Rebus Sic Stantibus e A Pandemia

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Rebus sic stantibus: teoria da imprevisão na pandemia

Nelson Zunino Neto

Num evento extraordinário e imprevisível, os contratos podem ser revistos. Não se trata de liberação geral dos
compromissos, mas a lei prevê a possibilidade de rever as condições do negócio. É uma das exceções mais
antigas do direito.

A teoria da imprevisão é um conceito antigo. Já na Babilônia o Código de


Hamurabi (1.772 a.C.) trazia sentença descrevendo a situação em que um evento natural
devastador desobrigaria o devedor do pagamento naquela colheita.1 Embora a ideia de
contrato fosse mudando ao longo dos séculos, desde sempre o Direito admitiu exceções ao
pacta sunt servanda, a força obrigatória das avenças.
E a expressão que mais bem traduz o conceito desta exceção é a cláusula2
rebus sic stantibus3 (“estando assim as coisas”), segundo a qual a obrigatoriedade dos
contratos deve ser filtrada pelas circunstâncias que envolvem o momento da sua execução.
Autores renomados ao longo dos tempos têm enfrentado a questão centrando
na fórmula rebus sic stantibus diversas teorias que a tomaram por base. Há quem faça
distinções ou aponte nuances, mas a doutrina majoritariamente converge para unificar o
conceito da flexibilidade dos contratos em torno da teoria da imprevisão.
Depois de séculos hibernando, e inobstante algumas esparsas menções
legais européias4, só ganhou consistência teórica depois da Primeira Guerra, sendo aos
poucos positivada na legislação de muitos outros países do Velho Continente e daí para o
resto do mundo.
Numa definição mais direta, a teoria da imprevisão considera que, havendo
mudança, a execução da obrigação contratual pode não ser exigível nas mesmas condições
pactuadas originalmente, o que leva a uma ideia de inexigibilidade ou exigibilidade diversa.
Aquela quando absolutamente impossível a execução, levando à resolução; esta quando
relativamente impossível, atraindo a revisão. Neste caso a obrigação continuaria exigível, mas
não nas mesmas condições.5
Para Adriano Castro (loc. cit.), a teoria da imprevisão embute a “concessão ao
juiz do poder de rever contratos particulares a requerimento de uma das partes quando
eventos posteriores à contratação tornam ruinosa a prestação avençada”.
Dito isto temos que rebus sic stantibus pode ser definida como a cláusula
que permite a revisão das condições do contrato de execução diferida ou sucessiva se
ocorrer, em relação ao momento da celebração, mudança imprevista, razoavelmente
imprevisível e inimputável aos contratantes nas circunstâncias em torno da execução
do contrato, que causem desequilíbrio na relação das partes, de modo que uma aufira
vantagem em detrimento da excessiva onerosidade suportada pela outra.
Para Washington de Marros Monteiro6 a imprevisão é a “nova indumentária
com que modernamente se apresenta a velha cláusula rebus sic stantibus”. Na mesma toada,
Walter Brasil Mujalli7 imbrica a rebus com imprevisão e a vincula ao excesso de onerosidade.
Luiz Roldão de Freitas Gomes8 adverte que nem todos os elementos da teoria
da imprevisão estão contidos na lei, dada a construção doutrinária.
Citando Orlando Gomes, Roldão (loc. cit.) aponta a onerosidade excessiva
como requisito da teoria da imprevisão e diz que a prestação deve ser onerosa “a qualquer
pessoa que se encontrasse em sua situação”.
Há diversas correntes e nuances da teoria da imprevisão e outras teorias
correlatas (base objetiva, onerosidade excessiva, pressuposição etc), mas a maioria dos
civilistas concordam que todas tem base comum, que é a cláusula rebus sic stantibus. Por
todos, Maria Helena Diniz9 diz que o Código Civil “abraçou a teoria da equivalência contratual
e a da imprevisão”. Ao comentar o art. 317 (op. cit., p. 329), afirma que a combinação deste
dispositivo com os arts. 478 a 480 representa a aceitação da teoria da imprevisão.
No Brasil, o conceito da cláusula rebus sic stantibus já constava, há quase
duzentos anos, do Código Comercial10, mas a legislação moderna a tem consignada em
dispositivos no Código do Consumidor e no Código Civil:
CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
“Art. 6° São direitos básicos do consumidor: (...)
V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações
desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as
tornem excessivamente onerosas”
Embora seja pessoa jurídica, a empresa pode ser considerada um sujeito de
direitos consumeristas, na modalidade consumidor por equiparação, tal como previsto no art.
29 do Código de Defesa do Consumidor.
Este dispositivo faz referência à exposição do consumidor às práticas do
capítulo seguinte, o que inclui a presunção da vantagem exagerada ao fornecedor em
contraposição à onerosidade excessiva, nos termos do art. 51, § 1°, III, da lei referida.
Nesta linha, e em face da vulnerabilidade objetiva, a pessoa jurídica também
pode ser consumidora, como amplamente fixado na jurisprudência:
“AVENTADA INAPLICABILIDADE DO CÓDIGO DE
DEFESA DO CONSUMIDOR. INSUBSISTÊNCIA. CONTRATO DE
ADESÃO. DESTINATÁRIO QUE, EMBORA SEJA MICROEMPRESA, NÃO
DESCARACTERIZA A INCIDÊNCIA DA LEGISLAÇÃO CONSUMERISTA.”
TJSC, 0003517-49.2010.8.24.0024, rel Des Osmar Nunes Júnior, j. 5.12.2019.
“A doutrina tradicionalmente aponta a existência de três modalidades de
vulnerabilidade: técnica (ausência de conhecimento específico acerca do
produto ou serviço objeto de consumo), jurídica (falta de conhecimento
jurídico, contábil ou econômico e de seus reflexos na relação de
consumo) e fática (situações em que a insuficiência econômica, física ou
até mesmo psicológica do consumidor o coloca em pé de desigualdade
frente ao fornecedor). Mais recentemente, tem se incluído também a
vulnerabilidade informacional (dados insuficientes sobre o produto ou
serviço capazes de influenciar no processo decisório de compra). A
despeito da identificação in abstracto dessas espécies de
vulnerabilidade, a casuística poderá apresentar novas formas de
vulnerabilidade aptas a atrair a incidência do CDC à relação de consumo.”
TJSC, 2015.050761-0, rel Des Guilherme Nunes Born, j. 10.12.2015.

“Numa relação interempresarial, para além das hipóteses de


vulnerabilidade já consagradas pela doutrina e pela jurisprudência, a
relação de dependência de uma das partes frente à outra pode, conforme
o caso, caracterizar uma vulnerabilidade legitimadora da aplicação da
Lei nº 8.078/90, mitigando os rigores da teoria finalista e autorizando a
equiparação da pessoa jurídica compradora à condição de
consumidora”
STJ, Resp 1195642, rel Min Nancy Andrighi, j. 13.11.2012.
Esta circunstância pode ser considerada de dois modos. Ou indiretamente,
sem aplicação do disposto no Código de Defesa do Consumidor, mas adotando o princípio
que informa tal subsistema, em reforço à legislação civilista. Ou diretamente, com emprego
do direito revisional previsto no art. 6°, V, do CDC.
CÓDIGO CIVIL
“Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção
manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução,
poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto
possível, o valor real da prestação.”
“Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação
de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem
para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis,
poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que
a decretar retroagirão à data da citação.
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar
eqüitativamente as condições do contrato.
Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes,
poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de
executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.”
Os arts. 317 e 478 a 480 do Código Civil trazem conjuntamente, na
interpretação da maioria dos doutrinadores, a concepção da teoria da imprevisão.
Mas há um outro dispositivo, acrescido a partir da Lei 13.874/2019 – Lei da
Liberdade Econômica, que reforça o conceito. Trata-se do contido no inciso V do § 1° do art.
113 (destaque nosso):
“Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e
os usos do lugar de sua celebração.
§ 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: (...)
V - corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a
questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da
racionalidade econômica das partes, consideradas as informações
disponíveis no momento de sua celebração.”
Esta regra de interpretação, trazida pela lei que reforçou a autonomia da
vontade e a intervenção mínima nos contratos, representa justamente a exceção que confirma
a regra, ao dispor sobre a “razoável negociação das partes” e a “racionalidade econômica das
partes”, inserindo o princípio da razoabilidade.

