Os Homens Do Rei (Vol. 3 Tudo P - Nora Sakavic
Os Homens Do Rei (Vol. 3 Tudo P - Nora Sakavic
Os Homens Do Rei (Vol. 3 Tudo P - Nora Sakavic
S152h
Sakavic, Nora
Os homens do rei [recurso eletrônico] / Nora Sakavic ; tradução Carolina
Cândido. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Galera Record, 2023. (Tudo pelo jogo ; 3)
recurso digital
Tradução de: The king’s men
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5981-314-8 (recurso eletrônico)
1. Ficção americana. 2. Livros eletrônicos. I. Cândido, Carolina. II. Título. III.
Série.
23-84075
CDD: 813
CDU: 82-3(73)
Produzido no Brasil
ISBN 978-65-5981-314-8
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Mesmo depois de um semestre na Universidade de Palmetto State e algumas
semanas treinando no maior estádio de Exy dos Estados Unidos, Neil ainda
ficava sem fôlego diante da Toca das Raposas. Ele se deitou de barriga para
cima na linha da meia quadra e inspirou, observando os arredores. Contou
as fileiras de assentos, que se alternavam em laranja e branco até se mistura-
rem em um borrão próximo às vigas, então analisou as faixas que anuncia-
vam o campeonato de primavera, penduradas em ordem numérica ao redor
do estádio. Havia uma para cada Raposa, incluindo o falecido Seth Gordon.
As faixas não estavam presentes quando as Raposas se separaram para o Na-
tal, e Neil se perguntava o que Allison diria ao vê-las.
— Esqueceu como ficar de pé, Josten?
Neil virou a cabeça e olhou para o treinador. Tinha deixado os portões da
quadra abertos, e agora David Wymack estava parado próximo à entrada.
Neil achava que ainda não tinha dado tempo de Wymack lidar com toda a
papelada. Então ou o treinador não confiava na promessa de Neil de não
treinar até que estivesse totalmente recuperado, ou Neil havia mais uma vez
perdido a noção do tempo. Torcia para que fosse a primeira opção, mas o
buraco em sua barriga indicava o contrário.
Concordara em passar o Natal em Edgar Allan, mas os Corvos operavam
em dias de dezesseis horas durante os feriados. O que deveriam ter sido duas
semanas pareciam ter sido na verdade três, e o relógio biológico de Neil es-
tava fora do eixo mesmo após dois dias de volta à Carolina do Sul. No en-
tanto, as aulas começariam na quinta-feira, e a temporada de primavera, na
semana seguinte. Wymack tinha certeza de que voltar à rotina ajudaria. Neil
torcia para que ele estivesse certo.
— Hora de ir — afirmou Wymack.
Foi o suficiente para Neil se levantar, apesar dos protestos de seu corpo ma-
chucado. Ele ignorou a dor, uma sensação tão familiar, e resistiu à vontade
de massagear o ombro dolorido enquanto cruzava a quadra até Wymack.
Notou o olhar calculista do treinador, mas escolheu não reagir.
— Eles pousaram? — perguntou Neil, quando se aproximou.
— Você saberia se atendesse o celular.
Neil tirou o aparelho do bolso e o abriu. Apertou alguns botões, então vi-
rou a tela escura para Wymack.
— Devo ter esquecido de carregar.
— Deve ter sido isso — respondeu Wymack, que não se deixou enganar.
O treinador tinha motivos para estar desconfiado; Neil deixara o celular
morrer de propósito. Antes de ir para a cama no Ano-Novo, desligou o apa-
relho e o deixou desconectado do carregador. Ainda não havia lido as men-
sagens que os colegas de equipe enviaram durante as festas de fim de ano.
Não dava para ignorá-los para sempre, mas ainda não tinha decidido como
explicar as próprias ações. Os machucados horríveis espalhados por seu cor-
po eram uma consequência esperada ao se enfrentar Riko. Daria mais traba-
lho ainda justificar a tatuagem no rosto, mas ele iria conseguir. O problema
era que Neil não suportava encarar o que Riko fizera com sua aparência.
Após nove anos de lentes de contato coloridas e cabelo tingido, Neil enfim
voltara à sua cor natural. Com o cabelo castanho-avermelhado e os olhos
azuis brilhantes, era a cara do pai assassino de quem passara metade da vida
fugindo. Fazia dois dias que não se olhava no espelho. Negar a realidade não
faria sua aparência voltar ao que era, mas ele sentia que vomitaria se enca-
rasse o próprio reflexo de novo. Se pudesse pelo menos tingir o cabelo al-
guns tons mais escuro, poderia respirar melhor, mas Riko deixara claro o
que faria com as Raposas se Neil fizesse qualquer mudança.
— Eles estão na área de desembarque. A gente precisa conversar — disse
Wymack.
Neil trancou o portão da quadra e seguiu Wymack até o vestiário. O treina-
dor desligou as luzes do estádio, e a Toca das Raposas foi engolida pela escu-
ridão. A súbita ausência de luz provocou um arrepio em Neil. Por alguns
instantes, estava de volta a Evermore, sendo sufocado pela crueldade dos
Corvos e o ameaçador esquema de cores da quadra. Nunca fora claustro-
fóbico, mas o peso de tanto ódio quase trucidou cada osso de seu corpo.
O tilintar de chaves o arrancou daquela memória perigosa e Neil voltou ao
presente, assustado. Wymack entrara no vestiário antes dele e estava des-
trancando a porta do escritório. Apesar de estarem apenas os dois ali —
além do segurança que fazia as rondas obrigatórias —, Wymack trancara o
lugar em sua curta ausência.
Neil já estivera ali o suficiente para saber que o treinador não guardava na-
da de particularmente valioso nas prateleiras. A única coisa de valor era a
mochila de Neil, que ele havia escondido no canto do escritório antes de en-
trar em quadra. Em seu primeiro dia na Carolina do Sul, pedira à Wymack
para proteger suas coisas e, sete meses depois, o treinador ainda mantinha a
promessa. Isso quase fazia Neil se esquecer de Riko.
Wymack deu um passo para o lado e gesticulou para que Neil ficasse à von-
tade. Nos poucos segundos que ele levou para pegar a mochila e colocar a
alça no ombro, o treinador desapareceu. Neil o encontrou no lounge, senta-
do no centro de entretenimento, ao lado da televisão. Neil segurou a alça da
mochila para criar coragem e parou na frente dele.
— Kevin me ligou ontem de manhã quando não conseguiu entrar em con-
tato com você. Queria confirmar que você estava bem. Ao que tudo indica,
ele sabia onde você estava esse tempo todo — comentou Wymack.
Não havia por que mentir, então Neil disse:
— Sabia.
— Eu o obriguei a contar pra todo mundo — afirmou Wymack, e o coração
de Neil parou. Abriu a boca para protestar, mas o treinador ergueu a mão e
continuou falando. — Eles precisavam saber o que iam encontrar ao vol-
tar… pelo seu bem. Para pra pensar na reação deles se voltassem e vissem is-
so, sem nenhum aviso. Você já fica todo agitado se chamam você de “ami-
go”; é bem provável que tivesse um treco quando eles surtassem por sua cau-
sa.
Neil queria argumentar, mas o melhor que conseguiu dizer foi:
— Eu estava pensando em algo.
— Você estava enrolando, então assumi as rédeas. Disse que parece que vo-
cê lutou seis rounds seguidos contra o Pé-Grande e que é bem provável que
você não queira tocar no assunto. Eles prometeram não encher o saco, mas
não sei se vão manter a promessa quando virem você ao vivo. Mas, pra você
saber, não mencionei nada sobre isso aí. — Ele apontou vagamente para o
próprio rosto.
Neil tocou a bandagem que escondia a nova tatuagem na maçã do rosto.
— Isso?
— Tudo isso aí — disse Wymack, e assentiu quando Neil moveu a mão pa-
ra o cabelo. — Não sei os motivos do Riko, mas vou esperar pelas respostas.
O que você decidir contar a eles é problema seu.
O comentário quase derreteu o gelo no peito de Neil. Ele não sabia o que
dizer, então apenas assentiu e olhou para o relógio. Não precisava buscá-los
no aeroporto porque Matt havia pagado para deixar a caminhonete estacio-
nada lá. Era para encontrá-los na Torre das Raposas, mas se estavam pegan-
do as malas só agora, demorariam uns vinte minutos para chegar ao cam-
pus, vindos do Aeroporto Regional do Norte.
— Quer que eu vá com você pra mediar? — perguntou Wymack.
— Pro dormitório? — questionou Neil.
O breve olhar de Wymack para Neil era cheio de pesar.
— Pra Colúmbia.
Andrew seria liberado naquele dia. Assim que os outros deixassem os per-
tences no dormitório, iriam para o Hospital Easthaven. Fazia sete semanas
desde a última vez que as Raposas o viram e quase três anos desde a última
vez em que Andrew estivera limpo. Dois deles sabiam como Andrew era
quando estava sóbrio; os outros só tinham ouvido rumores desagradáveis e
especulações. Não era nada provável que Andrew desse a mínima para o fa-
to de quase terem feito picadinho de Neil, mas ele quebrara a promessa de
ficar ao lado de Kevin na ausência de Andrew. Neil duvidava que o outro
fosse aceitar bem o fato.
Apesar disso, não estava preocupado.
— Vai dar tudo certo.
— Se não, pelo menos Abby vai estar de volta amanhã pra remendar você.
— Wymack olhou para o relógio e desceu de onde estava sentado. — Então
vamos andando.
Era uma curta viagem de carro até o dormitório dos atletas. O estaciona-
mento atrás da Torre estava quase deserto, mas alguns dos carros das Rapo-
sas ainda estavam ali. Supostamente, os seguranças faziam rondas para evi-
tar que os carros fossem arrombados na ausência dos donos, mas, mesmo
assim, Neil fez Wymack parar ao lado do carro de Andrew. Testou as maça-
netas primeiro, depois verificou as janelas à procura de rachaduras ou sinais
de vandalismo. Chutou os pneus e decidiu que estavam satisfatórios para a
viagem. Wymack esperou com o carro em ponto morto até que Neil acabas-
se.
— Preciso ficar? — perguntou Wymack.
— Vou ficar bem. Vou falar pro Kevin ligar quando a gente estiver com An-
drew — respondeu Neil.
— Carrega o celular e liga você. Boa sorte.
Ele se afastou, e Neil entrou no dormitório. Os corredores tinham um leve
cheiro de aromatizador e detergente; alguém arrumara o lugar durante o re-
cesso de fim de ano. O quarto dele ficava no terceiro andar e, dos três quar-
tos das Raposas, era o que ficava mais longe da escada. Ele entrou, trancou a
porta e deu uma volta vagarosa pela suíte. Não havia nada fora do lugar, en-
tão colocou o celular para carregar e tirou as coisas da mala. O último item
foi um maço de cigarros. Levou-os até a janela do quarto e acendeu um.
Estava no segundo cigarro quando a porta da frente se abriu. O silêncio in-
formava que Matt viera sozinho; Nicky não conseguiria ficar quieto nem que
sua vida dependesse disso. Neil ouviu o barulho da mala sendo colocada de
lado e o clique da porta abrindo. Deu a última tragada no cigarro e apagou-o
no parapeito. Forçou os ombros a relaxarem, rezou para que sua expressão
neutra fosse convincente e fechou a janela com força. Quando se virou, Matt
estava parado à porta do quarto, com as mãos enfiadas nos bolsos do casaco.
Matt mexeu a boca sem emitir som por alguns instantes, até que conseguiu
dizer, chocado:
— Meu Deus, Neil.
— Não é tão ruim quanto parece.
— Não começa. Só… não começa, tá? — Matt passou os dedos pelo cabelo,
bagunçando os fios espetados com gel, e se virou. — Espera aí.
Neil foi até o corredor enquanto Matt saía da suíte. Quase no mesmo ins-
tante em que a porta se fechou, ouviu o som de um corpo batendo na pare-
de. Neil escutava o tom de voz furioso de Matt, que descontava em alguém,
mas as paredes eram grossas demais para que distinguisse as palavras. Neil
se remexeu no lugar e cometeu o erro de olhar para a direita. A porta do ba-
nheiro estava aberta, o que permitia que ele visse bem seu reflexo. Os ma-
chucados em cores vivas espalhados por seu rosto eram horríveis, mas os
olhos azuis que o encaravam de volta eram mil vezes mais assustadores. Neil
engoliu em seco, suprimindo a náusea, e desviou o olhar.
Voltou para pegar o celular e tirou-o do carregador. Não estava nem perto
da carga completa, mas, com sorte, daria para ir até Colúmbia. Neil desligou
o aparelho com a intenção de ligá-lo quando precisasse, e o guardou no bol-
so. A tentação de se enfiar na cama era quase sufocante. Já estava exausto, e
ainda tinha sete companheiros de equipe para lidar depois que Matt termi-
nasse. Teria sido impossível sobreviver se as meninas tivessem voltado no
mesmo dia; por sorte, as três só estariam no voo do dia seguinte, pela ma-
nhã. Teria uma noite inteira para se recolher e descansar.
Neil se obrigou a esperar no quarto principal. Matt voltou um minuto de-
pois e fechou a porta com firmeza. Dava para perceber o quanto estava se
esforçando para permanecer calmo, mas mesmo assim havia uma rigidez
em sua voz ao falar.
— O treinador já gritou com você?
— Bem alto e por muito tempo. Não ajudou em nada. Não me arrependo e
faria de novo se fosse preciso. — Neil não deixou que Matt argumentasse. —
As Raposas são tudo pra mim, Matt. Não vem me dizer que eu errei por fa-
zer a única escolha que eu podia fazer.
Matt o encarou por um minuto infinito, então respondeu:
— Quero quebrar a cara dele em pedacinhos. Se ele chegar a menos de mil
metros de você de novo…
— Ele tem que chegar. Vamos jogar contra os Corvos na final.
Matt balançou a cabeça e pegou a mala. Neil saiu do caminho para que o
colega passasse, mas Matt lançou um último olhar para o rosto dele enquan-
to se encaminhava para o quarto. A raiva deu lugar à surpresa. Neil não re-
tribuiu o olhar e foi em direção à porta. Quase conseguiu; estava com a mão
na maçaneta quando Matt disse:
— O treinador falou pra não perguntar sobre seus olhos. Eu achei que Riko
tinha deixado eles roxos.
Não era exatamente uma pergunta, então Neil não respondeu.
— A gente volta daqui a algumas horas.
Ele saiu sem dar tempo para Matt argumentar. Kevin, Nicky e Aaron espe-
ravam a duas portas de distância, em frente ao quarto deles. Nicky segurava
duas sacolas de presentes, mas as derrubou quando Neil se aproximou. Neil
estava na metade do caminho quando viu o machucado no rosto de Kevin.
A mancha vermelha que cobria metade de sua bochecha informava que um
segundo hematoma não demoraria a se formar. Não era a primeira vez que
Matt batia em Kevin e com certeza não seria a última, mas Neil pensou que
deveria conversar com ele depois. Nada daquilo era culpa de Kevin.
Neil se forçou a parar de pensar em Matt e focou nos três à sua frente. Não
era de se surpreender que fosse mais seguro olhar para Aaron. A ruga que
surgia no canto de sua boca era de curiosidade, não de pena, e seu olhar se
demorou mais no cabelo de Neil do que nos machucados que cobriam seu
rosto. Neil esperou para ver se ele perguntaria, mas Aaron se limitou a dar
de ombros.
Nicky, por outro lado, parecia devastado ao encarar a aparência destruída
do amigo. Assim que Neil se aproximou mais um pouco, Nicky estendeu o
braço e apoiou na mão na nuca dele. Puxou Neil com cuidado e apoiou o
queixo na cabeça dele. Nicky estava tenso, todo rígido, mas soltou um suspi-
ro longo e trêmulo.
— Nossa, Neil — disse, com a voz embargada. — Você tá péssimo.
— Vai passar. Pelo menos a maior parte. Não se preocupa — respondeu
Neil.
O aperto de Nicky se intensificou de leve.
— Nem pensa em dizer que tá bem. Não consigo ouvir você dizer isso hoje.
Neil obedeceu e ficou em silêncio. Nicky o segurou por mais um minuto e
depois o soltou. Neil se virou para Kevin e sentiu um frio na barriga. Ele o
encarava como se tivesse visto um fantasma. Por mais que os outros tenham
se assustado com a mudança brusca da aparência de Neil — os primos um
pouco menos porque já tinham visto os olhos azuis dele na viagem para Co-
lúmbia —, Kevin sabia quem Neil era de verdade e já havia conhecido seu
pai. Sabia exatamente o que aquilo significava. Neil balançou a cabeça em
um apelo silencioso para que Kevin ficasse quieto. Não ficou nada surpreso
quando Kevin o ignorou, mas pelo menos teve a decência de falar em fran-
cês.
— Diz que o mestre não aprovou isso.
— Eu não sei — respondeu Neil. Ainda estava tentando entender o borrão
doloroso e sem sentido dos muitos dias que havia passado sob os cuidados
de Riko. Lembrava-se vagamente das mãos de Jean se movendo para tingir
seus cabelos. Achava que tinha sido uma das últimas coisas que haviam feito
com ele, mas não conseguia se lembrar se Tetsuji, o tio de Riko, estivera pre-
sente. — Riko disse que machucaria a gente se eu mudasse a cor de volta.
Tudo que posso fazer é abaixar a cabeça e torcer pelo melhor.
— Abaixar a cabeça — repetiu Kevin. Apontava para o próprio rosto, sem
acreditar. — Riko me ligou no Natal pra dizer que tatuou você. Quanto tem-
po acha que ele vai deixar você esconder antes de te forçar a exibir isso? A
imprensa não vai falar de outra coisa, e vão encher você de perguntas sobre
a tatuagem. Ele tá tentando fazer com que encontrem você.
Neil sentiu um frio de medo na barriga que subiu até a garganta. Precisou
se esforçar para impedir que transparecesse em sua voz.
— Vou entender como um elogio. Ele está tentando me tirar de cena antes
das semifinais. Não perderia tempo fazendo isso, a não ser que ache que va-
mos ser um problema para a equipe dele. Isso quer dizer alguma coisa, não?
— Neil.
— Pode deixar que eu me preocupo com isso, Kevin. Eu cuido de mim. Faz
o que você faz de melhor e foca no Exy. Vê se leva a gente até onde não que-
rem que a gente chegue.
Kevin franziu a boca em uma linha fina e rígida, mas não discutiu. Talvez
soubesse que era perda de tempo; talvez entendesse que já era tarde demais.
Nicky olhou para ambos para ter certeza de que a conversa havia acabado,
então pegou as sacolas de volta e deu uma para Neil.
— Presente de Natal atrasado — anunciou, um pouco triste. — Ninguém
sabia seu endereço em Millport, então achei melhor entregar pessoalmente.
Erik me ajudou a escolher. — Quando Neil o olhou, confuso, Nicky acres-
centou: — Ele foi pra Nova York por alguns dias para fazer uma surpresa de
Natal. Kevin também tem um presente pra você. Ele não me deixou embru-
lhar, então tá numa sacola plástica feia. Desculpa.
Nicky sacudiu outro presente, enquanto Neil pegava a sacola que era ofere-
cida a ele.
— Também estou com o do Andrew. Na verdade, escolhi a mesma coisa
pra vocês porque é, tipo, impossível comprar presentes pra qualquer um dos
dois.
— Desculpa, não comprei nada pra ninguém. Não estou acostumado a co-
memorar o Natal — revelou Neil.
— Ou você estava ocupado demais sendo destroçado para comprar presen-
tes, né? — comentou Aaron. Nicky parecia prestes a engasgar com a grosse-
ria do primo, mas Aaron continuou como se não tivesse dito nada de erra-
do. — Kevin disse que você foi pra lá por causa do Andrew. É verdade?
Neil olhou para Kevin em advertência.
— É.
— Por quê? — perguntou Aaron. — Ele não vai ficar agradecido.
— Ele não vai ficar agradecido por você ter matado Drake — retrucou Neil.
— Não importa. A gente fez o que precisava ser feito. Não ligo pro que o
Andrew pensa.
Aaron o fitou em silêncio. Estava procurando por respostas, mas Neil não
sabia qual era a pergunta. Tudo o que podia fazer era encará-lo de volta. Por
fim, Aaron balançou a cabeça e desviou o olhar. Neil queria pedir uma expli-
cação, mas precisava poupar energia para lidar com Andrew. Se distraiu
abrindo o presente de Nicky. Embrulhado em papel de seda laranja estava
um casaco preto. Parecia pequeno, mas era pesado; iria protegê-lo do frio
penetrante que se instalara na Carolina do Sul. Neil deixou Nicky pegar a sa-
cola de suas mãos.
— Obrigado — disse.
— Você ainda não tem roupas boas pro inverno — explicou Nicky. — A
gente devia levar você pra fazer compras de novo, mas achei melhor come-
çar com alguma coisa. Não dá pra continuar usando os moletons da equipe
e achar que não vai pegar um resfriado. Serve?
Neil abriu o zíper e começou a vestir o casaco, mas só conseguiu colocar
um braço, porque sentiu uma dor lancinante no peito e na lateral do corpo.
Congelou e piscou repetidas vezes para se livrar da falta de nitidez que do-
minava sua visão.
— Desculpa — disse, e se arrependeu na hora. Dava para ouvir a dor em
sua voz, intensa o bastante para alterar seu tom. Nicky parecia dominado
pela culpa. — Não consigo ainda.
— Eu que sinto muito. Eu não… não estava pensando direito. Vem cá. Dei-
xa comigo. Eu te ajudo. — Nicky tirou o casaco de Neil e o dobrou. — Posso
ficar com isso até você se sentir melhor, tá?
— Tá bom.
Neil respirou por alguns instantes e então tirou o presente de Kevin da sa-
cola. Soube o que era assim que sentiu o peso. Tinha ficado absorto demais
em suas anotações para não reconhecer a sensação de tê-las em mãos. À pri-
meira vista, a pasta parecia o arquivo de um fã obcecado por Kevin e Riko.
Uma procura mais minuciosa revelaria tudo que Neil precisava para sua vi-
da em fuga. Dinheiro, contatos do mundo do crime e o número de celular
do tio estavam escondidos dentre os inúmeros artigos sobre Exy.
— Você não vai olhar? — perguntou Nicky.
— Eu já sei o que é. — Neil abraçou a sacola e olhou para Kevin. — Obri-
gado.
— Eu não abri.
Neil não queria lidar com Matt de novo, então achou melhor levar a pasta
para Colúmbia e guardá-la trancada depois.
— Todo mundo pronto?
— Se você tiver certeza de que consegue dirigir — comentou Nicky.
Neil se encaminhou para as escadas sem responder. Os três foram atrás de-
le, seguindo-o até o carro. Kevin assumiu o lugar de sempre, no banco dos
passageiros, e Nicky se sentou com Aaron no banco de trás. Neil escondeu a
pasta embaixo do banco do motorista e ignorou a dor ao se sentar. Assim
que todos estavam acomodados, foram para a estrada. Havia pesquisado
qual era o caminho para Easthaven no computador de Wymack no dia ante-
rior. Era fácil de chegar, quase o mesmo caminho que percorriam até o
Eden’s Twilight quando iam beber em Colúmbia. A única diferença eram os
últimos quinze minutos de trajeto, quando circulavam a capital e seguiam
na direção nordeste.
Neil não percebeu que tinha achado que o Hospital Easthaven seria seme-
lhante a uma prisão até que o lugar enfim surgiu em seu campo de visão, e a
ausência de arame farpado nas cercas o surpreendeu. Não havia ninguém
cuidando dos portões, e o estacionamento estava relativamente vazio. Neil
desligou o motor e saiu do carro. Kevin veio logo atrás, mas Nicky e Aaron
se moviam mais devagar. Nicky olhava, nervoso, para a porta principal.
Quando percebeu que Neil o observava, disfarçou a inquietação com um
sorriso.
— É sério que você está com medo dele? — perguntou Neil.
— Que bobagem — respondeu Nicky, pouco convincente.
Kevin estava logo atrás de Neil quando entraram, e o fato de Aaron e Nicky
terem ficado um pouco para trás não passou despercebido. Neil pensou que
as ressalvas de última hora de ambos deviam deixá-lo um pouco mais
apreensivo em relação ao que os esperava, mas não sentia nada.
Entrou no saguão e se dirigiu para a recepção. Pinturas florais davam um
toque de cor ao local e havia uma lareira na parede mais distante. O ambien-
te mirou no acolhedor e acertou na sala de exposição de catálogo. Pelo me-
nos não tinha cheiro de antisséptico e doenças.
— Santo Deus — exclamou a recepcionista quando ergueu os olhos do
computador e viu o rosto machucado de Neil. — Você está bem?
— Viemos buscar Andrew Minyard — declarou Neil.
— Não foi isso que eu quis dizer — retrucou ela, mas Neil se limitou a fitá-
la em silêncio. Por fim, a mulher apontou para a prancheta à sua frente. —
Se vocês se registrarem, posso ligar para o dr. Slosky e avisar que chegaram.
Eles se aglomeraram em torno da bancada e se revezaram para assinar o
papel. Neil foi o único que hesitou quando a caneta tocou a folha. Riko não
permitira que ele fosse “Neil” em Evermore. Cada vez que ele atendia por es-
se nome em quadra, Riko o espancava. Neil não tivera muita escolha, já que
os Corvos não sabiam qual outro nome deveriam usar, mas Riko queria que
ele soubesse os problemas que causara aos Moriyama por conta de seus áli-
bis.
A recepcionista esperava com a mão estendida, então Neil rangeu os den-
tes e escreveu seu nome junto ao dos outros. Entregou a prancheta e tentou
aliviar a tensão nos ombros.
Não levou muito tempo para um homem de meia-idade aparecer. Ele sor-
riu e apertou a mão de todos. Ergueu as sobrancelhas ao ver Neil, mas não
fez perguntas.
— Meu nome é Alan Slosky. Fui o terapeuta principal de Andrew durante a
estada dele. Obrigado por virem hoje.
— Principal. — Nicky repetiu. — Quantos terapeutas ele teve?
— Quatro — respondeu Slosky. Ao ver a expressão de Nicky, explicou: —
Não é incomum que nossos pacientes passem por diversos médicos. Por
exemplo, um paciente pode passar por mim durante a terapia em grupo, por
outro colega para uma sessão individual e intensiva e por um de nossos es-
pecialistas em reabilitação para a receita de medicamentos. Escolhi a dedo a
equipe de Andrew e posso assegurar que estão entre os melhores que temos
aqui.
— Tenho certeza que isso fez muita diferença — afirmou Aaron.
Pela forma como olhou para Aaron, Slosky notou o sarcasmo em sua voz,
mas não mordeu a isca. Neil se perguntou se foi por prudência ou uma con-
fissão não intencional de fracasso.
— Posso contar com vocês para dar todo o apoio possível a ele nos próxi-
mos dias? Se tiverem perguntas ou precisarem de algum conselho sobre co-
mo proceder, por favor, fiquem à vontade para me ligar. Posso dar meu car-
tão.
— Obrigado, mas temos a Betsy — disse Nicky. Ao notar o olhar curioso
de Slosky, acrescentou: — A dra. Dobson?
— Ah, sim. — Slosky assentiu, olhou por cima do ombro para o corredor
vazio, se demorou um pouco e então apontou para a sala de espera contígua.
— Por favor, fiquem à vontade. Ele deve descer em alguns instantes, só pre-
cisa registrar a saída do quarto.
Eles se acomodaram na sala, Nicky e Aaron em cadeiras separadas e Kevin
dividindo o sofá com Neil. Neil olhava para a lareira sem de fato vê-la. Sua
mente estava distante, à deriva entre o Líbano e a Grécia. O ambiente estava
tão quente que dava sono. Tinha três — duas? — semanas de sono atrasado.
As noites dos Corvos eram curtas, e a dor e a violência dificultaram bastante
as madrugadas de Neil. Só percebeu que estava prestes a adormecer quando
foi despertado pelo francês suave de Kevin.
— Eu sei como ele é… — começou Kevin. Neil olhou para ele, mas o rapaz
olhava para as mãos. — O Riko. Se você quiser conversar.
Era a coisa mais estranha e constrangedora que ele já dissera a Neil. Kevin
era conhecido pelo talento, não pela sensibilidade. Consideração e tato eram
tão alheios a ele quanto o alemão que os primos falavam. O fato de ter se
importado era tão inesperado que Neil sentiu como se um bálsamo estivesse
sendo derramado por cada centímetro de pele machucada.
— Obrigado.
— Eu sei como ele é, mas não posso… — Kevin gesticulou, desamparado.
— Riko era cruel, mas precisava de mim pra ter sucesso. Éramos os herdei-
ros do Exy. Ele me machucava, mas tinha limites que não podia ultrapassar
até o fim. Era diferente com o Jean. Pior. O pai dele devia uma grana aos
Moriyama. O mestre exigiu a presença de Jean na nossa quadra em troca de
quitar a dívida. Ele era uma propriedade, nada além disso. Aos olhos deles,
vocês são iguais.
— Eu não sou propriedade de ninguém — disse Neil baixinho.
— Eu sei como ele te vê. Sei o que isso significa, sei que não poupou você
em nada.
— Não importa. — Soava como uma mentira até para o próprio Neil, mas
Kevin não retrucou. — Já acabou, e eu voltei para onde pertenço. A única
coisa que importa agora é o que vem a seguir.
— Não é tão fácil assim.
— Vou dizer pra você o que não é fácil: descobrir por meio do Jean que o
treinador é seu pai — retrucou Neil, e Kevin se retraiu com força. — Você
não vai contar pra ele?
— Eu ia contar, mas aí ele assinou comigo. Não consegui.
— Estava protegendo ele ou você mesmo?
— Os dois, talvez — respondeu Kevin. — O mestre não é como o irmão
dele, e também não é como o Riko. A quadra é o reino dele, a única área de
atuação em que escolheu exercer o poder que tem. Nunca ergueu a mão
nem a voz contra o treinador porque o treinador nunca representou uma
ameaça genuína. Eu não sabia se uma confissão ia mudar a situação. Não
podia arriscar. Talvez quando tudo isso acabar.
— Será que algum dia vai… — Neil começou a dizer, mas o movimento
próximo à porta o fez perder o fio da meada.
Andrew estava parado à porta, com Slosky às suas costas. Usava a mesma
blusa de gola alta preta e o jeans com o qual havia sido internado. Tinha
uma mochila pendurada no ombro, mas Neil não se lembrava de tê-lo visto
fazer as malas antes de Betsy levá-lo. Neil poderia ter perguntado o que Eas-
thaven dera para ele, mas quando olhou nos olhos de Andrew, se esqueceu
de como falar. Andrew estava com uma expressão impassível, o olhar tão va-
zio que Neil sentiu um frio na barriga. Andrew chegou, viu quem tinha ido
buscá-lo e deu as costas.
Aaron foi o primeiro a reagir. Havia sido ignorado pelo irmão por muitos
anos; ser olhado como se não passasse de uma pedra não era novidade. Aa-
ron fez um gesto para Nicky e foi atrás do gêmeo. Neil e Kevin trocaram
olhares, pedindo uma trégua temporária e silenciosa, e se levantaram. Slosky
disse algo para eles enquanto saíam da sala, mas Neil não perdeu tempo ten-
tando decifrar as palavras. Slosky cumprira seu propósito ao tirar Andrew
da medicação. Neil não precisava nem queria nada mais dele.
Quando Neil chegou à porta, Andrew já estava na metade do caminho em
direção à saída do prédio. Aaron não o seguiu, mas atravessou o pátio para o
estacionamento. Nicky foi com ele, enquanto Neil e Kevin pararam para ob-
servar Andrew. Havia duas lixeiras na esquina do prédio. Andrew enfiou a
mochila em uma delas e Neil viu as roupas caírem. Neil duvidava que Eas-
thaven as tivesse fornecido; era mais provável que Betsy Dobson e Andrew
tivessem escolhido algumas roupas no caminho para conseguir que ele fosse
admitido. Andrew olhou ao redor rapidamente e encontrou a família. Usou-
a como guia para localizar seu carro e ir até lá. Neil e Kevin foram atrás dele.
Nicky estava com as chaves e destrancou o carro para que ele e Aaron pu-
dessem se amontoar no banco de trás. Andrew abriu a porta do motorista,
mas não entrou. Ficou de costas para o carro, com um braço apoiado no ca-
pô e o outro na parte superior da porta, observando os atacantes se aproxi-
marem. Kevin parou na frente dele para inspecionar o companheiro de
equipe. Próximo à porta de trás ainda aberta, Neil hesitou enquanto assistia
ao reencontro.
Se Neil não soubesse que Andrew passara o último ano e meio protegendo
Kevin com ferocidade, de modo quase territorialista, pensaria que eles não
se conheciam. Andrew analisou Kevin, parecendo meio entediado, então es-
talou os dedos para dispensá-lo. Ao que tudo indicava, nem mesmo os he-
matomas eram interessantes o bastante para que tecesse algum comentário.
Kevin assentiu e contornou a frente do carro até o banco do carona. Neil
não esperou para ver se Andrew olharia para ele de novo e entrou no carro.
Andrew se sentou no banco do motorista quando todos estavam acomoda-
dos e ergueu a mão entre os assentos. Neil deixou o chaveiro cair na palma
da mão do colega. Quando Neil abaixou a mão, Nicky pegou seu pulso e deu
um aperto breve e forte. É provável que a intenção fosse um pedido de des-
culpas pelo comportamento frio do primo, mas Neil sentiu o ardor crepitar
no antebraço e descer até a ponta dos dedos. Seus pulsos estavam machuca-
dos por se debaterem contra as algemas de Riko, e as ataduras não eram
grossas o bastante para protegê-lo. Neil não conseguiu se conter e estreme-
ceu.
Nicky o soltou como se tivesse se queimado.
— Desculpa. Desculpa, sério. Eu não…
Neil sentia a mão latejar, mas disse:
— Está tudo bem.
— Não está, não — insistiu Nicky, e olhou para o primo. — Quer dizer,
meu Deus, Andrew, você não vai nem perguntar…
Andrew aumentou o volume do rádio para abafar qualquer outra coisa que
eles tivessem a dizer. Nicky fez uma careta, mas Neil balançou a cabeça e
acenou para que o outro deixasse pra lá. Nicky continuava com o mesmo
olhar feroz, mas resolveu acatar o pedido silencioso de Neil por enquanto.
Kevin estendeu a mão para mexer no volume apenas uma vez, ao que An-
drew prontamente deu um tapa na mão dele e ergueu um dedo em adver-
tência, sem tirar os olhos da estrada. Kevin cruzou os braços em uma decla-
ração silenciosa de desagrado, que Andrew ignorou. Antes que chegassem à
metade do caminho para o interior do estado, a cabeça de Neil começou a
latejar. Ele ficou feliz ao avistar a Torre das Raposas, e ainda mais feliz quan-
do Andrew estacionou e o silêncio finalmente se instaurou.
Neil foi o primeiro a sair e segurou a porta de Andrew quando estava pres-
tes a se fechar. Andrew não se mexeu, mas havia espaço suficiente para Neil
se inclinar e pegar sua pasta. Ele se endireitou e, ao se virar, viu que Andrew
tinha se aproximado. Neil se viu obrigado a ficar grudado nele, mas por al-
gum motivo isso não o incomodou. Ficaram longe um do outro por sete se-
manas, mas Neil se lembrava exatamente o motivo de ele ter escolhido ficar.
Se lembrava do aperto firme e do peso incontestável que podia carregar a ele
e todos os seus problemas sem derramar uma gota de suor. Pela primeira vez
em meses, conseguia respirar de novo. O alívio era tanto que era assustador;
Neil não tivera a intenção de depender tanto assim de Andrew.
Por fim, Andrew deu um passo para trás e olhou para Nicky.
— Você fica. O resto pode ir.
Neil olhou para Nicky para ver se ele concordava em ficar sozinho com
Andrew. Quando Nicky assentiu devagar, Neil deu a volta no carro para se
juntar a Aaron e Kevin. Kevin encarava Andrew por cima do teto do carro,
como se tentasse enxergar por trás da máscara impassível dele. Neil teve que
forçá-lo a se virar na direção do dormitório.
Subiram as escadas até o terceiro andar. Aaron destrancou a porta da suíte,
mas, quando Kevin fez um gesto para que se juntasse ao grupo, Neil balan-
çou a cabeça. Esperou até que fechassem a porta e foi até o fim do corredor
para ligar o celular. Quando a logo piscante sumiu e a tela inicial apareceu,
ligou para Wymack.
— Estava começando a achar que ele tinha matado você e deixado o corpo
pra apodrecer na beira da estrada — disse Wymack assim que atendeu.
— Ainda não. A gente acabou de chegar.
— Se alguém precisar de alguma coisa, estou com o celular. E vê se tenta fi-
car com o seu ligado também.
— Sim, treinador — respondeu Neil, e voltou a desligar o celular assim que
encerrou a ligação.
Entregara as chaves dele para Andrew, então precisou bater para entrar no
próprio quarto. Levou a pasta para outro cômodo e, no fundo do armário,
procurou pelo cofre, que agora continha apenas uma carta desgastada. Mes-
mo assim, ele a enfiou em sua pasta e a trancou, por segurança. Ao voltar
para a sala, encontrou Matt à sua espera no braço do sofá. Neil retribuiu o
olhar indagador com uma expressão cautelosa. Esperou pelas perguntas e
acusações inevitáveis, mas quando Matt falou, foi apenas para dizer:
— Você tá bem?
— Estou bem.
— Só pra constar, eu não acredito em você — retrucou Matt.
Neil ergueu um ombro cansado.
— Você provavelmente não deveria acreditar em nada do que eu falo.
Matt bufou, forçado e baixinho demais para ser uma risada.
— Tenho a sensação de que essa é a coisa mais verdadeira que você me dis-
se o ano inteiro. Mas, olha só, quando você quiser conversar, estamos aqui.
— Eu sei.
Ele se surpreendeu ao perceber que era verdade. Sabia, só de olhar para
Matt, que o companheiro de equipe acreditaria em qualquer coisa que Neil
estivesse disposto a contar, independentemente do quanto fosse cruel ou
improvável. Fizera a coisa certa ao ir para Evermore; e estava fazendo a es-
colha certa ao ficar com as Raposas. Não importava o quanto se assustasse
com o próprio reflexo. Era o único jeito de manter os colegas de equipe a
salvo da crueldade de Riko, e era um preço baixo a se pagar.
— Eu nunca estive em Nova York — comentou Neil.
Não era o que precisava dizer nem o que o outro queria ouvir, mas Matt
não pressionou. Matt contou histórias divertidas do fim de ano, desde o pri-
meiro encontro sem jeito dos primos com a mãe dele até a gastança desen-
freada de Nicky. Matt levou Neil até a cozinha para mostrar os grãos de café
que comprara em uma cafeteria local. Já estava tarde para tomarem café,
mas Matt estava cansado da viagem e Neil ainda estava indisposto. Ele tirou
os filtros do armário, enquanto Matt moía grãos para encher um dos bules.
Neil estava enchendo o bule de água quando ouviram alguém bater à por-
ta. Matt estava mais perto, então foi atender. Neil não conseguia ver quem
era do ângulo em que estava, mas quando Matt deu um passo para trás em
um convite silencioso, Nicky surgiu no vão da porta. Não parecia ferido,
mas estava nervoso, e era impossível ignorar a culpa em sua expressão quan-
do encarou Matt.
— Eu, hum, me esconderia por um tempinho se fosse você — sugeriu
Nicky. — Andrew acabou de saber quem machucou o Kevin. Tentei defen-
der você, porque o Kevin mereceu e porque você pagou a fiança do Aaron,
mas não sei se vai ajudar muito. Andrew parece ser o inimigo número um
da lógica.
— Valeu pelo aviso — respondeu Matt.
Nicky olhou para Neil.
— Ele me mandou vir te buscar.
— O que você contou pra ele? — perguntou Neil.
— Nada sobre você. — Nicky enfiou as mãos nos bolsos e deu de ombros,
desconfortável. — Ele quis saber de tudo, do julgamento do Aaron, do rosto
do Kevin e dos Corvos. Contei pra ele que nos classificamos pro campeona-
to e falei da briga no banquete de Natal. Não contei que você não foi pra No-
va York com a gente.
Neil assentiu e voltou para o quarto. Primeiro pegou o maço de cigarros e o
enfiou no bolso de trás. As faixas de Andrew estavam embaixo do travessei-
ro, onde Neil as escondera em novembro. Nicky fez uma careta ao vê-las.
— Talvez não seja uma boa ideia dar armas pra ele agora — comentou
Nicky.
— Vai ficar tudo bem — afirmou Neil, e seguiu pelo corredor até as esca-
das.
Andrew esperava, com os braços cruzados frouxamente e as costas apoia-
das no corrimão. Seu olhar se voltou para os tecidos escuros na mão que
Neil estendia e os pegou sem dizer uma palavra. Neil já tinha visto as cicatri-
zes dele antes, mas Andrew se virou para colocar as faixas. Quando os bra-
ços estavam escondidos, subiu as escadas em vez de descer.
A escadaria dava para uma porta com a placa “Acesso ao telhado — so-
mente pessoas autorizadas”. Neil achou que estaria trancada, mas Andrew
precisou apenas sacudir a maçaneta com força algumas vezes para abri-la.
Pelos cortes precisos na porta e no batente, Andrew já havia mexido na fe-
chadura havia muito tempo. Neil não perguntou, mas o seguiu em direção à
tarde fria. Por estarem no alto, o vento batia mais forte, e Neil desejou poder
usar o casaco que ganhara.
Andrew foi até a beira do telhado e analisou o campus. Neil parou ao lado
dele e olhou com cuidado para o lado. Ele não se incomodava com altura,
mas a falta de grades era perturbadora ao se tratar de uma queda de quatro
andares. Neil pegou o maço de cigarros, tirou dois e os acendeu. Andrew
apoiou o seu nos lábios, e Neil protegeu o dele com as mãos por causa do
vento.
Andrew se virou para olhar para o colega.
— Aceito uma explicação agora.
— Você não podia pedir respostas lá dentro, no quentinho? — perguntou
Neil.
— Um pouco tarde pra ter medo de morrer por vulnerabilidade. — An-
drew ergueu a mão, aproximando-a do rosto de Neil e parando quando os
dedos estavam prestes a tocá-lo. Não olhava para os machucados na pele;
encarava os olhos desprotegidos de Neil. — Fui eu que quebrei a promessa
ou você que estava mantendo a sua?
— Nenhuma das opções — respondeu Neil.
— Sei que fiquei fora tempo o bastante pra você pensar nas suas preciosas
mentiras, mas espero que se lembre de que contei uma verdade em novem-
bro e que você me deve uma. É sua vez no nosso jogo, e você não vai mentir
pra mim.
— Nenhuma das opções. Eu passei o Natal em Evermore.
Neil não deveria ficar surpreso que a primeira coisa que Andrew fez foi
mexer na atadura em sua bochecha. Aaron e Nicky a ignoraram, nem a no-
taram em meio a todas as gazes e fitas. Andrew passara muito tempo cui-
dando de Kevin, então juntou as peças em um piscar de olhos. Puxou um
pedaço da fita e arrancou a atadura como se quisesse levar o rosto de Neil
junto. Neil se preparou para a violência, mas a fisionomia impassível de An-
drew não se alterou ao ver a tatuagem em seu rosto.
— Isso é descer o nível, até pra você — comentou Andrew.
— Não foi escolha minha.
— Você escolheu ir até Evermore.
— Eu voltei.
— Riko deixou você voltar — corrigiu Andrew. — Estamos indo bem este
ano, e a briga de vocês é pública demais. Ninguém teria acreditado que você
tinha se transferido por vontade própria pra Edgar Allan no meio da tempo-
rada. — Andrew esmagou a atadura no rosto de Neil e ajeitou as fitas com
dedos firmes. — Não era pra você sair do lado do Kevin. Esqueceu?
— Eu prometi que ia protegê-lo. E não que ia ficar atrás dele o tempo todo
que nem você. E mantive minha promessa.
— Mas não desse jeito. Você já disse que isso não tinha nada a ver com o
Kevin. Por que foi até lá?
Neil não sabia se conseguiria verbalizar. Pensar já era quase insuportável.
Mas Andrew estava esperando, então Neil sufocou a náusea que sentia.
— Riko disse que se eu não fosse, o dr. Proust iria…
Andrew cobriu a boca dele, reprimindo as próximas palavras, e Neil soube
que tinha falhado.
Riko disse que o dr. Proust, de Easthaven, usava “encenações terapêuticas”
para ajudar os pacientes. Era uma linha tênue entre crueldade psicológica e
abuso físico puro e simples, e Riko deixara claro que Proust estava disposto
a cruzá-la se Neil desobedecesse. Ele devia saber que não podia confiar em
Riko. O ódio fez parte do gelo nas veias de Neil derreter, mas era difícil
aguentar a expressão entediada no rosto de Andrew. Alguns meses antes, ele
estivera tão drogado que rira da própria dor e do próprio trauma. Hoje, não
se importava o bastante nem para fazer isso. Neil não sabia qual extremo era
pior.
Neil ficou em silêncio, então Andrew abaixou a mão.
— Não cometa o erro de achar que preciso da sua proteção.
— Eu tinha que tentar. Se tivesse a chance de impedir isso e não fizesse na-
da, como iria encarar você de novo? Como iria conviver comigo mesmo?
— Sua cabeça fodida é problema seu, não meu — afirmou Andrew. — Eu
disse que ia te manter vivo este ano. Você torna tudo mil vezes mais difícil
pra mim quando fica caçando jeitos diferentes de morrer.
— Você passou todo esse tempo cuidando da gente — respondeu Neil. — E
quem é que cuida de você? Não vem me dizer que você sabe se cuidar, por-
que nós dois sabemos que você não se cuida porra nenhuma.
— Você tem um problema de audição. Deve ter levado bolada demais no
capacete. Será que consegue ler meus lábios? — Andrew apontou para a
própria boca enquanto falava. — Da próxima vez que vierem atrás de você,
sai do caminho e deixa que eu cuido da situação. Você me entendeu?
— Se isso significa perder você, então não — respondeu Neil.
— Eu odeio você — disse Andrew, casualmente, então deu um último lon-
go trago no cigarro e o jogou telhado abaixo. — Você deveria ter sido um
efeito colateral das drogas.
— Eu não sou uma alucinação — argumentou Neil, sem jeito.
— Você é um sonho inalcançável. Agora vai pra dentro e me deixa aqui so-
zinho — respondeu Andrew.
— Você ainda está com as minhas chaves — lembrou Neil.
Andrew tirou o molho de chaves do bolso e procurou a chave de seu carro.
Em vez de entregar as outras de volta, jogou-as telhado abaixo, como fizera
com o cigarro. Neil se inclinou para ver se ia acertar em alguém, mas a cal-
çada estava vazia. As chaves caíram no chão com um baque, inofensivas.
Neil se endireitou e olhou para Andrew, que não retribuiu o olhar, mas dis-
se:
— Não estou mais.
Neil abriu a boca, mas mudou de ideia no último instante, afastando-se em
silêncio. Desceu as escadas até o térreo e abriu as portas de vidro. As chaves
tinham caído mais longe do que esperava, mas a luz do sol refletia no metal
e permitiu que as encontrasse com facilidade. Neil pegou as chaves e viu o
cigarro de Andrew a alguns centímetros de distância. As cinzas haviam se
soltado por causa do impacto, mas um fio de fumaça ainda exalava da bitu-
ca.
Andrew o observava, ainda curvado sobre a beirada do telhado como se es-
tivesse pensando em se jogar. Neil não saberia explicar o motivo de ter feito
o que fez a seguir, mas pegou o cigarro da calçada e o levou aos lábios. Incli-
nou a cabeça para olhar nos olhos resolutos de Andrew e bateu dois dedos
na têmpora, imitando a saudação do outro. Andrew se virou e desapareceu.
O sabor era de vitória, ainda que Neil não soubesse explicar o porquê. Apa-
gou o cigarro com o sapato e voltou para dentro.
Quando Neil chegou à suíte, Matt estava sentado no sofá. O café estava
pronto no bule, e Neil teve uma sensação agradável ao segurar a caneca
quente nas mãos frias. Matt o inspecionou enquanto se encaminhava para o
sofá, provavelmente à procura de novos machucados. Neil se sentou com
cuidado na almofada mais distante e inspirou o vapor da bebida.
— Onde a gente parou? — perguntou Neil.
Matt suspirou, mas continuou a história de onde tinha parado. Descreveu
para Neil a neve no Central Park e a contagem regressiva de Ano-Novo na
Times Square. Neil fechou os olhos enquanto ouvia, tentando visualizar a
cena e imaginando, por alguns instantes, que também estivera lá. Não tinha
a intenção de dormir, mas um leve puxão na caneca de café o despertou de
repente. Matt escapou por pouco do líquido e ergueu as mãos em rendição
para acalmar Neil.
— Ei, sou só eu.
A caneca estava fria e a luz no ambiente parecia estranha. Neil olhou pela
janela, desejando ver o céu, mas as cortinas estavam fechadas. Ele permitiu
que Matt pegasse a caneca e se levantou, cambaleante, quando o outro se
afastou. Cruzou a sala tão rápido quanto seu corpo castigado permitia e pu-
xou as cordas para abrir as cortinas. O sol estava baixo no céu ainda ilumi-
nado. Era o crepúsculo ou o amanhecer; Neil não saberia dizer.
Ele pressionou as mãos na janela.
— Que dia é hoje?
Pareceu que uma eternidade se passou até que Matt respondesse, e as pala-
vras saíram devagar.
— Terça-feira.
Crepúsculo, então. Só havia dormido algumas horas.
— Neil? Você tá bem? — perguntou Matt.
— Estou mais cansado do que pensava. Vou deitar mais cedo — respondeu
Neil.
A fisionomia infeliz no rosto de Matt demonstrava que ele não acreditava
nem um pouco naquilo, mas mesmo assim não tentou impedi-lo. Neil fe-
chou a porta do quarto com firmeza e começou o processo meticuloso de se
trocar. Respirava com os dentes cerrados quando, finalmente, vestiu o mole-
tom. Cerrou as mãos para impedi-las de tremer, mas subir até a beliche fez
seu corpo todo trepidar. Era muito cedo, e ele estava dolorido demais para
voltar a pegar no sono, mas puxou os cobertores sobre a cabeça e se forçou a
parar de pensar.
Na quarta-feira de manhã, levantar da cama exigiu um esforço hercúleo, e
Neil só conseguiu porque seu instinto de autopreservação era tão intenso
quanto o de proteger suas mentiras. Precisava que os colegas de equipe
achassem que ele estava bem, o que significava viver aquele dia como se o
Natal nunca tivesse acontecido. Levou algum tempo para afastar os pensa-
mentos enquanto completava a corrida mais lenta do mundo pela Perimeter
Road. Cada passo fazia suas pernas latejarem de dor, e Neil estava dormente
dos joelhos aos pés quando voltou à Torre das Raposas.
Matt, que fora para a academia antes de Neil acordar, esperava por ele na
sala de estar, com uma expressão incrédula.
— Você é louco, sabia? Você saiu mesmo desse jeito?
— Que horas chega o voo da Dan? — perguntou Neil.
Por alguns instantes, Neil achou que ele não entraria no jogo e não permi-
tiria que mudassem de assunto. Matt franziu os lábios em uma linha fina de
desaprovação. Mas em vez de dar um sermão, disse:
— Vou buscar elas às onze horas e vamos direto pra quadra. Você vai pegar
carona com o Andrew?
— Vou. O treinador quer que eu fale com a Abby antes da reunião.
Neil se trancou no banheiro para um banho rápido. Apesar de tomar muito
cuidado, se secar foi quase tão doloroso quanto a corrida. Ele se vestiu deva-
gar, com uma careta sempre presente, e quando terminou precisou de alguns
minutos para acalmar a respiração. Ganhou um pouco de tempo para trocar
a atadura que cobria a tatuagem, mas seu coração ainda parecia bater na bo-
ca quando saiu do banheiro abafado pelo vapor.
Matt estava largado no sofá com a televisão ligada quando Neil passou pelo
quarto já todo vestido. Não disse nada ao ver Neil saindo, talvez presumindo
que ele iria ao quarto que ficava a duas portas do deles, perturbar os primos.
Mas Neil saiu do prédio e percorreu a trilha sinuosa até a Perimeter Road.
Cortou caminho pelo campus até a biblioteca.
Cruzou com poucos estudantes na subida até o laboratório de computado-
res. Apesar da relativa privacidade, Neil escolheu usar uma máquina na últi-
ma fileira. Sua obsessão por se manter atualizado com as notícias tinha ces-
sado em setembro, mas naquele dia não tinha a intenção de desenterrar o
passado. Primeiro, procurou por qualquer notícia de seu período em Ever-
more, mas não encontrou nada. Depois passou a pesquisar sobre as outras
equipes que haviam se qualificado para os campeonatos de primavera. Era
um jeito simples de parar de pensar e de matar algumas horas.
Não se lembrava de abaixar a cabeça e com certeza não se lembrava de pe-
gar no sono. Acordou assustado quando sentiu dedos cravados na parte de
trás da cabeça. Procurou uma arma, uma faca, qualquer coisa próxima o
bastante para ajudá-lo a ganhar tempo para fugir, e esbarrou no mouse do
computador, que derrapou na mesa. Neil o encarou, inexpressivo, e então
olhou para a tela à sua frente. Os dedos em seu cabelo se cerraram, e Neil
não resistiu quando Andrew forçou sua cabeça para trás.
— Sua curva de aprendizagem é uma linha reta? Eu falei ontem pra parar
de dificultar a minha vida — ameaçou Andrew.
— E eu disse que não ia prometer nada.
Andrew o soltou e observou, impiedoso, enquanto Neil esfregava a cabeça.
Neil se endireitou e começou a fechar o navegador. Passou por três abas an-
tes de notar que horas eram. Já passava das onze, o que significava que Matt
estava buscando Dan e as meninas no desembarque e Neil já deveria estar
no estádio com Abby. Não sabia o que era pior, ter perdido duas horas desse
jeito ou o fato de ter adormecido em um local público. Contou até dez em
silêncio, em francês e em espanhol. Mas nada ajudou a aliviar a raiva e a
frustração.
Andrew desceu as escadas, supondo com razão que Neil o seguiria. O carro
estava parado no meio-fio, com o pisca-alerta ligado. Os outros três mem-
bros do grupo estavam espremidos no banco de trás. Neil não sabia quem ti-
nha convencido Kevin a abrir mão do banco do carona nem o porquê, mas
não valia a pena perguntar. Ele se sentou e colocou o cinto.
— Não falei pra ninguém que ia pra biblioteca — disse, quando Andrew os
levou para a estrada.
— Você tem poucos esconderijos — comentou Nicky. — O treinador disse
que você não estava no estádio. E você não atendeu o celular quando a gente
ligou.
Neil deu tapinhas no bolso e tirou o celular. Quando o abriu, a tela conti-
nuou escura. Tinha carregado o aparelho no dia anterior, mas não o bastan-
te. Ele o fechou de novo e colocou no porta-copos entre os bancos da frente.
Andrew estendeu a mão e abriu o porta-luvas. Havia um carregador lá den-
tro. Por alguns instantes, Neil pensou que o outro havia mexido em suas coi-
sas, mas não reconhecia o adesivo vermelho no fio. Devia ser o carregador
de Andrew; o aparelho deles era do mesmo modelo. Neil pegou o carregador
e fechou o porta-luvas.
Havia uma chave presa com um elástico no adaptador. Neil usara as chaves
do carro de Andrew muitas vezes nos últimos meses e reconhecia com faci-
lidade o formato. Olhou da chave para a que estava na ignição. Ou Andrew
havia confiscado a cópia de Nicky ou fizera uma para Neil. Nenhuma das
opções fazia muito sentido. Só usara o carro porque Andrew precisara de
um segundo motorista durante sua ausência.
Foi uma viagem rápida até a Toca das Raposas, e Andrew não entrou com
eles. Neil digitou o código de segurança e se dirigiu ao vestiário antes dos
outros. Wymack e Abby o esperavam no salão. Abby parecia imensuravel-
mente triste ao ver o estado deplorável de Neil, mas não o repreendeu pelo
que havia feito nem perguntou o motivo. Talvez já tivesse obtido respostas
satisfatórias de Wymack, ou talvez o treinador estivesse presente para garan-
tir que ela não se intrometesse. Fosse o que fosse, Neil se sentiu grato.
— Não acredito que você confiou no David pra colocar as ataduras em vo-
cê. Ele mal consegue lavar um prato, quanto mais limpar pontos — recla-
mou Abby.
— Deixa disso, mulher — protestou Wymack. — Eu fui cuidadoso.
Abby sinalizou com as duas mãos para que Neil a seguisse.
— Vem, vamos dar uma olhadinha em você.
Ela guiou o caminho até o escritório e fechou a porta assim que ele entrou.
Subir na cama não foi tão doloroso quanto subir a escada da beliche, e Neil
se acomodou na beirada do colchão fino. Abby pegou gaze e antisséptico,
enquanto Neil tentava passar o suéter pela cabeça. Ele cerrou os dentes
quando sentiu o calor dominar a extensão dos ombros até as costas e tentou
respirar mais depressa para aliviar a dor.
Abby o ajudou com as mangas e colocou seu suéter de lado com cuidado.
Neil escolheu um ponto na parede oposta para olhar e ficou sentado em si-
lêncio enquanto ela trabalhava. Abby começou no topo, esfregando de leve
os dedos pelo cabelo dele em busca de calombos ocultos, depois foi descen-
do. Wymack tinha verificado o corpo de Neil no dia anterior, logo pela ma-
nhã, mas Abby arrancou todas as ataduras, menos a da maçã do rosto.
— Ele contou da tatuagem — comentou Neil.
— E disso. — Abby deslizou os polegares ao longo da pele macia sob seus
olhos.
— Você não vai perguntar?
— Eu já vi suas cicatrizes, Neil. Não fico tão surpresa quanto deveria ao
descobrir que não são a única coisa que você esconde. Quero perguntar, mas
você já me disse uma vez para não me intrometer.
Ela voltou ao trabalho, mas demorou muito para terminar. Quando acabou
os cuidados com a parte de cima do corpo dele, ainda teve que voltar a aten-
ção para as pernas. Os hematomas listrados nas coxas, causados por raque-
tes pesadas, a fizeram franzir os lábios em indignação. Havia camadas, algu-
mas roxas e mais novas e outras já desbotadas, verdes e amarelas. Os joelhos
de Neil não estavam nada melhores, pois o rapaz havia caído sobre eles mui-
tas vezes.
— O treinador não vai me deixar entrar na quadra até você me liberar —
disse Neil. — Quanto tempo acha que vai demorar?
Abby olhou para ele como se Neil estivesse falando em outra língua.
— Você vai poder treinar quando não parecer que foi pisoteado.
— Já estou melhorando. Além disso, joguei em condições muito piores em
Evermore.
— Aqui não é Evermore. Sei que a temporada é importante pra você, mas
não vou permitir que arrisque sua segurança e saúde mais do que já arris-
cou. Você precisa ter calma e esperar. Uma semana — afirmou, erguendo a
voz quando Neil começou a protestar. — Na próxima terça-feira vou decidir
se deixo você jogar ou não. Se fizer qualquer tipo de esforço intenso até lá,
vai ficar no banco mais uma semana. Entendido? Use esses dias pra descan-
sar. E quando tiver uma oportunidade, tire as ataduras. Seu corpo precisa
respirar.
— Uma semana — repetiu Neil. — Não é justo.
— Não — disse Abby, e segurou o rosto dele. — Não é justo. Nada disso é.
A dor na voz dela fez o argumento de Neil morrer na garganta. Abby olhou
para ele, traçando as cicatrizes cruéis e feridas recém-abertas com um olhar
desolado.
— Às vezes acho que esse trabalho vai me matar — comentou Abby. — Ver
o que as pessoas fizeram, o que as pessoas continuam fazendo com minhas
Raposas. Queria proteger vocês, mas sempre chego tarde demais. Tudo o
que posso fazer é cuidar de vocês depois e torcer pelo melhor. Sinto muito,
Neil. A gente devia estar do seu lado.
— Eu não ia permitir — disse Neil.
Abby o puxou para um abraço. Apesar de ela ter tomado cuidado, Neil sen-
tiu dor mesmo assim. Mas não foi isso que o deixou imóvel, e sim a dúvida.
As únicas pessoas que o haviam abraçado na vida eram os colegas de equipe,
e não passavam de apertões rápidos durante uma partida que jogavam bem.
Sua mãe o havia puxado para perto antes, mas geralmente era para evitar
olhares curiosos, usando o próprio corpo de escudo. Nunca o abraçava co-
mo se ele fosse algo a ser protegido. Sempre fora severa. Feroz e inquebrável
até o fim.
Neil pensou nas mãos da mãe agarrando o ar, na mãe se engasgando en-
quanto tentava respirar uma última vez. Pensou no corpo rasgando onde o
sangue colara a pele ao vinil. Os dedos de Neil se contraíram com a vontade
de fumar um cigarro, o anseio pelo cheiro de fumaça que era tão horrível
quanto reconfortante. O fogo era tudo o que restava dela. Não havia um in-
dício sequer da mãe em seu reflexo; ele era a cara do pai.
Mas ela havia partido. Mesmo que estivesse presente, não o teria conforta-
do. Não o teria abraçado como se ele estivesse prestes a se desfazer. Teria
limpado suas feridas porque não podiam correr o risco de deixar uma infec-
ção atrasá-los, mas bateria nele por priorizar as Raposas e não a própria se-
gurança. Neil quase podia ouvi-la reclamar. Ele nunca esqueceria o som da
voz dela. Era ao mesmo tempo reconfortante e melancólico, e uma súbita
onda de dor ameaçou engoli-lo por inteiro.
— Preciso ir. Já acabamos? — perguntou Neil.
Abby o soltou devagar e o ajudou a se vestir. Ele conseguia amarrar os pró-
prios sapatos, mas Abby se encarregou disso. Neil permitiu, concentrando-
se em ajeitar o suéter. Ela abriu espaço para que ele pudesse descer da cama
e não o seguiu.
Em vez de continuar pelo corredor até o lounge, Neil saiu pela porta dos
fundos para a quadra. Só voltou a respirar tranquilo quando estava na área
técnica, com as mãos pressionadas com força na parede, e, quando final-
mente inspirou, quase sentiu seu corpo se despedaçar. Podia sentir cada bar-
reira que erguera para sobreviver em Evermore desmoronando ao seu redor.
Ele tentou manter o controle, que escorregava pela ponta dos dedos, saben-
do que se afogaria caso o soltasse. Seu coração parecia feito de pedra derreti-
da, mas a cada vez que respirava, sentia o calor diminuir um pouco. Forçou
os dedos a pararem de tremer e voltou para o vestiário.
Wymack e Andrew não estavam ali, mas, durante sua ausência, Matt e as
meninas haviam chegado. Neil não queria olhar para os colegas ainda, então
enrolou, à procura de uma tomada. Encontrou um lugar livre no estabiliza-
dor atrás do centro de entretenimento e colocou o celular para carregar.
Quando a luz ficou vermelha, ele se dirigiu para o sofá. Seu jeito descontraí-
do funcionou até a hora que teve que se sentar. Simplesmente não dava para
disfarçar o cuidado que precisava tomar para se ajeitar na almofada.
Foi quando Dan por fim perdeu a calma.
— Aquele filho da p…
Parou de falar tão de repente que Neil teve que olhar para ela. Renee estava
com a mão no ombro da amiga. Sorriu quando Neil olhou para ela e disse:
— A gente estava decidindo o que pedir de almoço. Abby disse que vai li-
gar pra fazer o pedido e vai lá buscar pra gente não precisar esperar a entre-
ga. Alguma sugestão?
— Como qualquer coisa — respondeu Neil.
Allison olhou para ele, cética.
— E você consegue mastigar?
— Consigo. Cadê o Andrew?
— Encontramos com ele quando chegamos — respondeu Matt. — Tá con-
versando com o treinador do outro lado do estacionamento. Acho que estão
se conhecendo de novo. Espero que seja melhor do que a primeira vez.
— Não terminei de falar com você — protestou Allison.
Neil recompensou a persistência dela se esquivando de novo.
— Já viu o cartaz do Seth?
Levou um instante até a colega entender, mas então ela se levantou da ca-
deira e foi em direção à quadra em saltos de quinze centímetros com estam-
pa de arco-íris. Por um instante, pareceu que Dan iria atrás dela, mas mu-
dou de ideia com um menear de cabeça.
— Sanduíche ou comida chinesa? — perguntou para Neil.
— Qualquer um está ótimo.
— Eu concordo com a Allison nisso de mastigar. — Nicky apontou para o
próprio rosto, indicando os machucados nas bochechas e na mandíbula de
Neil. — Macarrão e arroz são mais macios do que sanduíche. Vamos de co-
mida chinesa.
Matt se levantou e foi contar para Abby o que decidiram. Estava voltando
quando a porta externa se fechou. Do outro lado da sala, Dan se endireitou
na cadeira e lançou um olhar significativo para Renee, que abaixou a mão e
entrelaçou os dedos no colo. Não era a resposta que Dan esperava, a julgar
pela sua careta de decepção, mas ela não teve tempo de pressionar a amiga
antes que Andrew entrasse sozinho pela porta.
Matt cometeu o erro de parar para olhar. Andrew nem hesitou em dar um
soco tão forte em Matt que o derrubou. Deveria ser impossível; Matt tinha
cerca de trinta centímetros a mais do que Andrew e deixava qualquer um
deles no chão na academia. Mas Andrew o pegou de surpresa, e não parou
quando Matt caiu: deu outro soco no rosto do colega assim que este atingiu
o chão.
Dan ficou de pé em um piscar de olhos, mas de alguma forma Neil chegou
até Andrew primeiro. Nem se lembrava de ter decidido se mover. Usou o pe-
so e o impulso do corpo para empurrar o outro para trás. Esperava que ele
se mantivesse firme, mas Andrew se deixou ser empurrado e lançou um
olhar despreocupado para Neil, que ergueu as mãos entre eles no caso de
Andrew tentar contorná-lo.
— Chega. Matt não fez nada de errado — disse Neil.
Andrew balançou os dedos em desdém.
— Ele sabia o que ia acontecer se encostasse no Kevin, e mesmo assim foi
burro o bastante pra fazer isso duas vezes. Se repetir, não vou ser tão amigá-
vel assim.
— Fala sério, você não tá ameaçando ele de verdade — protestou Dan, in-
crédula. — Quem você acha que pagou a fiança do Aaron? Se não fosse pelo
Matt, Aaron ainda estaria na cadeia, esperando pelo julgamento.
— Isso não importa — disse Aaron, da poltrona.
No dia anterior, Nicky parecera culpado quando avisou Matt para se escon-
der por um tempo. Agora, se unia aos primos e dava de ombros para Dan de
modo exagerado.
— Matt ajudou o Aaron quando fez aquilo, não o Andrew. Você não pode
achar que fazer um favor pra um deles conta pros dois só porque são gê-
meos. Isso é trapaça.
— Bom te ver também, monstro — falou Matt, um pouco azedo. Neil
olhou para trás quando o colega voltou a se levantar. Matt passou a mão pe-
lo sangue que escorria do nariz, fungou com exagero e fez uma careta ao
sentir o gosto. — Bom ver que você ainda é louco pra caralho.
— Não faz essa cara de surpresa. Não eram os remédios que deixavam ele
louco— disse Aaron.
— Oi, Andrew — cumprimentou Renee.
Andrew não disse nada, mas olhou impassível para ela. Renee abriu um
sorriso satisfeito e assentiu de leve, reconhecendo e aceitando o que fosse
que tivesse visto no olhar severo de Andrew. O reencontro dos dois consistiu
apenas nessa troca de olhares de dois segundos; Andrew voltou a atenção
para Neil assim que Renee cumpriu as expectativas dele.
Abby surgiu um instante depois e hesitou, com a bolsa meio pendurada no
ombro. Olhou da raiva evidente de Dan para a expressão tensa e o nariz san-
grando de Matt. Não demorou muito para juntar as peças e lançar um olhar
cauteloso para Andrew.
— Andrew. Bem-vindo de volta. Não tem sido o mesmo sem você — disse
ela. Andrew a olhou em silêncio. Abby esperou, então percebeu que não ob-
teria uma resposta. Olhou sem jeito para o restante das Raposas reunidas. —
Acho que a comida já vai estar pronta quando eu chegar lá. Já volto, ok?
Tentem se comportar enquanto eu estiver fora.
— Obrigada — respondeu Dan.
Abby olhou uma última vez para Andrew e saiu. A porta mal havia se fe-
chado quando Wymack entrou. Neil se perguntou se ele estivera fumando
ou apenas matando o tempo enquanto sua equipe se familiarizava com a
volta repentina de Andrew e os ferimentos de Neil — assim como o treina-
dor os havia abandonado durante o luto de Allison, em setembro. Wymack
arqueou uma sobrancelha para Matt, depois olhou para Neil e Andrew.
— Já não falamos sobre não matar os companheiros de equipe? — pergun-
tou Wymack. Andrew fingiu não ouvir, então o treinador olhou para os ou-
tros. Levou uma fração de segundo para perceber que faltava uma Raposa.
— Allison estava aqui. Onde ela foi?
— Ver os cartazes do campeonato — explicou Neil.
— Vai voltar quando parar de chorar — acrescentou Nicky.
— Ela não está chorando — retrucou Neil.
Nicky sorriu.
— Aposto cinco dólares que tá.
Uma tentativa grosseira de aliviar a tensão. Neil deveria ter ignorado. Tal-
vez o tivesse feito um mês atrás. Sabia que seus companheiros de equipe
apostavam compulsivamente; apostavam em tudo, desde com quantos gols
terminaria uma partida até o relacionamento inexistente de Andrew e Renee
ou quem agrediria primeiro em uma discussão. Apostar dinheiro no trauma
psicológico de alguém não era nada novo nem inesperado, mas Neil não es-
tava a fim de aturar aquilo naquele dia. O encontro com Abby o havia deixa-
do com os nervos à flor da pele, e ele quase não conseguia se controlar perto
da equipe. O cheiro acre de cigarro que exalava do casaco de Andrew foi a
gota de água.
Neil tentou amenizar a irritação em sua voz, mas não conseguiu.
— Para com essa porra de apostar na dor dos outros.
— Epa, relaxa. — Nicky ergueu as mãos em rendição. — Não quis ser es-
croto, cara. Nem ofender ninguém. Era só pra deixar o clima mais leve.
— Então deixa sua poltrona mais leve e vai ver como ela está — ordenou
Wymack. — Temos muito o que falar hoje e não posso começar sem Allison.
Ela vai ficar mais brava se a gente começar sem ela do que se você interrom-
per o que ela está fazendo. E sim, estou falando com você, Hemmick. Não
quero que o Neil se mova mais do que o necessário.
— Eu consigo andar — protestou Neil.
— Que bom pra você. Não perguntei nada — retrucou o treinador.
Nicky se levantou da cadeira e saiu.
Andrew enfiou a unha na cavidade do pescoço de Neil até que este voltasse
toda a sua atenção para ele.
— Senta aí e fica quieto.
Neil afastou a mão de Andrew e se virou para o sofá. Andrew reivindicou a
almofada do meio, então Neil se acomodou no espaço a seu lado. Seu corpo
se arrependeu de ter interferido naquela luta, mas Matt deu um leve aceno
de cabeça em agradecimento quando o olhar dele encontrou o de Neil do
outro lado da sala. Neil encarou Andrew para avaliar seu humor, e seguiu o
olhar sombrio dele. Andrew havia pegado uma pequena faca e a girava entre
os dedos. Não era uma das que guardava em suas faixas, mas Neil não ficou
surpreso por não reconhecê-la. Quase nunca via a mesma faca duas vezes.
— Não é tão fascinante — disse Andrew.
— Não — concordou Neil.
Não sabia como explicar as emoções complicadas que uma lâmina afiada
despertava. Seu pai era chamado de Açougueiro por um motivo. Sua arma
favorita era um cutelo afiado e robusto o bastante para cortar membros em
um só movimento. Antes do cutelo, Nathan Wesninski usava um machado.
Ainda mantinha aquele machado por perto para quando queria que alguém
sofresse bastante. A lâmina havia ficado cega e exigia um pouco de peso ex-
tra e esforço para cortar um osso. Neil viu o pai usá-lo apenas uma vez, no
dia em que conheceu Riko e Kevin no Estádio Evermore.
— É só que… — Neil tentou encontrar as palavras, também consciente de
que a conversa do outro lado da sala havia se acalmado um pouco. Os vete-
ranos estavam tentando ouvir sem dar na cara. Neil se contentou com a ex-
plicação mais vaga que conseguiu e esperava que os companheiros atribuís-
sem o pronome a Riko. — Nunca entendi por que ele gosta de facas.
Palavras tão simples não deveriam ter causado uma reação dessas. Andrew
ficou imóvel e ergueu o olhar, mas não para Neil. Olhava para Renee, então
Neil fez o mesmo. Ela parou no meio da frase para olhar para Neil, mas a
Renee que o analisava não era a otimista redimida das Raposas. Seu doce
sorriso se fora e o olhar completamente vazio em seu rosto fez Neil se lem-
brar de Andrew. Por instinto, Neil ficou tenso e ativou seu modo reativo.
Antes que seu corpo descobrisse o que fazer, Renee desviou o olhar inescru-
tável para Andrew.
Eles se encararam, silenciosos e imóveis, alheios aos olhares perplexos que
os companheiros trocavam entre si. Andrew permaneceu em silêncio, mas
Renee ergueu o queixo. Andrew murmurou em resposta e guardou a faca.
— Ele vai parar de gostar quando tiver uma faca enfiada na barriga — dis-
se.
Neil olhou para Renee de novo a tempo de ver a Outra-Renee desaparecer.
Uma máscara calma derreteu a expressão sombria em seu rosto e Renee
continuou exatamente de onde havia parado. Não mencionou o que acabara
de acontecer nem o questionamento óbvio no rosto de Dan, mas alertou su-
tilmente os amigos a voltarem a conversar.
Allison e Nicky voltaram juntos. Ela tinha as bochechas secas e os olhos in-
tensos cheios de determinação ao se sentar. O sorriso de Renee era encoraja-
dor, e Dan também sorriu em aprovação. Allison tamborilou impaciente
com as unhas nos braços da poltrona e olhou para Wymack, aguardando.
— Quem vamos eliminar primeiro?
— Primeira rodada: sudeste contra sudoeste. — Wymack pegou a pranche-
ta e virou a primeira página. — Os times ímpares jogam às quintas-feiras
neste ano, então temos as sextas-feiras. Dia 12 de janeiro, jogamos fora con-
tra a Universidade do Texas. A boa notícia é que Austin está fora do alcance
de mil e quinhentos quilômetros, o que significa que o conselho vai nos dei-
xar voar até lá.
“No dia 19 jogamos em casa, uma revanche contra Belmonte. No dia 26 de
janeiro, jogamos fora contra o Arkansas. São duas das três partidas para a
fase eliminatória. Belmonte está em quarto lugar, mas vocês se lembram de-
les no outono passado. SUA também está em quarto lugar e a UT, em segun-
do. Nos últimos cinco anos, ficaram em segundo lugar nas suas regiões.
“Essas três equipes já estiveram em campeonatos de primavera com resul-
tados variados. Sabem o que estão fazendo. Sabem o que é preciso pra se
classificar. Nós somos o elo fraco. Isso não significa que vamos ceder. Signi-
fica apenas que temos que ralar duas vezes mais pra manter o ritmo. Se esti-
verem dispostos, temos uma chance de ganhar.”
Ele tirou uma pilha de papéis da prancheta e os balançou para Matt, que se
levantou para os distribuir. Wymack havia preparado um documento com
informações dos adversários da primeira fase para a equipe. A primeira
página era o cronograma de outono da UT, completo com os resultados. As
observações na parte inferior detalhavam as últimas sete participações da
UT em campeonatos de primavera. Por três anos, chegaram até a terceira
rodada e depois foram eliminados. Neil virou a página e deu uma olhada na
escalação do time. As quatro páginas seguintes repetiram o mesmo padrão
para Belmonte e SUA.
— Na segunda, vamos estudar em detalhes o estilo de jogo deles e definir
as estratégias — disse Wymack. — Até lá, também vou ter cópias de todos os
jogos de outono gravados em CDs. Assistam durante o tempo livre se tive-
rem curiosidade. Com exceção de uma equipe, não vou usar o tempo de
treinamento de vocês pra mostrar mais do que alguns destaques.
“Temos um intervalo de uma semana entre a primeira fase e a primeira ro-
dada de partidas eliminatórias. A má notícia é que não vamos saber quem
vamos enfrentar até fevereiro, e a boa notícia é que, neste ano, os Três Gran-
des estão todos em vantagem. Precisam se enfrentar na terceira rodada. Pela
primeira vez em seis anos, um deles vai ser eliminado antes das semifinais.”
— Caramba. Que sorte — comentou Dan, surpresa.
— Aposto que Penn vai meter o pé — adivinhou Nicky.
— Não — protestou Kevin antes que os outros pudessem fazer suas apos-
tas. — Não importa quem vai ser eliminado, estamos longe de estar prontos
pra enfrentar seja quem for. Por quanto tempo Neil vai ficar no banco?
— Uma semana — comentou Neil, meio ressentido. — Abby não vai re-
considerar até a próxima terça.
— Foi bondade da parte dela. Eu teria colocado você no banco durante to-
da a primeira rodada — retrucou Dan.
— Estou bem pra jogar — afirmou Neil.
Kevin estendeu a mão por trás de Andrew para bater na nuca de Neil. Não
sobrara uma gota da estranha empatia do dia anterior; ele retribuiu o olhar
irritado de Neil com um olhar intenso e mordaz.
— Já avisei uma vez pra não mentir sobre sua saúde. Precisamos de você na
quadra, mas não se for pra fazer a gente perder. Do jeito que você está agora,
seria um desperdício de tempo.
— Não seria. Me coloca em quadra que eu provo — disse Neil.
— Cala a boca — rebateu Wymack. — Quando tiver menos de cinquenta
pontos no corpo, posso começar a pensar em deixar você entrar em quadra.
Se eu pegar você olhando pro equipamento antes disso, só de raiva vou te
deixar no banco por mais uma semana. Entendeu?
— Mas…
— Quero ouvir um “sim, treinador”.
— Treinador…
Neil esqueceu o resto do argumento quando Andrew beliscou seu pulso. A
dor subiu em seus dedos como fogo, e ele puxou a mão o mais rápido que
conseguiu. Olhou irritado para Andrew, que nem se dignou a devolver o
gesto. Neil abraçou a própria barriga para tirar a mão do alcance de Andrew
e voltou com mau humor a atenção para Wymack.
— Imagino que devo agradecer por isso — disse Wymack. — Andrew, você
está fora de forma? Não vi nenhuma academia listada entre as comodidades
de Easthaven.
— Não tinha. Eu improvisei — respondeu Andrew.
— E quero saber como — questionou Wymack, respondendo em seguida à
própria pergunta. — Não, não quero, a menos que haja um processo imi-
nente e eu precise ser alertado.
“Os treinos matinais vão ser novamente na academia. Neil, até você voltar
pra quadra, vai me encontrar aqui. Vou colocar você pra trabalhar assistindo
a vídeos e pesquisando a defesa da UT. Amanhã à tarde são as consultas de
começo de semestre com a Betsy. Vocês sabem como é: não podem ir com
alguém que joga na mesma posição. Dan vai arranjar os pares e dizer o ho-
rário pra vocês durante o treino matinal. Entendido?”
— Pode deixar — confirmou Dan.
— A última pauta oficial é o gerenciamento de danos. Estamos chamando
a atenção. Uma temporada ótima e muitas tragédias fizeram com que todo
mundo ficasse falando da gente, e quem sabe este ano as pessoas possam
mesmo torcer pelo azarão. O conselho quer que a gente dê pano pra manga
com mais publicidade. Esperem por mais câmeras nos jogos, mais entrevis-
tas e mais curiosidades em geral. Se eu pudesse proibir alguns de vocês de
abrir a boca em público, proibiria, mas isso está além do meu alcance. Ten-
tem se comportar sem abrir mão de parecerem estar confiantes com a tem-
porada. Acham que conseguem fazer isso?
— Você tira a graça de tudo, treinador — reclamou Nicky.
— Vou tirar muito mais graça se você fizer com que pareçamos um bando
de idiotas.. Mas não estou tão preocupado com você quanto com o nosso
mascote saco de pancadas aqui e a boca enorme dele. Alguém tem alguma
ideia pra fazer com que o Neil pareça um pouco menos com alguém que so-
fre violência dia sim, dia não?
— Eu cuido disso — ofereceu Allison, e olhou para Neil. — Passa lá no
nosso quarto depois da reunião.
— Eu ia comprar meus livros hoje — declarou Neil.
— Não foi um pedido. Você pode ir depois que eu terminar, a menos que
queira sair desse jeito — retrucou Allison.
— A gente promete que não vai perguntar do Natal — comentou Renee.
Ou ela não viu o olhar irritado de Allison por ter acabado com a chance de
conseguirem uma boa fofoca ou optou por não ligar. — Deve levar só uns
minutinhos.
Neil não confiava em Allison para não se intrometer, mas confiava em Re-
nee para intervir em seu nome quando isso acontecesse.
— Tá bom.
— Também preciso comprar minhas coisas. A gente pode ir junto quando
elas terminarem — sugeriu Nicky.
Wymack assentiu e analisou sua equipe.
— Alguém tem algo de relevância a acrescentar?
— Vamos precisar de uma prateleira ou algo do tipo pra colocar nosso tro-
féu do campeonato — respondeu Dan. — Podemos dar uma nova mexida
aqui?
— O conselho não vai nos deixar comprar nada até que a gente chegue pe-
lo menos até a segunda fase das eliminatórias. Mas boa tentativa — disse
Wymack.
— Quem precisa da permissão do conselho? — perguntou Allison. — Pode
deixar que eu compro, o conselho é pão-duro demais. A gente merece algu-
ma coisa bem cara. Matt, tire as medidas da caçamba da caminhonete. Pre-
ciso saber o que consigo colocar ali antes de começar a procurar a peça cer-
ta.
— Ah, que sonho ser jovem e podre de rica — comentou Nicky.
Allison analisou as unhas das mãos com uma expressão de puro tédio.
— Um sonho mesmo.
Nicky revirou os olhos, mas não pressionou.
— Mais alguma coisa? — perguntou Wymack. O som da porta principal se
abrindo anunciou o retorno de Abby, e Wymack balançou a cabeça. — Dei-
xa pra lá. A comida chegou. Detonem tudo e caiam fora do meu vestiário. Se
alguém precisar de mim, vou estar analisando a papelada.
Ele desceu de onde estava sentado e entrou em seu escritório. Abby cobriu
a mesa de café com recipientes de comida e distribuiu pratos de papel.
Quando terminou, ficou por perto por alguns instantes para dar as boas-
vindas para as Raposas, tranquila, mas calorosa. Neil estranhou ela não ficar
para perguntar sobre as férias de ninguém, mas o olhar desconfortável que
lançou para Neil e Andrew a caminho do escritório de Wymack o fez pensar
que estava tentando poupar os próprios sentimentos. Era uma consideração
desnecessária. Andrew provavelmente não se importava se as festas de fim
de ano dos companheiros de equipe tinham sido melhores que as dele e Neil
não invejava a felicidade de nenhum dos colegas.
O almoço foi tranquilo. Neil tirou o celular da tomada ao sair, e Andrew
não o deixou entrar no carro até que ligasse o aparelho. A equipe voltou pa-
ra a Torre das Raposas dividida em dois carros, e Neil seguiu as garotas até o
quarto delas. Allison o fez se sentar de lado no sofá enquanto revirava uma
mala. Trouxe uma sacola plástica e se sentou o mais perto possível dele. Neil
a observou colocar a maquiagem no escasso espaço entre eles.
— Teria sido melhor se você tivesse ido à loja com a gente — comentou Al-
lison. Parecia uma acusação, mas elas não o tinham chamado. Neil se per-
guntou se deveria pedir desculpas. Antes que se decidisse, Allison conti-
nuou: — Não importa. Comprei a linha inteira. Mais cedo ou mais tarde en-
contro o tom certo. Olha pra frente e me deixa trabalhar. Fica quieto e só
abre a boca se eu fizer alguma pergunta.
Ela ergueu duas embalagens ao mesmo tempo, uma de cada lado do rosto
dele, e verificou qual eram os tons mais próximos. Conseguiu descartar al-
guns por completo. Deixou outros reservados para analisar uma segunda
vez. Por fim, escolheu três, e começou a cobrir os hematomas no pescoço e
rosto de Neil. Renee e Dan deram a volta atrás do sofá para observá-la em
ação. Neil não arriscou irritar Allison olhando para elas, mas quase podia
ouvir Dan rangendo os dentes.
— Por quê? O que ele esperava ganhar? Por que ele fez isso? — perguntou
Dan, por fim.
— Dan — falou Renee, em uma repreensão suave. — A gente prometeu.
— Você prometeu — retrucou Dan.
Neil teria deixado as duas brigarem, mas não era a decisão dele que Dan
estava questionando.
— Para atingir o Kevin — respondeu, e Allison abaixou as mãos. Neil lan-
çou um olhar enviesado para Dan. — Você sabia? Já faz um ano que Kevin
está com as Raposas, mas ainda tem um quarto no Ninho dos Corvos. Riko
não jogou fora nem os trabalhos dele da faculdade. Interessante, né? Riko
ameaça e despreza o Kevin sempre que pode, mas não consegue esquecê-lo.
É tão obcecado pelo Kevin quanto o Kevin é por ele.
“E agora o Kevin está começando a se esquecer dele. Quando enfrentou os
Corvos no outubro passado, se importou mais com a gente do que com o fa-
to de ter Riko logo atrás dele. Escolheu a gente em vez deles naquele dia, e
isso é imperdoável. Riko é o rei. Não vai permitir ser dispensado, menospre-
zado ou derrotado. Então ele tirou as pessoas em quem Kevin estava se apoi-
ando. Queria que a gente sentisse medo e enchesse o Kevin de dúvidas.”
Dan bufou, soltando um risinho.
— Que babaca incompetente.
— Obrigado — falou Neil. Dan pareceu perdida, então ele acrescentou: —
Por não me perguntar se deu certo.
— Óbvio que não deu certo — respondeu Allison. — Você não tem medo
do Andrew. Por que teria medo do Riko? Ele é só mais uma criança mimada,
com a boca grande demais e que não sabe como lidar com a própria raiva.
Agora olha pra frente e me deixa trabalhar. Não falei que você podia olhar
pro outro lado.
Neil ficou parado até ela terminar. Allison se inclinou um pouco para trás
para analisá-lo minuciosamente, então se levantou para pegar um espelho
na mesa. Neil sentiu o estômago revirar quando ela trouxe o objeto de volta.
Ele o pegou da mão estendida da colega, mas o apoiou no colo. Allison fez
sinal para que ele desse uma olhada. Neil balançou a cabeça.
— Se você disse que está bom, então está bom — concluiu.
— Não tem medo do Riko, mas tem medo de olhar o próprio reflexo? —
Allison cruzou os braços, lançando um olhar de pena para ele. — Você é
mesmo fodido da cabeça. Sempre foi assim ou é culpa dos seus pais?
Dan interveio antes que Neil pudesse reagir.
— Ficou ótimo. Se alguém chegar muito perto, talvez até veja que você está
usando maquiagem, mas acho que ninguém vai perguntar. Daqui de longe,
não dá pra perceber. Você só vai ter que passar aqui depois dos treinos da
manhã pra se arrumar para as aulas até que os machucados melhorem. Você
tem aula às nove da manhã este semestre?
— Não, o horário ficou apertado demais no outono passado. — Para Alli-
son, Neil disse: — Obrigado. Nem teria pensado em tentar isso. Parece bem
útil.
— É. Aprendi a manter os paparazzi longe de mim quando comecei a jogar.
Não precisei mais fazer isso desde então, mas nunca esqueço de uma boa di-
ca de moda. — Allison deu de ombros. — Faz um teste e vai comprar seus li-
vros. Agora, de preferência. Dan está esperando pra assumir o controle do
seu quarto.
— Não é no quarto dele que estou interessada — disse Dan.
Neil colocou o espelho de lado e se levantou do sofá.
— Vou indo.
— Ah, e Neil? — Dan chamou quando ele estava perto da porta. Neil pou-
sou a mão na maçaneta e olhou para a colega. — Se você quiser falar sobre
isso, ou qualquer coisa, ou… — Ela gesticulou vagamente ao lado da cabeça,
talvez se referindo à mudança abrupta de aparência de Neil —, sabe que po-
de contar com a gente, né? Pro que precisar.
— Eu sei — respondeu Neil. — Talvez mais tarde. Me manda uma mensa-
gem quando eu puder voltar.
— Talvez sim, talvez não.
Neil balançou a cabeça e saiu. Fechou a porta e permaneceu no corredor.
Estava cansado, dolorido e nem um pouco ansioso para a semana fora da
quadra, mas por um momento nada disso importava.
— Estamos bem. Vamos ficar bem— disse para o corredor vazio.
Pelo menos as Raposas ficariam bem, e isso era mais do que o suficiente.
Neil esperava se sentir rejeitado ao ser banido da academia na quinta-feira
de manhã, mas Wymack deu a gravação de uma das partidas mais interes-
santes da UT para ele assistir. O treinador viu uma partida diferente em seu
escritório, e os dois se reuniram depois para discutir os estilos de jogo dos
atletas. As meninas foram buscá-lo no estádio para que Allison pudesse ma-
quiá-lo de novo. O processo foi mais rápido, uma vez que ela se lembrava os
tons corretos e já sabia o que fazer.
As aulas passaram que nem um borrão; Neil ficava mais tempo preocupa-
do em saber se as pessoas conseguiam enxergar os hematomas sob a maqui-
agem do que de fato prestando atenção nos professores. Foi um alívio quan-
do a segunda aula acabou às 13h45 e ele pôde voltar para a Torre das Rapo-
sas. Matt não estava quando Neil entrou na suíte. Ao dar uma olhada na gra-
de horária fixada na porta da geladeira, Neil percebeu que, quando o colega
voltasse, já estaria quase na hora de ele sair.
Neil esvaziou a mochila sobre a mesa. Os livros de matemática e espanhol
do último semestre ainda estavam guardados na prateleira debaixo da mesa.
Ele tirou as anotações de matemática, limpou a poeira da pasta e se sentou
para revisá-las. A maior parte era apenas vagamente familiar, mas quanto
mais páginas virava, mais se lembrava. Neil teve a sensação melancólica de
que sabia como passaria o fim de semana.
Às 14h45, se encontrou com o grupo de Andrew para uma carona até o es-
tádio. As Raposas costumavam ir para os treinos divididas em dois grupos,
mas estavam em três carros naquele dia, já que iriam para Reddin Hall du-
rante o treino da tarde. Andrew e Kevin seriam os primeiros a se consultar
com Betsy Dobson e iriam direto para lá, então Aaron e Nicky se amontoa-
ram na caçamba da caminhonete de Matt com Renee. Neil achava que não
conseguiria subir tão alto sem distender algum músculo, mas não precisou
se preocupar. Allison o colocou em seu conversível rosa assim que ele se
aproximou.
Neil se preparou para responder às perguntas, mas Allison não conversou
com ele durante todo o trajeto. Assim que saiu do carro, ele a agradeceu, e
recebeu um olhar perplexo como resposta. Ele esperou na calçada até que os
outros chegassem.
O treino da tarde foi tão horrível quanto o esperado. Neil pegou o CD que
Wymack lhe entregou, mas ficou parado no corredor, perdido enquanto os
companheiros trocavam de roupa. Ele os observou entrar no estádio para o
aquecimento e precisou de todas as suas forças para não segui-los. Usou o
autocontrole que tinha para se sentar no sofá, na esperança de que a partida
o distraísse. Só funcionou até que as Raposas voltassem ao vestiário para co-
locar o equipamento. Neil perdeu a noção do que estava acontecendo na tela
e olhou para a parede.
— Foco — disse Wymack, em algum lugar atrás dele.
— Estou focado — mentiu Neil.
— Acabaram de fazer um gol inacreditável e você nem se mexeu — rebateu
Wymack.
Neil olhou para a tela e viu que o placar tinha mudado. A torcida ao fundo
estava enlouquecida.
— Eu devia estar na quadra.
— Você vai estar. Na próxima semana, quando estiver menos machucado.
Ficar de fora alguns dias não vai matar você, mas talvez distender algum
músculo ou sofrer uma contusão irremediável, sim. Com certeza eu vou ma-
tar você se fizer a gente ser eliminado só porque é impaciente demais. Se es-
tiver muito ruim, tenta pensar o seguinte: seus colegas de equipe estão ten-
tando recuperar o atraso. Você teve duas semanas de prática durante as fé-
rias enquanto eles estavam na farra e enchendo a cara. Você tá na frente.
— O Kevin treinou — retrucou Neil. — Matt disse que ele foi pra quadra
do bairro todo dia.
— Isso é um em oito.
— Eles podem se dar ao luxo de tirar uma folga. São todos melhores do
que eu e têm reservas.
— Eles são mais experientes e têm habilidades diferentes das suas — retru-
cou Wymack. — Mas você está cem vezes melhor agora do que em maio.
Não se subestime. Agora, foco. Espero ter algumas anotações interessantes
da sua parte quando for embora hoje.
Neil pegou o lápis em um consentimento silencioso, e Wymack saiu.
Estava na metade do segundo jogo quando chegou a hora de ir para Red-
din. Dessa vez, seria o terceiro, em dupla com Aaron. Neil dirigiu e, de al-
gum jeito, conseguiu se segurar e não perguntar há quanto tempo ninguém
deixava Aaron ir no banco do carona. Não ganharia nada o provocando.
Para a maioria dos alunos, era cedo demais para começar a frequentar o
centro médico, então Neil encontrou um lugar para estacionar perto da por-
ta. Ignoraram a recepção e seguiram pelo corredor até as salas de terapia.
Antes que Neil perguntasse quem deveria entrar primeiro, Aaron continuou
até o escritório de Betsy, o mais longe. Neil afundou em uma das poltronas
enormes para esperar.
Não queria pensar na sessão, mas também não queria pensar nas Raposas
em quadra sem ele, então resolveu ler as mensagens que tinha recebido. A
maioria era de Nicky: comentários aleatórios sobre coisas que viu em Nova
York, perguntas sobre Millport e mensagens dispersas exigindo que Neil pa-
rasse de ignorá-lo. Pelo menos quatro mensagens consistiam apenas em
pontos de exclamação. Renee tinha puxado conversa duas vezes e Allison
uma vez, em uma mensagem em grupo no Natal.
Kevin havia enviado apenas uma mensagem para Neil, no dia em que ele
fora para Evermore. Alguns minutos antes e Neil a teria visto; fora enviada
na hora em que estava embarcando. Neil leu a mensagem de oito palavras
quatro vezes: “Jean vai ajudar você se você ajudar ele.”
Neil sentira grande antipatia por Jean nos primeiros dias, e a mensagem de
Kevin não teria sido de grande ajuda, mas pensando melhor, dava para en-
tender. Jean estava a par da verdade terrível sobre os Moriyama, uma vez
que havia sido vendido para Tetsuji anos antes para saldar uma dívida com
o chefe da família. Jean odiava o que a vida lhe reservara, mas já havia passa-
do do ponto em que era capaz de conceber como revidar. Não era um rebel-
de; era um sobrevivente. Fazia o que era necessário para chegar vivo ao fim
do dia.
Muitas vezes, isso significava cuidar de Neil. Jean permanecia em sua guar-
da inabalável enquanto Riko acabava com Neil sem parar, mas estava sem-
pre lá para ajudá-lo a se levantar depois. Eram parceiros na quadra dos Cor-
vos, o que significava que seus sucessos e fracassos impactavam diretamente
um no outro. Na melhor das hipóteses, Jean era um aliado questionável, mas
era o único Corvo que cuidara de Neil. Era egoísmo, não gentileza, mas fora
o bastante para manter Neil vivo.
Neil sobreviveu e conseguiu sair de lá. Kevin escapara quando sua vida de-
sabou. Jean ainda estava lá, segurando as pontas da melhor forma que con-
seguia. Neil se perguntou o que ele sentira ao ver os dois partirem: se os
considerava idiotas por desafiar o mestre ou se uma parte silenciosa dele es-
tava com inveja por terem encontrado uma escapatória. Neil se perguntou
se ele se importava. Era mais seguro e inteligente se não o fizesse. Se Jean
não estava disposto a lutar, se não tinha nada pelo que lutar, não havia nada
que pudesse ser feito por ele.
Uma memória vaga surgiu em sua mente, fora de alcance. Neil tentou se
concentrar, mas pensar em Jean fez sua mente voltar ao abuso de Riko. Ig-
norou tudo e pulou o resto das mensagens. Dan e Matt perguntaram várias
vezes como ele estava. A única mensagem de Aaron foi a última recebida
por Neil antes de todos mandarem as saudações de Ano-Novo: “Não conta
pro Andrew da Katelyn.”
Katelyn e Aaron namoraram escondido a maior parte do outono, evitando-
se durante as partidas e se encontrando na biblioteca entre as aulas. Quando
Andrew foi internado, Katelyn se tornou parte permanente da vida das Ra-
posas, jantando com Aaron várias noites por semana e aparecendo no dor-
mitório de vez em quando. Era estranho pensar que iam voltar a guardar se-
gredo, e Neil se perguntou como Katelyn reagira à decisão. Talvez Aaron te-
nha contado que Andrew não gostava dela. Talvez não tivesse ficado feliz,
mas ao menos estava sã e salva.
O clique de uma porta o tirou de seus pensamentos. Neil viu que horas
eram e fechou as mensagens. A relutância, mais do que a dor, fez com que
levasse um tempo maior para se levantar quando Aaron voltou. Betsy seguiu
Aaron até a entrada e cumprimentou Neil com um sorriso caloroso.
— Oi, Neil.
Ele a seguiu pelo corredor até o escritório e passou por ela para entrar pri-
meiro. A sala parecia a mesma de agosto, das almofadas arrumadas com
perfeição no sofá às estatuetas de cristal nas prateleiras. Neil se sentou no
sofá e observou enquanto Betsy fechava a porta. Depois, ela demorou um
tempinho para fazer um pouco de chocolate quente e olhou para ele.
— Tenho chá quente se você quiser. Lembro que você disse que não gosta-
va de doce.
— Estou bem.
Betsy se sentou à frente dele.
— Já faz um tempo. Como você está?
— As Raposas se classificaram para os campeonatos de primavera, Andrew
voltou e está sóbrio, e eu ainda sou o atacante titular. No momento não te-
nho do que reclamar.
— A propósito, parabéns pela classificação — cumprimentou Betsy. —
Confesso que não entendo muito de esportes, mas vocês têm jogadores mui-
to talentosos na equipe e o desempenho de vocês no ano passado foi mara-
vilhoso. Acho que vão ter uma temporada incrível. O Texas é um pouco lon-
ge demais para que eu possa ir, mas vou torcer por vocês no jogo em casa
contra a Belmonte. Estão prontos?
— Não, mas vamos chegar lá. Não temos escolha. No mês passado, a gente
disse que não iria perder uma partida sequer na primavera. Não mudamos
de ideia, mas acho que agora que janeiro chegou, está caindo a ficha do que
vamos enfrentar e do que é preciso pra vencer. Vamos jogar contra os me-
lhores do país, e não tem muito tempo que entramos na briga pra valer.
— É uma forma bem madura de ver as coisas. E também — Betsy abriu um
pouco as mãos enquanto procurava as palavras —… um discurso muito
pronto. Parece mais uma frase de efeito que você diria a um repórter do que
algo que possa admitir pra mim. Esperava que a gente já tivesse passado da
etapa das frases prontas. Lembre-se que não estou aqui para julgar nada do
que você falar.
— Eu sei — disse Neil, e deixou por isso mesmo.
Betsy inclinou a cabeça e seguiu em frente.
— Você mencionou a volta de Andrew como algo positivo. Sei que você
apoiou minha decisão quando pedi que ele fosse internado em novembro.
Ainda deve ser muito cedo pra dizer, mas como está lidando com a realida-
de da sobriedade dele? Alguma preocupação?
— Não vou falar do Andrew com você.
— Estou tentando falar de você. A sessão é sobre você — retrucou Betsy.
— Isso não é uma sessão de verdade. É uma reunião informal e só estou
aqui porque o treinador disse que a gente tem que vir falar com você uma
vez por semestre. Nenhum de nós dois ganha nada com isso. Você está per-
dendo um tempo comigo que seria mais bem empregado com pacientes de
verdade, e eu estou perdendo o treino.
— Não considero isso uma perda de tempo, mas peço desculpas por estar
diminuindo seu tempo na quadra. — Ela esperou alguns instantes para que
ele respondesse, então acrescentou: — aliás, feliz Ano-Novo. Tinha me es-
quecido de dizer isso. Como foram as festas?
Era essa a pergunta que ele esperava e temia. Não sabia o que os compa-
nheiros de equipe haviam dito a ela. Não falaria a verdade, mas se mentisse
sobre o que acontecera após os outros terem contado a verdade, ela começa-
ria a questionar tudo o que ele dissera até aquele ponto. Neil refletiu as pos-
síveis consequências e decidiu seguir em frente. Afinal, ele só precisava ver
Betsy uma vez por semestre; aquela era a última vez que teria que se sentar
com a terapeuta cara a cara. Ela podia pensar o que quisesse dele.
— Foram tranquilas — respondeu Neil.
— Costuma nevar no Arizona?
— De vez em quando. Eles acham que quatro centímetros de neve já é uma
tempestade.
— Nossa. — Betsy riu. — Lembro de quando nevou um pouco aqui, alguns
anos atrás. Passei por uma menina a caminho do campus. Ela falava ao celu-
lar; tinha ligado pra alguém só pra contar que estava nevando. Parecia tão
animada com aquele quase nada de neve que me perguntei se ela já tinha
visto a neve antes. Queria perguntar de onde ela era, mas pareceu invasivo.
Não havia uma pergunta, então Neil ficou em silêncio. Betsy também, mas
tomou um gole do chocolate. Neil resistiu ao impulso de olhar para o reló-
gio. Não queria saber quão pouco tempo havia passado.
— Não vai falar comigo? — perguntou Betsy, depois de um tempo.
— O que você quer que eu diga? — respondeu Neil.
— Qualquer coisa. É uma sessão pra você.
— Qualquer coisa? — repetiu Neil.
Quando ela assentiu, encorajando-o, ele começou a contar sobre os jogos
da UT que estava assistindo. Era impessoal e definitivamente não era o que
ela esperava, mas Betsy não o interrompeu e teve a boa vontade de não pare-
cer entediada. Bebia o chocolate quente e ouvia como se fosse a história
mais importante que ouvira o dia inteiro. De alguma forma, isso fez Neil
gostar ainda menos dela, mas ele não parou.
Por fim, estava livre para ir embora. Saiu do consultório, encontrou Aaron
na sala de espera e foi para o carro. Estavam a meio caminho do estádio
quando Aaron falou:
— Eu não contei pra ela.
Só estavam os dois no carro, mas levou alguns instantes até que Neil perce-
besse que aquela fala era direcionada a ele. Olhou para Aaron, que olhava
pela janela do carona.
— Nem eu — disse Neil.
— Ela te perguntou do Andrew.
Não era uma pergunta, mas Neil respondeu:
— Perguntou. Pra você também?
— Ela não me pergunta mais nada. Sabe que não adianta. Eu nunca abri a
boca para falar nada lá — comentou Aaron.
Neil se imaginou sentado no mais completo silêncio, enquanto Betsy taga-
relava sobre o que quer que fosse. Foi ao mesmo tempo inspirador e pertur-
bador. Ele não sabia se conseguiria aguentar meia hora daquilo.
— Queria ter pensado nisso. Acabei fazendo um resumo pra ela de todos
os méritos da UT.
— Previsível — disse Aaron.
Neil se perguntou como Andrew matava o tempo. No período de medica-
ção, foi forçado a ter sessões semanais com Betsy. Não sabia se precisaria
continuar. Estava mais interessado em saber como a visão de Andrew sobre
Betsy iria mudar. Ele parecera estranhamente tolerante com ela no ano ante-
rior, a ponto de admitir ter recebido mensagens dela fora das sessões. Era
bem capaz que remédios que causavam euforia tornassem mais fácil tolerar
qualquer pessoa.
Neil pegou a mesma vaga de estacionamento em que havia encontrado o
carro. Voltou para seu lugar no sofá e Aaron continuou até o vestiário para
colocar o equipamento de volta e ir para a quadra. Neil tentou não se res-
sentir da boa saúde do colega e quase conseguiu. A partida da UT foi uma
distração decente da irritação injustificada, mas Neil perdeu a noção do jogo
quando Renee e Allison passaram alguns minutos depois. Ele observou as
duas andando pela sala, pensou duas vezes no que faria e então pausou o jo-
go.
— Renee?
As duas pararam, mas Allison não ficou por muito tempo. Quando saiu,
Renee foi se sentar com Neil, perto o bastante para oferecer um conforto si-
lencioso, mas longe o suficiente para que Neil conseguisse respirar.
— O que eu disse ontem? Por que você reagiu daquele jeito? — perguntou
ele.
Não demorou muito para ela se lembrar.
— Sobre as facas, você quer dizer.
Quando Neil assentiu, ela virou as mãos para analisar as palmas.
— Lembra que contei que eu fazia parte de uma gangue? Tinha um ho-
mem lá que fazia de tudo pra me machucar. Ele gostava de facas e tinha
umas seis por perto o tempo todo. Eu não conseguia me defender pelos mei-
os normais, então aprendi a lutar com facas também. Pratiquei por um ano
até que ganhei.
“Ganhei.” Renee ficou em silêncio, talvez refletindo sobre a palavra escolhi-
da por alguns instantes. “Ele não sobreviveu à luta. O chefe ajudou a montar
uma cena com o corpo pra que a culpa caísse em uma gangue rival, e eu fui
promovida. Mantive as facas durante meu julgamento e minha adoção.
Queria me lembrar do que sou capaz de fazer… e do que consegui superar.”
— Você fez o que tinha que fazer. Se ele estivesse vivo, teria ido atrás de vo-
cê — afirmou Neil.
— Eu sei — disse Renee baixinho. — E tiveram outras meninas antes de eu
chamar a atenção dele; teriam outras meninas depois que eu fosse embora.
Mas não fiz isso por um bem maior. Fiz porque ele me ofendeu pessoalmen-
te e eu não queria mais ter medo. Lamento o que isso fez comigo mais do
que lamento ter matado. Não fiquei perturbada quando o vi morrer. Estava
orgulhosa de mim mesma.
“Contei tudo pro Andrew. No dia seguinte, enquanto eu estava na aula, ele
invadiu meu quarto e pegou minhas facas. Quando pedi de volta, ele disse
que eu estava mentindo pra mim mesma. Se quisesse me lembrar, não fica-
ria escondendo as facas no armário como um segredo vergonhoso que não
poderia revisitar ou deixar de lado. Elas não estavam me fazendo bem, então
disse que ficaria com elas até eu precisar usar de novo.
“Deixei ele ficar com as facas porque confiei que não usaria. Achei que ele
entendia o que eram: não mais armas, mas um símbolo do que nós supera-
mos. Não perguntei os motivos dele. Sabia que, caso quisesse me contar, te-
ria contado.”
A resposta óbvia era Drake, mas a conta não fechava. Neil revirou a histó-
ria na cabeça, tentando desvendá-la, e pensou nas cicatrizes nos antebraços
de Andrew. A quem ele teria sobrevivido: a Drake ou a si mesmo?
Neil não ia compartilhar o palpite com Renee, então perguntou:
— Então aquelas facas que ele leva pra todo lugar são suas?
— Eram minhas — corrigiu Renee. — Ele estava certo; não preciso mais
delas. Se você precisar, ele vai entregá-las pra você e posso te ensinar a usá-
las.
Ela não estava mais sorrindo. Neil estudou sua expressão calma. Dava para
ver que falava sério. Se ele pedisse, Renee daria uma pausa em sua fé na hu-
manidade e piedade cristã para mostrar como cortar um homem inteiro. Ele
estava começando a entender por que Andrew gostava dela. Era louca a
ponto de ser interessante.
— Obrigado — disse Neil —, mas não. Eu não quero ser como… ele.
Neil não disse que já havia usado facas antes; ninguém poderia crescer co-
mo um Wesninski sem que alguém colocasse uma lâmina na sua mão. Na-
than não tinha tempo nem paciência para ensinar o filho, mas encarregou
dois de seus capangas da tarefa. Felizmente, Neil saiu de casa antes que pas-
sasse da fase de cortar animais mortos em pedacinhos.
— Claro — concordou Renee, então esperou um momento para ver se ti-
nha mais alguma coisa a ser dita e se levantou em seguida. — Não quero
deixar Allison esperando, mas se quiser conversar depois, já sabe onde me
encontrar.
— Ok — disse Neil e, quando Renee chegou à porta antes, teve que per-
guntar: — Como o Andrew está? Sem os remédios dele, quer dizer.
Renee olhou para Neil e sorriu.
— Vai lá ver. Acho que o treinador não vai se importar.
Neil ficou onde estava até que ela foi embora e a porta se fechou. Olhou do
bloco de notas para o jogo pausado, depois colocou as coisas de lado e se le-
vantou. Quando ele passou pela porta dos fundos e seguiu para a área técni-
ca, foi recebido pelo som de uma bola quicando na parede. Wymack estava
parado perto do banco da equipe da casa, observando os jogadores treina-
rem e fazendo anotações. Estava de costas, e o barulho que escapava pelas
aberturas da quadra ajudava a encobrir o som suave dos passos de Neil, que
ficou a uma distância segura e observou os companheiros de equipe.
Pareciam tão poucos por estarem desfalcados por três, mas jogavam com a
ferocidade de uma equipe maior. Dan e Kevin atacavam juntos contra os
três defensores e, apesar de estarem em menor número, a briga era boa. Ke-
vin até conseguiu ultrapassar Nicky e Aaron algumas vezes para arremessar
no gol. Andrew defendeu todos, mas foram necessárias algumas tentativas
até que Neil percebesse o que ele estava fazendo. Em vez de jogar a bola de
volta para a quadra como de costume, mirava em Kevin. Mais especifica-
mente, nos pés dele. Kevin tinha que mexer os pés com agilidade para evitar
tropeçar. Andrew fez o mesmo com Dan quando ela finalmente passou por
Matt para arremessar. Ela desviou, mas por pouco, e Matt teve que segurá-la
quando ela tropeçou.
Wymack xingou e se virou para colocar suas coisas no chão. Ao fazer isso,
avistou Neil e hesitou com a prancheta a meio caminho do banco. Neil espe-
rava que ele o mandasse voltar depressa ao vestiário, mas o treinador estalou
os dedos e apontou o polegar em direção ao portão da quadra.
— Diz pro seu psicopata de estimação pra parar com isso antes que ele aca-
be mutilando alguém.
— Não acho que ele vai me ouvir — respondeu Neil.
— Nós dois sabemos que vai. Agora anda.
Wymack bateu na parede, pedindo uma pausa no treino, enquanto Neil se
dirigia para o portão. Entrou em quadra e foi até o gol. Andrew colocou a
raquete atravessada sobre os ombros ao vê-lo se aproximar. Neil sabia que
não devia dar bronca no goleiro em frente a uma plateia, então parou o mais
perto que pôde e falou o mais baixo possível.
— O treinador quer saber o que você tem contra os atacantes.
Andrew olhou para além de Neil, na parede da quadra.
— Fala pra ele mesmo me perguntar.
— Ou você pode dizer pra mim, já que estou aqui — rebateu Neil. — So-
mos nove agora. Se a gente perder mais alguém, podemos dar adeus aos
campeonatos da primavera. Você sabe disso.
Neil esperou um pouco, mas é óbvio que não foi o suficiente para obter
uma reação. Andrew já parecia entediado com a conversa. Neil colocou uma
das mãos na frente do rosto de Andrew, impedindo-o de olhar para Wy-
mack, e esperou até que ele retribuísse o olhar.
— Quero ver nossa equipe nas finais. Quero que a gente consiga finalmente
derrotar os Corvos. Depois de tudo o que o Riko fez com a gente, você não
quer isso também?
— Você diz “quero” com uma tranquilidade, sendo que eu já falei mil vezes
pra você que não quero nada.
— Deve ser porque você está gastando toda sua energia em não querer na-
da. Mas se não consegue entender esse conceito simples, vou colocar isso em
termos que você entenda: não podemos perder o próximo jogo. É assim que
vamos alcançar o Riko. Essa é a única coisa que a gente pode tirar dele e que
de fato vai doer. Vamos arrancar o status dele e mostrar por que ele deveria
ter sentido medo da gente esse tempo todo.
— Seus colegas de equipe ainda acham que você é quietinho? — perguntou
Andrew.
— Nossos colegas de equipe — retrucou Neil — querem isso tanto quanto
eu. Para de menosprezar todo mundo antes de a gente ter uma chance de
tentar.
— Não acredito em dar chances às pessoas.
— Eu também não acreditava até vir para cá — devolveu Neil. — Eu te dei
uma chance quando decidi ficar. Você me deu uma chance quando confiou
que eu cuidaria do Kevin. É mesmo tão difícil apoiar os outros quando eles
estiveram com você esse tempo todo?
— O que você vai me dar em troca da minha cooperação? — perguntou
Andrew.
— A vingança não é boa o suficiente? O que você quer?
Andrew não pensou duas vezes.
— Quero ver suas cicatrizes.
Não era o que Neil esperava, e deve ter sido por isso que Andrew pediu.
Neil abriu a boca para protestar, mas as palavras morreram na garganta. Wy-
mack e Abby já tinham visto, e as Raposas sabiam que existiam. Em novem-
bro, ele havia colocado a mão de Andrew em sua pele arruinada para ganhar
a confiança dele. Neil havia prometido a Andrew as partes que faltavam de
sua verdade se sobrevivessem até o fim do ano. Não tinha achado que An-
drew iria se contentar em apenas sentir as cicatrizes, e não vê-las com seus
próprios olhos.
— Quando? — disse ele, finalmente.
— Vamos pra Colúmbia amanhã — avisou Andrew. — Agora sai daqui e
diz pro treinador fazer o trabalho que ele é pago pra fazer. Não vou deixar
ele se safar de uma coisa dessas de novo.
Neil não entendeu, mas assentiu e saiu. As Raposas esperaram até que fe-
chasse e trancasse os portões, e então retomaram o jogo. Na próxima vez
que Kevin conseguiu arremessar, Andrew rebateu para o lado oposto da
quadra. Neil teve a sensação de que as Raposas logo se arrependeriam de sua
intervenção. Com certeza era mais seguro dessa forma, mas agora Dan e Ke-
vin tinham que correr atrás da bola a cada vez que Andrew a rebatia.
Neil voltou para perto de Wymack e transmitiu a mensagem de Andrew.
Acreditava que o treinador ignoraria a ameaça sem pestanejar. Não esperava
a risada divertida e seca de Wymack.
— Só me promete que isso não vai ser um problema.
— O quê? — perguntou Neil.
— Não sei dizer se você está fingindo não entender pra tentar me sacanear
ou se só é burro mesmo — disse Wymack. Quando Neil se limitou a olhar fi-
xamente para ele, o treinador esfregou as têmporas como se estivesse ten-
tando aliviar uma dor de cabeça. — Eu teria pena de você, mas Andrew está
certo. Não ganho o bastante pra me envolver nisso. Descobre você sozi-
nho… no seu tempo. Você deveria estar estudando a UT agora.
Wymack pegou a prancheta e começou a rabiscar notas. Neil olhou dele
para a quadra.
— Vaza — mandou Wymack.
Neil reprimiu as perguntas e voltou para o vestiário.
Depois do treino na sexta-feira, os veteranos saíram para jantar, mas passa-
ram primeiro pelos dormitórios para trocar de roupa. Andrew apareceu no
quarto de Neil pouco tempo depois de Matt sair, com uma sacola de roupas.
Neil ainda não entendia por que os primos insistiam para que usasse algo
novo toda vez que iam para Colúmbia, mas já havia passado da fase de fazer
perguntas. Ele levou a bolsa para o quarto para se trocar. Quando se virou
para fechar a porta, Andrew estava logo atrás. Não disse nada, mas apontou
para a camisa de Neil.
Neil hesitou, então colocou a bolsa na cama de Matt e precisou se esforçar
para tirar a camisa. Estava ficando um pouco mais fácil a cada dia, mas doía
quando ele levantava muito os braços e, quando se virava, sentia um puxão
nos pontos. Tirou a camisa pela cabeça e foi até a altura dos cotovelos, até
que Andrew se cansou de vê-lo se contorcer e puxou o restante do tecido pa-
ra cima. Jogou a peça de roupa para o lado sem ver onde caía. Estava mais
interessado nas cicatrizes e nos hematomas que cobriam a parte da frente do
corpo de Neil.
Andrew pegou as bandagens nos pulsos de Neil, que o deixou rasgar a fita e
a gaze. As feridas pareciam piores do que quando ele havia pousado na Ca-
rolina do Sul. Abby estava certa; ele precisava deixar os machucados respira-
rem. Neil levantou o olhar das linhas feias dos pulsos para o rosto de An-
drew. Não tinha certeza do que estava procurando: um indício da violência
de quarta-feira ou da rejeição insensível e risonha do último semestre. Não
encontrou nenhum dos dois. Andrew parecia estar a quilômetros de distân-
cia de tudo isso, desinteressado e despreocupado.
No ombro direito de Neil havia uma cicatriz de queimadura, cortesia de
uma pancada de ferro em brasa. Andrew colocou a mão esquerda nela, a
ponta dos dedos se alinhando à perfeição nas protuberâncias que os buracos
do ferro haviam deixado para trás. Seu polegar direito encontrou a pele que
enrugara por causa de uma bala. Neil tinha dormido com o colete à prova de
balas por quase um mês depois daquele tiro, pois ficara com muito medo de
tirá-lo. A mãe teve que ameaçá-lo para que tirasse o colete pelo menos para
tomar banho.
— Alguém atirou em você — disse Andrew.
— Eu falei que tinha alguém atrás de mim — respondeu Neil.
— Isso — Andrew enfiou os dedos com mais força na marca de ferro —
não é uma marca de alguém que está fugindo.
— Isso é obra do meu pai. Umas pessoas vieram fazer perguntas sobre o
trabalho dele. Eu não disse nada, mas aparentemente não pareci tão confiá-
vel, sentado e quieto. Ele me bateu assim que os caras saíram. Por isso disse
pra você me chamar de “Abram”. Não quero ficar repetindo o nome do meu
pai porque não quero que ninguém me chame daquele jeito. Odeio ele.
Andrew ficou em silêncio por um longo tempo, então baixou a mão para
os cortes na barriga de Neil.
— Renee disse que você recusou nossas facas. Um ímã de assassinatos que
nem você não deveria andar por aí desarmado.
— E não ando. Achei que você ia cuidar de mim este ano — disse Neil. An-
drew olhou para ele de novo, com uma expressão enigmática, mas não disse
nada, então Neil continuou: — Você não é um sociopata de verdade, né?
— Eu nunca disse que era.
— Você deixa que eles falem isso sobre você. Podia corrigir.
Andrew descartou o comentário.
— O que as pessoas querem pensar de mim não é problema meu.
— O treinador sabe?
— Óbvio que sim.
— Então seu remédio…? Aqueles comprimidos eram mesmo antipsicóti-
cos? — perguntou Neil.
— Você faz perguntas demais — retrucou Andrew, e deixou Neil sozinho
para se vestir.
Depois que terminou de se trocar, Neil encontrou o grupo de Andrew no
corredor. Nicky deu um grande sorriso, aprovando o caimento das roupas
novas. Aaron nem olhou. Kevin analisou o rosto de Neil em busca de man-
chas na maquiagem, mas não disse nada. Andrew esperou apenas até ouvir a
fechadura deslizar e foi para as escadas. Tinha dois cigarros acesos antes de
chegar ao patamar do segundo andar, e passou um deles para Neil por cima
do ombro. Neil o segurou até chegarem no carro.
Nicky olhou para Neil de um jeito estranho enquanto abria a porta de trás.
— Você não fuma.
— Não — concordou Neil, e esfregou o cigarro na sola do sapato. Guardou
a outra metade para mais tarde. Sentou-se no banco do carona e colocou o
cinto, sem dar uma chance para Nicky fazer outra pergunta. Os outros en-
traram no carro logo depois, e Andrew pegou a estrada assim que a última
porta foi fechada.
Neil adoraria nunca mais ter que pisar em Colúmbia depois do que aconte-
cera em novembro, mas os outros pareciam não ligar. Pararam no estaciona-
mento do Sweetie’s como se nada de ruim tivesse acontecido naquela cidade
e ocuparam o primeiro sofá disponível. Nicky tagarelava sem parar sobre
suas aulas, mas Neil não conseguia se concentrar no que ele dizia. Deixou as
palavras entrarem por um ouvido e saírem pelo outro e tomou seu sorvete
em silêncio.
O Eden’s Twilight estava cheio como sempre. Um segurança sentado num
banquinho verificava as identidades e o outro tomava conta da entrada. O
primeiro se levantou num pulo ao ver o carro de Andrew encostar no meio-
fio. Neil ficou para trás, enquanto Nicky e Aaron recebiam vigorosos apertos
de mão e tapinhas nas costas. Um dos seguranças disse algo para Aaron em
voz baixa, mas com uma expressão intensa. Pelo aceno agradecido de Aaron,
Neil presumiu que fosse uma promessa de apoio no julgamento que se apro-
ximava. Ele olhou para Andrew, que esperava no banco do motorista por
um passe de estacionamento VIP, mas o gêmeo observava o tráfego que se
aproximava em vez do que estava acontecendo na porta. Finalmente Nicky
conseguiu o que queria com um dos seguranças e voltou com um passe.
Andrew saiu, e os outros entraram. Neil seguiu Kevin por entre a multidão,
passando por corpos suados e estremecendo um pouco por causa do som
que ecoava dos alto-falantes. Não havia mesas livres, então eles acabaram se
acomodando no balcão do bar. Não demorou muito para Roland localizá-
los e quase deixar a coqueteleira cair. Ele se aproximou assim que terminou
os pedidos.
— Puta merda. Estava começando a achar que não ia ver vocês de novo —
disse ele.
— Como se a gente conseguisse ficar longe pra sempre. É que não seria o
mesmo sem o Andrew — respondeu Nicky.
— Andrew foi liberado, então? — perguntou Roland, visivelmente aliviado.
— Ficamos supermal quando soubemos da notícia. Quem dera desse pra
ajudar de algum jeito, com qualquer coisa. Você — Ele olhou para Aaron —
é um herói. Você está seguro aqui, entendeu? Se tentarem bancar qualquer
uma dessas acusações de merda, a gente vai marchar até o tribunal em pro-
testo. Aquele cara teve o que merecia e todo mundo sabe disso.
— Obrigado — respondeu Aaron.
Roland serviu uma rodada de doses. Tinha visto Neil algumas vezes antes e
sabia que ele não bebia, mas posicionou um dos shots a meio caminho, caso
ele estivesse a fim hoje. Neil deixou o copo onde estava e observou enquanto
os outros bebiam. Roland já tinha uma segunda rodada servida quando An-
drew apareceu e deslizou perfeitamente para o espaço estreito entre Kevin e
Neil.
— Bem-vindo de volta à terra dos livres. Eu diria “e sóbrios”, mas sei que
não vai durar muito. Saúde — disse Roland.
Eles acabaram com as doses sem nenhum esforço. Roland começou a arru-
mar a bandeja de sempre. Metade do pedido estava pronto quando uma me-
sa finalmente foi liberada. Neil ficou no balcão esperando com Andrew, en-
quanto os outros foram se sentar. Quando viu o copo intacto, Andrew bebeu
a dose de Neil. Roland fez uma pausa entre os drinques para servi-lo de no-
vo. Dessa vez, deslizou o copo um pouco mais perto de Neil.
— Dá uma relaxada. É uma ocasião especial — disse Roland.
— É o fim de sete semanas de trabalho pesado — retrucou Neil.
Andrew não perdeu tempo discutindo. Bebeu a segunda dose de Neil, e
Roland não tentou servir uma terceira. Quando o barman terminou de pre-
parar os drinques, Neil abriu caminho para Andrew levar a bandeja. Os ou-
tros começaram a beber, mas Andrew estava mais devagar do que de costu-
me. Neil presumiu que a tolerância dele estaria baixa após dois meses sem
álcool. No ano anterior, Andrew dissera que sempre soubera quais eram
seus limites. Isso fez Neil se perguntar se Aaron e Nicky já tinham visto An-
drew bêbado. Por algum motivo, duvidava disso.
Eles consumiram o pó de biscoito em grupo, e Aaron e Nicky desaparece-
ram. Kevin continuou com as bebidas. Andrew observava a multidão e bebia
a passos de tartaruga. Neil não sabia o que dizer a nenhum deles, então se
ocupou. Trocou os copos ainda cheios na bandeja por aqueles vazios espa-
lhados pela mesa e se dirigiu ao bar. Roland pegou a bandeja assim que con-
seguiu. Neil cruzou os braços no balcão e observou Roland preparar a próxi-
ma rodada.
— Então Andrew finalmente cedeu à tentação, hein? Tá bem feio isso aí —
comentou Roland.
Neil quase levou a mão ao rosto, mas Roland estava olhando para seus pul-
sos. A camisa nova tinha mangas compridas, mas era de um material fino
feito para permitir a pele respirar em um clube lotado. As mangas desliza-
ram um pouco para cima quando ele cruzou os braços. Puxou os punhos do
tecido de volta para baixo, sabendo que era tarde demais para esconder os
machucados quase cicatrizados. Ao fazê-lo, percebeu que as palavras de Ro-
land escondiam um riso.
O barman deu um sorriso de desculpas quando Neil fez uma careta.
— Eu me perguntei se estar limpo curaria aquela regra dele de não encos-
tar. Faz sentido que não, agora que a gente sabe do… — Roland balançou a
cabeça, visivelmente tentando reprimir a raiva. — Não sei se digo “obrigado”
por matar minha curiosidade ou “desculpa” pela sobriedade ter obviamente
acentuado o problema. Só pra você saber, eles fazem algemas acolchoadas.
Você devia procurá-las.
— O problema — Neil repetiu, perdido. — Que regra de não encostar?
Roland pareceu assustado, depois confuso.
— Você não sabe? Mas então…
— Isso aconteceu em uma briga — explicou Neil. — Por que o Andrew fa-
ria isso comigo?
— Ah, você não sabe — repetiu Roland, não mais uma pergunta, mas uma
forma de se retirar da conversa. — Quer saber, vamos esquecer que eu disse
qualquer coisa. Não, sério — insistiu, quando Neil abriu a boca para argu-
mentar. — Ei, aqui. Suas bebidas estão prontas. Tenho que atender os outros
clientes.
Ele desapareceu sem dar uma chance para Neil dizer mais do que um “quê”.
O rapaz ficou olhando para o barman, mas não houve respostas. Pegou a
bandeja com as mãos trêmulas e a levou de volta à mesa. Queria mandar Ke-
vin embora, mas Andrew nunca o deixaria ficar longe sem alguém de olho
nele. Por sorte, Kevin não falava uma sílaba de alemão. Neil se sentou de la-
do, de frente para Andrew, e disse:
— Por que Roland acha que você está me amarrando?
Andrew hesitou com o copo a meio caminho da boca. Olhou para as mãos
de Neil, que apertavam a beirada do assento entre os joelhos. Neil não olhou
para ver se os machucados estavam à mostra de novo. Não conseguia desvi-
ar o olhar do rosto de Andrew. Por fim, o outro apoiou a bebida ainda cheia
na bandeja. Não largou o copo, e os dedos tamborilavam em um ritmo irre-
gular. Levou uma eternidade até que parasse de olhar para as mãos de Neil e
se concentrasse em seu rosto.
— Ele deve achar que você é tão ruim em seguir instruções quanto ele é.
Roland sabe que não gosto de ser tocado.
— Isso não responde à minha pergunta.
— É a resposta — rebateu Andrew. — Refaz a pergunta se não gostar.
— Quero jogar mais uma rodada. O que o treinador não é pago pra fazer?
Andrew se virou para ficar de frente para Neil e apoiou o cotovelo no en-
costo da cadeira. Depois colocou o rosto na mão e olhou para Neil. Não pa-
recia nem um pouco incomodado com o interrogatório repentino, mas
aquela calma não adiantou de nada para aliviar o frio que Neil sentia na bar-
riga.
— Quando o treinador assinou com a gente, prometeu que não ia se meter
nos nossos assuntos pessoais. Disse que o conselho pagava ele pra ser nosso
treinador, nada mais e nada menos.
Essa resposta não foi muito melhor. Neil não tinha certeza se deveria conti-
nuar pressionando, mas se não descobrisse a verdade naquele momento, sa-
bia que nunca o faria.
— Não achei que eu era um assunto pessoal. Você me odeia, lembra?
— Cada centímetro de você — respondeu Andrew. — Isso não quer dizer
que eu não te chuparia.
O mundo pareceu sair dos trilhos por alguns instantes. Neil firmou os pés
com mais força no chão para não cair.
— Você gosta de mim.
— Eu odeio você — corrigiu Andrew, mas Neil mal ouviu.
Por um momento desorientador, ele entendeu. Lembrou-se da mão de An-
drew cobrindo sua boca na Exites enquanto ele se retirava da conversa. Pen-
sou em Andrew cedendo à tentação e segurando-o quando Neil mais preci-
sou dele. Andrew o chamara de interessante e perigoso e lhe dera as chaves
da casa e do carro. Havia confiado Kevin a Neil porque Kevin era importan-
te para os dois e sabia que Neil não iria decepcioná-lo.
Neil tentou juntar as peças, mas quanto mais tentava, mais entrava em pa-
rafuso. Não fazia sentido. Ele não sabia o que pensar. Podia ser mentira, mas
Neil sabia que não era. Andrew era um monte de coisas desagradáveis, mas
um mentiroso patológico não era uma delas. A honestidade convinha a An-
drew porque, no fundo, ele gostava era de provocar, e suas opiniões muitas
vezes eram polêmicas.
Neil precisou de três tentativas para conseguir falar.
— Você nunca disse nada.
— E por que diria? — Andrew deu de ombros. — Não vai dar em nada.
— Nada — repetiu Neil.
— Sou autodestrutivo, não burro. Sou mais esperto do que isso.
Neil deu a única resposta possível.
— Tá bom.
Mas não soava bom, e ele não se sentia bem. O que deveria fazer com uma
informação daquelas? Estaria morto em quatro meses, cinco se tivesse sorte.
Não deveria ser isso para ninguém, muito menos para Andrew. Ele dissera o
ano inteiro, dissera na cara de Neil naquela mesma semana que não queria
nada. Neil não deveria ser a exceção a essa regra.
Andrew bebeu sua dose e colocou o copo sem cuidado algum de volta na
bandeja. Tirou o maço de cigarros do bolso de trás enquanto se levantava e
o abriu para verificar o conteúdo.
Neil deveria deixá-lo sair sem contestar, mas disse:
— É sua vez.
Andrew sacudiu um cigarro na mão e o colocou entre os lábios. Guardou o
maço e olhou para Neil.
— Não preciso fazer isso agora.
Neil ficou olhando muito tempo depois de Andrew ter desaparecido na
multidão. Não percebeu que Kevin estava dizendo seu nome até que Kevin
empurrou seu ombro para chamar a atenção de Neil. Ele se sobressaltou co-
mo se tivesse levado um tiro e olhou para Kevin. O que Kevin viu no rosto
de Neil foi o suficiente para matar sua curiosidade. Ele fechou a boca deva-
gar, retirou a mão e voltou a beber.
Andrew só voltou uma hora depois. Permaneceu em silêncio pelo resto da
noite, e Neil não viu problemas em respeitar seu espaço. Por fim, Aaron e
Nicky voltaram, bêbados e exaustos, e todos foram embora juntos. A casa
dos primos não era longe, mas não havia camas suficientes para os cinco.
Kevin ocupou o sofá, então Neil se enrolou em uma poltrona com um co-
bertor extra.
Ele levou horas para conseguir parar de pensar e pegar no sono.
Na segunda-feira, Kevin voltou a treinar de noite, mas se recusou a levar
Neil junto. Na terça-feira à tarde, Abby, ainda que a contragosto, permitiu
que Neil retornasse às quadras, desde que não pegasse pesado demais nos
treinos. A enfermeira mal terminara de dizer que aprovava, e Neil já correra
para pegar os equipamentos. As Raposas já estavam em quadra, já que Abby
comparecera ao treino com quase duas horas de atraso, mas Dan interrom-
peu a simulação de jogo assim que Neil fechou os portões. Ela e Matt come-
moraram a chegada de Neil com gritos e aplausos. Nicky bateu a raquete na
dele enquanto Neil se encaminhava para perto de Kevin.
— Se você não consegue jogar, então não joga — disse Kevin.
— Eu sei — respondeu Neil. — Se eu sentir qualquer dor, saio da quadra.
Kevin olhou para ele, desconfiado, mas não discutiu.
Neil sentiu dor assim que começou a se mexer, mas era quase um alívio
exercitar os músculos sensíveis. Manteve o ritmo leve porque Abby e Wy-
mack o observavam do lado de fora. Quando finalmente parou para se alon-
gar, ficou com medo de que fossem tirá-lo de quadra. Ao perceber que isso
não aconteceria, voltou com tudo. Assim que o treino acabou, Wymack fez
todos se sentarem no vestiário para repassar os pontos altos e baixos do dia.
Após terminar de falar, olhou para Neil e disse:
— E aí?
— Estou bem — respondeu Neil, então se curvou um pouco para fugir do
olhar irritado de Kevin e acrescentou: — Ficaria preocupado se não estivesse
sentindo dor agora, mas não é dor o bastante para causar problemas. Posso
usar a parede para fazer passes se sentir que arremessar com o braço erguido
está repuxando os pontos.
— E doía dizer isso de cara? — perguntou Dan, sarcástica.
— Eu disse de cara. Estou bem.
— A expressão que você quer é “caso perdido” ou “obcecado” — comentou
Nicky, rindo.
— Certo — cortou Wymack. — Neil, pode voltar pra academia amanhã.
Pega leve nos primeiros dias, pode ser? Adapta o treino como precisar e me
avisa sobre o que não funcionar. Se machuque em quadra, não lá. — Wy-
mack deve ter percebido que Abby o olhou de cara feia, mas fingiu não ver.
— É isso por hoje. Peguem suas coisas e caiam fora.
Eles tomaram banho e voltaram para o dormitório. Dan foi com Matt e
Neil até o quarto deles. Neil interpretou isso como uma dica para dar o fora,
mas quando ia dar meia-volta, Dan acenou para ele. Quando percebeu que
Neil entendera o recado, ela se sentou no sofá e abraçou o joelho contra o
peito.
— Então as coisas voltaram ao normal. Tipo, a gente e eles. Foi divertido
no mês passado, né? Eu gostava dos nossos jantares em equipe e das noita-
das — comentou Dan.
— Parece que a gente voltou pra onde estava em agosto — concordou Matt.
— Se a gente soubesse qual era o problema do Andrew com a gente, pode-
ria tentar resolver. — Dan tamborilou os dedos em um ritmo agitado nos jo-
elhos por um minuto, então olhou para Neil. — Como você fez ele parar de
tentar derrubar a gente no treino naquele dia?
Neil se limitou a dizer a verdade nua e crua.
— Eu pedi.
— Você pediu — repetiu Matt. Soou quase como uma acusação. — Você
disse a mesma coisa sobre o Halloween e a casa dos pais do Nicky. Papo sé-
rio, Neil. Como você sempre convence o Andrew a fazer tudo que ele obvia-
mente não quer fazer? É suborno ou chantagem?
Dan lançou um olhar indecifrável para Matt e disse:
— Sem pressão, Neil. Vou direto ao ponto. O Andrew tá sóbrio agora, e sei
que isso é um divisor de águas. Mas você consegue fazer com que eles vol-
tem a se aproximar da gente?
— Não sei. Posso tentar, mas… — disse Neil, olhando para os dois — al-
guém precisa lidar com o Aaron. Nicky quer ser amigo de vocês, e Kevin sa-
be que somos mais fortes quando estamos unidos, mas o Aaron é tão radi-
calmente contra isso quanto o Andrew. Não faz sentido, porque ficar do la-
do do Andrew significa esconder a Katelyn. Se Aaron está disposto a fazer
isso sem lutar, a decisão não é só do Andrew. Tem a ver com os dois.
Dan parecia pensativa.
— A Katelyn deve saber de alguma coisa. Nenhuma mulher de respeito
aguentaria isso sem um bom motivo. Se ela se recusar a falar, você acha que
consegue arrancar alguma coisa do Aaron, Matt? Você disse que ele está
agindo melhor desde o Natal, né?
— Posso tentar. O treinador já entregou pra você nossos horários de tuto-
ria? — perguntou Matt.
— Está em algum lugar na minha mesa — respondeu Dan. — Assim que
achar, envio uma mensagem avisando dos horários dele.
— Certo. Vou ver se consigo encontrá-lo lá.
— Deixa eu tentar com a Katelyn primeiro. — Dan se remexeu para tirar o
celular do bolso e digitou uma mensagem rápida. — Não quero que o Aaron
fale pra ela que estamos nos intrometendo. — Matt assentiu, mas Dan estava
olhando para o celular como se pudesse obter uma resposta da tela. Não de-
morou muito antes que o aparelho tocasse. Dan trocou algumas mensagens
com Katelyn, então se levantou. — Tá bom. Vou dar uma saidinha. Pode ser
que demore um pouco, então não precisam me esperar pra comer. Me dese-
jem sorte.
— Sorte — repetiu Neil, enquanto Matt dava um beijo de despedida em
Dan.
Neil e Matt acabaram jantando com Renee e Allison no quarto das meni-
nas. O filme que Allison escolheu foi vetado no mesmo instante, então ela
mandou beijos para a democracia e resolveu colocá-lo mesmo assim. Deve
ter sido a pior coisa que Neil já havia assistido, mas pelo menos ajudou a
matar o tempo. Foi poupado dos últimos quinze minutos de melodrama e
atuação fraca porque Kevin estava pronto para ir para a quadra. Eles encon-
traram Andrew no carro.
Andrew se esparramou no sofá do lounge, enquanto Kevin foi se trocar.
Neil hesitou, mudou de ideia e foi atrás de Kevin, depois mudou de ideia
mais uma vez. Ficou atrás do sofá, com os braços cruzados e apoiados no es-
paldar, e olhou para Andrew. Ele estava com um dos braços dobrado embai-
xo da cabeça e usava o outro para proteger os olhos da luz.
— Você podia treinar com a gente um dia desses — comentou Neil. Não se
surpreendeu quando Andrew não respondeu, mas se recusou a desistir tão
facilmente. — Por que começou a jogar se não estava disposto a treinar?
— Era uma cela melhor do que a outra opção.
Havia sido um dos temas que os repórteres mais gostavam de debater
quando Kevin se tornou uma figura permanente ao lado de Andrew: Kevin
fora criado em Evermore, cercado pelos melhores, com uma raquete na mão
desde que nasceu, e Andrew aprendera a jogar Exy durante o período que
passara no reformatório. Neil tinha um artigo de uma página sobre o assun-
to em sua pasta. O título, um tanto grosseiro, era “O príncipe e o mendigo”, e
o foco recaía em mostrar o quanto a amizade deles estava condenada ao fra-
casso. O repórter julgava que o posicionamento de ambos a respeito do Exy
era incompatível e que suas origens eram diferentes demais para que a ami-
zade durasse muito tempo.
Neil presumiu que o fato de Andrew ter sido colocado em um dos melho-
res reformatórios da Califórnia fora por interferência do oficial Higgins. O
foco era a reabilitação por meio da disciplina e do empoderamento, o que
significava que todos os menores infratores aprendiam esportes coletivos.
Não havia espaço para uma quadra de tamanho normal, mas um oficial con-
firmou em entrevista que contavam com meia quadra nas instalações. Os
melhores e mais bem-comportados aspirantes a atletas de Exy participavam
de viagens ocasionais ao centro comunitário e competiam com times locais.
Neil não culpava Andrew por pensar que era melhor estar em quadra do
que preso, mas duvidava que Exy fosse o único esporte disponível para ser
praticado. Andrew escolhera Exy por um motivo. Neil pensaria que ele fora
atraído pela natureza agressiva do jogo, mas Andrew era goleiro. Tinha pou-
cas oportunidades de participar da violência em quadra. Comentou isso
com Andrew, que deu de ombros em resposta.
— O carcereiro me colocou nessa posição. Era o único jeito que eu poderia
jogar.
— Acharam que você poderia machucar alguém se jogasse na linha, solto
pela quadra? — perguntou Neil. Andrew não respondeu; Neil interpretou o
silêncio como uma confirmação. Tentou imaginá-lo em qualquer outra posi-
ção, mas não conseguiu. — Acho melhor assim, com você na última posição
da linha de defesa. Você deixa a gente correr até cansar e arruma toda a ba-
gunça depois. Joga o jogo como joga a vida. É por isso que você é tão bom.
Neil ergueu o olhar quando uma porta se abriu no corredor. Kevin viera
procurá-lo, já trocado e parecendo irritado com a demora. Parou quando
percebeu que os dois estavam conversando. Kevin ainda não tocara no as-
sunto sobre o que acontecera na sexta-feira, e Neil não sabia se ele tinha per-
guntado a Andrew, mas duvidava que Andrew explicaria. De acordo com
Renee, apenas ela e Neil sabiam que Andrew era gay. Não fazia ideia de co-
mo Wymack havia percebido isso.
— Já vou — disse Neil, mas não se mexeu.
Kevin ergueu um dedo para avisar que ele tinha um minuto e saiu. Neil ou-
viu a porta dos fundos fechar e olhou para Andrew de novo.
— Também não foi escolha minha ser atacante. Eu era defensor na liga in-
fantil. Riko se lembrava porque eu treinava com ele e com o Kevin. Ele me
obrigou a jogar na defesa com os Corvos, durante o Natal.
Andrew por fim abaixou o braço.
— Liga infantil, ele diz. Eu me lembro muito bem de você contando pra to-
do mundo que aprendeu a jogar em Millport.
— É verdade, em partes. Eu sabia jogar Exy. Só não sabia ser atacante. Não
queria jogar no ataque, mas o treinador Hernandez não tinha mais vagas na
defesa. Era ataque ou nada, e eu queria tanto jogar que não desisti. Agora,
não consigo me imaginar em outra posição.
Andrew ficou em silêncio por algum tempo, depois disse:
— Você é mais um guaxinim do que uma Raposa.
Neil o encarou.
— Quê?
— Um guaxinim — repetiu Andrew, e fingiu segurar uma bola na frente do
rosto. — Exy é o objeto brilhante do seu mundinho triste. Você sabe que está
sendo caçado e sabe que os cães de caça estão se aproximando, mas não lar-
ga o objeto pra se salvar. Uma vez, você me disse que não entendia as pesso-
as que se esforçavam pra morrer, mas olha só pra você. Acho que foi outra
mentira.
— Não estou tentando morrer — retrucou Neil. — É assim que me mante-
nho vivo. Quando estou jogando, sinto que posso controlar alguma coisa.
Sinto que tenho o poder de mudar algo. Me sinto mais vivo em quadra do
que em qualquer outro lugar. A quadra não liga pro meu nome verdadeiro,
de onde venho nem pra onde vou amanhã. Ela me deixa existir do jeito que
eu sou.
— É só uma quadra, ela não “deixa” você fazer nada.
— Você entendeu o que eu quis dizer.
— Não entendi, não.
— Porque você não sente nada, né? — desafiou Neil, baixinho. — Nada
mexe com você desse jeito. Nada te abala.
— Até que enfim ele entendeu. Só demorou um ano — provocou Andrew.
— Você tem medo de quê?
— De altura.
— Andrew.
— Se obrigar o Kevin a vir atrás de você, vai se arrepender.
Neil se afastou do sofá sem dizer mais nada e foi se trocar. Puxou o unifor-
me com mais força do que o necessário, mas ainda murmurava irritado ao
pisar na quadra. Levar uma bronca pelo atraso não ajudou em nada. Quase
teve vontade de lembrar Kevin que os treinos extras não seguiam um crono-
grama obrigatório, mas daria no mesmo. Estavam ali porque tinham traba-
lho a fazer.
Realizou os exercícios com toda a intensidade e velocidade que conseguia,
sabendo que se arrependeria no dia seguinte de manhã. Não se importava.
Era mais difícil pensar quando o corpo inteiro doía. A exaustão por fim ven-
ceu o mau humor e, quando saíram da quadra, Neil não sentia mais nada.
A paz letárgica durou até que ele saísse do chuveiro e encontrasse Kevin
sentado em um banco do vestiário. O olhar severo em seu rosto dizia que ele
não ficara esperando para ser legal.
— Vocês resolveram? — perguntou Kevin.
— Resolvemos o quê? — perguntou Neil.
— Não se faz de idiota. Quando você está aqui, espero que esteja de verda-
de. Seus problemas com o Andrew se tornam nossos problemas assim que
começam a interferir nos jogos. Você quer que a gente ganhe ou não?
— Não vem me dando sermão como se eu não soubesse o que está em jo-
go.
— Você me disse pra focar no time. É o que estou fazendo. Me certificando
de que você não vai colocar nosso sucesso em risco.
— Não estou colocando nada em risco. Me atrasei dois minutos porque
chamei o Andrew pra treinar com a gente.
— Foram cinco minutos, e não é pra fazer isso de novo. A gente não preci-
sa de um favor do Andrew. Tem que ser por iniciativa própria, ou não vai
adiantar de nada. — Kevin se levantou e gesticulou bruscamente para que
Neil o seguisse. — Vamos embora.
Ao saírem, encontraram Andrew no lounge e se separaram no corredor do
dormitório. Matt já estava dormindo, mas deixara a luminária acesa para
que Neil se orientasse. Neil se trocou na penumbra. Quando foi desligar o
abajur a caminho da cama, encontrou um bilhete manuscrito colado no in-
terruptor de luz.
“Você tinha razão.”
Neil guardou o bilhete na gaveta da escrivaninha e foi para a cama. Não fa-
zia sentido pensar naquilo se dali a cinco horas estariam acordados, então
ignorou os pensamentos e se forçou a dormir. Quando o alarme tocou, a
sensação era de que tinha acabado de fechar os olhos. Neil se virou para des-
ligá-lo e quase gemeu ao sentir a intensidade da dor em seu corpo. Teria que
pegar leve no treino, ou Wymack iria arrebentá-lo.
Matt já estava pronto antes mesmo de se sentir desperto o bastante para
conversar. Ficou parado, com os cadarços meio amarrados, e olhou para
Neil.
— Você tinha razão. Eles fizeram uma promessa. Aaron e Andrew, quer di-
zer. Foi o que o Aaron contou para a Katelyn, pelo menos. Aaron fez um
acordo com o Andrew no reformatório: se o Andrew ficasse ao lado dele até
a formatura, Aaron ficaria ao lado dele depois. Sem amigos, sem namoradas,
sem ninguém. Aaron não pode nem socializar com os colegas de equipe.
Neil passou os dedos pelo cabelo e verificou o curativo na bochecha.
— Aaron estava falando da formatura do ensino médio. Mas eles renova-
ram a promessa quando assinaram o contrato pra jogar aqui.
— Agora, Katelyn entrou no meio disso, mas Aaron não quer comprar essa
briga. — Matt balançou a cabeça e terminou de amarrar os sapatos. — Ka-
telyn contou para a Dan o que o Andrew fez com as outras namoradas que
Aaron teve no ensino médio. Se a Katelyn não tem medo do Andrew, não
está segura. Será que o Andrew é tão maluco a ponto de atacar alguém tão
importante pro Aaron?
— Aaron fez uma promessa — afirmou Neil, escolhendo as palavras com
cuidado. — E Andrew vai fazer com que ele cumpra. Não é tão absurdo
quanto parece.
Neil quase havia se esquecido de que os veteranos não conheciam os pro-
blemas dos gêmeos. Ele mesmo só descobriu na segunda viagem ao Eden’s
Twilight, mas naquele momento a guerra fria entre ambos era escancarada.
Katelyn era importante para Aaron, e isso a colocava em perigo. Aaron não
queria comprar essa briga por ter medo demais de enfrentar o irmão ou por
achar que ganhava mais se não se metesse?
E o mais importante: por que Andrew concordara em estender o acordo?
Será que ainda estava punindo Aaron por ficar do lado da mãe deles, ou
achava que o tempo faria a diferença? A última opção parecia improvável,
mas Neil estava mais inclinado a acreditar nela. Em Colúmbia, quando
Drake deixou Andrew imóvel e empapado em sangue, a única coisa que im-
portava para Andrew, a única pessoa que ele queria ver era Aaron. O trauma
que acabara de sofrer era irrelevante; ele se importara apenas com o sangue
que havia espirrado na pele do irmão.
Andrew e Aaron fizeram isso um com o outro e estavam em um impasse.
Não queriam se aproximar e não conseguiam partir. Novembro deveria ter
sido o catalisador, mas a prisão de Aaron e o exílio de Andrew em Easthaven
obrigaram os dois a se recuperarem daquele pesadelo longe um do outro.
Fazia uma semana que Andrew voltara, e Neil tinha certeza de que os dois
ainda não haviam conversado sobre aquela noite, assim como nunca haviam
conversado sobre as razões por trás da morte de Tilda Minyard.
Aaron o ignoraria se Neil tocasse no assunto, e ele não tinha um segredo
grande o bastante para persuadir Andrew a falar com o irmão. Kevin jamais
se envolveria na situação, e Andrew não daria a mínima para Nicky. Wy-
mack prometera não se meter nos problemas pessoais dos atletas, ainda que
tivesse ultrapassado esse limite dias atrás, pela segurança da equipe. Renee
poderia chamar a atenção de Andrew e fazê-lo pensar em uma reconcilia-
ção, mas Aaron não se interessaria em nada que ela tivesse a dizer.
Sobravam poucas opções, e Neil deletara o número de Betsy Dobson do ce-
lular no mesmo dia em que Andrew a programara como um contato de
emergência. Aaron comentou que não falava com Betsy, mas era impossível
que não tivesse percebido a conexão que Andrew tinha com ela. Talvez per-
mitisse que Betsy fosse a mediadora de uma sessão confidencial. Caso se re-
cusasse, Katelyn poderia ajudá-lo a se decidir. O verdadeiro desafio seria fa-
zer Andrew concordar. Mesmo que suas opiniões sobre Betsy não tivessem
mudado agora que estava livre dos remédios, convencê-lo a se abrir com Aa-
ron seria quase impossível.
Neil se perguntou se Betsy sequer sabia que os irmãos tinham problemas
entre si.
— Neil?
Ele olhou para a frente e viu Matt parado na porta do quarto. Estava tão
absorto em pensamentos que não havia notado que o companheiro saíra da
suíte. Matt pareceu um pouco perplexo ao encontrar Neil exatamente onde
o havia deixado.
— Tudo bem? A gente precisa ir.
Se Neil se atrasasse para o treino duas vezes seguidas, era bem provável que
Kevin o colocasse no banco por puro despeito. Neil pegou as chaves da cô-
moda.
— Tudo bem. A Dan enviou pra você os horários de tutoria do Aaron? —
Quando Matt assentiu, Neil disse: — Mudei de opinião. Pode deixar que eu
lido com ele. Tive uma ideia.
Matt encaminhou a mensagem para ele, enquanto Neil trancava a porta da
suíte. Neil sentiu o celular vibrar no bolso, mas não o abriu no caminho para
o estádio. A tela era pequena demais para que conseguissem ler por cima do
ombro, mas Nicky ia querer saber quem estava mandando mensagens para
Neil tão cedo. Ele teria que conseguir os números de Betsy e Katelyn mais
tarde. Com sorte, Dan teria ambos salvos.
Passaram a manhã em um treino de força na academia. Neil voltou para o
dormitório com o grupo de Andrew, mas parou no quarto das meninas para
retocar a maquiagem que cobria os hematomas. Sua aparência tinha melho-
rado agora que estava havia uma semana fora do alcance de Riko, mas ainda
precisaria esconder os machucados por mais alguns dias. Ainda assim, teria
que usar a atadura no rosto durante muito tempo após estar curado, e ainda
não contara aos veteranos o que estava escondendo ali embaixo. Andrew e
os outros já sabiam e, por isso, não fazia sentido continuar postergando.
— Allison — falou ele, para avisá-la que estava prestes a se mexer.
Ela tirou a mão, e Neil tocou a fita adesiva em seu rosto. Não sabia onde era
seguro tocar, uma vez que sua bochecha estava insensível sob as camadas de
corretivo. Quando Allison entendeu o que ele estava tentando fazer, tirou a
mão de Neil do caminho. Agarrou a ponta da fita com as unhas compridas e
arrancou o curativo em um movimento suave.
Levou meio segundo para compreender, depois se levantou.
— Tá de sacanagem — exclamou ela, em um tom estridente.
Dan estava na cozinha tomando café da manhã e Renee, no quarto, mas a
explosão de Allison fez as duas aparecerem correndo. Dan, à esquerda de
Neil, foi a primeira a ver. Parou por apenas um instante. A seguir, já tinha
cruzado o quarto até o sofá, no lugar em que Allison estava sentada. Neil
não sabia que ela conseguia se mover tão rápido.
— Isso só pode ser piada — disse Dan, agarrando o queixo de Neil. —Neil?
— Ele mandou eu me transferir pros Corvos. Disse que eu poderia ficar
com as Raposas até o fim do ano, mas que teria que me mudar pra Edgar Al-
lan no outono. Fizeram essa tatuagem como preparação, e eu não consegui
impedir. Queria que vocês soubessem agora, caso Riko comente alguma coi-
sa. Ainda sou uma Raposa, não importa o que ele disser. Não vou assinar os
papéis.
— Tira isso — ordenou Dan.
— É permanente — respondeu Neil.
— Nada é permanente. Tira. Matt pode pagar.
— Se ele não pagar, eu pago — afirmou Allison. — Não quero ver isso em
quadra. Já não basta a marca de gado na cara do Kevin estragando o clima.
— Kevin sabia disso, não sabia? — interrompeu Dan, furiosa. — Sabia o
que Riko ia fazer e mesmo assim deixou você ir. Da próxima vez que encon-
trar com ele…
— Você não vai fazer nada — interrompeu Neil. — Kevin não tinha o di-
reito de me impedir.
— Ele fez você ir no lugar dele.
— Não. Kevin não teve nenhum dedo nisso. Ele sabia que não era por cau-
sa dele.
Dan não esperava por isso. A raiva deu lugar à confusão.
— Você disse que o Riko estava tentando chegar até o Kevin.
— Eu disse que ele se concentrou em mim por causa do meu relaciona-
mento com o Kevin — corrigiu Neil. — Mas não foi por isso que eu fui. Só
achei que vocês precisavam saber da tatuagem antes do início da temporada.
Dan permitiu que ele se levantasse, mas o segurou pelo cotovelo antes que
se afastasse. Neil olhou para a colega, mas ela estava mirando o nada. De-
morou um minuto até que falasse.
— Você nunca planejou passar o Natal em casa, né? Todo aquele papo so-
bre seu tio ter ido pro Arizona… você inventou só pra gente não encher seu
saco ou pra ninguém ficar se perguntando por que você não foi pra Nova
York com o Kevin.
Não adiantava negar.
— Sim.
— Entendo que você não confie cem por cento na gente — comentou Dan.
— Não gosto, mas acho que nos saímos bem em evitar o assunto o ano todo.
Não pressionamos você a contar mais do que se sentia confortável e nem
perguntamos por que você é do jeito que é. Então, não faz isso com a gente.
Não fica sentado aí mentindo na nossa cara. — Ela finalmente ergueu os
olhos para Neil, a frustração cravada no canto da boca. — Somos seus ami-
gos. Merecemos mais do que isso.
— Se vocês sempre tivessem o que merecem, não seriam Raposas. — Neil
se livrou das mãos de Dan. Ela permitiu que Neil se afastasse sem protestar,
parecendo um pouco assustada com aquela resposta tão direta. Neil tentou,
sem sucesso, minimizar a culpa que sentia. — Nunca tive amigos. Não sei
como funciona. Estou tentando, mas vai demorar.
Tempo era algo que ele não tinha, mas não valeria a pena mencionar isso.
Dan aceitou as desculpas e a promessa, assentindo cansada, e as colegas per-
mitiram que ele fosse embora. Neil parou no banheiro de sua suíte para co-
brir a tatuagem com um novo curativo. Ainda tinha um tempo livre antes
da aula, então se sentou na mesa com alguns livros. Tinha a intenção de re-
visar as anotações das aulas anteriores, mas acabou desenhando patas de ra-
posas nas páginas até dar a hora de sair.
Não mandou mensagem para Dan até a hora do almoço, para que ela tives-
se algumas horas para se acalmar. Devia tê-lo perdoado ou se esquecido do
que ocorrera de manhã, porque respondeu quase no mesmo instante com os
números que ele precisava. Neil acabou salvando os dois no celular. Nicky ti-
nha o hábito de enviar tantas mensagens que sua caixa de entrada ficava lo-
tada, e Neil não poderia se dar ao luxo de perder aqueles contatos.
Decidiu falar com Katelyn primeiro. Ela devia estar em alguma aula, por-
que demorou quase uma hora para responder. Precisaram trocar apenas al-
gumas mensagens para perceber que não teriam tempo de se encontrar na-
quele dia. Ela prometeu que arranjaria tempo para conversar com ele no dia
seguinte, e Neil teve que se contentar com isso.
Naquela tarde, finalmente obteve a confirmação que procurava: ainda que
Andrew não estivesse mais tomando remédios, ainda tinha sessões semanais
com Betsy. Neil sabia a que horas começavam os encontros e presumiu que
Betsy teria uma pequena brecha entre uma consulta e outra, antes que An-
drew aparecesse à porta. Assim que Neil soube que Andrew estava a cami-
nho de Reddin, tomou coragem e ligou para o escritório de Betsy.
Ela atendeu no segundo toque.
— Dra. Dobson — disse a terapeuta em um tom agradável.
— É o Neil. — Então ele continuou antes que ela pudesse fingir que estava
surpresa ou satisfeita em ter notícias dele. — Preciso de um sim ou não. Se a
gente conseguir convencer o Aaron e o Andrew a fazerem sessões conjuntas,
você pode dar um jeito no relacionamento dos dois?
Betsy ficou em silêncio por alguns instantes, até que falou:
— Posso tentar, com certeza.
— Não é pra tentar. Não é pra achar. Isso é muito importante. Você pode
ou não pode?
— Sim. — Dava para ouvir o sorriso em sua voz: não de diversão, mas de
aprovação. — Se você conseguir trazer os dois aqui, posso cuidar disso. Neil?
— disse a terapeuta, enquanto ele começava a tirar o aparelho do ouvido. —
Gosto desse seu lado sincero.
Neil desligou na cara dela.
Era muito cedo no ano para a biblioteca estar lotada, então Neil encontrou
Katelyn com facilidade. Estava com uma xícara enorme de café ao lado, e ele
ficou tentado a dar uma passadinha na cafeteria para pegar uma bebida. Mas
não queria dar a impressão de que iria se demorar, então atravessou o corre-
dor até a mesa dela sem fazer paradas. Um livro de bioquímica foi colocado
de lado enquanto ela grifava partes relevantes de suas anotações. Aaron ti-
nha o mesmo livro no quarto, pois estudava ciências biológicas. Neil imagi-
nou que tinham se conhecido por fazerem cursos similares e terem as mes-
mas aulas.
Quando ele se aproximou, Katelyn ergueu o olhar e fechou o caderno.
— Neil, oi! Sei que só faz algumas semanas, mas parece uma eternidade.
Como foi o Natal?
— Bom. E o seu?
— Ai, meu Deus, foi incrível. — Katelyn juntou as mãos em alegria. — Mi-
nha irmã finalmente descobriu que vai ter um menino, então passei a maior
parte do tempo comprando coisas pra ele. Mamãe me disse que estou exage-
rando, mas sei que ela também está animada.
No mês anterior, ela tinha comentado que a irmã estava grávida, mas Neil
não se lembrava dos detalhes. Agora prestava um pouco de atenção enquan-
to ela divagava alegre, à procura de palavras-chave que indicassem que havia
terminado de contar, em detalhes, todas as coisas incríveis que comprara nas
liquidações de inverno. Não levou muito tempo até que ela se lembrasse que
não estavam ali para fofocar, então se recompôs com um sorriso tão tímido
quanto feliz.
— E aí, o que você queria conversar? Você disse que queria falar do Aaron?
— Aaron precisa de ajuda. Estou tentando conseguir isso pra ele — disse
Neil.
Katelyn ficou séria em um piscar de olhos.
— São os pesadelos de novo, né? Ele disse que tinha melhorado. Ele pro-
meteu que…
Katelyn gesticulou, frustrada ou se sentindo impotente, e pressionou os de-
dos no lábio inferior, trêmulo.
— Pesadelos — repetiu Neil. Não era o rumo que achava que a conversa to-
maria, mas dava para adivinhar o que perturbava Aaron. — Por volta de no-
vembro, você quer dizer.
— Ele não quer deixar isso o afetar. Disse que Drake merecia coisa pior.
Que ficava feliz de ter feito aquilo. Mas desejar a morte de alguém e matar
essa pessoa são coisas muito diferentes. Quero muito conversar com ele so-
bre isso e fazer tudo que posso para ajudar, mas ele não me ouve quando di-
go que vai ficar tudo bem.
— Ele precisa falar com o Andrew — objetou Neil.
Katelyn deu uma risada abafada.
— Ele não vai fazer isso.
A garota sabia o que os veteranos não tinham ideia: Aaron e Andrew mal
conseguiam ficar perto um do outro, na melhor das hipóteses. Talvez preci-
sasse saber, já que a briga deles era o motivo por que ela permanecia afasta-
da de Aaron. Neil refletiu que ela teria boas chances de ficar com Aaron a
longo prazo.
— Ele precisa — endossou Neil. — Eles precisam um do outro. Só não sa-
bem como dar o primeiro passo. É aí que você entra.
Katelyn analisou o rosto de Neil por alguns instantes, então disse:
— Por quê?
— Por que você? — perguntou Neil.
— Por que você — corrigiu ela. — Aaron não…
Ela era legal demais para completar a frase, mas Neil não teve problemas
em preencher as lacunas.
— Aaron e eu nos damos bem quando precisamos e nos evitamos quando
podemos. Não vou mentir e dizer que estou fazendo isso pelo bem dele. No
fim das contas, não me importo se ele está bem. Só me importo com a equi-
pe. Não podemos vencer sem eles. Aliás, meus motivos pouco importam,
desde que todo mundo fique feliz no final, certo?
— Importam pra mim. Eu amo ele.
— Então me ajuda a ajudar ele — retrucou Neil.
Katelyn pressionou os lábios em uma linha fina enquanto ponderava.
— Então fala.
— Aaron já mencionou a dra. Dobson pra você? Ela trabalha na Reddin e é
a terapeuta de referência da equipe. Está disposta a fazer sessões em grupo
com Andrew e Aaron.
— Aaron já falou dela antes. Disse que é pura perda de tempo.
— Porque ele não aproveita o tempo com ela como deveria — retrucou
Neil, ignorando a própria hipocrisia. — O lado bom é que não importa o
que o Aaron pensa. Dobson já teve consultas com os dois. Já faz um ano e
meio que acompanha o Andrew. Se achasse que não conseguiria consertar a
relação deles, seria honesta e teria admitido. Se conseguirmos levar os dois
até o consultório ao mesmo tempo, ela pode fazer com que conversem.
— Você quer que eu convença o Aaron— concluiu Katelyn.
— Você convence o Aaron, e eu convenço o Andrew.
— E você acha que consegue?
— Eu preciso.
— Mas como? — insistiu Katelyn. — É uma pergunta sincera, porque não
sei como convencer o Aaron. Ele não quis me ouvir da última vez que falei
que ele precisava de ajuda.
— Então não diga que é por causa dele. Diga que é por sua causa. Você po-
de consertar isso aqui e agora. Para de só ficar assistindo e faz ele lutar por
você.
— Acho que não posso usar a carta do “nós” contra ele. Não é justo.
— Mas isso é? — Neil gesticulou para ela. — Olha, não consigo convencer
o Andrew da noite pro dia, então você tem um tempinho pra pensar. Mas
quando Andrew estiver pronto, você vai ter que escolher um lado. Espero
que seja o lado certo.
Ele se levantou e saiu, e ela não o chamou de volta.
As aulas do dia 12 de janeiro foram o mais puro desperdício de tempo das
Raposas. Neil tinha duas aulas logo cedo e, apesar de ter comparecido, não
absorveu nada do que foi falado. As vozes dos professores estavam mais para
um ruído de fundo; os textos que escreviam na lousa se transformavam em
táticas em jogo. Ainda que estivesse com a caneta na mão, o caderno perma-
neceu em branco. Teria que pegar as anotações dos colegas de classe em-
prestadas depois, mas nada daquilo importava naquele dia. Tudo o que im-
portava era que tinham um voo às 13h20 saindo do Aeroporto Regional.
O jogo estava marcado para começar às 19h30, mas Wymack queria que
estivessem em Austin duas horas antes. De acordo com ele, não confiava no
tempo no inverno. Neil tinha certeza de que a paranoia do treinador trouxe-
ra azar. Chovia sem parar, e a baixa temperatura fazia parecer que as ruas
congelariam, o que o deixou preocupado com a possibilidade de o voo atra-
sar. Graças a uma escala de noventa minutos em Atlanta, tinham um tempo
extra, mas Neil estava com medo mesmo assim. Se perdessem o primeiro jo-
go do campeonato por um motivo tão bobo quanto a mudança de tempo,
jamais se perdoaria.
A chuva era tão intensa que de nada adiantava usar um guarda-chuva, en-
tão ele colocou o capuz na cabeça e correu de volta até a Torre das Raposas.
Olhou de relance para o céu na esperança de enxergar onde as nuvens escu-
ras acabavam, e foi recompensado com uma chuva intensa nos olhos. Neil
esfregou a mão no rosto e disparou quando encontrou uma brecha no trân-
sito da Perimeter Road. Um atleta que descia em direção à aula escorregou e
caiu, xingando. Já estava de pé de novo antes que Neil o alcançasse, mas
aquilo serviu de lição para que ele diminuísse a velocidade. Não sobrevivera
à crueldade de Riko para ser incapacitado pela própria falta de paciência.
As quatro placas de CUIDADO no lounge soavam como um exagero, mas
ainda assim Neil derrapou um pouco no chão molhado. Ele se apoiou na pa-
rede para se equilibrar e passou a carteira embaixo do sensor próximo ao
elevador. O sensor em sua carteirinha de estudante era tão forte que fez a co-
nexão mesmo através do couro. Quando os botões se iluminaram, Neil aper-
tou a seta para cima e entrou no primeiro que chegou. O chão estava cheio
de água, então ele se segurou firme no corrimão até o terceiro andar. Pega-
das molhadas manchavam o corredor acarpetado. Ele acrescentou as pró-
prias pegadas ao caos enquanto caminhava a passos pesados para o quarto.
Colocou roupas secas, mas mesmo assim não se sentiu aquecido, então se
esparramou no sofá com um cobertor. Não se lembrava de ter adormecido,
mas acordou com o barulho da porta. Matt parecia alguns centímetros mais
baixo com o cabelo molhado grudado na cabeça. Apesar do estado deplorá-
vel, sorria ao entrar. Chamou a atenção de Neil com um gesto, mas não falou
nada até fechar a porta.
— Acabei de ver a Allison — comentou Matt.
— Encharcada? — Neil adivinhou.
— Seria o eufemismo do ano. Acho que o guarda-chuva dela quebrou. Es-
tava num estado terrível. Eu disse que ia tirar uma foto para colocar no
anuário, e ela falou que ia cortar minhas bolas fora com as unhas. Aposto
cinco dólares que a Dan vai ter que empurrar ela porta afora quando a gente
tiver que sair.
— Ela sabe que a gente precisa dela.
— Quer dizer que você topa a aposta?
— Eu não faço apostas — retrucou Neil.
— Ainda? Em nada? — Matt atravessou a sala para colocar a mochila na
mesa. — A gente tem tipo o quê, umas dezesseis apostas rolando agora, e
você não quer participar de nenhuma? Bom, catorze que você pode partici-
par. Já tem bastante dinheiro rolando em algumas e aposto que você conse-
guiria ganhar.
— Por que catorze? E as outras duas?
— Não pode apostar em você mesmo — respondeu Matt. — Isso seria tra-
paça.
Neil inclinou a cabeça para trás a fim de olhar para Matt.
— Não sabia que vocês estavam apostando em mim.
— A gente já apostou em todo mundo em algum momento — explicou
Matt. —Você sabia que a maioria do time apostou contra mim e Dan? Acha-
vam que eu não teria coragem de convidá-la pra sair e sabiam que ela nunca
ia me dar uma chance. Ela meio que odiava homens quando a gente se co-
nheceu. Queria que fosse por causa do tempo que passou trabalhando no
clube de strip-tease, mas na verdade acho que foi por causa dos caras com
quem o treinador a fez jogar no primeiro ano. Até a Allison disse que seria
melhor eu nem tentar.
— E você tentou mesmo assim.
— Durante um ano. Renee ganhou uma bolada quando a Dan finalmente
aceitou. Foi a única que apostou na gente. Quase sempre aposta em casos
perdidos.
Andrew chamara Neil de caso perdido no ano anterior, enquanto tapava
sua boca com a mão para impedi-lo de argumentar. Ao pensar naquele mo-
mento, com todas as peças que faltavam para o argumento fazer sentido,
Neil sabia que não era a ele que Andrew estava tentando silenciar. Agora,
aquela autocensura era fascinante. Renee deve ter contado para Andrew que
havia confessado sobre a sexualidade dele para Neil, e Andrew não tentou se
esquivar da verdade quando Neil perguntara sobre isso na sexta-feira anteri-
or. O que será que Andrew tinha achado que ele ia dizer naquele mês de no-
vembro?
Não importava; não deveria importar. Andrew não queria fazer nada a res-
peito da atração que sentia e, de todo modo, Neil não podia permitir que as
pessoas se aproximassem. Fora criado assim. Era graças a esse isolamento
que conseguira sobreviver. Tinha sorte de estar tão alheio a tudo à medida
que o fim se aproximava. Havia quebrado todas as outras regras que a mãe
estipulara. O mínimo que podia fazer era se manter fiel à única que restava.
— Foi por isso que você apostou no Andrew e na Renee — concluiu Neil,
porque não podia, não queria pensar naquilo.
— Bom, sim — concordou Matt. — Por um tempo, Renee era a única pes-
soa com quem Andrew conversava fora do grupinho dele. Renee dizia que
eles tinham muita coisa em comum e que não era nada sério, mas ele deixa-
va ela dirigir o carro dele. É um GS, Neil. Não se empresta um carro desses
pra qualquer pessoa.
Neil ergueu a mão acima da cabeça para indicar que não havia entendido.
— Não entendo nada de carros.
— Estou dizendo que depois que ele fez algumas mudanças, o carro passou
a custar quase seis dígitos — explicou Matt.
Neil se endireitou e se virou para olhar para Matt.
— Como é que é?
Ele sabia que Andrew tinha gastado grande parte do seguro de vida de Til-
da no carro; Certa vez, Nicky brincara que Andrew escolhera o veículo que
o faria acabar com a herança mais rápido. Neil não perguntou quanto di-
nheiro ganharam com a morte dela, mas só de olhar para o carro percebia
que fora um desperdício colossal de recursos. Ele se sentiu mal ao saber
aproximadamente quanto Andrew havia pagado. De repente, seu chaveiro
pareceu pesar uma tonelada a mais e Neil se esforçou ao máximo para não
tirá-lo do bolso.
— É quase tão caro quanto o Porsche da Allison, e dois meses depois de
conhecer a Renee, ele já estava deixando ela dirigir. Você pode me culpar
por apostar dinheiro neles? Eu tinha certeza de que eles iam ficar juntos, ca-
ra — concluiu Matt.
A fala no passado chamou a atenção de Neil.
— Você mudou de ideia?
— Mais ou menos. Mas regras são regras. Depois de colocar o dinheiro no
bolão, você não pode mudar de lado. Mas pode entrar em outro bolão e
apostar o contrário, então quem sabe eu até recupere parte do dinheiro. Mas
caralho! Já passou do meio-dia. A gente precisa começar a se mexer. Se qui-
ser levar alguma coisa pro voo, é bom pegar agora.
Matt saiu sem dar tempo a Neil de perguntar o que o tinha feito mudar de
opinião sobre as chances de Renee. Resolveu deixar aquilo de lado e pegou
as anotações que fizera sobre a escalação da UT. Matt sorriu deliberadamen-
te, quase compassivo, ao ver o que ele segurava. Neil fingiu não dar bola e
trancou a porta da suíte quando saíram. As garotas esperaram até que Matt
as alcançasse, mas Neil passou por elas e foi até o grupo de Andrew.
Enquanto Neil se aproximava, o carro de Andrew parecia cada vez mais
um monstro completamente diferente. Já se sentia bem o bastante para se
sentar no banco de trás com Nicky e Aaron, mas Kevin entrou com eles an-
tes que Neil desse a sugestão.
No pouco tempo que levaram para ir do alojamento para o carro e do car-
ro para o estádio, as Raposas ficaram encharcadas. Allison nem se deu ao
trabalho de abrir um guarda-chuva dessa vez, mas usava uma segunda capa
acima da cabeça para proteger o cabelo recém-arrumado e a maquiagem.
Estava mais seca do que os outros, mas ainda assim xingava sem parar
quando entraram no lounge. Wymack recebeu a chegada barulhenta deles
com sua habitual falta de paciência e os conduziu pelo corredor para que pe-
gassem os equipamentos.
Foram com o ônibus da equipe até o Aeroporto Regional, já que era mais
barato deixar um único carro na garagem do que três. Voltar àquele lugar fa-
zia Neil pensar em sua viagem para a Virgínia Ocidental, então ele se con-
centrou nos companheiros de equipe para impedir que lembranças sombri-
as o dominassem. Foi por um triz, ao menos até que Wymack olhasse curio-
so para ele, que retribuiu o olhar e escolheu não pensar em Riko. Ocupou a
mente com o momento em que voltara para casa, quando o treinador larga-
ra o que estava fazendo para ir buscá-lo, um gesto de apoio em um momen-
to que Neil estava prestes a desmoronar. Neil sentiu o aperto no peito se
afrouxar um pouco e assentiu à pergunta silenciosa de Wymack.
Estavam adiantados quando passaram pelo check-in e pela segurança e saí-
ram terminal afora, à procura do portão de embarque. Era quase no fim do
terminal, após os banheiros e uma dúzia de lojas. Havia uma cafeteria no
meio do caminho, e o cheiro de café e de massa folhada quentinha quase
bastou para distraí-los. Wymack os chamou de volta à realidade com falas
grosseiras e ameaças não muito convincentes.
As Raposetes haviam chegado ao aeroporto antes deles e estavam próximas
ao portão. Neil olhou para além delas, no quadro de avisos eletrônico acima
da mesa. Dizia “Atlanta — 13h20”, então, apesar do mau tempo, a compa-
nhia aérea tinha confirmado o voo. Neil escolheu acreditar, uma vez que o
avião já estava parado do lado de fora.
Quando receberam a autorização de Wymack, as Raposas se dispersaram,
metade indo olhar pela janela e os outros largando as bagagens de mão na
primeira cadeira vazia que encontraram. Neil levou apenas alguns instantes
para perceber que Andrew não tinha se mexido. Olhou para ele, mas An-
drew olhava pela janela. Neil seguiu o olhar dele e viu um avião decolar na
pista.
Os outros não estavam tão perto e não conseguiriam ouvir, então Neil co-
mentou:
— Quando você disse que tinha medo de altura, era só brincadeira, né? —
Aguardou pela resposta de Andrew e, quando esta não veio, complementou:
— Andrew, não é possível. O que você estava fazendo no telhado?
Andrew não respondeu na hora, mas o jeito como inclinou a cabeça para o
lado indicava que estava pensando. Não dava para saber se ele estava procu-
rando as palavras ou decidindo que explicação queria dar. Por fim, Andrew
levou a mão ao pescoço e sentiu a pulsação. Quando encontrou, bateu o de-
do de acordo com o ritmo. Estava mais rápida do que deveria. Neil colocou
a culpa no lugar em que estavam.
— Sentindo — respondeu Andrew, por fim.
— Tentando lembrar a sensação do medo ou como sentir qualquer coisa
que seja? — perguntou Neil, mas Andrew não respondeu. Ele decidiu tentar
uma estratégia diferente. — Se ajuda, caem menos de vinte aviões por ano e
nem sempre é por culpa do tempo. Às vezes os pilotos simplesmente não
são confiáveis. Tenho certeza de que a morte é bem rápida de qualquer ma-
neira.
Andrew parou de mexer a mão.
— Qual é o nome dele? — Ele olhou para Neil, que franziu a testa, confuso.
— Do seu pai. Qual o nome dele?
Neil quase ficou sem fôlego. Não queria responder, não queria que aquele
nome pairasse no ar entre eles, mas era a vez de Andrew no jogo que esta-
vam jogando. Não podia se recusar a responder. Tentou se consolar ao pen-
sar que Andrew não teria jogado tão baixo se não tivesse se abalado com a
provocação de Neil, mas de nada adiantou. Olhou para as Raposas, se certi-
ficou de que não conseguiriam ouvir e, ainda assim, se aproximou mais de
Andrew.
— Nathan — respondeu, enfim. — O nome dele é Nathan.
— Você não tem cara de Nathan.
— E não sou. Meu nome é Nathaniel — explicou, sentindo a garganta
apertar.
Andrew o estudou por mais um minuto, então se virou sem dizer nada e
voltou a observar as pistas. Neil recuou, em busca de espaço para respirar e
para afastar a dor nauseante. Quando Neil se aproximou, Nicky passou o
braço com cuidado por seus ombros.
— Puro favoritismo — reclamou Nicky. — Sabia que ele deve ter dito dez
palavras pra mim desde que a gente buscou ele em Easthaven? Eu ficaria
com ciúmes se não fosse contra a minha natureza morrer jovem. Enfim, ain-
da tem um tempinho antes da decolagem. Quer vir tomar um café com a
gente?
No fim das contas, metade da equipe e boa parte das Raposetes foram to-
mar café juntos. Nicky dissera que tinham tempo de sobra, mas ninguém
havia contado com o fato de que a fila fosse se mover tão devagar. Quando
finalmente voltaram para o portão com as bebidas, o embarque já havia co-
meçado.
Quando entraram na fila, Neil ficou de olho em Andrew, à espera de que
ele hesitasse. Talvez Andrew tenha notado, pois seguiu os companheiros de
equipe até o avião com uma expressão de puro tédio. O fingimento durou
até que todos estivessem nos assentos e os comissários passassem as instru-
ções de segurança. Andrew levara apenas uma caneta para a cabine. Revirou
o objeto diversas vezes nas mãos, enquanto a tripulação demonstrava como
usar as máscaras de oxigênio a bordo. Kevin, sentado entre Neil e Andrew,
nem ligou. Neil achou que já estivesse acostumado com um Andrew inquie-
to. Ele próprio só sabia o motivo da agitação porque, ao perguntar do que
ele sentia medo, Andrew fora sincero.
Neil olhou pela janela, mas chovia tanto que quase não dava para distin-
guir a asa do avião; tudo não passava de luzes turvas. Quando os comissá-
rios começaram a caminhar pela cabine, ele fechou as janelas. A decolagem
nunca parecera tão complicada, mas Neil imaginou como tal processo pode-
ria ser demorado para alguém que não queria voar. Quando por fim esta-
vam percorrendo a pista, arriscou-se a olhar para Andrew de novo.
Sua expressão permaneceu a mesma quando o avião saiu do chão, mas ele
ficou tenso e parou de mexer a caneta durante toda a subida. Quando atingi-
ram altitude de cruzeiro, voltou a agir normalmente. Era impossível que não
notasse os olhares de Neil, mas manteve os olhos semicerrados em direção
ao espaldar do assento à frente.
Tinham algum tempo livre em Atlanta, então Wymack deixou que vagas-
sem pelo aeroporto durante uma hora, assim que confirmou que o portão de
embarque não havia mudado. O grupo de Andrew passou a maior parte do
tempo indo de uma loja a outra. Aaron escolheu um livro, enquanto Nicky
se entupiu de porcarias. Andrew desapareceu, mas Neil o encontrou próxi-
mo a uma vitrine de estatuetas depois de algum tempo. Era estranho que ele
se distraísse com aquilo, mas Neil não tinha tempo de pensar no assunto.
Kevin e Nicky estavam a dois segundos de cair na porrada porque Kevin es-
tava tentando colocar as guloseimas de Nicky de volta na prateleira.
— Não é só pra mim — insistiu Nicky, tentando sair das garras de Kevin
sem derrubar nada. — Tem pra todo mundo.
— Ninguém precisa comer isso antes do jogo. Se está com fome, pode co-
mer granola ou uma barra de proteína — retrucou Kevin.
— Se liga, tem proteína na manteiga de amendoim. Me solta antes que eu
conte pro Andrew que você tá miguelando chocolate. Mandei me soltar. Vo-
cê não manda em mim. Ai! É sério que você me bateu?
— Vou sair daqui e fingir que não conheço vocês — disse Aaron.
— Traidor — vociferou Nicky.
— Kevin, solta ele logo. Não vale a pena brigar por isso — protestou Neil.
— Se um dos nossos defensores for lerdo, todo mundo paga o pato — res-
pondeu Kevin.
— Você não pode estar falando sério. Sabe quantas horas ainda faltam pro
jogo? Até lá, tudo isso já vai ter saído do meu corpo. Você pode vir me assis-
tir cagar se não acredita. Não achei que você curtia esse tipo de coisa, mas…
Rá — exclamou Nicky quando Kevin saiu irritado, então olhou para Neil
com um sorriso triunfante, ignorando os funcionários da loja que os encara-
vam. — Eu sou o mestre da persuasão.
— Ou da autoilusão — comentou Neil.
Nicky ergueu as sobrancelhas.
— Ai, meu Deus, isso foi uma tentativa de piada? Doeu? Não, mas falando
sério — acrescentou Nicky, quando Neil se virou para sair —, o que foi que
deixou você de tão bom humor?
Quando Neil se virou, Andrew voltou ao seu campo de visão. A luz brilha-
va na estatueta de cristal nas mãos dele, estendida para um dos caixas. Neil
estava longe demais para ver qual fora a escolhida, mas não precisava saber.
Seus pensamentos estavam em uma prateleira de animais brilhantes, todos
equidistantes uns dos outros. A surpresa duelou com o alívio e deu lugar a
uma pontada de autossatisfação. Neil não entendia o que Andrew via em
Betsy, mas já não se importava com isso. Fizera certo ao depositar suas fi-
chas nela. Betsy iria consertar a relação dos irmãos, e a equipe finalmente es-
taria unida. Os Corvos iriam ficar desesperados na próxima vez que se en-
frentassem em quadra.
— Ei, Neil, você tá me ignorando? — perguntou Nicky.
— Só pensando no jogo de hoje. — Neil mentiu. — Espero aqui enquanto
você vai pagar.
Nicky deu de ombros e foi até o próximo caixa livre. Andrew foi buscar Ke-
vin e depois voltou para perto de Neil, e Aaron foi ao encontro deles quando
Nicky ligou. Retornaram juntos para o portão e se acomodaram ali até a ho-
ra do embarque. Estava nublado em Atlanta, mas não chovia. O embarque e
a contagem foram rápidos, e o avião decolou com alguns minutos de antece-
dência. Neil foi discreto ao observar Andrew enquanto atingiam a altura de
cruzeiro, então olhou pela janela e pensou na Universidade do Texas.
Neil nunca tinha ficado à espera de bagagem antes, já que ele e a mãe joga-
vam fora tudo o que não cabia na mala de mão. Era uma experiência bastan-
te elucidativa e desagradável. As mesmas bagagens passavam tantas vezes
pela esteira que Neil começou a achar que tivessem perdido as coisas da
equipe. As Raposas pareciam entediadas, não preocupadas, e ele tentou con-
trolar o pânico que sentia. Foi recompensado minutos depois, quando os
pertences de Allison por fim caíram de uma rampa para a esteira. As outras
malas vieram logo depois.
— Peguem tudo e enfileirem ali — ordenou Wymack, enquanto ele e Abby
pegavam seus pertences.
As Raposas o seguiram até a área de Transportes Terrestres, onde Wymack
reservara uma van de doze lugares. As malas ocuparam todo o porta-malas e
boa parte do espaço para os pés, mas o importante era que conseguiram fe-
char a porta. Wymack desamassou um papel com as direções escritas à mão,
olhou de soslaio para as anotações que fizera e dirigiu para a estrada. Para-
ram brevemente em um restaurante italiano para comer frango e macarrão.
O treinador resmungou quando viu conta, mas a equipe sabia que não devia
levá-lo a sério.
Quando chegaram, o estádio estava cheio de policiais e torcedores. Os se-
guranças ajudaram Wymack a encontrar um lugar para estacionar e a equi-
pe foi escoltada até o vestiário. Estavam adiantados, então Wymack ligou to-
das as televisões que viu pela frente e analisou o público. A televisão mais
próxima a Neil exibia os melhores momentos das partidas da primeira divi-
são que haviam ocorrido no dia anterior. Não foi nenhuma surpresa que
metade das jogadas que valiam o replay vieram da vitória de quinze a oito
dos Corvos. Neil assistira ao jogo no intervalo entre os treinos durante a
noite.
Quando faltavam trinta minutos para o início da partida, foram para seus
respectivos vestiários se trocar. Neil já não ficava surpreso quando se depa-
rava com a falta de privacidade do vestiário masculino, mas os companhei-
ros de equipe ficaram do lado de fora por tempo o bastante para que ele co-
locasse, com dificuldade, o uniforme e os equipamentos. Deixou o capacete
e as luvas de lado, uma vez que ainda faltava certo tempo até que tivessem
que ir para a quadra, e se juntou aos colegas na sala principal.
— Faça eles correrem algumas voltas. É bom darem uma olhadinha no lu-
gar — Wymack instruiu Dan.
O estádio da Universidade do Texas era comparável à Toca das Raposas em
tamanho. As equipes dos Touros-texanos e das Raposas tinham as mesmas
cores, então as arquibancadas lotadas pareciam familiares e reconfortantes.
Neil só precisava ignorar os gritos cheios de provocação dos torcedores
quando as Raposas adentraram o território deles.
Dan os fez pararem após um quilômetro e meio, e eles correram de volta
para o vestiário para se alongarem. Abby os esperava com garrafas de água.
Wymack se encarregou dos equipamentos. Quando chegou a hora de ocu-
parem seus lugares no banco, Aaron e Nicky levaram o carrinho com as ra-
quetes até a área técnica. As Raposetes apareceram e deram um jeito de en-
contrar o lugar reservado aos estudantes de Palmetto State. Dan fez a equipe
acenar energicamente para cumprimentar as Raposetes e os torcedores ani-
mados. As Raposas foram recebidas com gritos empolgados.
Alguns segundos depois, os Touros-texanos passaram por eles em uma fila
infinita. As Raposas jogariam com o uniforme branco com detalhes laranja,
reservado para partidas como visitante, e os Touros-texanos com o uniforme
laranja com detalhes brancos, para partidas em casa. Vê-los correr era deso-
rientador; Neil torceu para não se confundir no calor do momento. Até a
menor das hesitações em quadra poderia custar um gol.
As equipes entrariam em quadra para praticar assim que os Touros-texa-
nos terminassem a corrida, então as Raposas pegaram as raquetes. Wymack
esperou alguns instantes e depois bateu uma palma para chamar a atenção
da equipe.
— Certo, vamos lá. Hora de levar isso a sério. Eles podem parecer mais
amigáveis por usarem nossas cores, mas estão aqui por um único motivo:
eliminar vocês logo de cara. Sonham em ser campões e sabem o que é preci-
so pra chegar na próxima fase. Hoje, o trabalho de vocês é garantir que fi-
quem a ver navios.
Abby olhou feio para ele, mas Wymack não retribuiu o olhar.
— Já repassamos a escalação deles um milhão de vezes. Todo mundo leu as
anotações do Neil. Mostrei tudo que vocês precisavam saber. São atletas
rápidos e perigosos, mas não são impossíveis de derrotar. O truque é prestar
atenção no meio da quadra e, pelo amor do caralho, fiquem de olho nos
meias.
— Vou fazer eles saíram da quadra mancando — prometeu Dan.
— Faça o que tiver que ser feito, mas não ouse levar um cartão vermelho.
Isso serve pra todos vocês. — Wymack lançou um olhar penetrante para
Matt, que sorriu. Isso de nada adiantou para tranquilizar os colegas de equi-
pe, mas o treinador não perdeu tempo repetindo o aviso. — Meninas, se vo-
cês começarem a perceber que a marcação está forte demais, chamem a de-
fesa pra ajudar. Não me importo se isso significa deixar um defensor contra
dois atacantes até vocês se recuperarem. Os goleiros vão fechar nosso gol.
Certo?
— Vamos dar nosso melhor — disse Renee, com um sorriso enorme.
A torcida gritou ainda mais empolgada, quase histérica. Neil presumiu que
os mascotes tinham surgido para provocar o pessoal das arquibancadas. Ele
olhou para além de Wymack, ouvindo apenas em partes o que o treinador
dizia, e seguiu a direção dos dedos que apontavam. Havia um camarote VIP
ao lado da sala de imprensa, entre o banco das Raposas e o local em que as
Raposetes ficavam. Dois guarda-costas analisavam a multidão em busca de
potenciais ameaças, mas saíram do caminho quando perceberam que não
precisavam se preocupar. Neil sentiu o mundo parar ao ver as tatuagens pre-
tas e os cabelos escuros.
Wymack estalou os dedos à frente do rosto de Neil, que recuou tão depres-
sa que acabou se chocando contra Kevin. Olhou rápido para o treinador,
com a boca aberta em um pedido de desculpas que não conseguia proferir,
mas Wymack não esperou. Ele se virou rápido para analisar a área técnica.
Não demorou para ver Riko e Jean. Quando se voltou para a equipe, estava
com a expressão mais sombria que Neil já vira.
As Raposas também os avistaram, e Matt foi o primeiro a reagir, furioso:
— O que eles estão fazendo aqui?
— Vou perguntar — disse Andrew, encaminhando-se naquela direção.
Wymack o obrigou a parar no primeiro passo.
— Você não tem permissão pra matar ninguém no primeiro jogo da tem-
porada. Se preocupem menos com ele e mais com nosso ataque, entende-
ram? Foco, Kevin. Você também, Neil. Neil — disse, mais alto —, olha pra
mim.
Neil percebeu que estava olhando para Riko de novo. Ele se obrigou a focar
no treinador. Wymack parecia irritado, mas àquela altura, Neil já o conhecia
bem demais. A irritação era pura preocupação. Neil optou por interpretar a
expressão como decepção, pois assim seria mais fácil se sentir motivado. As
Raposas precisavam dele para aquele jogo. Não podia deixar que Riko o afe-
tasse. Bloqueou todas as lembranças ruins que teimavam em surgir.
— Estou começando a achar que, no fim das contas, ele gosta de mim —
disse Neil, com uma indiferença forçada.
A risada de Nicky soava falsa e seu sorriso não se refletia nos olhos, mas ao
menos ele tentou.
— Quem conseguiria resistir a um gatinho que nem você, né? Sorte sua
que sou comprometido, porque, nossa. Talvez eu consiga convencer o Erik a
me compartilhar um pouco?
— Será que dá pra deixar de ser pervertido em quadra pelo menos uma
vez? — perguntou Aaron.
— Se eu sou obrigado a ver você de nhe-nhe-nhem com a Katelyn, você vai
ser obrigado a me ver trazendo Neil para o lado sombrio.
— Eu não fico de nhe-nhe-nhem com a Katelyn.
— Aham, não fica, não. Só fica de amorzinho à longa distância, o que é mil
vezes mais enjoativo.
— Vocês têm dois segundos pra calar a boca antes que eu obrigue todo
mundo a correr — avisou Wymack.
Nicky ficou quieto e lançou um sorriso rápido para Neil, que retribuiu com
um risinho discreto. A discussão familiar dera uma esfriada na indignação
das Raposas, e os veteranos olhavam de volta para Neil, e não para Riko.
Andrew ficou parado do lado esquerdo de Neil, uma barreira de um homem
só que o protegia da torcida. Quando Wymack voltou a olhar para Neil, este
assentiu em silêncio.
— Onde eu estava? — perguntou Wymack.
— No ataque, acho — disse Neil, então se virou para Kevin. Ele estava páli-
do e olhava para Riko, mas Neil o cutucou até chamar sua atenção. — Já dei-
xo avisado que se colocarem o Beckstein pra me marcar, vou ter que usar a
parede pra passar o jogo todo. Ele é trinta centímetros mais alto do que eu, e
se conseguir interceptar minha raquete em algum lance, vou voar longe e
acabar me machucando feio.
Kevin abriu a boca para dizer alguma coisa, mas Andrew foi mais rápido e
falou, calmo:
— Vinte centímetros. Ele só tem 1,80.
Neil e Kevin olharam surpresos para Andrew. Um sorriso discreto no rosto
de Wymack indicava que o treinador percebia a importância do comentário
e sabia o que isso significava para as possibilidades de uma vitória das Rapo-
sas. O restante da equipe não percebeu. Dan fez algum comentário para Al-
lison sobre como compensar a possível desvantagem de Neil. Ele sabia que
deveria participar da conversa, assim como Kevin, mas não conseguia
acompanhar o que diziam.
A altura era, possivelmente, um dos detalhes mais cruciais na quadra de
Exy. A altura de um jogador decidia a autoridade com que empunharia a ra-
quete e determinava seu alcance. Para a maioria dos atletas, ter uma ideia
aproximada da altura dos outros era o bastante; não importava se tinham al-
guns centímetros a mais ou a menos, porque o que importava era apenas ter
uma noção do que enfrentariam. Usavam o número apenas para determinar
o quanto seria complicado se esquivar dos marcadores.
Neil e Kevin sabiam a altura exata de cada defensor dos Touros-texanos
porque não conseguiam jogar sem essa informação. Jogadores técnicos, co-
mo Kevin, usavam a altura do adversário para mapear seus pontos fracos.
Ainda mais importante, ter esse dado possibilitava que ele comparasse o
próprio alcance ao do marcador a fim de encontrar as melhores formas de
exercer pressão. Era assim que conseguia passar pela defesa com tanta fre-
quência.
Jogadores que se guiavam pelo instinto, como Neil, sabiam os pontos fra-
cos dos adversários sem calcular ângulos e repetições. Se Wymack entregas-
se uma caneta para Neil e pedisse para desenhar o ponto cego de um defen-
sor em um diagrama, ele não conseguiria, mas quando a partida estava ro-
lando, identificava-o em um piscar de olhos. Ainda não era tão bom a ponto
de aproveitar ao máximo essa intuição, mas Kevin dissera que um talento
como aquele acabaria por garantir seu lugar na seleção.
Andrew não tinha por que saber a altura de Beckstein. Para começo de
conversa, Beckstein era defensor. Se as Raposas jogassem como deveriam,
Beckstein não teria como se aproximar o bastante do gol para arremessar.
Ainda mais importante, Wymack dissera a altura dos Touros-texanos apenas
uma vez, ao ler pela primeira vez a escalação da UT para a equipe. Essa esta-
tística estava anotada no panfleto da primeira rodada que o treinador entre-
gara na semana anterior, mas Andrew enfiara toda a papelada no armário na
primeira oportunidade. Neil não o vira analisar os papéis uma única vez
desde então.
Enquanto Wymack repassou a escalação dos Touros-texanos, Andrew pa-
recia alheio, mas ouviu cada informação e guardou na mente. No outono
passado, fora essa habilidade que os salvara na partida contra Belmonte. O
treinador fizera um comentário aleatório sobre a cobrança de penalidades
durante o intervalo. A partida não acabara na cobrança de faltas, mas com
poucos segundos no cronômetro e uma enorme pressão nos ombros do ata-
cante do Belmonte, Andrew soube que ele recorreria ao que já sabia. Defen-
deu um arremesso impossível sem titubear.
Neil olhou para Kevin, depois para Wymack, perguntando-se por que nin-
guém havia contado para ele que Andrew tinha memória eidética e se a
equipe sequer teria percebido. Não resistiu a testar de novo. Repassou o ata-
que dos Touros-texanos em sua mente mais uma vez e se decidiu por uma
atacante do quinto ano.
— Qual é a altura da Lakes?
— Vai procurar — respondeu Andrew.
— Me dá uma ajudinha, só dessa vez — pediu Neil. Andrew começou a se
virar, então Neil enfiou os dedos com luvas nas redes da raquete de Andrew
e puxou-as com cuidado. Tentou de novo, mais insistente: — Qual é a altura
dela?
— É 1,68? — Matt tentou adivinhar.
— Não, 1,73 — corrigiu Andrew.
— Dá no mesmo.
Matt deu de ombros, desinteressado.
Neil soltou a raquete de Andrew e segurou a própria raquete.
— A gente vai ganhar.
— E você estava esperando que a gente fosse perder? — perguntou Dan.
— Não. — Seus lábios se retorceram e ele soube, pela forma como sua boca
se esticou, que exibia o mesmo sorriso que o pai. Pressionou a luva no rosto,
quase esmagando os dentes nos lábios. Sentiu o gosto de sangue antes de es-
tar seguro para tirar a mão. Neil se reclinou um pouco e olhou para além de
Andrew, onde Riko estava. — Fico feliz que ele tenha vindo. Vamos ver se a
gente consegue dar um choque de realidade nele.
— Vamos — concordou Wymack. — Enfim, finjam que eu falei tudo o que
era importante, porque agora já acabou o nosso tempo. Abriram os portões
da quadra. Vamos começar os treinos de sempre, um contra um e três con-
tra três. Vou ter que repetir porque você me obriga a falar isso toda santa
vez: mantenha as porras das bolas do nosso lado da quadra, Andrew.
As Raposas pegaram os equipamentos que faltavam e entraram em quadra
para começar o aquecimento. Neil ficou feliz em ter que pegar leve, porque
estava mais interessado em analisar o estado de seu corpo do que em supe-
rar os goleiros da própria equipe. Quando viu Riko, cada um de seus ma-
chucados já a ponto de ficarem curados pareceu latejar, mas já não sentia
quase nada. A única coisa que importava era sua equipe e a forma como ela
se movia ao seu redor.
Tiveram que sair da quadra para o cara ou coroa. Dan ganhou, então as
Raposas sairiam jogando. Wymack tinha alguns segundos antes de começa-
rem a anunciar as escalações para reunir a equipe de novo.
— Lembrem-se: são duas de três vitórias para podermos avançar, e vocês
não podem se dar ao luxo de perder o primeiro jogo da temporada. Atacan-
tes, três gols de cada um, ou vou fazer vocês correrem uma maratona. De-
fensores, se fizerem merda, vão correr junto com eles. Meias: vocês conse-
guem. Renee, jogue do jeitinho que você sabe. Andrew, se tomar três gols ou
menos durante o primeiro tempo, vou te comprar todo o álcool que você
conseguir enfiar no seu armário.
O narrador anunciou as escalações titulares, chamando os jogadores para a
partida. Neil assumiu seu posto no meio da quadra e olhou uma última vez
para Kevin. Por algum milagre, Beckstein seria o marcador dele. Kevin res-
pondeu ao olhar com um menear de cabeça. Neil estava quase pulando no
mesmo lugar de ansiedade, quando a buzina finalmente soou.
Durante um tempo, a partida pareceu equilibrada. Houve alguns conflitos,
alguns incidentes e uma bela quantidade de xingamentos trocados. Wymack
fez bem em avisá-los sobre os meias dos Touros-texanos. A titular da equipe
era rápida e jogava baixo. Ela e Dan se empurravam quase o tempo todo. Até
quando a bola estava do outro lado da quadra, ambas batiam as raquetes
uma na outra para obter o controle do embate. Neil não sabia como, mas
Dan conseguiu aguentar por muito tempo sem perder a linha, o que durou
cerca de dez minutos.
Na próxima vez que a bola foi na direção das meias, Dan se esquivou, en-
ganchou o corpo na marcadora e atirou-a no chão. Para tornar tudo ainda
mais insultante, estendeu uma mão à garota caída, para ajudá-la a se levan-
tar. No segundo seguinte, as duas estavam apontando dedos uma na cara da
outra, com vozes estridentes. Os árbitros atravessaram a quadra até elas. Era
bem provável que dessem um cartão para Dan pela finta perigosa, mas a ou-
tra meia deu um soco na boca dela. Dan ergueu as mãos e se recusou a reta-
liar. Não teria por que, já que conseguira o que queria. As duas meias leva-
ram cartões amarelos e, por ordem dos árbitros, a partida reiniciou de uma
posição neutra.
A quase briga foi a gota de água, e o restante do primeiro tempo foi violen-
to. Quando a buzina soou indicando o intervalo, Neil sentia o corpo todo
doer, mas não se importava. Andrew fizera o que Wymack havia pedido e
tomara apenas dois gols. As Raposas, no entanto, já haviam marcado quatro.
Neil seguiu os colegas de equipe para fora da quadra, passando por Wy-
mack, que dispensava com tato os repórteres, e caminhou depressa até o
vestiário. Então a dor voltou com tudo. Abby o puxou para outra sala para
avaliá-lo rapidamente, e Neil não teve fôlego para dispensá-la.
No segundo tempo, os Touros-texanos voltaram com força total, o que fez
com que dois de seus jogadores levassem cartão vermelho e outros cinco,
cartão amarelo. O estilo ardiloso de jogo era cansativo para as Raposas, mas
elas sabiam que não deveriam revidar. Um único cartão amarelo não os co-
locaria no banco, mas dois seguidos faria com que fossem expulsos da parti-
da, e não tinham reservas. As Raposas se mantiveram tão calmas quanto pu-
deram, controlando com cuidado suas numerosas transgressões, e buscaram
converter o máximo de faltas que conseguiam. Valeu a pena, pois o placar fi-
nal foi de sete a seis para as Raposas.
Quando a equipe saiu da quadra em fila, Renee se aproximou de Riko. Não
era do tipo que se metia em brigas, então Neil parou para observá-la. Riko
não aceitou a mão que Renee estendia, mas Jean, sim. O aperto durou um
pouco além do que deveria, mas Neil não saberia dizer qual dos dois foi
mais lento em soltar.
Neil se lembrou da reação estranha que Jean tivera no banquete de outono
ao falar com Renee, o olhar demorado e o jeito desconfortável como se apre-
sentara. Era a lembrança que procurara na semana anterior, enquanto lia su-
as mensagens no Reddin. Jean aceitava a crueldade de Riko e Tetsuji porque
não tinha ninguém além dos Corvos. Sem mais nada por que viver e sem
motivos para lutar, abaixava a cabeça e se concentrava em sobreviver. Renee
foi a primeira coisa fora do comum a chamar a atenção dele.
— Ele tá a fim dela — disse Neil, mais como uma afirmação do que uma
pergunta.
Kevin também os observava.
— Não importa. Não vai dar certo.
No outono anterior, Renee contara a Neil que os Corvos não tinham per-
missão para namorar. Tetsuji não queria que nada desviasse a atenção da
equipe do jogo. Renee sabia disso, mas ainda assim fora até lá. Talvez Neil
estivesse interpretando errado as intenções dela, mas estava disposto a ex-
plorar todas as possibilidades.
— Pode ser que não, mas seria uma vantagem pra gente. Você ainda tem o
número dele? Passa pra Renee, e vamos ver o que ela consegue fazer daqui
até a final.
Dan e Kevin tinham concordado de antemão que seriam eles a lidar com
os repórteres após o jogo. Neil estava contente em deixá-los ali e seguir os
colegas de equipe, todos animados, até o vestiário, mas não chegou longe.
Deu cerca de oito passos quando uma repórter gritou para ele:
— Neil, é verdade que você está na mira da seleção?
O mais inteligente a se fazer era continuar andando e fingir que os gritos
dos torcedores abafaram a pergunta, mas Neil parou. Olhou para a frente,
pesando todas as respostas que poderia, mas não deveria dar. Por fim, deci-
diu se virar. A presença de Riko significava que Andrew ficaria perto de Ke-
vin, mas, após uma pergunta tão ousada quanto aquela, era para ele que An-
drew olhava. Neil inclinou a cabeça em uma pergunta silenciosa, e Andrew
sinalizou para que dissesse o que quisesse.
Neil tirou o capacete e se aproximou dos três repórteres. Andrew tirou o
capacete das mãos de Neil quando ele passou, e Renee, por sua vez, pegou-o
das mãos de Andrew e seguiu em direção ao vestiário. Neil enfiou as luvas
embaixo de um dos braços e parou ao lado de Kevin.
— Desculpa. O que você perguntou?
— Está rolando um boato de que você foi convidado para a seleção dos so-
nhos. — A repórter enfiou um microfone nas mãos dele, com os olhos gru-
dados no curativo preso à maçã do rosto de Neil graças ao suor e às fitas. —
Algum comentário?
Da primeira vez que alguém perguntara sobre as tatuagens no rosto de
Riko e de Kevin, Riko não fez rodeios. Respondeu que era o melhor atacante
do esporte e queria que todos soubessem disso. Quando Jean apareceu em
público pela primeira vez com o “3” tatuado, a história mudou. Riko estava,
supostamente, escolhendo a dedo a futura seleção de Exy. Ele a chamou de
“a seleção dos sonhos”, e apesar de não ser uma escolha oficial e uma postura
um tanto arrogante, seu talento e o desenrolar dos fatos conferiam credibili-
dade à ideia.
— Ah, você está falando disso aqui — disse Neil.
Ele tirou a atadura do rosto e permitiu que os repórteres dessem uma boa
olhada na tatuagem. Uma das repórteres se irritou com o câmera e exigiu
que filmasse mais de perto, e Neil, obediente, inclinou a cabeça para que to-
dos pudessem ver melhor. Estava sorrindo de novo, e dessa vez não tentou
esconder. Os repórteres eram tão burros, ou tão desesperados por uma his-
tória, que não conseguiriam ler a ameaça em sua expressão. Kevin sabia me-
lhor e silvou em um francês tenso:
— Não provoque ele.
A vontade de sufocar Kevin era tão ameaçadora quanto efêmera. Neil não
perdeu tempo olhando para ele e se dirigiu aos repórteres.
— É impressionante, não? Acho que é a primeira vez que Riko cometeu um
erro. Ele sempre pareceu cabeça-dura demais pra admitir quando errava.
— Você acha que ele cometeu um erro ao tatuar você? — perguntou um re-
pórter.
— Você acha que não merece esse número? — disse outro repórter ao mes-
mo tempo.
Neil fingiu estar surpreso com o fato de não terem entendido.
— Eu não acho que ele mereça a gente — disse, apontando para si próprio
e para Kevin —, mas isso é irrelevante.
— Como assim?
— Olha, vou ser sincero. — Neil começou. — Eu sei que o Riko é bom. To-
do mundo sabe. Ele conseguiu ir longe graças ao nome do tio, e os Corvos
têm números impressionantes. Mas é bem difícil respeitar Riko como ser
humano. Até dezembro, eu achava que ele era só um maníaco egocêntrico
tão desesperado pelo momento de glória que se recusava a enxergar o po-
tencial de qualquer outra pessoa. E claro que ele presumiu que eu era um ze-
ro à esquerda vindo sabe-se lá de onde que não tinha direito a ter qualquer
tipo de opinião.
“Tentamos chegar a um acordo no Natal. Riko me convidou pra treinar
com os Corvos durante as festas de fim de ano pra eu ver a discrepância en-
tre as nossas equipes. Saí de lá com isso.” Neil apontou para a tatuagem na
maçã do rosto. “Ele admitiu que estava errado a meu respeito, e eu prometi
que cumpriria as expectativas dele. Não vamos ser amigos e com certeza
nunca vamos gostar um do outro, mas vamos lidar com a presença do outro
pelo tempo que for preciso.”
— Houve um boato de que você poderia se transferir para a Edgar Allan.
— Isso foi mencionado quando eu estava lá, mas nós dois sabemos que
nunca vai acontecer. Nunca vou chegar aonde preciso se jogar com os Cor-
vos. Além do mais, quase não aguentei ficar com eles por duas semanas. Não
consigo nem imaginar jogar naquela equipe por quatro anos. Eles são pesso-
as horríveis.
“Mas quer saber?”, acrescentou Neil, antes que os repórteres o interrompes-
sem. “Isso foi babaca da minha parte. Disse que ia ser honesto, mas isso foi
honestidade demais. Então, vamos deixar assim: prometemos uma revanche
aos Corvos nesta primavera, então vou torcer pra que eles cheguem à final.
Se o Riko não achasse que conseguiríamos chegar lá, não teria feito essa ta-
tuagem em mim e não teria atravessado o país só para nos ver em quadra
hoje. Ele sabe que essa possibilidade existe, só não percebeu ainda que, da
próxima vez que nos enfrentarmos em quadra, vai ser a gente que vai ga-
nhar. Fiquem de olho. Vai ser um ano e tanto. Boa noite.”, concluiu, quando
começaram a fazer perguntas. Ele se virou e foi em direção ao vestiário, fin-
gindo que não ouvia os repórteres chamando.
A risada gostosa de Dan indicava que ela viera atrás dele, mas Neil não se
virou para ver se Andrew e Kevin a acompanhavam. A porta do vestiário se
fechou atrás deles, abafando grande parte dos gritos da torcida, e Neil ouviu
o final da reclamação rabugenta de Kevin. Sentiu a irritação dominá-lo de
novo, mas dessa vez não tentou reprimi-la. Ele se virou e usou toda a força
que tinha para empurrá-lo contra a porta. Kevin era uns bons centímetros
mais alto e ganharia com facilidade em uma briga, mas foi pego de surpresa
demais para se defender. Dan olhava boquiaberta para Neil. Andrew, que
socara Matt por ter batido em Kevin, deu um passo para sair do caminho.
Nenhum dos dois iria interferir, então Neil os ignorou e focou em Kevin.
— Já deu — disse Neil em um francês rápido e furioso. — Nunca mais ten-
te me censurar de novo. Não vou deixar ele controlar o meu desfecho nessa
história.
— Você vai fazer com que ele venha atrás de todo mundo. Você não para
pra pensar — retrucou Kevin.
— E nem você. Você não pode mais ficar com medo dele.
— Não é como se eu tivesse um botão que pudesse ligar e desligar. Você, de
todo mundo, deveria saber disso. — Kevin empurrou Neil, mas não tentou
passar por ele. — Você não cresceu com ele. Não tem o direito de me julgar.
— E não estou julgando. Só estou dizendo que já passou da hora de você se
defender. De que adianta tudo isso se, no fim das contas, você vai continuar
sendo o cachorrinho dele? Se acreditasse mesmo na gente, se acreditasse em
você, se defenderia.
— Você não entende.
— Não entendo mesmo — retrucou Neil veemente. — Você tem uma saí-
da. Você tem um futuro. Então, por que não o aceita? Por que tem tanto me-
do de aceitá-lo?
A raiva que sentia começou a diminuir, cedendo lugar ao peso do luto pre-
maturo e de uma necessidade intensa. A mudança na expressão de Kevin,
passando de irritada para absorta, indicava que percebera o desespero nas
palavras do colega. Neil se apegou à raiva como um escudo e continuou:
— Quando descobri sobre os Moriyama, resolvi ficar porque pensei que
você tinha uma chance. Um de nós tinha que sobreviver, e eu queria que fos-
se você. Mas você ainda acredita nesse número no seu rosto. O que tem de
tão bom em ser o segundo melhor?
Kevin olhou para Andrew, por mais que o colega não conseguisse acompa-
nhar a conversa. No fim das contas, não era um pedido de ajuda, porque Ke-
vin respondeu:
— Quando tentamos levar o Andrew pros Corvos, ele disse a mesma coisa.
Disse que não tinha interesse em mim porque construí minha carreira me
contentando em ser o segundo. Não é isso que eu quero, mas não sou que
nem vocês. — O olhar de Kevin era pura frustração, mas a raiva era mais di-
rigida a ele mesmo do que a qualquer outra pessoa. — Eu sempre fui do
Riko. Sei mais do que ninguém o que acontece quando se desafia um Mo-
riyama.
— Sabe mesmo — concordou Neil. — Mas eles já tiraram tudo que você ti-
nha. O que mais tem a perder?
Kevin não respondeu. Neil esperou um minuto e então se virou. Wymack
esperava no fim do corredor, com os braços cruzados e um cigarro apagado
pendurado nos lábios. Ergueu uma sobrancelha para Neil enquanto ele se
aproximava.
— Não sei se você se lembra, mas a gente ganhou. Algum motivo especial
pra acabar com o clima assim? — comentou Wymack.
— Só uma divergência de opiniões — respondeu Neil, com toda a calma
que conseguiu, mas hesitou a caminho da porta do vestiário e olhou para
Wymack. — Ah, e já peço desculpas antecipadas pela coletiva de imprensa.
Em minha defesa, foram eles que começaram.
— Meu Deus do céu. O que foi que você fez dessa vez?
— Ele disse que Riko é um grande babaca. Não com essas palavras, mas
acho que eles entenderam o recado — contou Dan.
Wymack enfiou o polegar na têmpora.
— Eu devia ter pedido um adicional por periculosidade quando aceitei esse
trabalho. Anda, cai fora. Vai. Só vou lidar com seus problemas de comporta-
mento depois que eu beber. E isso serve pra todos vocês. Sumam da minha
frente e vão tomar banho. Se não estiverem na van, com todos os equipa-
mentos, em vinte minutos, vou largar todo mundo aqui. E, ei — comple-
mentou, antes que eles se dispersassem —, parabéns por hoje.
O treinador dissera que eles tinham só vinte minutos, mas Neil passou dez
no chuveiro. Ligou a água o mais quente que pôde, sem se importar se escal-
dava a pele. Escreveu o nome dele nas paredes de ladrilhos com a ponta dos
dedos, várias e várias vezes, até sentir a mão dormente.
A resposta dos Corvos aos insultos de Neil foi apenas grosseria disfarçada de
gentileza. O único comentário oficial sobre o assunto dizia que pouco se im-
portavam com o que um amador arrogante tinha a dizer a respeito deles.
Neil ficou um pouco surpreso por esse ter sido o único comentário, sem ne-
nhuma zombaria pelo seu desempenho deplorável em dezembro. Mais tar-
de, percebeu que não poderiam atirá-lo aos leões, uma vez que estaria de
volta à Carolina do Sul com o número de Riko tatuado no rosto. Algo assim
significaria minar a opinião de Riko sobre seu valor. Quando foi se deitar,
Neil se sentia um tanto convencido.
Mas os torcedores foram menos receptivos, e as retaliações começaram an-
tes mesmo de o sol nascer no sábado. Batidas pesadas na porta fizeram Neil
acordar assustado. Olhou para o relógio, depois para a janela escura, e esfre-
gou os olhos cansados. As batidas cessaram, mas o celular de Matt começou
a tocar segundos depois. Matt rolou na cama e tateou à procura do aparelho.
As batidas recomeçaram, então Neil se sentou e desceu as escadas.
As vozes no corredor eram tão altas que atravessavam as portas, abafadas,
mas irritadas. Neil não reconheceu nenhuma delas, mas ao abrir a porta, te-
ve a certeza de ouvir a palavra “policiais”. Abriu a boca para perguntar o que
estava acontecendo, mas Dan passou por ele assim que conseguiu se enfiar
pela porta. Neil a observou ir direto para o quarto, então espiou o corredor.
Grande parte das portas estavam abertas, mas apenas alguns atletas estavam
por ali, aos berros uns com os outros. Corriam em direção às escadas como
se suas vidas dependessem disso.
Neil fechou a porta e foi atrás de Dan, que sacudira Matt para acordá-lo e
estava falando quando Neil entrou:
— … destruíram os carros.
Matt rolou na cama e se levantou na hora. Neil subiu as escadas do beliche
até conseguir pegar as chaves embaixo do travesseiro. Matt diminuiu a velo-
cidade para colocar uma jaqueta, ainda vestindo as calças do pijama, e colo-
cou os sapatos. Tateou os bolsos da jaqueta até que as chaves balançassem.
Quando Neil finalmente encontrou os sapatos, Matt já tinha saído, e Dan o
seguia de perto. Neil trancou a porta e correu atrás deles, encontrando-os
nas escadas. Matt desceu o último lance num pulo e escancarou a porta.
Neil não sabia o que era pior: o que via ou o cheiro que sentia. Camadas de
carne crua, ovos quebrados e pedras cobriam o estacionamento e os carros
dos atletas. Alguns veículos tinham apenas amassados e arranhões, mas ou-
tros, rachaduras e buracos nas janelas e para-brisas. Atletas enfurecidos in-
vadiam o estacionamento, metade nos celulares e outros putos da vida com
o estado dos veículos. Alguém já havia entrado para pegar um balde e esfre-
gava a carne do capô com firmeza. Carros-patrulha e seguranças do campus
estavam no local, e alguns policiais recolhiam depoimentos e tiravam fotos.
Se Neil tinha alguma dúvida de que aquilo era culpa dele, mudou de ideia
ao avistar a caminhonete de Matt. Dedicaram um tempo extra a destruí-la.
Todas as janelas da cabine haviam sido quebradas e sobraram apenas pontas
de vidro brilhantes nas molduras. Os pneus haviam sido esvaziados com
golpes violentos. Havia amassados na lataria, feitos com fosse lá o que os ba-
derneiros tivessem usado para quebrar as janelas. O carro de Allison estava
no mesmo estado lamentável, duas vagas depois do de Matt. Ela estava para-
da ao lado da caminhonete, com os braços cruzados e a fisionomia impassí-
vel. Olhou para a frente quando eles se aproximaram, seguindo o olhar vazio
de Matt para seu carro e olhando feio para Neil.
— Que porra é essa?! — reclamou Matt, com a voz estrangulada, então es-
tendeu a mão para a caminhonete, mas hesitou, sem querer tocar naquela
confusão. — Como que ninguém ouviu isso?
— Deixaram as janelas por último — respondeu Allison, e ergueu o queixo
para indicar os homens parados na fileira em frente a eles. — Paris chamou
a polícia quando ouviu o barulho do vidro, mas não conseguiu chegar rápi-
do o bastante pra ver o rosto de ninguém. Só um monte de carros vazando.
Pelo menos quatro, talvez cinco.
— Meu Deus. — Matt estendeu novamente a mão para a caminhonete,
sem tocá-la, contentando-se em passar as mãos pelo cabelo. Dan se aproxi-
mou e o abraçou. Ele segurou os pulsos dela com firmeza. — É sério que va-
mos passar por isso de novo?
— Eu sinto muito — disse Neil.
Allison retorceu a boca com desprezo.
— Fica quieto. Nem vem com essa de pedir desculpas. Nem vem — repetiu
ela, quando Neil abriu a boca para argumentar. Parecia menos uma acusa-
ção e mais uma ordem, então ele obedeceu, ainda que relutante. — Se esque-
ceu quem tem que fazer sua maquiagem todo dia de manhã? Se tivesse dei-
xado eles levarem a melhor ontem depois de tudo isso — ela apontou para o
próprio rosto —, eu ia odiar você.
— Você falou a verdade. Não é culpa sua que eles não gostam dela — co-
mentou Dan.
— Não quero que essa briga afete vocês — disse Neil.
— Agora já é tarde demais pra isso. Mas tanto faz — retrucou Allison. Ela
estava tentando ser condescendente, mas Neil ainda conseguia ver a raiva
em cada linha tensa de seu corpo ao analisar o carro de novo. — Querem
quebrar meu brinquedo? E daí? Eu compro outro. Quem sabe eu até compro
dois. Pro caralho com eles se acham que isso vai me atingir.
— Ei — disse Matt, baixinho, mas insistente.
Neil seguiu o movimento sutil do queixo dele até a porta dos fundos. Era
óbvio que Renee fora a encarregada de contar as novidades para Andrew,
porque ela o guiava pelas escadas rumo ao caos. O carro dele estava na pon-
ta mais longe do estacionamento, a algumas vagas de distância, mas ele foi
com Renee até os veteranos primeiro. Andrew parou ao lado de Neil para
avaliar o estrago. Neil analisou o rosto dele, mas não havia nada para ver.
Andrew parecia tão desinteressado como sempre.
Renee deu um braço para Allison, apertando a mão dela.
— Sinto muito.
— Alguém já ligou pro treinador? — perguntou Neil.
— Ele ligou pra gente — respondeu Dan. — Os policiais estão avisando to-
dos os treinadores e vão fazer com que venham aqui pra ajudar. Ele deve
chegar a qualquer momento.
Andrew murmurou e se afastou. Allison cutucou Renee em uma permissão
silenciosa para que fosse atrás de Andrew, mas olhou para Neil às suas cos-
tas. Neil assentiu e foi atrás dele. Fazias apenas alguns minutos que haviam
chegado, mas já havia o triplo de gente no estacionamento. Apesar do apoio
sarcástico de Allison, Neil não conseguia olhar nos olhos dos colegas. Aque-
las pessoas não haviam feito nada para merecer a desaprovação dos Corvos.
Só tinham ligação com Neil, e estavam sofrendo porque ele não conseguia
ficar de boca fechada.
Isso nunca o incomodara antes. Se importar com as Raposas era um senti-
mento inesperado, mas fácil de ser explicado, uma vez que ele estava passan-
do muito tempo com a equipe. Mas sentir culpa pelo infortúnio de estra-
nhos era novo e desconfortável. Cada voz estridente era como uma faca em
seus ouvidos, e ele odiava a sensação. Por sorte — ou não —, chegaram ao
carro de Andrew, e Neil pôde parar de pensar em todos os outros por alguns
instantes. Quando Andrew parou, Neil ergueu os olhos do asfalto e ficou in-
crédulo.
Os torcedores dos Corvos não haviam se limitado a destruir os pneus e as
janelas de Andrew nem a amassar a lataria. Pelo jeito, também haviam mar-
retado o carro inteiro, abrindo crateras profundas pelo veículo. No que res-
tava do capô destruído, estava escrita a palavra “traidor” em spray vermelho.
Os bancos da frente e de trás haviam sido rasgados até onde as janelas que-
bradas permitiram que as facas alcançassem. Nos bancos de trás, alguém jo-
gara sacos de compostagem cheios de sobras de comida a filtros de café e os-
sos de galinha que formavam pilhas de trinta centímetros. Em cima da mon-
tanha fedorenta havia uma raposa morta.
Um gemido angustiado tirou Neil de seu estado de choque. Ele deu uma
olhada rápida para a esquerda e viu que Nicky havia aparecido com Aaron e
Kevin logo atrás. Nicky parecia arrasado ao ver o estado miserável do carro e
Aaron tinha a expressão de alguém que acabara de levar um soco. Kevin ta-
pava o nariz e a boca para bloquear o cheiro, mas seus olhos verdes estavam
arregalados. Levou apenas um momento para notar que Neil prestava aten-
ção, e seu olhar passava a mensagem gritante de “Eu avisei”. Neil cerrou os
dentes e desviou o olhar.
Nicky cambaleou até o carro e pressionou as mãos trêmulas no capô disfor-
me.
— Não, não, não. O que fizeram com você, baby? O que fizeram… isso é
um animal morto? Meu Deus, Aaron, tem um animal morto no nosso carro.
Eu vou vomitar — disse.
Aaron se aproximou e se inclinou para olhar para dentro. Xingou diante da
visão aterrorizante e recuou na mesma hora. Escondeu o nariz na curva do
cotovelo enquanto dava outra espiada no carro, então olhou furioso para
Neil. Ele já sabia o que estava por vir antes mesmo de Aaron abaixar o braço
e falar.
— Você precisava abrir essa boca enorme, né?
— Desculpa. Achei que ele ia vir atrás de mim. Não pensei que fosse envol-
ver vocês nisso — disse Neil.
— Sei. Seth foi obra do acaso, então? — resmungou Aaron, sarcástico.
Neil se retraiu com tanta força que deu um passo para trás. Ele abriu a boca
para argumentar, mas não conseguiria se defender de uma acusação como
aquela.
No fim das contas, nem precisava. Não tinha percebido que os veteranos
haviam se aproximado para ver como estavam, mas Allison passou por Neil
em um piscar de olhos e deu um tapa tão forte em Aaron que quase o derru-
bou. Poderia tê-lo acertado de novo, mas Andrew se moveu como um raio.
Ele a agarrou pelo pulso, segurou o braço dela atrás das costas e o torceu
com violência, a ponto de fazê-la cair de joelhos. Quando Allison tombou,
Andrew usou a outra mão para segurar sua nuca com força, forçando a ca-
beça da garota para baixo e impedindo que se levantasse. Ela tentou dizer al-
guma coisa, mas foi estrangulada pelo aperto feroz.
Renee foi quase tão rápida quanto ele; talvez tenha começado a se mover
quando percebeu o que Allison faria com Aaron. Não perdeu tempo tentan-
do derrubar Andrew, e optou por se jogar em cima da amiga caída. Envol-
veu Allison com os braços, confortando-a e apoiando-a em um aviso amea-
çador para que não se mexesse, e olhou para a expressão vazia de Andrew.
Em algum lugar atrás deles, alguém dizia “Vish” ao notar a briga breve, mas
feroz; Neil, no entanto, estava mais atento à voz de Renee, insistente ainda
que baixa:
— Andrew, é só a Allison. Tá? É só a Allison.
— Não tem essa de “é só” fulana quando ela coloca as mãos no que é meu.
Solta — ordenou Andrew.
— Você sabe que não vou deixar. Você me disse pra proteger eles — res-
pondeu Renee.
— Você falhou. Devia ter sido mais rápida.
— Puta merda, Andrew — reclamou Matt, com uma ferocidade que era
mais medo do que raiva.
Ele parecia estar odiando ter que ficar ali parado. Neil ficou feliz pelo auto-
controle do colega; não havia como prever o que Andrew faria se Matt o de-
safiasse naquele momento.
Dan estava pálida, congelada ao lado de Matt, com os olhos arregalados vi-
drados em Allison. Nicky, com muito medo de chegar por trás de Andrew,
se abaixou devagar até ficar de joelhos e deslizou a mão pelo asfalto. Ele en-
rolou os dedos em volta dos de Allison e apertou a mão dela com força. Neil
olhou para Kevin, que estava imóvel como uma pedra, e então para Aaron.
A expressão de Aaron parecia dividida, uma mistura de indignação com o
que Allison fizera e medo pelo que o irmão poderia fazer. Neil não sabia pa-
ra que lado Aaron penderia, mas não podia contar com ele para interferir.
— Andrew, devolve ela pra mim — disse Renee.
Estavam chamando muita atenção agora. A qualquer instante, alguém iria
interferir ao notar que as Raposas não se mexiam, e Andrew reagiria à ame-
aça da pior maneira possível. Neil tinha uns dez segundos para consertar a
situação e não fazia ideia de como. Andrew não estava preocupado se ma-
chucaria Allison, então Neil não poderia apelar para seu lado bom. Da últi-
ma vez que Andrew parecera prestes a matar alguém, Neil usara Kevin co-
mo distração. O que não funcionaria daquela vez, mas quem sabe… Neil he-
sitou, então desistiu de reconsiderar.
— Já chega — exclamou, em alemão. Estava perto o bastante para segurar
Andrew, mas ele já dissera que não gostava de ser tocado, então Neil esten-
deu a mão sobre a cabeça de Renee e esperou que Andrew lhe lançasse um
olhar sombrio. Satisfeito por ter a atenção dele, Neil repetiu: — Já chega,
Andrew.
— Isso não é decisão sua.
— Se ela se machucar por sua culpa, vamos ser desqualificados. O CRE não
vai nos deixar jogar com oito pessoas.
— Sua obstinação continua tão repugnante como sempre.
— Você prometeu — insistiu Neil, distorcendo a verdade até quase quebrá-
la. — Você disse que ia parar de menosprezar todo mundo. Disse que ia coo-
perar pelo menos até destruirmos os Corvos na final. Era tudo mentira?
— Eu não prometi nada disso — retrucou Andrew.
— Você prometeu cuidar de mim este ano, e eu disse pra você onde eu que-
ria chegar. É tudo a mesma coisa a essa altura, queira você ou não. Então,
você vai me proteger? — Quando o outro não respondeu rápido o bastante,
Neil insistiu: — Andrew, olha pra mim.
A boca de Andrew se contorceu com violência em uma careta reprimida a
muito custo, e ele enfim retribuiu o olhar. A expressão sombria em sua fisio-
nomia quase tirou o fôlego de Neil. Logo após o choque, veio o triunfo. Fa-
zia duas semanas que Andrew voltara de Easthaven, e aquele era o primeiro
sinal de que havia algo acontecendo por trás da máscara de indiferença. Neil
teria preferido ver o verdadeiro Andrew em circunstâncias mais seguras,
mas sentiu um enorme alívio ao perceber que ele podia ser acessado.
— Vai se foder — respondeu Andrew.
O tom de sua voz fez os pelos de Neil se arrepiarem. Ele sustentou o olhar
de Andrew, desafiando-o em silêncio a direcionar aquela raiva para ele, não
para Allison.
— Você vai ou não vai? — perguntou Neil.
— Eu também fiz uma promessa pra ele — disse Andrew. — Não posso
quebrar essa promessa pra manter a sua.
Neil não entendeu, mas Aaron enfim se sentiu obrigado a escolher um la-
do.
— Andrew, isso… — Ele vacilou, e Neil desejou ter coragem para desviar o
olhar de Andrew para analisar a expressão de Aaron. Não sobrara um res-
quício de raiva em sua voz; ele parecia quase perdido. Andrew não olhou
para ele, mas a leve inclinação de sua cabeça em direção ao irmão indicava
que prestava atenção. — Não, Andrew. Não. Tá tudo bem. Eu tô bem. Nem
doeu.
Neil guardou aquela informação para perguntar mais tarde. Temia já saber
a resposta. Sua esperança era de que estivesse errado, porque se descobrisse
que Aaron poderia ser burro a tal ponto, seria capaz de sufocá-lo até a mor-
te.
Andrew olhou para Neil por mais um momento interminável, então rela-
xou o aperto mortal em Allison e a deixou cair, ofegante, no asfalto. Com o
fim da ameaça, Neil achava que Dan ou Matt fossem retaliar de imediato.
Estendeu a mão em direção a eles em um aviso, apenas para se assegurar.
Não poderia detê-los se de fato quisessem passar, mas, por sorte, ambos
obedeceram à ordem silenciosa de ficarem parados.
A seus pés, Renee murmurava palavras de encorajamento abafadas no ca-
belo da amiga. A resposta de Allison foi rouca demais para ser inteligível,
mas ela permitiu que Renee a ajudasse a se levantar. Renee a virou e a guiou
até Dan e Matt. Os dois foram rápidos em apoiá-la entre eles. Renee ficou
um pouco para trás, uma barreira silenciosa, mas física, entre os veteranos e
Andrew. Neil arriscou um olhar para Aaron, mas este olhava para o irmão
como se nunca o tivesse visto.
Quando Dan se certificou de que Allison estava bem, virou-se para An-
drew com um olhar letal.
— Seu escroto. Ela podia ter se machucado de verdade!
— Você não tem o direito de parecer surpresa — retrucou Andrew. A fúria
havia desaparecido de seus olhos; a fisionomia havia retomado a inexpressi-
vidade de sempre e os ombros estavam relaxados. Parecia entediado de no-
vo, como se nada daquilo tivesse acontecido ou importado. — É a segunda
vez em duas semanas que um de vocês se esquece de quem é. Deviam ter
aprendido a lição da primeira vez. Não pode se sentir ofendida por me for-
çar a fazer isso.
— Isso não…
Uma voz estrondosa cortou a fala de Dan.
— Que porra é essa que tá acontecendo aqui?
O coração de Neil parecia querer pular do peito. Ele tinha ficado tão con-
centrado em Andrew que não ouviu quando Wymack se aproximou. Olhou
para trás, mas teve que desviar no mesmo instante ao perceber o ódio no
rosto do treinador. Wymack varreu a equipe com um olhar ameaçador e es-
perou até que se recuperassem do susto. Dan foi a primeira a conseguir falar.
— Nada — disse, uma mentira descarada. — Só repensando todas as vezes
que defendemos a decisão de recrutar os monstros.
— Ei — protestou Nicky, desconfortável demais para soar ofendido. Fez
uma careta quando Dan o olhou com desaprovação, mas continuou: — An-
drew pode ter exagerado, mas ele está certo. Foi ela quem começou.
— Nem tenta justificar isso. Não se retribui um soco com um pescoço que-
brado — retrucou Matt.
— Não de onde você vem — ironizou Andrew.
— Do mundo real? — disse Matt, cheio de sarcasmo.
— Não — comentou Andrew, com uma calma em que Neil mal conseguia
acreditar. Andrew bateu o dedo nos lábios duas vezes, em um alerta para
que Matt ficasse em silêncio, e apontou para ele: — Um moleque privilegia-
do como você não sabe nada do mundo real. Não fale como se soubesse.
— Chega — interveio Wymack, e estalou os dedos para os veteranos. —
Onde estão os carros de vocês? — Dan indicou por cima do ombro, irritada
demais para responder. Wymack apontou. — Vão esperar perto dos carros.
Chego lá em dois segundos. Anda, vão logo.
O treinador esperou que começassem a se espremer entre os carros para
chegar até os deles, então dirigiu seu olhar glacial para o grupo de Andrew.
Deixou Neil por último.
— Ninguém respondeu minha pergunta. Que porra tá acontecendo?
Não teriam por que mentir, já que os veteranos contariam tudo à Wymack,
então Neil resumiu da forma mais breve que conseguiu.
— Allison bateu no Aaron, e o Andrew revidou.
Wymack fechou os olhos e colocou a ponta do indicador e do polegar entre
as sobrancelhas. Era óbvio que estava se esforçando para não perder o con-
trole, sem querer colocar lenha em uma situação já terrível, mas levou uma
eternidade até que abaixasse a mão.
— Andrew, vamos conversar sobre isso. Não, eu vou falar e você vai ouvir.
Hoje, mas não agora. Depois que resolvermos todo o resto desse caos. En-
tendido? — Wymack deu um minuto para que Andrew concordasse, então
complementou: — Não ouvi sua resposta.
— Você vai falar, eu vou ouvir — disse Andrew, e nem mesmo Neil saberia
dizer se ele estava concordando ou resumindo as exigências de Wymack.
— Vou ver como eles estão — disse Wymack —, já volto. Quando eu voltar,
vamos nos concentrar no verdadeiro problema e no verdadeiro inimigo. Fui
claro?
— Como água — respondeu Nicky, a voz fraca.
— Sim, treinador — acrescentou Neil.
Wymack saiu batendo os pés, e o grupo esperou em silêncio até que ele re-
tornasse. Neil alternava o olhar entre Andrew e Aaron. Andrew, assim como
Nicky, voltara a atenção ao carro estraçalhado. Aaron continuava olhando
para Andrew como se todas as respostas do universo estivessem fora de seu
alcance. Kevin se mantivera fora da briga, mas enfim avançava para assumir
seu lugar ao lado de Andrew.
O treinador se ausentou por um bom tempo, mas acabou por voltar. Estava
falando sério quando disse que dariam uma pausa na briga das Raposas.
Não teceu mais nenhum comentário acerca da violência de Andrew ou da
segurança de Allison. Em vez disso, olhou por bastante tempo para o carro e
pegou um cigarro. Andrew ergueu a mão assim que o treinador o acendeu.
Wymack entregou o cigarro sem hesitar e acendeu outro.
— Bom, pelo menos você aumentou a cobertura do seguro ano passado —
disse Wymack.
— O que não adianta porra nenhuma. — Nicky enfiou as mãos nos bolsos
e apontou o para-choque torto com o pé. — Não dá pra consertar essa por-
caria. Mesmo que eles arranquem tudo e substituam toda a parte de dentro,
não vou conseguir andar nesse carro sem entrar em pânico. Você viu a rapo-
sa, treinador? Colocaram um animal morto no nosso carro. Eca.
— Filhos da puta — exclamou Aaron.
Neil se sentiu perdido assim que avistou os policiais. Estavam a apenas dois
veículos de distância do carro de Andrew. Não ficou tenso ao avistá-los, mas
foi por pouco. Afastou o olhar sem tentar dar na cara, mas o que via na ou-
tra direção também não lhe agradava.
— Repórteres— apontou ele.
Em algum momento, a polícia havia isolado o estacionamento e estabeleci-
do um posto de controle para os veículos que chegavam. Duas vans da im-
prensa estavam paradas fora da área cercada e os repórteres fotografavam a
cena lamentável.
Alguns minutos depois, os policiais se aproximaram. Um deles deu uma
volta lenta, anotando o número da placa e provavelmente os detalhes a res-
peito dos muitos estragos. Na segunda volta, segurava uma câmera, e com
uma mão impaciente enxotava as Raposas para que conseguisse tirar boas
fotos. O outro policial lançou um olhar cansado para eles, com a caneta po-
sicionada sobre o bloco de notas, e disse:
— De quem é esse carro?
— Nosso — respondeu Nicky, erguendo a mão. — Bom, está no nome do
Andrew, mas eu também estou no seguro. Somos primos, sabe como é.
Nicky Hemmick e Andrew Minyard, quarto 317. Se precisar dos documen-
tos ou coisa do tipo, posso dizer onde estão, mas prefiro não ir pegar. É só
olhar dentro do carro que você vai entender. Não, sério, olha lá.
O policial olhou de relance para o carro, mas não teceu comentários sobre
seu estado deplorável. Neil imaginou que ele devia ter parado de se importar
uns sessenta atletas irritados atrás. Tudo o que disse foi:
— Vocês viram ou ouviram alguma coisa atípica ontem à noite ou hoje de
manhã?
— Sexta-feira em um campus universitário — falou Nicky, dando de om-
bros —, você aprende a ignorar o mundo do lado de fora se quiser dormir.
Além disso, nosso quarto é virado pra frente do prédio.
— E você? — perguntou o policial para Aaron.
— Não — respondeu ele.
Por último, o policial olhou para Andrew, que retribuiu o olhar em um si-
lêncio apático e deu uma longa tragada no cigarro. Nicky esperou apenas al-
guns segundos até responder:
— Ele descobriu na mesma hora que eu. Renee passou no quarto e acordou
a gente assim que soube. Hum, Renee é nossa colega de equipe. — Quando
o policial o encarou por responder, Nicky deu novamente de ombros. — É,
desculpa. Andrew não fala com policiais. É uma longa história e totalmente
irrelevante. Precisa de mais alguma informação?
O policial só tinha mais duas perguntas, às vezes se dirigindo à Andrew
apesar do aviso, e outras falando com Nicky e Aaron. Andrew logo parou de
prestar atenção ao interrogatório e deixou o olhar vagar. Nicky tentava res-
ponder o mais rápido que podia. Depois de um tempo, os policiais final-
mente seguiram em frente.
Dois agentes da seguradora chegaram de escritórios locais para dar uma
olhada na confusão e conversar com os clientes. A mulher que representava
a agência de Andrew deve ter levado uma folha de consulta, porque cumpri-
mentou os primos pelo nome e expressou sua compaixão por passarem por
aquilo uma segunda vez. Enquanto conversava, fazia anotações e tirava fo-
tos, e os carros do guincho entraram em cena e começaram o vagaroso pro-
cesso de levar cada um dos veículos para as oficinas.
— Vamos pagar o aluguel de carros e vans durante uma semana — comen-
tou Wymack, quando ela foi para o próximo cliente. — Vou reservar os car-
ros que precisamos ainda hoje. Pode ser que demorem um pouco até chega-
rem em vocês — gesticulou, indicando a enormidade da tarefa que aguarda-
va as equipes locais —, então me avisem assim que receberem uma previsão.
Posso estender o prazo se for preciso.
— Pode deixar, treinador — respondeu Nicky.
— Conseguem ficar tranquilos aqui por um tempinho? — perguntou Wy-
mack, e quando eles assentiram, o treinador foi procurar o restante da equi-
pe.
Não havia muito o que fazer além de esperar. Os policiais levaram mais de
uma hora para conversar com todos e os caminhões de reboque levaram
ainda mais tempo até que se notasse o efeito do trabalho. Wymack voltou
quando os policiais acabaram de falar com Allison e Matt. Os veteranos vi-
nham logo atrás, para a surpresa de Neil. Dan e Matt ainda pareciam um
pouco irritados, mas sobretudo tinham um aspecto cansado. Allison fez
questão de encarar Andrew, uma declaração silenciosa de desprezo e cora-
gem.
— Andrew e eu vamos buscar almoço pra todo mundo. Preferências? —
perguntou Wymack.
Neil duvidava que alguém estivesse com fome após passar a manhã inteira
imerso no fedor do estacionamento, mas ninguém dispensaria comida de
graça. Fizeram uma votação indiferente, e Andrew se afastou com Wymack.
As Raposas ficaram ali, observando os dois se afastarem em um silêncio des-
confortável. Por fim, Neil arriscou um olhar para Allison. Ele abriu a boca,
precisando e querendo dizer o que deveria ter dito meses atrás, mas mesmo
após tanto tempo não conseguia encontrar as palavras certas.
— Obrigada — disse Allison, sem graça.
Era tão injusto que Neil se sentiu coagido a dizer:
— Desculpa.
O pedido era desproporcional a tudo o que ele a fizera passar, a tudo o que
fizera todos passarem ao decidir ficar, mas era só o que podia dizer. Pelo
olhar de Allison, ficou nítido que sabia pelo que ele tentava se desculpar. Ela
franziu os lábios, como se não soubesse qual resposta dar. Antes que a garo-
ta pudesse se decidir, Dan falou:
— A gente soube, quando assinou com vocês, que teríamos problemas —
disse ela, olhando de Aaron para Nicky. — Apesar de todos os boatos e pro-
testos, acolhemos vocês aqui por acreditar em vocês. Defendemos e apoia-
mos vocês e deixamos passar um monte de merda que ninguém mais teria
entendido. Tentamos ser bons colegas de equipe e amigos e estendemos a
mão pra vocês um milhão de vezes.
“Mas tudo tem um limite. Se cruzarem esse limite de novo, acabou. Vocês
não vão. Entenderam? Não vão”, repetiu ela, furiosa, “machucar mais nin-
guém nessa equipe. Estão me entendendo?”
O bom humor tão característico de Nicky desaparecera. Ele parecia quase
derrotado quando olhou entre Dan e Allison.
— Eu entendo, e você está certa, mas sinto muito. Não posso prometer na-
da. Andrew… Andrew. A gente não consegue prever nem controlar o que
ele faz.
— Ele consegue — disse Matt, apontando o queixo para Neil. — Por que
vocês não conseguem?
— Menos instintos de sobrevivência? — sugeriu Nicky, mas sua tentativa
de fazer piada não deu certo.
— Mais — corrigiu Neil, sabendo que Nicky não compreenderia.
Matt se virou para Neil com um olhar enfático.
— Nem a Renee estava conseguindo convencê-lo. O que foi que você disse
pra ele parar? Se não estiver aqui da próxima vez, outra pessoa precisa saber
como fazer com que ele se acalme.
Neil não poderia explicar sem entrar em assuntos que não eram da conta
deles.
— É só não deixar que aconteça uma próxima vez.
— Neil, estou falando sério — reclamou Matt.
Neil balançou a cabeça.
— E eu também.
— Allison, ele machucou você? — perguntou Kevin.
Allison conhecia Kevin bem demais para achar que a preocupação dele ti-
nha a ver com o bem-estar dela. Olhou impaciente para ele e não respondeu.
Kevin interpretou o silêncio como quis e lançou um olhar pensativo para
Neil. Depois de um momento, estendeu a mão e cobriu a tatuagem de Neil
com o polegar. O resultado o fez franzir a testa, não de decepção, mas de
confusão, e Kevin baixou a mão de novo. Neil esperou, mas ele não disse na-
da.
— Vamos entrar — disse Dan, e as Raposas abatidas se arrastaram para
dentro.
Aaron, Kevin e Nicky entraram no quarto e estavam prestes a fechar a por-
ta quando Neil colocou a mão na maçaneta para impedir Nicky. As meninas
seguiram Matt até o quarto deles, mas levaram alguns instantes para perce-
ber que Neil não as acompanhava. Neil ergueu um dedo para prometer que
iria logo e passou por Nicky, que fechou e trancou a porta assim que ele es-
tava lá dentro, seguro.
Aaron se jogou em um dos pufes e não se deu ao trabalho de olhar para ci-
ma quando Neil parou à sua frente. Neil enfiou as mãos nos bolsos para não
usá-las contra Aaron e se agachou. Aaron franziu os lábios, destemido e in-
solente. Neil cerrou os punhos. Tentou contar até dez em sua cabeça, mas
chegou apenas até seis.
— Me diz que você não é tão burro assim — começou Neil.
— Esse quarto não é seu. Cai fora — retrucou Aaron.
— O que foi que ele prometeu pra você? — perguntou Neil, ignorando-o.
— Ele não disse que ia manter você a salvo. Se fosse isso, não teria permitido
que o Kevin ficasse ano passado. Então, de quem ele prometeu proteger vo-
cê? — Ele esperou por um minuto para ver se Aaron cooperaria, então ten-
tou adivinhar: — Ele voltou pra casa e descobriu que a sua mãe batia em vo-
cê. Disse que se você não conseguia se defender de uma mulher, então ele
mesmo teria que fazer isso. Foi isso, né? Você só precisava ficar ao lado dele
até a formatura.
— Não importa.
— É óbvio que importa — disparou Neil. Aaron fez uma careta, mas desis-
tiu de negar. — Você sempre soube por que ele matou a mãe de vocês. Por
que me fez ter que falar de novo?
— Não — argumentou Aaron no mesmo instante. — Aquilo não teve nada
a ver comigo. Andrew me fez essa promessa na segunda noite em que estava
em casa, mas esperou cinco meses pra matar nossa mãe. Você não viu os he-
matomas que ela deixou nele quando achou que era eu, naquela noite.
— Andrew não se importava que ela machucasse ele. Só se importava
quando ela machucava você. Só levou todo aquele tempo porque leva tempo
para planejar um acidente.
— Você não sabe se isso é verdade.
— Sei, sim. E você também saberia se prestasse atenção no jeito que ele tra-
tou você em Colúmbia. Você soube antes de mim porque ele se virou contra
Allison hoje. Só você pode parar o Andrew. Descobre logo o que você preci-
sa fazer, o que você precisa perdoar, pra ele deixar você ir.
Neil bateu a porta ao sair, mas ficou paralisado no corredor. Sabia que não
deveria voltar para os veteranos naquele estado. Não era o momento nem o
lugar para aquilo, não com a equipe em uma situação tão delicada, mas o
temperamento de Neil nunca soube o tempo apropriado de se manifestar.
Não dava para saber com quem ele estava mais irritado: com Aaron, por ser
tão burro, ou consigo mesmo, por não juntar as peças antes. O fato de estar
irritado com Nicky e Kevin por serem tão inúteis também não ajudava.
Não conseguia se acalmar, então fez a única coisa que podia: desceu as es-
cadas e foi correr. Não tinha a intenção de ir para a quadra, mas foi inevitá-
vel que acabasse lá. Colocou as chaves no banco da equipe da casa ao passar
e correu pelos degraus do estádio. No meio do caminho, sentiu que final-
mente deixara os pensamentos para trás. Deixou de sentir, deixou de ser o
“Neil”, deixou de ser qualquer coisa além de um corpo em movimento.
Quando parou de correr, caminhou pela área técnica. Cada respiração trê-
mula ardia nos pulmões fatigados, mas pelo menos se sentia normal de no-
vo.
Pegou as chaves ao sair e trancou as portas. A caminhada de volta à Torre
das Raposas foi lenta, e ele subiu as escadas até o terceiro andar. Matt estava
no sofá do quarto, Dan de um lado e Renee do outro. Allison havia reivindi-
cado uma das mesas. Todo mundo olhou para a porta quando ele entrou e,
pela expressão deles, Neil teve a sensação de que havia interrompido uma
conversa importante. Ele ergueu a mão a caminho do banheiro como um
pedido de desculpas pela interrupção e uma promessa silenciosa de que não
ouviria nada do que diziam quando estivesse no chuveiro.
— O almoço está na geladeira. O treinador veio trazer enquanto você esta-
va fora — disse Matt.
Neil tinha se esquecido da comida.
— Valeu.
Abriu o armário para tirar as roupas, mas hesitou ao ver o cofre. Ele se aga-
chou para passar os dedos pela fechadura, os pensamentos girando a mil
quilômetros por hora. Se perguntou quanto a seguradora cobriria para con-
sertar os carros dos colegas de equipe. Mesmo que não fosse possível cobrir
tudo, Allison e Matt tinham dinheiro para pagar o restante. Os primos não
tinham tanta grana, e o carro deles era quase tão caro quanto o de Allison.
Nicky já havia previsto que as notícias que receberiam não seriam boas.
Neil se distraiu ao ouvir um sapato bater no carpete fino. Ele se inclinou
para fora do armário para olhar. Allison estava de pé na porta, com uma ex-
pressão cautelosa e os braços cruzados.
Neil ainda não sabia o que dizer, mas tinha que tentar alguma coisa.
— Sinto muito. Ele não merecia aquilo.
Allison ficou em silêncio por uma eternidade, até que disse:
— Você mesmo falou. Se a gente sempre tivesse o que merecia, não sería-
mos Raposas.
As palavras soaram insensíveis quando aplicadas à morte de Seth. Neil es-
tremeceu, mas Allison deu de ombros e desviou o olhar.
— Talvez seja melhor assim. Se a culpa fosse dele, eu teria que viver saben-
do que nunca consegui fazer com que mudasse. Pelo menos assim sei que há
um culpado.
— Andrew contou pra você sobre o Riko?
— Sei disso desde o dia em que aconteceu. O monstro passou na casa da
Abby antes do funeral pra me perguntar sobre o remédio do Seth. Ele me
contou a teoria dele pra garantir que eu voltasse às quadras.
Neil pensou na volta prematura de Allison para o primeiro jogo após a
morte de Seth e em como Andrew parara ao lado dela a caminho do gol. Na
época, achara suspeito que Andrew oferecesse qualquer tipo de apoio. Tal-
vez ele a estivesse lembrando de sentir raiva.
Depois da morte de Seth, Allison havia passado duas semanas sem falar
com Neil. Na época, ele havia pensado que o afastamento era por causa do
luto. Aceitara o desprezo, sem saber como falar com ela devido à consciência
pesada. Mas se a garota sempre soubera da teoria de Andrew, tinha cons-
ciência de que a culpa era, em parte, de Neil. Talvez fosse por esse motivo
que Andrew tivesse se envolvido: havia prometido proteger Neil, então pre-
cisava se certificar de que Allison não seria um problema.
Em algum lugar ao longo do caminho, ela o havia perdoado sem que Neil
sequer soubesse.
— Eu deveria ter dito algo antes. Eu só não… — Neil gesticulou, sentindo-
se impotente, perdido, péssimo. — Não sei como falar com as pessoas sobre
as coisas importantes.
— Já deu pra perceber. — Allison deu de ombros como se não fosse grande
coisa, quando ambos sabiam que era. — Você é uma figura e tanto. Um dia
desses, vai ter que me dizer o porquê.
Ela voltou para a sala, deixando Neil sozinho com seus pensamentos e se-
gredos.
Depois do banho, Neil estava prestes a sair do quarto quando seu celular
apitou. Ele apalpou os bolsos, que estavam vazios, e então pegou o aparelho
debaixo do travesseiro. Havia duas mensagens, uma de Nicky, enviada havia
quase uma hora, e a mais recente era de Katelyn. Era apenas uma pergunta
desesperada, “O que aconteceu???”, e Neil não se deu ao trabalho de respon-
der.
A de Nicky era um aviso de que Andrew havia retornado. Parecia redun-
dante, pois se Wymack levara comida para eles, parecia óbvio que Andrew
estava junto. Mas conhecendo Nicky, soube que era um pedido velado para
que fosse até lá se certificar de que estava tudo bem. Neil enfiou o celular no
bolso de trás e saiu do quarto sem dizer nada a ninguém. Nicky atendeu à
batida em segundos e não precisou perguntar por que ele estava ali.
— Ele pegou uma garrafa e saiu de novo. Não sei pra onde foi — revelou
Nicky.
Andrew não poderia ter ido longe com uma garrafa de bebida aberta e sem
o carro.
— Com o treinador?
— Acho que não. Aaron também saiu, logo depois de você.
Neil não se importava com o que Aaron fazia. Ele assentiu e saiu. Nicky
não o chamou. Neil subiu as escadas até o telhado e forçou a maçaneta como
vira Andrew fazer. Só precisou de algumas tentativas até abri-la, sair no te-
lhado e sentir o vento forte.
Dessa vez, Andrew estava sentado na parte mais afastada. A garrafa de
vodca apoiada em seu joelho parecia vazia, mas a luz do sol refletiu parte do
líquido enquanto Neil se aproximava. Ao chegar perto do beirada, ele tentou
acalmar as batidas que seu coração dava por puro instinto e se sentou fora
do alcance de Andrew. Olhou para o estacionamento detonado. Ainda havia
uns doze carros, mas uma equipe já havia começado a limpar o asfalto. A
polícia fora embora e os seguranças do campus foram encarregados da su-
pervisão; a imprensa havia desaparecido.
Andrew jogou um maço de cigarros para Neil.
— Me dá um bom motivo pra não empurrar você.
Neil balançou um cigarro e o acendeu.
— Eu levaria você junto. É um longo caminho até lá embaixo.
— Eu odeio você — disse Andrew, mas era difícil acreditar nele quando pa-
recia tão entediado com a ideia. O rapaz tomou um gole da vodca e limpou
a boca com o polegar. Quando olhou para Neil, parecia ao mesmo tempo in-
diferente e despreocupado. — Noventa por cento das vezes, sinto vontade de
cometer um assassinato só de olhar pra você. Penso em arrancar sua pele e
deixá-la pendurada como alerta pra qualquer outro idiota que achar que po-
de entrar no meu caminho.
— E os outros dez por cento de vezes? — perguntou Neil.
Andrew o ignorou.
— Eu avisei pra não colocar uma coleira em mim.
— E não coloquei. Foi você mesmo que fez isso, quando me disse pra ficar,
independentemente do que acontecesse. Você não pode ficar bravo comigo
só porque fui esperto o bastante pra segurar a coleira.
— Se puxar de novo, eu mato você.
— Talvez você faça isso quando o ano acabar, mas agora não dá pra fazer
muita coisa a respeito, então não desperdiça nosso tempo com ameaças.
— Não acho que foi pelo dinheiro — comentou Andrew. Quando viu o
olhar questionador de Neil, continuou: — Que perseguiram você por tanto
tempo. Imagino que, a certa altura, perceberam que era mais importante
machucar você do que recuperar seja lá o que tinham perdido.
— É o que você diz, mas mesmo assim não vai me bater.
Andrew apagou o cigarro no espaço de asfalto entre eles.
— Está chegando a hora, e cada vez mais rápido.
Neil analisou o rosto de Andrew à procura de sinais da raiva incompreensí-
vel que vira mais cedo, mas não encontrou nada. Apesar das palavras hostis,
sua expressão e tom eram calmos. Dizia aquelas coisas como se não signifi-
cassem nada. Neil não sabia se era a verdade, ou apenas uma máscara. Será
que Andrew escondia aquela raiva de Neil ou de si mesmo? Talvez o mons-
tro estivesse enterrado onde nenhum deles pudesse encontrá-lo até que Neil
cruzasse outra linha imperdoável.
— Que bom — disse Neil, por fim. Puxar a cauda de um dragão adormeci-
do parecia um jeito lento e doloroso de morrer, mas Neil estaria morto antes
que a proteção de Andrew acabasse. — Quero te ver perder o controle.
Andrew ficou imóvel, com a mão a meio caminho da vodca.
— Ano passado você queria sobreviver. Agora, parece que está querendo
muito ser assassinado. Se estivesse a fim de jogar outra rodada do nosso jogo
com você, perguntaria o que provocou essa mudança. Mas acabei de receber
uma dose sua de burrice suficiente pra uma semana. Volta lá pra dentro e
vai incomodar outro.
Neil fingiu estar confuso ao se levantar.
— Estou incomodando você, é?
— Mais do que nunca.
— Interessante. Na semana passada você disse que nada mexia com você.
Andrew não se deu ao trabalho de responder, o que Neil considerou uma
vitória. Ele jogou o cigarro ao vento e voltou para dentro sozinho. Desceu as
escadas até o terceiro andar, mas não chegou longe, porque a porta do eleva-
dor se abriu. Olhou para trás por instinto. Neil precisou de um segundo para
reconhecer Aaron e outro para registrar a fúria em seu rosto. Então, Aaron
se chocou contra ele como um trem de carga e o esmagou contra a parede.
Neil levou um golpe de raspão na bochecha e um soco forte na boca antes
de conseguir arrancar Aaron de cima de si. Quando o outro investiu para
atingi-lo de novo, Neil acertou um soco em seu estômago, e então mãos for-
tes os afastaram um do outro. Neil olhou rápido ao redor para analisar a in-
terferência. A briga atraíra rapidamente uma multidão vinda dos quartos
mais próximos. Conhecia aqueles rostos porque passava por cada um diver-
sas vezes no corredor e nas escadas; sabia seus nomes e suas equipes, apesar
de todo o esforço que fazia para não reter tais informações.
Aaron se debateu com violência em uma tentativa de se soltar, então se
contentou em olhar furioso para Neil do outro lado do corredor. Neil testou
o quão forte o seguravam, percebendo que também não conseguiria se li-
vrar, e cutucou o interior da boca com a língua. Mordera a bochecha quando
Aaron o socara, e por mais que tivesse tentado engolir, ainda sentia o gosto
de sangue.
— Se acalmem — avisou Ricky, com as mãos estendidas entre eles. — Já te-
mos problemas o bastante pra lidar agora e não precisamos dessa merda.
— Está tudo bem — disse Neil.
Aaron não gostava de deixar outras pessoas se meterem na vida dele, então
Neil achava que Aaron fosse esperar até estarem sozinhos para explodir. Mas
subestimara a raiva dele. Em vez de esperar por privacidade, Aaron o atacou
em um alemão furioso.
— Vai se foder! O que você falou pra ela, caralho?
Os sons ásperos pegaram os outros atletas desprevenidos, permitindo que
Neil tivesse tempo para responder. Só havia uma “ela” que deixaria Aaron
tão irritado. Neil se arrependeu de não ter respondido a mensagem de Ka-
telyn, mas deu de ombros com indiferença ao retrucar:
— Por que, ela finalmente se decidiu? O que aconteceu, você apareceu na
porta dela pra reclamar do carro e recebeu um ultimato em resposta?
— Você sabe muito bem!
— Ei, já mandei se acalmarem — pediu Ricky.
Neil o ignorou.
— Falei que ela precisava se posicionar. Não falei com ela de novo pra sa-
ber se finalmente tinha deixado de ser frouxa. Só pra constar, fiz tudo isso
antes de descobrir os detalhes da promessa do Andrew. Talvez eu tivesse si-
do um pouco mais cuidadoso se soubesse o quanto você é burro.
— Você não tinha o direito de colocar ela nessa história!
As portas dos dormitórios não tinham isolamento acústico, e o alemão fa-
lado alto nos corredores por fim chamou a atenção das Raposas. Nicky foi o
primeiro a sair, mas os veteranos apareceram logo atrás. Os jogadores de fu-
tebol americano saíram do caminho para permitir que se aproximassem,
mas Dan e Matt ficaram mais afastados, assistindo à cena. Neil esperava ou-
vir um sermão, mas Dan olhou de um para o outro sem dizer nada. Neil não
sabia se ela estava tão surpresa com o espetáculo que não conseguia intervir
ou se ainda estava irritada pelo papel que Aaron desempenhara na recente
investida contra Allison.
Nicky chegou o mais perto que conseguiu de Aaron e lançou um olhar per-
plexo para Neil.
— Eu quero saber? — perguntou em alemão.
Aaron tentou se libertar de novo. Dessa vez, Amal o soltou, apesar de con-
tinuar atento caso tentasse agredir Neil mais uma vez. Em vez disso, Aaron
deu meio passo para trás, como se não aguentasse a ideia de ficar tão perto
de Neil.
— Katelyn não quer me ver nem falar comigo até que Andrew e eu faça-
mos a tal terapia em grupo.
Nicky ficou boquiaberto, mas parecia cheio de admiração.
— Porra, Neil.
Aaron lançou um olhar lívido para ele.
— Nem se atreva a ficar do lado dele.
— Por que não? — perguntou Nicky. — Não é como se você já tivesse me
deixado ficar do seu.
Aaron empurrou Nicky para o lado e foi para o quarto. Nicky fez uma care-
ta para Neil e foi atrás dele. Kevin estava parado na porta, mas saiu para o
corredor para deixá-los passar. Não tinha entendido uma palavra do que ha-
viam dito, mas sua boca estava retorcida em descontentamento. Neil o enca-
rou, em uma tentativa silenciosa de demonstrar que pouco se importava
com seu mau humor.
Dan fez um gesto para os atletas que seguravam Neil.
— Obrigada. Vamos ficar de olho neles.
Eles soltaram Neil e a pequena multidão se dispersou aos poucos. Dan ges-
ticulou para que Neil fosse à frente, e ele se dirigiu para o quarto que dividia
com Matt, com os veteranos em seu encalço. Renee e Allison ainda estavam
lá dentro e observaram o retorno de Neil com interesse.
Neil não estava com fome, mas comer pelo menos daria a ele algo para fa-
zer. Além disso, permitia uma pouco de isolamento. Dan apoiou o quadril
no balcão e o observou enquanto ele revirava a geladeira. Estava tentando
vencê-lo pelo cansaço, mas Neil não seria o primeiro a falar. Ele colocou o
recipiente com a comida no micro-ondas, girou o botão e retribuiu o olhar
intenso dela. Dan ficou em silêncio até ouvir o aparelho apitar.
— Vamos falar sobre o que aconteceu? — perguntou ela.
— Talvez seja melhor todo mundo evitar o Aaron pelos próximos dias.
— Esse já era o plano — respondeu Dan. — Que porra tá acontecendo?
— Estou fazendo o que você me pediu. Consertando os dois.
— Não é o que parece.
Neil deu de ombros, remexeu o macarrão e ligou o micro-ondas de novo.
— Quando um osso cicatriza torto, a única solução é quebrar de novo. Eles
vão ficar bem.
Matt se encostou no batente da porta e arqueou uma sobrancelha para
Neil.
— Isso não é exatamente reconfortante. Vindo de você, “ficar bem” pode
significar qualquer coisa, desde “vou viajar pelo estado de carona” até “apa-
nhei que nem um condenado, mas ainda consigo segurar a raquete”.
— Você apostou neles? — perguntou Neil, mas, ao perceber que Matt não
seguira sua linha de raciocínio, explicou: — Aaron e Katelyn.
— Todo mundo apostou neles, menos o Andrew — respondeu Matt. —
Não é uma questão de saber se vão ficar juntos. É de quando.
Neil pensou a respeito.
— Então eles vão ficar bem.
Dan não parecia convencida, mas o deixou comer em paz e levou Matt.
Neil passou o resto da tarde encarando os livros didáticos sem de fato estu-
dar nem fazer as tarefas. Pediram delivery, porque Allison não queria ver
ninguém no refeitório. Ao jantar, seguiram-se jogos de carta complexos e
muitas doses de bebidas.
Dan, Matt e Allison jogavam como se o objetivo final fosse ficar bêbado.
Allison foi a primeira a cair no sono, mas Matt e Dan também não duraram
muito. Allison se apropriou do sofá, então o casal foi aos tropeços até o
quarto para dividir a cama de Matt. Neil arrumou a bagunça que haviam fei-
to na sala, enquanto Renee pegava um cobertor extra no quarto das meni-
nas. Ela voltou a tempo de limpar o resto do lixo. Lavaram os copos lado a
lado na cozinha. Estavam quase terminando quando Renee falou:
— Obrigada por lidar com ele quando eu não consegui.
Neil a olhou.
— Ele pediu que você os protegesse?
Renee assentiu.
— Andrew foi o primeiro para quem Kevin contou a verdade sobre os Mo-
riyama. Ele sabia que permitir que Kevin ficasse poderia trazer sérias conse-
quências pra todo mundo. Estava disposto a se proteger da possível hostili-
dade, mas não se importava o bastante pra se arriscar pela gente. Então,
confiou a proteção deles a mim. — Ela inclinou a cabeça para indicar seus
amigos adormecidos e ergueu um copo para inspecionar. — Uma das pri-
meiras coisas que perguntei para o Andrew ano passado, em junho, foi
quem iria cuidar de você. Ele me respondeu que saberia após uma noitada
em Colúmbia.
Neil pegou o copo de volta e deu uma segunda esfregada.
— Tenho certeza de que Andrew se arrepende de ter me colocado sob a
proteção dele.
— Andrew não acredita em se arrepender. Diz que arrependimento é base-
ado em vergonha e culpa, e que nenhum dos dois serve pra nada. Dito isso,
tentei tirar você das mãos dele em certo momento. — Quando Neil a olhou
surpreso, Renee fingiu um olhar inocente que pela primeira vez não foi to-
talmente convincente. — Andrew recusou e disse que não desejava você pra
ninguém, só para um agente funerário.
— Ele faz o drama dele — murmurou Neil.
Renee deu uma risada baixinha e trocou um pano de prato pelo copo. Neil
secou as mãos e devolveu o pano. Renee o pendurou no gancho na frente da
geladeira e saiu da cozinha para inspecionar a sala de estar.
— Você tá tranquilo em ficar aqui? — perguntou ela.
Neil inclinou a cabeça para o lado, tentando ouvir os ruídos do quarto, mas
estava tudo silencioso.
— Estou bem.
Ele a acompanhou, trancou a porta e foi para a cama.
A manhã chegou cedo demais, com novas más notícias. Wymack telefona-
ra para avisar que haviam vandalizado o campus. Havia manchas de tinta
preta cobrindo prédios e calçadas, e o lago fora tingido de vermelho vivo. Pi-
chações grosseiras emporcalhavam as paredes externas brancas da Toca das
Raposas. Wymack não queria que os integrantes da equipe fossem até lá pa-
ra ver, mas também não queria que recebessem a notícia de outra pessoa. Os
responsáveis pelos reparos já percorriam a universidade, tentando restaurar
tudo o quanto antes. Wymack jurou fazer picadinho da segurança do cam-
pus assim que falasse com eles ao telefone.
A segunda onda de vandalismo fez a imprensa voltar correndo, e um re-
pórter por fim conseguiu se aproximar de Wymack e enfiar um microfone
em seu rosto. O treinador, muito esperto, sabia que não devia provocar os
Corvos, então optou por atacar os torcedores.
— Acho tudo isso patético. O que esses covardes esperam conseguir nos
atacando assim? Tudo o que estão fazendo é atrair atenção negativa e man-
char a imagem da equipe que tentam defender. Já passou da hora de os Cor-
vos se posicionarem.
O presidente da Edgar Allan, Louis Andritch, respondeu em menos de
uma hora, fazendo uma súplica meia-boca aos torcedores dos Corvos para
cessarem esse comportamento tão “indigno”. A declaração de Tetsuji Mo-
riyama veio logo depois, mais cruel. Ele condenou os ataques, afirmando
que eram ofensivos e desnecessários. Quase parecia que ele estava apoiando
as Raposas, até concluir dizendo que: “Um cachorro não é treinado se for
castigado um dia depois; correlacionar ação e punição não é uma tática inte-
ligente o bastante. É preciso discipliná-lo no exato momento em que ele se
porta mal. Deixem conosco, eles serão punidos em quadra.”
Dan passou o resto do dia fervendo de raiva, mas as palavras de Moriyama
surtiram efeito nos torcedores. A segunda-feira chegou sem novos inciden-
tes. Neil quase lamentou, porque sem distrações externas a equipe tinha
tempo para focar nos problemas internos. Dan e Matt falavam com Neil,
mas ignoravam o restante do grupo de Andrew. Allison agia como se nada
tivesse acontecido, mas dava para perceber que tentava ficar longe de An-
drew. Aaron mal olhava para Neil e se recusava a falar com qualquer um, in-
cluindo Nicky. Neil esperava que Aaron dissesse algo quando pegou carona
com eles para o treino, mas talvez estivesse tentando manter o irmão de fora
dessa briga o máximo que conseguisse.
Durante o treino, Kevin passou quarenta minutos reclamando das picui-
nhas e da violência, então desistiu de repreender os companheiros de equipe
e atacou Neil.
— Se você nos fizer perder por não conseguir fechar essa boca… — Ele
não terminou a ameaça, presumindo que Neil poderia deduzir o restante so-
zinho. Sua expressão endureceu quando Neil gesticulou para demonstrar
desinteresse. — Agora não é hora de vir com essa atitude. Para de causar
problemas desnecessários antes que você estrague tudo.
Neil pesou todas as respostas possíveis e se decidiu pela mais simples.
— Vai se foder.
Kevin empurrou Neil como se pudesse forçá-lo a ter juízo e Neil o empur-
rou de volta com toda a força, fazendo Kevin cambalear até Matt. Por sorte,
Matt estava observando a breve altercação. Ele tropeçou quando Kevin
trombou nele de repente, mas conseguiu ficar em pé, agarrando o atacante
para impedi-lo de revidar. Neil apontou a raquete para Kevin em advertên-
cia e caminhou para o meio da quadra. Sabia que Kevin tentara atacá-lo
porque ouviu o aviso feroz de Matt para que parassem. Quando Neil chegou
no meio da quadra, Dan já se envolvera na história. Foram alguns minutos
de ameaças raivosas até que Kevin se acalmasse, mas a paz contestável só se
instalou quando os dois decidiram ignorar um ao outro.
Assim que foram dispensados para o intervalo, Neil foi para o vestiário be-
ber alguma coisa. Wymack o seguiu e ficou parado perto da porta. Estava
com as mãos na cintura e encarava o jogador do outro lado da sala.
— Estou muito curioso pra saber como isso passou de uma rivalidade en-
tre nós e eles para uma guerra generalizada — comentou Wymack. — A
crença popular é de que a culpa é sua. É verdade?
— Eu tinha boas intenções — respondeu Neil.
— Não me interessa quais são suas intenções. Não podemos nos dar ao lu-
xo de perder o jogo de sexta, não depois do que fizeram com a gente e ainda
mais depois do que o treinador Moriyama disse. Não sei se você percebeu,
mas no momento não estamos com cara de quem vai ganhar.
— Eu sei. Desculpa por ter feito isso no momento errado, mas não me ar-
rependo de nada do que disse.
— Não quero suas desculpas. Quero que conserte isso o mais rápido possí-
vel.
— Sim, treinador.
Neil se dirigiu para a porta para retornar à área técnica, mas Wymack es-
tendeu a mão para detê-lo.
— E por falar em momento errado, como anda seu relógio biológico? Ter
um cronograma tem ajudado?
— Não tanto quanto ter todo mundo aqui — respondeu Neil. — Não me
sinto sozinho o bastante pra ficar perdido.
— Ótimo. Agora anda. Vamos ver se conseguimos dar um jeito nessa con-
fusão.
Neil o seguiu de volta à área técnica. Durante sua ausência, o time havia se
dispersado. Matt, Dan e Allison ocupavam um dos bancos das Raposetes.
Kevin estava sozinho próximo à parede da quadra, com a prancheta de Wy-
mack na mão, e lia as anotações do dia. Nicky descansava nos degraus que
levavam às arquibancadas, e Neil avistou Aaron cerca de vinte fileiras acima.
Andrew e Renee davam suas voltas habituais na área técnica e não estavam
muito longe.
Neil não estava com vontade de lidar com mais ninguém, então foi atrás
dos goleiros. Renee o avistou quando dobraram a primeira esquina e fez si-
nal para que Andrew esperasse. Neil tinha desculpas prontas se perguntas-
sem por que estava invadindo o espaço deles, mas Renee o recebeu com um
sorriso enorme e Andrew o cumprimentou com um olhar despreocupado.
Assim que Neil os alcançou, os três continuaram em um ritmo tranquilo.
Neil se perguntava sobre o que os dois conversavam quando estavam longe
de todo mundo. A última coisa que esperava era encontrá-los falando sobre
Exy. Renee queria mudar os tempos em que cada um jogava agora que An-
drew não estava mais limitado pela abstinência. Os adversários seriam mais
desafiadores a cada semana que passava, e Andrew era o que jogava melhor
entre os dois. Queria que ele mantivesse o ritmo quando os companheiros
de equipe estivessem cansados no segundo tempo. Andrew aceitou a suges-
tão sem discutir e Renee seguiu em frente.
O que começou como uma conversa normal logo saiu do controle, e Neil
não fazia ideia de como eles haviam passado da construção do outro lado do
terreno do campus para o que poderia ser o provável estopim para a Tercei-
ra Guerra Mundial. Tinha que haver uma correlação entre os dois, mas por
mais que revirasse o cérebro, não conseguia encontrar. Por fim, desistiu,
porque tentar entender o salto de lógica significava não prestar atenção na
conversa. Renee esperava que o gatilho fosse a falta de recursos, sobretudo a
escassez de água, enquanto Andrew estava convencido de que o governo dos
Estados Unidos se envolveria no conflito errado e receberia uma retaliação
cruel. Não havia tempo para que convencessem um ao outro, e como Neil
não quis desempatar, deixaram o debate para outro dia.
Wymack convocou a equipe para que voltasse para o banco do time da ca-
sa e o treino recomeçou com uma rápida conversa motivacional. Os primei-
ros alvos foram os veteranos. Quando os colocou em quadra para treinarem,
Dan reprimiu seu ressentimento por tempo suficiente para puxar Aaron e
Nicky de lado. Ela e Matt tinham algumas ideias que queriam compartilhar
com os defensores, então fizeram uma pequena reunião improvisada na área
da defesa. Aaron ouvia porque não tinha outra opção, mas não olhou para
Dan e ficou em silêncio.
A terça-feira foi um pouco melhor, mas apenas porque era visível o esforço
que o grupo de Dan fazia para se dar bem com todo mundo. Aaron não se
deixou comover, Nicky agarrava-se desesperadamente a qualquer sinal de
calor humano que encontrava e Andrew mantinha a mesma expressão de-
sinteressada de sempre. Kevin passou uma hora atacando os primos, depois
direcionou toda a energia raivosa para colocar os veteranos em forma. Disse
apenas algumas palavras maldosas para Neil, que não se dignou a responder.
Assim que Wymack os dispensou para o intervalo, Andrew começou a cor-
rer, contornando a parede da quadra. Renee olhou para Neil, que não teve
certeza de que era um convite até que percebeu que ela sorria em aprovação.
Estava perfeitamente ciente de que haviam chamado a atenção ao irem atrás
de Andrew, mas Neil não olhou para ninguém. Havia uma boa chance de
que os outros não quisessem que ele ficasse perto dos goleiros, mas o motivo
não seria o desentendimento com Kevin. Por mais que as Raposas desconfi-
assem da amizade de Andrew e Renee, havia mais de trezentos dólares em
apostas de que o suposto relacionamento entre os dois viria a acontecer. Neil
era uma distração para ambos.
Mas não nutria ilusões sobre as chances de Renee. Além do mais, ela dis-
traía a si mesma. Se ausentava da conversa diversas vezes para checar o celu-
lar e escrever mensagens rápidas. Neil assumiu a liderança da conversa, por-
que o assunto eram rotas de evacuação e paradas estratégicas para pegar
mais suprimentos no caso de uma invasão de zumbis. Ele era especialista em
viver em fuga e, apesar de aquele ser um cenário ridículo, era interessante
pensar em quais seriam suas prioridades quando comparadas às dos outros.
Renee ressaltou a importância de buscar por sobreviventes, e Andrew des-
cartou a ideia no mesmo instante.
— Você não voltaria por ninguém? — perguntou Renee.
Andrew virou a palma da mão para cima.
— Consigo contar nos dedos de uma mão.
— Acho que o treinador seria bom numa briga — comentou Renee en-
quanto passavam pelos bancos de novo. Wymack olhou ao ouvir o próprio
nome, mas só precisou de um instante para perceber que não estavam falan-
do com ele. — E ele tem porte de arma.
— Ele vendeu a arma depois que invadi o apartamento dele algumas vezes
— disse Andrew.
— E a Abby?
— Como ela ia ajudar? — indagou Andrew. — Não dá pra colocar curati-
vos em mordidas de zumbi, e ela não deixaria a gente sacrificar os infecta-
dos. Além disso, o treinador não iria perder ela de vista. Melhor que ele a
mantenha a salvo enquanto pode.
Renee assentiu, e a conversa tomou rumos menos bizarros. Mas Neil conti-
nuava pensando no que os dois haviam dito e não participou do debate que
se seguiu. Se perguntava o que faria caso uma invasão de fato acontecesse.
Estava acostumado a cortar os laços e começar de novo. Abandonar todos
seria quase um instinto se os mortos-vivos surgissem do nada. Não era a
mais animadora das constatações, mas Neil sabia aceitar as verdades horrí-
veis sobre si mesmo.
— Ah — disse Renee, verificando a mensagem que acabara de receber. —
Com licença.
Ela se separou deles e subiu as escadas, com o celular já no ouvido.
Andrew lançou um olhar enviesado para Neil enquanto os dois continua-
vam sem ela.
— Jean. Se importa em me explicar isso?
— Não sabia que o Kevin tinha passado o número dele — disse Neil,
olhando para trás. Renee não estava longe, a apenas algumas fileiras de dis-
tância, onde poderia ter certa privacidade em sua ligação. Andrew não disse
nada, então Neil deu de ombros. — Ele parecia interessado nela quando en-
contramos os Corvos no banquete. Espero que ela consiga ajudar a enfra-
quecer a lealdade irrestrita dele. — Neil pensou por mais um momento e
disse: — Talvez seja por isso que Matt parou de apostar em vocês dois?
Andrew não respondeu e terminaram a volta em silêncio.
Como a terapia semanal de Andrew não era mais obrigatória e as Raposas
tinham apenas dois carros, ele faltou à sessão da tarde de quarta-feira com
Dobson. Neil lembrou que ainda não havia conversado com Andrew sobre a
apólice de seguro e fez uma anotação mental para chamá-lo de lado em al-
gum momento. Pensou que conseguiria fazer isso durante o intervalo, mas a
conversa continuava a fluir conforme passavam pelos bancos e ele não po-
deria simplesmente cortar Renee. Só teve a oportunidade quando voltaram
para a Torre das Raposas.
— Andrew — chamou ele, quando saíram do carro alugado. Nicky parou e
o olhou, curioso. Kevin e Aaron não esperaram, seguindo os veteranos até o
dormitório. Neil balançou a cabeça para Nicky, e quando este não entendeu
a mensagem sutil, disse: — Só um minuto, a gente já sobe. Fica de olho ne-
les.
Nicky fez uma careta e foi embora reclamando.
— Falar é fácil.
Neil observou até que a última das Raposas desaparecesse, então examinou
o estacionamento com um olhar lento. A universidade fizera um bom traba-
lho ao reorganizar o lugar; o único sinal de que algo ruim acontecera era o
fato de que havia menos carros do que o normal. A presença de algumas ca-
minhonetes e SUVs indicava que alguns atletas já haviam recuperado seus
veículos, mas ele não reconhecia metade dos carros ali.
— Já teve alguma notícia da oficina? — perguntou Neil, voltando sua aten-
ção para Andrew. — Matt recebeu uma ligação hoje de manhã dizendo que
poderia buscar a caminhonete amanhã. O carro da Allison volta no sábado
de manhã. Eles vão conseguir consertar o seu?
Andrew abriu o celular, apertou alguns botões e o entregou para ele, que
esperou, desorientado, até que o correio de voz de Andrew começou a tocar
no viva-voz. Uma voz mecânica anunciou a data de terça-feira, seguida de
uma mensagem informativa. O estrago era ainda maior do que aparentara; o
lixo na parte de trás escondera tudo o que os torcedores dos Corvos fizeram
com o estofamento dos bancos traseiros, e nenhum deles havia olhado no
porta-malas antes de o carro ser rebocado. A oficina queria que Andrew li-
gasse de volta para discutirem as opções e resolverem o que seria necessário
para restaurar o carro.
Andrew subiu no porta-malas do carro alugado e tirou um maço de cigar-
ros do bolso. Pegou dois, entregou um para Neil e pegou o celular de volta.
Neil cobriu o cigarro com a mão para protegê-lo da brisa. Estudou o rosto
de Andrew enquanto este guardava o celular e os cigarros, sem dar qualquer
sinal de que as más notícias o haviam afetado.
— Você vai ter que trocar de carro. Se o seguro não cobrir a troca, eu posso
pagar a diferença. Você sabe que tenho dinheiro.
Andrew olhou com frieza para ele.
— Não estou interessado em caridade.
— Não é caridade, é vingança. Esse dinheiro nem era meu, lembra? Eu
contei que meu pai roubou dos Moriyama. Se pegar um pouco para conser-
tar seu carro, é como se estivesse fazendo o Riko substituir o que os torcedo-
res dele destruíram.
— A vingança só motiva os fracos — argumentou Andrew.
— Se você acreditasse nisso, não estaria planejando a morte de Proust.
O nome do médico ainda tinha um gosto ácido em sua boca, queimando a
língua e a garganta de Neil, mas não foi o suficiente para abalar a expressão
calma de Andrew, que olhou para ele em silêncio pelo que pareceu uma
eternidade, então colocou o cigarro entre os lábios e gesticulou para que ele
se aproximasse. Neil tinha certeza de que estava colocando a faca no próprio
pescoço ao mencionar Proust de novo, mas obedeceu e diminuiu o espaço
entre eles. Andrew segurou a nuca de Neil com força para impedi-lo de re-
cuar. Puxou a cabeça de Neil em sua direção e soprou a fumaça no rosto de-
le.
— Isso não é vingança. Eu avisei o que ia fazer se ele me tocasse. Estou ape-
nas mantendo minha palavra.
Andrew esperou alguns instantes para ter certeza de que Neil havia com-
preendido, então o soltou. Quando ergueu o cigarro até a boca de novo, Neil
o tomou da mão dele. Quebrou-o entre os dedos, deixando o cigarro cair no
asfalto. Andrew observou as metades rolarem em direções opostas e olhou
impassível para Neil.
— Noventa e um por cento — anunciou Andrew.
— Aceita o dinheiro. Você comprou aquele carro com a grana que veio da
morte de alguém. Esse pode ser comprado com o dinheiro de uma vida… a
minha vida. Aquele dinheiro seria usado para comprar meu próximo nome
quando eu fugisse daqui. Graças a você, não preciso mais disso.
— Sua vida tem um preço, e você já está pagando. Não pode negociar a
mesma coisa duas vezes.
— Você perdeu o direito de me chamar de difícil — disse Neil. Andrew deu
de ombros, e ele continuou: — Faça um novo acordo comigo.
Andrew inclinou a cabeça enquanto pensava.
— O que você ia querer em troca?
— O que você pode me dar? — perguntou Neil.
— Não faça uma pergunta que você já sabe a resposta.
Neil franziu a testa, sem entender, mas Andrew não perdeu tempo em ex-
plicar. Ergueu a mão entre eles, com a palma virada para cima. Quando Neil
se limitou a olhar, Andrew apontou para a mão dele. Desnorteado, Neil imi-
tou o gesto. Andrew pegou o cigarro de seus dedos sem resistência e o enfi-
ou entre os lábios. Estava quase no fim, prestes a se apagar, mas Andrew deu
uma tragada longa e o reacendeu.
— Isso era meu — protestou Neil.
— Ah — disse Andrew, despreocupado.
Neil não se importava o bastante para tentar tomá-lo de volta, então obser-
vou enquanto o outro fumava. Andrew sustentava seu olhar, em silêncio.
Andrew estava esperando. Neil pressupôs que o outro esperava que ele apre-
sentasse uma proposta adequada. Ele não fazia ideia do que deveria pedir,
mas sabia que havia mil jeitos diferentes de arruinar o acordo.
O senso comum dizia que deveria forçar uma reconciliação com Aaron,
mas se Andrew o fizesse com base naquele acordo, nenhum dos dois irmãos
ficaria feliz. Neil deveria pedir algo que fortalecesse as Raposas, como per-
missão para voltarem a jantar em equipe e assistirem a filmes juntos como
fizeram quando Andrew estava ausente. Ele hesitou porque sentia que era
uma oportunidade perdida. Fora surpreendentemente fácil fazê-lo concor-
dar com o Halloween. Não tão surpreendente, se pensasse no que Kevin dis-
sera no outono passado. É mais fácil manipular as pessoas quando sabemos o
que elas querem. Neil só não sabia, até aquele ano, o quê — ou quem — An-
drew queria.
Neil afastou o pensamento que não levava a lugar nenhum. Seus pensa-
mentos foram do Halloween para o Eden’s Twilight e o Sweetie’s, e Neil final-
mente descobriu.
— Eu quero que você pare de usar pó de biscoito.
— E depois ele diz que não é defensor da moral — disse Andrew, mais para
si mesmo do que para Neil.
— Se fosse por moral, eu pediria que você parasse de beber e fumar tam-
bém. Só estou pedindo uma coisa. Não tem efeito nenhum em você, então é
um risco desnecessário. Você não precisa de um terceiro vício.
— Eu não preciso de nada — lembrou Andrew, no mesmo instante.
— Se você não precisa, vai ser mais fácil, então. Certo?
Andrew pensou por um minuto, depois jogou o cigarro em Neil. O objeto
queimou o tecido da camiseta antes de cair. Neil o esmagou com a sola do
sapato. A expressão fria com que se virou de volta de nada servia; Andrew já
olhava para além dele, à procura de algo mais interessante.
— Vou entender sua irritação como um sim — concluiu Neil. — Levo o di-
nheiro pra você hoje à noite.
— Vai mesmo? — Andrew voltou a encarar Neil. — Ou melhor, será que
consegue? Nicky disse que o Aaron não quer mais você no quarto. Alguma
coisa sobre você se enfiar em brigas que não são da sua conta? — Ele balan-
çou a mão em um gesto de mais ou menos. — Esse telefone sem fio fez a
mensagem se perder um pouco. Talvez você possa me explicar frente a fren-
te por que de repente ficou tão interessado na vida do meu irmão.
— Não estou interessado na vida do seu irmão — respondeu Neil.
— Sem mentir.
— Não estou mentindo. Eu não suporto ele, mas estamos sem tempo. Em
outubro passado eu avisei a você que não vamos conseguir chegar nas finais
se continuarmos com todas essas picuinhas. Vocês estão atrapalhando. Eu
tinha que começar com um dos dois. Já que todo mundo aposta no Aaron e
na Katelyn, pensei que ele estaria disposto a lutar por ela.
—Essa seria uma mudança interessante. Mas, só pra você saber, é um des-
perdício de energia e esforço. Ele pode tentar, mas não vai ganhar.
— Você tem que liberar ele.
— Ah — disse Andrew, como se isso fosse uma novidade. — Tenho, é?
— Se não fizer isso, vai acabar o perdendo. Aaron vai continuar afastando
Katelyn enquanto você mandar, mas vai se ressentir. Vai contar os dias até a
formatura e, quando esse dia chegar, você nunca mais vai ver seu irmão. Vo-
cê não é burro. Sei que consegue enxergar isso. Libera ele agora se quiser
que ele volte.
— Quem perguntou isso pra você?
— Não foi preciso. Só estou dando a minha opinião.
— Então não dê. Crianças devem ser vigiadas, não ouvidas.
— Não me acuse de mentir pra você se vai me ignorar quando digo a ver-
dade.
— Isso não é a verdade. A verdade é irrefutável e imparcial. Nascer do sol,
Abram, morte: essas são verdades. Você não pode julgar um problema usan-
do o seu ponto de vista obsessivo e chamar isso de verdade. Não está enga-
nando ninguém nessa conversa.
— Se você pedir metade da verdade, só vai receber metade da verdade —
retrucou Neil. — Se não gosta das respostas que dou, o problema é seu, não
meu. Mas já que estamos falando de obsessão e da vida de Aaron, o que você
vai fazer sobre o julgamento dele? Ela vai estar aqui, né? A Cass, quero dizer
— acrescentou Neil, embora tivesse certeza de que Andrew sabia de quem
ele estava falando. — Você vai ter que enfrentá-la.
— Vigiadas e não ouvidas — repetiu Andrew.
Ele parecia entediado, mas Neil reconhecia um alerta quando o ouvia. Dei-
xou a discussão de lado e voltou para o dormitório.
Pela primeira vez, Neil acordou antes que o alarme de Matt soasse. Ficou
deitado por um minuto, então se virou e desligou o próprio despertador.
Abriu o celular para verificar a data. Era sexta-feira, 19 de janeiro. “Neil Jos-
ten” faria vinte anos no dia 31 de março. Mas naquele dia, Nathaniel Wes-
ninski completava dezenove. Neil nunca tivera o hábito de comemorar seu
aniversário, mas sobreviver a mais um ano merecia um momento de silên-
cio. Passou o polegar na data exibida na tela e seu pedido foi que as Raposas
ganhassem de Belmonte.
Tinha consciência de que fora às aulas do dia, mas não aprendeu nada. Re-
digiu o que os professores diziam sem absorver uma única palavra. Enfiou
as anotações no fundo da mochila, mastigou a comida sem sabor do refeitó-
rio dos atletas, sozinho, e voltou para a Torre das Raposas. Ao subir as esca-
das, passou por alguns jogadores de vôlei que desejaram boa sorte, e lembra-
va-se de ter agradecido. Pelo menos achava que tinha agradecido. Não tinha
certeza. Não conseguia se concentrar em nada além da partida.
As Raposas não treinavam à tarde nos dias em que jogavam em casa, então
Neil tinha bastante tempo livre. Tentou estudar, mas não conseguiu; tentou
cochilar, mas também não obteve sucesso. Quando saíram para o estádio,
faltando uma hora para o jogo começar, ele estava a um ponto de perder o
juízo.
O vestiário estava com um leve cheiro de alvejante e limpa-vidros. Neil
nunca conseguira entender por que limpavam o vestiário antes da partida,
mas a pequena equipe de limpeza ia todos os dias. Quando as Raposas apa-
reciam para os treinos, grande parte do cheiro já havia se dissipado, mas
Neil presumiu que o tráfego intenso no campus devido à partida tivesse
atrapalhado os funcionários. Isso explicava por que Wymack estava sentado
no centro de entretenimento, em vez de enfiado no escritório. O treinador
afirmava ser alérgico a materiais de limpeza. Abby dizia que aquilo era uma
desculpa nada criativa para justificar o apartamento bagunçado dele, mas
Wymack, teimoso, insistia em sua versão dos fatos.
Wymack observou sua equipe passar, provavelmente à espera de um sinal
de que todo mundo tivesse feito as pazes. Naquela semana, cada treino fora
um pouco melhor do que o anterior, mas ainda não haviam chegado aonde
precisavam chegar. Neil e Kevin voltaram a se falar na quinta-feira, por que
não poderiam se ignorar para sempre. Ainda que os veteranos não tivessem
perdoado Andrew pelo seu ato de violência, decidiram aceitá-lo por achar
que era um mal necessário. Ainda o viam como um quase sociopata, inca-
paz de se arrepender de seus atos ou de entender por que ficaram tão bravos.
Aaron, por outro lado, não abria mão do seu ódio em meio às Raposas,
uma lombada que os fazia tropeçar quando tentavam se reerguer. Neil não
sabia por quanto tempo conseguiria tolerar sua hostilidade tão infantil até
dar outro empurrão nele. Gostaria que Nicky exercesse mais influência so-
bre os primos, já que, por dividirem o quarto, tinha mais chances de re-
preendê-los. Até mesmo Kevin seria um aliado aceitável, se não fosse pelo
fato de que só contestava Andrew quando se tratava de Exy. Não estava mui-
to a fim de se envolver nos problemas pessoais deles.
Não havia mais tempo para se preocupar com isso; Neil teria que resolver
durante o fim de semana. Ele se obrigou a parar de pensar nos irmãos e se-
guiu os garotos para dentro do vestiário. Colocou a senha no cadeado do ar-
mário em que ficavam seus equipamentos e abriu a porta. Durante alguns
segundos, a porta pareceu resistir, o que era estranho; em seguida, ouviu-se
um estalo agudo de algo se quebrando.
E então… sangue.
Ao abrir a porta, algo foi acionado em seu armário e o sangue começou a
escoar; Neil recuou ao ver o líquido escorrer sobre tudo o que havia lá den-
tro. O cheiro era tão forte que ele sentiu a garganta fechar e quase se engas-
gou. O choque só durou um segundo, depois ele foi dominado pelo pânico.
Enfiou a mão no armário, tentando agarrar o uniforme e os equipamentos.
Era tarde demais, e ele sabia, mas precisava tentar. A camisa estava enchar-
cada, como uma esponja inchada, espalhando o sangue por seus dedos. Ele a
deixou cair e procurou o capacete. Seus dedos tocaram o plástico duro, mas
antes que conseguisse tirá-lo, Matt o agarrou.
— Não! — gritou Neil, mas Matt o arrastou para longe do armário. — Es-
pera!
Tentou firmar os pés, mas as solas dos sapatos estavam ensopadas e desli-
zavam pelo chão. O sangue caíra do armário e começava a formar uma poça
que se espalhava com rapidez pelo chão. Pendurada na parte de cima do ar-
mário estava uma sacola plástica vazia, ajustada para se rasgar assim que a
porta fosse puxada. Parecia grande o bastante para conter ao menos dois
galões; mais do que o suficiente para destruir todos os equipamentos de
Neil.
— Nicky, vai chamar o treinador — ordenou Andrew.
Nicky saiu em disparada. Neil deu uma cotovelada forte em Matt, que xin-
gou e o soltou. Neil correu de volta até o armário, derrapando. Teve que se
segurar no armário ao lado para não cair. Assim que recuperou o equilíbrio,
tirou tudo o que tinha lá dentro, peça por peça, desesperado. Não conseguia
mais diferenciar o uniforme das partidas em casa e o de jogos como visitan-
te. Até os equipamentos de proteção de sua armadura estavam destruídos.
Ele pegou o capacete e o virou, observando o sangue cair do plástico duro
que protegia o rosto.
— Neil? — disse Matt.
Neil deixou o capacete cair na pilha a seus pés e socou o fundo do armário.
Seu punho acertou o plástico em vez do metal, e Neil arrancou a sacola ras-
gada do gancho. Quando se virou para jogá-la, Andrew o agarrou pelo pul-
so. Ele não tinha ouvido Andrew se aproximar. Neil olhava para ele e através
dele, o coração batendo com força.
— Tudo estragado — disse Neil, com a voz fraca e cheia de ódio. — Está
tudo estragado.
Wymack irrompeu no vestiário com Nicky logo atrás. Ficou paralisado por
alguns instantes ao ver a quantidade de sangue, e então caminhou até Neil.
— Esse sangue é seu?
— Treinador, meu equipamento… Está todo…
— Não é dele. — Andrew o soltou e voltou para o armário. — Neil está
bem.
— Água oxigenada. Será que a Abby tem no escritório dela? — perguntou
Neil.
Quando Wymack não respondeu, Neil foi em direção à porta para procurar
por conta própria. O treinador colocou um braço no caminho para detê-lo.
— Preciso limpar meu uniforme antes que o sangue seque, ou não vou ter
nada pra usar hoje.
— E eu preciso que você bloqueie essa porra de pensamento por dois se-
gundos pra focar no fato de que você tá coberto do sangue de alguém ou de
alguma coisa. Você está bem?
— Andrew já disse que estou bem — respondeu Neil, entredentes.
— Não perguntei para o Andrew — retrucou Wymack —, perguntei para
você.
— Toma, eu tenho uma toalha extra — falou Matt, tirando-a de seu armá-
rio aberto.
Ele foi depressa até o banheiro para umedecê-la na pia, mas parou de re-
pente quando estava voltando. Sua voz assustada ecoou pelas paredes do
vestiário.
— Que porra é essa?
Neil sabia que não deveria olhar, mas foi até lá mesmo assim. Wymack e
Andrew estavam logo atrás. Neil seguiu o olhar de Matt até a parede mais
distante e sentiu o estômago se revirar. Escrito com sangue no azulejo havia
uma mensagem gritante: “Feliz 19º aniversário, Jr.”
A cabeça de Neil se encheu de estática e gritos. O murmúrio estridente que
ouvia ao fundo parecia deslocado, e ele levou uma eternidade até perceber
que o som vinha de seus companheiros de equipe. Compreendia a ansieda-
de em suas vozes, mas não distinguia uma palavra sequer. O medo cravara
as garras geladas no estômago dele, arrastando-o até a garganta. Neil fechou
os olhos por dois segundos e respirou fundo. Não conseguiria lidar com isso
naquele momento. Não conseguiria e não iria.
Suprimiu a sensação de pânico que começava a crescer e a enterrou dentro
de si, da mesma forma que fizera ao sufocar a dor que sentia e queimar o
corpo da mãe. Teria que lidar com tudo isso mais tarde, porque se tentasse
naquele momento, com as Raposas a observá-lo, perderia tudo.
O mundo voltou ao foco aos poucos, bem a tempo de permitir que Neil
ouvisse Wymack murmurar algo sobre chamar a polícia. Neil agarrou o trei-
nador pelo cotovelo antes que pudesse se virar, apertando-o com tanta força
que sentiu os ossos estalarem.
— Treinador — disse, com toda a calma que conseguia —, você vai ter que
deixar a polícia de fora dessa. Certo? Vamos seguir em frente e jogar. Depois
da partida eu venho limpar isso aqui. Ninguém precisa saber.
— Me dá um bom motivo para não cancelar o jogo agora e trazer a equipe
de segurança aqui — protestou Wymack.
— Não posso explicar ainda. Falei que você precisa esperar até maio — res-
pondeu Neil, estreitando os olhos.
Ele forçou Wymack a se lembrar da promessa que fizera na véspera de
Ano-Novo, quando questionara suas mentiras e cicatrizes. Não dissera ao
treinador que vivia em fuga, mas chegara perto o bastante para permitir que
ele juntasse as peças. Neil precisava que ele se lembrasse e percebesse o ób-
vio: os homens de Riko não teriam deixado evidência alguma, mas as im-
pressões digitais de Neil estavam por toda a parte.
Wymack não disse nada, mas estudou Neil com uma intensidade inquie-
tante. Neil soltou o treinador e puxou a toalha molhada da mão de Matt, que
não resistiu. Ao atravessar o vestiário até a mensagem nos azulejos, Neil sen-
tiu os pulmões se contraírem. Tentou não respirar fundo para não sentir
vontade de vomitar e esfregou as letras na parede. No final, ainda havia um
pedaço da toalha intacto para que limpasse as mãos. Ele voltou até os outros
e colocou a toalha na pia; lidaria com ela depois.
— Neil — começou Matt.
Neil não queria ouvir.
— Vai se trocar, Matt.
Ele voltou para examinar o armário. Não demorou muito para perceber
que nenhum de seus companheiros de equipe havia se movido. Matt ainda
estava paralisado próximo às pias. Wymack e Andrew estavam na porta que
levava aos banheiros. Aaron, Kevin e Nicky estavam perto dos armários.
Neil podia sentir todos os olhos nele. A sensação era de que a verdade estava
escrita em sua pele para todos verem. A mensagem dizia apenas “Jr.”, mas ele
esperava que alguém o chamasse pelo nome a qualquer momento.
Neil olhou em volta e focou na pessoa mais capaz de o ajudar a resolver
aquela situação.
— Kevin — disse, e continuou em francês —, faz eles se moverem. Faltam
quarenta minutos pro jogo começar.
— Você vai conseguir jogar?
— Estou com raiva, não machucado. Não vou deixar isso nos impedir de
ganhar hoje. Você vai?
Kevin o analisou por um instante, então se virou com um olhar mordaz
para os companheiros de equipe.
— Andem, se mexam. Temos um jogo pra ganhar.
— Você só pode estar de sacanagem — reclamou Matt, surgindo atrás de
Andrew e olhando para os dois atacantes. — Vocês vão mesmo ignorar que
isso — apontou o dedo para o armário de Neil — acabou de acontecer? Neil,
você parece um dublê de Carrie, a estranha. Não quer nem chamar a segu-
rança aqui enquanto ainda está tudo fresco?
— Não — respondeu Neil —, não quero.
— Você só pode estar de sacanagem — repetiu Matt.
Neil olhou para ele.
— Riko tem um ego enorme e é um grande babaca. É essa a reação que ele
quer provocar. Se conseguir, sai vencedor. Não dê esse gostinho pra ele. Va-
mos fingir que isso nunca aconteceu e focar nas Tartarugas.
Wymack só levou alguns instantes para escolher de que lado ficaria.
— Ninguém vai se trocar aqui. Peguem seus equipamentos e caiam fora.
Podem ficar com o vestiário das meninas quando elas acabarem. Você tem
um voto de confiança hoje — afirmou, quando Neil olhou para ele. — Se eu
julgar que não está concentrado no jogo, vou tirar você de quadra tão rápido
que vai ficar com dor no pescoço, e a Dan vai entrar no seu lugar. Estamos
entendidos?
— Sim, treinador — respondeu Neil.
Wymack olhou para a bagunça mais uma vez, parecendo se odiar um pou-
co por apoiar a atitude de Neil. Por fim, balançou a cabeça e tirou as roupas
de Neil da pequena pilha no chão.
— Vou pedir pra Abby limpar isso. Alguém empresta outra toalha pro Neil.
— Obrigado — disse Neil.
— Cala a boca — retrucou Wymack, saindo irritado.
Um silêncio opressivo tomou conta do vestiário. Por fim, Andrew foi até
seu armário e terminou de pegar os equipamentos. Era a motivação de que
os outros aparentemente precisavam, porque todos pegaram suas coisas e
saíram. Nicky emprestou uma toalha extra para Neil e foi para o outro ves-
tiário. Matt foi o último a sair, e hesitou ao perceber que Neil ainda não ti-
nha se mexido.
— Vou tomar banho aqui — explicou Neil, apontando para sua aparência
deplorável. — Não quero prolongar isso mais do que o necessário.
Matt não discutiu e deixou Neil em paz. Neil olhou para seu armário, então
desviou o olhar, decidido, e foi até os chuveiros. Tomou banho olhando para
o chão, observando a cor vermelha desaparecer lentamente na água. Mesmo
depois que a água ficou cristalina, ele ainda sentia como se estivesse morren-
do por dentro. Lavou-se três vezes até se dar por vencido.
Assim que desligou o chuveiro, Wymack o chamou do lado de fora.
— Matt foi até a Torre das Raposas pra pegar cuecas e meias pra você. Eu
trouxe o equipamento extra, mas você vai ter que ver qual fica melhor. Trago
seu uniforme de volta quando estiver limpo. Não sai daí enquanto isso.
— Sim, treinador — respondeu Neil.
Ele ouviu o treinador fechar a porta e se secou dentro do box. As Raposas
tinham alguns equipamentos extras, fruto dos anos em que havia mais atle-
tas no banco. Renee usara uma dessas armaduras quando jogara na defesa,
no outono passado. A maior parte do equipamento era ajustável, mas apenas
até certo ponto. Neil precisou provar cada um deles para escolher um con-
junto completo dentre aqueles que Wymack levara. Depois, não tinha mais
nada para fazer além de esperar.
Pareceu que uma eternidade se passou antes que Matt retornasse; o trânsito
noturno causado pelo jogo tornara o trajeto curto até a Torre das Raposas
muito mais demorado. Neil foi arrancado de seus pensamentos sombrios
quando alguém bateu à porta. Ele se levantou do banco e foi investigar. O
equipamento que vestia tornava impossível colocar a toalha em volta de seu
corpo. Em vez de se enrolar nela, segurou-a na altura do pescoço para que
cobrisse seu torso cheio de cicatrizes.
Neil abriu uma fresta da porta e espiou. Era Matt no corredor.
— Por que você bateu? — perguntou Neil, surpreso.
Matt fez uma cara estranha para ele.
— Abby disse que ainda está com seu uniforme.
Não era a primeira vez que as Raposas faziam de tudo para lidar com os
problemas de privacidade de Neil, mas geralmente só acontecia quando ti-
nham tempo para pensar no assunto. Por causa de Neil, Matt estava atrasa-
do para o aquecimento e abalado com a peça horrível que Riko pregara.
Apesar disso, se lembrou de que não deveria entrar.
— Obrigado — disse Neil, por fim, e pegou as roupas que Matt espremia
pela porta.
Matt também trouxera roupas extras para que ele tivesse o que vestir após
o jogo. Neil sentiu um arrepio ao pensar no colega mexendo em suas coisas,
mas tentou afastar aquela tensão tão instintiva.
— Sem problemas — disse Matt. — Precisa de mais alguma coisa?
— Uma chance de acabar com Riko, sem testemunhas — respondeu Neil.
Matt sorriu como se pensasse que Neil estava brincando e saiu. Ele fechou
a porta e vestiu a cueca e as meias. Levou os tênis para o banheiro e os lavou
na pia. Não poderia fazer muito mais do que isso. O sangue havia encharca-
do o forro por dentro. Neil poderia usá-los naquela noite, mas teria que
substituí-los o mais rápido possível. Conseguiria vestir o short por cima dos
sapatos, então calçou os tênis e amarrou os cadarços. Andou pelo vestiário,
observando o relógio para não olhar para o sangue.
Finalmente, Wymack apareceu com seu uniforme.
— Fizemos o que estava ao nosso alcance, mas vamos precisar de um con-
junto novo pra você. Vou fazer o pedido hoje à noite e pedir pra entregarem
o quanto antes.
Ele o estendeu e começou a trabalhar, arregaçando as mangas. Neil havia
sujado a manga do treinador quando o agarrara pelo braço, de forma que ele
precisou puxá-la para esconder. Neil pensou que deveria pedir desculpas,
mas não achou que Wymack permitiria. Em vez disso, espremeu o excesso
de água da bainha e das mangas da camisa do uniforme.
— Foi o máximo que conseguimos secar — explicou Wymack, olhando pa-
ra a água que pingava. — Matt trouxe um dos secadores de cabelo das meni-
nas, mas Abby não quis usar porque ficou com medo de manchar.
— Se alguém perguntar, vou dizer que foi uma pegadinha pré-jogo. Não
deixa de ser verdade.
Neil terminou de se vestir. Wymack deu uma olhada rápida, concluiu que
estava bom o bastante para passar pelo olhar perscrutador da torcida, assen-
tindo sem muita convicção, e enxotou Neil do vestiário antes dele. A equipe
já havia se aquecido e se alongado, pois estava muito perto da hora de o jogo
começar. Neil deu algumas voltas sozinho enquanto Wymack comandava o
discurso pré-jogo. Parou de falar quando Neil voltou. Todo mundo olhou
para ele.
— Tem certeza que você tá bem, Neil? — perguntou Dan.
— Tenho certeza que temos um jogo pra ganhar — afirmou Neil. — Me-
lhor se preocupar com isso, e não comigo.
Os árbitros deram o ok para que entrassem em quadra para se exercitar.
Neil focou em cada movimento para não pensar em mais nada. Quando os
jogadores titulares se posicionaram para o início do jogo, Neil estava tão
concentrado na partida que quase chegou a esquecer o que acontecera no
vestiário. Mas a sombra daquele episódio ainda permanecia no fundo de sua
mente, por mais que não quisesse reconhecer, e o incentivou a jogar com
mais intensidade e mais rápido. Kevin não o alertou para diminuir o ritmo, e
os dois foram de encontro aos defensores com uma violência atípica. Neil le-
vou um cartão amarelo antes do intervalo. Esperava que Wymack usasse isso
como desculpa para tirá-lo do jogo, mas o treinador não disse nada quando
guiou a equipe de volta para o vestiário.
Neil pensou ter sentido cheiro de sangue, mas sabia que era impossível.
Havia espaço demais entre o vestiário e o saguão, e o fedor de suor e deso-
dorante dos companheiros empesteava o ar.
— Cadê a Abby? — perguntou Dan, e Neil percebeu que não a via desde o
começo do jogo.
— Ela teve que ir ao campus rapidinho. Tentem não apanhar enquanto ela
não estiver aqui. — Wymack apontou para a geladeira portátil. — Bebam al-
guma coisa e se alonguem. Não temos muito tempo.
As Raposas jogaram o segundo tempo como se tivessem tudo a perder.
Neil usou as habilidades de passe e arremesso que Kevin lhe ensinara e apli-
cou alguns dos movimentos defensivos com os pés que aprendera com os
Corvos. Quando precisava falar com Kevin, usava o francês. Não dirigiu
uma única palavra a seu marcador, não importava o que ele dissesse. Não ti-
nha fôlego para comentários sarcásticos e inúteis e precisava concentrar a
pouca energia que tinha no jogo. A julgar pelo tom de voz cada vez mais
agressivo, Neil sabia que o defensor estava incomodado com o silêncio. Neil
fingia que não o via, exceto quando precisava empurrá-lo para ultrapassá-lo.
Matt era uma força dominante do outro lado da quadra. Nicky ainda era o
elo mais fraco na linha de defesa, mas Andrew o equilibrava com uma efi-
ciência implacável. Quando Aaron entrou, ele e Andrew jogaram juntos co-
mo se não houvesse nada de errado entre os dois. Neil não sabia se tinham
estabelecido uma trégua por causa do que Riko fizera ou se o jogo bastava
para distraí-los de seus problemas pessoais. Naquele instante, não importa-
vam os motivos, desde que cooperassem.
Com oito minutos de jogo, o ritmo das Raposas começou a diminuir. Havi-
am começado com intensidade demais. Contanto que conseguissem segurar
as pontas, ficariam bem, pois estavam dois gols à frente; mas Neil queria que
marcassem mais um para que a energia da equipe se renovasse. Os defenso-
res que marcavam a ele e Kevin tinham acabado de entrar em quadra, e a
defesa era eficiente em frear cada jogada que faziam. Neil sabia que Kevin
estava tão frustrado quanto ele, porque começava a cruzar a linha do que era
considerado uma falta aceitável. Neil o avisou a respeito disso quando per-
deram a posse de bola de novo. Kevin rosnou, rude.
Dois minutos depois, as Raposas conseguiram o incentivo que precisavam.
Um atacante das Tartarugas contornou Matt e correu em direção ao gol.
Matt não conseguiu alcançá-lo, mas acertou um golpe quando o atacante foi
arremessar. O jogador tropeçou, retorcendo a raquete em uma tentativa de
manter a posse de bola, e deu mais um passo em direção ao gol. Em um pis-
car de olhos, Andrew já tinha saído da área, entrando em uma disputa cor-
poral tão dura que derrubou o atacante. Ele ficou deitado onde estava por
cerca de cinco segundos, atordoado demais para se levantar. O jogo não pa-
rou por causa dele. Matt recuperou a bola com um grito de guerra e a jogou
do outro lado da quadra para Allison. Quando Neil arremessou no gol e
marcou, as Raposas se reagruparam.
O placar final foi de oito a cinco para as Raposas, e os gritos da torcida
eram estrondosos. Os atletas foram comemorar próximo ao gol porque An-
drew não iria até eles. Na temporada anterior, Nicky e Renee o atraíam para
a festa porque ele estava sempre enjoado demais para protestar. Naquele
momento, quando Nicky fingiu que iria pular nele, Andrew apontou sua ra-
quete em um aviso. Nicky pensou melhor e se pendurou em Aaron. Andrew
permaneceu como um espectador desinteressado, de fora da comemoração,
enquanto as Raposas pulavam e gritavam alguns metros à frente. De alguma
forma, Kevin conseguiu contornar todos os outros para dizer algo a Andrew.
Neil não conseguiu ouvir por causa do barulho dos companheiros de equi-
pe, mas o gesto desdenhoso de Andrew indicava que não estava preocupado
com a aprovação de Kevin.
Eles apertaram as mãos das Tartarugas o mais rápido possível e saíram da
quadra. Wymack e Abby os esperavam. O treinador exibia um sorriso enor-
me, e o de Abby não era menos discreto. A alegria de Wymack só serviu pa-
ra aumentar a empolgação de Dan, que correu até a torcida adversária para
provocá-los. Nicky e Matt partiram atrás dela. Wymack os deixou, sabendo
que os repórteres os veriam como alvos fáceis, e conduziu as Raposas até o
vestiário. Neil percorreu todo o caminho até o saguão antes de se lembrar da
confusão que o esperava.
— Você tem um esfregão que eu possa usar? — perguntou ele.
— Cala a boca. Você não vai limpar aquilo agora. Acabamos de ganhar —
disse Wymack.
— Oito a cinco — complementou Allison, como se Neil já tivesse se esque-
cido. O tom agudo de sua voz demonstrava que ainda estava irritada com
tudo aquilo. Neil não se retraiu ao ouvir as próximas palavras, mas foi por
pouco. — Acho que você pode considerar isso seu presente de aniversário
da equipe.
— Allison — protestou Renee.
— Não. — Allison apontou um dedo para Renee para interrompê-la, mas
manteve os olhos em Neil. — Já cheguei no limite de palhaçadas que vou
aguentar esta semana, que dirá este ano. Preciso saber o quanto essa disputa
de quem tem o pau maior entre o Neil e o Riko ainda vai piorar.
— Vamos conversar sobre isso — disse Wymack —, mas não até que todos
estejam aqui. Vão tomar banho. Vamos nos dividir de novo. As meninas pri-
meiro. — Wymack as observou sair e esperou até que a porta do vestiário se
fechasse. — Vou instaurar uma nova regra de equipe obrigando todo mundo
a ficar feliz após uma vitória. Vocês vão acabar comigo antes da minha hora,
seus malditos.
O treinador olhou para eles, mas Kevin observava Neil e os gêmeos volta-
ram a se ignorar. Wymack ergueu as mãos em derrota e saiu. Um silêncio
tenso pairou pela sala, até que Dan apareceu, com Nicky e Matt logo atrás.
Os três ainda pareciam entusiasmados com a vitória e as entrevistas, mas es-
tar perto dos companheiros mal-humorados acabou com o ânimo deles.
Dan hesitou apenas um momento, então continuou em direção ao vestiário,
em silêncio. Nicky se aproximou e apoiou o ombro contra Neil.
— Então, acabamos de vencer o segundo de três jogos. A vitória da semana
que vem vai ser a cereja do bolo. — Nicky lançou um olhar significativo para
Kevin, como se exigisse a participação dele na conversa. — E aí vamos pro
primeiro jogo mata-mata. Chances de pegarmos alguém interessante?
— Zero. Todas as equipes interessantes estão do outro lado da chave — res-
pondeu Kevin.
— Todas menos a nossa, você quer dizer. — Nicky aguardou um instante
para que ele concordasse, então deu um suspiro exagerado ao perceber que
não o faria. — Você é tão parcial. Só não se esqueça de qual time você está.
Se acabarmos enfrentando a USC, é melhor que torça pela gente.
— Vou pensar a respeito — disse Kevin.
Os Corvos e os Troianos eram rivais intensos, mas Kevin era um torcedor
obstinado da USC. Neil não se surpreendia. A USC tinha um dos melhores
times do país. Eram famosos por seu espírito esportivo e haviam liderado o
movimento para manter as Raposas no campeonato no outono anterior.
Mereciam a atenção e a torcida de Kevin.
— Babaca. Vou contar pro Wymack que você gosta mais do treinador Rhe-
mann — retrucou Nicky.
— Pode contar. Se o treinador sabe o que está fazendo, então tem consciên-
cia de que os Troianos são melhores do que as Raposas. Sempre foram e
sempre vão ser.
— Parcial — murmurou Nicky de novo.
Quando as garotas terminaram, Dan veio avisá-los e os meninos assumi-
ram o vestiário. Quando estava embaixo do chuveiro, Neil checou as unhas
em busca de sangue. Não encontrou nada, mas por um instante jurou ter
sentido o cheiro de carne queimada.
Foi o último a se vestir, como sempre, e encontrou os companheiros espe-
rando por ele no lounge. Wymack estava parado na frente do centro de en-
tretenimento, com os braços cruzados. Abby estava apoiada na porta. Neil
ficou tentado a passar por ela e sair, fugindo da conversa. Duvidava que al-
guém o deixasse escapar impune, então se sentou ao lado de Andrew no so-
fá.
Wymack esperou até que ele se assentasse antes de começar.
— Em primeiro lugar: vamos falar do elefante massacrado na sala. Ou me-
lhor, dos pássaros massacrados. Pedi um favor ao corpo docente e consegui
que Abby tivesse acesso aos microscópios nos laboratórios de ciências. Pre-
cisávamos ter certeza de que não era sangue humano.
— Que parada mais mórbida — disse Nicky.
— Mas necessária, considerando com quem estamos lidando. — Wymack
balançou a cabeça. — A última coisa que quero é colocar todos vocês em ris-
co. A quadra deveria ser um lugar seguro pra todo mundo, mas falhei ao
proteger vocês. Estou pensando em instalar câmeras nas áreas comuns, mas
não vou a menos que todo mundo concorde. Se acontecer, os únicos que vão
ver as fitas são as pessoas nesta sala agora. Também não quero mais nin-
guém se metendo na nossa vida.
“O que nos leva à segunda questão: Neil nos pediu para deixar as autorida-
des fora disso”, disse Wymack, olhando cada uma de suas Raposas. “Eu res-
peito ele o bastante pra conceder isso, mas essa decisão não é só minha. Vo-
cês concordam?”
— Você vai mesmo deixar o Riko se safar dessa? — perguntou Dan.
— Ele não teria feito isso se pensasse que poderia ser pego — respondeu
Neil.
— Talvez a gente não consiga chegar até ele, mas podemos encontrar seus
paus-mandados. Ninguém é perfeito. Todo mundo deixa um rastro — suge-
riu Matt.
Aaron falou a seguir, e o tom de acusação em sua voz fez o sangue de Neil
gelar:
— Você entende bem isso, né, Júnior?
Neil lançou um rápido olhar para a expressão sombria de Aaron e se pre-
parou para o pior. No entanto, o que veio era ainda mais terrível do que es-
perava.
— Eles nunca vão encontrar provas de que Riko estava envolvido nisso,
mas podem encontrar você, né? É essa a questão aqui, não? — Aaron apon-
tou para o próprio rosto, indicando a mudança abrupta da aparência de
Neil. — Sua aparência, os idiomas que fala, as mentiras… você está fugindo
de algo ou de alguém.
A pergunta entredentes foi um golpe baixo que deixou Neil sem ar e abriu
um buraco em seu estômago. O silêncio que se seguiu parecia infinito. Neil
tinha certeza de que os colegas de equipe conseguiam ouvir seus batimen-
tos; o coração martelava com tanta força e tão alto que ele o sentia em cada
centímetro da pele. Os olhares deles eram penetrantes o suficiente para reve-
lar todos os disfarces que Neil já havia usado.
Encontrar sua voz foi um ato de desespero. Mantê-la calma consumiu toda
a energia que lhe restava.
— Sabe, eu esperava esse tipo de golpe baixo e de traição dos Corvos.
Achei que as Raposas eram melhores do que isso. Não — disse Neil quando
Aaron abriu a boca de novo. — Não ouse descontar seus problemas com o
Andrew em mim. Sei que você está puto porque envolvi a Katelyn na histó-
ria, mas vai ter que superar isso.
— Você a arrastou pra uma coisa que não tinha nada a ver com ela. Então,
vou enfiar todos eles na sua história. Não é tão divertido quando alguém pa-
ga na mesma moeda, né? — provocou Aaron.
— Você é tão burro. Eu me enfiei na briga de vocês porque queria ajudar.
Você está fazendo isso porque acha que assim vai me machucar. Tem uma
diferença gritante entre os dois casos. A parte boa é que você provar que é
mesmo um babaca só me mostra que eu estava certo sobre suas chances. —
Neil inclinou a cabeça de lado e olhou para Aaron. — Já notou que é a sua
covardia que mantém você e o Andrew distantes um do outro, né?
— Eu não sou covarde.
— Você é um babaca e um covarde. Deixa a vida passar por você e não faz
nada para revidar. Permite que outras pessoas ditem como viver sua vida e
com quem você pode passar seu tempo. Refresque a minha memória, por
favor, e me diga por que tolerou os abusos da sua mãe por tanto tempo. Era
por que a amava, apesar de ela ser louca, ou por que tinha medo demais de
ir embora?
— Neil. Isso não… — começou Dan, chocada.
— Vai se foder. Ainda estou esperando por uma resposta pra minha per-
gunta — disse Aaron.
— E eu ainda estou esperando um agradecimento — rebateu Neil, então
lançou um olhar para Andrew. — De vocês dois. De um pro outro. Vocês es-
tão quites agora, não? Então por que não podem esquecer o passado e co-
meçar de novo? Por que prolongar isso por mais três anos se podem conser-
tar tudo agora?
— Você não sabe de nada — retrucou Aaron, em um tom baixo e ácido.
— Você não quer que eu esteja certo. Porque se eu estiver, a culpa por ela
estar morta é toda sua.
Andrew por fim interferiu.
— Não. A culpa sempre vai ser dela.
— Ela não se matou, Andrew — disse Aaron, com a crueldade do luto.
Andrew lançou um olhar frio para ele.
— Eu avisei o que iria acontecer se ela erguesse a mão pra você de novo.
Ela não podia dizer que eu não avisei.
— Meu Deus — exclamou Matt —, você acabou de…
Wymack apoiou o indicador e o polegar entre as sobrancelhas e soltou um
suspiro pesado.
— Será que você pode pelo menos esperar a gente sair daqui antes de con-
fessar?
Aaron olhou de Wymack para os veteranos, depois de novo para Andrew.
Neil esperava que ele entendesse o aviso de Wymack como uma ordem para
ficarem em silêncio. Em vez disso, Aaron mudou para o alemão e disse:
— Não foi por isso que você fez o que fez. Não mente pra mim.
— Ela não era nada e nem ninguém pra mim. Que outro motivo eu teria
para matá-la? — respondeu Andrew.
Aaron levou um minuto para conseguir falar de novo. Ainda parecia irrita-
do, mas havia um tom diferente em sua voz:
— Você mal olhava pra mim. Mal falava comigo, a não ser que eu falasse
primeiro. Não sei ler mentes. Como que eu ia saber?
— Porque eu fiz uma promessa — respondeu Andrew. — Não esqueci do
que prometi só porque você escolheu não acreditar em mim. Fiz o que disse
que ia fazer, e pro caralho com você por achar que seria diferente.
Lá estava de novo: uma pista da raiva contida no âmago de Andrew. Aaron
abriu a boca, mas voltou a fechá-la e abaixou o olhar. Andrew olhou para a
cabeça baixa do irmão por um minuto interminável. Aaron havia desistido
da briga, mas cada segundo que passava parecia adicionar mais tensão ao
corpo de Andrew. Neil observou os dedos dele se curvarem em suas coxas,
não em punhos fechados, mas como se estivesse estrangulando alguém, e
soube que Andrew estava prestes a perder o controle.
Ele estendeu a mão entre os dois, tentando impedir Andrew de olhar para
Aaron, e Andrew o olhou com crueldade. Um segundo depois, já havia re-
tornado à expressão indiferente de sempre. Neil se arrependeu na hora da
intervenção. Ninguém conseguia fazer com que a raiva passasse tão rápido;
Andrew só a havia enterrado em um lugar em que apenas ele sairia machu-
cado. Era tarde demais para voltar atrás, então Neil abaixou a mão em um
sinal de derrota.
— Isso era tudo, treinador? — perguntou Neil.
— Não — interrompeu Allison. — Por mais que essa pequena distração te-
nha explicado bastante coisa, não responde à pergunta. O que Riko tem
contra você?
De nada adiantaria mentir, considerando as acusações que Aaron fizera.
Neil optou pela verdade em sua forma mais simples e que de nada ajudava.
— Ele sabe quem eu sou.
Eles levaram alguns instantes para perceber que já terminara de falar, então
Matt arriscou:
— Hm?
— A família de Neil tem uma reputação — explicou Kevin, vindo inespera-
damente em defesa de Neil, que olhou para ele, tentando indicar que se ca-
lasse e, ao mesmo tempo, buscando manter sua expressão neutra. Kevin não
retribuiu o olhar, mas tudo o que disse a seguir foi: — Riko está tentando
usar essa informação contra Neil.
— Isso vai ser um problema? — perguntou Dan.
— Não — respondeu Neil.
Allison arqueou uma sobrancelha para ele e gesticulou por cima do ombro,
provavelmente se referindo ao vestiário destruído.
— Tem certeza?
— Tenho — respondeu Neil, mas ninguém parecia acreditar. Ele pensou
nas próximas palavras com cuidado à procura do equilíbrio perfeito entre a
verdade e a mentira para fazê-los parar com as perguntas. — Riko sabe
quem eu sou porque nossas famílias operam em círculos semelhantes, mas
ele só é um Moriyama no nome. Não tem recursos pra fazer mais do que me
ameaçar.
— Porra, Neil. Seus pais devem ser coisa de outro mundo se conseguem fa-
zer o Riko seguir as regras. Aaron estava certo, então? Essa é sua aparência
de verdade? — perguntou Matt.
— É — respondeu Neil.
— Mas por que mentir sua idade? Não dá pra entender.
— Não quero que ninguém descubra minha conexão com minha família.
Quanto mais difícil for para ligarem esses pontos, melhor. Ter dezoito anos
em Millport significava que meus professores e o treinador não precisavam
consultar meus pais para tomar decisões. Se dissesse a verdade a vocês, teria
que explicar por que menti, e não estou acostumado a confiar nas pessoas.
Não quero que vocês me julguem pelos crimes que meus pais cometeram.
— Como se a gente pudesse julgar alguém — retrucou Dan, e Neil deu de
ombros em um pedido de desculpas silencioso. Ela parecia ter mais a dizer,
mas parecia ter dado um jeito de abafar a curiosidade e deixá-la de lado.
Olhou para Allison primeiro, depois para Matt e Renee. Quando viu que
ninguém tinha mais nada a perguntar, completou: — É, acho que acabamos
por aqui, treinador.
Wymack assentiu.
— Todo mundo concorda com as câmeras? Sim? Vou mandar instalarem
no fim de semana. Na segunda à tarde falamos da localização das câmeras e
do jogo. Até lá, descubram como resolver esses problemas pessoais — disse
ele, lançando um olhar significativo para Aaron. — Não ousem trazer esse
tipo de atitude pra minha quadra de novo, nunca mais. Entenderam?
As Raposas murmuraram em consentimento, e Wymack gesticulou para
que saíssem.
— Estão dispensados. Dirijam com segurança.
O lado de fora do estádio era puro caos. Alguns torcedores bêbados grita-
vam e corriam como loucos; outros dançavam e cantavam, gritando alegres.
Uma enorme quantidade de policiais tentava controlar a bagunça. Seguran-
ças ficaram de olho nas Raposas até que chegassem aos carros. Aaron passou
pelo veículo alugado e subiu na caçamba da caminhonete de Matt. Nicky
abriu a boca para dizer algo, mas Andrew acendeu o isqueiro a centímetros
de distância do rosto dele em um aviso. Nicky entrou em silêncio no banco
de trás com Neil e passou o resto do trajeto olhando para baixo.
O tráfego nas redondezas do estádio era intenso, e os carros das Raposas se
separaram no trânsito. Matt chegou primeiro ao dormitório. Quando os ou-
tros apareceram, Aaron já havia saído. Neil observou Andrew guiar Kevin e
Nicky até o quarto antes de se dirigir para o dele. Matt foi atrás de Neil, que
tentou fingir surpresa ao ver que as meninas o seguiam.
O zumbido suave de seu celular o distraiu, e Neil o tirou do bolso. Havia
uma nova mensagem na caixa de entrada. Não reconheceu o número nem o
código de área. Tampouco entendeu a mensagem: “49.” Neil esperou um mi-
nuto, mas não recebeu mais nada. Deletou a mensagem e guardou o celular.
— Neil — falou Dan, e esperou até que ele olhasse para continuar. — Obri-
gada. Por nos contar a verdade, quer dizer. Sei que não é tudo, mas também
sei que você não teve escolha. Quando quiser conversar, estamos prontos
pra ouvir. Você sabe, né?
— Eu sei — respondeu Neil.
Ela apertou o ombro dele em um apoio silencioso, mas feroz.
— E obrigada por… bom, por seja lá o que você esteja fazendo por Andrew
e Aaron. Não tenho certeza se entendi o que aconteceu hoje, mas sei que foi
importante.
— Importante? — repetiu Matt. — Vamos falar sobre o fato de Andrew ter
matado a mãe deles? Achei que ela tinha morrido num acidente de carro. É
o que todo mundo dizia.
— Mas ela morreu numa batida de carro — disse Neil.
— Eu disse acidente — retrucou Matt. Neil olhou para ele sem dizer nada,
então Matt perguntou: — Como você descobriu?
— Nicky me contou faz uns meses — revelou Neil.
— Simples assim — disse Matt, desconfiado. — Você sempre soube do que
ele é capaz, mas disse que ele nunca deu motivos pra você ter medo. Que
porra os seus pais fazem pra você conseguir ignorar um assassinato como se
não fosse nada demais e enfrentar Riko o tempo todo?
Neil balançou a cabeça e foi salvo pela fala gentil de Renee.
— Talvez Neil confie nos motivos de Andrew. Ele admitiu o assassinato,
disso a gente sabe, mas também disse que foi pelo irmão.
— Foi premeditado — interferiu Dan. — Isso não é desculpa. Ele poderia
ter chamado a polícia, a assistência social ou até os pais do Nicky.
— Pessoas com nosso histórico não costumam confiar na polícia. Talvez
Andrew nunca tenha pensado nessa possibilidade— comentou Renee.
— E olha o que aconteceu em novembro passado. Andrew sempre soube
que Luther não iria proteger Aaron— acrescentou Neil.
Dan olhava para os dois, incrédula.
— Vocês compactuam com isso?
Renee abriu as mãos e deu um sorriso tranquilizador para a amiga.
— Não sabemos de tudo o que aconteceu, Dan. Nunca vamos saber o que
estava passando pela cabeça de Andrew na época ou o quanto a vida deles
era ruim. Tudo o que podemos fazer é escolher: ou acreditamos que ele esta-
va protegendo o Aaron ou o condenamos por escolher o caminho mais ex-
tremo. Prefiro a primeira opção. Vocês não preferem? É encorajador e re-
confortante pensar que ele não fez isso por pura maldade.
— Só falta você falar que foi bondade da parte dele — rebateu Allison, em
zombaria.
— Por favor, não faz isso. Meu estômago já tá revirando— disse Dan, com
uma careta discreta.
Neil esperou para ter certeza de que a conversa havia acabado, então afir-
mou:
— Vou deitar.
Nenhum deles tentou impedi-lo. Ele se trancou no quarto, trocou de roupa
e se enfiou embaixo dos lençóis. Seus pensamentos ameaçavam puxá-lo para
lugares sombrios, então Neil silenciosamente contou números o máximo
que pôde em todas as línguas que conhecia. Não ajudou muito para fazê-lo
cair no sono, mas pelo menos manteve os demônios afastados por mais al-
gum tempo.
Quando o sol nasceu, Neil desistiu de fingir que dormia e se levantou da ca-
ma. Foi correr pela Perimeter Road, indo em direção à Toca das Raposas,
quando o caminho se dividiu. Os seguranças de sempre faziam a ronda. Neil
confiava cada dia menos no trabalho deles, pois já sabia o quanto era fácil
burlá-los. Contornou-os. Usou as chaves para entrar e acendeu as luzes, se-
guindo para os vestiários.
Ele abriu as portas, já arregaçando as mangas do moletom, e hesitou a meio
caminho do vestiário. A bagunça havia desaparecido e o chão parecia novi-
nho em folha. Neil olhou para trás, mas o lugar estava escuro quando che-
gou. Ele era o único ali. Cruzou o vestiário até seu armário e abriu a fecha-
dura. Estava limpo e vazio.
Eram 7h30, o que significava que Wymack já estava acordado havia algu-
mas horas. Neil se sentou de pernas abertas em um dos bancos e ligou para
o treinador, que atendeu no segundo toque.
— Não sei o que me surpreende mais, que seu celular esteja ligado ou que
você esteja acordado tão cedo num sábado.
— Treinador, o vestiário está limpo.
— Sim, eu sei. Abby e eu nos encarregamos disso ontem à noite, quando
vocês foram embora.
— Desculpa. Eu ia limpar hoje de manhã.
— Eu falei que não precisava se preocupar com isso, não falei?
— Você me falou para não me preocupar com isso ontem — retrucou Neil.
— Tanto faz, você pode compensar depois. Aliás, o que vai fazer agora que
arruinei seus planos pra hoje de manhã? Nada? — Ele esperou pela confir-
mação de Neil e acrescentou: — Se quiser, pode me ajudar a organizar a pa-
pelada. Vou levar tudo e compro o café da manhã no caminho. Ou você já
comeu?
— Ainda não. Espero aqui.
Wymack desligou. Neil olhou novamente para o armário aberto, então foi
para o lounge esperar. Caminhou próximo às paredes, analisando as fotos
que Dan havia colocado ao longo dos anos. A coleção havia crescido e inclu-
ía dezenas de fotos daquele ano, apesar de ele não saber quando haviam sido
colocadas ali. A maioria era dos veteranos, já que Dan raramente tinha a
oportunidade de confraternizar com os colegas mais novos fora de quadra,
mas havia diversas fotos do Halloween e algumas aleatórias dos banquetes
de novembro e dezembro.
Bem no canto, havia uma foto que Neil não reconhecia: era dele e de An-
drew sozinhos. Estavam agasalhados, com os casacos combinando, e olha-
vam um para o outro, quase grudados. Neil levou alguns instantes para se
lembrar de onde haviam sido tiradas; as pessoas ao fundo não pareciam tor-
cedores. Por fim, conseguiu reconhecer graças às janelas. Dan tirara aquela
foto no Aeroporto Regional, a caminho do jogo contra o Texas. Neil nem ti-
nha percebido que ela os observava.
Neil fora capturado em algumas das fotos em grupo, mas aquela era a úni-
ca em que figurava com sua verdadeira aparência. Dan conseguiu até pegá-
lo de perfil, de modo a não mostrar a atadura que cobria a tatuagem. Era
uma foto de Nathaniel Wesninski; tinha sido naquele momento que Neil
dissera seu nome verdadeiro para Andrew. Ele estendeu o braço para rasgar
a fotografia, mas parou assim que a segurou pela ponta.
Viera à Palmetto State para jogar, mas também porque Kevin era prova de
que havia uma pessoa de verdade por trás de todas as suas mentiras. Em
maio, tanto Nathaniel quanto Neil estariam mortos, mas em junho aquela
foto ainda estaria ali. Ele seria uma pequena parte da Toca das Raposas em
todos os anos que viriam a seguir. Aquilo era reconfortante, ou deveria ser.
Neil achava que o conforto não deveria ser tão parecido com um aperto
nauseante no estômago.
Para a sorte dele, Wymack apareceu nesse instante. Tinha uma sacola de
papel pardo pendurada em uma das mãos e uma caixa cheia de papéis nos
braços. Neil fechou a porta para que ele pudesse colocar as coisas no chão. O
treinador olhou ao redor da sala por um momento, então colocou a televisão
no chão e empurrou o móvel para mais perto dos sofás, como uma mesa im-
provisada. Neil observou-o organizar as pastas em quatro pilhas. Quando
Wymack jogou a caixa vazia de lado, Neil abriu a pasta mais próxima para
dar uma olhada. Era um formulário de inscrição com uma foto de alguém
desconhecido.
— Possíveis reforços. Precisamos de no mínimo seis — explicou o treina-
dor.
— Seis — repetiu Neil ao se ajoelhar ao lado de Wymack. — Você vai do-
brar o número de jogadores de linha?
— Não por escolha minha — respondeu Wymack. Ele tirou os sanduíches
e o suco da sacola marrom e dividiu-os com Neil. — Foi uma das condições
para continuarmos no campeonato quando Andrew foi internado. O CRE
não gostou do fato de quase sermos eliminados devido ao tamanho da equi-
pe e não querem continuar contornando as regras por nossa causa. Prometi
que isso nunca mais ia acontecer. O que significa ter mais reservas pro ano
que vem.
Wymack verificou cada pilha de papéis, depois empurrou uma na direção
de Neil.
— As meninas já vão estar todas no quinto ano, então precisamos de pelo
menos três pessoas treinando pra entrar no lugar delas. No total, queremos
dois atacantes, dois meias, um defensor e um goleiro. Encontre pessoas com
potencial e depois começamos a limitar as escolhas.
— Não seria melhor o Kevin fazer isso? — perguntou Neil.
— Você faz a primeira seleção, e depois ele olha. Eu tomo a decisão final.
Neil olhou para a pilha de pastas à sua frente. Por fim, abriu a primeira e
começou a ler páginas de estatísticas: condicionamento físico, média de fi-
nalizações, dados e assim por diante. Não tinha certeza do que estava procu-
rando, mas quando chegou à ficha do terceiro atacante, teve uma noção me-
lhor. Era um atleta bom e consistente, mas o quarto parecia mais interessan-
te porque sua melhora de desempenho era mensurável. Havia CDs colados
na contracapa de cada pasta, provavelmente contendo vídeos dos momentos
de mais destaque dos jogadores.
Ele dividiu os arquivos em duas pilhas, os mais promissores e aqueles de
que ainda não tinha certeza, e revisou ambas quando terminou. Pensou que
a segunda rodada seria mais rápida, uma vez que já tinha visto as informa-
ções de todos, mas começou a repensar tudo que lia. Era provável que Wy-
mack já tivesse terminado de escolher os jogadores de todas as outras posi-
ções quando Neil enfim se decidisse, mas ao olhar na direção do treinador,
viu que ele não estava tão adiantado assim. Seus olhos mal se moviam. Não
estava lendo as estatísticas; analisava a foto do jogador como se ali estivesse
tudo que precisava saber.
Neil olhou de novo para a pasta aberta à sua frente e tentou ver o que Wy-
mack procurava. Talvez o treinador tivesse a capacidade de enxergar a dor
do mesmo jeito que Neil enxergava a raiva; onde ele via uma garota com
uma calma inabalável, Wymack enxergava um olhar vazio e ombros baixos
em sinal de derrota. Ele se perguntou se o treinador enxergara algo assim
em sua foto do ensino médio ou se apenas confiara quando Hernandez dis-
sera que havia algo de errado. Gostava de pensar que conseguia manter a ex-
pressão neutra, mas Wymack raramente se deixava enganar por isso.
— Algum problema? — perguntou Wymack.
— Não — Neil mentiu, e voltou para a tarefa que tinha em mãos.
Demorou quase metade da manhã para repassar todos os possíveis atacan-
tes, mas no final Neil tinha uma pilha de possibilidades para Kevin e Wy-
mack analisarem. O treinador a colocou no chão, próximo ao joelho, e guar-
dou os documentos daqueles que foram rejeitados de volta na caixa.
— Mais alguma coisa? — perguntou Neil.
— Liberado pra ir embora. Precisa de uma carona?
— Estou bem.
— Uhum — respondeu o treinador sem erguer o olhar. Neil deixou de lado
e recolheu o lixo do café da manhã. Estava quase chegando no cesto quando
Wymack enfim falou: — Aliás, ano que vem vou nomear você vice-capitão.
Neil sentiu o coração subir até a garganta. Ele se virou para olhar para Wy-
mack, mas precisou tentar duas vezes antes de conseguir falar.
— Você vai o quê?
— Dan vai ter que sair da equipe em breve e precisa de um substituto.
— Mas não eu. Você devia convidar o Matt ou o Kevin.
— Jogadores talentosos, com mais experiência, mas que não têm o que a
equipe precisa. Você sabe por que coloquei a Dan como capitã? — Wymack
olhou para Neil e esperou até que o rapaz balançasse a cabeça. — Assim que
a vi, soube que ela conseguiria liderar a equipe. Não importava o que os co-
legas pensavam dela; não importava o que a imprensa dizia a seu respeito.
Ela se recusava a ser um fracasso, então se recusava a desistir da equipe. É
disso que preciso pra que as Raposas decolem.
“Você é o único aqui que pode ficar no lugar dela, não percebeu isso? Eles
estão todos se unindo ao seu redor. Isso é muito especial. Você é especial.”
— Você nem sabe quem eu sou.
— O caralho que não sei — retrucou Wymack. — Você é Neil Josten, re-
crutado de Millport, Arizona, aos dezenove anos. Nascido no dia 31 de mar-
ço, com 1,60 metro de altura, destro e usa raquete tamanho 3. Atacante titu-
lar das minhas Raposas e atacante calouro com melhor aprimoramento de
desempenho da primeira divisão de Exy.
“Não”, acrescentou Wymack, e ergueu a voz quando Neil fez menção de in-
terrompê-lo. “Me olha nos olhos e diz se ainda acha que me importo com
quem você costumava ser. Hm?” Wymack apontou um dedo para o próprio
rosto, depois o bateu na mesa. “Me importo com quem você é agora e quem
vai ser daqui em diante. Não estou pedindo que esqueça seu passado, mas
que supere o que já passou.”
— Não posso ser capitão. Não vou ser — respondeu Neil.
— Isso não é uma democracia. O que você vai fazer ou deixar de fazer não
está aberto à votação. Eu crio as regras, e você segue. E vai ter que aceitar is-
so. Precisa tanto disso quanto eles precisam de você. Me dá um bom motivo
pra você tentar recusar a oferta.
— Eu… — disse Neil, mas não podia completar com “vou morrer”. Não
podia contar para Wymack que não viveria por tempo o bastante para assu-
mir a posição — tenho que ir embora.
Temeu que o treinador fosse argumentar, mas tudo o que Wymack disse
foi:
— Até segunda.
Neil achou que seria mais fácil respirar quando saísse do estádio, mas ainda
sentia um aperto no peito ao cambalear calçada afora. Encarou o estaciona-
mento vazio, sentindo a pulsação nas têmporas. O estômago se revirava só
de pensar em voltar para a Torre das Raposas e encontrar os colegas de equi-
pe, mas não tinha outro lugar para ir. Deveria correr até à exaustão, até que
não conseguisse mais pensar ou sentir, mas seus pés permaneciam fincados
no chão. Talvez soubesse que, se começasse a correr, não pararia mais.
Sentou no meio-fio para ganhar tempo, mas seus pensamentos continua-
vam em um frenesi de ansiedade. Neil sentiu que estava a meio segundo de
enlouquecer, mas então Andrew disse seu nome e o martírio cessou no mes-
mo instante. Só então notou que estava com a mão na orelha e os dedos
agarravam o celular. Não se lembrava de tê-lo tirado do bolso, tampouco de
ter tomado a decisão de discar aquele número. Olhou para a tela e apertou
um botão, pensando que talvez estivesse imaginando coisas, mas o nome de
Andrew estava no display e o cronômetro marcava quase um minuto de li-
gação.
Neil levou o aparelho de volta ao ouvido, mas não conseguia encontrar as
palavras para descrever o sentimento miserável que o consumia. Em três
meses os campeonatos acabariam. Em quatro meses, estaria morto. Em cin-
co meses, as Raposas estariam de volta para os treinos de verão, com seis
rostos novos. Neil podia contar sua vida em uma das mãos. Do outro lado
estava o futuro que não podia ter: vice-capitão, capitão, seleção. Neil não ti-
nha o direito de lamentar essas chances perdidas. Ganhara mais do que me-
recia naquele ano; seria egoísmo pedir mais.
Deveria ser grato pelo que tinha, e mais feliz ainda por sua morte significar
algo. Arrastaria o pai e os Moriyama com ele quando fosse embora, e ne-
nhum deles se recuperaria das coisas que Neil revelaria. A justiça seria feita,
o que parecia impensável, e ele poderia se vingar pela morte da mãe. Pensou
que já tivesse aceitado isso, mas sentia a dor familiar em seu peito de novo,
ainda que ela não tivesse o direito de estar ali. Neil sentia-se como se estives-
se se afogando.
Por fim conseguiu recuperar a voz, mas o melhor que tinha a dizer foi:
— Vem me buscar no estádio.
Andrew não respondeu, mas o silêncio assumiu um novo tom. Neil voltou
a olhar para a tela e viu o cronômetro piscando em setenta e dois segundos.
Andrew desligara na cara dele. Neil guardou o celular e esperou.
A Torre das Raposas ficava a poucos minutos da Toca das Raposas, mas
Andrew levou quase quinze minutos para chegar ao estacionamento. Parou
o carro a alguns centímetros de distância do pé de Neil e não se deu ao tra-
balho de desligar o motor. Kevin estava no banco do carona, olhando para
Neil pelo para-brisas com uma expressão de julgamento silencioso. Ao ver
que Neil não se moveria, Andrew saiu do carro e parou na frente dele.
Neil olhou para Andrew, analisando sua expressão entediada e esperando
pelas perguntas que sabia que não seriam feitas. Tamanha apatia deveria
mexer com seus nervos já à flor da pele, mas, de alguma forma, aquilo o
tranquilizou. A falta de interesse que Andrew demonstrava pelo bem-estar
psicológico de Neil fora o que chamara a atenção dele desde o início; a per-
cepção de que Andrew jamais recuaria diante de qualquer veneno que o es-
tivesse devorando vivo.
— Não quero estar aqui hoje — disse Neil.
— A gente estava quase na interestadual — respondeu Andrew.
Foi o convite mais indiferente que Neil já havia recebido, mas ele pouco se
importou. Andrew voltara para buscá-lo sem hesitar. Isso era motivo mais
do que suficiente para se levantar e ir com ele. Neil entrou no carro, sentan-
do-se atrás do banco de passageiro, e olhou pela janela. Kevin olhou para
ele, mas não disse nada, e Andrew saiu com o carro antes mesmo de fechar a
porta.
Não perguntaram o que acontecera, então Neil não perguntou por que es-
tavam pegando a I-85 rumo a Atlanta. Foram as duas horas mais longas da
vida de Neil, mas o silêncio e a ilusão de escapar da Universidade de Palmet-
to State o ajudaram a colocar a cabeça no lugar. Quando chegaram a Alpha-
retta, ele já estava em um torpor confortável. A falta de sono da noite anteri-
or começava a dominá-lo, e ele cochilou sentado. Acordou com o celular de
Andrew tocando, mas este o atendeu apenas para dizer “Não”. Alguns minu-
tos depois, pararam em uma concessionária. Kevin saiu assim que Andrew
estacionou. Andrew desligou o motor e jogou as chaves em um banco de ca-
rona vazio.
— Cai fora ou fica aqui. São suas únicas opções — disse ele.
Fugir não era uma opção, era essa a mensagem. Andrew sabia por que Neil
havia ligado.
— Vou ficar.
Andrew saiu e bateu a porta. Neil o observou desaparecer pela porta da
frente em busca de um representante de vendas, depois fechou os olhos e
adormeceu de novo. Quando acordou, havia uma fera preta metálica estaci-
onada ao lado do carro alugado. O conhecimento que tinha sobre carros não
aumentara ao longo do ano, mas cada curva daquele monstro gritava o
quanto era caro. Neil presumiu que Andrew havia feito com aquela compra
o que fizera com a última: procurou pelo carro que acabaria com todo o di-
nheiro que tinha o mais rápido possível. Era uma peculiaridade desorienta-
dora para um garoto que afirmava não ter apego algum a bens materiais.
Andrew abriu a porta de trás e olhou para Neil.
— Kevin?
Neil esfregou os olhos para despertar e tirou o cinto.
— Deixa ele ir com você. Não tenho nada pra falar com ele.
Andrew fechou a porta de novo e Neil foi para o banco do motorista. An-
drew saiu primeiro do estacionamento e Neil o seguiu até a interestadual.
Pararam em um posto de gasolina com um fast-food ao lado. Neil não esta-
va com fome, mas escolheu o maior copo de café disponível enquanto os
outros comiam. Sentou-se na mesa ao lado para tomar sua bebida e encarar
o nada. Kevin olhava para ele algumas vezes enquanto comiam, mas não
disse nada, provavelmente atribuindo seu humor estranho ao evento desa-
gradável do dia anterior. Andrew encarava o carro novo através das janelas
do restaurante, que iam do chão até o teto.
O trajeto de volta pareceu mais curto do que a viagem para a Geórgia, ape-
sar de terem passado por Palmetto State para deixar o carro alugado em
Greenville. O vendedor analisou o veículo em busca de possíveis avarias, li-
gou o motor para verificar o tanque de gasolina e pediu que Andrew assi-
nasse alguns formulários. Então não havia nada a fazer exceto voltar para o
campus. Neil achou que já estava longe tempo o bastante para ficar bem,
mas assim que viu a Torre das Raposas pela janela, sentiu-se cansado.
Subiram as escadas, e Neil não parou no terceiro andar. Passos suaves indi-
cavam que Andrew estava logo atrás dele, mas a porta do corredor se fechou
quando Kevin se dirigiu para seu quarto. Andrew o alcançou quando Neil
parou para forçar a porta de acesso ao telhado. Ele pegou dois cigarros, que
acendeu antes mesmo de saírem. Neil pegou o dele e andou até a extremida-
de. Sentou-se o mais perto que deu da beirada, com a esperança de que
aquele choque de medo o distraísse de seus pensamentos terríveis, e olhou
para o campus aberto.
Andrew se sentou ao lado dele e ergueu algo. Neil olhou, mas levou um mi-
nuto até entender o que Andrew segurava. A concessionária havia dado a ele
duas chaves para o carro novo, e Andrew estava oferecendo a segunda para
Neil. Quando Neil demorou para pegá-la, Andrew a deixou cair no concre-
to.
— Não tem quem aguente tanto problema. É só uma chave — disse An-
drew.
— Você é filho adotivo. Sabe que não é assim — retrucou Neil. Não pegou
a chave, mas apoiou dois dedos nela, absorvendo o formato e sensação de
seu novo presente. — Sempre tive dinheiro para morar em bons imóveis,
mas todos os melhores lugares fazem perguntas demais. Verificam seus an-
tecedentes, créditos e referências, coisas que não posso fornecer sem deixar
um rastro. Em Millport, eu invadia casas. Antes disso, ficava em hotéis cain-
do aos pedaços e que cobravam por semana, arrombava carros ou encontra-
va lugares que aceitavam dinheiro sem muitas perguntas.
“Estava sempre pronto para fugir”, acrescentou Neil. Virou a palma da mão
para cima e desenhou uma chave com a ponta do dedo. Ficara mexendo
tantas vezes com a chave da casa de Andrew que se lembrava de cada ranhu-
ra de cor. “Sempre pronto para ‘mentir’, para me ‘esconder’, para ‘desapare-
cer’. Nunca pertenci a lugar nenhum e nunca tive o direito de chamar nada
de meu. Mas o treinador me deu as chaves da quadra, e você me falou para
ficar. Você me deu uma chave e chamou de lar.” Neil fechou a mão, imagi-
nando a sensação do metal em sua palma, e olhou para o rosto de Andrew.
“Não tenho uma casa desde que meus pais morreram.”
Andrew colocou um dedo na bochecha de Neil e o forçou a virar a cabeça.
— Não me olha desse jeito. Eu não sou sua resposta, e você com certeza
não é a porra da minha resposta.
— Não estou atrás de respostas. Eu só quero…
Neil gesticulou sem saber o que dizer, sem conseguir terminar o apelo. Não
sabia o que queria; não sabia do que precisava. As últimas vinte e quatro ho-
ras o haviam colocado de cabeça para baixo, e ele ainda não conseguira vol-
tar ao normal. Não sabia como fazer aquela dor ir embora ou como silenciar
a voz que sussurrava “injusto” em seus ouvidos.
— Estou cansado de ser um nada — disse Neil.
Ele já tinha visto aquela expressão no rosto de Andrew uma vez, quando fi-
zeram uma trégua na sala de estar de Wymack no verão passado. Neil conta-
ra meias verdades para que Andrew aceitasse a sua presença, mas não foram
as descrições vagas dos crimes e mortes de seus pais que tocaram Andrew.
Era seu ciúme profundo de Kevin, sua solidão e desespero. Depois de tudo
que haviam passado nos últimos meses, Neil finalmente sabia o que aquele
olhar significava. O olhar sombrio de Andrew não era de repreensão; era de
quem o compreendia perfeitamente. Andrew chegara àquele mesmo ponto
anos antes e quebrara. Neil estava pendurado por um fio desgastado, agar-
rando-se a qualquer coisa que pudesse para se manter na superfície.
— Você é uma Raposa. Sempre vai ser um nada. — Andrew apagou o pró-
prio cigarro. — Eu odeio você.
— Nove por cento das vezes você não odeia.
— Nove por cento das vezes não sinto vontade de matar você. Mas sempre
odeio você.
— A cada vez que você diz isso, acredito um pouco menos.
— Ninguém perguntou.
Então Andrew segurou o rosto de Neil nas mãos e se inclinou.
Sem contar o assédio de Nicky quando fora drogado, fazia quatro anos que
Neil não beijava alguém. A última pessoa fora uma garota franco-canadense
magricela que o segurou com a ponta dos dedos e o beijou como se tivesse
medo de borrar o batom brilhante e pegajoso. Neil não conseguia mais se
lembrar do nome nem do rosto dela. Lembrava-se apenas de como o encon-
tro ilícito tinha sido insatisfatório e da fúria de sua mãe ao encontrá-los.
Aquele selinho desajeitado não valia o castigo que viera a seguir.
Dessa vez era completamente diferente.
Andrew o beijava como se brigassem, como se suas vidas estivessem em jo-
go, como se o mundo dele acabasse e começasse na boca de Neil. A pulsação
de Neil bateu mais devagar até quase parar, assim que os lábios de Andrew
pressionaram com força os dele e, sem pensar, ele estendeu as mãos. Moveu-
as até o queixo de Andrew e se lembrou de que ele não gostava de ser toca-
do, então agarrou a manga do casaco dele e enfiou os dedos na lã grossa.
O toque foi um gatilho. Andrew se afastou um pouco para dizer:
— Me manda parar.
A boca de Neil estava inchada e sua pele, arrepiada. Ele tinha perdido o fô-
lego, como se tivesse acabado de correr uma meia-maratona. Sentia-se forte,
como se pudesse correr outras cinco. O pânico ameaçava desfazer seu estô-
mago em pedaços. O bom senso dizia para recuar antes que ambos fizessem
algo de que se arrependeriam. Mas Renee havia dito que Andrew não se ar-
rependia de nada, e Neil não viveria o suficiente para que isso importasse.
Não sabia que lado escolher, até Andrew tirar as mãos de seu casaco.
— Deixa. Não vou fazer isso com você agora — disse Andrew.
Ele praticamente empurrou o braço de Neil para longe e recuou. Pegou a
bituca de cigarro amassada, decidiu que não havia como recuperá-la e tirou
o maço do bolso de novo. Neil observou-o até que o acendesse, percebendo
um novo tipo de tensão nos ombros de Andrew e a violência em seus movi-
mentos. Pensou que deveria dizer algo, mas não sabia por onde começar. O
beijo de Andrew e a forma como o afastara haviam sido igualmente pertur-
badores.
Andrew deu uma única tragada, então esmagou o segundo cigarro ao lado
do primeiro. Acendeu o terceiro mesmo assim, mas Neil estendeu a mão e o
pegou. Talvez tenha sido um bom sinal que Andrew não tenha reagido. Neil
colocou o cigarro ao lado do seu e olhou para Andrew, que jogou o maço de
lado e apoiou o joelho no peito.
Neil deveria deixar para lá, mas precisava entender.
— Por que não?
— Porque você é burro demais pra me mandar parar.
— E você não quer que eu diga para continuar?
— Isso não é continuar. Isso é um colapso nervoso. Eu sei a diferença, ain-
da que você não saiba. — Andrew passou o polegar pelo lábio inferior como
se pudesse apagar o peso da boca de Neil e olhou para o horizonte. — Não
vou ser como eles. Não vou permitir que você me deixe fazer o que eu que-
ro.
Neil abriu a boca, fechou-a e tentou de novo.
— Da próxima vez que disserem que você é desprezível, talvez eu tenha
que brigar com eles.
— Noventa e dois por cento, chegando em noventa e três — anunciou An-
drew.
Não era engraçado — nada ali era engraçado —, mas aquela resposta foi
tão irritante e tão típica de Andrew que Neil não conseguiu conter um sorri-
so. Forçou-o a desaparecer antes que Andrew percebesse e olhou para o
campus de novo.
Pela primeira vez no dia, talvez pela primeira vez naquela semana difícil,
sentia que podia respirar sem aquele aperto no peito. Conforme a tensão se
dissipava, a exaustão voltava; dessa vez, no entanto, o cansaço era verdadei-
ro. Não dormira na noite anterior e só conseguira cochilar por uma hora no
carro. Dormir naquele momento seria desperdiçar o resto do fim de semana,
mas Neil não se importava. Pegou a chave de Andrew e se levantou.
— Ei — chamou ele, mas Andrew não olhou. — Obrigado.
— Cai fora antes que eu empurre você lá embaixo — ameaçou Andrew.
— Pode empurrar. Eu puxo você junto — retrucou ele, e então deixou An-
drew sozinho com os próprios pensamentos.
Por algum milagre, não havia ninguém em seu quarto. Ainda assim, Neil
fechou a porta antes de vestir o moletom. Programou o despertador para
acordá-lo na hora do jantar, mas adiou quando seus pensamentos o manti-
veram acordado por mais uma hora. Tirou a mão de baixo do cobertor e
abriu o punho para inspecionar sua mais nova posse. As ranhuras da chave
haviam deixado marcas na pele de seu polegar. Neil a colocou em seu cha-
veiro, próximo à chave do antigo carro de Andrew, e observou enquanto as
duas balançavam, sem de fato focar a visão.
Neil abrira mão de sonhar pouco depois de a mãe minar seu interesse pela
intimidade. Ainda sentia vontades, mas dedicava tanta atenção a elas quanto
à fome ou sede. Talvez se recusar a querer algo a mais fosse um mecanismo
de defesa. Se não podia ter, não fazia sentido ressentir a sua falta. Ao longo
dos anos, a paranoia o ajudara a reforçar essa mentalidade, até que se man-
ter distante das pessoas fosse a coisa mais lógica do mundo.
Fazer amizade com as Raposas, ainda que arriscado, era inevitável. Beijar
uma delas era impensável e ia contra tudo o que ele acreditava. Neil não ti-
vera a intenção de ultrapassar esse limite nem de incitar Andrew a fazê-lo.
Havia grandes chances de que não tivesse que se preocupar com isso, já que
Andrew não poupava palavras ao dizer que não gostava dele e ao delimitar
seus graves problemas de limites. Andrew não era como Nicky, que buscaria
influenciá-lo, discutiria e protestaria se Neil dissesse que aquilo não era uma
boa ideia. Caso Neil o rejeitasse categoricamente, Andrew nunca pergunta-
ria o porquê nem traria o assunto à tona de novo. Seria como se nada tivesse
acontecido, e Neil poderia viver os últimos meses de sua vida em paz.
Mas aquilo seria paz ou covardia, sobrevivência ou fuga? Neil poderia re-
petir para si mesmo, durante o dia inteiro, que era o mais inteligente a ser
feito, mas se de fato se importasse em fazer escolhas inteligentes, não teria
ido parar ali, antes de mais nada. Teria ido embora quando descobriu que os
Moriyama eram criminosos, quando Riko o chamou pelo nome verdadeiro,
ou quando ele o desafiou a trocar sua segurança pela de Andrew. Neil fizera
uma escolha estúpida atrás da outra durante todo o ano, que se tornara o
melhor de sua vida.
Esse fato não era um motivo bom o bastante para aceitar o que ocorrera,
mas Neil também não estava disposto a rejeitar. Não tinha muito tempo,
mas levaria mais do que esses momentos fatigantes para descobrir. Sabia que
não estava no estado de espírito adequado para tomar uma decisão. Enfiou
as chaves debaixo do travesseiro e rolou para o outro lado como se aquilo
pudesse mudar o que tinha acabado de acontecer. Mandou a si mesmo não
pensar naquilo, mas sua boca ainda se lembrava do toque da boca de An-
drew, o que o abalou profundamente.
Tentou se distrair do único jeito que sabia, contando até onde conseguia
em todos os idiomas que falava. Não se lembrava de ter adormecido nem
quanto tempo tinha dormido, mas acordou com o celular apitando. Havia
uma nova mensagem em sua caixa de entrada, de um número desconheci-
do: “48.” Neil a apagou e teria caído no sono de novo se não fosse pelo som
abafado da televisão na sala ao lado. Neil tentou reunir forças para falar com
os veteranos e percebeu que o esforço fora menor do que o que fizera de ma-
nhã. Com um suspiro silencioso, jogou os cobertores de lado, desligou o
despertador e desceu da beliche.
Dan estava sentada ao lado de Matt no sofá. Assim que viu Neil perto da
porta, ela pegou o controle remoto e desligou a televisão.
— A gente acordou você? — perguntou, e ainda que Neil tenha balançado
a cabeça, disse: — Desculpa.
— Eu não devia ter tirado um cochilo tão tarde no dia.
Ele foi pegar um copo de água na cozinha. Esperava que eles voltassem ao
que quer que estivessem assistindo antes da interrupção, mas quando retor-
nou à sala, a televisão ainda estava desligada. Dan e Matt se olhavam em
uma conversa silenciosa. Neil não saberia dizer qual dos dois havia ganhado,
mas o colega balançou a cabeça e olhou para Neil do outro lado da sala.
— A gente queria fazer uma festa de aniversário pra você. Parece errado fa-
zer aniversário e não comemorar. Mas Renee achou que não seria boa ideia,
e até ligou para o Andrew pra pedir reforços. Ele concordou com ela — disse
Matt.
Neil se lembrou da ligação que o acordou quando entraram na Alpharetta.
Andrew só ouviu por um momento antes de dizer “não”. Neil se retratou em
silêncio por todas as vezes em que suspeitara de Renee. Era provável que a
máscara de serenidade que vestia provocasse desconfiança nele para sempre,
mas ela entendia as pequenas coisas quando era necessário.
— Obrigado, mas eles estão certos. Prefiro fingir que não aconteceu.
— E se a gente deixar a festa de lado e só comprar presentes? — perguntou
Dan, e suspirou quando Neil balançou a cabeça. — Tudo bem, mas se dei-
xarmos isso pra lá, vamos causar o caos no dia 31 de março. Fechado?
— Defina caos — pediu Neil.
Dan sorriu como se ele não tivesse dito nada.
— Fechado?
— Fechado — respondeu Neil.
— Que bom — concluiu Dan —, agora vem aqui.
Neil se juntou aos colegas no sofá, e eles voltaram a ligar o programa. Neil
poderia ter esquecido a mensagem que o acordara se não tivesse recebido
um “47” de um novo número na noite seguinte. Olhou consternado para o
celular ao perceber que se tratava de uma contagem regressiva. Colocou os
trabalhos da faculdade de lado e foi até o calendário pendurado na geladeira
da cozinha. Contou os dias com os dedos, folheando as páginas até encon-
trar março. Por um momento, pensou que chegaria ao aniversário de Neil
Josten, mas a contagem terminava em uma sexta-feira, 9 de março. Era um
dia estranho para que ela acabasse. O último dia antes do recesso de prima-
vera da Universidade de Palmetto State. Haveria uma partida naquele dia,
mas não era nenhuma das eliminatórias do campeonato.
Neil verificou o celular de novo, perguntando-se se deveria responder. Por
fim, decidiu deletar a mensagem e voltar a conjugar verbos em espanhol.
As outras Raposas só descobriram que Andrew substituíra seu carro destru-
ído na segunda-feira de manhã. Nicky seguia Neil pelo estacionamento, ta-
garelando sobre um projeto que deveria ter terminado naquele dia, mas que
ainda estava pela metade. Quando Andrew parou de andar, Nicky também
parou, mas como não avistou o carro alugado, recomeçou a andar. Parou as-
sim que Andrew abriu a porta do motorista. Nicky olhou, olhou de novo, e
quase caiu quando pulou para trás.
— Fala sério!
Seu grito chamou a atenção dos outros e, como era de se esperar, Matt foi o
próximo a reagir. Ele passou por Neil para inspecionar o carro.
— O que você tá fazendo com um Maserati?
— Dirigindo — respondeu Andrew, como se fosse óbvio, e sentou no ban-
co do motorista.
Matt estendeu as duas mãos na direção do capô, mas não o tocou, como se
pensasse que suas impressões digitais fossem arruinar o exterior perfeito.
Sua cara de choque fez com que Neil olhasse para Andrew, que retribuiu o
olhar através do para-brisas, mas não o sustentou por muito tempo. Esten-
deu a mão para a porta para fechá-la, mas Matt deu a volta e o impediu, co-
locando a mão no caminho. Ele se inclinou para espiar o interior do veículo,
com os olhos arregalados em êxtase. Nicky foi menos discreto e colocou as
mãos por todo o carro, dando a volta boquiaberto.
— Mas quando…? E como…? — perguntou Matt.
Allison foi menos diplomática.
— Ele roubou esse carro?
Dan sibilou para que ela falasse baixo, mas Allison deu de ombros.
Matt acenou para Andrew.
— Liga aí! Eu quero ouvir.
Andrew girou a chave na ignição, e o carro ganhou vida com um rugido si-
lencioso. Matt ergueu as mãos e rodopiou como se fosse o maestro orques-
trando a sinfonia. Andrew fechou a porta, então Matt se virou para Dan,
cuspindo dados e estatísticas que Neil jamais entenderia. Neil olhou para
Aaron para captar sua reação. Ele parecia dividido, como se quisesse se im-
pressionar com o carro tão imponente, mas não conseguisse deixar o ressen-
timento de lado para ficar empolgado.
Como crescera tendo dinheiro, Kevin raramente se impressionava com a
riqueza, e estivera presente quando Andrew comprara o carro. Sem paciên-
cia para aturar as palhaçadas dos companheiros de equipe, olhou para todos
irritado.
— A gente vai se atrasar.
— Que se dane! — retrucou Nicky, enfiando-se no banco de trás. Passara a
se sentar no meio para manter Aaron e Neil longe um do outro. Não perdeu
tempo colocando o cinto e se inclinou entre os bancos da frente para olhar o
painel. Quando Neil e Aaron entraram, ele era uma sinfonia de “Uau” e
“Nossa”. Andrew aguentou aquilo por alguns segundos e então enfiou a mão
no rosto do primo e o empurrou de volta. Nicky estava animado demais pa-
ra se aborrecer. Em vez de reclamar, perguntou: — Mas sério, Andrew. Onde
você conseguiu isso?
— Geórgia — respondeu Andrew.
Nicky suspirou, mas não perguntou mais nada.
Andrew e Aaron ainda não estavam se falando, e Aaron e Neil tentavam se
manter longe um do outro sempre que possível, mas as demais Raposas pro-
curavam compensar ao máximo. A pegadinha cruel de Riko na sexta-feira
anterior servira para ressaltar um instinto de proteção bem-intencionado,
ainda que desnecessário, nos veteranos. Até Kevin se esforçava para ser mais
simpático, talvez por ter visto o quanto Neil ficara abalado no sábado.
Neil poderia ter dito que estava bem, mas estavam com mais sintonia den-
tro de quadra do que tiveram em uma semana, e ele não queria arriscar per-
der aquilo. As Raposas tinham mais um jogo até passar para a primeira ro-
dada. As vitórias consecutivas significavam que tinham garantido seu lugar
nas eliminatórias, mas não estavam dispostos a pegar leve naquela semana.
Neil tentou preencher todo o tempo livre que tinha com Exy. Levava as
táticas e escalações da SUA para a aula, escondidas nos livros didáticos, e se
encontrava com Kevin no refeitório para almoçar e discutir as jogadas. Ape-
sar de todos os esforços que fez para focar no jogo da sexta-feira, seus pen-
samentos continuavam se perdendo sem aviso prévio. Sempre que Andrew
passava, o olhar de Neil o seguia. Cada vez que tirava as chaves do bolso e
via a que fora colocada recentemente, se lembrava do beijo de Andrew.
Olhava para Matt e Nicky para entender se os enxergava de outro modo,
mas nada havia mudado. Neil não sabia o que isso queria dizer, mas sabia
que aquele não era o momento de descobrir. Deveria esperar até a semana
seguinte, quando as Raposas tinham uma semana livre até as eliminatórias.
A distração perfeita se apresentou na quarta-feira, quando Kengo Moriya-
ma desmaiou em uma reunião do conselho e foi levado às pressas para o
hospital em uma ambulância. Wymack sempre deixava o canal de notícias
ligado como barulho de fundo enquanto trabalhava no estádio, então envi-
ou uma mensagem avisando o time assim que soube. Neil tinha quase certe-
za de que antes mesmo de levarem Kengo para o hospital, havia microfones
enfiados na cara de Riko e, se não o odiasse tanto, ficaria enojado com o en-
tusiasmo impiedoso dos repórteres.
Encontrou trechos da entrevista on-line ao pesquisar nos computadores da
biblioteca, entre uma aula e outra. Riko aguentou grande parte das pergun-
tas intrometidas com boa vontade e calma, mas mostrou sua verdadeira face
quando perguntaram se ele estava a caminho do hospital. Os repórteres sa-
biam muito bem que Kengo e Riko haviam se distanciado; mas não entendi-
am a seriedade da separação. Certa vez, Kevin contara às Raposas que Riko
nunca conhecera o pai nem o irmão. A família Moriyama não tinha tempo a
perder com filhos que não fossem os primogênitos, então enviaram Riko pa-
ra Tetsuji o mais rápido possível, logo após seu nascimento.
O olhar que Riko lançou para a repórter deveria ter derretido o microfone
que a mulher segurava.
— Você sabe muito bem que temos um jogo amanhã. Meu lugar é aqui,
com a minha equipe. Se os médicos forem dignos dos diplomas que têm,
vão fazê-lo se recuperar, independentemente de eu estar lá ou não.
Neil pegou o celular e mandou uma mensagem para Kevin.
Você acha que é sério?
É melhor que não seja
Eles não tinham jogo na sexta-feira, mas o CRE por fim divulgou a progra-
mação da semana seguinte. Seis times da chave par avançavam para as eli-
minatórias, em comparação com oito da chave ímpar. As Raposas estavam
escaladas contra os Pumas, da Universidade de Vermont, em casa. UT en-
frentaria Nevada, e Washington State enfrentaria Binghamton. Do lado ím-
par, os Três Grandes evitaram, por puro milagre, uns aos outros no sorteio.
Todos seguiriam para a terceira rodada, junto ao vencedor da partida de
Oregon contra Maryland. Haveria outro intervalo de uma semana entre o
mata-mata e a terceira rodada.
Um fim de semana livre significava passar a noite bebendo em Colúmbia,
mas a ousadia de Aaron na quarta-feira elevara a guerra fria entre os gêmeos
para outro patamar. De acordo com Nicky, Aaron ficava no dormitório ape-
nas para dormir ou trocar de roupa. Ele presumia que o primo passava o
resto de seu tempo livre com Katelyn. Neil esperava que o colega estivesse
errado. Por mais que Katelyn estivesse disposta a falar com Aaron depois de
ele ter tomado uma atitude, Andrew tinha uma promessa a cumprir e mais
motivos do que nunca para atacá-la. Se Katelyn fosse esperta, ficaria longe
por algumas semanas.
Não poderiam ir para Colúmbia sem Aaron, então Nicky arrastou Neil pa-
ra o quarto deles. Aaron não estava, mas Nicky e Andrew ficaram com os
pufes e formaram dupla para jogar um jogo de terror. Neil trouxera a mochi-
la, mas a música assustadora e os gritos que vinham da tela de vez em quan-
do eram desculpas perfeitas para não tentar se dedicar aos trabalhos da fa-
culdade. Ele olhou para Kevin, que tirou os fones de ouvido do computador
e apontou para o quarto. Kevin levou o laptop consigo, Neil agarrou um blo-
co de notas e fechou a porta do quarto ao entrar.
Kevin tinha conta em um site de streaming de Exy. Procurou pelo jogo
mais recente de Vermont e virou a tela para que ambos pudessem assistir.
Neil fazia anotações, Kevin absorvia o que podia enquanto via a partida e os
dois comparavam suas impressões depois. A equipe da UVM era desigual:
uma defesa intimidadora que servia de apoio para uma linha de ataque me-
díocre. Neil e Kevin teriam muito trabalho, mas ao menos a defesa proble-
mática da equipe não passaria por dificuldades.
Um jogo virou dois, e eles teriam assistido ao terceiro se Nicky não tivesse
ido procurá-los. Levou apenas um segundo para perceber o que estavam fa-
zendo e olhou consternado para os dois.
— Não acredito nisso. É sexta à noite e é assim que vocês se divertem? Dá
um tempo! Pensem em outras coisas de vez em quando, pode ser? Tipo sor-
vete. Achei que a gente ia para Colúmbia. Meu corpo está implorando por
sorvete o dia todo. Fui enganado e exijo compensação.
— Isso não é problema nosso — retrucou Kevin.
— Estou tornando um problema de vocês agora. Neil, você vem comigo até
a mercearia.
— Vai sozinho — disse Kevin.
— Excelente ideia — ironizou Nicky —, só que tem um probleminha: meu
nome não está mais no seguro e eu não tenho a chave do carro novo.
— Você o quê? — perguntou Neil, sobressaltado.
Nicky deu de ombros e não explicou.
— Anda, Neil. Os jogos ainda vão estar aí amanhã. Quem tá aqui agora sou
eu, com fome e cansado de ser ignorado, trancado no quarto.
Kevin abriu outro jogo e pausou para que desse tempo de carregar.
— Andrew pode levar você.
— Não estou falando com você. Estou falando com sua versão miniatura —
disse Nicky.
— Eu... — começou Neil, mas vacilou quando seu celular apitou.
Já imaginava o que iria encontrar, mas havia uma pequena chance de que
estivesse errado. Tirou o aparelho do bolso e o abriu para ler a contribuição
do dia para a contagem regressiva: “35.” Neil olhou para a tela em silêncio.
Se acreditasse em sinais, aquilo seria uma prova de que deveria ficar com
Kevin. Poderiam assistir a mais uma partida até a hora de dormir. Se fizesse
isso, era bem capaz de memorizar os nomes e números dos jogadores. Falta-
vam menos de três meses até as finais. As Raposas não podiam se dar ao lu-
xo de dar um passo em falso.
Neil olhou para cima, pronto para dizer a Nicky que não iria, mas Andrew
surgiu ao lado dele na porta. Neil olhou para ele e pensou no apelo preocu-
pado de Nicky no outono passado, o aviso de que um dia o Exy não seria su-
ficiente. Poderia ser um refúgio seguro para seus pensamentos, um motivo
para se levantar e a inspiração para lutar com mais intensidade. Por mais
que significasse muito para ele, não poderia ser tudo. Não poderia juntar os
pedaços quebrados dele como as Raposas faziam. Não largaria tudo para
buscá-lo no aeroporto ou para voltar por ele sem questionar e chamá-lo de
“amigo”. Depois da morte da mãe, Neil construíra sua vida em torno do Exy
porque precisava de algo que o motivasse a viver, mas já não estava mais so-
zinho.
Talvez se arrependesse disso na segunda-feira, quando seu desempenho
fosse mil vezes pior comparado ao de Kevin no treino, mas sabia que nunca
chegaria aos pés dele de todo modo. Neil desligou o celular e olhou para Ke-
vin.
— Que sabor você quer?
Kevin o encarou.
— Você não vai embora — disse ele, mais uma ordem do que uma pergun-
ta.
— Se a gente assistir a mais um, vai ficar tarde demais. Escolhe logo um sa-
bor.
Kevin não respondeu; talvez estivesse tão desapontado com Neil que não
levou a pergunta a sério. Neil não se importava mais com o que o colega
pensava dele. Como havia lembrado a ele na outra semana, a jornada de Ke-
vin não acabaria em maio. Poderia passar todas as noites assistindo a replays
e táticas de jogo sem parar porque tinha todo o tempo do mundo.
Neil enfiou o celular no bolso e se levantou.
— Manda uma mensagem para o Nicky quando decidir.
Nicky estava exultante por ter vencido o cabo de guerra. Neil deixou que a
autossatisfação triunfasse sobre a atitude de Kevin e foi com Nicky até o car-
ro. Ele passou quase o caminho todo até o supermercado falando de Erik.
Tinha planos de passar boa parte do mês de maio na Alemanha. O breve
reencontro durante as férias de Natal tinha feito com que sentisse mais falta
de Erik do que nunca, e Nicky contava os dias até que pudessem se ver de
novo. Estava preocupado com o que Andrew e Aaron fariam em sua ausên-
cia, mas confiava em Neil para mantê-los vivos até que os dormitórios rea-
brissem em junho.
Quando chegaram à seção dos sorvetes, Kevin ainda não mandara nenhu-
ma mensagem, então Nicky deu o braço a torcer e ligou para ele. Neil quase
esperava que Kevin ignorasse a ligação, mas ele não estava tão chateado a
ponto de recusar um lanchinho gratuito. Nicky pagou pelo sorvete sem dar
tempo para que Neil se oferecesse para comprá-lo para ele. Então, os dois
voltaram para o dormitório com as sacolas.
Kevin não estava por ali, mas a porta do quarto estava fechada de novo.
Neil presumiu que tivesse voltado a assistir às partidas sozinho. Por um mo-
mento, ficou incomodado pelo fato de Kevin não o ter esperado, mas se re-
cusava a se arrepender da decisão que tomara. Nicky pegou colheres na co-
zinha e distribuiu os sorvetes para seus donos famintos. Neil analisou a ex-
pressão de Nicky quando este voltou do quarto, onde fora entregar o sorvete
de Kevin, mas Nicky apenas revirou os olhos e sorriu de novo. Jogou o saco
plástico vazio na direção do lixo e examinou a estante de DVDs com as
mãos fechadas em punhos na cintura.
Após um minuto analisando, Nicky reclamou:
— Não tem nada de bom pra assistir. Vou vasculhar a coleção do Matt.
Falou com assertividade, mas esperou alguns instantes para dar a oportuni-
dade a Andrew de descartar a ideia. Neil olhou dele para Andrew, que rolava
o sorvete nas mãos para que derretesse um pouco. Quando percebeu que o
primo não faria objeções, Nicky desapareceu. Neil trancou a porta e foi com
seu sorvete até Andrew. Ele se ajoelhou no chão perto do pufe de Andrew e
escutou. Não ouviu o barulho de um jogo vindo do quarto, mas os fones de
ouvido de Kevin não estavam mais na mesa. Colocou o sorvete e a colher de
lado e lançou um olhar inquisitivo para Andrew.
— Uma dúvida — disse Neil, mas demorou alguns instantes para encontrar
as palavras certas. — Quando você disse que não gosta de ser tocado, é por
que não gosta de verdade ou por que não confia em ninguém para permitir
que toquem em você?
Andrew olhou para ele.
— Não importa.
— Se não importasse, eu não teria perguntado.
— Não importa pra um cara que não curte o mesmo que eu — explicou
Andrew.
Neil deu de ombros.
— Nunca tive a chance de descobrir se curto. A única coisa em que eu po-
dia pensar enquanto crescia era sobreviver. — Talvez por isso que aquela
fosse uma área obscura do que era aceitável. A percepção que tinha de An-
drew estava tão entrelaçada à percepção de segurança de Neil que isso tam-
bém era um meio de autopreservação. — Deixar alguém se aproximar de
mim significava confiar que não iam me apunhalar pelas costas quando pes-
soas horríveis fossem atrás de mim. Eu tinha muito medo de arriscar, então
era mais fácil ficar sozinho e não pensar nisso. Mas confio em você.
— Não deveria.
— Diz o cara que parou. — Neil esperou alguns instantes por uma respos-
ta. — Não entendo e não sei o que estou fazendo, mas não quero ignorar só
porque é novo. Então você está completamente fora dos limites ou tem zo-
nas de segurança?
— Está esperando por coordenadas?
— Queria saber quais são os limites antes de cruzar algum, mas estou dis-
posto a desenhar um mapa em você se quiser me emprestar um marcador.
Até que não é uma má ideia.
— Tudo que envolve você é uma má ideia — retrucou Andrew, como se
Neil já não soubesse.
— Ainda estou esperando por uma resposta.
— Ainda estou esperando por um sim ou não em que eu acredite — retru-
cou Andrew.
— Sim.
Neil pegou o sorvete dos dedos sem resistência de Andrew, colocou-o em
cima do sorvete dele e se inclinou. Parou quando estava prestes a beijar An-
drew, sem ousar tocá-lo antes que ele sinalizasse que Neil tinha permissão. A
expressão de Andrew não mudou, mas houve um aumento sutil na tensão
de seu corpo que informava que Neil havia chamado a sua atenção. Neil er-
gueu a mão, parando a uma distância segura do rosto de Andrew, que segu-
rou o pulso de Neil e o apertou em um aviso.
— Tudo bem se você me odiar — disse Neil.
Era a verdade, ainda que atenuada. Contando que a atração que Andrew
sentia por Neil fosse puramente física, era seguro experimentar aquilo. A
morte de Neil não seria mais do que uma pequena inconveniência para An-
drew.
— Que bom, porque eu odeio mesmo.
Por um segundo, Neil pensou que Andrew iria afastá-lo e acabar com tudo.
Andrew de fato o empurrou, mas se deitou com ele. O tapete curto era áspe-
ro contra os nós dos dedos de Neil, pois Andrew prendia sua mão acima da
cabeça. Neil não reclamou quando Andrew colocou seu peso inflexível em
cima dele. Estendeu a mão para Andrew de novo, mas parou no meio do ca-
minho. Andrew agarrou aquela mão também e a segurou.
— Parado — disse Andrew, inclinando-se para beijá-lo.
O tempo era irrelevante. Segundos eram dias, eram anos, eram as respira-
ções que ficavam presas entre suas bocas e o arranhar das unhas de Neil nas
palmas das próprias mãos, o roçar dos dentes contra o lábio inferior e o des-
lizar quente de uma língua contra a dele. Neil conseguia sentir as batidas do
coração de Andrew em seus pulsos, um ritmo staccato que ecoava em suas
veias. Não sabia como um garoto que via o mundo com uma desconexão tão
calculada poderia beijar daquele jeito, mas não seria ele a reclamar disso.
Neil tinha se esquecido da sensação de ser tocado sem intenções dolosas.
Tinha se esquecido como era o calor de outro corpo. Tudo em Andrew era
quente, desde as mãos que o seguravam até a boca que o fazia derreter. Neil
por fim compreendeu por que a mãe dizia que aquilo era perigoso. Era dis-
tração e indiscrição, fuga e negação. Era baixar a guarda, permitir que al-
guém se aproximasse e se consolar com algo que não deveria ter e que não
poderia manter. Naquele instante, Neil precisava demais daquela sensação
para se importar com o resto.
Não durou… Não tinha como durar muito, porque Kevin estava no quarto
ao lado e Nicky estava a apenas duas portas de distância, mas a boca de Neil
estava dormente e seus pensamentos eram um zumbido incoerente quando
um baque informou que Nicky dera de cara com a porta trancada. Neil re-
primiu um lampejo de irritação quando Andrew se levantou e se afastou.
Neil tentou pedir a Nicky que esperasse um momento, mas não tinha fôlego
para falar.
Andrew estudou a expressão de Neil por alguns segundos, então se levan-
tou e foi até a porta. Neil se levantou com as mãos trêmulas e recuou para a
mesa de Kevin com seu sorvete. Tirar o selo de segurança de plástico foi a
coisa mais difícil que fez durante o ano inteiro, mas pelo menos era uma
desculpa para não olhar para Nicky, que, ao passar pela porta, resmungou
por ter sido trancado para fora do próprio quarto, mas quando chegou ao
pufe, já havia se esquecido da irritação e mostrava os filmes que pegara em-
prestado.
— Deem uma olhada. Dessa vez vocês podem escolher — disse Nicky, co-
mo se fizesse um grande favor para os dois. Recitou os títulos e os atores
principais. Neil deixou a lista entrar por um ouvido e sair pelo outro. Depois
de tanto tempo com as Raposas, reconhecia a maioria dos nomes dos atores,
mas nunca tinha visto nenhum dos filmes. Mas naquele momento não se
importava com isso, e não demorou para que Nicky percebesse. — Oi, Terra
chamando Neil. Você tá me ouvindo?
Neil olhou para as marcas de meia-lua que havia deixado na palma da mão.
— Pode escolher.
— Vocês dois são as pessoas menos prestativas do mundo— reclamou
Nicky, mas levou apenas um segundo para se decidir. Abriu a caixa com um
estalo e tirou o DVD. Neil ouviu o barulho do pufe sendo amassado quando
Nicky se acomodou em seu assento. Não ouviu Andrew se ajeitar de novo,
mas não confiava em si mesmo o bastante para olhar e ver onde ele estava.
— Anda, Neil!
Neil não conseguiu inventar uma desculpa para demorar mais.
— Estou indo.
As luzes se apagaram, o que significava que Andrew tinha ficado na porta
depois de deixar Nicky entrar. Pensar que Andrew precisava de espaço e
tempo para se recuperar, assim como Neil, quase minou suas tentativas de
assumir uma expressão neutra. O sorvete frio era um pouco mais útil para
amainar o calor de sua pele, então Neil o segurou com força e se levantou da
mesa. Não havia espaço para se sentar entre os pufes e não podia parecer
que estava evitando Andrew, então ficou no chão, à esquerda dele.
Nicky deu play no filme assim que Andrew se juntou a eles. Neil assistia
para não olhar para Andrew, mas se mais tarde alguém perguntasse o que ti-
nha acontecido na história, não conseguiria responder. Quando foi para a
cama, algumas horas depois, tinha certeza de que ainda sentia as batidas do
coração de Andrew em sua pele.
O treino noturno de quinta-feira fora cancelado por causa dos jogos que
aconteceriam naquela noite. Era o dia das partidas da chave ímpar, com Ed-
gar Allan jogando contra Maryland e Penn State contra USC. Apenas duas
equipes de cada chave seguiriam para a quarta rodada, o que significava que
uma das Três Grandes seria eliminada naquela noite. Era a primeira vez em
seis anos que uma delas ia para casa antes das semifinais, e Kevin precisava
ver aquilo acontecer. De algum jeito, o time inteiro resolveu entrar nessa e
permaneceu no estádio após serem dispensados por Wymack.
A pessoa que havia criado o cronograma de jogos fora inteligente e garan-
tira que os Corvos e Troianos fossem as universidades anfitriãs. A diferença
de fuso horário permitia que as Raposas assistissem aos dois jogos um atrás
do outro. Wymack pediu pizza, mas não ficou para ver as partidas. Havia
decidido os seis jogadores que queria recrutar e estava ocupado planejando
a viagem. Esperava que, quando voltassem do recesso, todos já tivessem as-
sinado com a equipe. Neil ficou feliz por seu jogador ter passado no corte,
mas em seu íntimo se sentia culpado por não pressionar Wymack a conse-
guir um terceiro atacante.
Dan expulsou Wymack do computador para usar a impressora. Voltou
com quatro cartazes e um rolo de fita adesiva e pendurou os papéis acima da
televisão. Eram os pontos cumulativos de cada equipe que jogaria naquela
noite. Kevin mal olhou para aquilo durante a partida dos Corvos, mas, assim
que o jogo da USC contra a Penn State começou, passou a lançar olhares
furtivos para os papéis. Neil sabia que Kevin torcia para os Troianos, mas
não tinha percebido o quanto ele era fervoroso em relação a isso. Kevin as-
sistiu ao jogo como se um resultado ruim fosse causar sua morte. Neil quase
desejou que Penn State ganhasse só para ver Kevin ter um acesso de raiva.
Quando a partida entre Troianos e Leões chegou ao intervalo, Neil já havia
se esquecido de Kevin. Estivera tão envolvido com a temporada das Raposas
e dos Corvos que nem lembrava como os outros times dos Três Grandes
eram espetaculares. Eram equipes que jogavam como profissionais. Não ti-
nham o histórico de jogos impecável dos Corvos, mas estavam apenas meio
passo atrás da Edgar Allan. Kevin os avisara semanas antes que as Raposas
não estavam prontas para enfrentar essas universidades. Pela primeira vez,
as palavras babacas pareciam um eufemismo gentil.
Ele não foi o único que achou aquela visão um choque de realidade. Dan
colocou a televisão no silencioso durante os comerciais, batucando com o
controle remoto na coxa em um ritmo nervoso e disse:
— É, galera, com certeza a gente precisa intensificar o ritmo.
Kevin fez uma careta para ela.
— Mesmo se vocês tivessem intensificado o ritmo quando falei pra fazerem
isso, um ano atrás, não teriam chance de ganhar. A essa altura, não tem nada
que possam fazer. Eles são e sempre vão ser melhores do que a gente.
— Você fica com tesão em ser um grande estraga-prazeres? — perguntou
Nicky.
— Ficar em negação não vai ajudar em nada — retrucou Kevin. — Sofre-
mos pra ganhar de Nevada. Falando sério, como você espera que a gente
passe pelos Três Grandes?
— Já está na hora de rolar um terremoto na Califórnia. Isso tiraria a USC
da fita, pelo menos — ressaltou Nicky.
— Um pouco demais, né? — retrucou Renee.
— A essa altura, precisamos de algo extremo — respondeu Allison.
A expressão de Renee era calma e seu tom firme, mas ela não precisava pa-
recer desapontada para que todos entendessem a mensagem.
— Os Troianos nos protegeram quando mais precisamos deles. Vocês que-
rem mesmo que eles sofram só pra gente poder se dar bem?
— Não é justo — disse Nicky, esquivando-se do olhar dela. — Só estou fa-
lando que não é justo a gente chegar até aqui e aguentar tanto só pra perder.
— Nós ainda não perdemos, mas vamos se você desistir logo de cara — ar-
gumentou Dan.
Kevin começou a dizer algo que Neil sabia que seria negativo e desdenho-
so, então estendeu a mão por trás de Andrew e deu um tapa na nuca de Ke-
vin para que calasse a boca. Matt se engasgou com a risada e tentou, sem su-
cesso, fingir que era uma tosse. Kevin congelou por um segundo, surpreso,
então olhou irritado para Neil.
— Ninguém quer ouvir isso agora — disse Neil.
— Se você me bater de novo… — começou Kevin.
Andrew o cortou em um tom descontraído:
— Você vai o quê?
Kevin calou a boca, mas não parecia feliz. Allison gesticulou para Dan. Neil
viu o gesto em sua visão periférica, mas não conseguiu distinguir o que ela
fez. Quando olhou para as duas, Dan fazia uma careta para a amiga. Matt
passou um braço em volta do ombro de Dan e deu um breve aperto. Podia
não ter nada a ver, mas o sorriso que Matt não conseguiu conter era mais
presunçoso do que simpático. Neil olhou para Renee para ver se ela havia
entendido, mas não conseguiu captar nenhuma pista de sua expressão sere-
na.
— Você sabe — começou Matt, mas Dan aumentou o volume antes que ele
terminasse.
Matt sorriu para ela, parecendo mais entretido do que ofendido, e deixou
passar.
O intervalo acabou alguns minutos depois, e os Troianos e Leões voltaram
com novas escalações e habilidades assustadoras. Parte da tensão nos om-
bros de Kevin se desfez quando a USC fez outro gol, mas ele não relaxou até
que a universidade vencesse a partida. Com impressionantes trinta e sete
gols entre os três jogos da terceira rodada, os Troianos seguiam com os Cor-
vos para a segunda rodada do mata-mata.
— Bem que você podia parecer menos feliz com isso — comentou Nicky,
ao ver o sorriso satisfeito de Kevin. — Vamos ter que jogar contra eles.
— Eles se esforçaram pra isso — disse Kevin, lançando um olhar frio para
Neil.
Dan revirou os olhos e desligou a televisão, e as Raposas deram a noite por
encerrada.
Para o azar das Raposas, a Universidade de Binghamton ficava a menos de
1.300 quilômetros de Palmetto State. Era considerada perto demais para que
desperdiçassem dinheiro com passagens aéreas, então os jogadores tive-
ram que se levantar às cinco da manhã e estavam na estrada antes das seis.
Com o almoço, as inevitáveis pausas para ir ao banheiro e o trânsito da hora
do rush que com certeza enfrentariam na subida da costa, a viagem estava
destinada a ser longa. Neil não tinha nenhum trabalho da faculdade com
que se distrair, pois a semana de provas do meio do semestre tinha termina-
do havia pouco tempo. Como a semana seguinte seria o recesso da primave-
ra, nenhum dos professores de Neil passara trabalhos extras.
Quando estavam viajando havia quatro horas, os veteranos defenderam
veementemente que o ônibus da próxima temporada deveria ter televisão.
Wymack fingiu não ouvir, mas não poderia ignorá-los para sempre. Por fim,
prometeu que pensaria no assunto se eles fossem campeões. As Raposas co-
nheciam bem o jeito do treinador para saber que aquilo significava um
“sim”, não importava como a temporada acabaria. Apesar de não adiantar de
nada para aliviar o tédio naquele dia, era algo pelo que ansiar no ano seguin-
te.
Seis horas depois, pararam para almoçar e, na volta para o ônibus, Dan fez
Kevin falar sobre os Urso-gatos de Binghamton. Kevin hesitou no corredor,
dividido entre discutir os méritos dos oponentes da noite com os compa-
nheiros de equipe e permanecer dentro do círculo de proteção de Andrew.
Sua indecisão efetivamente bloqueou o caminho das Raposas, já que ele era
o segundo no ônibus atrás de Andrew, que levou apenas um minuto para
perceber que Kevin não o seguia. Ele fez um gesto de desdém, então Kevin
deslizou para o assento atrás de Dan e Matt. Aaron e Nicky ocuparam o
banco logo atrás dele. Neil duvidava que estivessem tão interessados no que
Kevin tinha a dizer; era mais provável que estivessem entediados e desespe-
rados por qualquer tipo de conversa.
Havia uma vaga no banco de Kevin e bastante espaço para que Neil se jun-
tasse a eles. Kevin não estava dizendo nada que fosse novidade para Neil,
devido aos seus treinos noturnos, mas ainda assim Neil deveria ouvir e apro-
veitar qualquer conselho que servisse. Além disso, não levaria muito tempo
para que Nicky desviasse a conversa e as Raposas seriam uma boa distração
para o trajeto interminável.
Entretanto, ficar com eles significava deixar Andrew sozinho na segunda
metade da viagem. Neil sabia que era provável que ele não notasse nem se
importasse com o fato de ter sido abandonado, mas, por algum motivo, Neil
não gostou da ideia. Passara a vida inteira vagando pelos arredores, ressabia-
do e olhando para trás. Aquilo o fazia feliz, ou era o que ele achava na época,
porque ser ignorado significava estar seguro. Não percebera o quanto se
sentia solitário até conhecer as Raposas.
—Neil? — perguntou Dan quando ele não se mexeu.
Kevin franziu a testa para Neil como se não fizesse a mínima ideia do por-
quê não havia se sentado ao lado dele ainda. Por um momento Neil se sen-
tiu encurralado, preso entre o que queria e o que precisava, o que nunca te-
ria ou seria e o que tinha, mas não podia manter. Pensar nisso fez uma onda
inesperada de pânico inundar seu peito, e Neil desviou o olhar.
Quando se encaminhou para o fundo do ônibus, Kevin tentou chamá-lo de
volta, irritado.
— Volta aqui.
Neil não olhou nem diminuiu a velocidade.
— Não.
A almofada do assento rangeu e o barulho que o tênis de Kevin fez ao bater
no chão foi alto demais. Neil sabia que Kevin estava vindo atrás dele, cansa-
do de suas distrações e respostas insolentes, mas meio segundo depois Kevin
gritava para que alguém o soltasse. Neil sabia que nem Aaron nem Nicky
cogitariam intervir. Matt era o defensor mais provável, mas Neil não se im-
portava o bastante para olhar para trás e confirmar.
Kevin se contentou em reclamar para Neil em francês:
— Lembra que você confiou seu jogo pra mim. Você não tem o direito de
se afastar quando estou tentando ensinar você.
— Confiei meu jogo para você para que a gente consiga chegar às finais,
mas ontem você disse que não espera que a gente faça isso. Você desistiu da
gente, então estou pegando meu jogo de volta. Não devo mais nada a você.
— Para de agir que nem um moleque mimado. O jogo de hoje à noite de-
pende do desempenho de nós dois. Você precisa estar aqui para ouvir isso
mais do que ninguém.
— Já ouvi antes. Me deixa em paz.
Neil ocupou o assento que Kevin abandonara, o segundo na parte de trás e
na frente de Andrew. Dan esperou apenas alguns segundos para ver se mais
alguma coisa ia acontecer, e então chamou a atenção de Kevin de volta para
a conversa que ele havia interrompido. Precisou de algumas tentativas até
que o atleta contivesse a irritação e cooperasse. Neil esperou até que eles co-
meçassem a falar para tirar o celular do bolso.
Todas as noites desde o dia de seu aniversário verdadeiro, recebera uma
mensagem que continha apenas um número. O preocupante “0” daquele dia
chegara durante o almoço. Neil não sabia o que fazer nem o que esperar a
seguir. Foi anticlimático e estressante. Queria apagar a mensagem como fi-
zera com todas as anteriores, mas quando a confirmação de apagamento foi
solicitada, ele fechou o celular. Guardou o aparelho de novo, virou-se para
trás no assento e ficou de joelhos para olhar para Andrew.
Andrew o ignorou, mas Neil não se importou. Estava contente em olhar,
com os braços cruzados no encosto do assento e o queixo apoiado no ante-
braço. Não sabia o que estava procurando. Andrew estava com a mesma fisi-
onomia de sempre, e Neil conhecia o rosto dele tão bem quanto o seu pró-
prio. Apesar disso, tinha algo de diferente. Talvez fosse a luz do sol entrando
pela janela e fazendo o cabelo claro de Andrew brilhar mais e seus olhos cas-
tanhos parecerem quase dourados. Fosse o que fosse, era desorientador.
Uma dúvida não expressada parecia rastejar sob a pele de Neil, fazendo com
que ficasse inquieto e indisposto.
— Ei — disse Neil, porque talvez conseguisse descobrir a resposta se An-
drew olhasse para ele.
Levou algum tempo, mas Andrew por fim ergueu um olhar calmo para
Neil. Ele manteve o contato visual por um minuto e então disse:
— Para.
— Eu não estou fazendo nada.
— Já falei pra você não me olhar assim.
Neil não entendeu, então deixou para lá.
— É cansativo encarar tudo como uma competição?
— Não tão cansativo quanto deve ser fugir de tudo.
— Talvez. Eu disse que estou trabalhando nisso.
— Então trabalha mais.
— Não posso, a não ser que você me libere — respondeu Neil, baixinho,
mas firme. — Fica comigo, mas não luta por mim. Me deixa aprender a lutar
por mim mesmo.
— Você não tinha mencionado essa mudança de opinião.
— Talvez eu tenha cansado de ver Kevin aceitar tudo. Ou talvez tenham si-
do os zumbis. — Quando Andrew apenas olhou para ele, Neil deu de om-
bros e disse: — Algumas semanas atrás, você e Renee discutiram planos de
emergência para um apocalipse zumbi. Ela disse que se concentraria nos so-
breviventes. Você disse que voltaria para buscar alguns de nós. Cinco no to-
tal — contou Neil, espalmando os dedos para Andrew. — Você não estava
contando Abby nem o treinador. Já que confia em Renee para lidar com o
resto da equipe, imagino que a última vaga seja para Dobson. — Neil sabia
que Andrew não responderia, então baixou a mão e disse: — Eu não disse
nada na hora porque sabia que quando o mundo virasse de cabeça para bai-
xo, eu cuidaria só de mim. Não quero mais ser essa pessoa. Eu quero voltar
por você.
— Você não faria isso. Você é um tipo diferente de suicida. Não percebeu
isso em dezembro? Você é a isca. Você é o mártir que ninguém pediu nem
quis — retrucou Andrew.
Neil sabia que não era tão boa pessoa assim, mas tudo que conseguiu res-
ponder foi:
— Só tem um jeito de ter certeza, né?
— Você vai se arrepender.
— Talvez sim, talvez não.
Andrew desviou o olhar.
— Não adianta vir chorando quando alguém quebrar sua cara.
— Obrigado.
Neil inclinou a cabeça para o lado para apoiar a bochecha no braço e olhou
pela janela. Estavam cruzando a Virgínia, quase na metade do caminho até o
destino final. As paisagens das estradas interestaduais da costa leste eram
entediantes, cheias de carros e com o asfalto irregular. Neil pensou nas estra-
das que percorrera na costa da Califórnia, o oceano de um lado, o mundo do
outro e cidades pequenas demais para terem sinais de trânsito. Neil levantou
a mão e verificou as unhas em busca de sangue. Não encontrou, como era de
se esperar, mas por um momento pensou ter sentido o cheiro.
— Já passei por aqui — comentou Neil, porque algo, qualquer coisa, preci-
sava preencher o silêncio antes que seus pensamentos tomassem outro ru-
mo.
Andrew olhou para ele de novo, o que Neil interpretou como uma permis-
são silenciosa para continuar. Neil contou sobre as cidades por onde passara,
os becos, as paradas turísticas e os ônibus urbanos esquisitos. A maioria das
lembranças eram tingidas pela tensão e pelo medo, mas não precisava com-
partilhar essa parte. Só precisava deixar de lado todas as menções à mãe.
Era estranho compartilhar aquelas histórias com outra pessoa. Neil cresce-
ra olhando para trás, desconfiado, sempre à procura do pai. Raramente ti-
nha motivos para pensar em sua vida cotidiana. Mas era uma forma de pas-
sar o tempo, e Andrew permitiu que ele divagasse. Não desviava o olhar de
Neil nem parecia se desconectar mentalmente da conversa.
Por fim, Neil conseguiu fazer com que Andrew compartilhasse um pouco
sobre sua mudança para a Colúmbia. A primeira coisa que Andrew fez após
se livrar da mãe foi cuidar dos vícios de Aaron. Abasteceu o banheiro do an-
dar de cima com comida entalada e trancou o irmão lá até que a abstinência
acabasse. Por sorte moravam em uma casa, não em um apartamento, e os vi-
zinhos não ficavam perto o bastante para ouvir as tentativas de Aaron de fu-
gir.
Quando Nicky se mudou para ficar de olho neles, começou a trabalhar co-
mo recepcionista no Sweetie’s. Ouviu falar do Eden’s Twilight por meio de
alguns clientes com quem conversava e, depois de se esforçar para fazer
amizade com os seguranças e Roland, conseguiu um emprego lá como aju-
dante de bar. Por fim, Nicky arranjou uns bicos de meio período para Aaron
e Andrew na cozinha, lavando pratos e preparando alimentos mais simples.
Quanto mais confortável a equipe ficava com os gêmeos estranhos, mais
fácil era pegar bebidas. Foi só quando foram para a faculdade que começa-
ram a pedir bebidas no balcão do bar como os outros clientes da boate.
A velocidade do ônibus diminuiu, e Neil olhou pela janela enquanto Abby
pegava uma saída para uma rua movimentada. Havia uma parada a dois si-
nais de distância, metade lotada de bombas de diesel e grandes caminhões, a
outra metade lotada de tráfego normal. Abby encontrou uma vaga para esta-
cionar do lado dos caminhões e desligou o motor. Neil ficou confuso por pa-
rarem de novo tão cedo, mas ao olhar para o relógio percebeu que passara
quase três horas conversando com Andrew. Estavam a cerca de duas horas e
meia de distância de Binghamton.
— Última parada antes do campus — anunciou Wymack, e a metade da
frente do ônibus desceu.
Wymack ficou em seu lugar até que todos, exceto Neil e Andrew, tivessem
ido embora. Olhou para os dois como se quisesse dizer alguma coisa, então
ergueu a mão em um “deixa pra lá” silencioso e saiu do ônibus. Neil obser-
vou pela janela enquanto os companheiros de equipe desapareciam lá den-
tro. Ainda estava cheio do almoço, mas ele sabia que era bom aproveitar
qualquer parada.
Antes de se levantar, porém, disse:
— Eu queria muito saber quando foi que o treinador percebeu isso aqui.
— Não tem nada de “isso” — lembrou Andrew.
Neil não revirou os olhos, mas foi por pouco.
— Eu queria muito saber quando foi que o treinador descobriu que você
quer me matar só noventa e três por cento do tempo.
— Ele não sabia antes de eu ir embora.
Mas, ao que tudo indicava, soube assim que Andrew retornou. Neil se lem-
brou da atitude astuta de Wymack no treino em janeiro, quando o usou para
controlar Andrew. Neil não sabia naquela época, então não era como se ti-
vesse deixado escapar quando estava com o treinador no Ano-Novo. Neil
pensou, procurando o primeiro indício de que Wymack suspeitava que algo
estava acontecendo entre eles, e se endireitou um pouco quando percebeu.
— É, ele sabia — disse Neil. Em novembro passado, Neil colocara a mão de
Andrew em sua pele destruída e pediu que acreditasse nele. De algum jeito,
Wymack percebera a culpa esmagadora que Neil sentia e a confiança relu-
tante de Andrew. Foi mais do que um pouco perturbador. — Quando leva-
ram você, ele me perguntou quando foi que “isso” tinha acontecido. Eu não
tinha entendido o que ele quis dizer. Como pode ser que ele tenha percebi-
do, mas Aaron e Nicky não?
— O treinador não liga pra boatos e preconceitos. Ele vê as coisas como
são, não o que as pessoas querem que ele veja — respondeu Andrew.
Como se tivesse visto através da suposta disfunção de Andrew. Aaron e
Nicky, por outro lado, ainda acreditavam que Andrew beirava a sociopatia,
incapaz de se relacionar com as outras pessoas de uma maneira normal.
Nicky apostou dinheiro em Renee e Andrew porque todo mundo fez o mes-
mo, mas admitia que não queria que aquele relacionamento vingasse.
— Você nunca vai contar para eles? — perguntou Neil.
— Não vou precisar — respondeu Andrew enquanto deslizava para fora do
assento. Neil teria tentado impedi-lo, querendo ouvir o resto, mas Andrew
não estava indo embora. Ele se sentou na outra metade do assento de Neil,
que se virou para Andrew. — Renee diz que os veteranos estão apostando na
sua sexualidade. Eles estão divididos.
Matt havia dito que a equipe fizera uma aposta baseada em Neil, mas não
era isso que ele achava que tinha sido. Neil hesitou por um momento, sem
saber como reagir, mas então disse:
— É perda de tempo e dinheiro. Todos eles vão perder. Eu disse o ano todo
que não curtia nada e estava falando sério. Beijar você não me faz olhar para
nenhum deles de um jeito diferente. A única pessoa que me interessa é você.
— Para de falar bobagem.
— Vem me fazer parar — respondeu Neil.
Ele enterrou as mãos no cabelo de Andrew e o puxou para um beijo. Era
fácil esquecer aquela viagem interminável e o jogo daquela noite com a mão
de Andrew em sua coxa e os dentes dele em seu lábio. Andrew se afastou ce-
do demais e se levantou. Neil sabia que não era a hora nem o lugar, mas isso
não o impediu de preferir que ele tivesse continuado.
Por fim, os dois desceram do ônibus e entraram para comprar algo para
beber. Wymack deixou a equipe vagar apenas por alguns minutos, então os
guiou pelo estacionamento de volta ao ônibus. O resto do grupo de Andrew
se sentou na frente para as horas que ainda restavam de viagem. Neil roubou
o lugar de Kevin de novo, mas não conseguiu pensar em nada para dizer. O
silêncio era surpreendentemente confortável, então encostou a cabeça na ja-
nela e cochilou.
O campus da Universidade de Binghamton havia sido decorado em verde e
branco para o jogo, e o estacionamento do estádio tinha mais pessoas do
que carros. Se havia algum torcedor das Raposas na multidão, Neil não con-
seguiu encontrá-lo. A polícia estava presente com coletes refletivos, orien-
tando o trânsito e monitorando o uso de álcool. Neil analisou os grupos pe-
los quais passaram. Todos pareciam estar de bom humor. Os Ursos-gatos
haviam vencido os Tornados na semana anterior por sete a seis e estavam
prontos para outra vitória.
Nevada tinha catorze gols de saldo na terceira rodada, e as Raposas esta-
vam com oito. Para avançarem para o mata-mata seguinte, precisariam fazer
ao menos seis gols no jogo daquela noite. Os Ursos-gatos eram uma equipe
mais equilibrada do que Nevada, mas as Raposas estavam otimistas, dentro
do possível. Haviam feito uma excelente partida contra Nevada e tido uma
semana de folga para descansar, além disso Nicky estaria de volta à quadra.
Os guardas abriram o portão para Abby passar e ela estacionou ao lado dos
ônibus dos Urso-gatos. Wymack conduziu a equipe para fora, contando-os
enquanto desembarcavam, e abriu o porta-malas do ônibus. Após descarre-
garem os equipamentos, foram escoltados pela polícia do campus para fora
do estacionamento, até a porta. Tinham uma hora livre até serem autoriza-
dos a entrar na área técnica para se aquecerem. Neil passou essa hora lendo
e relendo a escalação dos Urso-gatos. Ao ver o colega fazer isso, Kevin pegou
os papéis e repassou com ele os jogadores. Por mais que ainda estivesse irri-
tado com Neil, o jogo era mais importante do que a briga.
Neil seguiu os companheiros de equipe para dentro de quadra para o início
de jogo. Pensou na USC e em Edgar Allan e deixou que sua determinação
sombria lhe desse velocidade e força. Ele se jogou contra as defesas dos Ur-
so-gatos repetidas vezes, chegando ao limite da exaustão e perigosamente
perto de levar um cartão mais de uma vez.
No intervalo, Wymack ameaçou esfolá-lo vivo se recebesse um cartão ver-
melho, mas Dan acenou em encorajamento assim que o treinador deixou o
assunto de lado. Entendia o que Neil estava fazendo: ninguém poderia se
dar ao luxo de diminuir o ritmo ainda. Estavam perdendo por dois gols de
diferença e enfrentariam os reservas descansados. Se marcassem três gols no
segundo tempo, avançariam no campeonato, mas Neil não queria perder.
Prometera às Raposas que não perderiam um único jogo naquela primavera.
Ao menos uma vez na vida, Neil não queria o peso da mentira.
A buzina os alertou para voltarem para a quadra, e a escalação titular se
posicionou próximo aos portões. Aaron e Andrew eram os dois últimos na
fila, mas Aaron saiu do caminho quando Neil se aproximou. Neil mal perce-
beu. Sabia que o último minuto antes do segundo tempo estava aparecendo
nos telões acima, porque os torcedores nas arquibancadas gritavam de entu-
siasmo. Estava vagamente ciente da quadra à sua esquerda e dos compa-
nheiros tensos alinhados atrás dele. A única coisa que de fato importava era
Andrew, que não se deixava afetar por todo o caos.
Pela primeira vez, Neil apreciou a apatia de Andrew. Em um estádio desen-
freado e com tanta coisa em jogo, Neil finalmente conseguiu enxergá-lo co-
mo o tão crucial olho do furacão. Por se recusar a se envolver em tudo, An-
drew era a única pessoa calma em quadra.
— No mês passado você fechou o gol contra os Pumas. Consegue fazer isso
de novo hoje? — disse Neil.
— Os Pumas eram uma equipe patética. Aquela vergonha foi culpa deles
mesmos.
— Consegue ou não consegue?
— Não vejo motivos pra fazer isso.
Neil ouviu o clique de uma fechadura e soube que os árbitros estavam
abrindo o portão. Apesar de Andrew não ter se movido, Neil colocou um
braço em seu caminho para fazê-lo ficar onde estava. Pressionou a mão en-
luvada na parede e se inclinou o mais próximo possível, apesar do equipa-
mento volumoso.
— Estou pedindo pra você ajudar a gente. Você pode ajudar? — disse Neil.
Andrew pensou por um momento.
— Não de graça.
— O que você quiser — prometeu Neil, e recuou para ocupar seu lugar na
fila de novo.
Neil não sabia no que tinha se metido, mas sinceramente não se importava,
porque Andrew fez o que ele pediu. Fechou o gol como se sua vida depen-
desse disso e defendeu cada arremesso. Os atacantes dos Urso-gatos enten-
deram aquilo como um desafio. Fintavam, desviavam e usavam cada truque
que conheciam contra Andrew. Quando não conseguiu mover a raquete a
tempo, o goleiro usou a luva ou corpo mais de uma vez como forma de pa-
rar a bola.
A determinação já teria sido o suficiente, mas Andrew não parou por aí.
Pela primeira vez, começou a se comunicar com os defensores. Neil enten-
dia apenas partes do que ele dizia, já que havia muito espaço e movimento
entre os dois, mas o que conseguia entender parecia funcionar. Andrew es-
tava dando um esporro nos outros por permitirem que os atacantes passas-
sem tantas vezes e exigindo que aumentassem o ritmo. Por alguns instantes,
Neil ficou preocupado com o resultado que o estilo grosseiro de trabalho em
equipe de Andrew teria com os colegas, mas da outra vez que conseguiu dar
uma boa olhada em Matt, ele sorria como se nunca tivesse se divertido tanto
na vida.
As Raposas levaram todo o segundo tempo para empatar o placar e, a um
minuto do fim, Kevin marcou e as colocou na liderança. Os últimos sessenta
segundos do jogo foram uma mistura de violência e ameaças enquanto os
Urso-gatos tentavam empatar. A buzina final soou para anunciar a vitória
das Raposas e, antes que o som diminuísse, as equipes já estavam brigando.
Neil não sabia quem havia iniciado; olhou triunfante para Andrew do outro
lado da quadra e, quando viu, os atacantes dos Urso-gatos estavam em cima
de Nicky e Matt. Allison e a meia que a marcava foram arrastadas para a
confusão quando tentaram apartar os colegas.
Kevin investiu para participar, mas Neil correu para agarrá-lo. Se ele fosse
atacado, Andrew se envolveria na briga e a violência escalaria para níveis ir-
reconciliáveis. Assim, Neil arrastou Kevin ao redor do bate-boca para que
Andrew visse que estava tudo bem com ele. Wymack e os três treinadores
dos Urso-gatos ajudaram os árbitros a separar os jogadores. As equipes pu-
laram o costumeiro aperto de mão pós-jogo e saíram da quadra. Vendo que
Wymack não desperdiçou fôlego gritando com eles, Neil imaginou que não
haviam sido as Raposas a dar o primeiro soco.
Era a vez de Neil auxiliar Dan com a imprensa após o jogo. Andrew cha-
mou a atenção de Neil e inclinou a cabeça em direção ao vestiário. Respeita-
ria a decisão de Neil de ficar sozinho e não ficaria por perto enquanto ex-
pressava sua opinião. Ele respondeu a esse voto de confiança com um sorri-
so discreto, e Andrew se afastou. Neil o teria observado partir, mas Dan re-
direcionou sua atenção para onde precisava estar naquele momento.
Responderam a todas as perguntas costumeiras: como estavam se sentindo,
quão empolgados estavam por avançarem no campeonato, o que tinham
achado do desempenho dos Urso-gatos e assim por diante. Dan falou bas-
tante, o que era um bom equilíbrio com as respostas mais reservadas de
Neil, e os dois saíram ilesos da entrevista. Dan passou um braço em volta
dos ombros de Neil enquanto se dirigiam para o vestiário e inclinou a cabe-
ça para o lado para apoiar o capacete contra o dele.
Ela não disse nada, mas não precisava. Dava para praticamente sentir a
empolgação que irradiava da garota. O modo como haviam se recuperado
naquela noite fora incrível e, além disso, haviam conseguido manter a se-
quência invicta de jogos. Só havia mais uma partida até as semifinais. Tudo
de que precisavam era vencer a revanche contra os Urso-gatos dali a duas
semanas, e então se classificariam.
Quando Neil chegou ao vestiário masculino, os chuveiros estavam ligados.
Os Urso-gatos, como as Raposas, tinham boxes de verdade em ambos os ba-
nheiros, então Neil não precisou esperar que todo mundo terminasse para
poder tomar banho. Carregou suas roupas para uma das baias abertas e dei-
xou a água quente aliviar a dor de seu corpo exausto. Quando terminou de
tomar banho e se vestir, o lugar estava vazio. Neil arrumou a mochila e a jo-
gou no ombro.
Estava a meio caminho da porta quando seu celular vibrou. Primeiro
achou que era apenas uma mensagem, mas o aparelho continuou tocando.
Ele parou para tirá-lo do bolso e o abriu. A tela se iluminou com o número
que ligava, e Neil sentiu seu estômago revirar. Não reconheceu o número,
mas não precisava. Conhecia o código de área 443.
A ligação vinha de Baltimore.
— Não foge.
O som de sua própria voz o assustou. Não pretendia falar. Seus músculos
gritavam com uma tensão mal contida; estava preparado para fugir, mas de
alguma forma se manteve firme. Neil se esforçou para relaxar, ainda que
sentisse o sangue latejar nas têmporas.
Sabia que não era o pai. Não poderia ser; não seria. Era Riko, ou um dos
capangas dele, ligando para fazer uma piada de mau gosto. Àquela altura,
Riko já tinha recebido a informação de que as Raposas haviam se classifica-
do para a quarta rodada. Sua tentativa de abalar Neil com a contagem re-
gressiva falhara. Neil sabia que essa era a explicação lógica, mas mesmo as-
sim só atendeu no quarto toque.
— Alô?
— Alô, Júnior. Você se lembra de mim?
O coração de Neil parou. Não era seu pai nem Riko, mas reconheceria
aquela voz em qualquer lugar. Era Lola Malcolm, uma das pessoas mais
próximas de seu pai e uma das duas pessoas que haviam tentado ensinar
Neil a manejar uma faca tantos anos antes. Entrava e saía da casa deles com
tanta frequência que, durante algum tempo, Neil chegou a pensar que ela
também morava ali. Passava-se por assistente pessoal do pai, mas seu traba-
lho era se livrar dos corpos deixados pelo círculo de Nathan. A mulher valia
ouro. Nenhum dos corpos jamais havia sido encontrado.
Neil afastou o celular do ouvido e respirou fundo e devagar. Não adiantou
nada. Seus pulmões pareciam cheios de fragmentos de gelo, congelando até
os ossos e cortando-o por dentro. Levou um século até que Neil conseguisse
falar de novo, e não foi capaz de evitar o nervosismo em sua voz.
— Eu não passei esse número para você, Lola.
— Então você se lembra de mim. Veja bem, isso é ruim, porque se você se
lembra de mim, também se lembra de quem você é e de onde é seu lugar.
— Eu criei meu próprio lugar.
— Você não tem esse direito. — Ela esperou que ele respondesse, mas Neil
não tinha nada a dizer. — Está me ouvindo? É hora de voltar. Se dificultar
pra gente, vai se arrepender pelo pouco tempo de vida que ainda lhe resta.
Entendeu?
Neil queria vomitar. Lola se livrara de cadáveres, e não os criava. Essa parte
ficava a cargo dos outros capangas de Nathan. Neil se lembrava mais de ros-
tos do que de nomes, mas dava para imaginar quem Lola trouxera consigo.
Ela sempre escolhia o irmão, Romero, como parceiro de negócios e, aonde
quer que ele fosse, Jackson estava por perto. Os três eram os mais próximos
de Nathan. Respondiam apenas ao braço direito de Nathan, DiMaccio, e ao
próprio pai de Neil.
Neil poderia tentar fugir de um deles, mas não conseguiria despistar os
três. Por alguns instantes, ficou tão assustado que mal conseguia respirar,
mas logo após o medo seguiu-se uma raiva selvagem e irracional. Estava a
meio caminho de ganhar a confiança de Andrew, a um fim de semana de su-
as primeiras férias e a um mês das semifinais. Restavam apenas quatro parti-
das para o final do campeonato. Neil estava tão perto de tudo o que mais
queria, e Lola queria roubar tudo isso dele.
— Se você encostar um dedo em mim vai se arrepender — afirmou Neil.
— Ah, mas o que é isso? — ironizou Lola, entretida. — O bebê finalmente
criou coragem? Seu pai vai ficar feliz em saber disso.
— Meu… — Neil se engasgou. — Ele está em Seattle. Você nunca vai me
levar tão longe.
— Ele está em Baltimore — corrigiu ela. — A audiência da condicional de-
le foi no dia do seu aniversário. Tiveram que notificar a família quando o ca-
so surgiu. Você não deve ter recebido a notícia, já que estava morto e coisa e
tal, mas estou aqui pra contar. A decisão final foi tomada na semana passa-
da, e os federais concordaram que ele seria liberado para voltar a Maryland
hoje de manhã. Estão achando que se ele voltar para um território familiar
talvez fique mais negligente. — Dava para ouvir o sorriso feroz em suas pa-
lavras. — Não se preocupe, moleque. Eles nunca vão saber que você esteve
aqui. Eu mesma vou me certificar disso.
Neil piscou e viu aquele zero sob as pálpebras. Não tinha tempo. Por um
momento, sentiu o peso da boca de Andrew sobre a sua. Enfiou os dedos no
lábio inferior e tentou respirar ao redor deles.
— Você acha mesmo que pode me tirar daqui? Minha equipe vai perceber
que sumi e não vai fazer a viagem sem mim.
— Eles não têm escolha. Não podemos matar todo mundo, mas podemos
machucar. Você vai ver.
— Não — protestou Neil, mas Lola desligou.
Ele ligou de volta, mas caiu direto no correio de voz. Ela já havia desligado
o aparelho. Neil xingou e fechou o celular, os dedos trêmulos. Apertou as
mãos com violência, como se pudesse fazê-las parar de tremer, mas era uma
reação incontrolável. Sua mente estava a mil por hora, à procura de saídas
estratégicas e descartando cada uma que terminava com ele fugindo.
Prometera a Andrew que ficaria, mas não poderia se isso significasse colo-
car os companheiros de equipe em perigo. O único jeito de salvá-los era fa-
zendo a última coisa que o pessoal de Nathan esperava que fizesse. Tinha fu-
gido, mentido e se escondido a vida inteira. Dizer a verdade para se salvar,
para salvar as Raposas seria um contrassenso. Neil queria fazer isso apenas
quando a temporada acabasse, mas não podia se dar ao luxo de esperar
mais. As Raposas poderiam ficar quietinhas até que os federais aparecessem
para levá-las sob custódia protetora.
Neil saiu apressado do vestiário e começou a andar. Havia um segurança
no final do corredor, olhando para as Raposas que comemoravam no salão.
Neil chegou à metade do caminho antes que o homem percebesse que havia
outra pessoa se aproximando. Quando ele olhou em sua direção e Neil ob-
servou seu rosto, congelou. Jackson Plank estava no vestiário com sua equi-
pe. Um segundo depois, Romero Malcolm surgiu com uma roupa seme-
lhante. Recuar ao vê-los era puro instinto, mas Neil se agarrou à parede para
se deter antes que pudesse ir longe.
Romero apoiou a mão casualmente na arma em seu cinto. Neil estremeceu
e balançou a cabeça, determinado. Romero se virou em direção às Raposas.
Neil entendeu a mensagem e estendeu as mãos em um apelo desesperado
pelo cessar-fogo. Jackson olhou de relance para a garota antes de voltar sua
atenção para a equipe, alheia ao que acontecia.
— Bom, se já está todo mundo aqui, é melhor sairmos — disse Jackson.
— Ainda estamos esperando o Neil — respondeu Nicky, e Jackson apontou
para o corredor. Neil engoliu em seco, tentando diminuir o nó em sua gar-
ganta e manter uma expressão calma. Percorreu o resto do corredor, com os
pés parecendo querer rumar em qualquer outra direção. Quando ele entrou,
Nicky ficou de pé num pulo, sorrindo de orelha a orelha. — Ei, Neil! A gente
estava começando a achar que você tinha se afogado.
— Foi mal — respondeu Neil.
Nicky dispensou o comentário, achando que Neil se desculpava por fazê-
los esperar, e foi pegar a mochila. Neil observou a equipe recolher seus per-
tences, olhando de um rosto para o outro e tentando saborear os últimos se-
gundos. Wymack vigiava todos do canto, com um cigarro apagado pendura-
do no canto da boca e um sorriso triunfante ainda nos lábios. Abby estava
arrumando a mala; era bem provável que tivesse passado os últimos minu-
tos verificando os arranhões da equipe após a briga.
O metro e meio que separava Neil de sua equipe poderia muito bem ser oi-
to mil quilômetros. Ao olhar para todos, ele se sentia, ao mesmo tempo, tris-
te e orgulhoso. Estava destruindo as chances de vencerem a temporada, mas
as meninas ainda tinham mais um ano. Ficariam amargamente desaponta-
dos por terem chegado tão perto, mas eram guerreiros. Voltariam no ano se-
guinte e não deixariam nada os deter.
Lamentava por ter que deixá-los com tantas mentiras, lamentava que teri-
am que recorrer a Kevin para saber a verdade. Ainda estava com eles, mas já
sentia uma saudade tão intensa que ameaçava virá-lo do avesso.
Apenas Andrew enxergava a tensão sob a máscara de Neil. Ele atravessou a
sala para ficar na frente dele, com uma exigência silenciosa no olhar. Neil
queria responder, mas não sabia como. Alemão era a opção mais óbvia por-
que daria aos dois um pouco de privacidade, mas Romero e Jackson não en-
tendiam alemão. Não saberiam o que ele estava dizendo e teriam que reagir
como se Neil estivesse revelando todos os segredos tenebrosos. Ele não po-
dia permitir isso. Não queria deixar Andrew no escuro, mas o que dizer?
— Obrigado — disse, por fim. Não podia dizer que queria agradecer por
tudo: pelas chaves, pela confiança, pela sinceridade, pelos beijos. Com sorte,
Andrew viria a entender com o tempo. — Você foi incrível.
Falou apenas para que Andrew ouvisse, mas Allison, que estava perto, tam-
bém ouviu. Ela lançou um olhar enfático para Matt. Pelo canto do olho, Neil
percebeu, mas não tirou os olhos de Andrew para ver a reação do outro. Não
queria desviar o olhar, como se retribuir Andrew pudesse, de alguma forma,
fazer aquele momento durar. Então Wymack fez sinal para que saíssem, e
Neil não teve escolha a não ser virar as costas para seus companheiros de
equipe.
Saíram enfileirados do estádio, com Romero na frente e Jackson atrás. Neil
estava mais próximo da saída, logo atrás de Romero. Odiava estar tão perto
do homem de seu pai, mas gostava de pensar que seu corpo era um escudo
entre a crueldade de Romero e as Raposas, alheias ao que acontecia. Tentou
manter o olhar fixo nas costas de Romero, mas a todo instante procurava
por Lola em meio à multidão. Apenas metade dos torcedores havia voltado
para casa. O resto continuava ali, em uma festa pós-jogo nos gramados do
estádio. O cheiro de álcool era tão forte que Neil quase sentia o gosto.
Os torcedores das Raposas estavam alinhados ao longo do caminho e
aplaudiam a passagem do time. O som logo foi abafado por afrontas irrita-
das vindas do outro lado, onde estavam os torcedores dos Urso-gatos. As
Raposas ignoraram ambos e continuaram em movimento. Até Nicky foi es-
perto e ficou de boca fechada, sem querer irritar ainda mais os torcedores
exaltados, mas, no fim das contas, não adiantou nada. Estavam a meio cami-
nho do estacionamento, quando uma garrafa se aproximou voando do nada.
Os palavrões de Aaron logo atrás indicavam que ele tinha sido atingido, e
Andrew lançou um olhar mortal para a multidão. Em seguida, um sapato foi
arremessado, depois outra garrafa vazia de cerveja.
Mais policiais abriram caminho em direção à equipe, gritando por ordem e
apontando o dedo. Poderiam ter conseguido acalmar a multidão, mas a
próxima coisa a ser lançada foi a caixa térmica de alguém. Dan se esquivou
na hora certa e o objeto colidiu com um torcedor bêbado do lado das Rapo-
sas. Os amigos do homem gritaram furiosos e em um piscar de olhos toda a
multidão atrás deles os acompanhou.
Romero agarrou Neil pelo pulso, apertando com firmeza. Neil tirou o celu-
lar do bolso da calça jeans com a mão livre e o enfiou em um dos bolsos da
mochila protegido com rede. No mesmo instante, a tensão das pessoas che-
gou ao ápice. Estudantes e torcedores se atacavam, e as Raposas estavam en-
curraladas no meio. Corpos colidiram com Neil com força suficiente para
derrubá-lo, mas Romero o puxou para cima e para longe o mais rápido que
conseguiu. Neil largou a raquete e permitiu que sua mochila fosse arrancada
de seu ombro. Andrew e Kevin sabiam que ele jamais abriria mão de ambas
de bom grado. Não seria uma pista de para onde fora levado, mas eles sabe-
riam que não tinha sido escolha dele deixá-las ali.
Em algum lugar entre o tumulto e o estacionamento, Romero tirou o colete
refletivo. Assim que Neil sentiu os pés encostarem no chão, começou a lutar
para se afastar, mas Jackson estava logo ali. Ele puxou o braço de Neil para
trás com tanta força que quase o deslocou. Neil arfou com a dor repentina,
que se espalhou pelas costas.
— Vocês não vão sair impunes disso — protestou Neil, tenso. — Meus
companheiros de equipe vão perceber que não estou lá. Eles não vão sair de
Nova York sem mim.
— Eles vão estar ocupados por um tempo — comentou Romero. — Seu
treinador vai passar metade da noite tentando descobrir para qual pronto-
socorro vocês foram levados. Quando perceber que você não está lá, já vai
ser tarde demais.
Eles o empurraram no banco de trás de uma viatura rodoviária. Lola espe-
rava por ele. Neil a encarou em silêncio. Seu rosto havia envelhecido, mas
ele o reconheceria em qualquer lugar. O sorriso malicioso que curvava de-
mais sua boca, grande demais, ainda era o mesmo e, por instinto, Neil re-
cuou. A porta trancada e a grade protetora entre ele e os bancos dianteiros o
deixavam sem saída.
— O Júnior cresceu mesmo — comentou Lola, enquanto Romero e Jack-
son se sentavam nos bancos da frente. O tráfego estava intenso no campus
de Binghamton, mas Jackson ligou a sirene e dirigiu pelo acostamento. — Eu
não esperava por isso. Boatos de que você agora é uma estrela em ascensão?
Que mundo estranho é esse em que vivemos, né? Mas você não vai ter mui-
to tempo para se preocupar com isso.
Romero se virou no banco do carona e olhou pela grade.
— Você contou para eles?
— Tenho cara de burro? Óbvio que não — disse Neil.
Lola pressionou a unha do polegar na tatuagem na bochecha dele.
— Mas pelo menos um deles sabe, hein? Você não é o único marcado.
— Kevin se lembra de mim, mas é um pau-mandado dos Corvos. Sabe que
não pode abrir a boca.
— Espero que seja verdade. Sabe muito bem o que vamos fazer com eles se
você estiver mentindo — disse Lola.
— Passei oito meses com uma câmera na cara. Se eu tivesse contado para
alguém, vocês já teriam ouvido falar. Não precisariam disso para me rastre-
ar. — Neil gesticulou para o próprio rosto. — Vocês deram uma compensa-
ção ao Riko por intermediar isso?
Romero bufou com desdém.
— Fizemos uma ligação de cortesia para o tio dele pra avisar que estáva-
mos levando você.
Ser rejeitado com tão pouco-caso só fez com que Neil se sentisse pior. Ser-
viu apenas para alimentar a suspeita de que, no fim das contas, Riko não fo-
ra a mente por trás da mensagem de aniversário sangrenta nem da conta-
gem regressiva. Lola havia comentado que a audiência da condicional de
Nathan tinha sido naquele mesmo dia. Seu círculo sabia que ele seria libera-
do. Neil se perguntava se era por causa deles que Riko mantivera distância
das Raposas durante a primavera. Tetsuji teria alertado Riko para não cha-
mar a atenção para si mesmo enquanto os homens de Nathan estivessem à
solta? Tetsuji e Riko eram Moriyamas, mas não eram a família que os Wes-
ninski serviam e protegiam.
Lola sorriu.
— Ele ficou puto da vida, mas o que poderia fazer a respeito? Kengo não dá
a mínima pra você agora.
— Porque ele está doente — respondeu Neil; não era bem uma pergunta.
— Doente, ele diz — brincou Lola, e bateu com o lado do punho na grade
para se certificar de que o irmão tinha ouvido aquilo. — “Doente” é quando
você tem um resfriado ou uma IST, pivete. Isso não é “doente”, é o fim da li-
nha. Os rins pararam de funcionar. Dou no máximo uma semana para que o
Ichirou seja coroado como o novo rei supremo. Vou transmitir suas mensa-
gens de condolência e de felicitação. Você não vai estar vivo pra dizer por
conta própria.
“Falando nisso, é tradição minha dizer para as minhas vítimas o que plane-
jo fazer com seus pedacinhos”, comentou Lola, e passou a contar em deta-
lhes como desmembraria o cadáver dele.
Neil tentou não prestar atenção, mas não conseguia ignorar as palavras
cruéis. Usou toda a força que ainda lhe restava para impedir que sua fisiono-
mia transparecesse o medo que sentia. Não conseguia ficar com as mãos pa-
radas, mas pelo menos podia escondê-las nos bolsos. Não queria que Lola
percebesse que o afetava. Não era como se uma fachada corajosa fosse salvá-
lo, mas eles esperavam por aquele momento havia nove anos. O mínimo que
Neil podia fazer era privar-lhes de toda a satisfação possível.
Faltavam apenas alguns quilômetros até a I-81, e o carro que haviam esco-
lhido para o trabalho permitia que pegassem a interestadual a 150 quilôme-
tros por hora. Jackson ligava e desligava as luzes da polícia sempre que sur-
giam carros em seu caminho. Mesmo percorrendo a estrada a tal velocidade,
eram quase três horas de viagem da Universidade de Binghamton até Balti-
more.
Três quilômetros após chegarem a Maryland, eles pararam no acostamen-
to, atrás de um carro abandonado. Jackson permaneceu na viatura, mas Ro-
mero e Lola levaram Neil até o Cadillac. Ele foi empurrado para o banco do
carona. Romero apontou a arma para o rosto de Neil antes que ele sequer
cogitasse fugir. Tinha certeza de que deveria ser entregue vivo a Nathan,
mas a mãe o ensinara todos os lugares diferentes em que se poderia atirar
em alguém sem matar. Neil observou Lola prender os tornozelos dele no as-
sento e por pouco não cedeu à vontade de dar uma joelhada no rosto dela.
Lola se sentou no banco de trás, às costas de Neil, e puxou os braços dele
ao redor do banco. Ela o algemou, apertando com toda a força que tinha.
Assim que fechou a porta, Romero os guiou para a estrada de novo. Neil
mexeu as pernas um pouco, testando o quanto conseguia se mover, mas logo
foi distraído ao sentir o metal frio e afiado pressionado na ponta de seus de-
dos.
Cerrou os punhos por puro reflexo. Lola riu e enfiou o polegar no ponto de
pressão do pulso dele. Quando os dedos se abriram um pouco, ela deslizou a
lâmina entre os dedos e a palma da mão. Sentir a ponta da faca nos dedos o
fez abrir a mão de novo. Lola bateu com a ponta entre os dedos dela, forte o
bastante para que soasse como uma ameaça, mas sem cortar a pele. Em pou-
co tempo, cansou-se da provocação e fez um corte raso ao longo da base dos
dedos dele.
Neil puxou as algemas com força, tentando tirar as mãos do alcance dela,
mas o metal não cedeu. Por um momento ofuscante, lembrou-se das férias
de Natal em Evermore, e seu autocontrole já oscilante cedeu ainda mais.
— Para com isso.
— Vem me fazer parar — respondeu Lola, e fez um corte mais profundo
que ia da base do polegar à carne grossa da ponta. Então se dedicou a fazer
cortes em uma das mãos, fazendo-a arder por causa da dilaceração, depois
seguiu para a outra mão. Quando terminou, ela se ajeitou e enfiou o corpo
entre os dois bancos da frente. Traçou a tatuagem de Neil com a ponta da lâ-
mina. — Lemos tudo sobre sua rivalidade com Riko. Que atuação convin-
cente! Você poderia ter sido ator em outra vida. Me diz, você achou mesmo
que o fato de ele colocar uma coleira em você seria o bastante pra proteger
você da gente?
— Não importa.
— Importa, sim. Não posso levar você para o seu pai com essa mancha na
sua cara. Rome?
Romero estendeu a mão para o painel. Algo clicou quando ele o pressio-
nou, e Neil examinou a série de botões para tentar entender. Não era o rá-
dio, e nenhuma das luzes estava acesa para indicar que o aquecedor fora li-
gado. Só havia uma resposta possível, mas Neil se recusava a acreditar. Cair
em negação não mudaria os fatos: logo o acendedor de cigarros do painel se
soltou com um barulho metálico. Romero o pegou e o exibiu.
Neil se afastou dele com fervor.
— Vocês são doentes.
Lola apoiou o braço nas costas do banco dele para segurar a faca do lado
direito de seu rosto. A lâmina cortou uma linha fina como papel da boca até
o canto do olho. Após a advertência, Neil ficou imóvel e Lola pegou o acen-
dedor do irmão. Ela o girou para testar e o inclinou para que tanto ela quan-
to Neil pudessem ver a espiral lá dentro, vermelha e quente. Lola assentiu
em aprovação e abriu um de seus enormes sorrisos.
— O que você acha?
Neil pensou que estava a um fio de perder o controle.
— Acho que você pode ir tomar no cu.
— Não se mexa — disse ela, e pressionou o acendedor na bochecha dele.
Neil não teve como obedecer ao aviso. A dor dilacerante explodiu em seu
rosto, descendo afiada da mandíbula até a garganta e abrindo caminho até
seus olhos. O cheiro de pele queimada só piorou o tormento intenso, e Neil
não conseguiu se manter firme. O calor percorreu uma linha ameaçadora
até sua outra bochecha, fazendo-o recuar para a faca de Lola, à sua espera.
Parecia uma lembrança distante, miseras cócegas quando comparadas com a
dor infernal. Lola o seguiu quando ele recuou, fazendo com que o acendedor
ficasse no lugar, mas retirou-o um segundo depois para inspecionar sua
obra. Neil sabia que ela havia guardado o acendedor porque vira com os
próprios olhos, mas ainda sentia o metal e o fogo em sua pele. Cada segun-
do que passava tornava tudo pior, até que ele sentiu o estômago começar a
se revirar.
— Melhor — disse Lola, e cravou as unhas na pele esfolada apenas para fa-
zê-lo gritar de novo. — Não acha?
Neil não teve fôlego para responder. Sua respiração estava acelerada e su-
perficial, o ar parecia não chegar aos pulmões. Ele inspirava e expirava com
força e rápido o bastante para quase sufocar. Virou a cabeça para fugir do al-
cance dela, lembrando-se tarde demais da faca. Um segundo corte perfurou
sua bochecha, e Neil se apressou para se curvar para a frente. Não podia se
mexer muito com as mãos presas atrás do banco, mas precisava tentar. O
sangue escorria lento e constante por seu rosto, quente em seus lábios, e en-
tão descia do queixo e da boca até as coxas. Ele sentiu o gosto quando arfou
à procura de ar.
O acendedor fez outro estalido. O barulho soou como um tiro na cabeça de
Neil, que se retraiu.
— Sei que seu pai vai perguntar, mas preciso saber agora. Está ouvindo, Jú-
nior? Ei. — Ela bateu nas costas de Neil com o cabo da faca. — Cadê a mu-
lher, hein? Tivemos um tempinho para vasculhar desde que descobrimos
onde você estava, mas não vimos sinal dela em lugar nenhum. De acordo
com Tetsuji, você disse que ela estava morta. Ele tinha certeza de que você
estava falando a verdade. Mas eu tenho minhas dúvidas.
— Ela morreu — disse Neil, quase sem ar.
Lola agarrou um punhado de cabelo e o puxou para cima. Colocou a faca
de lado para poder segurá-lo com as duas mãos, usando uma delas para
apertar seu pescoço com tanta força que Neil mal conseguia respirar. Ela o
puxou para pressionar a cabeça dele contra o banco, prendendo-a no encos-
to. Romero pegou o acendedor de novo, e Neil se debateu, desesperado.
— Ela morreu — disse, quase ofegando sob o aperto brutal de Lola. — Ela
morreu faz dois anos, depois de ser espancada por ele em Seattle. Você acha
que ela teria permitido que eu fosse para Palmetto se ainda estivesse viva?
Assinei com eles porque não tinha mais nada.
— Será que a gente acredita nele? — perguntou Lola para Romero.
— É melhor se certificar — disse Romero.
— Verdade — concordou Lola, segurando Neil para que Romero encostas-
se o acendedor em seu rosto de novo.
Com as mãos de Lola o estrangulando, tudo que Neil conseguiu fazer foi
emitir um gemido de dor. Ele se debateu sob o aperto dela. Lola estava fa-
lando de novo, mas Neil não conseguia entendê-la por causa do rugido em
seus ouvidos. Seu mundo se reduzia ao fogo em seu rosto.
Romero guardou o acendedor, mas o empurrou até o fim para que voltasse
a esquentar. Lola afrouxou o aperto o suficiente para que Neil conseguisse
respirar, mas não o soltou por completo.
— Vamos tentar de novo, Júnior. Responde, mas dessa vez se esforça pra eu
acreditar em você. Cadê a Mary?
— Ela morreu. Ela morreu, morreu, morreu — respondeu Neil, a voz rouca
de dor.
Lola olhou para o irmão.
— Você acredita nele agora?
Romero deu de ombros, sem se comprometer. Lola observou Neil de novo,
então deu um tapa em seu rosto queimado com toda a força que tinha. Ela
se inclinou ainda mais para a frente entre os assentos para pegar o acende-
dor quando o aparelho terminou de aquecer, e voltou a se ajeitar no banco.
O fato de não dar para ver o aquecedor era ainda pior do que toda a dor que
já sofrera, e Neil lutou para soltar as mãos. Rasgou os pulsos ao se debater
no metal firme, mas não conseguia parar.
— Não. Lola, não — implorou ele.
— Tenho algumas perguntas — disse Lola, a voz estranhamente abafada.
Neil imaginou que estava segurando o cabo do acendedor entre os lábios,
porque usava as duas mãos para arregaçar as mangas dele. A mulher passou
as mãos por seus antebraços nus, com as unhas arranhando a pele de leve.
Um segundo depois, ela parou de tocá-lo, e sua voz soava normal ao falar: —
Vamos começar com seus companheiros de equipe de novo. Quero saber tu-
do que você contou para eles.
O tempo parou enquanto Lola queimava sem parar os braços de Neil. Ele
se agarrou a uma versão da verdade que protegeria as Raposas, mas não im-
portava quantas vezes repetisse, ela não pararia. Por fim, ele não respondeu
mais, com medo de deixar algo escapar em meio à dor e ao pânico, e usou
toda a pouca energia que tinha para respirar. Cada careta e grito silencioso
fazia as queimaduras em seu rosto se repuxarem, e lágrimas salgadas eram
ácidas nas bochechas dilaceradas.
Não queria pensar naquilo, não queria sentir, então se lembrou das Rapo-
sas. Se agarrou às lembranças da amizade resoluta e dos sorrisos de cada um
deles. Fingiu que os batimentos de seu coração, que sentia em um ritmo do-
entio nas têmporas, eram uma bola de Exy quicando nas paredes da quadra.
Pensou no apoio de Wymack em dezembro e em Andrew o puxando para o
chão do quarto. As lembranças o faziam se sentir fraco por causa da sensa-
ção de luto e perda, mas também o tornavam mais forte. Quando chegara à
Toca das Raposas, não passava de um monte de mentiras, mas seus amigos o
tinham ajudado a se tornar alguém de verdade.
Sua vida chegaria ao fim antes do que esperava, e Neil não tinha conquista-
do tudo o que desejava conquistar naquele ano, mas fizera mais do que ima-
ginava ser possível. Isso teria que bastar. Traçou o contorno de uma chave
na palma ensanguentada e queimada com um dedo trêmulo, fechou os
olhos e se despediu de Neil Josten.
Lola finalmente parou e o deixou lidar com a dor e a falta de movimento.
Ela disse alguma coisa, mas ele não conseguiu entender por causa do zumbi-
do em seus ouvidos; mas não se importava. Sua reação natural sempre fora
lutar ou fugir, mas de repente atingira uma parede de tijolos a ponto de que-
brar todos os ossos do corpo. Restava apenas uma opção, e Nathaniel Wes-
ninski permitiu que os últimos quilômetros passassem despercebidos. Cata-
logou cada ponto latejante em seu corpo, organizando-os mentalmente de
acordo com a gravidade. Os ferimentos mais graves eram os do rosto, mas as
feridas que Lola fizera em suas mãos eram as mais inconvenientes. Seria di-
fícil lutar quando até mesmo o menor movimento de dedos fazia as mãos
doerem.
Eles pararam no estacionamento de um hotel barato. Apenas metade das
lâmpadas externas funcionava. Nathaniel apostaria que as câmeras de segu-
rança também estavam desativadas. Olhou pela janela e esperou o que viria
a seguir.
O que veio foi um carro da polícia, que parou ao lado. Nathaniel não reco-
nheceu o oficial com aparência jovem que saiu pelo lado do carona nem o
mais experiente, que contornou o capô alguns segundos depois. O homem
mais velho fez um gesto e o mais jovem foi abrir o porta-malas. Romero des-
ceu do carro para trocar algumas palavras tranquilas com os dois. Ele assen-
tiu satisfeito e abriu a porta do carona. Soltou as algemas que prendiam os
tornozelos de Nathaniel apenas para libertá-lo do banco. Assim que o metal
se fechou de novo, Lola cuidou das algemas que prendiam seus pulsos. Ro-
mero o arrancou do carro pela camisa e prendeu suas mãos de novo.
Nathaniel lançou um olhar frio para os policiais, que o estudavam com
nítido interesse e nenhum remorso.
— Quanto que os capangas do meu pai pagam para vocês quebrarem seus
juramentos?
— Mais do que o estado paga. Não leve pro pessoal — respondeu o policial
mais velho.
— Eu preciso. É a minha vida em jogo — disse Nathaniel, a voz rouca de
dor e ódio.
A única coisa no porta-malas era uma pequena caixa de ferramentas, então
havia muito espaço para ele. Não conseguia entrar amarrado daquele jeito,
mas os policiais ajudaram Romero a levantá-lo. Lola pegou a arma oferecida
pelo irmão e subiu junto. Ela se acomodou perto do corpo espancado dele,
segurando-o mais para perto, colocando o dedo no gatilho da arma em ad-
vertência. Nathaniel respondeu ao sorriso dela com um olhar vazio.
— Tudo tranquilo — comentou Lola, e Romero trancou o porta-malas.
Quando o breu que ameaçava engoli-lo por inteiro se instaurou, Nathaniel
fechou os olhos. Lola sorriu, encostada em sua bochecha, e mordeu as quei-
maduras dele. Passou uma das pernas por cima do rapaz, enganchando o
salto do sapato em seus tornozelos. — Você bem que seria meu tipo se não
fosse tão jovem, hein? É tão parecido com seu pai.
Ela rebolou os quadris contra os dele em um convite, e Nathaniel sentiu
um arrepio gelado.
— E você parece uma puta decadente.
— Ainda se fazendo de durão. — Ela parecia admirada, não insultada, e ar-
ranhou com força seus braços feridos. — Mas não por muito tempo.
Os policiais entraram e fecharam a porta com um baque. Ao saírem do es-
tacionamento, o mundo balançou sob eles. Nathaniel contou oito paradas
até os policiais começarem a falar. Não conseguia entender as palavras atra-
vés do espesso estofado do banco de trás, mas instantes depois as sirenes fo-
ram ligadas e eles aceleraram o carro.
— Ops —murmurou Lola em seu ouvido. — Parece que aconteceu um in-
cidente na casa do seu pai. Talvez seja fruto de vandalismo de bandidos que
não querem que ele volte para a vizinhança, imbecis que acreditam na teoria
da conspiração de que ele matou sua amada esposa e seu amado filho.
— Pessoas que você pagou para criar um tumulto hoje à noite, né? Para a
polícia poder ir até lá sem levantar suspeitas.
— Dez pontos pro Júnior.
A casa em que Nathaniel crescera tinha cinco quartos e ficava no bairro de
Windsor Hills, alguns quilômetros a noroeste do centro de Baltimore. Aos
olhos da vizinhança, Nathan era um ex-corretor de ações bem-sucedido que
desistira do cargo para investir em negócios na cidade. Suas taxas de juros
eram exorbitantes, mas ele nunca recusava um pedido. Não importava quem
pedisse nem qual fosse a quantia. Se uma empresa não pudesse reembolsá-lo
dentro do prazo solicitado, ele simplesmente a comprava e seguia em frente.
Até onde se sabia, ele tinha uma dúzia de negócios de ramos variados e
acordos com outros tantos. Essa fachada permitia que fosse a qualquer lugar
da cidade que precisava, mas também explicava por que podia ficar em casa
por semanas a fio. Os federais investigaram as propriedades de Nathan mais
de uma vez, mas ele era esperto demais para usar as empresas registradas em
seu nome para fazer seus negócios verdadeiros.
Nathaniel sabia que estavam se aproximando por causa do barulho. As lu-
zes da polícia sempre atraíam uma multidão interessada. Isso queria dizer
duas coisas: fosse lá o que tivesse acontecido com a casa havia sido grandio-
so a ponto de atrair a atenção da vizinhança, e aqueles não eram os primei-
ros policiais a chegarem ao local. Se os federais estivessem na cola de Na-
than, teriam muitos corpos para vigiar naquela noite.
O carro balançou um pouco nas ruas sinuosas até a casa. Quanto mais su-
biam, mais silencioso ficava, pois os curiosos ficavam para trás a fim de per-
mitir que a polícia trabalhasse. A tensão fazia o caminho até a entrada pare-
cer eterno, mas enfim o carro parou. Portas bateram atrás dos dois policiais
enquanto saíam para investigar. Nathaniel esperou que Lola fizesse um mo-
vimento, mas, ao que tudo indicava, ela estava contente em ficar ali mais um
pouco.
Por fim, o celular dela tocou. A mulher estendeu a mão sobre Nathaniel pa-
ra mexer em algo. A caixa de ferramentas, ele adivinhou ao ouvir um clique
de metal se abrindo. Houve um barulho de plástico, e Lola se apoiou em um
cotovelo em frente a ele.
— Se você resistir, eu vou cortar suas pernas na altura dos joelhos.
Ser sarcástico só pioraria as coisas, então Nathaniel disse, entredentes:
— Anda logo.
O cheiro doce e enjoativo que encheu o carro fez seu estômago se revirar, e
seus instintos mais selvagens gritavam para que resistisse. Nathaniel ficou
parado e permitiu que ela colocasse um pano encharcado sobre seu nariz e
sua boca. A dormência começou na ponta dos dedos e logo se espalhou por
todo seu corpo. Ele ouviu a porta de um carro abrir e pensou que alguém es-
tava abaixando o banco de trás, mas não conseguiu ficar consciente por
tempo o bastante para confirmar.
— Anda — disse Lola, a voz nasalada ao apertar o nariz.
E então o mundo se dissolveu.
Ele recuperou a consciência aos poucos. Tinha noção da pedra fria contra
sua bochecha e via as mãos, livres das algemas e apoiadas em frente a seu
rosto, mas nada disso tinha importância. Lola fizera cortes entrelaçados nas
costas de suas mãos e queimara os nós dos dedos com círculos raivosos. Ha-
via outra marca de queimadura na carne macia entre o polegar e o dedo in-
dicador. As queimaduras começavam a supurar, mas o sangue seco segurava
parte do problema. No vago minuto que levou até que sua mente se lembras-
se de toda a dor que o corpo sentia, Nathaniel se pegou chocado com a cru-
eldade de Lola.
Resmungou e se sentou com cuidado. Estava no porão, o que significava
que tinham entrado pela garagem. Havia um túnel subterrâneo ligando os
dois, instalado com o único objetivo de mover os cadáveres quando necessá-
rio. Fora por ali que Nathaniel e a mãe haviam escapado nove anos antes.
Nada mais apropriado do que voltar para casa pelo mesmo caminho.
Lola estava no meio do aposento. Havia virado uma cadeira de madeira e
se sentado com as pernas abertas. Um dos braços estava dobrado no espal-
dar fino, e o outro pendia inerte ao seu lado. Ainda segurava a arma de Ro-
mero, com o dedo próximo do gatilho. Quem quer que a tivesse ajudado a
tirar Nathaniel do carro já se fora havia muito tempo. Um dos policiais,
imaginou ele, que teve de voltar ao caos do lado de fora para manter as apa-
rências.
— Vai pra algum lugar? — perguntou Lola.
Nathaniel brandiu as mãos.
— Isso aqui vai infeccionar se eu não limpar logo.
— Eu não me preocuparia com isso se fosse você.
— Mas você não sou eu — disse Nathaniel, e se levantou.
Uma pia industrial fora construída na parede oposta. Não havia espelhos.
Apesar de ficar feliz por não ver o próprio rosto, pensou que aquilo poderia
ter tornado a situação mais fácil. Lavou as mãos primeiro, sibilando com os
dentes cerrados. A dor era tanta que ele quis parar, mas se obrigou a esfregar
água com sabão nas queimaduras. Ao esfregar o rosto com as mãos molha-
das, seus dedos tremiam e o estômago se revirava devido à náusea provoca-
da pela dor. Não tinha nada com que se secar depois, pois suas roupas esta-
vam sujas de suor e manchas de sangue, então estendeu os braços ao ar.
— Quanto tempo ainda vai demorar? — perguntou Nathaniel.
— A espera ou até sua morte? — retrucou Lola. — Esse último pode demo-
rar um pouco. Não costuma ser o estilo dele, mas você nos causou tantos
problemas e custou tanto dinheiro que acho que ele vai querer abrir uma ex-
ceção.
— Vocês podiam ter deixado a gente ir embora.
— Para de bobagens, moleque.
Nathaniel se sentou para esperar. Demorou uma hora até que a polícia ter-
minasse de colher as declarações dos seguranças de Nathan e fotografar as
evidências do vandalismo. Ele soube que os policiais finalmente tinham ido
embora quando uma porta se abriu no topo da escada. Lola ficou de pé em
um piscar de olhos. O coração de Nathaniel disparou, mas, com o olhar in-
teressado de Lola sobre ele, não podia se dar ao luxo de demonstrar seu me-
do. Com a expressão mais calma que conseguia, assistiu à morte descer as
escadas e ir em sua direção.
O pai não envelhecera nem um pouco após passar dois anos atrás das gra-
des. Para além de ter perdido alguns quilos, Nathan Wesninski parecia o
mesmo de sempre. A casa era uma demonstração extravagante da sua rique-
za, mas ele não perdia seu tempo se arrumando. Não via a necessidade de
usar roupas chiques porque gostava de sujar as mãos no trabalho. Desceu as
escadas descalço, vestindo jeans cinza escuro e uma camisa preta de botão.
Quando chegou ao patamar, as mangas estavam arregaçadas até os cotovelos
e as mãos, enfiadas nos bolsos. Os olhos, azuis e frios, pousaram em Natha-
niel, que precisou desviar o olhar.
Não que fosse mais seguro olhar para Lola, mas Nathaniel não queria ver o
monstro que acompanhara Nathan até o porão. Patrick DiMaccio era o
guarda-costas de Nathan. Ele se comportava como se fosse capaz de enfren-
tar metade do mundo usando apenas as mãos, a conduta arrogante sustenta-
da pelos 136 quilos de músculos à base de esteroides. Nunca encostara a
mão em Nathaniel ou Mary, talvez por saber que poderia matar ambos com
um único soco impensado, mas Nathaniel sabia o quanto era perigoso. Era
leal até a morte a Nathan, que confiava no guarda-costas sem pestanejar.
Durante a ausência do pai de Nathaniel, DiMaccio fora o encarregado de
manter o círculo unido.
— De pé — ordenou Nathan. O som de sua voz foi o bastante para que o
estômago de Nathaniel se transformasse em geleia. — Sabe muito bem que
não deve ficar sentado na minha presença.
Nathaniel disse a si mesmo para ficar parado, mas já estava se levantando.
Lola riu ao vê-lo obedecer com tanta facilidade e circulou a sala para se po-
sicionar atrás de Nathaniel.
— Olá, Júnior — cumprimentou Nathan.
A mandíbula de Nathaniel travou. Ele não ousou falar; não sabia o que di-
zer. Nathan atravessou a sala em direção ao filho, que precisou de todas as
suas forças para se manter firme. Nathan parou à sua frente, tão perto que
Nathaniel podia sentir o cheiro de colônia. Ele olhou para o primeiro botão
da camisa do pai como se pudesse de alguma forma salvá-lo de tudo aquilo.
A mão de Nathan pousou em seu ombro, em um gesto que parecia tran-
quilizador, mas que não era. Por mais que se preparasse para o golpe inevitá-
vel, os joelhos de Nathaniel se dobraram quando Nathan deu um soco nas
queimaduras em suas bochechas. Nathan o segurou pelo pescoço antes que
ele caísse. Nathaniel se engasgou e se remexeu para ficar em pé de novo. Sa-
bia que não deveria agarrar o pai para tentar se equilibrar. Tinha plena cons-
ciência do que o pai faria se o tocasse.
— Eu disse olá — protestou Nathan, quando Nathaniel estava em pé de no-
vo.
A boca de Nathaniel se moveu, sem que nenhum som fosse emitido. Preci-
sou tentar mais duas vezes para conseguir dizer, em voz baixa:
— Olá.
— Olha pra mim quando eu estiver falando com você.
Nathaniel sentia que o grito que tentava abafar estava prestes a rasgar sua
garganta, mas se forçou a olhar para o rosto de Nathan.
— Meu filho. A maior decepção que já tive. Onde está minha segunda mai-
or decepção?
— Minha mãe morreu. Você a matou. Não lembra?
— Eu me lembraria — respondeu Nathan. — Teria saboreado a lembrança
enquanto contava os dias até encontrar você de novo.
— Você acabou com ela. Ela só conseguiu sobreviver até a fronteira com a
Califórnia.
Nathan ergueu o olhar sombrio de Nathaniel para Lola, que disse:
— Eu acredito nele.
Nathan assentiu, aceitando o julgamento dela, e segurou o rosto machuca-
do de Nathaniel. Apertou com tanta força que o filho pensou que os cortes
iriam se abrir ainda mais. Ergueu as mãos por instinto, deixando de tocar no
pai no último segundo possível. Nathan abriu um sorriso discreto ao vê-lo
escapar por um triz e o sacudiu com tanta força que seu pescoço estalou em
protesto.
— Quem foi que disse pra você que se esconder de todo mundo era uma
boa ideia? Não é possível que não soubesse que eu ia acabar encontrando
você.
— Você devia ter me deixado ir. Você me vendeu. Eu não era mais proble-
ma seu.
— A transação nunca foi finalizada. Tetsuji não concordou em ficar com
você porque você não ficou o bastante para convencê-lo. Isso quer dizer que
você ainda me pertence. Você me fez parecer um mentiroso para pessoas a
quem não se deve mentir. Sabe o que vou fazer com você?
“Eu mesmo ainda não tenho certeza”, acrescentou Nathan, quando Natha-
niel se limitou a encará-lo, entorpecido. “Tive alguns anos para pensar a res-
peito, mas agora que a hora chegou, estou indeciso. Talvez possa esfolar você
vivo. Pode ser que o desmembre um centímetro por vez e cauterize as feri-
das. Acho que independentemente de qual for a escolha, vamos começar
cortando os tendões das suas pernas. Você não vai fugir dessa vez, Nathani-
el, porque eu não vou deixar.”
— Vai se foder — disparou Nathaniel, ríspido e com a voz aguda de horror.
Nathan o empurrou para longe e estendeu a mão. DiMaccio atravessou a
sala. Em uma das mãos, ele segurava o velho machado de Nathan, com o
corte já cego, e na outra, o cutelo. Quando DiMaccio se aproximou e Nathan
considerou as armas com interesse, Nathaniel se virou, aproveitando a dis-
tração para tentar fugir, mas Lola já estava à espera. Ela pulou nele por trás e
passou os braços a seu redor. Não poderia segurá-lo para sempre, mas não
precisava. Conseguiu atrasá-lo o suficiente para que DiMaccio pudesse esco-
lher uma das armas e passar por Nathan.
Ele ergueu Nathaniel do chão, puxando-o pela camisa, indiferente aos pu-
nhos que tentavam acertá-lo. Lola se soltou e deu um passo para trás com
cuidado, e DiMaccio jogou Nathaniel contra a parede mais próxima. O im-
pacto o fez perder o ar e cair desajeitado no chão. Ele usou as mãos para se
segurar, um erro terrível, mas não tinha fôlego para gritar. Estava tão tonto
que se sentia nauseado, mas a movimentação que percebeu pelo canto dos
olhos o fez se mover também. O metal brilhou a poucos centímetros de seu
rosto antes de Nathan acertar o golpe. Aterrorizado, Nathaniel ficou de pé o
mais rápido que seu corpo permitiu e recuou perante a machadinha do pai.
Nathan não o perseguiu. Balançava a machadinha, experimentando, como
se estivesse se familiarizando com seu peso, e testou a lâmina contra o pole-
gar.
O instrumento devia ter sido afiado havia pouco, porque o sangue jorrou
quase de imediato.
Nathaniel sentiu o último ímpeto de coragem se esvair. Não conseguiria
passar por Nathan e DiMaccio, então teria que se arriscar com Lola, que es-
tava armada com uma faca e o revólver. Ele girou e correu em direção à mu-
lher. O sorriso selvagem em seu rosto demonstrava que ela já esperava essa
resistência, então se preparou para a colisão inevitável, com a faca em pu-
nho e pronta para causar todos os ferimentos possíveis. Golpeou assim que
ele se aproximou. Nathaniel desviou da lâmina, quase torcendo o tornozelo
por causa da velocidade. Um segundo depois, a arma de Lola estava em seu
rosto, e mesmo sabendo que ela não poderia puxar o gatilho, ele tentou se
esquivar.
Ela investiu contra ele, a faca pronta para tentar outro golpe, e Nathaniel
deu um soco em seu pescoço. Mal conseguiu ouvir o som terrível que ela
emitiu ao se asfixiar, devido à dor crepitante nos ouvidos. Cada corte e quei-
madura em suas mãos ardiam em protesto. Ele cerrou os dedos com mais
força e deu outro golpe. Lola se esquivou, mas por pouco, e a lâmina que
raspou no peito dele deixou um rastro quente. Nathaniel estava entre ela e a
porta, e ergueu a barra para destrancá-la. Lola o agarrou pelo cabelo para
impedi-lo, mas Nathaniel não se importava com quantos fios perderia.
Avançou mesmo assim, recusando-se a soltar a maçaneta.
— Sai da frente — disse Nathan logo atrás deles.
Ele falava com Lola, mas Nathaniel também se jogou para o lado. A ma-
chadinha do pai acertou o local exato em que ele estivera parado. O metal
rangeu quando a porta foi arranhada, e Nathan olhou irritado para o filho
caído. Nathaniel cambaleou para trás, a esperança o abandonando por com-
pleto. Nathan se aproximou, cansado de brincar de gato e rato. Nathaniel
tentou se levantar, mas o golpe de uma bota em seu peito o fez cair de novo.
Um soco no rosto acabou com qualquer outra tentativa de fugir e, então,
Nathan se sentou em cima dele, com a machadinha encostada no pescoço
do filho.
DiMaccio veio por trás, entregando o machado a Nathan. Ele o apoiou no
pescoço de Nathaniel para usar a machadinha para esculpir linhas rasas no
rosto queimado de Nathaniel.
— Talvez eu faça as duas coisas — comentou ele, tão descontraído como se
falasse do tempo no dia seguinte. — Esfolar um ou dois centímetros por vez,
cauterizando a carne embaixo. Se fizermos do jeito certo, você pode durar a
noite toda. Patrick, peça para eles trazerem o maçarico. Ainda deve estar na
gaveta perto do forno.
— Não — implorou Nathaniel, mas DiMaccio foi até a base da escada para
gritar.
— Lola — exclamou Nathan, e a mulher se posicionou de imediato ao lado
dele. Não estava mais sorrindo. O olhar que lançou para Nathaniel era vene-
noso, e ela pressionou os dedos com cuidado em seu pescoço machucado.
Nathaniel queria ter alguma satisfação por tê-la ferido, mas tudo o que sen-
tia era medo. Nathan não tirou os olhos do rosto do filho, mas disse: — Você
gostaria de ter o prazer de aleijá-lo?
— Não — implorou Nathaniel de novo, mas Lola se agachou, sumindo do
campo de visão.
Nathaniel chutou as pernas para longe dela. O machado não era afiado o
bastante para abrir sua garganta sem um grande esforço, e ele ignorou o pe-
so que o fazia engasgar para lutar tanto quanto podia. Nathan tolerou até
que Nathaniel de fato o agarrasse; então, apoiou a machadinha na ponta do
nariz de Nathaniel.
— Se você não ficar quieto, vou arrancar seus olhos.
Nathaniel congelou, mas tremia tanto que era quase impossível que o pai
não estivesse tremendo também.
— Por favor — sussurrou ele, sem conseguir se conter. — Por favor, não.
— Posso? — perguntou Lola, voltando a se animar.
— Vamos cortar seus tornozelos, depois seus joelhos — disse Nathan. — E
se você tentar rastejar para longe, vou arrancar seus braços também. Enten-
dido?
DiMaccio estava de volta. Colocou o maçarico ao lado de Nathan. Natha-
niel queria gritar, mas se o fizesse, perderia o controle e não conseguiria pa-
rar. Seus olhos ardiam, talvez por causa do sangue, talvez por causa do pâni-
co reprimido pelo desespero. Ele se agarrou ao que restava de seu autocon-
trole com a ponta dos dedos ensanguentadas, sabendo que não adiantaria de
nada, mas incapaz de desistir.
— Por favor. Me deixa ir embora, me deixa ir embora, eu não… — implo-
rou mais uma vez
— Lola — disse Nathan, mas não conseguiu terminar.
A porta do porão se abriu pelo lado de fora e um enxame de estranhos en-
trou atirando. Silenciadores ajudaram a abafar um pouco o som, mas em um
espaço tão fechado, Nathaniel ainda sentia cada estalo como uma mordida.
Lola era a mais próxima da porta, e seu corpo estremeceu conforme as balas
abriam buracos. Nathan desapareceu, puxado por DiMaccio para uma segu-
rança débil. Nathaniel tentou ficar parado, sem querer chamar a atenção pa-
ra si mesmo, mas olhou para o pai enquanto mais pessoas entravam na sala.
Seu pai estava completamente protegido pelo corpo enorme de DiMaccio e
gritava para que seus homens fossem ajudar. Os capangas desceram as esca-
das de concreto correndo, mas a rajada interminável de tiros abafou os pas-
sos. Alguém agarrou Nathaniel e o arrastou para longe do pai. Nathaniel
atacou por instinto, mas aquele que o segurava não revidou. Ele foi jogado
em um canto e deixado ali.
Com tantas balas voando, ficar parado parecia a melhor atitude a se tomar.
Nathaniel encolheu o corpo machucado ao máximo e usou os braços late-
jantes para proteger a cabeça. Uma eternidade se passou antes que a casa
voltasse a ficar quieta e silenciosa. Nathaniel abaixou os braços devagar e
olhou em volta.
Nathan estava ajoelhado no meio da sala com quatro armas apontadas para
sua cabeça. Fez menção de se levantar, mas alguém o derrubou com a coro-
nha de um rifle. Nathan respondeu com um rosnado ininteligível. Um dos
homens que vigiavam a porta assobiou para dentro do túnel, e passos ecoa-
ram fracos pelo corredor.
Um homem entrou na sala, e Nathaniel parou de respirar. Reconheceria
aquele rosto em qualquer lugar. Nove anos haviam cobrado seu preço em
Stuart Hatford, mas Nathaniel ainda via a mãe no rosto envelhecido dele.
Stuart respondeu à carranca de Nathan com um olhar glacial. Estava com a
arma apontada para Nathan, mas uma mulher o interceptou e apontou com
o queixo na direção de Nathaniel.
Stuart olhou na direção que ela apontava e sua fúria deu lugar à surpresa.
— Puta merda. Nathaniel? — perguntou ele, mas Nathaniel estava atordoa-
do demais para falar e conseguiu apenas assentir de leve. Stuart apontou a
arma na direção de Nathan, mas manteve o olhar fixo no sobrinho. — Cadê
a Mary? — Nathaniel não conseguiu falar, então balançou a cabeça. A ex-
pressão de Stuart se fechou; o vislumbre de esperança desaparecendo tão
rápido quanto surgiu. — Não olhe. Isso vai acabar em um segundo.
— Como você ousa? Você desafiou Moriyama ao vir aqui e matar meus ho-
mens. Você é um homem morto. Não tem o poder de… — disse Nathan, fe-
roz.
Stuart não o deixou terminar. O corpo de Nathan estremeceu quando duas
balas abriram buracos em seu peito. Nathaniel assistiu, com os olhos arrega-
lados e incrédulo, enquanto o sangue salpicava a garganta do pai e escorria
pela camisa, manchando a calça jeans. O corpo caiu para trás com a força do
impacto e atingiu o chão com um baque molhado.
Nathaniel levou a mão trêmula à boca, então apertou a outra sobre ela. Não
foi o suficiente para sufocar a sensação.
— Eu disse pra você não olhar — ressaltou Stuart.
A sensação tenebrosa que o inundava não era luto, mas uma necessidade
tão feroz que Nathaniel achava que iria matá-lo. O mundo desmoronava ao
seu redor, e ele caía junto. Não conseguia respirar, muito menos explicar
aquela euforia aterrorizante. Não lutou quando dois dos homens de Stuart o
levantaram.
Stuart atravessou a sala para encará-lo. Nathaniel olhou além dele, para o
cadáver do pai. A mão de Stuart em seu queixo o obrigou a voltar sua aten-
ção para o tio. Stuart o analisou com atenção, verificando seus ferimentos
com um olhar furioso.
— Ele pode ir comigo — disse uma das mulheres.
— Ele é nosso único jeito de sair dessa situação — respondeu Stuart. — Va-
mos deixá-lo aqui. Por enquanto — acrescentou, antes que Nathaniel reagis-
se. Ele apertou os dedos com mais força no rosto de Nathaniel e sacudiu de
leve. — Você vai me ouvir e fazer exatamente o que eu disser. Eles só nos
deixaram vir aqui sem colocar empecilhos porque prometemos que o pega-
ríamos vivo.
Nathaniel por fim conseguiu falar.
— Os Moriyama?
— Não — disse Stuart, com tanta rispidez que Nathaniel recuou. — Não
diga esse nome hoje. Você não pode meter eles nisso. Não esperavam que o
Açougueiro deles fosse morrer e temos pouco tempo para cair nas graças
deles. Vamos entregar você para o FBI como uma distração. Você precisa de
cuidados médicos e ainda não podemos levá-lo para onde precisamos ir. Só
assim você vai conseguir sobreviver. Entendeu?
O pai estava morto. Nathaniel concordaria com qualquer coisa naquele
momento.
— Não vou contar para eles.
Stuart assentiu.
— Então vamos embora.
Eles o ajudaram a descer pelo túnel até a garagem. As escadas eram perigo-
samente íngremes e estreitas, e a abertura no topo mal dava para um ho-
mem passar. O pessoal de Stuart desapareceu pela porta aberta da garagem
rapidamente, mas Stuart ficou para trás por um momento. Nathaniel olhou
para a escuridão, à procura dos federais que deviam estar observando tudo
aquilo a uma distância segura. Por enquanto a rua estava calma e vazia, mas
não havia como os vizinhos terem perdido o tiroteio. Em um minuto, talvez
dois, o bairro estaria fervilhando de policiais e imprensa mais uma vez.
Stuart o fez ficar de joelhos e colocou as mãos atrás da cabeça do sobrinho.
— Vamos voltar para te buscar assim que der. Prometo.
Então ele desapareceu na noite atrás de sua equipe. Nathaniel ficou de joe-
lhos e baixou a cabeça para esperar. Não demorou muito. Os federais surgi-
ram das sombras como fantasmas, com as armas em punho e vestidos da ca-
beça aos pés com roupas táticas. Nathaniel era pequeno demais para ser seu
pai, mas a escuridão ajudava a criar aquela ilusão. Não perceberam que ha-
via algo de errado até que o levantaram com mãos ásperas e vozes estriden-
tes. Nathaniel por fim ergueu a cabeça para encará-los, e o agente mais
próximo parou no meio da frase.
— Vocês estão atrasados — disse Nathaniel, enquanto alguém enviava um
rádio para o serviço de emergência. — Meu pai está morto.
— Seu pai — disse o agente, sem entender. Seis homens dispararam pelo
buraco tão rápido que quase caíram, e Nathaniel ouviu as botas ecoarem pe-
las paredes do túnel enquanto corriam para verificar a casa. Não percebeu
que olhava para a abertura até que o agente estalou os dedos com luvas em
frente a seu rosto. Nathaniel retribuiu o olhar perscrutador com frieza, e o
homem repetiu: — Seu pai?
— Meu nome é Nathaniel Wesninski, e meu pai está morto.
Não tinha graça alguma, mas um segundo depois ele estava rindo. Parecia
histérico, mas não conseguia parar. Mãos agarraram seus ombros e empur-
raram sua cabeça para baixo. Uma voz rouca ordenou que respirasse, mas
Nathaniel não conseguia. Ele agarrou os joelhos para se equilibrar. A dor su-
biu por suas mãos machucadas, atravessando os braços, mas ele não conse-
guia parar. A adrenalina de um tiroteio inesperado e o alívio de estar vivo o
despedaçavam, e Nathaniel por fim perdeu a batalha contra o estômago ins-
tável. Alguém o segurou enquanto ele vomitava no chão de concreto. Natha-
niel cuspiu em uma tentativa vã de tirar o gosto amargo da boca.
A mão em seu ombro apertou.
— Devido ao seu estado, prefiro não algemar você, mas vou fazer se for
preciso. Você vai nos causar problemas?
Nathaniel se esforçou para olhar para cima e se concentrar no rosto do ho-
mem.
— Eu sou um problema há dezenove anos. Estou muito cansado para ser
um hoje. Só me tira daqui.
Uma ambulância parou no meio-fio. Chegou tão rápido que Nathaniel
achou que devia estar esperando na rua, fora do campo de visão de todos.
Apesar de ter afirmado que não causaria problemas, foi escoltado por três
agentes até os paramédicos. Quando ele chegou, a maca já estava na rua, e
Nathaniel se deitou sem falar mais nada. Eles o prenderam à estrutura para
o trajeto e o colocaram na parte de trás. Um agente foi junto; Nathaniel pre-
sumiu que outros viriam. Não se importava mais. Fechou os olhos e deixou
o paramédico começar a trabalhar.
Neil sabia que falar com o FBI não seria fácil, mas não esperava que fosse
tão cansativo. Passou o resto do sábado e todo o domingo enfiado no escri-
tório deles. O único momento em que Andrew e Neil se separavam um do
outro era quando alguém ia verificar os ferimentos de Neil, e os dois nunca
eram deixados sozinhos um com o outro. Os agentes levavam comida para
que não tivessem que sair do prédio, os escoltavam para que fossem e voltas-
sem do banheiro e arrumaram camas de lona para que ele e Andrew pudes-
sem dormir ali, sob vigilância.
Em troca dessa hospitalidade bastante duvidosa, Neil contou tudo. Come-
çaram pela ligação de Lola e passaram pelo tiroteio. Neil forneceu todos os
nomes que podia. Quase tão importante quanto quem havia morrido era fa-
lar de quem sobrevivera. Romero e Jackson não haviam estado na casa. De-
pois, falaram sobre a infância de Neil e todas as coisas terríveis que ele vive-
ra.
Depois de vasculharem a memória de Neil à procura de tudo o que ele sa-
bia sobre o pessoal do pai e golpes que tivera ciência, seguiram para o para-
deiro de Neil durante os sete anos entre Baltimore e Millport. Ele repassou
com os agentes todos os pseudônimos que já tivera e todos os lugares em
que morara, mas se recusou a revelar os contatos da mãe. Alegou que não
sabia de nada por ser jovem demais na época, e após fazerem a mesma per-
gunta de vinte formas diferentes, os agentes acabaram por desistir. Neil ex-
plicou onde o pessoal do pai os encontrou, os lugares em que Nathan apare-
cera em pessoa em seu encalço, e finalizou com a morte da mãe.
Em determinado momento, foi preciso mencionar os Hatford, e a conversa
assumiu um tom mais cauteloso. O FBI não podia admitir quaisquer acor-
dos que tivesse feito, e Neil não tinha como provar nada. Portanto, se con-
centraram nas informações sobre Stuart desde sua juventude. Neil não tinha
muito a oferecer, mas o pouco que contou representou a virada de chave no
modo como alguns dos agentes o viam. Até àquela altura da conversa, julga-
vam que ele era apenas o filho de Nathan. Descobrir que optara por uma vi-
da em fuga a viver confortavelmente com outra família do crime fez com
que ganhasse pontos com mais de um dos agentes federais.
O Programa de Proteção a Testemunhas foi mencionado mais duas vezes
no domingo, mas Neil se recusou. Fornecera todas as informações de que o
FBI precisava para construir um caso sólido e estava disposto a testemunhar
se conseguissem levar o pessoal de Nathan a julgamento. Até lá, queria con-
tinuar como estava. Se fosse inscrito no programa contra sua vontade, sim-
plesmente tiraria a coleira que os federais tentariam colocar nele e voltaria
para Palmetto State. Andrew disse que as Raposas nunca deixariam Neil de-
saparecer em silêncio. Eles fariam confusão e envolveriam a imprensa até os
dentes até que alguém o entregasse. Os agentes os acusaram de serem egoís-
tas e imprudentes, mas Neil e Andrew se mantiveram firmes.
Neil só soube que haviam vencido a discussão quando Browning colocou
alguns formulários na mesa. O primeiro era um pedido oficial de mudança
de nome, o segundo e o terceiro eram para o passaporte e a carteira de mo-
torista, e o último era um cartão da previdência social reemitido após a data
de vencimento do primeiro. Uma foto que Neil reconheceu vagamente esta-
va presa ao segundo documento com um clipe; era uma foto que Wymack
tirara dele no verão anterior, para o arquivo da universidade. Nela, Neil ain-
da tinha cabelos e olhos castanhos, e a tatuagem de Riko ainda não existia.
Apesar da foto, o formulário já estava meio preenchido e indicava que a cor
natural de seus olhos era azul. Neil imaginou que a foto encolheria tanto que
ninguém conseguiria notar a discrepância.
Ficou tão distraído com a imagem que levou um momento para entender o
significado do que havia recebido. No topo de cada página, lia-se o nome
Neil Josten. Tudo que ele precisava fazer era assinar as linhas pontilhadas.
— Considere isso um contrato — disse Browning, soando irritado como
sempre. Esperou que Neil retribuísse seu olhar, e então continuou: — De-
pois que assinar, vamos dar entrada no processo para que “Neil Josten” se
torne um membro válido e funcional da sociedade. Isso significa que você
não vai mais poder fugir nem usar identidades falsas. Vai ser Neil até o dia
em que morrer. Não tem permissão pra mudar de ideia. Se ousar pedir um
café usando um outro nome, vai se meter em problemas sérios.
— Caneta — ordenou Neil, estendendo a mão. Quando Browning não se
moveu rápido o suficiente, ele disse: — Eu entendi. Só me dá logo a caneta
para que eu possa assinar.
Browning jogou o objeto sobre a mesa. Andrew o pegou antes que rolasse e
caísse no chão, depois entregou para Neil, que rabiscou seu nome em cada
linha pontilhada e devolveu os papéis. Browning os entregou para outra pes-
soa e analisou a mesa cheia de arquivos.
— Acabamos por aqui. Se pensarmos em mais alguma coisa, entramos em
contato.
— Não tenho dúvidas.
Neil se levantou e se espreguiçou para amenizar as cãibras. A sala de reuni-
ões que ocupavam não tinha janelas, mas o relógio na parede marcava
21h30. Fazia quase treze horas que estavam ali. O dia parecia longo e arras-
tado, mas saber quantas horas haviam se passado fez com que o cansaço se
transformasse em exaustão. Ele esfregou as palmas das mãos com cuidado e
reprimiu um bocejo.
— Stetson vai dar uma carona pra vocês — anunciou Browning, quando
Neil baixou as mãos.
Stetson era um homem sem graça que viam ocasionalmente ao longo do
dia. Neil não prestara tanta atenção nele quanto em Browning porque Stet-
son não dirigira a palavra a eles uma única vez. Pelo jeito, o fim do interro-
gatório não era motivo para quebrar o silêncio. Quando foi buscá-los, o ho-
mem se limitou a olhar e os levar até o carro. Neil se sentou no banco de trás
com Andrew e brincou com as ataduras em seu rosto. Ao perceber o que
Neil estava fazendo, Andrew deu um tapa na parte de trás da cabeça dele e
ignorou a cara feia que recebeu em resposta.
Stetson os acompanhou escada acima até o quarto do hotel, mas as Rapo-
sas haviam se espalhado durante a ausência deles. Ter que passar uma noite
ali significava que precisavam de camas para todos. Os quartos com duas ca-
mas tamanho queen abrigavam agora apenas Abby e Wymack. O treinador
olhou de Neil para Andrew, depois voltou sua atenção para Stetson.
— Vai me dar uma carona até o ônibus? — perguntou ele, e esperou que o
outro concordasse, depois gesticulou para que Andrew e Neil ficassem à
vontade. — Já volto. Vejam aí se vamos ficar ou se vamos embora.
Ele fechou a porta ao sair. Através da madeira, Neil ouviu o som fraco de
passos na escada, então trancou a porta e puxou a corrente. Abby estava sen-
tada no meio de uma das camas e estendeu as mãos para Neil quando ele se
afastou da porta.
— Deixa eu dar uma olhada em você.
Neil não conseguia rastejar pela cama nem usar as mãos para passar, então
tirou os sapatos e subiu na cama. Deu alguns passos instáveis até Abby e se
sentou antes que caísse. O colchão se mexeu quando Andrew assumiu seu
posto atrás dele. Neil colocou a bolsa de remédios perto de Abby, para que
ela pudesse pegar os antibióticos caso fosse necessário, mas o kit de primei-
ros-socorros extraordinariamente abastecido das Raposas estava em sua me-
sa de cabeceira. Ela se inclinou para pegar tudo de que precisaria e deixar ao
lado, depois tirou os curativos do rosto de Neil.
Trabalhou em silêncio. Não precisava dizer nada: sua expressão bastava.
Quando terminou o rosto, tirou as bandagens do braço direito de Neil. An-
drew se aproximou para olhar, já que ainda não tinha visto os braços dele
descobertos, mas Neil continuou olhando para Abby. A dor e a indignação
pareciam lutar pelo controle da fisionomia dela, mas a enfermeira não disse
nada até chegar à mão.
Abby engoliu em seco.
— Meu Deus, Neil.
Neil arriscou olhar para o braço. A pele exibia linhas paralelas, escurecidas
pelas crostas de sangue, mas não tão profundas a ponto de precisarem de
pontos. Lola preenchera o espaço entre elas com queimaduras superficiais,
círculos perfeitos que iam do cotovelo até cerca de 2,5 centímetros do pulso.
Os rasgos que ele próprio fizera nos pulsos ao tentar se libertar das algemas
não haviam cicatrizado; havia sulcos em sua pele, uma linha fina ao longo
das cicatrizes provocadas por Riko meses antes. Machucados escuros forma-
vam uma faixa grossa ao redor do pulso, estendendo-se até o polegar. Os nós
dos dedos estavam tão queimados que Neil os flexionou para se certificar de
que ainda conseguia mexê-los.
Por meio segundo, estava de volta àquele carro, com a faca de Lola encosta-
da em sua pele, sem nenhum lugar para onde ir a não ser sete palmos abaixo
da terra. Neil não sabia que som emitira, mas sentiu o peso repentino e im-
placável dos dedos de Andrew em sua nuca. Ele o empurrou para a frente,
mantendo-o naquela posição. Neil tentou respirar, mas seu peito se apertava
como um elástico prestes a se romper.
— Acabou — disse Abby enquanto passava os dedos com gentileza pelos
cabelos dele. — Acabou. Você vai ficar bem. Vamos cuidar de você.
Neil respirou, mas as inspirações e expirações eram superficiais demais pa-
ra que o ar chegasse aos pulmões, rápidas demais para que fizessem efeito.
Ele flexionou os dedos de novo, então os apertou, consciente de que faria as
feridas reabrirem e de que estava repuxando a carne queimada que tentava
cicatrizar, mas precisando saber que ainda conseguia apertar. Precisava sa-
ber que o pai e Riko tinham perdido, que poderia se recuperar e retornar às
quadras como Neil Josten. Por um momento, a obstinação foi o suficiente
para que tivesse um momento de lucidez, e Neil se sentiu grato por não ter
fôlego para rir. Sabia o quanto soaria apavorado.
— Para com isso — ordenou Andrew, como se fosse simples assim.
Não era, mas a mistura de raiva e exasperação que Neil sentia provocou
um soluço em meio à respiração ofegante. Isso ajudou a interromper o ritmo
frenético e permitiu que Neil voltasse a respirar como deveria. Inspirou um
pouco mais do que achava que conseguia, depois voltou a repetir o movi-
mento devagar. Ainda sentia o estômago se revirar quando inspirou fundo
pela sexta vez, mas o sofrimento já parecia mais suportável; sentia-se mais
seguro nas mãos deles e não se importava em parecer que estava a dois se-
gundos de passar extremamente mal. Sentiu o corpo amolecer e permitiu
que Andrew o endireitasse. Olhar para ele era mais seguro do que olhar para
todo aquele estrago de novo, então Neil analisou o perfil de Andrew e dei-
xou Abby continuar seu trabalho.
Ela já tinha cuidado de metade do braço esquerdo quando Wymack retor-
nou. Andrew teve que se levantar para deixá-lo entrar, mas voltou assim que
foi possível. O treinador ficou parado entre as camas, analisando a situação.
Sua expressão era inescrutável, mas os olhos semicerrados estavam escuros,
e Neil sabia como identificar os indícios de raiva no corpo de um homem
mais velho. Neil cerrou as mãos de novo, uma promessa silenciosa de que
seus punhos funcionavam. Não ajudou em nada para aliviar a tensão dos
ombros de Wymack.
— Vamos passar a noite aqui? — perguntou Wymack.
— Eu odeio Baltimore. Podemos ir embora? — perguntou Neil.
Wymack assentiu e olhou para Abby.
— De quanto tempo você ainda precisa?
— Talvez uns dez minutos. Quando todos tiverem feito o check-out e en-
trado no ônibus, já vou ter terminado.
— Vou reunir todo mundo, então. Eles não vão incomodar você até voltar-
mos para o campus — declarou Wymack.
— Prometi respostas para eles — disse Neil.
— O ônibus não foi feito para uma conversa como essa. Mesmo que se sen-
tem dois por fileira, vão ficar longe demais para ouvir. É melhor conversar
no vestiário. Tira uma soneca enquanto voltamos ao estádio, e depois, em
território familiar, você lida com eles.
— A chave do meu quarto está na cômoda— disse Abby a Wymack.
Wymack pegou a chave e a papelada e saiu para buscar as Raposas. Abby
terminou de limpar e enfaixar os braços de Neil, e ele e Andrew aguardaram
enquanto ela fazia as malas. Neil tomou alguns analgésicos e entregou os re-
médios para que a enfermeira os levasse durante a viagem de volta. A equipe
não levara muita coisa para Baltimore, apenas o necessário para a partida
em Nova York, mas Neil verificou cada gaveta para garantir que nada fosse
esquecido.
O ônibus os esperava, com a porta aberta e as luzes do teto acesas. Quando
eles se aproximaram, Matt estava colocando a última mala com os equipa-
mentos no porta-malas.
— Deixei meu equipamento em Nova York — lembrou Neil.
— Andrew encontrou enquanto procurava você. Sua mochila estava a qua-
tro portões de distância quando a polícia conseguiu apartar a briga. Está tu-
do meio estragado, mas pelo menos está lá — disse Abby.
Matt fechou as portas com força, puxou as maçanetas para garantir que as
fechaduras tinham travado e olhou para Neil.
— Ei, o treinador nos fez prometer deixar você em paz, mas você está bem?
— Não, mas acho que vou ficar.
Ele entrou no ônibus e encontrou as Raposas sentadas uma em cada fileira.
Costumavam deixar certo espaço entre os veteranos e o grupo de Andrew,
mas naquela noite Nicky, Aaron e Kevin ficaram atrás dos companheiros de
equipe mais velhos. Neil teria se sentado atrás de Kevin, mas Andrew se di-
rigiu para seu lugar habitual no fundo. Neil o seguiu e se sentou na frente de
Andrew, deixando um espaço de dois assentos entre ele e o restante das Ra-
posas.
Ficar confortável era quase impossível devido aos ferimentos do rosto. Neil
precisou dormir de costas, mas o assento não era comprido o bastante para
que esticasse o corpo inteiro. Seus pensamentos o mantiveram acordado a
maior parte da noite, mas ele conseguiu tirar alguns cochilos. O sono inter-
rompido fazia mais mal do que bem, mas era melhor do que nada.
Neil sabia que estavam chegando perto quando Wymack estacionou o ôni-
bus em frente a um posto de gasolina. Foram necessárias três Raposas para
trazer cafés para todos, e não se deram ao trabalho de distribuir as canecas.
Alguns minutos depois, a Toca surgiu do lado de fora da janela. A visão dis-
parou uma descarga de adrenalina mais do que necessária pelo corpo de
Neil, que passou os nós dos dedos enfaixados pela janela fria.
— Neil Josten. Número dez, atacante titular, Toca das Raposas — sussurrou
ele.
Mesmo que os Moriyama rejeitassem a trégua de Stuart e fossem atrás dele,
o processo havia começado. Neil Josten estava no sistema para se tornar
uma pessoa real. Não morreria como uma mentira.
Wymack desligou o motor, e Neil se sentou com cuidado. As Raposas saí-
ram do ônibus e dividiram seus equipamentos. Neil procurou pela mochila e
a encontrou pendurada no ombro de Matt. Tentou carregar uma das bande-
jas de café, mas Dan lançou um olhar enfático para suas mãos enfaixadas e
ignorou a oferta silenciosa.
Eles seguiram em fila para dentro e se acomodaram no lounge. Dan, Renee
e Allison distribuíram as bebidas. Wymack havia enchido um saco plástico
com guloseimas; havia de tudo, desde rosquinhas açucaradas até salgadi-
nhos, e ele o abriu na mesa para que todos tivessem acesso. Nicky pegou
uma barra de proteína entre as outras guloseimas e entregou para Neil. Ele
tentou abrir a embalagem de alumínio e sibilou, com os dentes cerrados, ao
sentir as queimaduras nos dós dos dedos. Andrew tirou a barra de sua mão,
abrindo-a em um gesto fácil, e a entregou para Neil.
Kevin se inclinou para a frente, olhando além de Andrew, para Neil. Falou
em um francês alto e urgente:
— Precisamos falar disso.
— E vamos falar — respondeu Neil.
— Disso — repetiu Kevin, mais enfático, tocando sua tatuagem.
— Agora não. Depois — resmungou Neil.
— Neil.
— Eu disse não.
Andrew não conseguia compreender o que diziam, mas percebeu a irrita-
ção na voz de Neil. Ele colocou a mão no ombro de Kevin e o empurrou pa-
ra trás. Kevin abriu a boca para argumentar, mas se conteve. Pressionou
uma mão cuidadosa no pescoço machucado e desviou o olhar. Wymack foi
o último a se sentar e, de repente, Neil voltou a ser o centro das atenções.
Olhou ao redor da sala, para todos, e disse, incerto:
— Não sei por onde começar.
— Pelo começo? — sugeriu Dan.
Estavam menos interessados no pai de Neil do que nele, e não precisavam
nem queriam entrar nos mesmos detalhes que ele havia contado ao FBI. Ke-
vin havia compartilhado um pouco da verdade na viagem de Nova York a
Maryland, mas Neil não sabia o que ele dissera. Era provável que estivesse
repetindo alguns dos detalhes, mas ninguém o interrompeu.
Contou quem eram seus pais, a versão oficial e a verdadeira. Admitiu que
já havia jogado Exy na liga infantil durante alguns anos, com outro nome e
em uma posição diferente. Mencionou a decisão abrupta da mãe de fugir, os
terríveis oito anos passados em fuga e o confronto que culminou com a
morte dela. Contou como tinha ido parar em Millport e por que fizera um
teste para entrar no time de Exy de lá.
Explicou por que arriscara tudo para ir para lá, e o que isso significava
quando descobriu quem eram os Moriyama e quantas vezes pensara em fu-
gir antes que fosse tarde demais. Jurou que, até o banquete de outono, ainda
não tinha descoberto o que o pai representava para os Moriyama, e que
mesmo naquele momento entendia apenas vagamente a intricada hierarquia
entre as subdivisões dos Moriyama e o círculo dos Wesninski. Sabia menos
ainda como o tio se encaixava no cenário.
Contou como imaginava que seu ano terminaria, como esperava pelo me-
nos que se classificassem nos campeonatos e tivessem uma revanche contra
Riko, mas como, havia meses, já se dera conta de que não estaria de volta no
ano seguinte. Era a resposta que eles mais mereciam, pois fora aquela deci-
são fatalista a delinear todas as interações que tivera com a equipe e a impul-
sionar sua determinação de não permitir que se aproximassem demais.
Eles ouviram tudo sem interromper e ficaram sentados em silêncio por um
longo tempo após ele terminar de falar. As perguntas foram inevitáveis, e
Neil respondeu a todas. A princípio, as Raposas pareceram surpresas com a
honestidade, sem se importar com a história que viera antes, e encorajadas
pelas respostas que Neil dava na lata. Renee não disse nada até que a curiosi-
dade de todos os outros tivesse sido temporariamente aplacada, então emi-
tiu um som de desespero e dúvida.
— Você disse que seu tio está negociando uma trégua com Kengo. E se ele
não conseguir?
Neil não perdeu tempo para tentar suavizar a resposta.
— Eles vão se livrar de mim.
— Você não pode estar falando sério — protestou Matt, alarmado.
— Sou uma ponta solta, o que já é ruim em circunstâncias normais, mas
catastrófico agora que Kengo está prestes a morrer. Os Moriyama não po-
dem permitir vazamentos, principalmente com uma transferência de poder
batendo à porta.
— Quando você vai saber? — perguntou Dan.
— Tio Stuart disse que entraria em contato comigo quando terminasse de
resolver as coisas.
— Não se preocupe — disse Nicky, em uma tentativa frustrada de animar
as coisas. — Andrew vai te proteger.
Kevin olhou horrorizado para ele.
— Estamos falando dos Moriyama, Nicky. Não é só o Riko e o mestre; não
é o pai do Neil. Andrew não pode…
— Eu sei. Cala essa boca — interrompeu Nicky, irritado.
Eles caíram em um silêncio desconfortável. Wymack olhou de um para o
outro, então disse:
— Mais uma coisa: se a imprensa ainda não entendeu o que aconteceu, é
questão de tempo até que perceba. Browning me contou o que fizeram pra
esconder seu nome, mas se alguém os seguiu do hospital até o hotel, vão
descobrir. Não importa que o ônibus não estivesse no local; se viram algum
de nós nos vestiários, vão chegar até você.
“Com sua cara desse jeito”, ele apontou para o próprio rosto, “vão ter todas
as respostas de que precisam. O FBI pode solicitar que levem sua segurança
em consideração antes de começarem a publicar artigos, mas já que você
abriu mão da proteção deles, não sei quanto peso a palavra deles pode ter.
Você precisa pensar até onde vai permitir que avancem e quais são os limites
que quer que a gente estabeleça.”
— Geralmente é melhor dar as respostas que eles querem — argumentou
Allison. — Se você satisfizer a curiosidade deles, não vão precisar recorrer a
métodos mais agressivos. Além disso, a imprensa age de acordo com a volu-
bilidade do interesse público. Não vão passar muito tempo falando de você.
Acabam se distraindo com outro assunto.
— Pode ser que o público em geral funcione assim — contestou Dan —,
mas os torcedores de Exy vão se lembrar, mesmo depois de todo mundo ter
mudado de foco. Vão arrastar as outras equipes para isso e permitir que di-
gam o que quiserem sobre você. Vai ser como nosso primeiro ano de novo,
só que pior.
— A não ser que a gente encontre outra informação que eles queiram mais
do que saber sobre mim — disse Neil.
— Tipo o quê? É meio difícil superar uma história como essas — pergun-
tou Matt.
Neil se inclinou para a frente e lançou um olhar para Kevin, então respon-
deu em francês:
— Eles não vão se importar tanto com meu pai quando descobrirem quem
é o seu. Você sempre vai ser uma notícia maior do que eu para eles.
A boca de Kevin se comprimiu em uma linha de desaprovação.
— Ainda não é a hora.
— Faça com que seja. Preciso da sua ajuda, e você deveria ter contado para
ele anos atrás — acusou Neil e interpretou como um consentimento relutan-
te quando Kevin não respondeu. Ele se endireitou e voltou a falar em inglês:
— Vamos dividir a atenção deles entre a gente. Kevin vai anunciar quem é o
pai dele.
— Espera, você sabe quem é? — perguntou Nicky a Kevin, chocado.
— Eu descobri — disse Kevin, em um tom seco. — Minha mãe escreveu
para o mestre quando descobriu que estava grávida. Peguei a carta na casa
dele e a escondi no estádio alguns anos atrás.
— E eu trouxe a carta de Evermore — afirmou Neil, então deu de ombros
ao receber um olhar espantado de Kevin. — Jean me mostrou onde estava.
Eu a roubei para que você tomasse logo uma atitude.
— Então quem é? — perguntou Dan.
— Vou contar para ele antes de contar para qualquer pessoa. Ele merece
saber antes — respondeu Kevin.
Renee olhou para Neil e disse:
— O que você precisa que a gente faça, Neil?
Ele não pensou duas vezes.
— Tudo que eu precisava, vocês já fizeram. Me deixaram ficar.
O sorriso de Renee foi lento e doce. Dan se levantou e atravessou a sala pa-
ra dar um abraço cuidadoso em Neil. Ela não o segurou como Abby tinha
feito uma vez, como se pensasse que ele desmoronaria sem seu apoio. Havia
uma ferocidade silenciosa nos dedos que prendiam seus braços, dava até pa-
ra sentir a tensão no corpo dela, nas partes que tocavam o dele. Não era um
confronto; era algo protetor e desafiador. Ela o reivindicava como parte do
time. De alguma forma, aquilo aliviou o estresse que Neil ainda sentia após
aquele dia. A sensação de paz, tão necessária, fez Neil perceber o quanto es-
tava exausto, e ele mal conseguiu suprimir o bocejo.
Quando Neil enfim relaxou, Dan o soltou e deu um passo para trás.
— Vamos. O dia foi longo e já quero que termine. Vamos dormir e amanhã
de manhã pensamos no que fazer. Podemos ir tomar café todos juntos ou al-
go assim. Certo?
— Certo — concordou Neil, e as Raposas se levantaram.
Abby entregou os remédios para ele.
— Amanhã volto para verificar como você está, mas tome cuidado ao to-
mar banho, tá? Coloque um saco nos braços se puder. Se cair sabão nessas
queimaduras, vai arder.
Neil assentiu, olhou para Wymack uma última vez e seguiu os colegas de
equipe para fora do estádio. Os carros ainda estavam no estacionamento,
onde haviam sido deixados alguns dias antes. Andrew destrancou o veículo
e Nicky abriu a porta do carona para Neil, que subiu e não se deu ao traba-
lho de colocar o cinto. Assim que seus membros estavam fora do caminho,
Nicky bateu a porta e deu a volta. Os veteranos se amontoaram na caminho-
nete de Matt, e Matt seguiu Andrew.
Era o meio da noite, mas em geral algo deveria estar acontecendo pelo
campus. Naquele dia não havia movimento, e Neil levou alguns instantes
para se lembrar de que era o recesso de primavera. Quando percebeu, sen-
tiu-se culpado; os outros tinham planos de viajar no domingo de manhã.
Haviam perdido seus voos para ficar em Baltimore com ele. Quando chega-
ram à Torre das Raposas, ele perguntou para Dan a respeito disso, mas ela
sinalizou que não era nada de importante.
Ninguém combinou, mas todos acabaram indo parar no quarto de Neil e
Matt. Matt e Aaron tiraram o sofá do caminho, e as meninas apareceram um
minuto depois com cobertores. A sala de estar não fora projetada para aco-
modar nove pessoas, mas eles deram um jeito de transformá-la em um ni-
nho. Raposas iam e vinham enquanto pegavam travesseiros e vestiam pija-
mas. Por um momento, Neil e Matt ficaram sozinhos. Matt deu um aperto
cuidadoso no ombro de Neil.
— As coisas poderiam ter sido muito piores — afirmou Matt, triste. — Fico
feliz que não tenha sido assim. Se quiser alguma coisa, se precisar de alguma
coisa, avisa a gente. Tá?
— Tudo bem — respondeu Neil.
— Estou falando sério — reforçou Matt.
— Eu sei. Não vou mais mentir pra você, Matt. Eu prometo.
Matt suspirou, mas parecia mais cansado do que cético.
— Queria que não tivesse tido que acontecer tudo isso para escutar essa
frase, mas entendo. Muitas coisas sobre você fazem sentido agora, na verda-
de. Com uma grande exceção — acrescentou Matt, seco —, mas vou deixar
Allison lidar com essa parte. Ela vai me matar se eu roubar a vez.
— Ótimo — disse Neil. Matt sorriu ao perceber sua falta de entusiasmo.
Neil pensou que talvez fosse melhor não saber, mas perguntou: — Isso signi-
fica que você apostou contra?
— Apostei a seu favor e contra ele — respondeu Matt, e deu de ombros ao
ver o olhar surpreso de Neil. — Sou seu colega de quarto. Você nunca falou
sobre garotas, mesmo quando Seth e eu falávamos. Notei isso, mas imaginei
que, se quisesse, ia compartilhar com a gente. Só pra você saber, isso não faz
diferença nenhuma pra mim, a não ser pelo fato de que alguns dias atrás eu
teria julgado seriamente o seu gosto.
Neil presumiu que os traços protetores de Andrew em Baltimore estavam
relacionados à mudança de opinião de Matt.
— Ele esganou mesmo o Kevin?
— Foi preciso três pessoas para arrancá-lo dele — disse Matt.
Neil não sabia o que dizer. Matt esperou um minuto, então deu um tapinha
no ombro do amigo e foi se trocar. Neil pensou em se despir, mas decidiu
que isso exigiria muito esforço, então se sentou nos cobertores para esperar
as outras Raposas. Acabou no meio da sala, com Andrew de um lado e Matt
do outro. Seus pensamentos deveriam tê-lo mantido acordado a noite toda,
mas com os amigos tão próximos, Neil não se preocupava com nada. Obser-
vou o rosto de Andrew até não conseguir mais manter os olhos abertos.
Sonhou que enfrentava o pai em uma quadra de Exy, e em seu sonho as
Raposas venciam.
Todo mundo acordou tarde, então o café da manhã da segunda-feira acabou
virando um brunch. Os refeitórios estavam fechados devido ao recesso de
primavera, mas havia uma lanchonete a cerca de dez minutos que servia ca-
fé da manhã o dia todo. As Raposas se dispersaram para se arrumar, levando
os cobertores e travesseiros de volta. Kevin foi o único que ficou para trás.
Neil sabia o motivo, mas ainda estava cansado demais para aquela conversa.
Ele se esforçou para ficar em pé e seguiu Matt até a cozinha com sua bolsa
de remédios. Em uma hora já estariam comendo, mas pelo jeito era tempo
demais para esperar por uma xícara de café. Matt enxaguou o bule na pia e
começou a enchê-lo.
Neil tirou uma caneca do armário e sacudiu o remédio para fora do saqui-
nho. Parou em seguida, pois só conseguia imaginar a dor que sentiria para
abrir a tampa de segurança. Olhou em volta em busca de algo que ajudasse
no processo e viu Kevin esperando próximo à porta.
O colega olhou de Neil para Matt e falou em francês:
— Quando Riko descobrir o que seu pai fez na sua cara, vai querer se vin-
gar.
Àquela altura, Matt estava acostumado com todo mundo tagarelando em
línguas estrangeiras. Não deu sinal de ouvir nem de se importar com o que
diziam, apenas tirou os grãos de café e filtro do armário. Neil refletiu por um
momento, com o coração disparado e os nervos à flor da pele. Analisou o
perfil de Matt até que este desligasse o moedor de café, então olhou para Ke-
vin.
— Mas ele pode fazer alguma coisa sobre isso? — perguntou, em inglês.
Matt congelou com o filtro a meio caminho da cafeteira. Na porta, Kevin
ficou tenso, sem entender e com cara de desaprovação. Neil sentiu que Matt
o observava, mas não retribuiu o olhar. Na noite anterior, dissera que não
iria mais mentir para o amigo. Não podia esperar que o colega de quarto
acreditasse nele se continuasse a falar em outra língua. De todo modo, os ve-
teranos já sabiam da história, então não havia por que esconder essa compli-
cação inevitável.
— A essa altura, Kengo sabe que meu pai está morto e que estou vivo. Pior
ainda, sabe que o FBI já falou comigo. Vai ter que tomar uma decisão sobre
o que fazer comigo, de um jeito ou de outro. Você acha que o Riko vai se ar-
riscar e dar o primeiro passo?
Kevin lançou um olhar frio para Matt, mas acatou a decisão, respondendo
em inglês.
— Eles tocaram em algo que não deveriam tocar. Quando apagaram sua ta-
tuagem, o recado que passaram é que Riko é insignificante. Ele não vai tole-
rar isso. — Kevin levantou a mão esquerda como um excelente exemplo do
violento complexo de inferioridade de Riko. — Se ele achar que pode passar
por cima do pai pra chegar até você, vai fazer.
— Quero ver ele tentar. Ele sabe onde me encontrar.
— Esse seu showzinho de petulância não vai ajudar ninguém.
— Nem a sua covardia. Eu só tinha medo de Riko porque ele sabia quem
eu era. O que ele pode fazer agora que todo mundo sabe a verdade? — Neil
esperou até que Kevin entendesse do que se tratava, então complementou:
— Andrew diz que os Corvos têm que resolver nossa rivalidade nessa pri-
mavera, então Riko não pode nem vir atrás de vocês ainda. Podem causar
certo alvoroço, mas por enquanto não representam perigo pra ninguém.
— E você acredita nele? — perguntou Matt.
Neil deu de ombros.
— Tetsuji acalmou os torcedores desequilibrados dizendo que os Corvos li-
dariam com a gente em quadra. Precisa cumprir a promessa, então sim, eu
acredito no Andrew. Mas, olha só, já que o Riko está de mãos atadas —
acrescentou Neil, olhando de novo para Kevin —, seria o momento perfeito
pra você tirar isso da cara.
Levou um momento até que Kevin entendesse. Ele estremeceu como se ti-
vesse levado um soco.
— Nem brinca com uma coisa dessas.
— Eu não estou brincando. Allison disse que me daria o dinheiro para tirar
a minha. Talvez ela faça o mesmo por você, agora que não preciso da ajuda
dela.
— Fato — concordou Matt. — Ela adora um bom escândalo.
— Para. Cala a boca — disse Kevin.
— Já passou da sua hora de ser o segundo melhor, então prova — provo-
cou Neil.
Kevin gesticulou como se cortasse um pescoço e saiu furioso. Não se deu
ao trabalho de fechar a porta, e Neil entendeu o porquê quando Andrew en-
trou um segundo depois. Trazia um rolo de fita adesiva e alguns sacos de li-
xo, e passou pela cozinha para se sentar na colcha de Neil, que fechou a por-
ta do quarto e foi se juntar a ele na sala. Andrew esperou Neil se sentar e le-
vantou a barra de seu moletom. Ergueu-a um ou dois centímetros, depois
checou outro ponto e por fim enfiou a mão por baixo do tecido.
— Estou sem camisa por baixo — avisou Neil.
Andrew aceitou em silêncio e esperou. Neil estendeu a mão enfaixada para
pegar a fita e as sacolas, mas Andrew olhou para o nada e o ignorou. Matt
terminou na cozinha e passou pelos dois. Quando fechou a porta do banhei-
ro e ligou o chuveiro, Andrew apontou para o moletom de Neil, que tentou
não estremecer enquanto abria os botões. Conseguiu erguê-lo até os cotove-
los, mas então precisou respirar e descansar as mãos doloridas. Andrew es-
perou apenas um segundo para ajudá-lo a tirar as mangas, uma de cada vez.
Andrew colocou um saco de lixo em cada braço, rasgando o excesso e
amarrando as pontas irregulares nos bíceps de Neil. Puxou as duas sacolas
para verificar se estavam presas e colocou outra camada de fita por cima pa-
ra se certificar. Quando os braços de Neil estavam protegidos, Andrew se
ocupou com seu rosto. Pegou um pedaço do plástico que havia arrancado,
dobrou várias vezes e o prendeu com fita adesiva em uma das bochechas,
um curativo preto brilhante. Neil tinha certeza de que Andrew havia coloca-
do mais fita do que plástico, mas não iria reclamar. Andrew terminou de
proteger o outro lado e analisou o resultado. Neil julgou que estivesse satis-
feito, porque Andrew deixou a tesoura e o rolo de fita de lado.
Andrew puxou o cobertor debaixo deles e o colocou sobre os ombros de
Neil como uma capa. Neil tentou juntar as pontas sobre o peito, mas não
conseguiu segurar direito com as mãos dentro da sacola. Andrew o obser-
vou enquanto ele tentava duas vezes, então tirou as mãos de Neil da frente e
amarrou o cobertor. Depois, não havia mais nada a fazer a não ser esperar
até que Matt terminasse. Matt foi do banheiro para o quarto sem diminuir a
velocidade e se vestiu em tempo recorde. Em vez de voltar para a pia do ba-
nheiro para arrumar os cabelos com o gel, como sempre fazia, levou um
pente para a sala e olhou para os dois. Neil olhou na direção de Matt, mas
Andrew fingiu que não o via.
— Vou ver se Dan precisa de ajuda para remarcar o voo dela. Quando esti-
ver pronto, bate lá — disse Matt.
— Tudo bem — respondeu Neil.
Andrew se levantou e seguiu Matt até a porta. Neil presumiu que estivesse
saindo para tomar banho no próprio quarto, então se levantou e foi para o
banheiro. Deixou cair o cobertor quando ouviu a porta fechar, mas o clique
da fechadura que veio a seguir com certeza vinha de dentro do quarto. Neil
olhou para trás, curioso, mas não viu Andrew em lugar algum.
Estendeu a mão para a luz do banheiro. A sacola que o protegia grudou
nos azulejos úmidos da parede. Neil olhou para o chuveiro e se perguntou se
poderia simplesmente ficar parado. As sacolas protegiam seus ferimentos e
curativos, mas também tornariam todo o processo cem vezes mais compli-
cado. Apesar disso, não tomava banho desde a noite de sexta-feira, então
não tinha muita escolha.
Os pés descalços de Andrew eram silenciosos contra o carpete, mas Neil
viu um borrão de cores no espelho embaçado e se virou. Andrew estudou
seu peito com um olhar entediado, mas os dedos que pressionou nas cicatri-
zes de Neil pareciam relutantes, cheios de significado. Neil esperou para o
caso de ele ter algo a dizer, mas Andrew não falava com ninguém desde que
haviam saído do hotel em Baltimore. Neil duvidava que os outros tivessem
notado, já que Andrew raramente abria a boca, até mesmo com Kevin ou
Nicky agora que estava sóbrio, mas Neil não estava acostumado ao silêncio
de Andrew.
— Ei — disse ele, só para fazer Andrew erguer os olhos.
Neil se inclinou para beijá-lo, pois precisava saber se Andrew iria se afastar
ou empurrá-lo de volta. Em vez disso, Andrew abriu a boca para Neil sem
hesitar e deslizou a mão de seu peito para o pescoço. Beijá-lo fazia suas bo-
chechas machucadas doerem, mas Neil fez de tudo para ignorar a pontada
de dor. Fazia apenas alguns dias desde os beijos no ônibus, mas já parecia
uma eternidade.
Neil lembrava muito bem como tinha sido dizer adeus. Também lembrou
como tinha sido reencontrá-lo. Um lampejo do pânico e da revolta da sexta-
feira surgiu em seu peito, tão cálido que parecia queimar o ar de seus
pulmões. Neil não sabia mais o que era aquilo entre os dois. Não sabia o que
queria nem o que precisava que fosse. Só sabia que precisava se agarrar a is-
so o máximo que pudesse.
— Você é um desastre — disse Andrew contra os lábios de Neil.
— E a novidade?
Andrew se afastou e tirou Neil do caminho. Ligou o chuveiro e colocou a
mão sob a água para verificar a temperatura. Neil pisou nas bainhas das cal-
ças para tirá-las, mas Andrew fez grande parte do trabalho ao ajudá-lo a se
despir. Era estranho estar nu na frente de outra pessoa, com suas cicatrizes e
machucados à mostra, mas a sensação de desconforto que Neil sentia na
barriga foi aliviada pela imparcialidade com que Andrew agia. Neil se enfiou
embaixo do chuveiro, o corpo tenso em preparação para a dor, mas ficou ali-
viado ao perceber que as sacolas em seu rosto e braço davam conta do reca-
do. Abaixou a cabeça e deixou a água bater em seu crânio. Foi como uma
desculpa para fechar os olhos e encontrar seu equilíbrio mental.
Uma mão em seu cabelo o tirou de seus pensamentos, e Neil abriu os
olhos. Andrew estava parado à sua frente. Havia tirado apenas as faixas e os
tênis. A água grudava na camisa preta, e pequenos filetes desciam pelas têm-
poras e bochechas, pingando do queixo. Neil ergueu uma das mãos para to-
car seu rosto, mas lembrou-se das sacolas bem a tempo e franziu a testa, um
pouco aborrecido. Andrew empurrou a mão dele para o lado e fechou a cor-
tina do chuveiro.
Lavou o cabelo de Neil com eficiência, ainda que não tomasse muito cuida-
do, mas quando chegou ao corpo de Neil, foram mais beijos do que o banho
em si. Andrew cometeu o erro de virar o rosto em determinado momento,
então Neil seguiu com a boca o caminho da água que caía pelo pescoço dele.
Os dedos de Andrew se apertaram convulsivamente nas laterais do corpo de
Neil e todo ele se sacudiu em um arrepio.
Andrew tentou se recuperar.
— Seu fetiche por pescoço não é nada charmoso — comentou ele.
— Você gosta — retrucou Neil, sem remorso. — E eu gosto que você goste.
Neil o mordeu para provar o argumento, e Andrew virou a cabeça com um
sibilo agudo. Neil sorriu, mas Andrew não podia ver. Talvez Andrew tenha
sentido os lábios se retorcerem contra sua pele hipersensível, porque enros-
cou os dedos no cabelo de Neil e afastou sua cabeça. Colocou a mão espal-
mada no abdômen dele e o empurrou, fazendo-o recuar até que estivesse fo-
ra da corrente de água, pressionado contra o azulejo frio.
A pergunta de Andrew saiu com uma mordida na mandíbula de Neil.
— Sim ou não?
— Com você é sempre sim — respondeu Neil.
— Menos quando for não.
Neil colocou um dedo protegido pelo plástico no queixo de Andrew, guian-
do sua cabeça para outro beijo.
— Se você precisa perguntar por que… vou responder todas as vezes que
perguntar. Mas a resposta sempre vai ser sim.
— Não vem com essa de “sempre” comigo.
— Não me fala pra dizer a verdade se você não for aceitar.
Andrew cobriu a boca de Neil com a mão, mantendo-a ali até que, ao ficar
de joelhos, não conseguisse mais alcançá-lo. Andrew depositou beijos nos
quadris de Neil, e então o colocou todo na boca. Neil se agarrou ao cabelo
de Andrew, mas com tantos ferimentos e a sacola plástica nas mãos, não
conseguia segurar direito. Tentou se agarrar às paredes que, escorregadias
demais, não o ajudavam a se equilibrar. Andrew o prendeu contra os azule-
jos com uma das mãos em seus quadris, o que ajudou um pouco, mas Neil
ainda sentia que estava prestes a cair. Ele de fato caiu, ainda que tenha escor-
regado pela parede, arfando e tonto de desejo.
— Você quer… — começou ele, a voz entrecortada.
Andrew o beijou para fazê-lo ficar quieto. Neil fez uma careta ao sentir o
gosto na língua de Andrew, mas ficou feliz em ignorá-lo. Andrew apoiou um
dos braços na parede, mantendo uma distância confortável de alguns centí-
metros entre os corpos. Neil permitiu que ele tivesse aquele espaço, mas cru-
zou os braços doloridos atrás da cabeça de Andrew para mantê-lo perto.
Não notou a ausência da outra mão de Andrew até que este começou a arfar,
sem fôlego. Isso o deixou confuso por um segundo, a ponto de quase ser es-
túpido o bastante para se afastar e olhar para baixo.
Fazia semanas que beijar Andrew se tornara algo rotineiro, mas todas as
noites terminavam do mesmo jeito: com Andrew fazendo Neil gozar e de-
pois o dispensando. Ele nem chegava a abrir o zíper das calças quando Neil
ainda estava por perto. Neil não sabia se aquela quebra de protocolo era uma
forma relutante de demonstrar confiança ou a determinação de não o perder
de vista de novo. Não se importava, contanto que Andrew ficasse. Neil mur-
murou algo na boca de Andrew que poderia ser consentimento ou encoraja-
mento, e recebeu um rosnado fraco como resposta.
Andrew não pareceu gostar do apoio de Neil, mas também não se irritou o
bastante para se afastar. Neil segurou firme até que Andrew por fim ficou
imóvel. Ele levou alguns segundos para recuperar o fôlego, então empurrou
a parede até que Neil obedientemente baixou os braços e o soltou. Andrew
enxaguou a mão no spray antes de se levantar e ajudar Neil a se erguer.
Neil saiu da banheira, espalhando água por toda a parte, e enrolou a toalha
na cintura. Andrew se inclinou para longe do chuveiro para abrir a porta pa-
ra ele e a empurrou para fechá-la quando Neil saiu. Neil ficou por perto até
ouvir o barulho das roupas encharcadas de Andrew no chão, depois foi para
o quarto se secar. Havia comprado apenas uma toalha quando se mudara
para o campus no último verão, mas Matt tinha algumas extras para os dias
em que lavava roupas ou para quando Dan dormia por lá. Neil pegou uma
na prateleira em que Matt guardava suas coisas e pendurou-a na maçaneta
do banheiro para Andrew.
Ainda estava molhado quando Andrew apareceu, e deu de ombros quando
este o olhou. Andrew o ajudou a se secar, tomando cuidado nas áreas próxi-
mas aos ferimentos e esfregando com vigor em todas as outras partes do
corpo, e tirou os sacos que pingavam água dos braços e do rosto de Neil.
Passou um dedo pelos curativos no braço esquerdo de Neil e o ajudou a se
vestir com as roupas mais largas disponíveis. Estava frio o bastante para usar
mangas compridas, mas isso não duraria muito tempo. As feridas iriam ci-
catrizar aos olhos de todos. Estar coberto de cicatrizes era melhor do que es-
tar morto, então Neil pensou que acabaria por superar os olhares.
Neil emprestou roupas para Andrew, para que este não tivesse que voltar
para o quarto enrolado na toalha, mas não ficou para vê-lo se vestir. Ele se
dirigiu à cozinha para pegar seu remédio e encher três canecas com café.
Andrew surgiu enquanto Neil desligava o bule e pegou uma das canecas.
Neil pegou as outras duas e seus comprimidos, mas hesitou à porta do quar-
to.
— Não estou com as minhas chaves — afirmou.
As chaves estavam na mochila antes da viagem para Nova York, mas Neil
não tocava em seus equipamentos desde aquele dia. Sabia que Matt carrega-
ra a mala para ele ao entrarem no estádio, mas ninguém se dera ao trabalho
de desfazê-las após a história que ele havia contado na noite anterior. Neil
mal podia acreditar que tinha se esquecido de verificar suas coisas. Não sa-
bia se deveria atribuir o descuido à exaustão ou ao trauma de revelar tudo.
Talvez pudesse colocar a culpa em Renee e Dan que, ao final daquela con-
versa dolorosa, o fizeram se sentir acolhido demais para que se preocupasse
com qualquer outra coisa.
Andrew se virou sem fazer comentários e pegou as chaves de Matt na gave-
ta da mesa. Foi só quando ele voltou que Neil se lembrou de ter visto Matt
colocá-las ali na noite anterior, depois de se trocar. Por alguns instantes, sen-
tiu inveja da memória perfeita de Andrew; mas logo se lembrou que ele con-
fessara que grande parte das lembranças que tinha da infância eram desa-
gradáveis. Neil também não tinha boas lembranças, mas pelo menos sabia
que havia esquecido algumas das primeiras injustiças e tragédias. Não con-
seguia imaginar a sensação de se agarrar a cada pancada e cada grito.
Cogitou perguntar se Andrew tinha alguma lembrança que considerasse
boa, mas para isso teria que se perguntar o que alguém tão infeliz considera-
va “bom”. Em vez disso, falou:
— Nosso jogo já acabou, né?
— Ainda é minha vez — ressaltou Andrew.
— Mas depois daquilo? Não tenho mais segredos para colocar em jogo.
— Pense em outra coisa.
— O que você quer?
— O que você me daria?
— Não faça perguntas se você já sabe as respostas — respondeu Neil. An-
drew o olhou, entediado e nada impressionado por ver as próprias palavras
serem usadas contra ele. Neil encostou o ombro na porta antes que Andrew
pudesse abri-la e disse: — Acho que eu devia ganhar algumas rodadas de
bônus, já que você obteve todas as respostas que queria de graça.
— Você falou porque quis — retrucou Andrew.
— Fui obrigado por causa das circunstâncias.
Andrew olhou para ele em silêncio. Neil se recusou a entender a indireta e
se mover, feliz em jogar o jogo da paciência. Alguns minutos se passaram até
Andrew erguer um dedo e dizer:
— Uma pergunta extra.
— Uma? Quanto menos você me der, mais vai odiar o que eu perguntar.
— Já odeio tudo relacionado a você — rebateu Andrew. — Nem vou notar.
Neil se afastou da porta.
— Aviso quando souber o que quero perguntar.
Andrew abriu a porta, trancando-a após os dois saírem. Neil ergueu o dedo
mindinho da asa da caneca, e Andrew pendurou o chaveiro ali. Neil se enca-
minhou para a porta ao lado, mas Andrew continuou pelo corredor até che-
gar a seu quarto. Neil não tinha mãos livres para bater, então deu um leve
chute na porta. Foram necessárias três tentativas antes que alguém lá dentro
o ouvisse ou percebesse que o som era de alguém pedindo para entrar.
Quando Matt abriu a porta, Neil estendeu uma das canecas.
— Você esqueceu isso.
— Ah, valeu.
Matt pegou a caneca e deu um passo para o lado para deixá-lo entrar.
Dan e Renee já haviam tomado banho e se vestido. O lugar vazio entre as
duas no sofá sem dúvida era de Matt, mas Dan fez sinal para que Neil se
sentasse. Matt foi para o braço do sofá, à esquerda de Dan, apoiando o braço
nos ombros dela. Dan, por sua vez, entrelaçou os dedos nos dele e fitou os
curativos de Neil, que a deixou olhá-los e esperou para ver se a garota tinha
pensado em mais perguntas durante a noite.
Mas tudo que ela disse foi:
— Como você está se sentindo?
— Não sei — respondeu Neil. Pensou que deveria estar um pouco inquieto
por não ter notícias de Stuart, mas não conseguia de fato se preocupar. As
Raposas haviam ficado frente a frente com os segredos que ele escondia e
passaram a ter ainda mais controle sobre Neil. Como poderia temer qual-
quer coisa com o apoio de todos eles? Do que poderia se arrepender quando
ainda sentia os beijos de Andrew em sua boca? — Acho que estou bem ago-
ra.
O som abafado de um secador de cabelo indicava que Allison havia termi-
nado o banho e começado o lento processo de se arrumar para o dia. Espe-
raram por ela num silêncio confortável. Quando a garota apareceu, o café de
Neil já havia acabado e a caneca estava fria. Não importava que fosse o re-
cesso da primavera nem que estivessem saindo só para comer ovos; Allison
estava impecável, como sempre, e deixou um rastro de perfume do banheiro
até a sala. Deu a volta no sofá para olhar para Neil, as mãos nos quadris e os
saltos fazendo barulho conforme caminhava.
— Alguma notícia? — perguntou ela.
— Ainda não vi nada — respondeu Neil.
Ela olhou por cima do ombro como se estivesse pensando em ligar a televi-
são, mas Dan se levantou e disse:
— Estou morrendo de fome. Vamos.
Foram buscar o grupo de Andrew no quarto ao lado. Neil não deixou de
notar os olhares dos veteranos ao repararem na roupa do colega, mas estava
mais interessado nas reações dos primos. Havia certa tensão nos ombros de
Nicky, que fazia um esforço óbvio para ficar longe de Andrew. Neil supôs
que Nicky abrira a boca enorme para fazer algum comentário sobre o fato
de Andrew ter tomado banho no quarto de Neil. Aquela boca de sacola ain-
da seria o fim dele. Aaron estava ainda mais para trás, com os braços cruza-
dos e de olho em Neil, que esperava notar censura ou desgosto em sua fisio-
nomia, levando em consideração o quanto Aaron perturbava Nicky por con-
ta de sua sexualidade, mas o olhar dele era intenso e impossível de ser inter-
pretado.
Matt se ofereceu para levar todo mundo em sua caminhonete, mas mudou
de ideia quando se lembrou que Neil não conseguiria subir na caçamba. As-
sim, Neil foi no banco do carona do carro de Andrew, banindo Kevin para o
banco de trás com Nicky e Aaron, e observou o campus vazio que passava
pela janela. Nicky ficou quieto durante a maior parte do trajeto, mas já tinha
voltado ao seu estado normal antes mesmo de chegarem ao estacionamento.
Por sorte, foi esperto para evitar assuntos pessoais, optando por divagar so-
bre seu recorde pessoal de comer panquecas.
O brunch foi ruidoso. As Raposas estavam se recuperando do único jeito
que sabiam: seguindo em frente como se o fim de semana não tivesse acon-
tecido. Estavam ali se Neil precisasse de qualquer coisa, mas não iriam mais
se intrometer e não perderiam tempo falando de quase fatalidades e de coi-
sas ruins. O único momento estranho foi quando a garçonete, tentando pu-
xar assunto, perguntou a Neil sobre os curativos.
— Andando de skate — respondeu Matt.
Ao mesmo tempo, Dan disse:
— Caiu em um tanque de piranhas.
Quando a garçonete olhou intrigada para os dois, Allison balançou a mão
para dispensá-la e disse, de forma conspiratória:
— Um término complicado.
— Fim de semana difícil — concluiu a garçonete, e seguiu em frente.
Dan continuou exatamente de onde haviam parado na discussão sobre co-
mo reorganizar os planos para o recesso de primavera. Era possível mudar
os voos, ainda que fosse um pouco caro, mas ela não queria mais voltar para
o norte. Apesar de não ter afirmado que não queria perder Neil de vista, foi
tão displicente que ele logo percebeu o que a garota de fato queria dizer. Ela
alegara que não teriam nada de interessante para fazer no campus naquela
semana, já que tudo estaria fechado, e queria a ajuda dos outros para ter
ideias.
— Você tinha planos? — Matt finalmente pensou em perguntar para Neil.
— Além do óbvio, quer dizer.
Neil não tinha certeza se o amigo se referia a Exy ou Andrew, e nem tentou
adivinhar.
— Tinha pensado em fazer uma viagem — respondeu ele. A julgar pela ex-
pressão nos rostos dos colegas, era a última coisa que esperavam. Neil deu
de ombros, desconfortável, e acrescentou: — Minha mãe e eu sempre viajá-
vamos pra sobreviver. Nunca fiz uma viagem só por lazer. Queria saber qual
é a sensação.
— Você nunca tirou férias? — perguntou Dan, mas logo depois fez uma ca-
reta e complementou: — Deixa pra lá. Esquece.
— Aonde você queria ir? — perguntou Renee.
— Não sei. Ainda não pesquisei nada — admitiu Neil.
Allison bateu com as unhas feitas nos lábios, pensativa, então meneou a ca-
beça para Matt.
— Resort?
— Não parece o estilo dele. E é muito cedo para ir à praia. Uma cabana? —
arriscou Matt.
Allison parecia prestes a argumentar, mas pensou melhor.
— Nas montanhas, em Blue Ridge?
— Nunca fui, mas dizem que é incrível — respondeu Matt.
—Neil? — perguntou Allison.
— O quê? — ponderou Neil, perdido.
— Sim ou não? — perguntou Allison, como se não conseguisse acreditar
que ele não estava acompanhando a conversa. — A gente vai passar a sema-
na nas montanhas.
— A gente — repetiu Kevin. Quando Matt fez um movimento com o dedo
para indicar a todos, Kevin balançou a mão próximo ao pescoço, indicando
que não. — Não. Independentemente do que aconteceu esse fim de semana,
ainda estamos no meio dos campeonatos de primavera. A gente precisa…
Kevin parou de falar de repente e olhou para baixo. Neil não conseguia ver
por que, mas podia adivinhar. Uma das mãos de Andrew estava embaixo da
mesa, e a faca do lado de seu prato havia sumido. Estava com o queixo apoi-
ado na outra mão e olhava ao redor da sala, sem se fixar em nada em parti-
cular. Kevin encarou um ponto fixo acima da cabeça de Andrew, como se
pensasse que poderia pagar para ver. Enfim, fez uma careta e deixou de lado.
Neil não sabia dizer o que o convencera: os hematomas escuros ainda evi-
dentes em seu pescoço ou os gestos desesperados que Nicky estava fazendo
do outro lado de Neil.
— Bom — disse Allison, incisiva.
— Um pouco em cima da hora pra conseguir reservas, não? — perguntou
Dan.
— Estamos em março — salientou Allison, como se isso explicasse tudo.
Puxou o celular da bolsa e apontou para Neil. Era a última chance de recusar
a oferta, imaginou ele, porque um segundo depois ela assentiu e apertou al-
guns botões. — Vou pedir pra Sarah encontrar algo pra gente. Sarah? — dis-
se ela no aparelho antes que Neil pudesse perguntar. — Preciso de algo no
Blue Ridge para nove pessoas. De preferência com cinco quartos ou mais.
Sim, de hoje à noite até domingo de manhã é melhor. Claro, posso esperar.
Ela desligou e deixou o celular de lado.
— Sarah? — perguntou Nicky.
— Agente de viagens dos meus pais — respondeu Allison. Ao perceber o
olhar estranho de Nicky, pareceu quase ofendida. — Você não tá achando
que eu reservo minhas próprias viagens, né? Quem tem tempo pra isso?
— Todo mundo no mundo real — retrucou Dan, seca.
— Fico surpreso pelo seu pai ter deixado você ficar com ela quando deser-
dou você — comentou Nicky. Era um lembrete rude de que Allison havia
perdido a maior parte de sua herança ao abrir mão dos sonhos que o pai ti-
nha para ela. Pela hesitação de Nicky, até ele sabia o quão ruim isso soava. —
Hã, isso saiu errado. Eu só quis dizer…
— Eu sei o que você quis dizer — disse Allison, com a voz fria. — Ele não
sabe.
— Foi mal. — Nicky lançou um olhar suplicante para que Neil o salvasse
de sua falta de consideração.
Neil não precisou intervir, porque Allison seguiu o olhar frenético que
Nicky lançara para ele.
— Você gosta das montanhas, né?
— Cortei caminho por lá uma vez. Não ficamos muito tempo. A gente po-
de mesmo fazer isso? — perguntou Neil.
— “A gente pode mesmo fazer isso?” — ironizou Dan —, pergunta ele co-
mo se todo mundo aqui não tivesse acabado de se enfiar nas férias dele.
— Tem uma estimativa de valor? —perguntou Renee para Allison.
Allison a dispensou com a mão.
— Não precisa se preocupar com isso.
A garçonete e dois garçons apareceram com os pratos, e a conversa mudou
de rumo por alguns instantes para quem tinha pedido o quê. Enquanto co-
miam, Allison recebeu uma ligação para confirmar a reserva de uma cabana
com cinco quartos em Smokies. Podiam pegar as chaves no escritório prin-
cipal antes das oito, e o lugar ficava a pouco mais de duas horas de carro do
campus. Ela verificou o horário no celular e repassou os últimos detalhes
com os colegas de equipe, assentindo satisfeita. Não era nem uma da tarde
ainda; teriam bastante tempo para fazer as malas e pegar a estrada.
Quando tentaram decidir a que horas viajariam, Neil precisou dizer:
— Tenho que falar com a Abby antes de irmos.
— Ah — disse Dan. — Sem pressa, leve o tempo que precisar. Vamos fazer
as malas enquanto ela cuida de você.
Com um plano e um destino definidos, ninguém quis se demorar mais no
restaurante. Devoraram o que restava da comida e sinalizaram para que a
garçonete trouxesse a conta. Neil não sabia quando Dan havia roubado o
cartão de crédito da equipe de Wymack, mas ela pagou por toda a refeição e
adicionou a gorjeta. O celular de Neil ainda estava dentro da mochila no es-
tádio, então Nicky ligou para Abby enquanto atravessavam o estacionamen-
to.
— E aí? — disse Nicky. — Quando você quer ver o Neil? Decidimos viajar
juntos e ficar fora da cidade esta semana. Assim que você der uma autoriza-
ção para o Neil, podemos ir. Tá, tudo bem, daqui a pouco estamos aí.
Ele desligou e subiu no banco de trás. Quando estavam a caminho, se incli-
nou entre os bancos da frente para dizer:
— Ela vai encontrar você no estádio, porque assim pode pegar as coisas de-
la. Disse que o treinador já está lá, tentando remarcar as passagens dele. To-
mara que consiga assinar com todos os novos jogadores antes que eles se as-
sustem com as notícias.
— Posso ir com o carro? — perguntou Neil para Andrew.
Andrew não respondeu, mas dirigiu até o dormitório, em vez do estádio.
Neil saiu junto aos outros e deu a volta no capô. Ao se virar, viu Kevin entrar
no banco do carona. Andrew olhou para trás quando percebeu que Kevin
não estava com ele, mas não diminuiu a velocidade e não perguntou nada.
Assim que Kevin se acomodou, Neil voltou para a estrada. Os carros de
Abby e Wymack estavam estacionados lado a lado na calçada da Toca das
Raposas. Neil digitou o código de segurança mais recente e liderou o cami-
nho pelo corredor. Ao se aproximarem do vestiário, olhou para Kevin e dis-
se:
— Quero falar com o Wymack primeiro. Ele não vai querer falar com mais
ninguém depois que vocês acabarem de conversar.
Kevin fixou o olhar no chão e não disse nada.
Abby estava sentada no lounge esperando. Fez menção de se levantar, mas
Kevin foi em sua direção para que Neil tivesse tempo de ir até o escritório de
Wymack. A porta entreaberta permitia que Neil visse apenas a mesa do trei-
nador. Wymack estava cercado pela papelada de sempre, com o telefone no
ouvido. Nem tirou os itinerários do teclado para digitar com uma das mãos.
Observou o movimento na porta e fez sinal para Neil entrar.
Neil fechou a porta e ocupou uma das cadeiras em frente a Wymack para
esperar. Levou apenas mais alguns minutos para que o treinador conseguisse
remarcar seu voo. Neil ouviu “Columbus” e soube que Wymack estava falan-
do do atacante escolhido por ele. Por fim, Wymack desligou e colocou o te-
lefone de volta no gancho. Alguns toques em suas teclas bloquearam o mo-
nitor, e ele se recostou para prestar atenção em Neil.
O garoto o encarou de volta, sentindo-se repentinamente perdido. Era flu-
ente em duas línguas, quase três, e conseguia formular algumas frases úteis
para sobreviver em mais meia dúzia de idiomas. Mas, depois de toda a ver-
dade ter sido exposta, não sabia o que dizer.
— Você deveria ter jogado meu arquivo fora — comentou, por fim. — De-
veria ter desistido quando joguei o contrato de volta na sua cara. Mas se ar-
riscou comigo e me trouxe até aqui. Você salvou minha vida. Três vezes. Sal-
vou minha vida três vezes. Um simples “obrigado” não é o bastante.
— E não precisa agradecer — respondeu Wymack. — Eu trouxe você até
aqui, mas você se salvou sozinho. Foi você quem decidiu ficar. Foi você
quem superou o medo e confiou que estávamos do seu lado. Você encontrou
seu próprio caminho.
“Na verdade”, continuou Wymack, quando Neil tentou protestar, “quem de-
veria agradecer sou eu. Ontem à noite, você confessou que pensava que aca-
baria o ano morto ou nas mãos dos agentes federais. Poderia ter afastado tu-
do e todos e se preocupado só com você mesmo. Em vez disso, concordou
em ajudar Dan a consertar o time. Está salvando duas pessoas que pensei
que jamais conseguiríamos acessar, e é um exemplo para Kevin seguir. Ele
não costumava prestar atenção em você, mas está de olho desde que você
voltou em dezembro, tentando descobrir como você consegue se manter tão
firme.”
— Ele não pode ser ensinado — retrucou Neil.
— É o que você acha. Do meu ponto de vista, você tem feito muitos pro-
gressos.
Podia ser que o treinador apenas quisesse acreditar naquilo, mas ele tinha
um jeito especial de enxergar através deles. Neil acreditava nele porque que-
ria acreditar que poderia mudar Kevin. Precisava vivenciar o dia em que Ke-
vin arrancaria aquele número do rosto e seria melhor do que Riko no jogo
dele. Precisava que Kevin acreditasse que poderia usurpar o trono e sobrevi-
ver. Enquanto não acreditasse nisso, Kevin jamais acreditaria de verdade nas
chances que as Raposas tinham de chegar às finais.
— Neil — chamou Wymack, depois de um minuto —, está em todos os no-
ticiários. Tentamos ficar nos quartos e fora de vista enquanto você estava
com o FBI, mas esperaram pela gente. Eles têm fotos do ônibus e de todos
nós colocando as coisas no bagageiro para sair. Não demorou muito para li-
garem os pontos. Meu telefone tocou a manhã toda, entre a imprensa, o
conselho e Chuck. O conselho escolar vai querer falar com você antes que as
aulas voltem.
Neil sabia que isso aconteceria, mas por um momento pensou que vomita-
ria o café da manhã.
— Tá.
— Você quer que eu responda que não vou tecer comentários para a im-
prensa?
— Se puder. Eu vou… — Neil hesitou, mas pensou no conselho de Allison
e na relutante promessa de Kevin de ajudá-lo a enfrentar a tempestade — fa-
lar com eles na próxima semana. Pode informar isso.
— Terça-feira? Se for na terça ou quarta, você teria a segunda-feira pra li-
dar com todas as reações no campus. Vou marcar um horário e ver o que
posso fazer para distraí-los enquanto isso. Talvez eu informe que você acei-
tou ser vice-capitão ano que vem.
— Não sou qualificado o bastante — disse Neil, então apontou para os ar-
quivos dos futuros atletas espalhados pela mesa de Wymack. — Todos eles
têm mais experiência do que eu e não vão querer seguir o filho de um gângs-
ter.
— Andrew também não queria seguir você. E olha só o rumo que isso to-
mou. Você vai descobrir o que fazer, de um jeito ou de outro.
Neil olhou para as próprias mãos. Algumas semanas atrás, havia contado
todas as vidas que vivera e perdera. Agora, suas possibilidades pairavam no
ar e dependiam apenas da habilidade de Stuart de atrair os Moriyama para
seu lado. Wymack estava pedindo que Neil se comprometesse com um futu-
ro que nenhum dos dois sabia se de fato existiria. A praticidade dizia para
esperar até que tivessem certeza. Depois de um momento, porém, Neil fe-
chou o punho e se concentrou no caminho que queria.
— Vou fazer tudo que posso — disse ele.
— Ótimo. Agora anda. Dan me ligou pra dizer que vocês vão sair da cida-
de. Vê se dá um tempo de tudo isso, respira um ar fresco e volta pronto pra
fazer o impossível acontecer — respondeu Wymack.
— Sim, treinador.
Quando Neil voltou para o lounge, Kevin se levantou. Dava para notar a
tensão em seus ombros, e sua expressão indicava que queria adiar aquele
anúncio até depois que voltassem. Kevin o olhou, então passou pela porta de
Wymack, abrindo a boca para exprimir uma desculpa que Neil não queria
ouvir.
— Não faça isso com ele — disse Neil.
Kevin hesitou, e Neil sabia que tinha vencido. Abby olhou de um para o
outro, perdida. Neil não esperou e se encaminhou para o escritório dela.
Abby se juntou a ele um momento depois, ainda confusa. Neil não explicou,
mas ouviu o som abafado da porta de Wymack se fechando. Só então rela-
xou e voltou a atenção para Abby.
Enfrentar suas lesões não foi mais fácil naquele dia. Neil desviou os olhos
dos próprios braços machucados enquanto Abby removia os curativos. Ela
segurou o rosto dele com uma das mãos antes de começar a trabalhar. De-
pois, organizou um kit de viagem para que ele levasse consigo para as mon-
tanhas e deu um beijo de despedida em sua testa. Neil saiu da maca e foi es-
perar no carro.
Vinte minutos depois, Kevin apareceu com uma expressão vazia e derrota-
da. Fez menção de abrir a porta do passageiro, mas então se encaminhou
para o banco de trás. Neil não disse nada e girou a chave na ignição. Foi uma
viagem curta de volta à Torre das Raposas, e Kevin não saiu quando Neil es-
tacionou. Neil esperou apenas um minuto antes de entender o que aquilo
significava e abrir a porta. Deu dois passos para longe do carro, voltou e
abriu a porta de novo. Kevin estava com o cotovelo apoiado na janela e o
rosto na mão. Neil repensou o que ia dizer.
— Eu conto para eles. Você não precisa passar por isso.
Kevin gesticulou com a mão livre: “Cai fora” ou “Não me importo”, mas
não “Não se atreva”. Mas não disse nada. Neil imaginou que não fosse dizer,
então fechou a porta e o deixou ali, sozinho em seu desespero.
Ele foi buscar Nicky e os gêmeos no quarto e os levou para o quarto de
Dan. Uma pilha de mochilas e malas de viagem no meio do cômodo indica-
va que estavam todos prontos para partir. Matt e Allison estavam sentados
no sofá. Renee desconectava os aparelhos eletrônicos e, quando terminou,
foi buscar Dan no quarto a pedido de Neil. Dan afundou no espaço entre
Matt e Allison e pegou uma caneca da mesa de centro. Neil esperou até que
todos estivessem acomodados, então olhou para Dan do outro lado da sala.
— O treinador é o pai do Kevin.
Dan cuspiu o café na mesa e se engasgou com o pouco líquido que ainda
restava em sua boca. Matt olhou boquiaberto para Neil por um segundo in-
terminável até perceber que Dan estava tossindo, e então deu um tapa forte
nas costas dela. A garota tentou dizer algo, mas emitiu apenas um chiado
rouco ininteligível. Allison e Renee olhavam para Neil como se ele tivesse
desenvolvido uma segunda cabeça, e Aaron olhou para Andrew como se
achasse que ele deveria tê-los avisado antes. Se Andrew percebeu a atenção,
não retribuiu; só tinha olhos para Neil.
— Nem ferrando! — disse Nicky, de repente. — Nem ferrando! Você tá fa-
lando sério? Você não pode estar falando sério. Quando isso aconteceu, ca-
cete?
— A mãe dele ensinou Exy para o treinador — lembrou Neil.
— E o quê, ele não percebeu que ela engravidou? — perguntou Aaron.
— Ela disse que o Kevin não era filho dele. Sabia que o treinador queria ter
uma equipe na NCAA um dia. Pensou que, se contasse, ele deixaria o sonho
de lado para ajudar na criação de Kevin. Ela não queria isso, mas também
não queria desistir do que estava fazendo e se mudar para os Estados Uni-
dos. Então, decidiu mentir. A única pessoa para quem ela contou foi o trei-
nador Moriyama.
Dan finalmente recuperou a voz.
— Há quanto tempo Kevin sabe?
— Faz alguns anos — respondeu Neil.
— Faz alguns anos — repetiu Dan, em um tom perigoso. — E não disse na-
da?
— Ele estava tentando proteger o treinador — disse Neil. — Se Wymack
soubesse que Kevin era filho dele, teria tentado tirá-lo de Edgar Allan.
Nicky fez uma careta.
— Eles nunca teriam deixado Kevin ir embora.
— Ele deveria ter falado alguma coisa quando fugiu — insistiu Dan. — Já
faz um ano e meio que está aqui. Não tinha o direito de esconder algo assim
do treinador por tanto tempo. Meu Deus, ele não… — A voz de Dan falhou
um pouco, mais pesar do que indignação, e Neil presumiu que ela estava
imaginando a reação de Wymack ao ser pego de surpresa pela verdade. —
Isso não está certo. Não é justo.
— Não — concordou Neil baixinho —, mas pelo menos agora o treinador
sabe.
— Puta merda. Qual foi a reação dele? — perguntou Matt.
— Eu não estava lá durante a conversa, mas acho que não correu bem.
Dan fez um barulho terrível e se levantou do sofá. Matt estendeu a mão pa-
ra ela e tomou um tapa na mão. A garota correu para o quarto e bateu a por-
ta ao entrar. Matt parecia pasmo com aquela reação tão intensa, mas Renee
assumiu o lugar vazio e enganchou seu braço no dele. Apesar da demonstra-
ção silenciosa de apoio, Renee olhava para Allison. O olhar que trocaram era
de cansaço.
— Ela nunca vai perdoar o Kevin por isso — afirmou Allison.
— Vai perdoar quando o treinador também perdoar — argumentou Renee.
Allison não respondeu; sua expressão cética era o bastante. Neil concordou
com Allison em silêncio. Havia passado bastante tempo com os veteranos
para saber o quanto Dan admirava Wymack. Era a única figura paterna que
a garota já tivera e representava tudo que ela aspirava ser na vida. Dan per-
doara muitas injustiças ao longo dos anos com as Raposas, mas a maioria
havia sido dirigida a ela e a seus amigos. Perdoar alguém por machucar Wy-
mack era mais do que ela poderia aguentar.
— Fiquem de olho nela? — pediu Neil.
— Claro — confirmou Renee.
Neil foi para o quarto ao lado fazer as malas. Não demorou muito, mas não
voltou quando terminou. Ele se sentou no sofá e esperou que os colegas de
time se recompusessem. Matt apareceu quinze minutos depois, mas mais
vinte se passaram até que Nicky viesse procurá-los. Matt pendurou a mochi-
la de Neil sobre um ombro e a dele sobre o outro, e deixou Neil abrir a fe-
chadura. Kevin havia entrado em algum momento e parecia totalmente
exausto ao lado de Andrew. Era óbvio que Dan ainda parecia mais irritada
do que nunca, distante dos outros. Nem olhou para Matt quando ele se
aproximou, e saiu pisando duro em direção à escada.
As Raposas desceram em uma fila dispersa e jogaram as malas na caçamba
da caminhonete de Matt. Andrew foi o único a ficar com sua bagagem, e
Matt não tentou tirá-la dele. Matt tinha uma rede escondida embaixo do
banco do passageiro e levou apenas um minuto para encaixá-la. Com as ma-
las guardadas, as Raposas se dividiram entre a caminhonete de Matt e o car-
ro de Andrew e pegaram a estrada.
A caminha da interestadual, Andrew desviou para um depósito de bebidas.
Nicky entrou sozinho, ficou ali por quinze minutos e voltou com uma quan-
tidade obscena de garrafas. Sem nada no porta-malas, havia espaço de sobra
para transportá-las. Andrew abriu o zíper e virou sua mochila. Estava cheia
de suéteres, uma escolha estranha para as montanhas, até que Neil percebeu
que as roupas seriam usadas apenas para proteger as garrafas. Neil esperava
que ele tivesse colocado roupas mais práticas nas coisas de Nicky ou Kevin.
Alguns minutos depois, já estavam de volta à estrada. Levaram pouco mais
de duas horas até chegar às montanhas, mas parecera uma viagem curta pa-
ra atletas que estavam acostumados a viajar para os jogos. Neil pensou que
em algum momento se encontrariam com Matt na estrada, mas os veteranos
chegaram primeiro ao local. Matt enviou uma mensagem a Neil com instru-
ções da entrada para chegarem à cabana e confirmou que estava com todas
as chaves.
Dez minutos depois, Andrew estacionou na estrada de terra do lado de fo-
ra da cabana. A enorme residência era rústica por fora e chique por dentro,
com paredes de madeira lisa e chão de taco polido. O cômodo principal ti-
nha tapetes pesados espalhados por toda parte, ossos decorativos e obras de
arte nas paredes. A cozinha estava abastecida com aparelhos novos, e um
imã enorme na geladeira anunciava a que horas as refeições do bufê eram
servidas na sede. A sala dos fundos tinha uma mesa de totó e outra de bi-
lhar. Havia também uma televisão na parede.
Um dos quartos ficava no andar de baixo, e os outros quatro eram no an-
dar de cima, um em cada canto. Dois já tinham malas, o que significava que
o grupo de Andrew se dividiria entre os andares. Nicky votou no mesmo
instante para que Neil e Andrew ficassem com o quarto no andar de baixo, e
nem Aaron nem Kevin contestaram. Neil quase reclamou, pois só havia uma
cama king-size no andar de baixo, mas como Andrew não discutiu, ficou de
boca fechada.
Todos os quartos no andar de cima tinham portas para uma varanda que
cercava a casa. No andar de baixo, duas portas nos fundos levavam a um
deck que serpenteava em torno de dois dos lados da cabana, com vista para
a encosta da montanha e um trecho a perder de vista de árvores. Havia ca-
deiras de balanço alinhadas nas varandas e pequenas lanternas equidistantes
na balaustrada. Uma banheira de hidromassagem fora instalada no canto do
deque, em forma de L, e foi ali que encontraram os veteranos. Já estavam
com roupas de banho, sentados dentro da banheira enquanto ela enchia.
— Isso não é incrível? Quero me mudar pra cá — disse Matt.
— Tem tanta… natureza. Eu moraria aqui se pudesse ficar dentro de casa
— comentou Nicky.
Allison revirou os olhos e se encostou na parede da banheira.
— A única coisa que falta é um daiquiri.
— Ainda bem que você disse isso — disse Nicky, e os quatro veteranos se
viraram para encará-los. Nicky fingiu estar chocado, depois ofendido, e le-
vou a mão ao peito dramaticamente. — Sério, pessoal? Parece até que não
sabem nada da gente.
— Nos esforçamos para isso — comentou Allison.
Ao mesmo tempo, Matt perguntou:
— O que vocês trouxeram?
— Rá. — Nicky fez uma careta para Allison. — O que não trouxemos, você
quer dizer?
— Consegui a cabana pra gente. Vocês fazem as bebidas. Tem um liquidifi-
cador na cozinha — disse Allison.
— Dois, na verdade — comentou Renee. — Vi que tinha um extra no ar-
mário em cima da geladeira.
Nicky fez uma votação rápida para saber quem queria o que e recrutou Aa-
ron e Kevin para ajudarem a levar as malas para dentro. Neil e Andrew fo-
ram até a cozinha para investigar. O freezer tinha uma máquina de gelo em-
butida e a cesta estava cheia, então Andrew a deslizou sobre o balcão e pe-
gou o segundo liquidificador. Neil ficou fora do caminho enquanto os ou-
tros descarregavam as garrafas e observou com vago interesse Andrew e
Nicky começarem a preparar as coisas. Kevin e Aaron sentaram-se à mesa e
abriram uma garrafa de vodca.
— Você faz o da Renee? — perguntou Nicky, servindo a primeira bebida.
— É contra a minha religião fazer daiquiris virgens.
Andrew não respondeu, mas Neil sabia que ele faria. Nicky recrutou Kevin
para levar as bebidas quando terminassem. Kevin e Aaron se contentavam
virando doses, mas, quando terminou de fazer as bebidas dos outros, Nicky
preparou algo colorido para si mesmo. Seguiu Aaron e Kevin até o deque,
provavelmente presumindo que Neil e Andrew viriam logo atrás.
Andrew ficou para trás a fim de limpar os liquidificadores, então pegou
dois copos para uísque no armário. Encheu ambos até o topo e entregou um
para Neil, que olhou do copo para Andrew.
— Eu não bebo.
— Você não bebia porque tinha medo de perder o controle. O que tem a
esconder agora?
A acusação certeira o pegou de surpresa. Neil olhou para a bebida de novo.
Andrew a aproximou, e ele pegou o copo. Andrew ergueu um pouco o dele
em desafio ou convite, e os dois beberam juntos. O uísque queimou a gar-
ganta de Neil. Fez com que se lembrasse das muitas noites na estrada e dos
muitos hematomas. Pensou em Wymack permitindo que voltasse para seu
apartamento em dezembro e deixando que ele guardasse seus segredos. Os-
cilou entre extremos, sem saber se o calor que se acumulava em seu estôma-
go era náusea ou alívio.
Andrew tirou um maço de cigarros do bolso de trás e trocou pelo copo va-
zio de Neil, que sacudiu a mochila, sentiu o peso distinto de um isqueiro ba-
lançando e saiu para o deque. Ficou a meio caminho da banheira para que
os outros não tivessem que sentir o cheiro da fumaça do cigarro e o acen-
deu. Virou o cigarro nas mãos, percebendo vagamente a conversa cheia de
risadas dos colegas e prestando mais atenção ao gosto em sua boca. Passou a
língua pelos dentes, imaginando o que deveria pensar.
No fim das contas, o cigarro foi o bastante para fazer a balança pender. An-
drew cheirava a fumaça de cigarro e uísque na noite em que entregara a cha-
ve de sua casa para Neil e pedira que ficasse. Neil sempre carregaria seu pas-
sado, mas não precisava ser oprimido por isso. Com o passar do tempo, po-
deria cuidar das feridas e substituir os gatilhos por lembranças melhores.
Andrew se aproximou e colocou a garrafa de uísque a seus pés. Neil desli-
zou os cigarros pela grade de madeira em sua direção. Em troca, Andrew co-
locou um copo cheio entre os dois. Neil observou a luz do sol bater na su-
perfície rochosa e jogou as cinzas cinco metros abaixo. Tirou o cigarro do
caminho para pegar o copo e beber tudo de uma vez só. Desceu rasgando
como a primeira dose, mas dessa vez o sabor não era de morte.
— Meu Deus — disse Nicky, alto demais. — Aquilo era álcool? Você aca-
bou de dar álcool pro Neil e ele bebeu? Onde eu estava quando Neil come-
çou a beber com a gente?
Apesar da aprovação estupefata de Nicky, Andrew não serviu mais uma
dose para Neil. Terminaram os cigarros longe dos outros, então voltaram
para que Neil participasse da conversa.
A sede abriu as portas para o jantar às oito da noite, então eles caminha-
ram oitocentos metros por uma estrada de terra até o prédio principal. Ha-
via comida o bastante para satisfazer o bando de atletas famintos, e os pro-
prietários estavam à disposição para receber cada grupo de hóspedes que
chegava. Os olhos roxos e a enorme quantidade de curativos de Neil atraí-
ram mais do que alguns olhares curiosos, mas a equipe foi educada e não fez
perguntas.
Quando estavam na metade do caminho de volta para a cabana, Dan pu-
xou Kevin para que parasse de andar. Neil ouviu Matt avisá-la baixinho para
não bater em Kevin onde pudesse deixar marcas visíveis, mas não sabia di-
zer se ela também tinha ouvido. Quando voltaram para a cabana, Matt acen-
deu o fogo na lareira principal, e as Raposas se enroscaram nos sofás e ca-
deiras de balanço para assistir ao crepitar das chamas. Allison contou histó-
rias de outros resorts que visitara, com um aviso obrigatório de que nenhum
daqueles lugares fazia jus às muitas propriedades da família. Ela e Matt co-
meçaram um debate sobre como as Raposas deveriam comemorar quando
conquistassem o primeiro lugar no campeonato. Neil não sabia se era tudo
uma brincadeira ou se eles estavam de fato fazendo planos; teria presumido
ser a primeira opção se não fosse pela facilidade com que Allison conseguira
a cabana.
Enquanto os colegas de equipe discutiam se deveriam fazer um cruzeiro, ir
para o Havaí ou Las Vegas, Neil pensou na grana guardada em seu cofre no
dormitório. Tinha cansado de fugir e o pai nunca receberia aquele dinheiro
de volta. Não conseguia pensar em nada melhor para fazer do que retribuir
a amizade de seus companheiros de equipe. Não disse nada, incerto do que
pensariam sobre sair de férias com aquele dinheiro sujo, mas prestou aten-
ção enquanto descreviam as férias dos sonhos. Os planos ficavam mais ela-
borados à medida que bebiam, até que Neil teve certeza de que nenhum de-
les se lembraria do que tinham falado na manhã seguinte.
Quando a conversa se voltou para tópicos mais normais, Neil se levantou
para pegar outro copo de água. Quando desligou a pia e se virou, encontrou
Aaron à sua espera no meio da cozinha. O colega ergueu o queixo em uma
ordem silenciosa para que o seguisse e saiu pela porta dos fundos, em dire-
ção à varanda. Neil colocou o copo de bebida de lado e o seguiu. Fechou a
porta o mais silenciosamente que pôde e foi encostar-se ao corrimão. Aaron
não fez nenhum movimento para diminuir a distância entre os dois.
— O Nicky é meio burro. Cometeu o erro de dizer algo para o Andrew em
vez de esperar até que pudesse falar com você a sós. Andrew quase meteu a
faca nele quando Nicky não se ligou rápido o bastante. — Aaron olhou por
cima do ombro para a porta dos fundos, talvez se certificando de que a cozi-
nha ainda estava vazia, então se virou para Neil. — Sobramos eu e você, já
que Andrew não achou por bem me alertar da situação.
— Quando foi a última vez que Andrew achou por bem falar alguma coisa
com você? — perguntou Neil.
— Quarta-feira passada.
Não era a resposta que Neil esperava. Havia preparado o terreno para que
Aaron e Andrew fizessem terapia juntos. Algumas semanas haviam se passa-
do desde que Aaron começara a frequentar as sessões com Andrew, mas
aquele era o primeiro indício de que estavam de fato aproveitando esse tem-
po. A péssima atitude de Aaron naquela primeira quarta-feira fora a única
reação que obtiveram dos irmãos. Neil presumia que os dois ainda não esta-
vam chegando a lugar nenhum. Sentiu o triunfo em um calor latente e silen-
cioso em seu estômago, que se extinguiu rapidamente quando ele ouviu o
que Aaron disse a seguir.
— Então agora você vai falar comigo. E eu vou dar uma única chance de
você me dizer a verdade. Você está mesmo trepando com meu irmão? —
Aaron esperou um pouco, mas quando Neil apenas olhou para trás em silên-
cio, perguntou: — Você costuma seguir o exemplo de homens mortos?
— O quê? — perguntou Neil.
— Só estou tentando imaginar como você foi de toda aquela atitude de
não-namoro-ninguém direto pra cama do Andrew — disse Aaron. — Você
estava mentindo pra todo mundo só pra esconder que é uma bichinha ou
viu o Drake estuprar o Andrew e decidiu que ele era uma presa fácil?
Neil deu um soco nele — uma péssima escolha em retrospecto, porque aca-
bou debruçado sobre a própria mão que latejava terrivelmente. Aaron deu
alguns passos para trás, saindo do alcance de Neil, e passou o polegar no
canto da boca, calmo. Cuspiu para o lado e se agachou para encará-lo. Ape-
sar das palavras cruéis, sua expressão era calma e inquisitiva. Neil teve a níti-
da sensação de que fora enganado, mas isso não ajudou a abrandar sua in-
dignação.
— Vai se foder — disse Neil, a voz rouca. — Vai embora enquanto ainda
pode.
— