-recorde-de-199-bilhoes-2818232>. Acesso em: 12 jun. 2013.
139
A referida legislação atribui maior prioridade às dívidas financeiras garantidas por bens móveis e
imóveis, colocando-as à frente das dívidas tributárias e trabalhistas de valor superior a R$ 39 mil.
217
140
Para Frigotto (2004: 102), este grupo criaria “uma situação próxima àquela designada por Nicos
Poulantzas de ‘classe detentora’ do aparelho de Estado”.
218
141
De acordo com Dulci (2010: 136), foram realizadas “63 conferências nacionais que mobilizaram
diretamente, em suas várias etapas, mais de 4,5 milhões de pessoas em cerca de 5.000 municípios
brasileiros”.
219
último. Borges Neto (2005) discorda que o PT tenha optado por um projeto de poder,
uma vez que possuía eixos de um programa de governo razoavelmente bem definidos
em seus documentos oficiais e acúmulo de discussões programáticas de alternativas ao
neoliberalismo. Independentemente do projeto adotado, tornou-se bastante arriscado –
do ponto de vista político –, tanto para antigos aliados, como para manifestos
opositores, assumir uma clara oposição ao PT e a Lula.
Romper com o governo e o PT é estratégia arriscada. Para quem
ocupa cargos dirigentes no PT e em partidos aliados, ou tem cargos
eletivos, além da perda da base institucional, romper pode significar o
isolamento político. Para quem está fora, tratar de forma sistemática o
PT e o governo como adversários a combater pode também conduzir
ao isolamento. Estes riscos são ainda maiores com as dificuldades dos
movimentos sociais, pressionados pela crise econômica, pela
precarização do trabalho e pelo trabalho ativo dos dirigentes dos
sindicatos e dos movimentos atrelados ao PT e à CUT (CARVALHO,
C. E., 2004: 145).
142
De acordo com Singer (1981, apud SINGER, 2009), os subproletários são aqueles que “oferecem a sua
força de trabalho no mercado sem encontrar quem esteja disposto a adquiri-la por um preço que assegure
sua reprodução em condições normais”.
220
André Singer (2009), o apoio irrestrito dessa fração de classe ao ex-presidente teria
dado origem ao lulismo143, fenômeno capaz de assimilar pontos de vista, tanto
conservadores, como progressistas, na perpetuação de um “conservadorismo popular”.
Em que pese a extensão desta citação, Ricardo Antunes, em artigo publicado na Folha
de S. Paulo, descreve barbaramente o processo de gênese e os traços característicos
desse fenômeno.
Seu crescente papel de tertius dentro do PT, com um séquito de
lulistas sempre dando suporte, ampliava sua tendência, que oscilava
entre a liderança e o mandonismo, ainda que nublada pela (aparência
de) simplicidade em suas ações. Como seus seguidores fiéis jamais
faziam nenhum reparo, Lula acentuando seu traço bonapartista,
consolidava a imagem de um farol sempre iluminado que mostrou sua
plenitude no poder, depois das eleições de 2002. Distanciado da
origem operária, submerso no novo ethos de classe média, galgando
degraus ainda mais altos na escala social, tudo isso foi convertendo
Lula em uma variante de homem duplicado que passou a admirar cada
vez mais os exemplos daqueles que vem ‘de baixo’ e vencem dentro
da ordem. [...] Sua nova forma de ser gerou uma consciência invertida
de seu passado e um deslumbramento em relação ao presente.
Preservada a empatia ‘direta’ com as massas, tendo se moldado
celeremente pelo convívio com frequentadores dos palácios, o
lulismo, com seus dotes arbitrais – num momento em que as frações
dominantes não puderam garantir em 2002 a sucessão presidencial - se
tornou expressão de um governo que fala para os pobres, vivencia as
benesses do poder e garante a boa vida aos grandes capitais. Uma
espécie de semibonapartismo, recantado frente à hegemonia financeira
e hábil no manuseio de sua base social, que vem migrando dos
trabalhadores organizados para os estratos mais pobres que recebem o
Bolsa Família. E para qual o PT se tornou dispensável144.
outro lado, pela capacidade que a autoridade de líder carismático concede a Lula para
tomar soberanamente decisões que privilegiam o grande capital.
O transformismo do PT, aliado ao carisma letárgico do lulismo, concretiza o
processo, denominado por Oliveira (2010), de hegemonia às avessas ou a hegemonia da
política menor (Gramsci, 1976) ou da pequena política (Coutinho, 2010b) no Brasil. Se
por um lado, a expressão fenomênica é de que os dominados dominam, por realizarem a
“revolução moral”, por outro lado, mantém-se escondida a essência da transformação do
consentimento em seu avesso, ou seja, de que os dominantes consentem em ser
politicamente conduzidos pelos dominados desde que a “direção moral” não conteste a
forma de exploração capitalista (OLIVEIRA, 2010).
Ao mesmo tempo, um consenso passivo estabelece a hegemonia da pequena
política, que ocorre:
[...] quando a política deixa de ser pensada como arena de luta por
diferentes propostas de sociedade e passa, portanto, a ser vista como
um terreno alheio à vida cotidiana dos indivíduos, como simples
administração existente. A apatia torna-se assim não só um fenômeno
de massa, mas é também teorizada como um fator positivo para a
conservação da “democracia” pelos teóricos que condenam o “excesso
de demandas” como gerador de desequilíbrio fiscal e,
consequentemente, de instabilidade social (COUTINHO, 2010b: 32).
145
De acordo com Castelo (2012: 624), “o novo desenvolvimentismo surgiu no século XXI após o
neoliberalismo experimentar sinais de esgotamento, e logo se apresentou como uma terceira via, tanto ao
projeto liberal quanto ao socialismo. Os primeiros escritos do novo desenvolvimentismo brasileiro
223
apareceram no primeiro mandato do governo Lula no tinteiro de Luiz Carlos Bresser Pereira, ex‑ ministro
da Reforma do Estado, professor emérito da FGV‑ SP e então intelectual orgânico do PSDB. Em 2004,
Bresser Pereira publicou na Folha de S. Paulo um artigo intitulado ‘O novo desenvolvimentismo’, no
qual defendia uma estratégia de desenvolvimento nacional para romper com a ortodoxia convencional do
neoliberalismo. Segundo seus apontamentos, o novo desenvolvimentismo se diferenciaria do
nacional‑ desenvolvimentismo em três pontos: maior abertura do comércio internacional; maior
investimento privado na infraestrutura e maior preocupação com a estabilidade macroeconômica”. De
acordo com Castelo (2012), o paradoxal é perceber que o novo desenvolvimentismo brasileiro surgiu do
seio da intelectualidade tucana que implementou o neoliberalismo no país.
146
Algumas nomenclaturas atribuídas a esse novo modelo de desenvolvimento são: novo
desenvolvimentismo (BRESSER PEREIRA, 2004; SICSÚ et al., 2005; MERCADANTE, 2010a),
sociodesenvolvimentismo (MANTEGA, 2007; POCHMANN, 2010, CARNEIRO et al., 2012), liberal-
desenvolvimentismo (BOITO JR., 2006) e liberal-periférico (FILGUEIRAS & GONÇALVES, 2007).
224
Pochmann (2010) afirma que, durante o Governo Lula, o país deu passos
importantes na passagem do neoliberalismo para o modelo social-desenvolvimentista. O
autor entende que é um equívoco comparar a orientação – jacente na Era Lula – com
aquela direção presente no modelo nacional-desenvolvimentista das décadas de 1930 e
1970. Para Pochmann (2010), entre os anos de 2003 a 2010, a atuação estatal se
distinguiu por uma reafirmação da soberania nacional, incluindo o desempenho de
novos papeis na conjuntura política internacional.
Barbosa e Souza (2010) reforçam as conclusões de Pochmann (2010) ao
garantirem que o Governo Lula demarcou uma transformação na política econômica
brasileira. De acordo com os autores, trata-se do início de “uma nova fase de
desenvolvimento econômico e social, em que se combinam crescimento econômico e
redução nas desigualdades sociais” (IDEM, IBIDEM: 57). Barbosa e Souza (2010: 57)
também elencam como traço distintivo do governo lulista “a retomada do papel do
Estado no estímulo ao desenvolvimento e no planejamento de longo prazo”.
O documento oficial que sintetiza o balanço das políticas brasileiras durante os
anos de 2003 a 2010147, publicado pela Presidência da República, reafirma a tese de
uma inflexão na política econômica, que passou a ter como diretrizes o crescimento, a
criação de empregos, a estabilidade macroeconômica e a redução da pobreza e da
desigualdade. Ao mesmo tempo, o referido documento engrossa o coro sobre a
existência de um novo ciclo de desenvolvimento no Brasil, que seria sustentado pelo
tripé formado por estabilidade econômica, crescimento com geração de empregos e
distribuição de renda.
Durante seus dois mandatos, de 2003-2010, o país deu um salto no
enfrentamento da pobreza e da desigualdade, definido como eixo
estratégico primordial. Dele decorreu a opção por uma inflexão na
política econômica, que fortaleceu de maneira inédita as políticas de
distribuição de renda e de inclusão social. Elas se somaram ao
compromisso com a estabilidade, o crescimento e a expansão do
emprego e estabeleceram as bases de um novo ciclo de
147
Em junho de 2008, o então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, anunciou a
determinação de registrar em cartório, ao final do seu mandato, a relação completa de todas as ações
empreendidas pelo Governo Federal a partir de 2003. Segundo o presidente, o objetivo seria comparar seu
programa de governo – e os compromissos que assumiu – com as realizações ao longo do mandato.
Naquela oportunidade, foi determinado que cada ministério registrasse em cartório o histórico das ações e
programas implementados e seus resultados. Diante dessa determinação, cada ministério foi responsável
por elaborar o seu balanço temático, a partir de uma estrutura comum: uma breve informação acerca da
situação do País em janeiro de 2003, os desafios encontrados pela administração que então assumia, os
compromissos firmados durante a campanha eleitoral, a relação completa e detalhada das ações e
realizações empreendidas até o final de 2010 (iniciativas, programas, marcos legais) e uma relação dos
principais indicadores de resultado. Disponível em: <http://www.balancodegoverno.presidencia.gov.br/>.
Acesso em: 04 fev. 2013.
225
De acordo com Paulani (2012), aqueles que ansiavam por rumos diferentes na
economia se frustraram ao perceber que o período inicial do Governo Lula manteve o
mesmo receituário de política econômica que vigorou durante os oito anos anteriores.
Paulani (2012: n.p.) elenca algumas ações governamentais que deixam clara a opção
pela manutenção - ao menos do ponto de vista econômico – de um projeto neoliberal,
são elas: “a continuidade da política de juros estratosféricos, o caráter ainda mais
restritivo da política fiscal, o injustificável aperto de liquidez e, mais à frente, o
aproveitamento, sem nenhum constrangimento, do contínuo processo de valorização de
nossa moeda”, o que - na opinião da autora - reeditou o populismo cambial da primeira
gestão de FHC.
226
Paulani (2008) destaca que existem dois principais problemas que podem ser
agravados em um país como o Brasil frente a um cenário econômico avesso. O primeiro
deles seria o risco da inadimplência externa, no vocabulário econômico denominada de
default e popularmente conhecido como “calote”. A segunda dificuldade corresponderia
ao descontrole inflacionário, situação indesejada pela sua capacidade de desorganizar o
sistema produtivo e estagnar o país.
Segundo Paulani (2008), a piora estrutural das contas externas brasileiras é
certamente um dos mais nefastos legados do Governo FHC.
A abertura externa estabanada, além de elevar a dependência do país
em setores estratégicos como os de insumos básicos e bens de capital,
produziu um substantivo estoque de capital privado nacional bom e
barato que foi transferido para as mãos do capital estrangeiro (IDEM,
IBIDEM: 22).
148
Referimo-nos ao encontro realizado na cidade de Recife, em dezembro de 2001 e, mais
especificamente, ao documento intitulado “Concepção e Diretrizes do Programa de Governo do PT para o
Brasil”.
229
Conforme previa Löwy (2003), o Governo Lula foi alvo de enorme pressão por
parte dos organismos internacionais econômicos (FMI, BIRD e FED), das
multinacionais, de governos “amigos” da América Latina e Europa, das frações
dominantes da burguesia nacional e até mesmo de “aliados políticos”. Uma coação que,
em uníssono, recomendava ao presidente uma postura moderada e um amoldamento às
regras estabelecidas do jogo assim como fizeram seus antecessores. Coagido por – ou
compactuando com – essa espécie de constrangimento, a equipe econômica, para
justificar suas políticas, jogou toda a responsabilidade na gravidade do quadro
230
econômico de 2002 e criou o palatável discurso de que, diante daquele cenário, seria
preciso “acalmar os mercados” e “ganhar credibilidade” primeiramente e, depois, dar
início ao “verdadeiro” programa do Governo Lula.
Carlos E. Carvalho (2004) afirma que existia no Brasil de 2003 alternativas além
do bom comportamento e da reprodução do passado. De acordo com o autor, não se
tratava de selecionar entre opções com ou sem risco, uma vez que todas envolviam
riscos e ofereceriam vantagens, imediatas e potenciais. Carlos E. Carvalho (Idem)
lamenta que a preferência pelo continuísmo não se trata apenas de uma opção de curto
prazo, mas sim de uma escolha estratégica, o que fica evidente no documento “Política
Econômica e Reformas Estruturais”, produzido pelo Ministério da Fazenda em 2003.
Segundo o autor, ao reduzir o problema do Brasil ao desequilíbrio orçamentário e ao
ajuste definitivo das contas públicas, o documento deixou claro que a prioridade do
governo eram as próprias reformas, concebidas originalmente pela gestão anterior.
A despeito dos albores de melhoria da vulnerabilidade externa e do controle dos
índices inflacionários no final de 2002, o Governo Lula foi enfático em decretar um
cenário temerário e instável, mantendo inabalável sua decisão de promover um ajuste
macroeconômico. Barbosa e Souza (2010) entendem que o ajustamento se fazia
necessário para a retomada do controle da situação monetária, fiscal e cambial do país.