Mas o trecho mais contundente, e que reafirma a cláusula rebus sic stantibus,
está na parte final: “consideradas as informações disponíveis no momento de sua
celebração”. É exatamente a base objetiva do negócio, aquela sobre a qual se assentam as
premissas contratuais.
A lei enfatiza que, sempre observada a boa-fé, a liberdade de contratar
pressupõe que as partes conheçam as condições externas do negócio e que elas se
mantenham, porque senão não haveria de fato liberdade. Sobrevindo mudança extraordinária
e imprevisível no contexto, que possa prejudicar (onerar) o cumprimento da obrigação, abre-
se a possibilidade de que as regras sejam revistas.
Neste ponto, considerando a força obrigatória e a autonomia da vontade, e
considerando que a cláusula rebus sic stantibus tem caráter excepcional, a intervenção há de
ser limitada pelo princípio da proporcionalidade – especialmente pelo trinômio
necessidade/adequação/proporção. Ou seja, a medida da interferência jurisdicional deverá
ser a menos gravosa à integridade do negócio, apenas suficiente para reequilibrar a relação.
Daí porque predominará a revisão e não a resolução. E o provimento
revisional, tão cirúrgico quanto possível, cuidará de alterar estritamente o necessário à
recondução do contrato não ao estado original, agora impossível, mas ao status de higidez.
BASE PRINCIPIOLÓGICA: BOA-FÉ E FUNÇÃO SOCIAL
A aplicação da teoria da imprevisão não pode ser indistinta ou generalizada.
Pelo contrário, há de ser excepcionalíssima e observados os respectivos critérios. Dentre os
princípios em que se assenta a rebus sic stantibus está o da boa-fé, estampado por mais de
uma vez no Código Civil, em especial nos art. 113 e 422.
Já a função social do contrato está prevista no art. 421 do CC e igualmente
dá sustentação à revisão, justamente pela ponderação de que a liberdade contratual deve
respeitar os limites da função social.
A lei não tem palavras inúteis; o contrato tem preservada a sua função social
quando não desborda do necessário equilíbrio entre as partes.
FORÇA MAIOR COMO REFORÇO OU ALTERNATIVA À TEORIA DA IMPREVISÃO
Ao lado da teoria da imprevisão, que justifica a revisão em face do
desequilíbrio do contrato por fato extraordinário, se encontra a força maior, como excludente
de responsabilidade do devedor em face de fato extraordinário e inevitável.
O instituto da força maior, como inscrito no art. 393 do Código Civil, deve ser
lido em associação ao art. 399 do mesmo diploma:
“Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito
ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato
necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.”
“Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação,
embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se
estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que o
dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente
desempenhada.”

