Fatimalfredo,+18 124-132
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resumo: A trajetória dos castrati na música ocidental tem despertado, através dos tempos, crí-
ticas as mais diversas, que oscilam desde a rejeição completa à existência desses cantores até os
aplausos mais entusiastas pela beleza da voz e por uma arte que foi capaz de seduzir as plateias
mais exigentes. Esses homens, com seus corpos avantajados, grandes caixas torácicas, altos e for-
tes, consequência não prevista do processo da castração, exibiam uma voz feminina, quase infan-
til, classificada pelos especialistas, especialmente as mulheres suas admiradoras, como angelical.
Essa dualidade será abordada neste artigo, que visa lançar uma luz sobre essa arte extinta nos dias
atuais.
palavras-chave: música barroca; música sacra; ópera italiana; castrati.
abstract: The castrati’s trajectory in western music has aroused all kinds of appraisals through-
out time, from rejection to enthusiasm towards their voice’s beauty and an art that attracted the
most demanding audiences. These men, with their large bodies, big thoracic cages, tall and strong, an
unforeseen consequence of castration, displayed a feminine voice, almost childish, classified by spe-
cialists, especially admiring women, as angelical. This duality will be focal point of this work, which
aims at illuminating this extinct art.
keywords: baroque music; sacred music; Italian opera; castrati.
Um tipo de voz que deixou de existir completamente e que na atualidade não teria
mesmo condições para continuar a existir, em virtude da defesa dos direitos huma-
nos, representou, na realidade, um momento brilhante da música nos séculos XVII
e XVIII, em especial na Itália. O observador contemporâneo que lançar um olhar de
estranheza, desconfiança e mesmo revolta, não poderá imaginar o que representou
no passado a arte dos castrati, em termos de arrebatamento e delírio do público
nas diversas classes sociais, inclusive no Brasil.
Com efeito, objetivando preservar uma bela voz que alguns meninos pos-
suíam antes de passar para a adolescência, quando há a mudança de voz, reali-
zava-se a operação da castração, que permitia que naquele corpo masculino que
iria se desenvolver, fosse preservada uma voz com reminiscências infantis e decidi-
damente feminina. Neste momento, colocaremos em evidência a arte dos castrati,
que representou um dos pontos altos da música barroca, com influência inegável
no bel canto que se seguiu, nos legando um repertório de árias de grande beleza,
Paulo Roberto Peloso Augusto | Corpos masculinos com vozes femininas 125
de Montesquieu: “Vi as cerimônias da Semana Santa. O que mais me agradou foi
um Miserere tão singular que parece que as vozes dos castrados são órgãos (apud
BARBIER, 1993, p. 106)”.
O Miserere a que se refere Montesquieu foi composto por Gregorio Alle-
gri (1582-1572), ele mesmo um famoso castrato romano que se distinguiu como
regente da capela papal.
Uma vez que a fama dos castrati era acompanhada também de projeção social
e riqueza, os pais de família, especialmente os camponeses, ambicionavam tal sorte
para seus filhos, a tal ponto que no reino de Nápoles foi permitido que cada família
com pelo menos quatro filhos pudesse castrar um, aumentando assim considera-
velmente em número os puttini castratelli. É importante dizer que na época essa
operação era feita de maneira precária, sem anestesia, em condições mínimas de
higiene e praticada muitas vezes por barbeiros, que afixavam em suas portas letrei-
ros como “aqui se castra limpo e barato” ou, orgulhosamente, “aqui se castram
os cantores das capelas papais”. Mas a realidade poderia ser outra bem diferente,
como uma mortalidade elevada por infecções, em consequência da “operação”, ou
ainda uma promessa vocal de sucesso que não se realizaria no futuro, acarretando
uma vida de desgostos para o menino:
Uma vez castrado, o menino não passava mais pela muda, ou seja, sua voz não baixava
de uma oitava, como todos os outros rapazes. Permanecia “alta”, para usar um termo
muito geral, a meio caminho entre a da criança e a da mulher, de que podia adotar uma
ou outra tessitura (soprano ou contralto); às vezes essa voz evoluía no decorrer da vida
e passava de soprano à contralto, ou o contrário. Assim, Pistocchi e Nicolino se torna-
ram contraltos, respectivamente aos 20 e aos 27 anos, enquanto que Guadagni passou
de contralto a soprano pelos 45. (BARBIER, 1993, p. 13)
Tornou-se usual na Itália dos séculos XVII e XVIII, a prática da castração para
fornecer os famosos sopranistas para os coros das igrejas e mesmo para os teatros.
Esse costume se estendeu a outros países, tendo obtido resistência na célebre rival
da Itália, a França. Luís XIV tinha tanta aversão a essa prática, que ameaçava com
a forca quem colocasse a ideia em prática, o que não impediu, evidentemente, que
castrati famosos fizessem sucesso na França. Além disso, tal ameaça não atingia o
coro da capela real do rei-sol em Versailles, pois entre os seus integrantes conta-
vam-se meninos castrati.