No campo monetário, optou-se pela elevação das metas de inflação fixadas pelo
governo anterior como forma de acomodar o impacto inflacionário causado pela
depreciação cambial e de evitar um sacrifício imódico do crescimento da economia149.
Dathein (2004: 7) destaca que as características da economia brasileira conformam uma
política de metas de inflação baseada no suposto de que “a taxa de juros deve ser
fortemente elevada quando ocorrem desvalorizações cambiais e lentamente reduzida
em caso de valorizações cambiais, por receio do aumento da demanda”.
No âmbito fiscal, o governo aumentou a meta de superávit primário de 3,75% do
PIB para 4,25%, superando a estimativa proposta pelo acordo com o FMI. Essa decisão
acarretou uma diminuição dos gastos primários da União, o que, somado ao aumento da
taxa de juros, resultou em declínio do nível de atividade econômica em 2003. Para
Singer (2005: 174): “as políticas fiscais do Governo Lula estão dominadas pelo
objetivo de reduzir a dívida pública em relação ao PIB, para atender uma exigência do
mercado financeiro”.
149
O BCB aumentou sua taxa básica de juros do Sistema Especial de Liquidação e Custódia (Selic), de
25% ao ano, em dezembro de 2002, para 26,5% em fevereiro de 2003 (BARBOSA & SOUZA, 2010).
231
150
A taxa média de inflação da história da República exclui o período de inflação exorbitante (1984-
1994). Se incluirmos esse período, a média anual alcança 138,4%.
236
ser registrado no ano de 2001 (vide Tabela 10). Esse triunfo foi diretamente ligado à
superação da vulnerabilidade externa, à diversificação dos parceiros comerciais do
Brasil, ao crescimento das exportações, ao impulso concedido ao agronegócio e à
valorização das commodities.
Mercadante (2006) explicita que nos três primeiros anos do Governo Lula
ocorreu uma duplicação do valor das exportações, que passaram de US$ 60,4 bilhões
em 2002 para US$ 118,3 bilhões em 2005. Esse aumento – com exceção de 2009 –
manteve-se ao longo dos dois mandatos presidenciais, conforme demonstra o Gráfico 6.
Conquanto reconheça a presença de preços externos favoráveis, Mercadante (2006)
237
Exportações
250.000,00
200.000,00
150.000,00
100.000,00
50.000,00
0,00
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
Dessa forma, para manter o superávit primário e os juros elevados não se medem
esforços, até mesmo comprometendo o crescimento das exportações.
A constatação de Boito Jr. (2006) nos conduz ao próximo tema de nossa
problematização. Referimo-nos ao desempenho da dívida pública nos anos de 2003 a
2010. Na área econômica, provavelmente, a conquista mais decantada e enaltecida pelo
Governo Lula tenha sido a “liquidação” da dívida externa.
Na tentativa de mostrar que o Brasil está bem preparado para enfrentar
as turbulências do cenário internacional - e que, por isso, mereceria
mais confiança do mercado financeiro e de agências de classificação
de risco-, o Banco Central anunciou ontem que o país "zerou" sua
dívida externa pela primeira vez na história. [...]. Segundo relatório
publicado pelo BC na internet, em janeiro os ativos brasileiros no
exterior superavam a dívida externa em cerca de US$ 4 bilhões,
revertendo o quadro observado até dezembro do ano passado, quando,
ao contrário, o endividamento era maior do que as aplicações em US$
4,4 bilhões151.
151
Trecho de matéria intitulada “País anuncia que ‘zerou’ dívida externa”. Folha de S. Paulo, 22 fev.
2008.
240
primeiro fator – já abordado neste tópico – diz respeito à balança comercial favorável,
que estimulou o ingresso de dólares no país por meio do aumento das exportações.
Entretanto, a entrada de dólares no país também ocorre através da ação dos
especuladores que, atraídos pela valorização do real, trocam títulos da dívida externa
por títulos da dívida interna, em real valorizado e com juros maiores, ao passo que os
dólares, em desvalorização, ficam nos cofres do Banco Central. Por fim, grande parte
das reservas advém do superávit primário, poupança que o governo faz cortando
investimentos e aplicando uma política de arrocho nas contas públicas, bem como
contingenciando recursos das áreas sociais.
152
A autora faz referência à tese bastante conhecida de Chico de Oliveira. Ver Os direitos do antivalor
(Petrópolis, Vozes, 1998, Coleção Zero à Esquerda).
241
153
Trecho de notícia intitulada “BC zera carteira de títulos da dívida pública federal externa”, publicada
pela Assessoria de Comunicação do Banco Central do Brasil, em 15 de dezembro de 2009. Disponível
em: <http://www.bcb.gov.br/pt-br/paginas/bc-zera-carteira-de-titulos-da-divida-publica-federal-
externa.aspx>. Acesso em: 15 fev. 2013.
154
É importante destacar que o percentual médio de utilização do PIB para pagamento de juros pode ser
mais elevado. O estudo “Carga Tributária Líquida e Efetiva Capacidade do Gasto Público no Brasil”,
publicado pelo IPEA em julho de 2009, demonstra que nos anos de 2007 e 2008 foram utilizados 6,22% e
5,62% do PIB para pagamento dos juros, percentuais maiores do que aqueles previstos pelo PAC.
155
Utilizaremos os termos “crise financeira” e “crise econômica” para os eventos decorridos do anúncio,
em fevereiro de 2007, da quebra de instituições de crédito dos Estados Unidos, que concediam
empréstimos hipotecários de alto risco (subprime). Todavia, faz-se necessário enfatizarmos nosso acordo
com as análises arguciosas expostas por Mészáros (2009b) de que o colapso do sistema financeiro não é a
causa, mas sim a manifestação de um impasse na economia mundial. Ou seja, de que as raízes da crise, na
verdade, encontram-se no atual estágio de desenvolvimento do capitalismo.
242
abalos no panorama nacional, materializado por uma retração econômica após anos de
crescimento constante.
No final do ano [2008], o mercado brasileiro sentiu a rápida e
acentuada contração na oferta de crédito. Houve então um grande
fluxo de saída de capitais do país. Os preços dos produtos caíram com
a retração do comércio global e os exportadores sofreram. A confiança
dos consumidores e das empresas diminuiu e, com isso, caiu a
demanda doméstica. Com a queda no consumo e nos investimentos, o
Brasil passou dois trimestres seguidos com queda no PIB (BRASIL,
2010a: 18).
cuja herança possui faceta dupla. Se por um lado, possibilitou o acúmulo de capital
político que garantiu a vitória da candidata governista nas eleições de 2010, por outro
lado, a presidenta eleita herdou uma dívida da importância de 90 bilhões de dólares em
déficit de conta corrente, que de imediato impôs a adoção de uma política
contracionista.
De acordo com Castelo (2012), mesmo reconhecendo a existência de
similaridades entre as políticas econômicas neoliberais e neodesenvolvimentistas,
Bresser Pereira (2004)156 e intelectuais tradicionalmente alinhados ao estruturalismo
cepalino e ao keynesianismo defenderam a ideia de que o novo desenvolvimentismo
corresponderia a um projeto político de superação do neoliberalismo. Em anuência a
esse pressuposto, economistas e cientistas sociais que avaliam positivamente a trajetória
econômica brasileira entre 2003 a 2010, identificando neste período uma competência
para promover o crescimento econômico atrelado à redução da pobreza e redistribuição
de renda, atribuíram-lhe o signo neodesenvolvimentista ou social-desenvolvimentista.
Segundo Mercadante (2010b), um dos principais defensores da tese do
social‑ desenvolvimentismo, o social configurou‑ se no eixo estruturante do
crescimento econômico no Governo Lula, distinguindo-o das demais fases do
desenvolvimentismo. O próprio governo divulgou exaustiva e extensivamente a certeza
de que houve de sua parte um comprometimento vigoroso com a distribuição de renda
como motor do modelo de desenvolvimento.
Na contramão do entendimento acerca de um novo modelo/ciclo de
desenvolvimento, aqueles que criticam as ações econômicas adotadas por Lula, como
Boito Jr., garantem que tais medidas foram inócuas no que diz respeito à redistribuição
da renda no Brasil, ao passo que se fizeram profícuas para a perpetuação da hegemonia
do capital financeiro internacional e para o fortalecimento de determinadas frações de
classe da burguesia nacional.
Para Boito Jr. (2006), o Governo Lula está comprometido integralmente com o
grande capital, possibilitando a ascensão política da grande burguesia interna industrial
e agrária. Boito Jr. (2006: 260) adverte que “os interesses e objetivos que essa fração
burguesa tem vocalizado na cena política não apontam para nenhum modelo
econômico no qual os interesses dos trabalhadores possam encontrar um espaço
importante”. De acordo com o autor, o modelo econômico empreendido entre 2003-
156
Referimo-nos ao artigo publicado na Folha de S. Paulo, em 19 set. 2004, cujo título é “O Novo
Desenvolvimentismo”.
244
Sem entrar em pormenores, Castro et al. (2012) entendem que a política social
deve almejar a consecução de dois objetivos: i) proteger os cidadãos mediante
segurança social, baseando-se na compreensão de solidariedade aos indivíduos, famílias
e grupos localizados em determinadas situações de dependência, ou vulnerabilidade; e
ii) realizar a promoção social por intermédio da geração de oportunidades e de
resultados para indivíduos e/ou grupos sociais. Diante desses desígnios, o Estado
brasileiro constituiu um conjunto de políticas públicas, que se desdobram em políticas
sociais voltadas à proteção e promoção social, bem como aquelas de caráter transversal.
Retomando a circunspecção sobre os limites de nossa análise, iniciamos este
tópico apresentando aquilo que não nos proporemos a abordar. Neste sentido, é
premente enfatizar que o escopo do debate a ser realizado neste momento se restringirá
às políticas sociais voltadas à proteção social, sobretudo aquelas vinculadas à
Assistência Social. Por conseguinte, não ambicionamos empreender um exame
minucioso de todas as áreas que compõem o rol dos direitos sociais promulgados no
artigo sexto da Constituição Federal.
Ao mesmo tempo, é preciso salientar que não almejamos desenvolver uma
apreciação particularizada de cada programa, projeto e ação do âmbito da Assistência
Social no período do Governo Lula, nem tampouco um estudo pormenorizado das
fontes de financiamento e da direção e magnitude dos gastos do Orçamento da
Seguridade Social (OSS) – não obstante, por vezes, recorrermos aos dados financeiros e
estáticos para embasar os argumentos apresentados. Por fim, ressaltamos novamente
que a exposição separada da política econômica e social trata-se apenas de uma opção
metodológica, uma vez que corroboramos com o entendimento de que uma
consideração ensimesmada da política social acabaria por reificá-la.
246
políticas sociais do período ditatorial tinham uma dimensão utilitária, sumarizada pela
intenção de neutralizar e cooptar politicamente os trabalhadores, especialmente aqueles
localizados no setor urbano, e enfraquecer a politização da cúpula do movimento
sindical.
Entretanto, a forte repressão imposta pelo regime militar e o esgotamento do
chamado “milagre econômico” minaram a estratégia de cegueira popular diante da
retirada dos direitos políticos. A classe média - histórica adepta do imobilismo –
abandou a inércia e, juntamente com os trabalhadores urbanos, engrossou a força
oposicionista das cidades. Sem embargo das feridas abertas pela ditadura à consolidação
democrática brasileira, em suma, o fenecimento do regime militar repôs em cena o
protagonismo e a importância de uma ampla mobilização e organização social, que
culminou com o movimento pelas eleições diretas em 1984.
Os movimentos sociais e sindical reestabelecidos com o fim do regime
autocrático e fortalecidos pela atmosfera de intensa mobilização social envidaram
esforços nos debates em torno da concepção da Constituição de 1988. Malgrado a
perspectiva liberalizante que rondava os acordos em torno da ANC, reivindicações
históricas foram carreadas para o interior da Carta Magna, criando um estatuto legal
para instauração de uma seguridade social, de fato, universal. A CF de 1988 concebeu
uma estrutura tripartite da seguridade social, composta por três sistemas: a Previdência
Social (de natureza contributiva), a Assistência Social (gratuita e direcionada à
população sem capacidade de contribuir) e o Sistema Único de Saúde (gratuito) – além
do seguro desemprego, sob a responsabilidade do Ministério do Trabalho e Emprego
(MTE).
Todavia, Filgueiras e Gonçalves (2007) ressaltam que o país não teve a
possibilidade de avançar e consubstanciar as proposições consignadas na CF de 1988.
Com a vitória, instauração e consolidação do neoliberalismo a partir
da década de 1990, a ampliação dos direitos inseridos na nova
Constituição e, em seguida, todos os direitos passaram a ser
questionados – sempre em nome de ajustes fiscais (déficit público) e
monetários (combate à inflação). Isso explica o ataque político-
ideológico sistemático à Constituição de 1988, levado adiante pelas
classes dominantes, desqualificando-a como “populista”,
“irresponsável” e “desfocada da realidade econômico-financeira do
Estado e do país” – com o patrocínio, nos últimos dezesseis anos, de
inúmeras emendas que a desfiguraram paulatinamente (FILGUEIRAS
& GONÇALVES, 2007: 157-158).
248
Pereira-Pereira (2012) é incisiva em afirmar que o período FHC foi marcado por
um distanciamento entre as prioridades governamentais e os direitos sociais da CF de
1988. De acordo com a autora, o Governo Cardoso, através do Plano Real, desenvolveu
uma política econômica desvinculada das demandas sociais. O resultado dessa opção foi
que:
[...] o Brasil voltou a ostentar elevados índices de desemprego formal,
de achatamento dos salários, de aumento da carga tributária, de
privatização do patrimônio público, de desfinanciamento das políticas
sociais, de repúdio à política de assistência social, cujas funções
passaram a ser transferidas para o setor voluntário da sociedade,
reeditando‑ se, assim, o velho assistencialismo (IDEM, IBIDEM:
743).