A força maior, como visto, desobriga o devedor pelo prejuízo e, mais


especificamente, pela mora. O que se pretende nem é verificar a impossibilidade de
cumprimento da obrigação, mas a impossibilidade de cumprimento da obrigação no
vencimento. A questão, portanto, se circunscreve ao momento da execução.
O evento decorrente de força maior é por si só bastante para justificar a
irresponsabilidade do devedor pelo aspecto temporal do cumprimento, ensejando a revisão
para readequação.
Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça aponta a força maior como
elemento de suporte para resolução contratual (gradação máxima), o que por certo autoriza a
revisão (gradação mínima):
“Em disputas entre particulares, portanto, a questão se resolve pelo
reconhecimento da existência de força maior, a qual, ao gerar a absoluta
impossibilidade de cumprimento do contrato, deve restituir as partes
contratantes ao status quo ante. Noutros termos, diante da existência de
uma causa externa, imprevisível e irresistível, emanada da
Administração Pública, o direito não impõe a qualquer das partes
privadas o suporte exclusivo dos prejuízos daí advindos. (...) De toda
sorte, reconhecendo as partes que, em razão de um evento externo,
imprevisto e irresistível (fato do príncipe), também este contrato teve seu
adimplemento impedido, igualmente aqui seria aplicável a excludente da
força maior, a fim de resolver o contrato com a restituição das partes ao
status quo ante, o que significa, restituir os valores objeto do contrato
de empréstimo.”
STJ, REsp 1.280.218, rel Min Paulo de Tarso Sanseverino, 21.6.2016.
“O advento de plano econômico, que impôs o bloqueio e
indisponibilidade da grande massa de dinheiro existente no mercado,
impossibilitando o cumprimento, nas condições e prazos avençados,
das promessas de compra e venda de imóveis celebradas e que previam
prazo de pagamento para além de 180 dias, por parte de
compromissários-compradores que contavam com recursos de
poupança ou de outras aplicações financeiras para saldar as prestações
assumidas, caracterizando a medida governamental factum principis, e
de ser considerado como força maior motivadora da dissolução do
vinculo contratual, impondo-se em consequência o retorno ao status
quo ante, com devolução das parcelas pagas, de molde a evitar
enriquecimento sem causa.”
STJ, REsp 42.882, rel Min Salvio de Figueiredo Teixeira, DJ 8.5.1995.
A PANDEMIA COMO FENÔMENO IMPREVISÍVEL
Assentadas as premissas, vale experimentar o modelo numa ocorrência atual
de alcance mundial, que é a pandemia da Covid-1911. Embora constitua fato notório, a
situação foi oficialmente reconhecida pela OMS em 30 de janeiro de 202012.
Em 11 de março de 2020 a OMS declarou que a doença se tornou pandêmica.
A diferença entre epidemia e pandemia é apenas de alcance geográfico, já que nesta a
abrangência é de várias regiões do mundo. No Brasil, a Portaria 188, de 4 de fevereiro de
2020 declarou estado de “Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional”, com base
nos critérios do Decreto 7.616/2011.
A autoridade máxima de saúde com competência para a gestão das ações
relativas à pandemia é o Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública,
capitaneada pela Secretaria de Vigilância em Saúde, sob as diretrizes diretas do Ministro da
Saúde. A partir daí foi editada a Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020 (Lei da Covid-19),
dispondo sobre as medidas13 de enfrentamento da emergência e atribuindo ao Ministro da
Saúde a competência para definir a respectiva duração. A Portaria 356/2020 do Ministério da
Saúde regulamentou a adoção das medidas pelos gestores locais. Depois disto diversas
medidas provisórias e outras normas foram editadas sobre a matéria. Em 20 de março do
mesmo ano foi publicado pelo Congresso Nacional o Decreto Legislativo 6, com o
reconhecimento de estado de calamidade pública.
A pandemia constitui fato extraordinário e imprevisível, evidentemente.
Também se pode verificar a excessiva onerosidade suportada pelo devedor. Como se fora um
ambiente de guerra, o cenário é de doença e morte num ritmo avassalador; é também um
panorama de desemprego generalizado e de empresas em estado falimentar. Claro que é
necessário ponderar, a cada caso, se o contratante está em situação de onerosidade
excessiva, dada a vulnerabilidade em que se encontra. Não há de ser qualquer empresa em
qualquer caso, mas naqueles em que a capacidade econômica tiver sido efetivamente
afetada.
Com relação ao requisito da vantagem em contrapartida, calha a lição de
André Perin Schmidt Neto14, que brilhantemente recorre a uma alegoria:
“Entendendo o equilíbrio contratual como uma balança, é possível
metaforicamente compreender a desnecessidade deste requisito
quando percebemos que, para desequilibrá-la, não é imprescindível que
se transfira o peso de um prato para outro, basta que se retire de uma
das bandejas da balança.”
Ou seja, se importa para a imprevisão o desequilíbrio, a lesão da parte torna
despiciendo o excesso oposto. Mas ainda que fosse exigida a vantagem exagerada, esta deve
ser verificada, como os demais requisitos, objetivamente, no momento da execução. Assim,
se o credor já tiver cumprido sua parte no contrato e resta apenas a do devedor, a quem toca
realizar o pagamento, há nítida diferença. Se o credor cumpriu sua parte antes da mudança
circunstancial do contrato, está em vantagem no momento posterior, relativamente ao
devedor, que ainda não o fez. Se ambos não tivessem ainda adimplido, então a relação estaria
equilibrada, sem vantagem ou desvantagem; diversamente, o prévio cumprimento põe a parte
em vantagem, já que não remanesce ônus.
De outra banda, e justamente por conta da pandemia, estão as restrições
legais impostas às atividades econômicas. Em algum momento normas federais e estaduais
reduziram total ou parcialmente as atividades econômicas não essenciais. Com força
operacional pela metade, as empresas já não têm capacidade de honrar com seus
compromissos financeiros.
Há, portanto, o fato (pandemia) e a consequência (crise econômica), e ambos
se subsumem ao conceito da mudança circunstancial ao negócio15. Vê-se, então, que seja
diretamente pela força maior da pandemia que interrompe o giro da Economia, seja pela
restrição direta à atividade, de qualquer modo a empresa fica sem qualquer condição de
funcionar16 e está acionado o gatilho da teoria da imprevisão.

