Rebus Sic Stantibus e A Pandemia
Rebus Sic Stantibus e A Pandemia
Rebus Sic Stantibus e A Pandemia
Num evento extraordinário e imprevisível, os contratos podem ser revistos. Não se trata de liberação geral dos
compromissos, mas a lei prevê a possibilidade de rever as condições do negócio. É uma das exceções mais
antigas do direito.
Mas o trecho mais contundente, e que reafirma a cláusula rebus sic stantibus,
está na parte final: “consideradas as informações disponíveis no momento de sua
celebração”. É exatamente a base objetiva do negócio, aquela sobre a qual se assentam as
premissas contratuais.
A lei enfatiza que, sempre observada a boa-fé, a liberdade de contratar
pressupõe que as partes conheçam as condições externas do negócio e que elas se
mantenham, porque senão não haveria de fato liberdade. Sobrevindo mudança extraordinária
e imprevisível no contexto, que possa prejudicar (onerar) o cumprimento da obrigação, abre-
se a possibilidade de que as regras sejam revistas.
Neste ponto, considerando a força obrigatória e a autonomia da vontade, e
considerando que a cláusula rebus sic stantibus tem caráter excepcional, a intervenção há de
ser limitada pelo princípio da proporcionalidade – especialmente pelo trinômio
necessidade/adequação/proporção. Ou seja, a medida da interferência jurisdicional deverá
ser a menos gravosa à integridade do negócio, apenas suficiente para reequilibrar a relação.
Daí porque predominará a revisão e não a resolução. E o provimento
revisional, tão cirúrgico quanto possível, cuidará de alterar estritamente o necessário à
recondução do contrato não ao estado original, agora impossível, mas ao status de higidez.
BASE PRINCIPIOLÓGICA: BOA-FÉ E FUNÇÃO SOCIAL
A aplicação da teoria da imprevisão não pode ser indistinta ou generalizada.
Pelo contrário, há de ser excepcionalíssima e observados os respectivos critérios. Dentre os
princípios em que se assenta a rebus sic stantibus está o da boa-fé, estampado por mais de
uma vez no Código Civil, em especial nos art. 113 e 422.
Já a função social do contrato está prevista no art. 421 do CC e igualmente
dá sustentação à revisão, justamente pela ponderação de que a liberdade contratual deve
respeitar os limites da função social.
A lei não tem palavras inúteis; o contrato tem preservada a sua função social
quando não desborda do necessário equilíbrio entre as partes.
FORÇA MAIOR COMO REFORÇO OU ALTERNATIVA À TEORIA DA IMPREVISÃO
Ao lado da teoria da imprevisão, que justifica a revisão em face do
desequilíbrio do contrato por fato extraordinário, se encontra a força maior, como excludente
de responsabilidade do devedor em face de fato extraordinário e inevitável.
O instituto da força maior, como inscrito no art. 393 do Código Civil, deve ser
lido em associação ao art. 399 do mesmo diploma:
“Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito
ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato
necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.”
“Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação,
embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se
estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que o
dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente
desempenhada.”
Nelson Zunino Neto é advogado atuante em Direito Público, especialista em Direito Ambiental e Direito Eleitoral.
Autor do livro Tempo mínimo de propaganda eleitoral em rádio e tv – Habitus, 2020.
1
Diz o texto: “§ 48 Se um awllum tem sobre si uma dívida e Adad inundou seu campo, ou a torrente carregou, ou por falta de
água não cresceu grão no campo: naquele ano ele não dará grão a seu credor, ele umedecerá sua tábua e não pagará os
juros daquele ano.” Tradução de E. Bouzon em O Código de Hamurabi. Vozes, 3ª ed, Petrópolis, 1980, p. 40. O autor explica
que awllum era equivalente a cidadão, e Adad era o deus babilônico da tempestade. E contextualiza: “Os contratos babilônios
eram redigidos em tábuas de argila, geralmente, secas ao sol. Se a superfície escrita era molhada o texto tornava-se ilegível
e assim o contrato era anulado.”
2O termo “cláusula” aqui tem o sentido de preceito, e não subdivisão contratual. Daí porque a rebus sic stantibus se aplica
desde que presentes os requisitos, prescindindo de uma previsão expressa no pacto. Neste sentido Walter Mujalli in Teoria
Geral dos Contratos. Volume I. Bookseller: Campinas, 1998, p.54.
3 Os filósofos romanos Cícero (106-43 a.C.) e Sêneca (4 a.C-65 d.C.) deixaram escritos princípios morais que faziam
referência ao conceito da rebus sic stantibus. Séculos depois, há registros no Corpus Juris Civilis, mais especificamente no
Digesto, um compêndio jurisprudencial do Direito Romano, por volta do ano 530, com passagens de Africano e Neratio (José
Vicente Hurtado Palomino em La Clausula rebus sic stantibus em el contrato de compraventa de cosa futura esperada.