Gráfico 7 – Brasil: evolução da estrutura social segundo três níveis de rendimento 1995 a 2008
(total = 100%).
251
39
37
35
33
31
29
27
25
1995 1996 1997 1998 1999 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008
Base 32,9 32,6 33,6 32,2 32,9 33,4 33,4 34,1 33,7 30,6 28 27,9 26
Intermediária 33 32,5 31,8 32,4 32,7 33,3 33,6 34,3 34,9 36,4 36,7 36,6 37,4
Superior 34,2 35 34,6 35,3 34,3 33,3 33 31,5 31,5 32,9 35,3 35,5 36,6
Gráfico 8 – Razão entre a renda apropriada pelos 10% mais ricos e os 40% mais pobres.
25 22,2 21,42
19,91 19,55 18,7 18,12
20 17,13 16,67
15
10
0
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
157
O conjunto de medidas a que se refere o autor inclui: ampliação do crédito, redução dos juros para
financiamento de habitações populares, abertura de vagas em universidades privadas, desoneração da
cesta básica, democratização do crédito e redinamização da reforma agrária.
252
assalariados, ou seja, cria-se uma faixa bastante eclética, cuja amplitude ofusca as
intrínsecas diferenças de classe.
Uma segunda consideração a ser feita diz respeito às pesquisas de renda se
limitarem aos rendimentos auferidos pelo trabalho. A própria PNAD mensura apenas a
distribuição pessoal da renda do trabalho, que, embora revele uma extrema
concentração de renda na distribuição, subestima a renda do capital (juros, lucros e
aluguéis), influenciando no cálculo do Coeficiente de Gini (SALVADOR, 2010a). Ao
mesmo tempo, essas pesquisas subsidiam a construção de políticas públicas que:
[...] ao se restringir as desigualdades ao âmbito dos rendimentos do
trabalho, a busca de menor desigualdade (pelas políticas sociais) se
restringe à redução das disparidades salariais e de outros rendimentos
do trabalho, deixando de fora qualquer reforma que afete a
distribuição da propriedade fundiária (rural e urbana), bem como a
estrutura e o funcionamento do sistema financeiro (FILGUEIRAS &
GONÇALVES, 2007: 144).
158
Poverty Redution and Growth: Virtuous and Vicious Circles. Washington: Banco Mundial, 2006.
254
Tabela 16 – Coeficientes de Gini em ordem decrescente (dez países com maior desigualdade de renda):
meados dos anos 1990 e primeira década do século XXI.
Gini, meados anos 1990 Gini, 2000-2010
1 Suazilândia 60,9 Colômbia 58,5
2 Nicarágua 60,3 África do Sul 57,8
3 África do Sul 59,3 Bolívia 57,2
4 Brasil 59,1 Honduras 55,3
5 Honduras 59,0 Brasil 55,0
6 Bolívia 58,9 Panamá 54,9
7 Paraguai 57,7 Equador 54,4
8 Chile 57,5 Guatemala 53,7
9 Colômbia 57,1 Paraguai 53,2
10 Zimbábue 56,8 Lesoto 52,5
Fonte: PNUD, apud Gonçalves (2012).
255
Para Mercadante (2006), o Governo Lula foi responsável por alçar os programas
de transferência de renda a um novo patamar de qualidade. Essa
qualificação/valorização se deve à colocação desses programas nas prioridades de ação
do Estado, além de conjugar o desenvolvimento de ações de combate à pobreza a outras
políticas complementares. Segundo o autor, essa articulação, com foco nas famílias
mais pobres, criou possibilidade de fuga da condição de pobreza.
A importância dos programas de transferência de renda se evidencia no
acompanhamento longitudinal dos Gastos Sociais Federais (GSF). Os dados do Gráfico
9 demonstram que, na comparação com a Saúde e a Educação, a Assistência Social é a
única que apresenta um crescimento constante na participação dos GSF, inclusive
superando em importância a Educação como área de atuação social em termos de
256
12 12,2 12,3
11,5 11,7 11,5 11,5 11,7
10,8
10
8 Saúde
7,2
6,5 6,9 6,8
6 6,3 6,9 Educação
6 5,5 5,7 6,5
6,1 6,2
5,6 5,7 Assitência Social
5,1 5,6
4
0
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
Castro et al. (2012), ao estudarem os GSF de 1995 a 2010, apontam que a área
de assistência social foi a que obteve maior crescimento relativo no seu volume de
recursos, deixando de ser uma área incipiente em termos de volume de recursos –
apenas 0,7% do GSF em 1995 –, tornando-se uma das principais áreas da política social
257
federal – 6,9% do GSF em 2010 (Gráfico 9). Segundo os autores, esse comportamento é
explicado devido:
[...] à expansão das políticas de garantia de renda: nos primeiros anos,
a implantação do Benefício de Prestação Continuada determinado pela
Constituição; na segunda metade do período, o surgimento das
políticas de transferência de renda com condicionalidades, e logo em
seguida, a criação e veloz expansão do Bolsa Família (IDEM,
IBIDEM: 22).
Concebido como uma ação unificada de transferência de renda, o PBF foi criado
em 2003 como resultado da unificação de programas anteriores com natureza
semelhante, são eles: programa Bolsa Escola, programa Bolsa Alimentação, Auxílio
Gás e Cartão Alimentação. De acordo com o governo, a concentração dos programas
anteriores no escopo do PBF permitiu a diminuição dos custos gerenciais do Governo
Federal, melhorou a eficiência administrativa, reduziu as duplicidades de pagamentos,
permitiu que os benefícios fossem mais bem distribuídos entre as famílias, conferiu
maior eficiência aos critérios de elegibilidade dos beneficiários e elevou o valor médio
do benefício pago.
Segundo Silva e Silva et al. (2008), a proposta de unificação presente no PBF
modifica a histórica heterogeneidade contida no conteúdo e nas especificidades dos
programas de transferência de renda brasileiros. Para os autores, uma análise sobre o
conteúdo e debates que acompanham esses programas, a partir de 2003, permite
identificar um discurso preocupado com o papel da transferência de renda como uma
política pública concebida no âmbito do direito à cidadania, capaz de promover o acesso
258
159
Uma prova das fragilidades e, ao mesmo tempo, do apelo popular e da força política do PBF pode ser
visto nos rumores, em maio de 2013, sobre o seu cancelamento. Um alarme falso, de natureza e origem
ainda indefinidas, foi orquestrado, sobretudo no Norte e Nordeste do país, levando milhares de
beneficiários às casas lotéricas e agências da Caixa na tentativa de sacar o benefício. Tais boatos
engendraram acusações entre oposição e situação no Congresso, conduzindo à necessidade de uma
investigação por parte da Polícia Federal. Todavia, um elemento que não pode ser desprezado é o
potencial político da mobilização de dezenas de milhares de pessoas em um curto espaço de tempo devido
ao receito de retirada de um beneficio social.
259
160
O termo supercapitalização é utilizado por Mandel (1982) para caracterizar a irradiação do capital para
zonas antes não mercantis.
161
Lima (2008) ressalta que o Brasil possui a única Constituição do mundo com um dispositivo que
garante os pagamentos para serviço da dívida. Na opinião do autor, isso demonstra a dependência da
economia brasileira aos ditames do capital internacional e nacional.
162
Disponível em: <http://www12.senado.gov.br/noticias/entenda-o-assunto/dru>. Acesso em: 06 mar.
2013.
261
163
De acordo com Pereira-Pereira (2012: 748), a direitização refere-se ao domínio do ideário neoliberal
no âmbito das políticas sociais, iniciado desde os anos 1980. Diante desse cenário, essas políticas,
inclusive no Brasil, viveriam sob o império de (ultra) direita.
164
A monetarização da política social diz respeito ao fato de “que esta não mais visa concretizar direitos
sociais, mas fortalecer o mérito individual do pobre de conseguir, por meio do mercado, a satisfação de
suas necessidades” (PEREIRA-PEREIRA, 2012: 748).
165
Para Pereira-Pereira (2012: 749), há uma “laborização precária da política social, visto que a principal
responsabilidade desta, principalmente da assistência, é a de ativar os demandantes da proteção social
para o trabalho”.
166
A descidadanização da política social ocorre, tendo em vista que “a maior parte do trabalho oferecido
pela ética da autorresponsabilização dos pobres pelo seu próprio sustento e bem-estar é dissociada da
cidadania; ou melhor, trata-se de trabalho precário (apesar de primar pela intensificação qualitativa dos
ritmos produtivos, haja vista o caso dos operadores de telemarketing), flexível, mal pago e desprotegido”
(PEREIRA-PEREIRA, 2012: 749).
265
167
Recentemente, em 08 de abril de 2013, foi publicado o Decreto nº 7.984, que regulamenta a Lei nº
9.615/98.
168
Para detalhes sobre os bastidores das corrupções e outros atos ilícitos das entidades de administração
esportiva, recomendamos os livros do repórter britânico Andrew Jennings (SIMSON & JENNINGS,
1992; JENNINGS, 2011).
267
A CPI da Câmara dos Deputados - cujo relatório final foi arquivado – trouxe
uma série de denúncias e comprovações, com destaque para a parceria entre a CBF e
uma empresa de marketing esportivo, que promoveu o enriquecimento de ambos, ao
passo que os clubes brasileiros acumulavam dívidas impagáveis. Os trabalhos dessa
comissão evidenciaram as relações espúrias entre a CBF e as federações estaduais,
levando à deterioração da organização confederativa e à transformação dessas entidades
em lócus do continuísmo, nepotismo e corrupção (REBELO & TORRES, 2001).
A investigação das contas da CBF comprovou a administração ruinosa da
entidade por meio da má aplicação dos recursos em despesas duvidosas e não
justificadas, além do pagamento de altos salários e remunerações indevidas170. As
apurações permitiram identificar a realização de doações políticas, cuja finalidade seria
sustentar influências no Parlamento, especialmente junto ao grupo alcunhado por
“bancada da bola” 171 (REBELO & TORRES, 2001).
A lista de atos ilícitos dos responsáveis pela gestão da CBF é longa e inclui os
crimes de sonegação de receita e evasão de divisas. Em 2000, a CBF foi autuada pela
Receita Federal do Brasil (RFB) por irregularidades de sonegação de imposto de renda,
169
“O Brasil não é o país do futebol” (entrevista com o jornalista Juca Kfouri). Le Monde Diplomatique,
07 jun. 2010.
170
Ricardo Teixeira, então presidente da CBF, recebeu R$ 126 mil em 1998 e R$ 418 mil em 2000. No
ano de 2001, sua remuneração mensal era de R$ 35 mil (REBELO & TORRES, 2001). Rendimento bem
superior - na época - ao subsídio recebido pelos ministros do Supremo Tribunal Federal, que corresponde
ao teto do funcionalismo público.
171
Nas campanhas eleitorais de 1998, a CBF doou o total de R$ 612,5 mil a candidatos ao Parlamento.
268
Tabela 19 - Valores em R$ autorizados e liquidados pelo ME, deflacionados pelo IGP-DI, bem como a
participação no OGU liquidado pelo Poder Executivo.
Ano Autorizado (milhões) Liquidado (milhões) Participação (%)
2004 568,96 402,56 0,09
2005 928,23 573,37 0,12
2006 1.302,63 943,22 0,19
2007 1.979,68 1.777,64 0,32
2008 1.682,96 1.154,49 0,19
2009 1.576,60 1.058,24 0,17
2010 2.195,29 1.095,98 0,16
Fonte: SIGA Brasil – Senado Federal. (Elaboração própria).
172
Vale ressaltar que, conforme Behring (2008), a renúncia fiscal é mais um elemento que contribui para
a reorientação do fundo público para as demandas do empresariado, alimentando a crise fiscal.
270
173
Segundo Castellani Filho (2007, apud CASTELAN, 2011), no período de 2003 a 2010, o setor
progressista do campo esportivo foi composto pelo Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte e seus
membros dirigentes. Por outro lado, os dirigentes de clubes, Federações e Confederações formavam a
parcela mais conservadora deste campo.
174
É importante destacar que sob a vigência do governo Dilma essa proximidade sofreu certo
esgarçamento. Primeiramente, a troca de Orlando Silva por Aldo Rebelo à frente do ME – embora
motivada por outros aspectos – foi uma clara demonstração de que o trânsito de Ricardo Teixeira pelo
Planalto estava obstaculizado. Provavelmente, a presidenta não contava que em seu lugar assumisse um
aliado da Ditadura Militar, fato que, até a Copa das Confederações de 2013, manteve certo afastamento
entre a Presidência da República e a CBF.
271
175
“Lula, principal financiador do Pan, deve ser ‘figurinha fácil’ no evento”. Folha de S. Paulo, 13 jul.
2007.
176
“Nuzman festeja vitória política”. Folha de S. Paulo, 03 out. 2009.
272
177
Referimo-nos, basicamente, àqueles que poderíamos denominar de “políticos de carreira”. Isso porque,
não ignoramos a existência de intelectuais ligados à Educação Física, com experiência em gestão de
políticas de esporte e lazer, no interior do PT.
178
A ausência ressaltada não deve ser compreendida como a inexistência de uma discussão sobre o tema
no âmbito das reuniões partidárias. Mesmo porque, desde 1992, o esporte era debatido e sistematizado, o
que se comprova pela publicação do caderno “O Modo Petista de Governar” (Secretaria Nacional de
Assuntos Institucionais do PT, 1992), com um capítulo intitulado “Direito ao ócio”.
179
Segundo Gramsci (1976: 159): “A grande política compreende as questões ligadas à fundação de
novos Estados, com a luta pela destruição, a defesa, a conservação de determinadas estruturas orgânicas
273
183
Um exemplo da heterogeneidade do campo esportivo é a composição da Comissão Organizadora
Nacional da I CNE, que contou com os seguintes representantes: Secretaria Executiva do Ministério do
Esporte (ME), Secretaria Nacional de Esporte Educacional (ME), Secretaria Nacional de Esporte de Alto
Rendimento (ME), Secretaria Nacional de Desenvolvimento do Esporte e do Lazer (ME), Senado
Federal, Câmara dos Deputados, Comissão Nacional de Atletas (CNA), Fórum Nacional de Secretários e
Gestores do Esporte, Associação Nacional de Secretários Municipais de Esporte e Lazer (ASMEL),
Comitê Olímpico Brasileiro (COB), Comitê Paraolímpico Brasileiro (CPB), Confederação Brasileira de
Futebol (CBF), Conselho Federal de Educação Física (CONFEF), Colégio Brasileiro de Ciências do
Esporte (CBCE), Central Única dos Trabalhadores (CUT), Confederação Nacional das Associações dos
Moradores (CONAM), dentre outras representatividades nacionais (BRASIL, 2004).
278
O embate entre as instâncias ministeriais foi crescente até o ano de 2006, quando
uma articulação interna no PT decidiu substituir seus representantes no ME e colocar
novos sujeitos, incumbidos pelas tarefas de manutenção do status quo e de
apaziguamento das contradições. Entretanto, já haviam corolários dos embates travados
até aquele momento, uma vez que eles permearam importantes ações da primeira gestão
do ME, tais como: a construção da Política Nacional de Esporte (2005); a constituição e
reformulação do Conselho Nacional de Esporte; e as deliberações das duas primeiras
Conferências Nacionais de Esporte. Passemos, de agora em diante, ao estudo das
características e resultados das CNEs.
A história de consolidação do capitalismo brasileiro denota sua orfandade em
relação a experiências democráticas. Para Coutinho (1967), no Brasil a evolução do
capitalismo não foi precedida por aspirações humanistas, nem tampouco por tentativas
de concretizar efetivamente a figura do cidadão e da comunidade democrática. Na
medida em que as transformações políticas se apresentavam como necessárias, elas
eram construídas “pelo alto”, através de “conciliações e concessões mútuas, sem que o
povo participasse das decisões e impusesse organicamente a sua vontade coletiva”
(COUTINHO, 1967: 142-143).
A presença histórica de um sistema democrático disforme e apartado da
participação popular é um dos aspectos que justificam as observações de Nogueira
(1998) acerca do processo eleitoral no Brasil. De acordo com o autor, não é motivo para
estranhamento a grande importância das práticas eleitorais na vida política nacional,
além do fascínio despertado por esses momentos sobre o imaginário popular. Isso
porque, as eleições converteram-se em um dos pouquíssimos espaços de educação
política do povo e no centro das disputas políticas mais significativas. Ademais, a
despeito de todos os problemas que ainda marcam esses momentos, trata-se de um
episódio no qual a democracia faz-se mais próxima e ao alcance de grande parcela da
população, tornando seu sentido mais palpável e palatável.
280
No que se refere ao esporte, o governo afirma que - assim como em todas as suas
esferas - ocorreram iniciativas no intuito de privilegiar a participação social na
elaboração e no controle das políticas públicas. Neste sentido, sob a responsabilidade do
Ministério do Esporte, são destacadas as seguintes ações: a) realização de três edições
281
185
Coutinho refere-se ao seguinte livro de Caio Prado Junior: Evolução política do Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1983.
286
especialmente as Olimpíadas de 2016, após a decisão já ter sido tomada pela prefeitura
e governo do Estado do Rio de Janeiro. O documento desconhece qualquer tipo de
influência do COB ou COI, bem como de alguma Federação, Confederação, Associação
ou organização de direito privado no processo. Com relação ao envolvimento da União
na campanha carioca à sede do evento, o texto aponta que houve uma reciprocidade de
interesses entre as diferentes esferas governamentais e que a cidade não conseguiria
sediar os jogos sem o protagonismo e as garantias do Governo Federal.
O Sistema Nacional do Esporte, que foi principal deliberação da primeira
Conferência e pauta única da segunda edição, aparece na III CNE como mais uma linha
estratégica, entre outros nove temas. Castelan (2011) destaca que, além da depreciação
que o tema do SNEL sofreu, chama atenção o fato de um assunto tão debatido em
Conferências passadas ser retomado sem qualquer tipo de avanço no sentido de
implantá-lo. Ademais, na linha estratégica que trata do Sistema não há novidade, uma
vez que são apenas reproduzidas as deliberações da I e II CNE.
Ao mesmo tempo, outras temáticas relevantes e recorrentes nas edições
anteriores são relegadas a um plano secundário, tais como: o controle democrático das
entidades de direito privado que recebem recursos públicos e a
universalização/democratização dos direitos sociais. As conclusões da III CNE
reproduzem os limites observados nas anteriores, pois, novamente, subjugam a
descentralização e a participação popular ao papel de instrumentos de legitimação das
políticas públicas.
Mascarenhas (2012) concorda que o direcionamento da agenda governamental
para os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro exclui a participação popular e o controle
democrático. O chamado “projeto olímpico” é um típico exemplar de top down policies,
pois foi construído de forma verticalizada pelo COB e por representantes de governo,
sem qualquer discussão junto à sociedade civil. Segundo Mascarenhas (2012), há o
redirecionamento das ações do ME, antes orientadas por uma agenda de viés social
vinculada ao discurso de democratização do acesso à prática esportiva via programas
sócio esportivos. Não obstante os megaeventos já constituírem o princípio organizador
da agenda esportiva nacional antes mesmo da realização da III CNE, uma vez que a
candidatura do Rio de Janeiro data de 2006, não podemos ignorar que a III CNE
consubstancia-se em um tipo de “revolução passiva” e sinaliza a mudança de trajetória
ministerial, conferindo legitimidade às políticas em curso.
288
186
Designação utilizada por Mandel (1982) na análise desta fase do capitalismo inaugurada na passagem
dos anos sessenta aos setenta, do século passado.
290
Gráfico 10 - PLOA 2012 por GND - Orçamento Fiscal e da Seguridade Social, exceto
refinanciamento da dívida pública – em %.
291
Reservas de
Contigência
2,14 Amortização
52,13
Outras Despesas
Correntes
Juros e Encargos da
Dívida
Pessoal e Encargos
Sociais
187
“Lula, principal financiador do Pan, deve ser ‘figurinha fácil’ no evento”. Folha de S. Paulo, 13 jul.
2007.
293
188
Vale ressaltar que essa preocupação está no âmago da proposta defendida pelo Colégio Brasileiro de
Ciências do Esporte (CBCE) de criação de um Fundo Setorial do Esporte (CT-ESPORTE), com fonte
vinculada a partir de 10% do total dos recursos destinados ao fomento do esporte provenientes do repasse
da Lei Agnelo-Piva.
189
É importante frisar que, conforme alerta Salvador (2010), os índices de execução orçamentária poderiam ser mais
baixos, tendo em vista que os resultados da execução orçamentária de 2006 e 2007 estão influenciados por uma
mudança na contabilização das despesas liquidadas realizada pelo governo Lula, ao incluir na variável “liquidado” do
orçamento público os restos a pagar não processados.
294
Tabela 20 - Comparação entre a dotação inicial, o empenhado e pago, dentro da função “Desporto e
Lazer” no período de 2004 a 2010, valores em R$ deflacionados pelo IGP-DI.
Ano Dotação Inicial (milhões) Empenhado (milhões) Pago (milhões) Execução (%)
2004 530,14 402,05 218,66 41,25
2005 854,84 572,84 148,73 17,40
2006 1.132,10 942,69 340,02 30,03
2007 1.159,53 1.777,13 947,44 81,71
2008 1.361,42 1.152,14 243,04 17,85
2009 1.502,10 1.055,60 156,71 10,43
2010 1.601,69 1.094,10 270,56 16,89
TOTAL 8.141,82 6.996,55 2.325,16 28,56
Fonte: SIGA Brasil – Senado Federal. (Elaboração Própria).
Gráfico 11 - Comparação entre a dotação inicial, empenhado e pago (em milhões) dentro da função
“Desporto e Lazer”, no período de 2004 a 2010.
2000
1800
1600
1400
1200
Dotação Inicial
1000
Empenhado
800
Pago
600
400
200
0
2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
ambiente cingido por grupos que disputam a diminuta fatia do fundo público destinada
ao setor. Essas disputas acabam se refletindo na distribuição dos recursos do ME pelas
secretárias e programas ministeriais. As Tabelas 21 e 22 - compostas pelos programas
do ME com maior relevância orçamentária no período de 2004 a 2010 – trazem dados
que ilustram essas vicissitudes.
Tabela 21 - Valores em R$ pagos por programa no período de 2004 a 2010 (em milhões), deflacionados
pelo IGP-DI.
Programas 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 Média Média
2004- 2008-
2007 2010
Brasil no 9, 47 7,86 10,30 7,91 58,84 17,96 74,54 9,21 50,45
esporte de
alto
rendimento
Rumo ao 55,01 7,75 158,16 820,52 0,00 0,00 0,00 344,56 0,00
Pan 2007
Esporte e 56,48 13,78 34,99 22,69 22,84 4,76 20.993,60 38,06 21,92
lazer na
cidade
Segundo 42,69 68,65 69,30 35,68 94,93 60,12 75.562,16 49,22 76,87
tempo
Fonte: SIGA BRASIL – Senado Federal. (Elaboração própria).
Gráfico 12 - Comparação entre a somatória dos valores destinados aos programas PELC e PST e a
somatória dos valores destinados aos programas Rumo ao Pan 2007 e Brasil no Esporte de Alto
Rendimento, deflacionados pelo IGP-DI em R$.
298
900.000,00
800.000,00
700.000,00
600.000,00
500.000,00 PST e PELC
400.000,00
Rumo ao Pan e Brasil no
300.000,00 esporte de alto rendimento
200.000,00
100.000,00
-
2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
Fonte: SIGA Brasil – Senado Federal. (Elaboração própria).
Nota: valores em milhões
190
Dados disponíveis em: <http://www.portaltransparencia.gov.br/copa2014/financiamentos/home.seam>.
Acesso em: 14 mai. 2013.
300
Tabela 23 – Destinação dos recursos provenientes da Lei Agnelo/Piva (em milhões de R$), valores
deflacionados pelo IGP-DI.
Ano Total* COB Confederações Escolar Universitário
2007 113,81 52,79 47,05 9,51 4,45
2008 110,75 53,41 40,85 10,99 5,50
2009 101,76 52,82 34,48 9,80 4,66
2010 120,67 49,81 48,25 15,07 7,54
2011 132,84 56,77 59,12 12,48 4,47
Fonte: COB (elaboração própria).
* Não foram considerados os recursos de variação do Fundo de Reserva (Diferença entre Arrecadação e
Recursos Aplicados).
Tabela 24 – Distribuição dos recursos do COB provenientes da Lei Agnelo/Piva (em milhões de R$),
valores deflacionados pelo IGP-DI.
191
Informações disponíveis em: <http://www.portaltransparencia.gov.br/rio2016/matriz/>. Acesso em: 14
mai. 2013.
301
192
É imprescindível destacar que um estudo acurado sobre o investimento das estatais nas confederações
e federações esportivas é obstaculizado pela dificuldade em acessar esses dados orçamentários, uma vez
que tais recursos são entendidos como verba de marketing dessas empresas e não aparecem claramente
em seus balancetes.
302
193
Segundo Coutinho (2011), há uma concordância entre Gramsci e Lenin acerca do conceito de
hegemonia. Ambos concebem a hegemonia como superação do corporativismo, ou seja, como momento
da elevação da consciência de classe do particular para o universal.
303
Proni (2009) destaca que, no dia 2 de outubro de 2009, data em que o COI
oficializou a escolha do Rio de Janeiro como a cidade-sede dos Jogos Olímpicos e
Paraolímpicos de 2016 (pleito no qual também concorriam as cidades de Chicago,
Madri e Tóquio)194, o editorial do jornal estadunidense The New York Times publicou
um conjunto de artigos, que refletia sobre a seguinte questão: Quais os benefícios
econômicos de curto e longo prazo para a cidade que hospeda o evento?
De acordo com o autor, a síntese das respostas publicadas no jornal é que
existem prós e contras ao acolhimento das Olimpíadas. O periódico norte-americano
concluiu que “os benefícios de sediar o evento incluem a criação de empregos, a
atração de investidores, um impulso ao turismo e uma ‘plástica’ para a cidade”. Por
194
Proni (2009) destaca que a candidatura do Rio de Janeiro custou mais de R$ 88 milhões e apresentou o
projeto mais caro entre as quatro finalistas, bem como as garantias de execução, assumidas pelos
governos federal, estadual e municipal.
306
outro lado, afirmam que, “ainda assim, os investimentos públicos raramente valem a
pena, em especial por causa dos custos da manutenção das instalações esportivas que
são pouco utilizadas após os Jogos” (PRONI, 2009: 52).
Segundo Mascarenhas (2012), as promessas vinculadas à realização dos Jogos
Olímpicos, além do desenvolvimento econômico local, apresenta a possibilidade de
uma reestruturação urbana que torne a cidade social e internacionalmente atraente.
Neste caso, entende-se por atraente:
[...] a imagem de uma cidade adaptada à finalidade competitiva, apta a
receber novos fluxos de investimentos e especulação, de produção e
consumo, enfim, uma cidade ajustada às atuais formas e caminhos de
acumulação de capital (HARVEY, 2006, apud MASCARENHAS,
2012: 41).
195
O planejamento estratégico, de inspiração neoliberal, é, segundo Ascher (2001, apud Vainer, 20??),
mais uma expressão das proposições realizadas pela pós-modernidade, caracterizada pela incerteza e pela
multiplicação/fragmentação de atores sociais e interesses, corroendo as bases do antes inquestionável
“interesse comum”. Nesse sentido, no lugar do “interesse comum”, ter-se-ia assim entronizado o
reconhecimento (da legitimidade) da multiplicidade de interesses. A razão teria cedido o lugar à
negociação e a norma geral se apagaria em benefício dos acordos caso a caso.