Não é de se estranhar que a França se opusesse de tal maneira a essa prática,
apesar de aqui e ali vermos exceções, em especial na corte. Os motivos reais eram
musicais e artísticos, antes de tudo. Finalmente, a oposição artística entre os dois
países criou todo o contraste que enriqueceu o barroco no século XVII e metade
do XVIII. Hostis à música italiana, em vários momentos da história despontaram
1 Italiano de nascimento, Jean Baptiste Lully (1632-1687), com o apoio de Luís XIV revolucionou a
música francesa ao implementar um tipo de ouverture instrumental oposta à homônima italiana
e criar uma ópera na qual firmou as bases do gosto francês, inclusive colocando em destaque a
dança.
2 A Querelle des bouffons mais uma vez contrapôs os adeptos de uma música genuinamente fran-
cesa, representados por Rameau (1683-1764), e aqueles desejosos da influência italiana, capita-
neados por Rousseau (1712-1778).
3 Gluck (1714-1787) e Piccini (1728-1800) protagonizaram mais um episódio confrontando os
adeptos da música francesa e italiana na França. Gluck, ao contrário dos italianos que sobreva-
lorizavam as árias, onde a música se sobrepunha ao texto poético, optou por uma música que
estivesse a serviço da poesia, sobrevalorizando a justa prosódia no recitativo.
4 Em Portugal o uso de castrati na música religiosa e na ópera encontra-se documentado a partir
do reinado de D. João V. A importação regular de cantores italianos (cerca de 140 entre 1750 e
1807), dos quais dezenas eram castrati, prosseguiu nos reinados de D. José e D. Maria I e durante
a regência de D. João VI. E quando a corte se transferiu para o Brasil em 1807, na sequência das
invasões francesas, o Príncipe Regente continuou a contar com castrati na Capela Real do Rio
de Janeiro. Assim atestam as composições de Marcos Portugal e do Padre José Maurício e os cas-
trati trazidos da Itália José Gori, Antonio Cicconi, Giovanni Francesco Faccioni, Marcello Tani,
Pasquale Tani, Francesco Realli e Angelo Tinelli (MARIZ, 2008, p. 34).
Paulo Roberto Peloso Augusto | Corpos masculinos com vozes femininas 127
vinte e dois anos permaneceria naquele país. Efetivamente, a rainha, desolada com
o estado de saúde de seu real marido, quis tentar o que seria o pioneirismo da musi-
coterapia. Filipe V, neto de Luís XIV, há anos havia mergulhado numa crise intensa
de depressão, tendo chegado ao ponto de não querer mais sair da cama, nem mesmo
ver qualquer pessoa. Além de abandonar os negócios de estado e não se interessar
por nada, tinha crises em que se mordia e, imaginando-se enfeitiçado, espancava a
rainha. Tão logo Farinelli chegou à corte, a rainha fez com que o castrato cantasse
num quarto vizinho ao do rei e, tão logo ouvido, chamou-lhe a atenção, querendo
conhecê-lo de perto e já nesse primeiro encontro a personagem real se recom-
pôs, oferecendo em seguida o que o cantor quisesse como recompensa. Modesto,
Farinelli tão somente pediu-lhe que fizesse a barba e voltasse à sua atividade normal
como rei. Assim feito, durante nove anos, o sopranista cantou privadamente para o
rei, que soube ser agradecido, mesmo que em decorrência da doença preferisse ficar
na cama durante o dia e viver à noite. Quando o rei morreu, seu sucessor manteve
a gratidão, elevando-o no plano político a uma posição equivalente a de ministro
da Espanha, sendo verdadeiro porta-voz e intercessor entre os potentados estran-
geiros, o povo e o rei. Consta que exerceu tal posição inédita com muita distinção,
procurando o bem coletivo, inclusive favorecendo a vinda de castrati italianos para
atuarem na corte e ali fazerem carreira (BARBIER, 1993, p. 170-171).
Na ópera, assim como na música vocal sacra, a presença dos castrati se fez
sentir com intensidade. Compositores famosos como Alessandro Scarlatti (1660-
1725), Vivaldi (1678-1741), Haendel (1685-1759) dedicaram inúmeras árias para
essas vozes que faziam o sucesso das apresentações.
Os Estados pontifícios na Itália sofriam com a restrição cada vez mais cres-
cente da presença das mulheres nos palcos teatrais, a partir de 1588. O argumento
era a preservação dos bons costumes e evitar, assim, o desvio de conduta do sexo
feminino naqueles ambientes artísticos. Essa restrição era de fato bem significativa,
pois só nesses Estados contavam-se cinquenta teatros, um número maior que nas
outras localidades italianas. A interdição foi renovada e promulgada em definitivo
por Inocêncio XI (1676-1689), conhecido como papa “minga”5 e reeditada por seus
sucessores, com certo abrandamento por parte de alguns. A consequência imediata
disso foi a presença dos castrati nas óperas, desempenhando os papéis femininos,
o que acabou lhes trazendo mais sucesso ainda, como pode se verificar no fato de
que mesmo os papéis masculinos de guerreiros, imperadores e deuses, passaram
aos poucos também à responsabilidade desses sopranistas, tal a predileção por
5 Minga no dialeto milanês quer dizer não. Termo satírico com que este papa ficou alcunhado por
se opor sistematicamente a tudo que se lhe solicitava.
Paulo Roberto Peloso Augusto | Corpos masculinos com vozes femininas 129
tasse bem até uma idade mais avançada, o que não ocorre em geral com as vozes
normais, às quais a natureza em geral impõe, às vezes precocemente, um limite de
idade útil. Além de tudo, por uma vicissitude da natureza ainda sem explicação,
a maioria dos castrati atuantes teve uma longevidade acentuada, ultrapassando os
oitenta anos, numa época onde esses limites de idade não eram comuns.
Tudo isso associado, além, obviamente, da excelente arte e formação técnica
vocal dos castrati, fez com que o imaginário feminino da época fosse povoado
das mais apaixonadas fantasias e aventuras envolvendo esses famosos sopranis-
tas. Dentre várias que poderíamos ilustrar que foram bem sucedidas, registramos
aqui duas que não foram felizes. O castrato Siface e uma viúva bolonhesa se apai-
xonaram. O irmão desta, o marquês Marsili, nada contente com a situação, não
conseguindo afastá-los nem demover a paixão, tramou com sucesso o assassinato
do ilustre sopranista, que morreu aos quarenta e quatro anos, em 1697. O castrato
Cortona pediu ao papa “minga”, que como dissemos se opunha a tudo o que se lhe
requeria, autorização para se casar com sua amada. Com medo da negativa por
ser castrado, inventou no requerimento ao papa que sua castração não tinha sido
completa na infância, o que lhe permitiria ter filhos, ao que o papa “minga” negou,
sugerindo então que o castrassem melhor:
Fascinantes pela voz, sedutores pela nobreza e o refinamento em cena, eles foram per-
feitos dom-juans na vida social, nos salões e até na intimidade das alcovas. De todos
os lados, assistiu-se por parte das senhoras a verdadeiras cenas de histeria coletiva,
comparáveis às provocadas pelo aparecimento das estrelas da canção junto à juventude
atual. (BARBIER, 1993, p. 113)
Paulo Roberto Peloso Augusto | Corpos masculinos com vozes femininas 131
de cantoras com uma extensão privilegiada como Cecilia Bartoli, que gravou um
DVD também editado em CD intitulado Sacrificium, em homenagem aos castrati.
Alguns cantores interpretam fazendo falsete, que é uma técnica de cantar fora de
sua extensão vocal, o que não lhes permite muita variedade de dinâmica e outras
vozes utilizadas são de contratenores, que teriam utilidade para emular as vozes
de castrati contralto. Muito poucos cantores naturais têm uma habilidade nata de
alcançar notas mais agudas, mas é importante frisar que nenhum destes cantores
e cantoras atuais podem nos dar uma ideia, ainda que longínqua, do que teria sido
esta voz, com seu timbre vocal característico. Nem mesmo soluções feitas em estú-
dio, como no filme Farinelli – Il Castrato, de Gerard Corbiau (1994), promovendo
a fusão de duas vozes, contratenor e soprano, recriam a realidade perdida, apesar
de criativas e interessantes.
referências bibliográficas
BARBIER, Patrick. Trad. Raquel Ramalhete. História dos castrati. Rio de Janeiro: Nova Fron-
teira, 1993.
KIRKENDALE, U. Encarte de Cecilia Bartoli Opera proibita. Paris: DECCA LC00171, 2005.
MARIZ, Vasco. A música no Rio de Janeiro no tempo de João VI. Rio de Janeiro: Casa da
Palavra, 2008.
PACHECO, Alberto. Castrati e outros virtuoses. São Paulo: FAPESP, 2009.
RICCI, C. Casanova e Farinelli in Bologna. Milano: Ricordi, 1890.
referências discográficas
BARTOLI, Cecilia. Opera proibita. Paris: DECCA, p2005: 1 CD (ca. 72 min.). LC00171
______. Sacrificium: the art of the castrati. Reggia di Caserta: DECCA, p2009: 1 CD (ca. 60
min.). UPC: 044007433966
MALGOIRE, Jean-Claude. La musique au temps des castrats. Versailles: Audivis France,
p1994: 1 CD (ca. 48 min.). E8552
ROUSSET, Christophe. Farinelli. Metz: Audivis France, p1993: 1 CD (ca. 61 min.). K1005
Recebido em 30.04.2013
Aceito em 02.05.2013