Nelson Zunino Neto é advogado atuante em Direito Público, especialista em Direito Ambiental e Direito Eleitoral.
Autor do livro Tempo mínimo de propaganda eleitoral em rádio e tv – Habitus, 2020.

1
Diz o texto: “§ 48 Se um awllum tem sobre si uma dívida e Adad inundou seu campo, ou a torrente carregou, ou por falta de
água não cresceu grão no campo: naquele ano ele não dará grão a seu credor, ele umedecerá sua tábua e não pagará os
juros daquele ano.” Tradução de E. Bouzon em O Código de Hamurabi. Vozes, 3ª ed, Petrópolis, 1980, p. 40. O autor explica
que awllum era equivalente a cidadão, e Adad era o deus babilônico da tempestade. E contextualiza: “Os contratos babilônios
eram redigidos em tábuas de argila, geralmente, secas ao sol. Se a superfície escrita era molhada o texto tornava-se ilegível
e assim o contrato era anulado.”
2O termo “cláusula” aqui tem o sentido de preceito, e não subdivisão contratual. Daí porque a rebus sic stantibus se aplica
desde que presentes os requisitos, prescindindo de uma previsão expressa no pacto. Neste sentido Walter Mujalli in Teoria
Geral dos Contratos. Volume I. Bookseller: Campinas, 1998, p.54.
3 Os filósofos romanos Cícero (106-43 a.C.) e Sêneca (4 a.C-65 d.C.) deixaram escritos princípios morais que faziam

