NAPE Contos e Mitos Na Arteterapia
NAPE Contos e Mitos Na Arteterapia
NAPE Contos e Mitos Na Arteterapia
Mitos em
Arteterapia
Celso Falaschi
Elisabete Cristina Carnio Beltrame
Fabíola Gaspar
Marcieli Cristine do Amaral
Tabata Oliveira da Silva
(Organizadores)
Contos e
Mitos em
Arteterapia
Rua Helena Lapreza, 71 – Pq. Carvalho de Moura – Campinas (SP)
13051-495 - Fone: (19) 3368-1058
www.evidenciabr.com.br
[email protected]
Inclui bibliografia.
ISBN 978-65-80929-12-2
Contos e
Mitos em
Arteterapia
1a edição
Campinas (SP)
2022
O corpo não mente, e a mente presente
Denise Zinetti Bitencourt
O corpo fala.
O corpo é canal de transição
Entre o mundo material
E a transcendência.
| 7
As temáticas abordadas com a utilização de mitos e contos re-
fletem no encorajamento para enfrentar os desafios da vida, na ex-
pressividade da afetividade para com os outros, e, principalmente,
no voltar o olhar para si e assim envolver-se com o cuidar-se.
“Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta”
(Jung, 1875-1961).
A representação simbólica identificada nos mitos propicia a leitura
da realidade dos comportamentos humanos. No trabalho artetera-
pêutico, recorrendo à mitologia, aos deuses e deusas, heróis e he-
roínas, favorecemos a reconexão do indivíduo à natureza universal.
Segundo Campbell [2] (1991, p.13) “os mitos são chaves para a
nossa mais profunda força espiritual, a força capaz de nos levar
ao maravilhamento, à iluminação e até ao êxtase”.
Lançando mão também das artes plásticas, temos a possibilida-
de da abertura de canais expressivos para fortalecer a capacidade
e a motivação para o recomeçar.
Assim, reitero meu convite para a leitura do livro “Contos e
Mitos em Arteterapia”.
A leitura o colocará em contato com sentimentos e experiências,
propiciará viajar sem sair do lugar, além de expandir e aprofundar
o conhecimento sobre a Arteterapia e ampliará os horizontes e a
importância da compreensão da vida, de si e do mundo.
Com carinho e gratidão! Boa leitura.
[1] ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. . São Paulo: Ed. Perspectiva, 1989.
[2] CAMPBELL, Joseph. O poder do mito com Bill Moyers. São Paulo: Palas
Athena, 1991.
Sumário
11
Coautores
13
A escuta que acolhe, valoriza o olhar que percebe
Sônia Regina Rodrigues Oliveira de Novais
35
Arquétipos dos ciclos lunares: o feitiço das mulheres sábias
Ana Teresa Costa Figueiredo (Ana Piu)
59
Expressão artística e sua simbologia na busca do equilíbrio emocional infantil
Manuela Broering Gomes da Mata
77
Resgatando Raízes: entrelaçamentos da mitologia afro-indígena
Ana Carolina Sá Faria / Bárbara de Oliveira Rodrigues / Jéssica Lane S. dos Reis
Brito
99
Heróis e heroínas dos tempos bíblicos: uma visão contemporânea
Caroline de Lima Lopes / Danielle Caroline Malavasi Barbosa / Silvia Rodrigues
Lanes
119
As cores da vida e o desabrochar de Rosa
Adriana Rodrigues de Oliveira Miqueletti / Izabel Cristina Ferreira Gomes /
Wanice Alves Facure Locci
133
Entre estrelas e pedras preciosas: devolvendo às mulheres as rédeas de sua
vida interior
Carlos Alberto Faruk Abu Laila Silva / Iriê Prado de Souza
157
As deusas e os quatro elementos na roda da vida
Simone de Souza Silva / Telma de Carvalho Craide
175
A Jornada Heroica na Parentalidade
Cristina Fernandes das Neves / Denise Regina de Almeida / Isabela de Souza
Rangel do Prado / Jaques Junqueira de Souza
189
Transformando e revelando emoções com a arte
Elaine Oliveira Santana Maia / Francine Da Silva Marcondes / Gisely Gonçalves
Martins / Maria Cristina De Souza Freitas / Rosiane Aparecida Rangel De Oliveira
/ Sandra Aparecida Dos Santos Kecek
203
O mito de Atlas e a sobrecarga feminina: uma jornada criativa de autocuidado
Andressa Silvestre Machado / Fernanda Netto do Nascimento / Juliana Claro
França / Lenise Dos Santos Gonçalves / Nayara Flôr Marques Penteado / Rebeca
Batista de Melo Martineli
219
Do vazio ao acolhimento em tempos de pandemia
Wilse Ricardo Francisco / Ariane Hecht
Ariane Hecht
| 11
Francine da Silva Marcondes
Preparando o cenário
| 13
Após um longo período de dedicação exclusiva ao ensino, me
fortaleço na mudança de ciclo, buscando uma formação há muita
sonhada, voltada também para o cuidado do outro, a Arteterapia,
em um curso de pós-graduação lato sensu, com estágio super-
visionado e um trabalho de conclusão de curso na forma de um
ensaio pessoal.
Para tornar a leitura mais aconchegante e cheia de ternura, op-
tei em utilizar em toda a extensão dessa minha produção escrita o
emprego da ênclise, porque acredito que essa forma, além de ser
mais poética, facilita a compreensão e o envolvimento do público
leitor. Então, como borboleta em arrebento de casulo, me vejo
refazendo o caminho na transição formativa. Sigo então essa ca-
minhada que já de algum tempo tem me trazido bem-estar. Assim
como as estações do ano, que nos renovam os sentidos, os quatro
elementos que transmutam sentimentos e as fases da lua, que nos
permitem o ciclo do viver, o percurso arteterapêutico agora me é
jornada de experiências sensoriais, que utiliza da simplicidade do
ver ao aprofundamento do olhar; do aflorar do sentir, à condição
do perceber, do acolher e do autocuidar.
Desde pequena, num sonho de menina, desejava como nas
brincadeiras, me tornar professora. Isso me acompanhou pela
vida e, com custo, fui construindo um caminho, no qual não só
encontrei pedras, mas também livros, tecidos, agulhas e linhas.
Juntei tudo e fiz um grande bordado de enredos, entremeado das
linhas da escrita às linhas do bordado, porque além de me dedicar
ao magistério, na maturidade resgatei uma herança guardada no
| 15
Em meados do caminho, passei a desenvolver encontros e ofi-
cinas de Biblioterapia com o grupo docente e discente no espaço
que me era permitido. Percebi o quanto a literatura cuidava, aco-
lhia e em alguns momentos transformava sentimentos amargura-
dos em compreensíveis. Era notório o quanto aqueles encontros
traziam benefícios a muitos colegas do convívio de trabalho; po-
rém, sentia que algo faltava para complementar esse processo de
cuidados. Passei a buscar em estudos respostas para essa falta e
encontrei na Arteterapia o que buscava.
Foi então que, no segundo semestre de 2019, iniciei a forma-
ção em Arteterapia do NAPE, na cidade de São Paulo. Um estudo
embasado pela teoria junguiana e me dei conta do que nos fala
Philippini (2013, p.14), que “em Arteterapia o trajeto é marcado
por símbolos particulares que assinalam, informam e definem so-
bre a jornada de individuação de cada um”, e, sendo assim, uma
vez que caminhando juntos, cliente e arteterapeuta, buscamos
a essência do melhor viver, ancorados num processo de trans-
formação e transmutação, na busca da condição de bem-estar
individual e coletivo.
Como numa grande arpillera [4], o bordado de enredos que pro-
curei idealizar no Programa de Estágio, trouxe no desenho fiado
muitas cenas reais, cenas essas que também estiveram presentes
em minha trajetória de vida. No momento, me dedico em possi-
bilitar, através desse caminho que a Arteterapia me conduz, ser
ponte entre o que o ver e o olhar, levando ao outro um movimen-
to de percepção e autoacolhimento.
[4] Arpillera é uma técnica têxtil chilena que possui raízes numa antiga
tradição popular iniciada por um grupo de bordadeiras no Chile.
| 17
Um cenário composto por bordados de enredo
O processo de estágio teve início no dia 27 de abril, com a
turma I e dia 29 de abril com a turma II. Para a realização das
atividades expressivas, procurei organizar os materiais que já ha-
via idealizado, mas como me encontrava com muitas demandas,
demorei dois encontros para preparar todo o material para entre-
gar a cada cliente. Busquei, nos meus atrevimentos de costureira,
confeccionar uma sacola artesanal, como forma de recepcionar
as participantes do estágio composta dos materiais de arte que
iríamos utilizar durante o processo. Dos materiais enviados, listo
alguns: lãs, massinhas, retalhos, cola de tecido, pincel e guache
entre outros. Das cinco participantes do estágio, quatro moram
não muito distante de onde resido e com os devidos cuidados do
protocolo de segurança da saúde, levei pessoalmente a sacola a
cada professora, antes, me certificando com cada uma a possibi-
lidade de receber os materiais entregues por mim em domicílio.
A quarta participante, a professora que reside mais distante, o
material seguiu via sedex.
Durante toda a jornada arteterapêutica procurei dar voz e
liberdade de expressão às clientes, para que assim pudessem,
além do produto expressivo, também trabalhar a oralidade e a
escrita criativa.
Não posso me furtar em dizer que muito do que planejei não
deu certo. A começar pelo uso das mídias, no momento de com-
partilhar vídeos, músicas e imagens. Foi muito denso e tenso. Me
frustrei por vezes seguidas, até encontros inteiros foram atropela-
dos. Demorei um pouco para acertar o passo, mas fui encontran-
do o caminho. Hoje já posso dizer que consigo lidar um pouco
mais com a tecnologia, de forma básica, não somos grandes ami-
gas, mas procuramos nos entender sem mais sofrimento.
| 19
Um ponto importante a ser ressaltado é que todo o processo de
estágio foi ancorado pela Biblioterapia de fruição, pois, segundo
testemunha Seixas (2014, p. 76) “através da leitura, desenvol-
ve-se a capacidade de brincar com a própria cabeça, desviar do
sofrimento e criar outra realidade… Brincar é criar. E criar e ter
autonomia sobre si mesmo”. Desde que tive contato com a Biblio-
terapia por meio da própria Seixas, passei a utilizar os benefícios
das orientações dela tanto no cuidado pessoal quanto no coletivo.
Os gêneros literários utilizados como fio sensibilizador foram
diversos: contos como “Diante da Lei”, de Kafka”, crônicas como
“Tarde de Sábado”, de Cecília Meireles, poemas como “autorre-
trato falado”, de Manoel de Barros, e histórias da literatura infan-
to juvenil, como “A Cidade dos Carregadores de Pedras”, de San-
dra Branco, “Vazio”, de Anna Llenas, e “Um presente diferente”,
de Marta Azcona. Além desses textos, muitos outros estiveram
presentes em nossos encontros e trouxeram uma gama de cenas
e personagens para nos sensibilizar. Em algumas passagens desta
narrativa as protagonistas serão identificadas por codinomes por
mim atribuídos a elas ao longo dos atendimentos, como forma de
preservá-las de qualquer exposição pública.
Em um dos trabalhos, utilizando os benefícios da leitura cuida-
dora, realizamos um movimento de mergulho nas fortalecedoras
águas do mar de “Fátima, a Fiandeira”, por Regina Machado.
No retorno de tantos mergulhos encorajadores, cada participante
construiu sua própria tenda, trançando cordas em fortes mastros.
Com fios de lã e varetas de bambu, foram chamadas à tessitu-
ra da mandala “olho de Deus” (Figura 1), que tem a função de
organizar os pensamentos e traz, em sua gênese, a simbologia
da projeção dos desejos de felicidade para quem as produz os a
quem são dedicadas.
| 21
tura nos oferta, fui em busca de focos temáticos que pudessem
trazer esse fio de luz para cada uma das professoras participantes,
agora já mais seguras na entrega ao fazer artístico e suas mobili-
zações simbólicas na caminhada rumo ao autoconhecimento.
Cada momento de encontro desse programa de estágio era tra-
balhado com uma conversa inicial para pontuar informalmente
o nosso processo, um relaxamento que trouxesse apaziguamen-
to ao coração e à mente, quase sempre com músicas e o mo-
mento biblioterapêutico, com uma história como fio condutor e
como ponte entre o ver e o olhar; e para finalizar, o produto arte
mobilizador de tudo que foi vivenciado no encontro. Em muitos
momentos a escrita criativa esteve também presente para fortale-
cer o movimento de externalização, pois, conforme Seixas (2014)
e Abreu (2006, escrever significa mexer com funduras. E ainda,
para Mosé (2006, p.19), “Quem escreve escava o que o silêncio
palavra”. A palavra grafada nos momentos de grande força emo-
cional e quando permitida pelo indivíduo em processo terapêutico
proporciona alívio do que muitas vezes a palavra falada não é
permitida. Um exemplo desse fato foi observado no produto arte
da participante Flor de Liz, que demonstrou certa delicadeza no
fluir da palavra (Figura 2), se abstendo muitas vezes da expressão
sonora e se permitindo falar por meio da escrita.
Os primeiros encontros, realizados entre os meses de abril e
maio de 2021, em período de nova onda da pandemia do corona-
vírus, foram com foco no movimento do “Ver”, na visão panorâ-
mica do estado em que as coisas se apresentavam para cada par-
ticipante do estágio. A cada encontro sempre era proposta uma
autorreflexão acerca das questões e situações vividas. Para o foco
do movimento olhar, a perspectiva de trabalho ficou agendado
entre os meses de maio e junho.
| 23
Figura 3 - Tecido colado sobre papel
| 25
conta de problemas de saúde neuro-ortopédicos, aguarda rea-
daptação, e a cada perícia médica o suplício parece não ter fim,
uma vez que o olhar médico não alcança as necessidades de um
cuidado humanizado, e até por conta desse quadro, acredita que
suas dores se acentuam quando tem consultas médicas periciais.
Como observadora desses quadros de transformações do ver ao
olhar apurado, percebo que as participantes, num caminhar um
tanto sôfrego pelas várias situações que a vida lhes impõe, pude-
ram acessar a autopercepção e chegar ao ponto de perceberem
que por meio da Arteterapia podem buscar momentos de alívio e
bem-estar, assim como de autocuidado consciente e, assim, terem
como escolha a possibilidade de ressignificar suas histórias de vida.
Acreditando no poder cuidadoso da Arteterapia, estendi esse
olhar a outros espaços e permiti-me, ainda, a participação em
mais três eventos, os quais foram realizados em ambiente virtual,
com profissionais da Educação, com o objetivo de levar ao conhe-
cimento de mais pessoas os benefícios dessa prática terapêutica,
com o apoio também dos diversos gêneros biblioterapêuticos.
| 27
Figura 6 – Imagem ressignificada
[5] Fernando Pessoa - poema “Sim, sou eu mesmo, tal qual resultei de tudo”.
| 29
Escolhi para aqui registrar um deles que resume toda a nossa
caminhada, que no olhar da Pequena Iris resumiu a intenção e o
objetivo do estágio no fluir da correnteza.
Correnteza
Fé e coragem,
caminhos resilientes.
A força impetuosa surgiu em menina flor.
Agigantou-se no caminho, ao caminhar.
Fez jornada na possibilidade do tempo.
Beleza delicada em variedade cuidadosa.
Honra em simbologia;
é renovação de ciclo,
é mudança de rota,
é caminho revisitado.
Pequena materialidade de alma ampliada.
Flor de tríplice beleza.
Busca e refaz o caminho;
forte e firme.
Não titubeia e nem perde a passada.
| 31
Despertar de Primavera
Em noites de inverno,
lá fora o céu se torna escuridão,
as estrelas mais cedo adormecem.
Flor de Liz,
joia rara amorosa,
delicadeza pueril do ser mulher.
Açucena menina,
fortaleza na ancestralidade permitida;
vibrou na força cabocla
o passo da caminhada.