307
presença brasileira nas rodadas de discussão acerca dos principais temas e problemas
internacionais consubstancia o desejo da política internacional do Governo Lula de
elevar o Brasil à condição de um autêntico global player.
É ilustrativo dos objetivos descritos acima o discurso do ex-presidente Lula após
a confirmação da cidade do Rio de Janeiro como sede das Olimpíadas de 2016.
Do fundo do coração, hoje é o dia, talvez, mais emocionante da minha
vida [...] senti muito mais orgulho de ser brasileiro do que eu já sentia
[...]. Eu, na verdade, não ganhei do Obama: foi o Rio de Janeiro que
ganhou de Chicago, de Madrid, de Tóquio [...]. O Brasil saiu do
patamar de país de segunda classe e entrou no patamar de país de
primeira classe. Eu acho que hoje o Brasil conquistou sua cidadania
internacional (grifo nosso)196.
196
Declaração do Presidente Lula na coletiva de imprensa no dia 02 de outubro de 2009, dia da
divulgação do resultado da cidade-sede da Olimpíada 2016. Publicada em O Globo, 03 out. 2010.
197
Trecho de pronunciamento da presidenta Dilma Rousseff durante a abertura oficial do Estádio
Nacional Mané Garrincha, na cidade de Brasília, em 18 de maio 2013.
308
198
Trecho da entrevista de Aldo Rebelo, ministro do Esporte, ao jornal O Estado de S. Paulo, em 12 jun.
2013. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/esportes,a-copa-vai-gerar-36-milhoes-de-
empregos-afirma-aldo-rebelo,1041320,0.htm>. Acesso em: 12 jun. 2013.
309
se chegar até a composição final daquele espetáculo. Quanto tempo foi gasto com a
adaptação ou produção do texto? Que argumentos foram utilizados para convencer os
patrocinadores? Há financiamento ou apoio estatal? Como ocorreu o processo de
seleção e composição do elenco? Quantos ensaios preparatórios foram necessários?
Quantos trabalhadores estão envolvidos na produção do figurino e do cenário? O que
pode ser aproveitado da estrutura para outra apresentação? Quais foram os mecanismos
de propaganda e divulgação utilizados?
Perguntas como essas dificilmente passarão pela mente de quem vai a uma peça
teatral. Os olhares buscam o imediato, restringindo-se à preocupação do quanto aquele
espetáculo conseguirá entretê-los e diverti-los. Esse comportamento meramente
contemplativo e de pouca reflexão crítica representava – até bem pouco tempo - a
atitude mais comum da população diante da iminente chegada dos megaeventos
esportivos no Brasil, opiniões e posturas acríticas eram, intencionalmente, estimuladas e
exploradas pela grande mídia e por setores beneficiados pelos investimentos
relacionados a esses eventos.
Entretanto, não há como desprezar o crescimento recente de estudos de caráter
crítico no âmbito acadêmico e a proliferação de movimentos sociais relacionados à
pauta dos grandes eventos esportivos. Com o intuito de se contrapor ao modelo de
gestão e denunciar as diversas violações de direitos que vêm sendo praticadas em nome
dos megaeventos, especialmente na cidade do Rio de Janeiro, movimentos sociais,
ONGs, instituições acadêmicas, grupos de pesquisa, lideranças populares e
representantes de comunidades diretamente afetadas por ações relativas a esses eventos
têm se mobilizado para “resistir à construção de uma cidade de exceção e pressionar
para estabelecer um processo amplo e democrático de discussão sobre qual deve ser o
real legado dos Megaeventos” (COMITÊ POPULAR DA COPA E OLIMPÍADAS DO
RIO DE JANEIRO, 2012: 76)199.
Em junho de 2013, o país foi surpreendido com uma onda de protestos iniciada a
partir do movimento contra o reajuste das tarifas do transporte público, em algumas
capitais do país. Essas manifestações foram, particularmente, intensas em cidades que
estavam abrigando a Copa das Confederações 2013 ou que serão sedes dos jogos da
199
Dentre as organizações acima, destacamos o trabalho dos Comitês Populares da Copa e das
Olimpíadas, cuja atuação busca fortalecer as lutas sociais por meio da realização de plenárias quinzenais,
realização de cursos de formação para lideranças populares, produção de material informativo, de
divulgação e denúncias, e realização de atos públicos. Entre março de 2011 e fevereiro de 2012, o Comitê
Popular Rio organizou treze atos com o objetivo de denunciar a violação de direitos.
311
Em contraposição, aqueles que adotam uma postura mais cética e/ou crítica
destacam que o evento foi imprescindível para o convencimento e, posterior,
engajamento do Governo Federal na candidatura brasileira à sede dos megaeventos
esportivos, especialmente os Jogos Olímpicos de 2016. Isso porque, diferentemente do
que afirma o Dossiê de Candidatura Rio 2016, uma das fragilidades na organização e
realização do PAN 2007 diz respeito à ausência de um alinhamento entre as esferas de
governo (municipal, estadual e federal).
312
não fossem concluídas, o que causaria enorme constrangimento político impactando nas
eleições municipais do ano seguinte.
Os orçamentos iniciais foram superados; pediu-se ajuda emergencial
ao Estado, especialmente, à União, para completar as obras de todos
os equipamentos; e não foi melhorada a infraestrutura. Foi implantado
o Engenhão, no meio de uma área absolutamente deteriorada e que
continuou deteriorada203.
203
Trecho da apresentação do doutor José Roberto Bernasconi, à época presidente do Sindicato Nacional
das Empresas de Arquitetura e Engenharia Consultiva, à Comissão de Fiscalização Financeira e Controle
da Câmara dos Deputados, no dia 30 de junho de 2009.
204
No caso específico da reforma do Maracanã, até início de 2012, ocorreram duas paralisações. A causa
da primeira estava relacionada a um acidente que feriu gravemente um operário após a explosão de um
315
barril que armazenava produtos químicos. Os dois mil operários que lá trabalhavam iniciaram uma greve
denunciando os baixos salários e as condições de trabalho precárias. Entre outras reivindicações, os
trabalhadores demandavam não só benefícios como plano de saúde e adicionais de periculosidade, mas
acima de tudo a melhoria das condições de trabalho dentro do canteiro de obras. Além disso,
reivindicava-se o fornecimento de equipamentos de trabalho e treinamento adequado para todos os
trabalhadores. Após algumas negociações, a greve foi suspensa e ficou acordado aumento na cesta básica
de R$110 para R$160, concessão do plano de saúde, pagamento dos dias parados e estabilidade para a
comissão de greve. Também foi aprovada uma comissão sindical para avaliar as condições de segurança
da obra. Ficou definido ainda que, após 90 dias, seriam negociadas a extensão do plano de saúde para as
famílias dos trabalhadores e o aumento salarial para os operários que estariam ganhando abaixo da média
do mercado (COMITÊ POPULAR DA COPA E OLIMPÍADAS DO RIO DE JANEIRO, 2012: 37).
316
205
Oliveira (2008: 120) explicita que críticos contemporâneos, dentre eles Harvey (2004), “têm afirmado
a tese de que estaríamos hoje num momento da história capitalista em que os processos típicos da fase da
acumulação primitiva de capital estariam presentes de modo muito mais intenso do que se imagina”.
317
206
“São na melhor das hipóteses grosseiras, na pior são estimativas pessoais" (tradução de Arlei Damo,
2012).
323
por ano, passando para 130 mil a cada um dos dez anos seguintes. Isso
porque, 55 setores da economia destacaram-se entre os que mais
poderão se beneficiar com a realização do megaevento. Do ponto de
vista nacional são eles: construção (10,5%), serviços imobiliários e
aluguel (6,3%), serviços prestados às empresas (5,7%), petróleo e gás
(5,1%), serviços de informação (5,0%), e transporte, armazenagem e
correio (4,8%)207.
Ademais, Proni (2009) explicita que o estudo traz afirmação de que a maior
movimentação nas transações econômicas proporcionaria um aumento na arrecadação
de impostos ao longo de todo o período analisado (2009-2027), crescimento que
representaria um retorno de aproximadamente 97% dos investimentos públicos na
Olimpíada do Rio. Outros benefícios advindos dos investimentos ligados aos Jogos Rio
2016 seriam a criação de mais de 120 mil empregos por ano até 2027, bem como o
aumento no valor médio da massa salarial (de 8%, após a realização dos Jogos).
Em relação à geração de novas vagas no mercado de trabalho é preciso ponderar
que a maioria desses empregos é de caráter temporário, pois seus vínculos
empregatícios estão diretamente vinculados ao período de realização das obras de
infraestrutura esportiva e urbana. Baade e Matheson (2002), citados por Giambiagi et al.
(2010), apresentam estimativas de que, nas Olimpíadas de Atlanta 1996, o Estado da
Geórgia gastou US$ 1,6 bilhão para criar aproximadamente 25 mil empregos
permanentes (em uma projeção otimista), correspondendo a um investimento de US$ 64
mil por emprego criado, o que consubstancia um subsídio considerável.
Vale mencionar que a efemeridade desses contratos de trabalho podem ter
implicações sociais relevantes, principalmente sobre o contexto local das cidades-sede.
Isso porque, tais empreendimentos estimulam o deslocamento de uma massa de
trabalhadores interessados nos empregos gerados no processo de implementação do
investimento, mas que com o fim das obras ficam desempregados, pressionando os
serviços públicos locais e agravando as condições de vida no território.
O estudo “Brasil sustentável”, produzido pela consultoria Ernst & Young,
apresenta os impactos socioeconômicos da Copa Do Mundo 2014 (Quadro 4).
Conforme essa pesquisa, a economia brasileira será capaz de quintuplicar o total de
aportes aplicados diretamente na concretização do evento, impactando diversos setores.
Além dos gastos de R$ 22,46 bilhões no Brasil relacionados à Copa para garantir a
207
Trecho da matéria intitulada “Rio 2016 gerará impactos socioeconômicos positivos no Brasil”.
Disponível em: <http://rio2016.org.br/noticias/noticias/rio-2016-gerara-impactos-socioeconomicos-
positivos-no-brasil>. Acesso em: 12 ago. 2013.
324
Outro dado relevante do trabalho produzido pela Ernest & Young diz respeito
aos impactos diretos e indiretos sobre o PIB de diferentes setores da economia. Essa
informação é bastante elucidativa para identificarmos quais são as frações de classe que
são prioritariamente beneficiadas pela chegada dos megaeventos no país. A título de
ilustração, no topo da lista de beneficiados localiza-se o setor da construção civil que irá
gerar R$ 8,14 bilhões a mais no período de 2010 a 2014, sendo a produção total do
setor, para o ano de 2010, estimada em R$ 144,6 bilhões.
Mais uma análise relevante apresentada pela consultoria refere-se ao
mapeamento dos investimentos e seus efeitos nas economias locais, sobretudo naquelas
cidades que sediarão os jogos da Copa do Mundo de 2014. Um dado inicial deste
mapeamento é que Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, embora estejam entre as
cidades que receberam maior aporte de recursos (Gráfico 13), devido ao fato de já
possuírem PIBs regionais mais elevados, registram impactos menores sobre a economia
local, ao passo que cidades como Natal e Cuiabá, que possuem PIBs menos expressivos,
apresentam impacto direto mais significativo (respectivamente, 7,1% e 5,7%) – vide
Tabela 24.
325
208
Segundo os autores, foram consultados oito bases de dados e 23 periódicos com a utilização de 20
termos de busca. Todos os artigos considerados foram publicados entre 1997 e 2007, tiveram revisão
pelos pares e apresentavam metodologia de pesquisa definida e compatível (PREUSS, 2007: 67).
327
pela taxação do consumo e dos serviços ligados à realização dos grandes eventos
esportivos 209. Contudo, o maior agravante é que se observarmos o comportamento da
política tributária brasileira - especialmente a partir de 1999, por força dos acordos com
o FMI - verificaremos que a elevação da arrecadação tributária não se destinou para os
serviços públicos, mas sim para cobrir – e apenas em parte - os juros e a amortização da
dívida pública, que será elevada em virtude dos investimentos públicos nos
megaeventos esportivos.
Um segundo aspecto, mas que se relaciona e reforça a ponderação acima, é que
o crescimento da arrecadação poderia alcançar patamares mais elevados desde que não
fossem concedidas, por parte do Governo Federal, isenções fiscais às entidades
internacionais de administração esportiva, bem como a seus parceiros comerciais210.
Tais concessões fazem parte de uma série de exigências impostas pela FIFA e o COI
ainda no momento da candidatura brasileira à sede da Copa do Mundo 2014 e das
Olimpíadas 2016, sendo o atendimento a essas demandas determinante para a escolha
do país. Cabe destacar que esses compromissos, mais recentemente, foram ratificados e
oficializados por um conjunto de leis: Lei nº 12.350, de 20 de Dezembro de 2010, Lei
Geral da Copa (Lei nº 12.663, de 5 de Junho de 2012) e pela Lei nº 12.780, de 9 de
Janeiro de 2013.
A prática de isenção fiscal a “investidores” estrangeiros não é um expediente
extraordinário na história brasileira - Ianni (1994) observou esse exercício como um dos
elementos de intervenção estatal da década de 1950 na tentativa de dinamizar o
desenvolvimento econômico. O referido expediente também não é inaudito em se
tratando de Governo Lula. Salvador (2010) relembra que, por meio da edição da MP nº.
281/2006, o referido governo reduziu a zero a alíquota de IR e CPMF para esse mesmo
grupo. Como as operações beneficiadas por esta MP são cotas de fundos de
investimentos exclusivos para investidores externos que possuam no mínimo 98% de
209
De acordo com o documento do Ipea, com base em dados divulgados pelo IBGE, intitulado Receita
pública: quem paga e como se gasta no Brasil (BRASIL, 2009), famílias com renda mensal de até dois
salários mínimos gastam, em média, 50% de sua renda com o pagamento de tributos, ao passo que
aquelas com renda de mais de trinta salários pagam menos de 30% (BRETTAS, 2012).