referência ao conceito da rebus sic stantibus. Séculos depois, há registros no Corpus Juris Civilis, mais especificamente no
Digesto, um compêndio jurisprudencial do Direito Romano, por volta do ano 530, com passagens de Africano e Neratio (José
Vicente Hurtado Palomino em La Clausula rebus sic stantibus em el contrato de compraventa de cosa futura esperada.
Revista de Derecho, 44, 2015. Disponível em http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0121-
86972015000200007. Acesso em 02.4.2020.) A expressão apareceu pela primeira vez muito depois com o Direito Canônico,
no século XII, pelas mãos do monge Graciano na obra Concordia Canonum Discordantium. Mas foi do jurista italiano Andrea
Alciati, no século XVI, a fórmula original da expressão que até hoje permeia os trabalhos doutrinários: “Contractus qui habent
tractum successivum et dependentiam de futuro, rebus sic stantibus intelliguntur” (Contratos que tem trato sucessivo e
dependem de [cumprimento] futuro entendem-se estando assim as coisas). Daí a expressão rebus sic stantibus (estando
assim as coisas).
4
CASTRO, Adriano Augusto Pereira de. Desconstruindo a teoria da imprevisão. Disponível em http://blog.newtonpaiva.br/
direito/wp-content/uploads/2012/08/PDF-D11-02.pdf. Acesso 02.4.2020.
5
ZUNINO NETO, Nelson. Pacta sunt servanda x rebus sic stantibus: uma breve abordagem. Revista Jus Navigandi, ISSN
1518-4862, Teresina, ano 4, n.31, 1°.5.99. Disponível em https://jus.com.br/artigos/641. Acesso em: 2 abr. 2020.
6 Curso de Direito Civil. Saraiva: São Paulo, 1969, 6.ed., p. 12.
7
Teoria Geral dos Contratos. Volume I. Bookseller: Campinas, 1998, p.53.
8
Contrato. 2. Ed., Renovar: São Paulo, 2002, p.161.
9
Código Civil anotado, Saraiva, SP, 2006, p. 443
10“Art. 898. Só pode obter moratória o comerciante que provar, que a sua impossibilidade de satisfazer de pronto as
obrigações contraídas procede de acidentes extraordinários imprevistos, ou de força maior (art. 799), e que ao mesmo tempo
verificar por um balanço exato e documentado, que tem fundos bastantes para pagar integralmente a todos os seus credores,
mediante alguma espera.” Entende-se que esta parte, inobstante não revogada expressamente, tenha sido tacitamente pela
Lei de Falências, hoje subsituída pela Lei da Recuperação Judicial.
11 De acordo com a Organização Mundial da Saúde – OMS (www.who.int), o nome oficial do vírus é Sars-Cov-2, e da doença

é Covid-19. Coronavírus é a família viral – e por isso vem sendo chamado de novo Coronavírus. Sars é o tipo (SARS: severe
acute respiratory syndrome, ou “síndrome respiratória aguda grave”). Esse numeral 2 representa a variação descoberta agora.
Em 2002 houve a Sars-Cov-1, na China.
12Conforme ata de reunião do Comitê de Emergência do Regulamento Sanitário Internacional, a OMS declarou que “o surto
de 2019-nCov constitui um PHEIC”. PHEIC é a sigla de Public Health Emergency of International Concern, que significa
“Emergência de Saúde Pública de Interesse Internacional”. Foi a sexta vez que esta emergência foi declarada (antes, H1N1
2009, Poliovírus 2014, Ebola 2014, Zika 2016 e Ebola 2018), mas nunca com a dimensão de agora.
13 A lei dispõe sobre oito espécies de medidas para enfrentamento da emergência: a) isolamento; b) quarentena; c) exames
e tratamentos compulsórios; d) estudos epidemiológicos; e) exumação e cremação cadavérica; f) restrições em rodovias,
portos e aeroportos; g) requisição de bens e serviços particulares; h) importação excepcional de produtos sem registro na
Anvisa. As medidas podem ser tomadas pelo Ministério da Saúde ou pelos gestores locais de saúde.
14
Revisão dos contratos com base no superendividamento: do código de defesa do consumidor ao código civil. Porto Alegre,
2010. Disponível em https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183 /198750/000752555.pdf?sequence=1&isAllowed=y.
Acesso em 02 abr 2020.
15Diz o Enunciado 175 do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, sobre o art. 478 do Código Civil:
“A menção à imprevisibilidade e à extraordinariedade, insertas no art. 478 do Código Civil, deve ser interpretada não somente
em relação ao fato que gere o desequilíbrio, mas também em relação às conseqüências que ele produz.”
16O funcionar aqui se refere à plena atividade de uma empresa, que envolve o faturamento, a geração de receita. Isto porque
é da natureza da empresa a atividade econômica (CC, art. 966), e integra o resultado do exercício a receita (Lei 6.404/76,
art. 187).

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