Pequena Íris,
despertou com fé e coragem.
De força impetuosa,
resgata caminho em resiliência.
| 33
Referências
Caminhar melhor
Recomeçar sem medo de errar
Iluminar meus pensamentos
Sentir mais o meu corpo
Ternuziar os meus gestos
Inovar os meus sonhos
Alcançar?
Envolver-me mais com a natureza
| 35
Desenvolver as minhas habilidades
Amar o meu jeito, para amar o outro
Sensibilizar-me com o simples
Incansavelmente conhecer-me
Louvar Deus que que acredite
Valorizar o que é simples
Saudar, o sol, a lua, a terra
Ouvir ou escutar?
Usufruir o que conquista
Zelar pelas amizades verdadeiras
Amar, amar, amar
Cris[2]
[2] poemas e frases que abrem cada ato deste ensaio foram escritos pelas
participantes do processo de estágio descrito neste ensaio.
| 37
pós-graduação em Arteterapia do NAPE. Um mundo se abriu, um
infinito mundo de possibilidades, tanto ao nível profissional, mas
principalmente um desbloqueio que eu tinha para com algumas
expressões plásticas, assim como entender o que estava por de-
trás do meu olhar algumas vezes murcho. Assim fui confirmando
que realmente nunca tinha marcado um encontro mais demorado
comigo mesma e que desconhecia os meus ciclos lunares. Apesar
de já ter me iniciado numa caminhada espiritual, tanto budista
tibetana e zen como com povos da floresta (povo Huni Kuin e Ya-
nawa do Acre) através das suas cantorias e plantas de cura, foi na
Arteterapia que encontrei um caminho a trilhar juntamente com
essas trilhas iniciadas.
Acredito que para convidarmos alguém a esse mergulho inter-
no precisamos, de iniciá-lo dentro de nós e também de contex-
tualizar a necessidade desse mergulho e de estudar as várias fer-
ramentas teórico práticas. Criar vínculos de confiança é também
falar um pouco da nossa trajetória e o que nos levou a trilhar
determinados caminhos até chegar ao momento presente. Hu-
manizarmo-nos. Apresentarmos as nossas potencialidades, vul-
nerabilidades e resiliências.
| 39
foi aberto sem distinção de faixa etária ou gênero, mas foram
as mulheres que efetivamente se comprometeram a mergulhar
comigo nessa jornada de autoconhecimento. As primeiras sessões
foram de aproximação, para criação de vínculos e diagnóstico da-
quilo que essas participantes traziam para ser trabalho terapeuti-
camente. Isso nos levou, a partir da oitava sessão, a desenvolver
uma estrutura de atendimento em Arteterapia com base nos ci-
clos lunares e em mitos da cultura afro-indígena brasileira. Assim
o grupo se consolidou com a participação de seis mulheres, com
idades compreendidas entre os 20 e os 69 anos. Duas delas, com
a idade de 20/25 anos, assumiram sofrer de depressão agravada
pelo confinamento imposto pela pandemia. Mas em todas elas
observou-se uma necessidade de resgatarem a autoestima e a au-
toconfiança, saberem-se capazes e importantes para elas mesmas.
| 41
serido. Assim sendo, existem muitas cosmovisões onde o pai Sol,
a mãe Terra e a avó Lua são invocados, assim como a origem das
estrelas e os deuses e deusas que são arquétipos das emoções e
sentimentos humanos que atravessam essa mesma humanidade
ao longo de milhares e milhares de anos. Nessa necessidade de
sobreviver às intempéries, que para muitas culturas estão ligadas
à ira dos deuses, entender o ciclo da existência: vida - morte -
vida, mitos e lendas se criaram ao longo do tempo, encontrando
vários pontos em comum entre grupos distintos em diferentes
pontos do planeta e a grandes distâncias temporais. Estamos as-
sim a falar de inconsciente coletivo.
O caminho lunar
Estou no caminho!
Cris
| 43
nos sustenta e nos faz inteira serpenteia-se com a dignidade de
sermos criadoras, criativas, sensuais, firmes para não permitir que
nos objetifiquem. Inteira, individuada num coletivo que necessita
brincar mais, rir mais, resgatar essa criança interior que é a espon-
taneidade e a alegria de viver com a consciência que o planeta
precisa ser cuidado, porque, afinal, somos uma grande teia e a
pandemia do coronavírus veio a confirmar isso. A expansão da
consciência também se dá por contágio e para tal é necessário
um silenciar interno, um cessar de tagarelice interna, auto-obser-
vação e exercício da escuta generosa para consigo mesma e para
com os demais.
| 45
quétipos da donzela (lua crescente), mãe (lua cheia), feiticeira (lua
minguante) e bruxa ou anciã/mulher sábia (lua nova) expressas
nas atividades arteterapêuticas propostas.
Com esse escopo, nos propusemos a disponibilizar ao grupo de
mulheres os estudos e práticas sobre os ciclos lunares em conso-
nância com os seus ciclos femininos como ferramentas para im-
pulsioná-las ao processo de individuação.
| 47
duas. Em grupo compartilharam o que essas imagens escolhidas
representavam e a partir daí foi proposto criarem uma história
coletiva, a seguir resumida:
| 49
Na oitava sessão as mulheres foram convidadas a transmitir
para o corpo em movimento esse texto criado coletivamente. Elas
ainda revelaram um certo bloqueio no que se refere esse contato
íntimo com o corpo, com o movimento e o gesto. Trata-se, por-
tanto, de uma abordagem feita gradualmente, visto também a
sessão ocorrer de forma remota, não presencial.
Para a nona sessão preparamos o início à imersão nos arquéti-
pos femininos ligados a cada fase da lua. Iniciamos pelo arquétipo
da bruxa, anciã, a mulher que sabe, pois encontrávamo-nos sobre
a energia da Lua Nova. Esta fase representa o inverno, o mito Yo-
ruba de Nanã, a deusa Orixá que representa este arquétipo, em
que o elemento terra é predominante.
Na sessão seguinte estávamos sob a luz da Lua Crescente, essa
energia primaveril representada pela donzela. O mito de Ewá
tráz-nos essa jovialidade associada ao elemento água (Figura 4).
| 51
Retirando espinhos
Cada ser tem sonhos à sua maneira.
Lari
| 53
E fecham-se as cortinas:
Nada acaba nunca. Só é preciso continuar
Se eu adormecer toca o meu braço que eu às vezes durmo
quando conto histórias. Mas se eu dormir muito não me acorda,
ué! Que eu quero é mais dormir. Apaga a minha luz e fica a
olhar para o céu escuro que é de noite que se vê melhor as
estrelas. Porque a morte?.... É mentira, ué!
Ana Piu e Paula Só
| 55
Há um campo imenso de estudo e de atuação em Arteterapia.
Infinitas possibilidades em colocar em prática as propostas com
embasamento na psicologia junguiana. Em tempos de encerra-
mento desse processo de estágio, recorremos ainda a Mircea Elia-
de, para quem o xamanismo é a religião da terra, conexão com
o inconsciente, pois o xamanismo aborda a natureza espiritual
da doença, aborda os sonhos iniciáticos, culto e conexões com
os antepassados, e no qual cada objeto tem alma. E nós, seres
humanos, somos força da natureza com um corpo físico que pre-
cisa ser cuidado e desintoxicado, um corpo emocional que precisa
aprender a lidar com as emoções, sobretudo com o medo que se
manifesta em relação ao futuro, ao fracasso, à doença e à morte.
Somos um corpo intuitivo que precisa se abrir à contemplação,
ao silêncio. Irmos ao encontro da nossa alma é um dos maiores
contributos e tributos à vida.
| 57
58 | Contos e Mitos em Arteterapia
Expressão artística e sua
simbologia na busca do
equilíbrio emocional infantil
| 59
seus afetos, medos, anseios e emoções. E, mesmo sem que ela se
dê conta, por meio das artes plásticas e da expressão corporal vai
se equilibrando emocionalmente, explorando seu inconsciente,
seu mundo interior, expondo-o, desenvolvendo maior autocons-
ciência, pensamentos positivos e elucidativos, autoestima, junto
de um aprofundamento na criatividade.
A infância é marcada por um período de intenso desenvolvimen-
to não só cognitivo e físico, mas também emocional. Essa matura-
ção está diretamente ligada com as experiências que vivencia no
meio em que está inserida. Mas cada ser é individual e é afetado
por diferentes influências de forma singular. Essas mudanças de
comportamento, de entendimento, se tornam conflitantes e por
vezes as emoções se tornam um caos. A sua falta de compreen-
são e o surgimento de sentimentos diversos geram desequilíbrio
emocional, afetando diretamente os sentimentos da criança, pois
aquilo é algo novo e ela não sabe lidar com eles ainda, não tem o
discernimento para a sua compreensão, tem dificuldades para se
expressar verbalmente, e às vezes sem o auxílio de um adulto ou
de um cuidador a situação fica ainda mais complexa.
Entre as várias possibilidades de suporte nessas situações, co-
loca-se uma questão: será que a Arteterapia consegue proporcio-
nar esse equilíbrio emocional para essas crianças? Será que ela é
transformadora mesmo? Algumas respostas podem indicar cami-
nhos seguros a seguir nessa jornada de apoio a crianças.
A Arteterapia não é somente uma forma de tratamento, é mui-
to mais, é forma de comunicação, expressão, exploração, desco-
berta, cura de traumas. É fazendo parte desse processo criativo
que o ser ali integrado já está em processo terapêutico, pois essa
prática não requer habilidades e nem experiência dos atendidos.
É somente se deixar levar, ser sincero e explorador de seu interior.
| 61
terno, objetivo, concreto, através do feitio artístico com alma e
cores. Conforme destaca Philippini (2000, p. 19)
“O símbolo tem uma função integradora e reveladora do eixo de si
mesmo, entre o que é desconhecido – inconsciente individual
e coletivo – e a consciência. O símbolo aglutina e corpori-
fica a energia psíquica, permitindo ao indivíduo entrar em conta-
to com níveis mais profundos e desconhecidos do seu próprio ser e
crescer com estas descobertas. O símbolo constelado com a ajuda
dos materiais expressivos dinamiza e facilita a estruturação e trans-
formação dos estados emocionais que lhe deram origem”.
Expressando emoções
A vivência diária nos presenteia com diversas emoções que sur-
gem ao acaso, sem escolhermos, defronte às diferentes situações.
No mundo adulto, isso já é difícil administrar, agora no mundo
infantil, as coisas se complicam mais. As emoções se embolam,
surgem diariamente e cada uma com um significado diferente,
sempre querendo dizer algo. A criança pode nem mesmo saber
o que ela significa, o que ela está a sentir, não a reconhece, não
sabe dar um nome para aquilo ou, às vezes, se confunde. Esse
processo de saber identificar, nomear, entender e ressignificar é
muito importante para o desenvolvimento saudável das crianças.
Quando isso ocorre pode-se evitar traumas futuros e elas terão
um melhor relacionamento consigo mesmas, sabendo diferenciar
as emoções e criando cenários menos conflituosos durante seu
processo de crescimento.
Foi nesse contexto que o trabalho de campo relatado neste en-
saio foi aplicado. Buscou-se ajudar duas irmãs, uma de 8 anos e a
outra com 10 anos, que vinham sofrendo de crises de ansiedade,
não só pelo cenário da pandemia em 2020/2022, mas também por
fortes influências ocorridas no interior de suas vidas familiares.
| 63
va, e o discernimento de seus significados favorece a passar por
situações de uma forma mais calma, mais tranquila, sem a men-
ção de contenção, mas sim de ressignificação.
Na prática
O atendimento com as irmãs se deu de forma remota, devido ao
cenário da pandemia em 2021. Foram sessões semanais de uma
hora e meia ao final da tarde, durante os meses de maio a outu-
bro. Elas estavam totalmente habituadas a usarem a plataforma
digital. Antes do primeiro encontro, foi feita uma entrevista inicial
com a mãe, a qual apontou suas preocupações em relação às cri-
ses de ansiedade que as meninas apresentavam, informando que
elas estavam também se submetendo a avaliações para o diagnós-
tico de TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade).
Como fatores mais preocupantes estava a separação recente dos
pais, a mudança de casa e também a mudança de escola.
O primeiro encontro se deu de uma forma muito divertida. O
objetivo era criar um vínculo e fazer as apresentações. As crianças
não sabiam o que era Arteterapia, mas ao explicar que todas as
dinâmicas iriam se basear em uma arte que elas fizessem e que
qualquer coisa estava certa sem se preocupar com estética, elas
ficaram aliviadas.
Nesse dia foi utilizada a música “Desengonçada”, de Bia Be-
dran (2004), como uma forma bem leve para a criação do vínculo,
o que superou as expectativas iniciais, pois elas dançavam e se
divertiam. O gelo já foi quebrado e elas ficaram muito animadas e
felizes, criando expectativas para os próximos encontros.
Nas semanas seguintes, de uma forma sutil, as crianças co-
meçaram a apresentar a sua família, utilizando o desenho, con-
Tristeza
O que é a tal da tristeza, porque ela aparece de repente, o que
se sente quando ela chega e como entendê-la?
| 65
As crianças atendidas percebiam que sentiam algo que não era
legal e que as incomodava, mas não sabiam exatamente distinguir
a tristeza dos outros sentimentos, como chateação, raiva e tam-
bém angústia eventuais. Achavam que ficar triste era algo chato
e às vezes não podiam demonstrar para os outros; tinham um
entendimento de que esse sentimento não deveria existir.
Muitas coisas as deixavam tristes, como a palavra pandemia e ela
em si, o fato de terem que ficar em casa e não ir para escola, não po-
der abraçar as pessoas, não poder ir à casa do amigo, não ter liber-
dade. Era tudo muito triste e o grau dessa tristeza estava alto demais.
Levando-se em conta que elas ainda estão em pleno desenvolvi-
mento emocional e um turbilhão de fatos acontecendo ao mesmo
tempo, a orientação de um terapeuta nesse sentido e neste mo-
mento possibilita um caminho orientado com maior segurança e
criando autonomia.
Utilizando das mais diversas técnicas em Arteterapia, optou-se
pelo uso da Musicoterapia e da Biblioterapia como disparadores
das atividades. Após o diálogo inicial, as irmãs escutam o conto em
animação “A Alegria e a Tristeza”, através do canal no YouTube
“De criança para criança”. Esse conto apresenta um diálogo lúdi-
co que já faz menção ao significado do estar triste, comparando
com os simbolismos da natureza, lágrimas com a chuva e o seu
contrário, alegria com o sorriso do sol. Essa simbologia já vai tra-
zendo um sentido mais concreto dos seus sentimentos, saindo do
imaginário, trazendo a percepção do pertencimento a um mundo
como um todo.
Da Biblioterapia foi utilizado o livro “Tristeza”, da coleção Sen-
timentos (FERREIRA, 2012), que constituiu na contação de história
narrada, a qual ativa pequenas reflexões e cria interação lúdica
entre os participantes.
| 67
Durante o seu ressignificado, elas entenderam que a tristeza faz
parte das emoções, é normal senti-la e deve-se, sim, manifestá-la
e, quando ocorrer, podemos falar com alguém, buscar saber o
que está causando aquilo. Entenderam também que chorar traz
alívio (até a natureza chora com a chuva), assim como fazer algo
para se alegrar, como ouvir música, rir, ter pensamento positivo e
abraçar alguém.
A sessão desse dia foi concluída com a frase que elas mesmas
criaram:
“Sem a tristeza não se consegue conhecer a alegria”.
Raiva
A raiva é muito presente no dia a dia das emoções e quando ela
surge toma conta de todas as outras. Ela é uma emoção bem ho-
nesta, chega com tudo e não tem como esconder, fica estampada
na cara, às vezes até cobre o rosto de vermelho. A pessoa fala o
que não quer falar, não pensa direito e nem reflete, perdendo o
controle inúmeras vezes.
| 69
Após entenderem o que é e como se sentem quando estão rai-
vosas, foram impostos os questionamentos sobre o que poderia
ser feito na busca da calma? E chegaram às seguintes respostas:
Ansiedade
Em um outro encontro falamos sobre a ansiedade cada vez mais
presente no mundinho das crianças, em particular nessas irmãs
que já apresentam esse quadro, conforme relatado anteriormen-
te. Ansiedade em si não é um sentimento ruim, ela nos alerta ao
perigo, mas a sua intensificação ou não ter controle sobre ela
torna-a desagradável. As crises de ansiedade afetam diretamente
| 71
emoção que vai se refletindo naquela imagem, surgindo um es-
tímulo cada vez mais lúdico, com muita sensibilidade, para de-
monstrarem o que sentem no seu interior, que às vezes é tão
difícil expressar verbalmente. Por meio dessa atividade as meninas
tomam consciência que emoções e pensamentos estão conecta-
dos ao próprio corpo.
A partir dessa sessão, as crianças já começaram a perceber me-
lhor a dinâmica das emoções. Elas mesmas falaram que se sentem
isso no corpo delas e que todo mundo tem um corpo, então as
emoções são gerais, fazem parte do ser humano. Aqui também,
durante nossas discussões, elas expuseram que todos os senti-
mentos fazem parte da vida, que eles vêm e vão, e é só saber
como lidar com aquilo que está acontecendo.
O encerramento desse momento se deu de uma forma apazi-
guada, com um relaxamento corporal, no qual as próprias crian-
ças instigaram o respirar fundo, o espreguiçar e o ouvir música
para controlar a ansiedade.
| 73
Por fim, em uma forma de brincadeira, as meninas fizeram uma
outra atividade, um recorte numa folha em formato de coração e
colaram algodão sobre ele (FIGURA 4) e uma passou no rostinho
da outra, com amorosidade, ao som de uma música tranquila, com
os olhos fechados e recebendo muito amor reciprocamente. A di-
nâmica foi estendida para utilizarem com os demais familiares.
Dia cheio de coração, símbolo universal do amor, elas se en-
tregaram de alma e ficaram muito emocionadas com a dinâmica.
Caminhos a seguir
O resultado deste trabalho de campo em Arteterapia com crian-
ças se demonstrou muito benéfico e satisfatório. A eficácia da in-
tervenção da Arteterapia buscando o equilíbrio emocional dentro
do contexto infantil foi totalmente garantida e ela se verificou em
| 75
Referências
BEDRAN, Bia. Desengonçada. in: A Caixa de brinquedos da Bia. Rob Digital. 2004. 1 CD.
Faixa 11 (3 min 59). Disponível em https://www.letras.mus.br/bia-bedran/561347/
CHEVALIER, J; GHEERBRANT, A. Dicionário dos símbolos. 14 ed. Rio de Janeiro; José
Olympio, 1998.
De criança para criança educação, Criando Juntos, 11, A Alegria e a Tristeza Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=woWH_HGjrlA.
FERREIRA, G. Fabio. Tristeza - Coleção Sentimentos, Ed. Cedic - 1ª ed, 2012. Disponível
em https://www.youtube.com/watch?v=Nfe6_V73MUs.
FERREIRA, G. Fabio. Raiva - Coleção Sentimentos, Ed. Cedic - 1ª ed, 2012. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=HOeDdDLaZEo
FERREIRA, G. Fabio. Ansiedade - Coleção Sentimentos, Ed. Cedic - 1ª ed, 2012 disponível
em https://www.youtube.com/watch?v=KDykQEACmLU.
FERREIRA, G. Fabio, Amor - Coleção Sentimentos, Ed. Cedic - 1ª ed, 2012. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=wXRot9dV78Y.
JUNG, C Gustav. O homem e seus Símbolos. 13ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1964.
MACHADO, B. Colagem o olhar terapêutico: recurso da arteterapia, UCAM. Londrina:
Inesul, 2020
PHILIPPINI, Ângela. Universo Junguiano e Arteterapia in Revista Imagens da
Transformação – Vol. II. Rio de Janeiro: Clinica Pomar, 1995.
PHILIPPINI, Ângela. Cartografias da coragem. Rotas em arteterapia. Rio de Janeiro:
Pomar, 2000.
PHILIPPINI, Ângela. Linguagens e Materiais Expressivos em Arteterapia: uso,
indicações e propriedades. Rio de Janeiro: Wak, 2009.
VALLADARES, A. C. A. Arteterapia cores da saúde. Anais da I Jornada Goiana de
Arteterapia. Goiânia: UFG/ ABCA, p.11-17, 2001.
Raízes Ancestrais
| 77
rentes. Por se tratar de uma população miscigenada, temos em
nossa árvore genealógica o DNA e os elementos culturais desses
grupos que são a base do nosso país, muitas vezes apagadas pelo
processo de colonização.
Com o desejo de quebrar com o olhar eurocêntrico, que é o
olhar do colonizador, priorizamos resgatar a sabedoria ancestral
passada pelos “Griôs” africanos e pelos anciãos dos povos origi-
nários na transmissão oral de conhecimento por meio da conta-
ção de histórias. Por acreditar no poder curativo das histórias e na
sua capacidade de transportar os indivíduos para uma viagem em
contato com seu inconsciente e com o inconsciente coletivo cons-
truído por sua comunidade, selecionamos mitos e contos para
servirem de disparadores no atendimento arteterapêutico a um
grupo de mulheres.
As histórias foram escolhidas durante o processo em que se da-
vam os encontros, pois se baseavam nas questões trazidas pelas
integrantes do grupo conforme as sessões anteriores. Por meio da
representação dos arquétipos presentes nos mitos dos orixás afri-
canos e nas personagens das lendas e mitos indígenas, executamos
práticas de transposição de linguagem com um grupo de cinco
mulheres, ligadas à educação, uma vez por semana, em encontros
online de duas horas de duração pela plataforma Google meet.
Vimos nessa abordagem a oportunidade de desdemonizar os
orixás e tudo que faz parte de um panteão que não é branco,
elitizado e eurocêntrico. Tirando o véu da ignorância, conseguiría-
mos proporcionar as identificações e autorreconhecimentos das
participantes com atitudes, emoções e sentimentos vividos pelas
personagens diante de situações adversas.
Assim como os deuses gregos e romanos, que em seus mitos
tomam atitudes mundanas tomados pelas paixões e pela ira, as
| 79
trabalhadas. Quando as participantes se interrogam sobre o valor
da existência individual, se deparam com a importância das rela-
ções humanas, e com os mitos que apresentavam situações de
conflitos, e que a partir da união e integração dos elementos, há a
superação dos desafios, resultando em um processo de aprendiza-
dos e passagens de lições culturais. Sendo assim, apontavam para
uma melhor possibilidade de entendimento dessas relações, apro-
ximação com a natureza e o resgate dos valores ancestrais africa-
nos e indígenas, exteriorizados através da criação e fazer artístico.
| 81
[...] Desde a raiz que prende vigorosamente aquele ser vivo a terra,
passando pelo caule que lhe dá suporte e serve de caminho para a
alimentação, estendendo-se verticalmente como estaca em direção
ao céu, continuando pelas folhas que intercambiam o efêmero fa-
zendo, pelo processo de respiração que promovem, a troca contínua
com o meio ambiente, até os frutos - continentes das sementes, as
reiniciantes do ciclo da vida - toda árvore (madeira, alimento, sei-
va, sombra, suporte) é só doação e generosidade. Ela é o próprio
exemplo e símbolo do servir, do entregar-se, do integrar-se ao Todo
(SANTO, 2010, p. 29).
| 83
Pensar, sentir, agir e o elo sagrado com a natureza
Na mitologia africana e indígena, o respeito e o equilíbrio com a
natureza estão presentes como uma relação sagrada para a sobre-
vivência de qualquer ser. Com a devida importância, trouxemos
para o processo arteterapêutico atividades artísticas que envol-
viam mitologias que abordavam os quatro elementos (terra, ar,
água e fogo), desafiando e motivando as participantes a equilibra-
rem suas emoções e sua conexão com os elementos da natureza.
Oxum é uma orixá de origem africana relacionada às águas do-
ces, mas que também representa a sabedoria e o poder feminino.
No mito “Oxum é transformada em pavão e abutre”, Oxum vira
pavão para intervir ao castigo dado por Olodumare aos orixás
que se rebelaram contra ele. Como todas as tentativas anterio-
res tinham fracassado, Oxum foi hostilizada pelos outros orixás,
que riram e duvidaram de sua capacidade em conseguir o perdão
de Olodumare. Oxum passa por vários desafios e obstáculos, que
vão machucando-a de forma a perder toda sua beleza de pavão,
até tornar-se um abutre em estado miserável. Porém, apesar de
todo sacrifício, consegue chegar ao Senhor Supremo, consegue
seu perdão e tornar-se seu mensageiro-abutre.
A atividade proposta com base nesse mito foi passar uma folha
de papel sulfite no corpo, como se o limpassem das angústias,
pesos e sobrecargas que carregam nele, ao mesmo tempo em que
se entregavam à sensação do papel amassado em contato com o
corpo. Depois, encontraram, diante das marcas, sua renovação,
algo que queriam transmutar, ou seja, transformar em algo di-
ferente. Com o mito e atividade, percebemos nas participantes
a compreensão da força surpreendente que ultrapassa o corpo
físico e questionamentos sobre o valor da própria existência; elas
trouxeram reflexões relacionadas ao sacrifício feminino necessário
| 85
Não se pode controlar o fluxo da água, assim que ela jorra na
nascente segue seu caminho em busca de seu destino, seja ele
uma cachoeira, um rio ou o mar. Assim também ocorre com o
fluxo da vida, cada indivíduo tem seu caminho a percorrer, po-
dendo fazer escolhas que o levarão até seu objetivo. As emoções
são como as águas, ora são calmas e cristalinas, ora são revoltas
e turvas. Podemos tentar controlar a nós mesmos, nossas esco-
lhas e nossas ações diante dos outros, mas a tentativa constante
e desenfreada de ter esse controle pode acarretar num distan-
ciamento de si mesmo, fazendo com que não se compreenda as
próprias emoções.
Executar atividades ligadas ao elemento água foi uma tentativa
de aproximar as participantes de seus sentimentos mais íntimos,
aflorando sua sensibilidade e imaginação, convidando-se para
mergulhar em suas emoções, em contato com sua subjetividade.
Algumas participantes, através do mito e atividade proposta, uti-
lizando materiais como a pintura com tinta guache que promove
essa fluidez, trouxeram interpretações quanto aos valores e blo-
queios internos que tinham enraizados sobre o choro “não ser
bonito” ou precisar ser “contido”, conseguindo desbloqueá-los e
ressignificar essa concepção. A perda do controle foi algo trazido
como um incômodo, logo, serviu como um ponto que as coorde-
nadoras do grupo resolveram trabalhar.
A Mãe D’Água é uma representação da sereia dentro da cultura
indígena. Ligada ao elemento água, pode simbolizar o poder do
sagrado feminino, a purificação e a cura das emoções. Os Encan-
tos da Mãe d’água, escrita e contada por Cristiane Crispim, que
narra as aventuras de Heloísa, menina esperta, cheia de sonhos,
que descobre a força e os encantos da Mãe d’água, foi um divisor
de águas durante o processo arteterapêutico, escolhida após o
| 87
Ao descobrir o fogo, o homem conseguiu vencer a escuridão.
Com o fogo ele conseguiu cozinhar seus alimentos, se aquecer
em dias frios, espantar animais selvagens e contar histórias em
volta da fogueira. O fogo é o elemento das paixões, é ele que nos
impulsiona, que nos dá energia e gera o dinamismo na vida. Está
ligado à intuição, à criatividade, ao futuro e à capacidade de ser.
Ser é arder, algo tão importante quanto sentir, saber e fazer.
Oya é considerada a Deusa guerreira, senhora dos ventos e
tempestades, dona do poder do fogo, junto de seu marido Xan-
gô. A figura de Iansã está ligada à força e ao empoderamento
feminino, pois não tem medo de se arriscar e mudar de direção
quando necessário, aprendendo a dominar todos os poderes de
seus maridos. Pensando nessa força e nesse poder de transmuta-
ção, trabalhamos o poder do elemento fogo e sua capacidade de
cura, tendo o mito “Oyá usa a poção de Xangô para cuspir fogo”
como elemento disparador para uma atividade de pintura com giz
de cera derretido na vela (Figura 3). Algumas participantes relata-
ram sentir irritação e desconforto durante a execução da pintura,
atribuindo à falta de controle do giz derretido o motivo de tanto
incômodo. O trabalho com o fogo trouxe à tona essa sensação de
descontrole e permissão para o erro, ativando a capacidade de
adaptação dos ambientes familiares e profissionais, trazidos pelas
participantes durante a reflexão no compartilhamento do término
da atividade.
Outras relataram ter se conectado com a chama da vela, o que
permitiu maior introspecção em um diálogo consigo mesmas. A
energia resultante do elemento fogo provocou nas participantes
o encorajamento para enfrentar as mudanças e desafios do dia
a dia, fazendo emergir o simbolismo da heroína que encara suas
fraquezas de forma honesta e otimista. Também levou luz à escu-
| 89
Brincadeira de criança...como é bom!
| 91
A experimentação de lidar com as contradições de uma ida-
de em que nada está garantido e tudo está se transformando é
intensa, desesperadora e se revela um grande complicador caso
não haja apoio – e mesmo que haja, muitas vezes sente-se sem
suporte. Para reativação de memórias dessa época, utilizou-se
elementos culturais e que devido a faixa etária das integrantes
serem próximas, causou uma maior aproximação e disponibilida-
de de apoio ao que era revelado naquele espaço extremamente
empático e acolhedor. Com isso, uma aceitação de que tudo que
era trazido seria escutado, foi possível entrar em um processo de
fortalecimento, cura e diminuições de inseguranças.
O filme “Kiriku e a feiticeira” também foi levado como objeto
mediador das questões, entre eles os altos e baixos que o herói
da narrativa teria que enfrentar. As integrantes se identificaram
com essa figura e trouxeram soluções para alguns conflitos em
que se sentiam “emperradas”. Também revelaram no exercício
de “máscaras de si” uma diferença de apresentação de si - inter-
na e externa, como estou e como me apresento ao outro, algo
que muitas nunca haviam entrado em contato anteriormente e
naturalizavam. Provocadas pelas coordenadoras em outra sessão,
sobre as diferenças de percepção: ver, pensar, sentir, perguntar e
imaginar, refletem a importância do autoconhecimento como fer-
ramenta de enfrentamento para o futuro – tão temido até então.
| 93
representa o ciclo da vida, fazendo bom uso de suas atitudes,
intuições e sonhos, foi proposto tecerem um filtro dos sonhos
(Figura 4). O Filtro dos Sonhos, também conhecido como “apa-
nhador de sonhos”, “caçador de sonhos”, “cata-sonhos” ou “es-
panta pesadelos” é um símbolo místico indígena. Diz a lenda que
o grande sábio espiritual apareceu em forma de aranha, que tecia
um filtro dos sonhos, para um velho índio em uma montanha bem
alta. A mensagem da aranha enquanto tecia o filtro dos sonhos
era sobre os ciclos, do que acontece a partir do nosso nascimen-
to, até a nossa morte, sobre boas e más influências espirituais
que atuam sobre nós durante essas fases. A teia representa esses
ciclos e que o filtro ajuda a alcançar objetos, filtrando os bons
sonhos dos negativos que ocupam o ar da noite.
Fechando Ciclos
O sacrifício feminino está presente em muitas histórias do ima-
ginário universal, de forma que o sofrimento das mulheres e sua
entrega total aparece em vários contos, mitos e lendas de diversas
culturas. É tão naturalizado que é representado muitas vezes de
forma romantizada, contribuindo para que se crie um estereótipo
da mulher guerreira, que dá conta de tudo sozinha, que é boa mãe,
esposa e amante, sem que tenha suas necessidades atendidas.