210
Entre as garantias governamentais asseguradas à FIFA pelo país hospedeiro da Copa, destacam-se: “a)
taxas e impostos alfandegários: isenções de impostos e outros encargos de importação e exportação para
bens e mercadorias relacionados com as atividades das competições, incluindo equipamento técnico
pertencente às seleções de cada país e às redes jornalísticas de comunicação, bem como equipamentos
para escritórios, para cuidados médicos das equipes e para marketing esportivo, entre outras atividades; b)
isenção tributária: isenção de taxas, impostos ou tributos concedida a estrangeiros para o exercício de
atividades relacionadas às competições e desempenhadas pela FIFA, entidades associadas, times, equipes
de arbitragem, redes jornalísticas de comunicação e comercialização de ingressos, entre outras”
(CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2010: 74).
329
títulos públicos brasileiros, o autor conclui que essa benevolência tributária beneficiou
majoritariamente aos bancos211.
A isenção de imposto promovida pelo Governo Federal, por meio da Lei Geral
da Copa, tem duração prevista até dezembro de 2015. Vale mencionar que o referido
benefício será usufruído pelos organizadores do Mundial, comitês locais e seus
parceiros (inclusive a rede de televisão com os direitos de transmissão dos jogos) em
todas as transações comerciais relacionadas à Copa das Confederações e à Copa do
Mundo212.
De sua parte, o governo alega que a redução do volume de impostos será
pequena em comparação com o aquecimento previsto da economia, beneficiando muitos
setores e aumentando a competitividade de produtos e serviços ligados à Copa em
relação aos concorrentes internacionais. No entanto, é no mínimo um contradictio in
terminis que os trabalhadores que contratados pela FIFA em território nacional não
gozarão dos mesmos benefícios concedidos à entidade.
Enquanto a Fifa e as empresas parceiras da entidade estão livres do
pagamento de impostos na realização da Copa das Confederações
deste ano e da Copa do Mundo de 2014, o mesmo não pode ser dito
sobre os trabalhadores brasileiros que prestarem serviço na
organização desses eventos. Quem for contratado diretamente pela
Fifa ou suas empresas estrangeiras parceiras, além de ter que recolher
normalmente sua parte, inclusive do imposto de renda, ainda será
obrigado a pagar uma parte do imposto que caberia à entidade máxima
do futebol ou suas parceiras213.
211
“No período de 2004 a 2007, estima-se que a distribuição de juros sobre capital próprio feita pelas
empresas aos seus acionistas totalizou R$ 76 bilhões. Esse mecanismo permitiu uma redução nas despesas
dos encargos tributários das empresas, no tocante ao recolhimento de IRPJ e CSLL, de R$ 25,8 bilhões
[...]. Cerca de 27% desse valor seria destinado à seguridade social, por meio da CSLL. O recolhimento de
15% do IRRF pelo credor do recurso significou uma renúncia tributária do Estado brasileiro a favor do
grande capital, especialmente os bancos, de R$ 16 bilhões, em valores atualizados pelo IGP-DI”
(SALVADOR, 2010: 201).
212
Fato é que as inúmeras regras de exceções contidas nestes atos legislativos levaram a disputas no
interior do próprio Estado. A Procuradoria Geral da República impetrou Ação Direta de
Inconstitucionalidade (nº 4.976) junto ao Supremo Tribunal Federal. Já a Advocacia Geral da União tenta
defender a constitucionalidade da Lei Geral da Copa, alegando que as regras foram criadas segundo
compromissos assumidos pelo Brasil quando o país se candidatou para recepcionar o evento.
213
Trecho da matéria intitulada “Brasileiro contratado para trabalhar na Copa de 2014 terá que pagar
parte de imposto que caberia à Fifa”. Disponível em:
<http://copadomundo.uol.com.br/noticias/redacao/2013/01/09/fifa-e-parceiras-sao-isentas-mas-brasileiro-
que-trabalhar-na-copa-de-2014-tera-que-pagar-imposto-ao-governo.htm>. Acesso em: 14 ago. 2013.
330
214
Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=oHDpugDHF7M&feature=relmfu. Acesso em: 15
ago. 2013.
215
Com a venda das cotas de patrocínio da Copa de 2010, a FIFA embolsou 2,6 bilhões, segundo o
secretário-geral da FIFA, Jérôme Valcke. O valor é 30% superior ao da Copa da Alemanha, em 2006.
Para o Brasil, a FIFA estima que o montante chegue a 2,9 bilhões (Valor Econômico, 3/5/2010).
332
Segundo Damo (2012: 66), essa disparidade nos dividendos arrecadados com os
investimentos mobilizados para um megaevento esportivo, ao menos no caso da Copa
do Mundo, está bem clara para a FIFA desde a escolha do país-sede.
Compreendendo a Copa como um evento comercial, a FIFA trata o
país-sede como parceiro, procurando convencê-lo das vantagens de
sediar o evento e, sobretudo, precavendo-se, de todas as formas
possíveis, de que sua parte no negócio seja lucrativa. O sucesso do
empreendimento, a FIFA sabe muito bem, depende da performance do
seu principal parceiro de realização - o que não implica dizer que seja
um parceiro dos lucros, evidentemente. A FIFA seduz o país-sede
alardeando que "a copa é uma oportunidade" - algo vago, portanto -
que cabe ao país aproveitar. O que lhe importa, sobremaneira, é que o
país-sede ofereça as condições para a realização do evento, e isso
implica no dispêndio de recursos públicos. Na verdade, ao invés de
dizer que a FIFA escolhe o país-sede, seria mais condizente afirmar
que ela compromete um governo e, segura disso, anuncia o país ao
qual aquele governo corresponde como o local da Copa.
216
Trecho de matéria intitulada “Autoestima dos brasileiros”, Le Monde Diplomatique, 07 jun. 2010.
333
1,85
1,70
1,54
1,44 1,38 1,40
1,23
0,88
0,71
0,0 0,0
Educação Saúde PBF BPC RGPS RPPS Construção Exportação Juros da
Civil Commodities Dívida
Pública
217
Trecho da matéria intitulada “Nas mãos de Nuzman”. Folha de S. Paulo, 29 jul. 2010.
334
0,0 0,0
Educação Saúde PBF BPC RGPS RPPS Construção Exportação Juros da
Civil Commodities Dívida
Pública
Áreas sociais Outras
anos. No caso dos estádios privados, o BNDES informou que parte dessa linha de
crédito poderia ser utilizada, desde que haja parceria com entes públicos220.
A 9ª Secretária de Controle Externo do TCU, com o apoio das Secretarias
Especializadas de Fiscalização de Obras (Secob’s), tem acompanhado a regularidade
dos procedimentos de concessão dos financiamentos a cargo do BNDES. Após
levantamento de dados fornecidos pelo próprio BNDES, a 9ª SECEX elaborou a tabela
abaixo.
Tabela 25 - Situação dos Financiamentos dos Estádios da Copa de 2014, em 06 de dezembro de 2012.
Estádio Fase Valor Contratado Data da Últ. Liberação-Total % liberado
(milhões R$) Lib. (milhões R$)
Amazonas Contratado 400 04/12/2012 231,23 58%
Bahia Contratado 323,63 10/09/2012 291,27 90%
Ceará Contratado 351,55 24/08/2012 248,91 71%
Pernambuco Contratado 400 29/10/2012 230,08 58%
Mato Grosso Contratado 392,95 29/08/2012 161,10 41%
Rio de Janeiro Contratado 400 20/08/2012 248 62%
Minas Gerais Contratado 400 29/10/2012 380 95%
Distrito
_ _ _ _ _
Federal
São Paulo Em aprovação 400 _ _ _
Rio Grande do Em aprovação 277
_ _ _
Sul
Paraná Contratado 131,17 _ _ _
Rio Grande do Contratado 396,57 17/08/2012 154,12 39%
Norte
TOTAL 3.872,87 _ 1.944,70 50%
Fonte: BNDES, apud TCU (2012).
220
Outros setores direta e indiretamente ligados aos megaeventos esportivos também passaram a
reivindicar linhas de financiamento junto ao BNDES. Nesse sentido, em fevereiro de 2010, o BNDES
anunciou outra linha de financiamento, no valor de R$ 1 bilhão, para reforma, ampliação e construção de
hotéis, o BNDES ProCopa Turismo. O aumento da capacidade da rede hoteleira visa a atender às
demandas tanto da Copa quanto da Olimpíada de 2016. Um pouco antes, o governo federal já havia
disponibilizado até R$ 9 bilhões do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) para obras de
transporte que facilitem o acesso a estádios, aeroportos e portos nas 12 capitais-sede.
337
Vale destacar que o faturamento nas obras de construção e reforma dos estádios
destinados à Copa do Mundo de 2014 não é um acontecimento restrito à obra do
Maracanã, conforme demonstra os relatórios de acompanhamento da 9ª SECEX do
TCU sobre os recursos advindos do BNDES.
Após auditoria realizada nos projetos executivos da obra de
reconstrução da Arena Manaus e discussão com os técnicos do
governo do Estado do Amazonas, o Tribunal concluiu pela existência
221
Vale mencionar que a Delta Construções foi indiciada na Comissão Mista de Inquérito Parlamentar
sobre as atividades do bicheiro Carlos Eduardo Ramos (Carlinhos Cachoeira). A CPI apurou que, com o
auxílio do referido bicheiro, a Delta Construções teria construído uma rede nacional de funcionários
públicos e de políticos, recipientes de suborno em troca de contratos para obras públicas.
222
Mais recentemente, o consórcio Maracanã S.A. venceu processo licitatório, que concedeu ao grupo,
formado pelas empresas Odebrecht (90%), IMX (5%), de Eike Batista, e a americana AEG (5%), o direito
de administrar o Maracanã pelos próximos 35 anos.
223
De acordo com Documento Informativo do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA), as duas
maiores empresas de construção brasileiras envolvidas na Copa do Mundo são a Andrade Gutierrez e a
Odebrecht. Além do Estádio do Maracanã, a Andrade Gutierrez está envolvida na construção do Estádio
Nacional, Mané Garrincha (Brasília), da Arena Amazonas (Manaus), do Estádio Beira-Rio (Porto Alegre)
e do Estádio do Maracanã (Rio de Janeiro). Já a Odebrecht atua também na construção do Estádio da
Fonte Nova (Salvador), da Arena Pernambuco (Recife) e do Itaquerão (São Paulo). Os seja,
conjuntamente as duas empresas são responsáveis por 7 dos 12 estádios da Copa do Mundo.
224
Trecho de matéria intitulada “Custo do Maracanã fica mais caro e chega a R$ 1,192 bi”, O Estado de
S. Paulo, 22 jun. 2013. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/esportes,custo-do-maracana-
fica-mais-caro-e-chega-a-r-1192-bi,1056174,0.htm>. Acesso em: 16 ago. 2013.
339
225
Informações sobre o FAT estão disponíveis em:
<http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/bndes_pt/Institucional/BNDES_Transparente/Fundos/Fat/>
. Acesso em: 16 ago. 2013.
226
A respeito da precarização do trabalho nas obras vinculadas aos estádios da Copa do mundo de 2014,
recomenda-se a leitura do Editorial da Revista Motrivivência, Ano XXIII, Nº 36, p. 07-25 Jun./2011.
227
Cf. “A maioria é contra”. Folha de S. Paulo, Caderno Esporte, 16 ago. 2010.
340
urbano, enfatizadas por alguns autores (MASCARENHAS, G., 2009; VAINER, 2011;
GARCIA et al., 2011).
Segundo Vainer (2011) e Garcia et al. (2011), assistimos – devido à influência
dos preceitos neoliberais – uma transição de uma concepção de planejamento moderno,
com participação ativa do Estado, para um planejamento competitivo, que preconiza a
flexibilidade, além da orientação (market oriented) e afeição ao mercado (market
friendly). Norteadas por essas proposições, as cidades se lançam em disputas homéricas
pelo direito de sediar os megaeventos esportivos, almejando a conquista de
investimentos, preferencialmente capitais estrangeiros. Esse cenário revela uma cidade
transformada em mercadoria, nas palavras de Vainer (2000), posta à venda. Neste
sentido, se a cidade deve funcionar conforme uma verdadeira empresa - e como tal deve
ser conduzida - é recomendável entregá-la, sem hesitação e sem mediações, a quem
entende de negócios: os empresários capitalistas (VAINER, 2011).
Utilizando a expressão “urbanismo ad hoc”, cunhada por François Ascher
(2001), Vainer (2011) ressalta que este modelo, baseado no “desenvolvimento urbano
espontâneo”, irá afirmar a primazia do mercado, definindo a oportunidade de negócio
como determinante da nova cidade e do novo planejamento. A ideia de urbanismo ad
hoc sintetiza a noção de flexibilidade, apoiada na perspectiva da eficiência empresarial,
que, por sua vez, irá nos remeter a uma expressão bastante em voga – para não dizer um
modismo – que é o termo “janela de oportunidades”. Diante dessa concepção, a gestão
e/ou gestor eficiente é aquele capaz de identificar e aproveitar uma oportunidade antes
de seus concorrentes - no caso da candidatura à sede dos megaeventos -, as cidades
concorrentes.
Essa compreensão de gestão e planejamento traz em seu âmago um permanente
e sistemático processo de desqualificação da política, pois transmite a ideia de que uma
gestão ágil e transparente deve orientar-se por critérios de eficiência econômica e
eficácia social, abandonando a influência políticas e o controle burocrático.