Revista de Derecho, 44, 2015. Disponível em http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0121-
86972015000200007. Acesso em 02.4.2020.) A expressão apareceu pela primeira vez muito depois com o Direito Canônico,
no século XII, pelas mãos do monge Graciano na obra Concordia Canonum Discordantium. Mas foi do jurista italiano Andrea
Alciati, no século XVI, a fórmula original da expressão que até hoje permeia os trabalhos doutrinários: “Contractus qui habent
tractum successivum et dependentiam de futuro, rebus sic stantibus intelliguntur” (Contratos que tem trato sucessivo e
dependem de [cumprimento] futuro entendem-se estando assim as coisas). Daí a expressão rebus sic stantibus (estando
assim as coisas).
4
CASTRO, Adriano Augusto Pereira de. Desconstruindo a teoria da imprevisão. Disponível em http://blog.newtonpaiva.br/
direito/wp-content/uploads/2012/08/PDF-D11-02.pdf. Acesso 02.4.2020.
5
ZUNINO NETO, Nelson. Pacta sunt servanda x rebus sic stantibus: uma breve abordagem. Revista Jus Navigandi, ISSN
1518-4862, Teresina, ano 4, n.31, 1°.5.99. Disponível em https://jus.com.br/artigos/641. Acesso em: 2 abr. 2020.
6 Curso de Direito Civil. Saraiva: São Paulo, 1969, 6.ed., p. 12.
7
Teoria Geral dos Contratos. Volume I. Bookseller: Campinas, 1998, p.53.
8
Contrato. 2. Ed., Renovar: São Paulo, 2002, p.161.
9
Código Civil anotado, Saraiva, SP, 2006, p. 443
10“Art. 898. Só pode obter moratória o comerciante que provar, que a sua impossibilidade de satisfazer de pronto as
obrigações contraídas procede de acidentes extraordinários imprevistos, ou de força maior (art. 799), e que ao mesmo tempo
verificar por um balanço exato e documentado, que tem fundos bastantes para pagar integralmente a todos os seus credores,
mediante alguma espera.” Entende-se que esta parte, inobstante não revogada expressamente, tenha sido tacitamente pela
Lei de Falências, hoje subsituída pela Lei da Recuperação Judicial.
11 De acordo com a Organização Mundial da Saúde – OMS (www.who.int), o nome oficial do vírus é Sars-Cov-2, e da doença
é Covid-19. Coronavírus é a família viral – e por isso vem sendo chamado de novo Coronavírus. Sars é o tipo (SARS: severe
acute respiratory syndrome, ou “síndrome respiratória aguda grave”). Esse numeral 2 representa a variação descoberta agora.
Em 2002 houve a Sars-Cov-1, na China.
12Conforme ata de reunião do Comitê de Emergência do Regulamento Sanitário Internacional, a OMS declarou que “o surto
de 2019-nCov constitui um PHEIC”. PHEIC é a sigla de Public Health Emergency of International Concern, que significa
“Emergência de Saúde Pública de Interesse Internacional”. Foi a sexta vez que esta emergência foi declarada (antes, H1N1
2009, Poliovírus 2014, Ebola 2014, Zika 2016 e Ebola 2018), mas nunca com a dimensão de agora.
13 A lei dispõe sobre oito espécies de medidas para enfrentamento da emergência: a) isolamento; b) quarentena; c) exames
e tratamentos compulsórios; d) estudos epidemiológicos; e) exumação e cremação cadavérica; f) restrições em rodovias,
portos e aeroportos; g) requisição de bens e serviços particulares; h) importação excepcional de produtos sem registro na
Anvisa. As medidas podem ser tomadas pelo Ministério da Saúde ou pelos gestores locais de saúde.
14
Revisão dos contratos com base no superendividamento: do código de defesa do consumidor ao código civil. Porto Alegre,
2010. Disponível em https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183 /198750/000752555.pdf?sequence=1&isAllowed=y.
Acesso em 02 abr 2020.
15Diz o Enunciado 175 do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, sobre o art. 478 do Código Civil:
“A menção à imprevisibilidade e à extraordinariedade, insertas no art. 478 do Código Civil, deve ser interpretada não somente
em relação ao fato que gere o desequilíbrio, mas também em relação às conseqüências que ele produz.”
16O funcionar aqui se refere à plena atividade de uma empresa, que envolve o faturamento, a geração de receita. Isto porque
é da natureza da empresa a atividade econômica (CC, art. 966), e integra o resultado do exercício a receita (Lei 6.404/76,
art. 187).