Desde muito cedo, aprendemos a controlar nossas emoções,
engolir o choro, sermos fortes e capazes para superarmos as
frustrações, em relação, principalmente, ao que o outro é capaz
de nos causar. Culturalmente a mulher é posta como o sexo
frágil, inundado de emoção, sentimentos e guiadas para as ta-
refas mais artesanais. Assim, mesmo com toda independência e
conquistas, as obrigações impostas e arcaicas, ainda estão pre-
sentes, mesmo que em nosso inconsciente, dentro de cada uma
de nós, causando cobranças ainda maiores de nós mesmas. Bem
cuidar de tudo que nos rodeia, de todos que amamos, da famí-
lia, da casa, do trabalho, das tarefas diversas, tudo ao mesmo
tempo, não é uma característica da mulher, mas sim, uma for-
ma que desenvolvemos para conseguir dar conta de tudo e ao
mesmo tempo. Esse caminho é egoísta, solitário e carente, por
muitas vezes não conseguir pedir ajuda e socorro, de demandar
| 95
tarefas e reconhecer que por mais que a vontade em resolver
tudo seja genuína, ela muitas vezes não é possível. Todas essas
questões causam um desequilíbrio emocional, físico e psicológi-
co, um sofrimento muitas vezes silencioso.
No atendimento arteterapêutico, as participantes se depararam
com essas histórias que abordam o sacrifício feminino dentro de
diversos contextos, em que a entrega e o sofrimento das mulheres
se torna a solução para os problemas de sua comunidade, como
nos mitos: Oxum é transformada em pavão e abutre, da deusa
Sedna, da Vitória Régia, da origem da mandioca, entre outros.
Como se os arquétipos da mãe, da guerreira e da vítima fossem
características inatas das mulheres, tornando-as modelos estereo-
tipados de heroínas. Por outro lado, o altruísmo das personagens
possibilitou discussões e reflexões sobre a quebra de padrões pré-
estabelecidos pela sociedade e como cada participante encontra
seus próprios artifícios para enfrentar as adversidades cotidianas e
se fortalecer, sendo a heroína de sua própria jornada.
[...] A imagem não tem forma definida, embora eu quisesse dar-lhe
uma, não fui capaz disso. No início isso me frustrou. Mas depois,
achei interessante e alegórico, pois, quando iniciei essa jornada eu
desejava uma forma muito clara na minha mente, hoje eu prezo pela
jornada e não mais pela forma (CISNE, 2021).
| 97
98 | Contos e Mitos em Arteterapia
Heróis e heroínas dos tempos
bíblicos: uma visão contemporânea
[1, 2, 3] [email protected]
| 99
pia. Fugimos do lado espiritual e focamos na prática humana con-
tida nos relatos bíblicos, contextualizamos historicamente todas as
narrativas, trabalhando em categorias, como mitos e contos, dos
personagens, enfatizamos os feitos heroicos que surgiam a partir
de suas dificuldades e sofrimentos, bem como venceram. Entrela-
çamos as histórias com o arquétipo do herói segundo Jung, com
a Jornada do Herói de Campbell e os quatro elementos naturais.
Com a temática pronta, definimos os dias e quantidades de
encontros, a princípio definidos em (dez encontros e duas turmas)
na modalidade online, utilizamos para isto a plataforma Zoom, a
divulgação ocorreu em diferentes mídias sociais e atraiu pessoas
de diferentes religiões, classes econômicas, idades e regiões no
Brasil e no exterior, decidimos então abrir uma nova turma, aten-
dendo também outro fuso horário, totalizando (três turmas).
Ficou evidente que as mulheres que participaram dos encontros,
mesmo tendo muitas diferenças, tinham muitas coisas em comum:
vimos guerreiras, focadas no crescimento profissional, intelectual,
empreendedoras e confiantes, todas chegaram bem armadas, ver-
dadeiramente vestidas de heroínas e prontas para a guerra.
A arte acompanha o ser humano desde os primórdios, seja atra-
vés de pinturas em rocha, pedra, madeira, corantes naturais etc.,
não diferente, o ser humano pós-moderno, ou seja: depois da
globalização, da industrialização, dos computadores, dos filmes e
todas as mídias disponíveis, tem se aproximado de novas formas
de comunicação e expressão artística, buscando novos elementos
para tal, assim como também vê o mundo de uma forma diferente.
Durante todo o processo de estágio, observamos claramente
essa questão, em que tão diverso quadro de participantes, utili-
zaram dos recursos do cotidiano atual para recontar histórias tão
antigas como as contidas na Bíblia, bem como as lições de vida
As partilhantes
As turmas que passaram pelo nosso estágio, não proposital-
mente, foram formadas por mulheres, com diferentes característi-
cas que ao longo dos encontros, criaram uma personalidade única
e marcante para cada grupo. Para facilitar a compreensão do pro-
| 101
cesso, ao término de todos os encontros, pedimos uma palavra
que descrevesse o momento e vamos utilizar essas palavras para
nomear os grupos, assim, expressando as características que se
formaram. Embora o tema e toda preparação foram os mesmos,
cada grupo trilhou um caminho diferente, que foi de encontro
com o que buscavam em suas jornadas pessoais, a sincronicidade
se fez presente em todas as turmas.
| 103
e origens de seus nomes, trazendo a consciência da importância
de suas origens familiares.
O momento fez transcender através da escrita criativa, carac-
terísticas que as partilhantes talvez não tivessem consciência,
surgidas no primeiro encontro e sendo trabalhadas ao longo de
todo o processo, mostrando, que esse tipo de atividade costuma
resultar em um benéfico e silencioso diálogo, entre quem escreve
e os aspectos de sua vida psíquica menos conscientes, trazendo
uma grande tomada de consciência de suas características inter-
nas, pois, em momentos antes das atividades, fizemos uma bre-
ve apresentação pessoal, onde o que ficou evidenciado foram as
conquistas profissionais e familiares.
| 105
perder tempo aproximou-se e sugeriu que alguma mulher hebreia
fosse dada como ama de leite da criança, a princesa concordou e
Joquebede foi paga para cuidar do seu próprio filho, a princesa
lhe deu o nome de Moisés, que significa: eu o tirei da água. Mui-
tos anos depois, Moisés, vivendo no palácio como príncipe, ado-
tivo resolveu visitar o seu povo segundo o sangue, e deparou-se
com um egípcio batendo nos escravos, sem pensar muito, tomado
por uma grande revolta, matou o agressor e o enterrou na areia.
No dia seguinte voltou entre os escravos, e percebeu que sabiam
que ele havia assassinado um egípcio, logo o Faraó também ficou
sabendo, e por isso quis matar o então príncipe, que defendia os
escravos, com medo, Moisés fugiu.
Para este encontro, solicitamos os seguintes materiais: um bar-
quinho feito de papel, um recipiente com água (que utilizamos
no início do encontro, durante o relaxamento), papéis, lápis de
cor, giz de cera, tesoura e cola. Depois de contarmos a primei-
ra parte da história, solicitamos para as partilhantes que dese-
nhassem e pintassem uma espiral, símbolo de representação do
herói. As Acolhedoras desenharam espirais redondos, que ocu-
pavam praticamente a folha toda; as Corajosas fizeram espirais
diferentes umas das outras, alguns verticais, outros mais estrei-
tos; as Aventureiras, inovaram e representaram diferentes forma-
tos de espirais (redondos, verticais, redemoinhos, horizontais…).
Pedimos para que elas registrassem todo o processo através de
fotografias e logo após, com a tesoura, cortassem toda espiral
de forma aleatória, as partilhantes mostraram-se surpresas e um
pouco resistentes à proposta. Tivemos um momento de partilha,
para ouvi-las sobre como se sentiram ao realizar a tarefa, surgi-
ram algumas palavras: medo e agonia, provando o desconforto
causado, e constatado em todos os três grupos.
| 107
história, existem coisas na vida que precisam ser ressignificadas e
que precisamos nos adequar às mudanças. As corajosas, tiveram
sentimentos diferentes, reconstruíram e criaram coisas totalmente
diferentes, umas picotaram tanto, que quase não conseguiram re-
conhecer o desenho original e teve até quem quisesse apenas jogar
fora, sem ter a vontade de reconstruir, apenas seguir em frente.
Para seguir a quarta fase da jornada do herói: Encontro com o
Mentor ou Sobrenatural, solicitamos um recipiente de alumínio
ou vidro, fósforo ou isqueiro, a produção do último encontro e
um objeto pessoal, e nos deparamos com o momento em que
Moisés é confrontado com uma voz que saía de um espinheiro
que ardia em fogo, porém não se consumia, o desafio agora era
que Moisés saísse de sua zona de conforto e atentasse para o
verdadeiro propósito de sua vida que era o de livrar o povo de
Israel da escravidão do Egito. Desafiamos então as partilhantes a
pegarem suas obras e de forma segura atearem fogo, no geral,
elas disseram que não se sentiram incomodadas em queimar a
produção, pois, de alguma maneira o fogo vem para transmutar
situações e que às vezes essas mudanças se fazem necessárias.
| 109
mão Arão, começaram a anunciar essa boa notícia, mas as coisas
não saíram como esperado, uns acreditaram, outros duvidaram
e teve até quem preferia viver como escravo, afirmando que só
bastava saber que teriam o que comer no fim do dia. Pedimos
para que as partilhantes expressassem o que as mantinham na
zona de conforto. As Acolhedoras e as Corajosas, se expres-
saram através da escrita criativa, descrevendo sentimentos de
comodidade, segurança, tranquilidade, proteção, falta de tem-
po, controle, facilidade e medo. As Aventureiras se expressaram
através de produções plásticas, como desenho e colagem, porém
os sentimentos foram semelhantes.
Dúvidas e discórdias, nos levaram a fase sete: Aproximação da
Caverna Escura, Moisés questiona se realmente ouviu uma voz
divina, se não foi apenas coisa da sua imaginação, quando no-
vamente a voz lhe fala e o encoraja a ir perante o Faraó, para
libertar o povo. Moisés e Arão mostraram para o Faraó que real-
mente Deus os havia enviado com sinais milagrosos através do
seu bastão, que virou serpente e voltou ao estado normal, porém
os encantadores do palácio também sabiam alguns truques, e o
povo continuou cativo. Assim, chegamos a fase oito: Provação Su-
prema - As dez pragas surgiram para tirar o povo e Faraó da zona
de conforto, e tomarem uma decisão. Depois de tanto sofrimento
como escravos e ainda acometidos por dez pragas, a fase nove:
A Recompensa, finalmente o povo é libertado, a comoção foi tão
grande que o próprio Rei pediu para eles saírem dizendo:
– Saiam daqui vocês e todos os outros Israelitas! Deixem o meu
país. Vão adorar a Deus, o Senhor, como vocês pediram. Peguem
as suas ovelhas e cabras e o seu gado e vão embora. E peçam a
Deus que me abençoe. Os egípcios insistiram com os israelitas
para que saíssem do país o mais depressa possível. Eles diziam:
| 111
por perceber a necessidade de resolução de uma questão familiar
antiga. Ouvindo esta partilhante, tivemos a certeza sobre como
a arteterapia nos levou e nos leva, por caminhos completamente
diferentes, independente de um roteiro, trazendo à consciência
somente aquilo que nosso Ego é capaz de suportar, tudo no mo-
mento certo.
Seguimos pela história, lendo o trecho sobre a travessia no de-
serto, que conta sobre a presença de uma nuvem durante o dia,
protegendo do calor e da chama de fogo durante a noite, pro-
tegendo do frio e de animais letais, representando o cuidado de
Deus com o povo. A atividade sugerida neste momento da história,
foi criar um efeito de luz e sombra juntamente com a assemblage
produzida, observando os efeitos que sua arte reproduzia em mo-
mentos de diferenciação das luzes. Nos três grupos as percepções
dessa atividade foram bem parecidas, elas trouxeram questões,
dizendo que perceberam que existiam coisas que já estavam em
tempo de saírem da sombra e voltarem para a luz, também sobre
o movimento contrário, outras poderiam ficar exatamente onde
estavam (seja luz ou sombra) que não fariam diferença.
| 113
Finalizando este encontro sugerimos que cada partilhante, vol-
tasse para o seu pandeiro (assemblage) e fizéssemos um momen-
to de dança, com intuito de descontração e finalização de uma
jornada incrível de muito autoconhecimento e redescobrimento
de questões que impediam evolução em suas jornadas.
Os últimos encontros
Nesta jornada, evidenciamos os momentos de dificuldades, mu-
danças e transformações através do personagem Moisés, porém
não poderíamos deixar de ressaltar as grandes mulheres que fo-
ram aparecendo durante a história e como elas resolveram os pro-
blemas que surgiram.
Moisés foi um grande herói e construiu a sua história com a
ajuda de mulheres que foram guerreiras e enfrentaram grandes
situações. As heroínas estiveram presentes na vida de Moisés,
desde o seu nascimento e é por isso que falamos sobre as Par-
teiras, Sifrá e Puá, que receberam a ordem do Faraó para matar
os meninos hebreus, e então num ato heróico, não obedeceram,
mentiram para Faraó, dizendo que as mulheres eram muito rápi-
das ao dar à luz e que elas não chegavam a tempo. Tornando-se
símbolo de resistência civil diante da injustiça, salvaram não só a
vida de Moisés como a de vários outros meninos bebês.
Essencial também foi a mãe de Moisés, mulher corajosa, Joque-
bede, ao ver que o rei do Egito vinha para matar os bebês, jogou
seu filho num cesto de junco ao Rio Nilo, dando uma chance de o
menino crescer em segurança.
Sua irmã Miriam, desempenha um papel fundamental e de
grande responsabilidade, muito sagaz, ela acompanha a descida
do irmão pelo rio Nilo, até ver o que aconteceria, foi responsável
por sugerir que a própria mãe como ama da criança, assim sendo
| 115
primeiro ao último encontro. As mudanças foram muito visíveis,
que as próprias partilhantes apontavam as diferenças entre elas,
evidenciando a eficácia de todo processo realizado.
| 117
118 | Contos e Mitos em Arteterapia
As cores da vida e o
desabrochar de Rosa
| 119
personagens brincando de esconde-esconde, pulando de livro em
livro, por entre as folhas, querendo saltar, guardando histórias
prestes a ressoarem.
Quando nos encontramos diante de uma estante de livros, de-
paramos com infinitas possibilidades de caminhos a percorrer. Co-
res, formas e texturas tocam nossos olhos. Nos primeiros momen-
tos, as capas são como portais que nos convidam insistentemente
a entrar. As histórias nos transportam para um infinito mundo de
possibilidades, de espelhos, nos quais ora nós nos reconhecemos
como protagonistas, ora como contempladores de vidas.
Muito antes das páginas guardarem histórias, elas pairavam nas
vozes de nossos ancestrais, ao redor de fogueiras, sob a luz do
luar ou mesmo embalando o sono infantil. Narravam em tons me-
lodiosos, fatos verídicos ou imaginados, alimentando assim ima-
gens psíquicas em nossa alma. No relato, a voz e a cadência de
um contador de histórias criam imagens que materializam o verbo
(GIORDANO, 2020, p. 14).
A história contada e recontada guarda a memória de cada um
que a ouviu, narrando momentos como histórias-espelhos onde
nos vemos por entre os arquétipos que vivem em nós.
Jung percebeu que mitos e contos de fadas apresentavam motivos
arquetípicos, como a jornada do herói, a redenção, a morte do velho
rei, a ausência da mãe, a presença da bruxa, e a criança divina,
todos motivos arquetípicos inerentes à condição humana” (SCHNEI-
DER, 2021, s/p).