O arrefecimento da dimensão política acompanha uma leitura esterilizada da
cidade, como local que não apresenta divergências políticas e ideológicas, mas apenas
“assuntos locais”, com os quais se identificam os citadinos que se encontram irmanados
e igualmente interessados na afirmação da competitividade de sua cidade. Depreende-
se, portanto, que na cidade não há espaço para questões ideopolíticas, mas tão-somente
interesses. Na verdade – afirma Vainer (2011: 6): “há apenas um único, verdadeiro,
legítimo interesse: a produtividade e a competitividade urbanas, condição sine qua non
343
do crescimento”. Esse estatuto foi posto em xeque diante dos acontecimentos recentes,
que levaram os cidadãos às ruas para protestarem em relação ao abandono das cidades
brasileiras, sobretudo no que diz respeito à prestação de serviços públicos de qualidade.
É curioso notar que as manifestações populares e o projeto de despolitização
inerente à concepção de planejamento estratégico possuem um ponto em comum: trata-
se da desqualificação das representações partidárias. Essa congruência torna ainda mais
vantajosa a configuração da figura de líder carismático e individualizado. Um
personagem, que tradicionalmente seria “visto como um desvio ou ameaça às formas
burguesas de democracia, aparece, no discurso estratégico, como portador da virtude
máxima do novo poder gestionário, e, mais que isso, uma condição de cidade-empresa”
(VAINER, 2011: 6).
Retomando a obra de Poulantzas (1970, 1977, 1986), verificamos que esse autor
traz a afirmação de que formas de poder fortemente individualizado (cesarismo,
bonapartismo, fascismo, bismarckismo e caudilhismo) configuram respostas a
momentos de crise de hegemonia, intitulado “estado de exceção”. Segundo Jessop
(2009), a forma excepcional de Estado é uma resposta à crise de hegemonia no interior
do bloco no poder, o que ocorre quando nenhuma classe ou fração de classe consegue
impor sua “liderança” sobre os outros membros deste bloco.
Para Poulantzas (1970, 1986), o estado de exceção se configura como um tipo de
regime em que as classes dominantes não conseguem assumir diretamente o controle do
poder e, de certa forma, mandatam um “bonaparte” ou um grupo particular para dirigir o
Estado. Todavia, Grande (2000, apud Jessop, 2009: 139) destaca que:
Isso não envolve um genuíno ditador bonapartista, que concentra os
poderes despóticos em suas mãos, mas, por outro lado, envolve a
busca de uma figura de proa carismática que possa conferir um
sentido de direção estratégica às complexidades da política tanto para
as classes dominantes quanto, de uma forma mais plebiscitária, para as
massas populares.
228
Trecho de entrevista com Eddie Cottle, intitulada “África do Sul 2010: legado no bolso da Fifa e seus
parceiros”, Le Monde Diplomatique, 01 nov. 2011.
345
Há, no entanto, outra função exercida pelo Estado no bojo da organização dos
megaeventos esportivos. Estamos nos referindo à segunda categoria analítica
apresentada por O’Connor (1977), a legitimação. Essa dimensão reúne as despesas e
ações estatais no campo social como mecanismos de arrefecimento dos “custos sociais”
(efeitos colaterais) engendrados pelo favorecimento à acumulação capitalista. Trata-se
de uma tentativa paliativa de manter estável a ordem social, criando um ambiente
político seguro.
Recuperando um pouco da história recente do Brasil, é possível lembrar que a
conquista eleitoral de Lula foi representada, figurativamente, pela vitória da esperança
sobre o medo. Esse bordão foi decantado e celebrado efusivamente por Lula e seus
apoiadores. Entretanto, entendemos que a materialidade desse épico triunfo dependeria,
em larga escala, de uma ruptura e reorganização da trajetória histórica da política
brasileira jamais levada adiante. Frigotto (2004) afirma que o Governo Lula teria
introduzido um modus operandi novo e singular na política brasileira se tivesse, ao
mesmo tempo, enfrentado as reformas estruturais e a renegociação da dívida e dos juros
da dívida externa e interna, bem como efetivado políticas distributivas emergenciais.
Ademais, o autor ressalta que um rompimento dessa envergadura:
[...] não pode ser feito sem contrariar interesses dos organismos
internacionais, guardiões da rentabilidade máxima do grande capital,
mormente o financeiro, e dos interesses de grupos nacionais
vinculados a esta classe ou ao latifúndio e à escandalosa concentração
de renda (FRIGOTTO, 2004: 103).
229
Possuímos divergência em relação à autonomia da política externa brasileira afirmada pelo autor,
entretanto, essa discussão não é objeto de estudo deste trabalho.
347
230
Pereira-Pereira (2012: 745) afirma que: [...]de acordo com documentos oficiais (MDS, 2011), Lula
retirou 28 milhões de pessoas da pobreza, levou 36 milhões à classe média e reduziu para 8,5% (16,27
milhões) o número de brasileiros em estado de pobreza absoluta ou de miséria. As estatísticas também
mostram que no período compreendido entre 2002 e 2010 o desemprego caiu de 12% para 5,7% e o
rendimento das pessoas ocupadas aumentou em 35% em termos reais. Além disso, a partir de 2004, o
volume de ocupações formais começou a crescer, atingindo, em 2009, um recorde histórico — 59% dos
trabalhadores com carteira assinada — (IBGE/PNAD, 2009); e o salário mínimo teve pequena
valorização em termos reais.
348
Na mesma direção dos autores citados acima, Mészáros (2009) explicita que o
desenvolvimento potencialmente letal do sistema do capital na segunda metade do
século XX engendrou uma total perversão do consumo. Diante desse padrão de
consumo, não há um sujeito real ou tampouco uma necessidade humana que possa ser
positivamente satisfeitos com os objetos produzidos. Para Mészáros (2009), consumo e
produção formam uma unidade dialeticamente combinada - denominada pelo autor de
consumo produtivo – que submete toda a sociedade à aceitação do desperdício
destrutivo tanto na esfera produtiva, quanto na do consumo.
Outra dimensão do atendimento prioritário às necessidades do capital dentro do
projeto de reestruturação urbana da capital carioca decorre da concentração de
investimentos em áreas específicas, que já possuem um desenvolvimento urbanístico
acentuado, além de abrigarem parcela significativa da população com nível
socioeconômico elevado.
A Barra será o coração dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos Rio
2016. A região que mais cresce no Rio de Janeiro será um belíssimo
palco para as competições, recebendo atletas, espectadores e todos os
clientes dos Jogos231 com a natureza exuberante do bairro, cercado por
lagoas, montanhas e parques. Quase todos os novos equipamentos
estarão concentrados neste bairro (COB, 2009:35, grifo nosso).
231
O uso do termo clientes evidencia a dimensão comercial dos Jogos Olímpicos na visão do Comitê
Olímpico Brasileiro.
351
2007, bem como a minimização do tempo de deslocamento dos atletas, uma vez que a
Vila Olímpica será construída nesta região. No entanto, o que os discursos escodem é
que a opção pela concentração dos jogos nessas regiões atende prioritariamente à
especulação imobiliária.
A Barra da Tijuca e seu entorno foram eleitos para centralizar as
intervenções. Mediante uma ideia amesquinhada de cidade, foi
mostrado como sinal de êxito o sucesso imobiliário do
empreendimento da Vila Pan-Americana. Ressaltamos, contudo, que
ela teve como principal efeito urbano alimentar o processo
especulativo de valorização das terras232.
233
Op. cit. p. 406.
354
4.2.1. Os grandes eventos esportivos como estratégia para o manejo social do risco.
235
Trecho da máteria intitulada “A ‘cidade olímpica’ e sua [in]sustentabilidade”, Le Monde
Diplomatique, 04 maio 2012.
357
dos seus deveres, é apresentado como um sujeito ingênuo que labora cada vez mais para
receber cada vez menos.
Em relação à defesa francesa da presença do Estado como garantidor de direitos,
embora esse espírito alimentasse alguns setores envolvidos no processo de
redemocratização do Brasil, a ode neoliberal, que tomou de assalto o país logo após a
promulgação da Constituição de 1988, engendrou uma percepção de que o Estado
brasileiro era inoperante, ineficaz, falido, e que, por conseguinte, suas funções deveriam
ser reduzidas e transferidas a agentes privados, mais capacitados para enfrentar as várias
manifestações da marginalização social e econômica. Em consequência, assistimos
naquele período um amplo e diverso processo de desresponsailização estatal para com
a garantia dos direitos de cidadania.
Os organismos internacionais sempre tiveram uma grande influência sobre a
concepção e estruturação das políticas sociais dos países periféricos. Dentro desse
contexto, cabe frisar que - mais recentemente, a partir de 2000 - o Banco Mundial
(BIRD) operou uma reconfiguração nas políticas de proteção social, norteando-as por
uma matriz, de raiz liberal, voltada à “administração ou gestão do risco social” e focada
nos segmentos populacionais em “situação de vulnerabilidade”. Segundo Iamamoto
(2010), essa inflexão encontra suporte acadêmico em teóricos de amplo reconhecimento
na sociologia europeia, especialmente Ulrich Beck e Anthony Giddens, ilustrados pela
autora como: “municiadores intelectuais da ‘terceira via’ ante a ‘morte do socialismo’
e da ‘luta de classes’: os novos apologetas da economia de mercado e das finanças
mundializadas (IDEM, IBIDEM: 2)”.
Ulrich Beck introduz a noção de risco a partir de seus livros: Sociedade do Risco
(BECK, 1986) e Sociedade do Risco Mundial (BECK, 1999). De acordo com Iamamoto
(2010), Beck defende que o surgimento, notadamente na década de 1990, de riscos
globais (riscos ecológicos, riscos financeiros globais, as ameaças terroristas ao
Ocidente, entre outros) conforma um cenário favorável à dissipação de diferenças de
classe remanescentes da vida social no passado, o que permitiria a união entre “velhos
inimigos de classe”.
Anthony Giddens, além de reconhecido cientista social, tornou-se um
personagem influente nas altas hierarquias do Partido Trabalhista inglês, principalmente
devido sua defesa à “terceira via”. Tomando por base o estudo dos três grandes
clássicos da sociologia (Durkheim, Weber e Marx), Giddens cria uma interpretação
teórica na qual, conquanto reconheça que o capitalismo produz diferenças de classe que
359
236
Uma primeira demonstração da focalização das políticas sociais de segurança pública a partir do
conceito de vulnerabilidade foi dada pelo próprio ex-presidente Lula, em agosto de 2007, durante a
cerimônia de lançamento do Pronasci, momento no qual proferiu a seguinte frase: “Vamos apertar o cerco
do Estado contra o banditismo e estreitar os laços de cidadania com as populações e os lugares mais
vulneráveis”.
360
237
Trecho da matéria intitulada “É a questão urbana, estúpido!”, Le Monde Diplomatique, 01 ago. 2013.
361
o destino das pessoas que vão ser atingidas. Jamais a situação pode ser
pior do que a atual. Tem que ser igual ou melhor. Isso não tem a ver
com a casa, o tamanho, mas envolve também acesso a infraestrutura,
equipamentos, educação, saúde, lazer, oportunidade de trabalho, de
renda”, explicou238.
Os relatos acima contrastam com o que foi prometido pelo Comitê de Gestão das
Ações Governamentais Federais para a Candidatura Rio 2016 do Ministério do Esporte
logo após a oficialização do Rio de Janeiro como sede das Olimpíadas de 2016. Em
material entregue ao COI e a diferentes setores da sociedade brasileira, principalmente
na parte intitulada “Caderno Legado Urbano e Ambiental”, o referido Comitê prometia
que o processo de revitalização urbana e ambiental do Rio consignaria, além dos ganhos
econômicos, avanços do campo social.
Agora, o Rio passa a impulsionar um intenso programa de
revitalização urbana e ambiental estruturante, que compatibiliza o
plano de desenvolvimento a longo prazo da cidade com as exigências
do Comitê Olímpico Internacional (COI) para os Jogos Olímpicos e
Paraolímpicos, o que vai reabilitar áreas degradadas do Centro e
integrar toda a malha viária, passo essencial para a adoção de políticas
públicas efetivas de inclusão social e desenvolvimento sustentável da
economia local. A reabilitação do Centro terá como eixo central a
recuperação da zona portuária, de grande potencial turístico. As três
esferas governamentais, em parceria com a iniciativa privada e a
comunidade, participam das várias ações de recuperação do Porto,
que, por sua vez, terão repercussão social, econômica e cultural em
toda a cidade, razão pela qual esse programa é o símbolo do legado
urbano e ambiental proposto para os Jogos (BRASIL, 2009b: 10).
238
Trecho de matéria intitulada “Remoção de famílias para obras da Copa e das Olimpíadas gera
polêmica”. Portal de Notícias G1-globo.com, Rio de Janeiro, 20 ago. 2011. Disponível em:
<http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2011/08/remocao-de-familias-para-obras-da-copa-e-das-
olimpiadas-gera-polemica.html>. Acesso em: 02 set. 2013.
362
comunidade de origem. Nos termos de Silva et al. (2011), realiza-se uma assepsia
segregadora que expulsa os trabalhadores empobrecidos (“classes perigosas”) de modo
violento para as periferias longínquas e precárias das grandes cidades promotoras dos
megaeventos esportivos.
Os moradores removidos têm direito ao recebimento de indenizações
pecuniárias, porém, os valores oferecidos pela Prefeitura carioca são inferiores àqueles
praticados pelo mercado, o que impossibilita a transferência dos moradores para outras
unidades habitacionais ou a aquisição de estabelecimentos comerciais no mesmo bairro.
Conforme a Secretaria Municipal de Habitação, em balanço realizado em torno da
gestão habitacional, de janeiro de 2009 a agosto de 2011, apenas 11% dos casos de
remoções optaram (ou conseguiram comprar outro imóvel na localidade com o valor
ofertado) por esta modalidade de indenização (COMITÊ POPULAR DA COPA E
OLIMPÍADAS DO RIO DE JANEIRO, 2012).
Segundo Sicsú (2012), o distanciamento da periferia ao centro concretiza um
distanciamento social. Para o autor, esse cenário só poderia ser modificado através de
políticas sociais e urbanas de diversas naturezas que possibilitassem o direito e o acesso
à cidade, no sentido exato do termo, o que aproximaria as favelas, as cidades
empobrecidas e os bairros degradados dos centros metropolitanos.
As remoções realizadas na cidade do Rio de Janeiro representam mais uma
faceta daquilo que Chauí (2013) denominou de “inferno urbano”. Um cenário
constituído por condições concretas degradantes e desumanas, dentre as quais se situa o
aumento da exclusão social e da desigualdade com a expulsão das classes pobres das
regiões favorecidas pelas grandes especulações imobiliárias e o consequente aumento
das periferias carentes e de seu distanciamento em relação aos locais de trabalho,
educação e serviço de saúde e lazer.
O legado negativo dos megaeventos incide particularmente nos setores
mais desfavorecidos da sociedade. Estes grupos se vêem afetados
desproporcionalmente pela tendência aos desalojamentos forçados, os
despejos, a menor disponibilidade de moradia social, a reduzida
acessibilidade à moradia, a carência de moradias, o alheamento da
comunidade e das redes sociais existentes, a restrição às liberdades
civis e a penalização da carência de moradia e de atividades
marginalizadas. Os desalojamentos e despejos forçados que têm como
origem o embelezamento e a gentrificação afetam comumente à
população de baixa renda, às minorias étnicas, os imigrantes e os
anciãos, aos quais se obriga que abandonem seus lares para reassentar-
se em zonas distantes do centro da cidade. Igualmente, as políticas e
leis especiais adotadas para “limpar” a cidade dão como resultado a
remoção de pessoas sem teto, mendigos, vendedores ambulantes,
363
Como não é possível deslocar todos os pobres das áreas “nobres” da cidade, o
projeto de recolocação urbana das classes subalternas apresenta uma estratégia
complementar ao processo de remoções. Estamos nos referindo à promoção de
programas e projetos sociais alinhados à concepção de manejo social do risco, além da
criação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Por exemplo, um objetivo não
muito claro das UPPs é que elas funcionam como agentes reguladores do Estado,
controlando a expansão horizontal das favelas. Afinal, se não é possível uma higiene
364
239
Trecho de matéria intitulada “Jogos turbinam segurança no Rio”. Folha de S. Paulo, 5 out. 2009.
240
Trecho de matéria intitulada “Pronasci recebe investimento de R$ 900 milhões visando Olimpíadas
Rio 2016”. ASCOM/ME, 10 dez. 2009. Disponível em:
<http://www.esporte.gov.br/snear/rio2016/noticiaRioDetalhe.jsp?idnoticia=5872>. Acesso em: 11 set.
2013.
365
241
Trecho retirado de entrevista intitulada “Salto qualitativo na retomada do desenvolvimento”, Jornal
dos Economistas, n. 245, dez. 2009.
367
também pela instrução, pela educação, pela cultura e pelos meios de comunicação - a
essa lista seria possível acrescentar o esporte.
O desenvolvimento maduro (ou tardio) do capital (MANDEL, 1982), entre
outras consequências, pôs em evidência o lugar estrutural das políticas sociais, inclusive
como mecanismo de manutenção da ordem pública e coesão social. Em concordância
com afirmação anterior, observamos que a política de manejo social do risco e
pacificação das regiões periféricas, implementada sob a justificativa de sediar os
grandes eventos esportivos, não se consolida somente por meio de políticas urbanas e de
segurança pública, mas também pela presença dos programas e projetos sociais,
particularmente aqueles de caráter sócio-esportivos promovidos pelo ME em conjunto
com outros órgãos governamentais.
Eles são estudantes cariocas moradores de 30 comunidades pobres dos
Complexos de Favelas do Morro do Alemão, já pacificado, e da Maré,
que aguarda pela pacificação. No local, muitos jovens perdem a vida,
vítimas das drogas e da violência urbana. Mas, a democratização do
esporte, oferecido pelo Programa Segundo Tempo/Forças no Esporte,
no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva do Rio de Janeiro
(CPOR), faz com que a garotada exposta à vulnerabilidade e ao medo
encontre no esporte de defesa, como o judô, a esperança de um futuro
melhor242.
242
Trecho de matéria intitulada “Judô inspira estudantes do Morro do Alemão e Favela da Maré, no Rio
de Janeiro”. ASCOM/ME, 02 set. 2013. Disponível em:
<http://www.esporte.gov.br/snelis/segundotempo/noticiaDetalhe.jsp?idnoticia=11053>. Acesso em: 05
set. 2013.
243
Trecho de matéria intitulada “Olimpíadas do Programa Segundo Tempo movimentam a Baixada
Fluminense”. ASCOM/ME, 28 jul. 2012. Disponível em:
<http://www.esporte.gov.br/snelis/segundotempo/noticiaDetalhe.jsp?idnoticia=9014>. Acesso em: 05 set.
2013.
369
política social, desenhado por Grasi et al. (1994, apud BEHRING, 2007), onde não há
espaço para consumo coletivo e tampouco direitos sociais, mas tão-somente assistência
focalizada naqueles grupos com menor capacidade de pressão. A título de exemplo, o
objetivo principal do PST visa:
Democratizar o acesso à prática e à cultura do Esporte de forma a
promover o desenvolvimento integral de crianças, adolescentes e
jovens, como fator de formação da cidadania e melhoria da qualidade
de vida, prioritariamente em áreas de vulnerabilidade social
(BRASIL, 2011: 9, grifo nosso).
244
Em agosto de 2013, a Secretaria de Estado do Esporte do Paraná lançou o projeto “DNA Olímpico”,
que visa detectar jovens talentos a partir de investigação genômica. A iniciativa conta com a poio do
Ministério do Esporte e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
245
Trecho de matéria intitulada “Gerações de talentos do PST/Forças no Esporte despontam no
atletismo”, ASCOM/ME, 09 abr. 2013. Disponível em:
<http://www.esporte.gov.br/snelis/segundotempo/noticiaDetalhe.jsp?idnoticia=10280>. Acesso em: 09
set. 2013.
246
Trecho de matéria intitulada “Alunos do Segundo Tempo/Forças no Esporte mostram talento no
atletismo”, ASCOM/ME, 23 maio 2013. Disponível em: <
http://www.esporte.gov.br/snelis/segundotempo/noticiaDetalhe.jsp?idnoticia=10534>. Acesso em: 09 set.
2013.
371
247
O Diagnóstico Nacional do Esporte será um levantamento executado pela Universidade Federal da
Bahia, em parceria com outras cinco instituições federais que participam da Rede CEDES e CENESP:
Universidade Federal do Amazonas, Universidade Federal de Sergipe, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Universidade Federal de Goiás e Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O projeto será
financiado com recursos da Financiadora de Estudos e Projetos do Ministério da Ciência e Tecnologia
(FINEP) e se propõe a avaliar os seguintes aspectos: a) o nível de desenvolvimento quantitativo e
qualitativo da prática esportiva no país; b) a capacidade de legislação esportiva atual para disciplinar a
complexidade da estrutura do sistema e o seu financiamento; c) a adequação das relações entre esferas
pública e privada nas políticas de esporte e lazer nos diferentes níveis federativos – municipal, estadual e
federal; d) as formas de organização dos segmentos formais e informais do esporte e lazer; e) as
condições reais de infraestrutura esportiva; f) a relação entre o investimento e o sucesso esportivo do país;
g) a relação entre o desenvolvimento científico da área e o sucesso esportivo nos diferentes âmbitos do
esporte.
373
seu discurso para onde os anseios populares estiverem, sem, contudo, alterá-lo na sua
essência.
Enquanto manifestantes são violentados nas ruas na tentativa de expor as
mazelas e desigualdades que marcam este país, do lado de dentro do teatro, os bailarinos
da bola deleitam a plateia de fantoches, enfileiram dribles, realizam jogadas
mirabolantes. Gol...muitos gols...quem disse que a política do pão e circo terminou?
Afinal, estamos diante do Coliseu da Nova Roma248! O espetáculo ainda não se
encerrou, as cortinas permanecem abertas, nos bastidores há bastante movimento e troca
de figurinos, novos atos e cenas estão por vir, porém, seus corolários ainda repercutirão
por muito tempo após a passagem do tsunami249 dos megaeventos esportivos pelo
Brasil.
248
Fazemos alusão às palavras do Ministro do Esporte, Aldo Rebelo, que, durante solenidade que
oficializou a entrega da obra do Estádio Nacional Mané Garricha no dia 18 de Maio de 2013 e após tecer
elogios à construção, batizou o novo Estádio de “Coliseu da Nova Roma”.
249
Apropriamo-nos do termo utilizado por Mascarenhas (2012) em artigo intitulado “Megaeventos
esportivos e Educação Física: alerta de tsunami”.
375
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Não há mais o que ver”, saiba que não era assim. O fim
de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso
ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver
na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se
viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caía,
ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de
lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar
aos passos que foram dados, para repetir e para traçar
caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a
viagem. Sempre.
José Saramago
Ambicionamos, por meio desta tese, trazer uma pequena e exordial contribuição
para as pesquisas e debates vinculados à temática das políticas públicas e sociais de
esporte no Brasil. Em especial, esperamos enxertar como um elemento de singularidade
a tentativa de consubstanciação de uma análise fundada na percepção de que os
determinantes econômicos, políticos e sociais conformam uma unidade dialética que
permeia as opções estatais no setor esportivo, nomeadamente aquelas ações inerentes à
chegada dos megaeventos esportivos no país.
Conquanto este trabalho tenha almejado apanhar a totalidade das contradições
que configuram a realidade brasileira diante da vinda dos grandes eventos esportivos,
esse desígnio não elimina – ao contrário, contribui para reforçar – a necessidade de que
outras pesquisas se debrucem sobre aspectos não aprofundados neste estudo. A título de
exemplo, poderíamos listar: a) os reflexos mais diretos dos megaeventos esportivos
sobre as economias locais, especialmente nos indicadores referentes ao mercado de
trabalho; b) as implicações jurídicas – e sobre a soberania nacional – promovidas pelas
excepcionalidades consignadas no arcabouço legal criado para atender às exigências
daquelas entidades detentoras dos direitos de organização dos grandes eventos
esportivos; c) o acirramento dos problemas sociais nas regiões periféricas em razão dos
processos de remoção e pacificação; d) o papel da mídia na formação/manipulação da
opinião pública acerca da vinda dos megaeventos para o Brasil; e, e) as repercussões
dos megaeventos no cenário político e eleitoral do país, bem como na estruturação e
reorganização do Ministério do Esporte (ME).
Ao concluirmos este trabalho é, igualmente, necessário reconhecer os limites,
seja de ordem cronológica, seja de natureza analítico-metodológica. Conforme frisamos
anteriormente, a fotografia de um objeto em movimento é sempre uma tarefa complexa,
que, normalmente, redunda em uma imagem com traços de imperfeição, que acabam
por obscurecer alguns detalhes relevantes.
Uma primeira insuficiência diz respeito ao fato de que finalizamos nosso estudo
em Outubro de 2013, data que antecede à realização efetiva dos megaeventos esportivos
no país. A realização da Copa do Mundo FIFA e das eleições presidenciais em 2014
deve movimentar/agitar o cenário político, trazendo novos elementos para a relação
entre Estado e setor esportivo, além de promover reacomodações no bloco no poder.
Atuais protagonistas podem assumir papeis coadjuvantes e novos atores podem surgir
no panorama nacional, embora tenhamos a percepção de que tais modificações não
377
programas e projetos sociais que priorizem a prática esportiva como elemento da cultura
corporal. As análises desenvolvidas neste capítulo inicial demonstraram que essa
interpretação se contrapõe ao tratamento hegemônico historicamente dispensado ao
esporte, que o restringe aos interesses da indústria esportiva e do entretenimento, que,
por sua vez, se regem pela lógica da acumulação capitalista e da mercantilização dos
fenômenos sociais.
Ao expormos as referências teóricas que orientam nossa compreensão sobre
necessidades humanas e políticas sociais, reforçamos o pressuposto de que a ampliação
e consecução dos direitos de cidadania estão diretamente integradas ao atendimento das
necessidades humanas e sociais. Ao mesmo tempo, ao problematizarmos as
interpretações hodiernas referentes ao conceito de cidadania, particularmente na
construção teórica marshalliana, ratificamos os apontamentos de que a
ampliação/universalização da cidadania é, em última instância, inconciliável com a
perpetuação do capitalismo, uma vez que a divisão da sociedade em classes estabelece
barreira intransponível à afirmação consequente da democracia. Diante dessa
constatação, corroboramos com as declarações de que somente uma sociedade sem
classes - uma sociedade socialista ou comunista – é capaz de concretizar o ideal da
plena cidadania ou emancipação humana.
Posteriormente, destacamos o duplo papel desempenhado pelas políticas sociais
dentro da tensão entre capital e trabalho. Se, por um lado, tais políticas representam
conquistas dos trabalhadores por novas e melhores condições de reprodução da força de
trabalho, além de se consubstanciarem em espaços de luta política pela cidadania e pela
transformação das relações de poder, por outro lado, as frações de classe burguesa
tentam, por meio dessas políticas, conter as demandas trabalhistas, bem como reunir
recursos, manobras e alianças visando arrefecer estas reivindicações, despolitizando e
fragmentando a classe trabalhadora.
Ao mesmo tempo, diante desse cenário, verificamos que as políticas sociais são
subjugadas a uma variável dependente do crescimento econômico, com recomendação
de cortes nos gastos sociais, o que representa a tomada de um movimento em direção
oposta à universalização e ampliação dos direitos sociais, discurso presente nas lutas
políticas dos anos 1980. Esse ideário preconiza um modelo minimalista de intervenção
do Estado no campo social, restrito a ações seletivas e focalizadas na extrema pobreza.
Ao fim e ao cabo, busca-se por meio da transferência de recursos aos estratos sociais
empobrecidos incluí-los no mercado de consumo interno, mantendo-o aquecido.
379
preocupações nortearam e foram buscadas ao longo dessa tese. Esperamos ter alcançado
êxito nesse esforço!
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