A jornada arteterapêutica
A jornada começa antes mesmo de se iniciar o curso de Artete-
rapia NAPE/FAVI. Cada uma vem de momentos específicos e com
expectativas, sonhos e ideais distintos, de lugares tão distantes
e peculiares, mas, após se juntarem em uma sala de aula virtual,
sentiram como se se conhecessem desde sempre, amigas de jor-
nada, amigas de vida.
| 121
A vida, assim como os livros, apresenta personagens e enredos
fascinantes. Três professoras de Arte de três estados diferentes,
mas como o mesmo propósito: concluir o estágio do curso de
pós-graduação em Arteterapia encontram-se e decidem contribuir
de alguma forma com os colegas professores que estavam vulne-
ráveis emocionalmente, com todos os medos trazidos pela pan-
demia do coronavírus, pela carga de trabalho e o olhar humano à
situação apresentada por cada aluno.
Neste contexto, mais cinco personagens entram nessa história.
Convidados intuitivamente, três professores de Mato Grosso do Sul
e dois de Minas Gerais se propõem a amenizar os sintomas trazidos
pela pandemia. O grupo “Cores da Vida” se forma, com o intuito
de colorir a vida, por meio de uma jornada de autoconhecimento.
A distância era apenas um dos desafios a serem enfrentados,
um misto de curiosidade e medo, perguntas, sentimentos, sensa-
ções, aquele friozinho na barriga... mas uma era o suporte da ou-
tra e aos poucos tudo foi ficando mais claro. Era impressionante
como uma completava a outra no processo e o melhor de tudo
isso é que todas cresceram juntas e a histórias de vida se entrela-
çaram, dando movimento e transformando a si mesmo e ao outro
numa grande corrente de transformação e ressignificação.
Pautadas em um eixo estruturante “quem sou, de onde vim,
onde estou e para onde vou” a escola ficou em segundo plano.
O trabalho já não era o que mais importava. A dor e as angústias
trazidas eram resultados de uma entrega pessoal, a confiança e
cumplicidade tomaram conta do grupo. Luto, culpa, medo de não
ser uma boa mãe, invisibilidade, calar-se diante de injustiças, não
ser merecedor da felicidade. Essas dentre outras queixas foram
aparecendo a cada encontro. E por mais que houvesse um plano
antecipado, era apenas ao final de cada encontro, analisando as
Quem sou?
Desde o primeiro encontro ela se representa pela cor rosa, pois,
segundo ela, é suave e leve. Com o seu olhar delicado e sorridente
frente ao desconhecido que se apresentava, se entrega, deixando
a tesoura desenhar sobre a folha dobrada. Formas e cores sur-
gem reverberando imagens que antes não sabiam que estavam
lá presentes na caligrafia de seu nome e confeccionou um totem.
Refletindo sobre sua produção, Rosa percebeu:
| 123
Mal sabia ela que sua transformação se iniciava ali. Todos os
membros do grupo se apresentaram de uma forma e cor, pois
mais do que apresentar-se ao outro, o intuito era se conhecer,
descobrir como cada um se vê, como acredita ser, seus sentimen-
tos, desejos, dores... e foi assim que ao longo dos seis primeiros
encontros, por meio de desenho, colagem, escrita criativa, man-
dala de pedras e areia coloridas, eles se revelaram.
Rosa descreve-se como amorosa, guerreira, feliz, certa do que
quer, determinada, delicada e muito generosa, uma mulher te-
mente a Deus. Diz gostar da flor girassol, pois ela sempre segue
a luz e disse que desejaria ser um girassol, pois está sempre bus-
cando iluminar o mundo e a vida e adora ser boa com as pessoas.
Contudo, na atividade “metade de mim” ela revela uma de suas
dores, o fato de não conseguir engravidar e se emociona ao fa-
lar sobre esse tema. Reafirma também a sua fé, sua paixão pela
música, o amor constante e a esperança de um milagre em sua
vida (Figura 1). A flor rosa também a representa em um dos seus
trabalhos, cheia, robusta e plantada na terra, anuncia um jardim
florido (Figura 2).
De onde vim?
Pouco a pouco, todas foram revelando-se. À medida em que as
lembranças de situações foram surgindo por meio das imagens
nas expressões plásticas era possível compreender a história de
vida de cada uma e como essas raízes determinam a pessoa que
se é no presente. Relembrar a infância aflorou dores e mágoas pe-
sadas em algumas das componentes do grupo, mas para outras,
como Rosa, a infância foi marcada por boas lembranças. Mesmo
em momentos difíceis nunca faltou amor. Com cumplicidade e
empatia o grupo ouve e acolhe todas as histórias.
A adolescência também não foi diferente. Marcas desse perío-
do fazem uma das participantes não se sentir merecedora da feli-
cidade, uma dívida cobrada de tempos em tempos. Rosa, por sua
vez, relata passar por esse período sem grandes traumas, apenas
alguns momentos em que sofreu bullying na escola, no entanto, a
amizade com suas irmãs, a participação efetiva na igreja e o amor
recebido de pais e avós a fortalecem.
| 125
As imagens falam e o processo de criação instiga. A criança
brinca com as flores, lê para elas, a leitura é um prazer para Rosa,
mas o jardim é de uma flor só, grande e vermelha (Figura 3). A
busca pelo controle de algo que deveria ser apenas sentido como
o fogo, traz algumas interrogações. Por que a mandala quebra ao
sair da água e o conserto é imediato? (Figura 4). Por que as flores
aparecem novamente? Por que utilizar essas cores? Será que ain-
da tem algo escondido para ser trabalhado?
Figura 4: Floral
Onde estou?
A árvore da vida foi a atividade mais difícil de ser realizada por
Rosa. Com raízes pequenas, ela não tinha sustentação, equilíbrio.
Foi preciso olhar para o lado e até pedir ajuda para descobrir
como ficar de pé. O nome dado à sua árvore foi “Superação”.
Mesmo mentalizando uma árvore frutífera grande e cheia de fru-
tos a dificuldade em realizar a sua estrutura e fixar as raízes cha-
ma a atenção e fica como reflexão.
A máscara cai, ou revela, mesmo tendo como pano de fundo
a história “Morte de Escarlate”, um tanto quanto sombria. Rosa
confecciona uma máscara em estilo carnavalesco, bem maior que
seu rosto, com uma estampa de onça e pérolas. O vermelho e rosa
dão lugar ao dourado.
| 127
encarar melhor seus medos e ela não tem problema em relatar ter
muito medo, mas tem fé e isso a ajuda.
A representação do rio dos sentimentos é cercada de muitas
pedras e mais uma vez aparece o medo de transbordar, mas flores
nascem sobre as pedras. Isso é esperança! Esperança e fé sempre
foram sua marca, contudo, não se cala mais diante de injustiças.
Aprendeu a se defender e a defender a quem precisar.
Guarda sua família, bem mais precioso de sua vida, em seu
relicário. Agora adulta, em seu self box, como em uma luta, faz
e desfaz, cola e descola, apaga e de repente retira a imagem da
professora e cola a imagem de uma mulher grávida (seu maior
sonho), cola também a sua foto e diz
E assim o “onde estou” fica claro para Rosa: estar onde quer
estar e não onde outros esperem que esteja.
Figura 5: Pachamama
| 129
Um grande passo foi dado. Para seguir nesse novo caminho,
Rosa confecciona sua Pachamama, mãe terra, deusa do amor e
da prosperidade, capaz de mudar todo sentido na vida das pes-
soas. Diferente no formato, mas de igual poder, dá um conselho
a Rosa: “curte sua nova eu”. Cheia de esperança e certa de que a
vida ainda exigirá muito de si, Rosa planta seus sonhos, sua espe-
rança e fé confiante em um milagre em sua vida.
Foram muitos momentos, momentos de alegria, de aprendiza-
do e dor, afinal, o mergulho interior causa dor. Como o caçador
da lenda do Povo” A’uwe Upatbi”, que foi ao céu para ser cura-
do, o grupo foi direcionado como se cada um dos integrantes
fosse atraído um pelo outro, com momentos de cura e mudanças
significativas, onde o resgate do amor próprio teve um papel im-
portantíssimo nesse processo arteterapêutico. Era chegada a hora
de celebrar! Celebrar as amigas, as transformações… Celebrar a
vida, a felicidade! Rosa está com sua alma em festa.
As amigas encontradas no Grupo Cores da Vida são como um
verdadeiro arco-íris. A certeza de que é possível deixar a vida mais
colorida, cada um com sua cor foi dando um novo tom, onde
todos foram tocados e transformados de alguma forma. Rosa pre-
senteou a todos com a sua delicadeza de uma menina e agora
revela a mulher forte que sempre esteve dentro dela. Ela permitiu-
-se, sim. Essa seria a palavra para defini-la neste processo. Permitir
ser quem é, capaz de segurar as rédeas da vida e levar todos em
uma linda jornada pautada na grande fé que a sustentou durante
todo o processo.
E assim termina essa história… Não!Aapenas um ciclo se encer-
ra, pois muitos capítulos estão por vir. Foram felizes para sempre?
A vida não é um conto de fadas, mas pode ser transformada por
um, assim como aconteceu com Rosa.
GIORDANO, Alessandra. Contos que Curam: a tradição oral como fonte de trabalhos
arteterapêuticos. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2020.
JUNG, Carl G. Letters, Volume 1: 1906 – 1950. New York, Routledge – Taylor & Francis
Group, 2015.
MAZZANTI, Anna; PRINCI, Eliana. Grandes mestres da pintura, Vol. 8 - Paul Gauguim.
São Paulo: Folha de São Paulo, 2007.
SCHNEIDER, Bertolotto SOLANGE. A importância dos mitos e contos de fadas.
Disponível em: https://www.solangeschneider.com/aimportanciadosmitosecontosdefadas.
Acesso em: 31/10/21).
| 131
132 | Contos e Mitos em Arteterapia
Entre estrelas e pedras preciosas:
devolvendo às mulheres as
rédeas de sua vida interior
| 133
Os Lestrígones e os Ciclopes,
o selvagem Poséidon não encontrarás,
se com eles não carregares na tua alma,
se a tua alma não os colocar à tua frente. (...)”
(Constantino Kavafis (1863-1933)
O Quarteto de Alexandria - trad. José Paulo Paz.)
[3] Como uma filosofia, kintsugi pode ter semelhanças com a filosofia
japonesa de wabi-sabi, a aceitação do imperfeito ou defeituoso. A estética
japonesa valoriza as marcas de desgaste pelo uso de um objeto. Isso pode ser
visto como uma razão para manter um objeto mesmo depois de ter quebrado
e como uma justificação do próprio kintsugi, destacando as rachaduras e
reparos como simplesmente um evento na vida do objeto, em vez de permitir
que o seu serviço termine no momento de seu dano ou ruptura. Kintsugi pode
se relacionar com a filosofia japonesa de “não importância” (mushin) que
engloba os conceitos de não-apego, aceitação da mudança e destino como
aspectos da vida humana (fonte Wikipédia).
| 135
experiências mais plenamente, levando-as a perceber que mesmo
diante de uma pandemia era possível tornar-se mais plena, mais
inteira, mais conectada consigo mesma.
Nossa proposta no ciclo 1 era a de investigar e conhecer mais
as necessidades do grupo, assim como o de equilibrá-las e es-
truturá-las melhor, levando em consideração os elementos que
simbolizavam as quatro funções psicológicas na tipologia de Jung:
pensamento, sentimento, sensação e intuição. “Esses quatro tipos
funcionais correspondem aos recursos óbvios através dos quais a
consciência obtém a sua orientação para a experiência” (JUNG,
1964, p. 61 apud HALL e NORDBY, 2005, p. 88).
Em cada encontro um mito ou conto era utilizado, relacionando
alguma temática relevante para explorarmos e investigarmos me-
lhor as suas necessidades. Já em nosso segundo ciclo, escolhemos
trabalhar em oito encontros com dois contos somente, quatro
encontros para o conto da “Vasalisa, a sabida” [4], para tratar de
questões relacionadas à criança interior, à grande sábia, às som-
bras e à intuição. E outros quatro encontros que enfatizaram o
autoamor, autoestima, formas diferentes de amar a si e aos ou-
tros, assim como a sensualidade e feminilidade, através de alguns
contos e lendas da orixá africana Oxum [5].
[4] Conto retirado do livro: Mulheres que correm com os lobos de Clarissa
Pinkola Estés.
[5] Mitos inspirados pelo livro: Lendas africanas dos orixás, de Verger.
[6] Conto do baobá inspirado entre outros pelo conto contado em Folclore
Africano Episódio de Histórias para Dormir | Euiancoski para Crianças |
Podcast Infantil, no Spotify.
| 137
Colocando-nos numa relação dialógica com a intuição, a sen-
sação e o sentimento, para além do pensamento. Percebendo de
fato as necessidades de nossas clientes, que ora surgiam como
ervas daninhas na relva ora como flores perfumadas no campo.
A seguir serão apresentados os resumos das atividades artetera-
pêuticas desenvolvidas com esse grupo de mulheres. Elas são aqui
identificadas pelo codinome que escolheram em um dos encon-
tros: Estrela, Lua, Jade e Rubi.
Estrela
Alguns temas se mostraram recorrentes no processo delas. In-
conscientemente de início, elas sempre os traziam em suas falas
e em suas produções. Por exemplo, a participante Estrela trazia
sempre temáticas religiosas cristãs ora ligadas ao polo da oração,
do rogar a Deus, do curar-se e conectar-se espiritual e religiosa-
mente, ora ligadas a guerras santas, a batalhas divinas. Surgiam
misturadas, imagens de espadas, de lanças junto de estrelas e
cruzes, que ela identificava como a sua espiritualidade e religio-
sidade, como se carregasse a cruz em sua psique cheia de suas
aflições e frustrações.
Surgiu a oportunidade de amplificar os símbolos e se chegou ao
sentimento de revolta, até mesmo de agressividade, no entanto,
ela negava a necessidade de entrar em contato com a sua própria
frustração e indignação, que eram trazidas em sua fala por estar
se sentindo presa por conta da pandemia, por não admitir as con-
tradições de seu círculo de conhecidos e familiares a respeito do
momento em que vivíamos.
Vimos muitas vezes que era necessário que ela confrontasse
essa frustração e irritação. No entanto, o seu próprio inconsciente
| 139
de então aparentemente estava mais leve nas sessões. O encontro
que nos marcou como representando um rito de passagem para
Estrela foi o de temática de Oxum (amor consigo e com os outros).
Para esta atividade indicamos a utilização de algodão e guarda-
napo de papel, que seriam colados em uma outra folha de papel
para receber uma tinta bem aguada para colorir a composição
(Figura 1).
Lua
O processo de Lua foi o mais desafiador para nós, já que ela
não se conectava com as atividades, faltava entrega e relaxamen-
to. Seu ambiente familiar aparentemente não parecia ajudar, já
que ela estava sempre no chão e havia pessoas a sua volta que se
comunicavam com ela a todo momento. Acreditamos que muito
do que poderia ter sido expressado por ela deixou de ser dito, tal-
| 141
vez por esta falta de privacidade. Mesmo assim ela nunca faltou
às sessões e sempre externalizava em palavras que estava sendo
levada a reflexões e até a tentativa de mudanças de hábitos, que
geralmente se mostravam sabotadas por ela mesma.
Algumas atividades específicas possibilitaram um encontro mais
inusitado para ela com o seu inconsciente de maneira menos ra-
cional. Esses encontros foram conduzidos pelo elemento Fogo. Ela
expressou ter trauma e medo de lidar com o fogo por conta de
uma experiência infantil em que havia se queimado em sua casa.
No entanto, a conversa e as reflexões conduziram-na a finalmente
reconhecer que parte desse medo se expressava por ter um cará-
ter extremamente controlador. Percebeu como esse elemento era
selvagem e incontrolável e todos os aspectos de sua vida que se
relacionavam com o descontrole eram muito incômodos e sem-
pre estavam presentes, repetindo-se em suas falas: a morte, a
doença, o trabalho como professora infantil em meio à pandemia.
Tudo se fazia presente como desabafo, mas aparentemente sem
alívio e sem ressignificação.
Seu processo foi como o trajeto de uma montanha russa, com
pontos altos e pontos mais baixos. Pontos que voltavam com espe-
rança renovada por ter conseguido parar de pensar excessivamen-
te e tirar um tempo para passear de maria-fumaça, por exemplo.
Mas os pontos de lucidez eram mais raros e os pontos de angústia
pareciam ser o mote principal de seu enredo pessoal, como a figu-
ra da cobra que eternamente morde o seu próprio rabo, ela se via
presa nesse ciclo sem fim de angústias e irracionalidade.
Lua não percebia que querer controlar o incontrolável fazia com
que sua energia de agência sobre o mundo e a sua própria vida
ficasse estagnada, acabava não realizando seus desejos, que se
expressavam muito relacionados ao descanso e ao lazer, posto
| 143
A sua lanterna tomou a forma de uma máscara, no qual somen-
te um olho vazava luz, o outro permanecia obscuro e sombrio.
Para Lua, um dos temas recorrentes que surgiam em sua fala era
relacionado ao seu pai já falecido - a figura masculina que aparen-
temente a perseguia inconscientemente. Ela iniciou falando dele
de maneira mais corriqueira e superficial, mas sempre de forma
negativa, tendo sido um pai com vícios e ausente, sobrecarregan-
do a sua família e forçando-a a amadurecer antes do tempo por
ter de cuidar da casa e das irmãs enquanto a sua mãe trabalhava
para prover o sustento da família durante toda a sua infância. Foi
neste período inclusive que Lua teve sua experiência traumática
com o fogo, queimando-se enquanto esquentava algo no fogão.
A figura de seu pai sempre voltava a assombrá-la. Ela não nota-
va, mas havia uma necessidade inconsciente de reconciliar-se com
o seu masculino interior ferido, que se expressava como esse pai
ausente e sem amor. No entanto, na atividade da lanterna, pela
primeira vez, Lua trouxe aspectos positivos de sua experiência de
vida com seu pai. A temática da morte surgiu muito forte, lem-
brando-se de seu falecimento e, surpreendendo a todos nós, ad-
mitindo o quanto dele mora nela, o quanto de semelhança existe
em seus atos e nos de seu pai.
Admitiu ter um modo de ser acelerado e sem tempo a perder
muito parecido ao dele. No entanto, pela primeira vez também,
isso veio de maneira leve, quase com alívio. A temática da morte
se fez presente pela lembrança do enredo do filme da Disney/
Pixar: Viva, a vida é uma festa, em que o personagem principal
adentra o mundo dos mortos para se reconectar com a memória
de seu avô e nesta aventura aprende que quando esquecemos de
honrar a memória de nossos ancestrais, acabamos perdendo tam-
bém um pedaço de nossa própria história, de nós mesmos.
Jade
| 145
cultivou como escudo para desviar de grandes dores, optou por
ser bonsai em espaço e rotina seguros ao invés de baobá que
explode as folhas querendo alcançar o céu e o universo todinho.
Todavia, inicialmente em seu processo pudemos perceber em
sua fala uma insegurança perene, um manter o status quo, mes-
mo percebendo que mudanças seriam positivas e que teria de agir
para atingi-las, já que o agir inicialmente era quase impossível de
se conceber. Em mais de um encontro mencionou perceber que
em sua vida o medo era seu guardião e companheiro.
Seus galhos de bonsai temiam abraçar o mundo que gostaria de
construir. Vivia, assim, a se boicotar, não se achando merecedora
do melhor da vida. Seus boicotes eram através de comparações
com seus familiares, colocando-se sempre abaixo deles. Talvez te-
nha faltado adubo e água na infância dessa plantinha linda que
não enxerga o próprio potencial criativo, querendo permanecer
sementinha ainda.
Ao invés de se deixar aprofundar e renovar as forças que são
sugadas diariamente, ela preferia ficar na zona de conforto mes-
mo percebendo que era infértil aquela terra já devastada. Preferia
aceitar o que tinha, fosse como fosse, como quisessem lhe dar,
ao invés de entrar em embates pelo que acreditava, preferia ficar
no seu vasinho minúsculo sem reclamar. No entanto, claramente
clamava por mais calor, mais água, mais vida, mais diversão, mais
atenção e mais cor nas suas folhas. Seu animus aqui estava cativo
de uma anima amedrontada e controladora, que o acorrentava
sempre à espera do sacrifício pelo monstro marinho.
Suas folhas só seguem para onde o vento vai levando, não con-
segue aceitar que pode ouvir e se deixar guiar por seus próprios
furacões e que como diz Ryane Leão [8], “faça magia dentro de
seus vazios. Complete-os com o novo, com a ponta de seus de-
[8] Poemas retirados de mídias sociais de Ryane Leão, mulher preta, poeta
e professora, criadora da página onde jazz meu coração, com mais de
600 mil seguidores nas redes sociais. Seu primeiro livro, Tudo nela brilha e
queima, já vendeu mais de 40 mil exemplares. https://www.instagram.com/
ondejazzmeucoracao/, acesso em 5/12/2021.
| 147
Talvez a seca em suas terras internas poderia ser refrescada
com suas próprias lágrimas, com poder curativo, mágico e mis-
terioso. Ao longo dos encontros foi deixando frases e problemas
no ar, dizendo que ainda não queria se abrir, o que era sempre
acolhido pelo grupo e por nós.
Jade se saía muito bem em atividades controladas e calmas,
tendo sido uma das únicas que realmente se acalmou e relaxou
fazendo o seu potinho da calma. A grande questão é até quando
será possível para ela guardar todo esse mar sem que ele vire um
incontrolável tsunami. Será que as águas de Jade podem se trans-
mutar em um lago que atravessará segura de barco para o paraíso
de Avalon? A escolha é desse pequeno universo em expansão que
simboliza Jade e sua trajetória.
Mais de uma vez surgiram observações e reflexões pela par-
ticipante quanto a sua necessidade de suprimir, controlar e su-
focar suas emoções. Em uma atividade representou visualmente
a divisão que fazia entre emoção e racionalidade, sem perceber
que as barreiras que havia escolhido para separar as duas coisas
eram frágeis demais para se manterem sólidas, posto que feitas
de algodão, reconhecendo que tinha de lidar com suas emoções
também, mas sempre guardando-as de nós como segredos tran-
cados atrás de uma porta.
Pode-se perceber na Figura 3 que a parte superior pintada de
azul claro representa, segundo ela, a emoção - quase sem cor, mas
ocupando um grande espaço. Enquanto que a parte inferior, ama-
relo ouro, representa sua razão, mais forte e marcante. O verde
escuro formava a barreira que Jade colocou entre a emoção e a ra-
zão, para separá-las. Contudo, após conversa e reflexão, a imagem
se expandiu para a de uma praia, na qual o amarelo era a areia, o
azul o oceano. A pergunta que permaneceu com ela para reflexão
| 149
Rubi
| 151
Costurou em mandalas o ouro de Oxum, aquele que brilha mais
que o sol. Assim compreendeu que o exagero pode estar enco-
brindo o que falta, o que não se encaixa. Aos poucos observou
que em exagero tudo pode se tornar tóxico e nocivo e até mesmo
o amor mais verdadeiro pode errar buscando acertar, afinal sol
demais pode matar o girassol que é uma flor delicada e sensível.
O barquinho de papel de seus sonhos naufragou, tal como Ti-
tanic nada funcional, grande demais, pesado, exagerado, desen-
gonçado. Ao atravessar para Avalon, onde encontraria sua felici-
dade, sucumbiu nas águas escuras, perdido nas névoas da dama
do lago, vivenciando seu lado sombra, como se personagem per-
dida dentro do mito de Morgan Le Fay [9]. Sofreu muito pela di-
mensão das velas e pela pequenez e fragilidade da base, ao tentar
navegar em rios de emoções que poderiam ser vivenciados com
pequenas embarcações, simples, práticas, planejadas e efetivas.
Contudo, não precisou de colete salva-vidas ou qualquer aju-
da, pois foi sua própria salvadora e merece os louros para si, as
comemorações dançando no escuro com sua lealdade, a timidez
que caiu ao chão, o hibisco desenhado no fundo dos olhos, a
flexibilidade do corpo ao se permitir deixar o fluxo do rio seguir
para novos afluentes e para cachoeiras banhando muitas outras
pessoas que a vida trará.
Durante os encontros do ciclo final baseados nos contos e mitos
de Oxum, ela finalmente despertou sua feminilidade que clamava
por libertação. Vestiu-se de rosa choque, perfumou-se de aroma
de cravos e rosas, passou batom escuro e finalmente permitiu-se
A todas as mulheres
Esse estágio em Arteterapia deixou diversas sabedorias e
aprendizagens para todos nós. Crescemos e aprendemos com as
trocas, as aflições, os choros, as gargalhadas, os sorrisos serenos
e os respiros de alívio. Caminhamos de mãos dadas com essas
mulheres, que aceitaram participar de uma jornada de autoco-
nhecimento e autotransformação acompanhadas de guerreiras
amorosas e de guias ávidos por facilitar o seu processo com ca-
rinho e responsabilidade.
Um lembrete a cada mulher desse grupo e a todas, em diver-
sos espaços, profissões, situações, etnias, classes sociais, com
qualquer religião e orientação sexual, mães solos ou não: este-
jam abertas, ouçam suas intuições, vocês são deusas na terra.
| 153
Vocês são fortalezas únicas, no dom e no ofício da arte de serem
bruxas naturais. Conhecedoras da magia do inconsciente, do
descobrir-se, do desvelar-se. Mergulhem nos mares do autoco-
nhecimento, do recomeçar, do juntar os cacos a cada final trági-
co e se propor a uma nova reconstrução. Criem a profundidade
que as faz infinitas e além.
A Lenda do Baobá. In: SPOTIFY. Angola | Folclore Africano Episódio de Histórias para
Dormir | Euiancoski para Crianças | Podcast Infantil. Disponível em: https://open.spotify.
com/episode/4Q4w5S2d8MtQNq8lgAKX4p?si=NTXKENXNSb-ghSIpddM1xA&utm_
source=whatsapp&dl_branch=1. Acesso em: 7/05/2021
ESTES, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do
arquétipo da mulher selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
FADA MORGANA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia
Foundation, 2021. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Fada_
Morgana&oldid=62344185>. Acesso em: 9 jul. 2021.
HALL, Calvin; NORDBY, Vernon. Introdução à psicologia junguiana. Tradução:
Heloysa de Lima Dantas. 8. ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2005.
JUNG, C; VON FRANZ, M. L…(et al.). O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2002.
KINTSUGI. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2021.
Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Kintsugi&oldid=62083603>.
Acesso em: 20 set. 2021.
LEÃO, Ryane. Tudo nela brilha e queima. Planeta; 1ª edição (13 outubro 2017).
LEÃO, Ryane. Jamais peço desculpas por me derramar: Poemas de temporal e
mansidão. Planeta; 1ª edição (30 outubro 2019).
NICHOLS, S. Jung e o tarô: uma jornada arquetípica. São Paulo: Cultrix, 1988.
VERGER, Pierre Fatumbi, 1902 - 1996. Lendas africanas dos Orixás. Salvador: Corrupio,
1997.
| 155
156 | Contos e Mitos em Arteterapia
As deusas e os quatro
elementos da vida
Um percurso inesperado
| 157
prática supervisionada, com a tarefa de desenvolver atividades de
Arteterapia, ancoradas na temática dos contos e mitos. Apresen-
tamos a proposta nas mídias sociais da clínica de psicologia “Para
Ser Um” e 10 mulheres apresentaram-se, constituindo dois gru-
pos: Demeter-mamães de 30 a 45 anos - e Atena, jovens mulhe-
res de 18 a 30 anos, todas com formação universitária ou ensino
médio completo.
Ao selecionarmos mulheres na faixa etária de 18 a 45 anos,
consideramos que no contexto do mundo atual a força do femi-
nino necessita manifestar-se na forma de criatividade e expressão
artística para se fortalecer e se recriar.
“Uma deusa é uma forma que um arquétipo feminino pode assumir
no contexto de uma narrativa, representa uma dinâmica energética
feminina, uma energia psíquica que inspira e informa as atitudes
cotidianas” (WOOLGER,2020, p.12).
Encontros criativos
Os encontros foram semanais com duração de 1:30h. O setting
virtual, situado no ambiente de cada participante, contou com a
utilização de materiais de fácil acesso, informados previamente
no WhatsApp de cada grupo, estimulando assim a procura e o
curioso olhar para o ambiente em volta.
| 159
Não havia um roteiro de atividades programado, mas um reper-
tório de elementos que seriam disponibilizados através da ampli-
ficação simbólica de um elemento significativo que aparecesse na
atividade em grupo.
As sessões virtuais foram organizadas em três etapas: prepa-
ração, desenvolvimento e conclusão. Procuramos sustentar um
território criativo e simbólico, zelando pelos espaços de criação,
para que este fosse acolhedor ao processo criativo e que as sub-
jetividades de imagens e escrita criativa de cada participante pu-
dessem ser reconhecidas nas produções plásticas expressivas de
cada participante.
“Como os arteterapeutas devem trabalhar com estratégias não ver-
bais, o aspecto da organização e planejamento de sua prática te-
rapêutica é configurado pela intermediação dos materiais de arte
pela organização adequada e específica do setting, e entre outras
possibilidades por ambientações sonoras em conexão aos temas a
serem trabalhados “(PHILIPPINI, 2011, p. 34).
| 161
Representa um processo que traz ao indivíduo a possibilidade de
conhecer, compreender, refazer, rememorar, reparar estruturas e
transcender no processo arteterapêutico, possibilitados por ins-
trumentos expressivos e plásticos que facilitam a apreensão do
significado deste símbolo pela consciência. Este conjunto de es-
tratégias pode compreender a utilização de uma multiplicidade
de modalidades expressivas ou às vezes o aprofundamento de
uma só modalidade, que vai se intensificando à medida que o
cliente consegue explorar com mais facilidade suas possibilidades
expressivas através de um material plástico. Este processo é mais
produtivo quando há a observação das sensações corporais que
envolvem o processo criativo das imagens.
[5] Nise da Silveira: (1905-1999) - Nise Magalhães da Silveira foi uma médica
psiquiatra brasileira. Reconhecida mundialmente por sua contribuição à
psiquiatria, revolucionou o tratamento mental no Brasil. Foi aluna à distância
de Carl Gustav Jung.
| 163
As frases trazidas pelo grupo nos impulsionaram a refletir sobre
“como a vida nos quebra e nos reconstrói de diversas maneiras?”.
Seguindo nossa trilha, construímos um espaço para as lembran-
ças da criança interior e como atividade, propusemos a modela-
gem com massinha, proporcionando neste modo criativo trocas
de experiência. O grupo pode então manifestar as lembranças
de momentos da infância, brincadeiras com irmãos e familiares,
permitindo a verbalização da ambivalência afetiva e um diálogo
sobre sentimentos paternos e maternos com transposição e ale-
gria, ora permeados com relatos da infância dos próprios filhos
(Figura 1).
| 165
O grupo participou da atividade começando interagir entre si, o
que foi possibilitado pela atividade com música e leitura dos tex-
tos produzidos por elas. A partir dessa vivência, escolhemos para
a próxima atividade a força dos quatro elementos, com o objetivo
de despertar a coragem, a autoestima e os sonhos. Levamos para
o setting arteterapêutico a Mandala da Roda da Vida, onde os
aspectos da vida prática são checados com as reflexões sobre a
presenças na vida (Qualidade de Vida, Pessoal, Profissional e Rela-
cionamentos). Uma das mulheres assim se revelou:
“Você tem sede de quê? Você tem fome de quê? De ser Feliz” “Eu
quero sossego!”, “Sou Feliz comigo mesmo!”.
| 167
Estes resultados nos levaram a refletir e planejar para o próximo
encontro uma vivência corporal da Anima, para trabalhar com
elas a força do Feminino.
Assim, programamos uma atividade de consciência corporal
para a nossa trilha e a confecção de uma mandala relativa à ativi-
dade explorada. Iniciamos com o relaxamento e meditação sobre
o feminino e a dança como expressão desse corpo no espaço:
corpo que gera a vida, corpo expressivo. Projetamos para o grupo
vídeos de dançaterapia de Maria Fux [6].
Iniciamos a vivência da Força do Feminino através da música
“Despierten Mujeres”, interpretada por Luna Santa e propusemos
o diálogo corporal através da dançaterapia, primeiramente com
músicas leves e uso de bastões (movimentos contidos) e posterior-
mente com lenços (movimentos livres e espaçosos, após quebra da
tensão inicial), construindo inicialmente diálogos tônicos virtuais
em dupla e depois com todo o grupo. A atividade transcorreu com
o envolvimento de todas as participantes. Nenhuma fechou a câ-
mera e todas compartilharam o diálogo corporal musical, criando
lindas coreografias.
Na confecção das mandalas envolvendo linhas e lã, simboliza-
ram o corpo no espaço. As mandalas foram significativas e inte-
graram os movimentos dos ciclos de vida. Todas as participantes
relataram sentir-se muito bem com a atividade e com a percep-
ção do corpo no espaço, o qual vai ficando cada vez mais esque-
cido. Conforme expressa Philippini (2009, p. 132), “o trabalho de
consciência corporal em arteterapia está a serviço da fluidez, da
| 169
O trecho da música, “Venho de uma tribo de mulheres bem po-
derosas, que realizam as coisas e têm fogo no coração. Desperta
mulheres que a mãe Terra Gaia, nos chama Filhos de Gaia”, ati-
vou a força da Terra Patchamama Deusa, vivenciada então no en-
contro seguinte. A dança representa a vida nos movimentos dos
ciclos da vida: nascimento, infância, adolescência, adulto, mater-
nidade, paternidade, atuação social e profissional, velhice, morte.
Bernardo (2008), nos explica que em cada movimento e cada
etapa representada aprendemos algo novo e importante sobre
nós mesmos, sobre o outro e sobre o mundo, que nos transforma
e amplia nossa visão de mundo e todo processo de transformação
envolve a vivência de uma morte simbólica e de um posterior o
renascimento”
A confecção de mandalas esteve no foco dessa nova sessão,
para que elas criassem e refletissem sobre suas vidas e em seus
ciclos. Para isso, solicitamos materiais relacionados aos quatro
elementos: terra, água, fogo e ar. Focamos sobre o elemento ter-
ra, que nos traz a maturidade e a introspecção, aquilo que já se
consolidou. Neste encontro, as participantes trocam experiências,
expressam sentimentos, acolhem-se e admiram as atividades e ex-
pressões num compartilhar de emoções e trocas de experiências.
Uma das participantes pede licença ao grupo para apresentar um
vídeo do jardim de sua casa. As estagiárias já não são mais inter-
mediadoras, mas observadoras atentas do processo grupal. Re-
solvemos, então, programar para o próximo encontro a lenda das
bonecas Quitapesares [7].
| 171
Um percurso pelo Feminino
Ao pensarmos nosso setting de Arteterapia no modo online,
criamos um espaço acolhedor, respeitoso, com os materiais dis-
poníveis e com possibilidade de expressão através de cores e ma-
teriais plásticos onde houvesse possibilidade de explorar o sen-
timento feminino em todas as suas dimensões. As deusas não
foram necessariamente vivenciadas, mas as experiências plásticas
puderam trazer a força das mulheres que neste momento de pan-
demia são forças criativas dos arquétipos femininos que atuam
para curar as dores e recriar a vida.
As deusas, com suas forças poderosas, encontram-se em todo
o percurso terapêutico, fazendo parte do nosso inconsciente fe-
minino. Na psique de cada mulher, reconhecemos mais de uma
deusa. Iniciamos nosso percurso com a apresentação criativa e os
grupos trouxeram as mulheres que desejam reconhecimento, rea-
lização, independência, um mundo mais justo e uma humanidade
melhor, um amor universal expressando assim a força das deusas
Atena e Ártemis.
Podemos dizer que esse percurso pode ser considerado uma
grande celebração, honrando todas as mulheres dos dois grupos
e todas as mulheres de todos os tempos. Fomos todas agraciadas
pelas experiências de um grande caldeirão alquímico, transporte
da matéria-prima que vai sendo transformada, proporcionando a
sabedoria interior e a integração da vida com suas inúmeras mani-
festações. Assim nossa trilha conclui-se e transforma-se em novas
trilhas para novas mulheres.
TASHI DELEK!
| 173
174 | Contos e Mitos em Arteterapia
A Jornada Heroica na Parentalidade
| 175
A situação em que o mundo se encontra de recolhimento,
físico e emocional, o olhar incessante para o núcleo fa-
miliar, seus conflitos, emoções e sensação de pertencimento nos
levou a trafegar em mares mais profundos, gerando uma inquie-
tação na questão do papel do sujeito dentro da parentalidade.
Somos todos os dias convidados a realizar algo em nossas vidas,
seja por vontade própria, pela necessidade de atender o outro, ou
pelas circunstâncias da própria vida.
Percebemos uma enorme relação entre a Jornada do Herói e as
adversidades no processo da parentalidade. Campbell (1949), em
sua obra “O Herói das Mil Faces”, explica que a vida de cada herói
consiste em empreender uma jornada, o que o obriga a enfrentar
uma série de testes psicológicos que devem ser superados, a fim
de evoluir como ser humano. Neste trajeto, o sujeito é exposto
a inúmeros desafios, desde o chamamento até o retorno com a
recompensa.
Imbuídos no desejo de, por meio da Arteterapia criar conexões
que desvendem os mistérios desse processo e levem o sujeito a lidar
de forma mais harmoniosa e segura de sua parentalidade, buscou-
-se na mitologia a ferramenta necessária para trafegar nesta seara.
Segundo Dell (2014), o mito é a tentativa de narrar toda uma
experiência humana, cujo propósito é demasiado profundo, indo
fundo demais no sangue e na alma, para uma explicação ou des-
crição de natureza psicológica.
CAMPBELL (1990), em seu estudo sobre mitologia e jornada
heroica, relata-nos que existe um caminho para realizar as trans-
formações necessárias no ser humano e este caminho é universal.
O presente trabalho foi realizado com pessoas em suas múlti-
plas facetas na parentalidade: pais, mães, filhos e avós, perceben-
do suas singularidades e unicidades.
| 177
Desenho - desenhar os sonhos, pensamentos e desejos futuros
sobre a condição da parentalidade, com a finalidade de reafir-
mar a capacidade do indivíduo de dar um destino, estruturando e
criando um propósito aos conteúdos internos.
Para Philippini (2018, p. 49) “O desenho permite expressar
histórias pessoais com clareza, apenas utilizando a configuração
linear da imagem.” Desta forma, a self box foi desenvolvida du-
rante o processo com os participantes na intenção de oferecer
uma base, uma sustentação neste início de percurso terapêutico.
Além disso, esta técnica possibilita revelar a si mesmo sua forma
de funcionar consigo, com os outros e com o mundo.
A self box trouxe ao grupo a possibilidade de lidar com os
medos, anseios, sonhos e esperanças referentes ao grau de pa-
rentalidade no qual estavam. A projeção simbólica por meio da
modelagem, recorte e colagem e desenho, na base quadrada e
sólida da caixa, permitiu a visão das emoções
no momento em que se tomou consciência
da paternidade, maternidade, da notícia
de ser avó, da mudança na visão dos pais
da infância e da adolescência, bem como
cada uma dessas emoções estão no mo-
mento e também, os sonhos e desejos
para o futuro.
| 179
A partir desse ponto a imaginação ativa promoveu um contato
com o universo inconsciente, estimulando o potencial imaginativo
do indivíduo.
As imagens/figuras que surgiram durante o processo promo-
veram um diálogo entre conteúdos internos que até então não
tinham sido integrados à consciência e o ego dos integrantes dos
grupos. Os participantes fizeram isso por meio de perguntas feitas
por eles e respostas dadas intuitivamente pela imagem incons-
ciente que acessaram na técnica. De maneira geral, relataram sen-
timentos como tranquilidade, sensação de novo sentido para a
hierarquia da paternidade, além de paz.
Figura 2: A tranquilidade
| 181
Figura 3: O voo da travessia
A Caverna Oculta
É chegada a hora do conflito interno psicológico, onde o indiví-
duo pode romper tudo, desestruturar, ou olhar para imensa força
propulsora que existe dentro dele e perceber o que é possível
mesmo com todas as adversidades.
Para isso, essa fase da jornada heroica foi apoiada no mito
“Eros e Psique” para que o processo fosse desenvolvido. Amas-
sando, rasgando, moldando e recortando, os participantes cons-
truíram em papel pedra sua própria caverna, com o propósito de
concretizar, dar materialidade e forma ao que é intangível, difuso,
desconhecido ou reprimido, favorecendo a integração de aspec-
tos sombrios da personalidade.
Ao sair deste local, a proposta foi construir uma caixa de poten-
cialidades, sua caixa da beleza, onde todos os benefícios, virtudes
| 183
e alegrias da parentalidade foram colocados, por meio de palavras
escritas em diferentes papeis e decorada com diversos materiais. Os
participantes conseguiram se entender pertencentes a sua situação
de pais, mães, filhos ou avós e enxergar as belezas de sua condição.
Renascimento
Ao retornarmos/renascermos, percebemos que, independente
das dificuldades das situações, é possível recuperar-se, pois está
mais forte, presente e atuante. Renascer, voltar à vida, enfrentar
a morte deixando o velho para trás e seguindo com novas atitu-
des, com novo olhar, com novos objetivos rumo àquilo que se é
realmente.
Buscou-se possibilitar esse olhar para a parentalidade, ressigni-
ficando a imagem de si mesmo, transformando e integrando os
sentimentos e ideias, quebrando padrões polarizados e flexibili-
zando possibilidades. Para tanto, no mito judaico-cristão, a histó-
ria de Sadraque, Mesaque e Abednego, os três jovens na fornalha
ardente, refletem essa possibilidade de transformação.
| 185
No intuito de dar concretude a esse momento, utilizou-se a
mandala de fogo, mandala esta feita a partir da cera de velas co-
loridas pingadas sobre a água, favorecendo a função intuitiva dos
integrantes e possibilitando a transformação de cada um deles. Fi-
nalizando essa reflexão, temos segundo Campbell (1990, p. 131)
a citação sobre a saga do herói, em seu livro o Poder do Mito:
Não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis
de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. Temos apenas que
seguir a trilha do herói, e lá, onde temíamos encontrar algo abominá-
vel, encontraremos um deus. E lá, onde esperávamos matar alguém,
mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe,
iremos ter ao centro da nossa própria existência. E lá, onde pensáva-
mos estar sós, estaremos na companhia do mundo todo.
| 187
188 | Contos e Mitos em Arteterapia
Transformando e revelando
emoções com arte
| 189
Introdução
Eu e o outro
No início do processo arteterapêutico é importante que as mu-
lheres se conheçam melhor e criem um vínculo entre si e entre
elas e as condutoras das atividades, olhando para si, observan-
do suas características, suas preferências, e histórias de vida,
e compartilhando-as com o grupo. É importante também que
comecem a se familiarizar com os materiais artísticos e com a
dinâmica das sessões.
A necessidade de pertencimento é uma característica essencial
do ser humano. Ao iniciar um processo arteterapêutico em grupo
é importante propiciar vivências que favoreçam a criação de vín-
culos por meio do acolhimento, respeito e empatia.
Ao utilizar expressões artísticas simples, como colagens, dese-
nhos e transposições, as mulheres revelaram suas preferências,
suas características, contaram sua história, suas relações e usaram
a arte como forma de expressão.
| 191
Assim, as mulheres se mostraram mais à vontade no grupo, per-
mitindo-se maior envolvimento com suas próprias jornadas para,
a partir daí, promoverem o autoconhecimento.
Deuses e mortais
Aprender a reconhecer as emoções e os sentimentos, como a
raiva, a alegria, o medo, a tristeza e o amor, de forma criativa,
expressando-os através da arte, pode evitar males desnecessários.
Transforma seres conflituosos em seres humanos mais harmonio-
sos ao ressignificarem suas sombras.
Neste contexto, a mitologia nos conduz por caminhos já viven-
ciados, emergindo do inconsciente ao consciente, desse modo
nossas emoções quando reconhecidas, podem ser transformadas.
Ao materializarmos nossas emoções no processo arteterapêuti-
co podemos nos conscientizar e observar o que construímos, seja
em forma de desenho ou outras construções, dando assim vazão
a essas emoções.
A Arteterapia utiliza-se do rito e do conhecimento teórico sobre os
mitos como um dos instrumentos possíveis para acessar conteúdo do
inconsciente. Tal saber é de suma importância para qualquer setor
dos “Estudos do Homem” por ser uma pintura da alma, onde estão
as alegrias, os sofrimentos, as passagens, os movimentos e a trans-
formação do viver e saber humano, retratando o processo de busca
de si mesmo. O mito é a forma primitiva, no sentido de primeira e pri-
mordial, de abstração e pensamento do homem. Ao estudar os mitos
com atenção, percebemos dores e gozos tão nossos, subterrâneos,
tão conhecidos e tenebrosos (DINIZ (2014, p.14).
A jornada
No mito de Perseu e Medusa, os objetos de poder (espada,
foice, capacete da escuridão de Hades, escudo espelhado de
Atena, sandálias aladas) são usados para enfrentar seus medos.
Segundo Wilkinson (2018, p.83), a “Armadura de Perseu: era
formada com itens dados por vários deuses. Na mitologia grega,
era comum objetos encantados, dotados de magia, ajudarem o
herói em sua missão”.
No início da jornada das mulheres foi proposto que identificas-
sem seus medos e as possibilidades de enfrentamento e, assim,
construíssem um objeto de poder.
Esse enfrentamento e a ressignificação do medo permitiu que
houvesse uma ampliação da percepção de suas capacidades e
forças. Cada uma, a seu modo, construiu objetos que simbo-
lizavam suas dificuldades e como poderiam superá-las, como:
medo de falar em público e a construção de um microfone que
virou seu amuleto, uma adaga para sentir-se confiante e dispos-
ta a aceitar novos desafios, um binóculo para ver-se por outro
prisma. Em Arteterapia, reconhecer os sentimentos e emoções,
principalmente, aquelas que podem nos paralisar, como o medo,
permite a transformação de algo ruim em uma força motriz que
nos leva ao encorajamento.
| 193
Figura 1: Reconhecimento da emoção medo
| 195
que bebe o líquido pensando que é sangue. Com Sekhmet em-
briagada, deus Rá a transforma novamente em Rathor, colocando
fim na sua vingança.
As mulheres tiveram um primeiro contato com o mito e foram
convidadas a fazer uma mandala, com o elemento fogo, que está
ligado a intuição, ilumina e transforma rapidamente a emoção. O
fogo está ligado às emoções ardentes e tem a capacidade de ilu-
minar pontos que precisam ser vistos, como a raiva, muitas vezes
renegada, por ser considerada uma emoção negativa. Segundo
Chevalier & Gheerbrant (2019) o fogo é um símbolo purificador,
regenerador e transformador.
As mulheres puderam acolher a emoção que surgiu durante a
atividade, assim como o descontrole ao realizar a primeira eta-
pa da mandala. Com o intuito de ordenar a emoção, acolher e
transformar o que sentiram, as mulheres utilizaram pedras, grãos,
sementes e palitos para delimitar simbolicamente esta expressão
artística. A experiência da expressão afetiva e a possibilidade de
discerni-la trouxe relatos referentes a sentimento de descontro-
le ao realizar a primeira parte da atividade, mas ao delimitar as
bordas de sua mandala teve a percepção de que com delicadeza
consegue acolher e ordenar essa emoção.
Para trabalhar a emoção do amor familiar abordou-se o Mito de
Deméter e Perséfone. Deméter, na mitologia grega, era o nome
da deusa que cuidava da terra fértil, do plantio e da colheita.
Perséfone, sua filha, é raptada por Hades, deus do submundo,
e Deméter desesperada sai a procura da filha. Diante da tristeza
de Deméter, Rá, o deus sol, revela que sua filha está com Hades.
Porém, Perséfone havia se alimentado no mundo de Hades e não
poderia mais ser resgatada. Diante disso Deméter não exerce mais
sua função de promover a fertilidade da terra, levando à escassez
| 197
A execução da atividade foi como um mergulho no túnel do
tempo, com resgates de momentos importantes de suas vidas
e reflexão sobre a importância dos elos fraternais como supor-
te nesses momentos. Recordações de avós, de animais de esti-
mação, de amigos da infância, da adolescência e da vida adulta
que, segundo uma delas, estavam guardados num “bauzinho de
lembranças”, revelaram sentimentos de carinho e dedicação por
amigos e familiares, gerando sentimentos positivos e construtivos,
e, principalmente o reconhecimento da importância desses elos
em suas vidas.
A recordação pode também trazer desafios, lembranças de elos
fragilizados, mas que podem ser revistos ou superados ou ainda
novos elos podem ser estabelecidos no decorrer da vida.
De modo particular, cada uma das mulheres se sentiu desafiada
ao fazer a atividade. Pensamentos pairaram nas mentes, como:
não tive elos, minha adolescência foi difícil. Porém, durante o
processo perceberam o quanto os elos foram importantes para a
superação de situações adversas.
Utilizamos o mito de Eros e Psique, que faz referência a traje-
tória de Psique na qual Afrodite, deusa do amor e da beleza, dá a
ela três tarefas impossíveis de serem cumpridas. No entanto, ela
recebe ajuda dos aliados, cumprindo as tarefas e reconquistando
o amor de Eros. Propusemos às mulheres a realização de uma al-
quimia interior, com a construção do seu próprio perfume, usan-
do flores, frutos, folhas e água, pensando na temática “Se eu fos-
se uma essência, como seria?” Ao enfeitar o pote pensaram sobre
os cuidados pessoais e na construção do perfume refletiram sobre
sua essência ser única e incomparável. A sensação de fluidez per-
meou essa construção, edificando e permitindo o reconhecimento
das habilidades e potenciais criativos de cada uma.
Finalizando a jornada
Durante toda a jornada observou-se mudanças positivas nas
mulheres. Perceberam a necessidade de olhar para si, acolher e
ressignificar a própria emoção e a do outro, descobrindo que é
possível utilizar as emoções para o próprio desenvolvimento.
Estimular a imaginação e transformar algo possivelmente velho,
descartável em algo novo, promove nova forma de ver e viver.
Visualizar todo processo e construir um objeto que represen-
| 199
tasse a jornada arteterapêutica, utilizando o material que tinham
disponível e escolhendo os que mais lhe agradassem permitiu ma-
terializar todas as emoções vivenciadas e elaboradas.
A importância da jornada
Lá no início do processo, as mulheres tiveram contato com as
suas emoções por meio da atividade de criação de vínculo, es-
colheram um objeto que as representassem, pensando em suas
características positivas. Assim seguimos fazendo esse movimento
de olhar e acolher as emoções que surgiram durante o processo
arteterapêutico: transformando e revelando emoções com a arte.
| 201
Referências
| 203
“[...] Minha vida ficou plena de sentido
quando descobri que tão importante
quanto cuidar do outro é cuidar de si.”
Ana Claudia Quintana Arantes
| 205
pudessem se reconhecer nessa sensação de sobrecarga e, para
muito além disso, pudessem construir caminhos que as levassem
para uma vida com mais autoaceitação, autocuidado e leveza.
Para entender sobre essa jornada, quatro questionamentos fo-
ram feitos: “Como estou?”, “Quem sou?”, “O que necessito?” e
“O que pretendo realizar?” Com 13 participantes que tinham en-
tre 30 e 50 anos e eram cuidadoras não remuneradas - cuidavam
dos filhos, maridos e pais idosos.
A jornada resultou num olhar delas para si mesmas e a possibi-
lidade de formar, in-formar e transformar.
| 207
A partir desse ponto do mito, trabalhou-se com as mulheres a
aceitação de momentos de alívio.
A fotografia foi a primeira proposta desse encontro, visando a
capacidade de explorarem o cotidiano e de olharem a autoima-
gem, como lembra Ribeiro (2013, p. 37) “as fotografias são cultu-
ralmente aceitas como testemunho de presença, são aliadas fun-
damentais para o resgate da autoimagem e autoestima [...], pois
funcionam como antídoto à invisibilidade social”
Durante a semana, ao fotografarem momentos de prazer e tran-
quilidade e compartilharem com as outras cuidadoras, num mural
virtual, foi possível resgatar momentos de leveza e pertencimento.
Através da produção da mandala de lãs “olho de deus”, olharam
para os seus sentimentos com relação ao cuidado, organizando
‘uma linha de pensamento’ e permitindo perceber que os momen-
tos de alívio e prazer são também parte do processo do cuidar.
Citando Philippini (2018, p. 61) a tecelagem na Arteterapia “[...]
equivale a ordenar, a articular, a entrelaçar, a organizar, a apro-
priar-se do próprio fluxo criativo e existencial [...]” e com esse olhar
mais gentil, voltado para si mesmas, elas atravessaram a primeira
fase da jornada e deram início a um mergulho mais profundo.
| 209
Demandam simbolicamente a consciência e a integridade de uma
estrutura interna organizada, coesa e bem introjetada. Esta estrutura
interna abrangerá percepção de eixo, centramento, integração entre
segmentos e, se este equilíbrio não estiver sendo percebido interna-
mente, não poderá ser expresso fora. Na produção simbólica, o mes-
mo poderá ser aprendido ou reaprendido nos erros e acertos de ten-
tar edificar e de constatar que nem sempre as próprias concepções de
equilíbrio resultam acertadas. A materialidade sempre apresentará
de modo óbvio estas dificuldades, e atravessá-las e resolvê-las per-
mitirá que, analogamente, processos emocionais reorganizem-se.
[7] No contexto desta proposta o “pote de si mesma” foi utilizado para fazer
uma reflexão a partir de uma lista de palavras que as participantes já
escutaram sobre si e outras que acreditavam representar quem elas são, para
então colocar no pote apenas aquilo que reconheciam em si.
| 211
utilizada a modelagem e a pintura em pedras, a partir de uma
meditação guiada, para que as participantes se conectassem com
sua criança interior.
| 213
por diante, consiga basear-se na manutenção do equilíbrio entre
cuidar-se e cuidar do outro.
Com a prática do plantio, as participantes listaram seus desejos
e sonhos de vida bem como, ações que as levariam a concretizá-
-los. Simbolicamente, adubar suas ações e cultivar seus sonhos.
Encerrando todo o processo arteterapêutico, olharam o cami-
nho percorrido resgatando as vivências e atividades para costurar
um caderno dos sonhos e inspirações, firmando um propósito de
estar mais conscientes de suas necessidades e desejos, bem como
dialogar diariamente com a mulher do presente e aquela que elas
esperam se tornar no futuro.
| 215
por sua vez, algum sentido ao “não visto” por elas. Foi assim
que elas perceberam a urgência em impor limites, buscando di-
zer não a tudo aquilo que já não mais queriam para si mesmas,
bem como a imperiosa necessidade de validar e acolher seus
desejos, escrevendo dali por diante uma dinâmica de vida mais
consonante com o que desejavam e passaram a entender por
autoestima e autocuidado.
Eis a Atlântida que descortinaram ao fim do processo, cada qual
com a sua em particular, cuja existência se consolidou ao longo de
um processo de reencontro, autoconhecimento e reavaliação dos
próprios caminhos. Tal processo desenhou-se a partir de um fluxo
de expressões criativas e simbólicas, que possibilitaram acessos
internos mais profundos, alavancados pelo uso de diferentes téc-
nicas expressivas como pintura, tecelagem, desenho, construção
entre outras, as quais promoveram, por fim, amplas reflexões so-
bre o próprio existir, e a recuperação de lucidez e equilíbrio acerca
de si mesmas, encaminhando-as ao encontro dos seus potenciais
criativos, que as orientaram no caminho da reinvenção acerca de
seus modos de ser e estar no mundo.
Pois bem, caros leitores, o trabalho realizado com essas mu-
lheres cuidadoras, cuja narrativa vai chegando ao fim, de modo
algum pretende esgotar em si o assunto, tal sua complexidade
e magnitude, o qual deve ser cada vez mais abordado e traba-
lhado junto a essas figuras cuidadoras, e aos demais indivíduos
da sociedade, de modo a ampliar a consciência acerca do equi-
líbrio necessário entre o cuidar de si e o cuidar do outro para
que haja uma vida realmente saudável e harmoniosa para os
envolvidos bem como uma efetividade no cuidado daquele que
se faz dependente. Entende-se que, para alcançar tal objetivo,
muitas são as ferramentas norteadoras, tendo sido aqui apre-
| 217
Referências
ARANTES, A.C.Q. A morte é um dia que vale a pena viver. Rio de Janeiro: Sextante,
2019.
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. 26ª ed.
Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
CAMPBELL, J. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1991.
GALAHAD, L.C. Atlas, o titã que sustenta o céu nos ombros. Mitologia Grega Br:
Curiosidades sobre Deuses, Monstros e Heróis. Disponível em: https://mitologiagrega.net.
br/deuses-primordiais/ Acesso em: 06/02/2022.
HESÍODO. Teogonia: A origem dos deuses. 3ª ed. São Paulo: Editora Iluminuras LTDA,
1995.
JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2000.
MAGALDI FILHO, W. Autoconhecimento como caminho de cura pessoal e
social: individuação e ego. Disponível em: https://www.ijep.com.br/artigos/show/
autoconhecimento-como-caminho-de-cura-pessoal-e-social-individuacao-do-ego. Acesso
em: 22/10/2021.
OSTROWER, F. Criatividade e processos de criação. 29ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
PHILIPPINI, A. Linguagens, materiais expressivos em arteterapia: uso, indicações e
propriedades. 2ª ed. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2018.
PHILIPPINI, A. Para entender Arteterapia: cartografias da coragem. 6ª ed. Rio de
Janeiro: Wak Editora, 2021.
PORTO EDITORA. Lenda da Atlântida na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora.
Disponível em: https://www.infopedia.pt/$lenda-da-atlantida. Acesso em: 20/10/2021.
RIBEIRO, E. N. Cerzindo Histórias com Fios de Luz: A fotografia em trabalho
Arteterapêutico realizado com mulheres. in: Arteterapia: métodos, projetos e processos.
Angela Phillippini (org). 3ª ed. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2013.
| 219
A solidão passou a fazer parte da vida cotidiana. Então, nesse
cenário, surgiram diversos questionamentos. Essas inquietações
nos levaram a buscar respostas incessantemente. Percebemos que
nossas angústias eram norteadas por um tema que teimava em
povoar nossas cabeças: “o vazio”. O vazio de tudo nos foi apre-
sentado nesse período. As pessoas sentiram-se mais solitárias e
distantes, sem o aconchego caloroso e energizante dos contatos
humanos. Como ressignificar esse vazio nos dias de hoje? O que
é e como se manifesta esse vazio? Como nossa cabeça trabalha
com essa situação? Como isso reflete no nosso corpo e no nosso
dia a dia? Como poderíamos atuar nesse processo? Os dicioná-
rios nos informam que vazio é uma palavra originária do latim
vacivu (vago), que significa aquilo que nada contém. Figurativa-
mente, encontra-se também a seguinte definição: “sentimento
angustiante produzido por saudade, privação ou ausência” [3]. Se-
riam necessárias muitas discussões sobre esse tema. A partir dele,
deparamos também com questões relativas à saúde mental e à
necessidade de criar mecanismos para nos mantermos saudáveis:
“Em tempos de isolamento social em consequência da pandemia
do novo coronavírus, se faz ainda mais necessário falar sobre saú-
de mental. Precisamos pensar em como ficar saudável durante
esse período, para além das questões físicas. [4]”
| 221
uma visualização criativa ou de um relaxamento. Essas práticas
iniciais preparavam o grupo para o estar ali presente, permitindo
às participantes terem o tempo focado somente em si e no traba-
lho a ser realizado.
Os materiais utilizados normalmente eram solicitados antecipa-
damente e cada partilhante se responsabilizava por tê-los no início
de cada encontro. Para algumas sessões, nós enviamos um ou outro
material específico. Em cada sessão, sempre e após todo trabalho
expressivo e respectivo compartilhamento em grupo, consideran-
do a carga de emoção contida, deixávamos sempre uma mensa-
gem, uma música ou um poema que fechava aquele momento e
acarinhava o grupo, na expectativa de deixa-las mais conscientes e
mais à vontade no retorno às suas respectivas rotinas.
Durante as 24 sessões, navegamos entre caminhos que foram
norteados pela força e pelo simbolismo dos quatro elementos da
natureza. Traçamos uma linha do tempo iniciada pelo elemento
Terra - por ser um elemento estruturante que promove as sensa-
ções, promovendo estabilidade e suporte. O mito do Baobá (Fi-
gura 1) foi o disparador para despertar e ativar percepções sobre
questões ligadas a relações ancestrais de pertencimento e reco-
nhecimento de si.
No início do processo, já se percebia que o grupo apresentava
características que davam indícios da necessidade de equilibrar as
manifestações do consciente e do inconsciente, caminhando em
busca do Si mesmo e ao encontro do ver a si. A base estruturan-
te apontava o caminho, um processo que foi despertado pelos
símbolos representados no trabalho da self box (Figura 2). Essa
técnica ofereceu uma base de sustentação para o início do traba-
lho terapêutico. GASPAR referenda essa perspectiva, ao dizer: “...
acredito na importância de se oferecer uma base, uma sustenta-
| 223
Figura 2
| 225
O elemento Fogo, estimulando a chama interior, ilumina as-
pectos dos quais temos consciência e também aqueles que ainda
estão à sombra, aspectos que precisam ser iluminados, percebidos
e trabalhados. Conforme Chevalier & Gheerbrant (2018), o fogo
é um símbolo purificador, regenerador e transformador” A cada
passo foram acessadas memórias e construídas pontes para res-
significar os nossos vazios interiores. Propusemos a elas simbolizar
essa chama com a construção de uma lanterna (Figura 4), para
que elas percebessem a luz dentro delas e voltassem ou começas-
sem a iluminar seus caminhos, preenchendo aquele vazio do início
do processo.
Figura 4: “Eu vejo que tem um caminho que ficou bem nítido,
aceso pela vela, e ficou muito bonito com o quadro pelo fundo na
floresta. Vejo que preciso observar meus caminhos”.
| 227
“Vocês ajudaram pessoas, transformaram minha história e me
fizeram reavivar meus sonhos. Através da arte, vocês revisitaram
muitos corações, fazendo-os fortes, corajosos e presentes, e me
proporcionaram renascer das cinzas. EU VOU CELEBRAR!!!”[5].
| 229
230 | Contos e Mitos em Arteterapia
| 231
232 | Contos e Mitos em Arteterapia
Os mitos sempre fizeram parte da natureza humana. Eles podem ser vistos como
representação de tudo aquilo que cerca o nosso funcionamento, sejam elemen-
tos da natureza, fenômenos naturais, objetos e figuras, inclusive aquilo que não
se traduz na materialidade e habita o campo do desconhecido, como deuses e
deusas. Por serem tão presentes, os ensaios deste livro abordam diferentes mitos
que impactam na vida de brasileiros e brasileiras: os ciclos lunares, referências
essencialmente brasileiras trazidas tanto das culturas afro-indígenas quanto das
judaico-cristãs, os quatro elementos da natureza, deuses e deusas gregas, cores e
flores, todos presentes nas jornadas heroicas da vida.
www.artenape.com.br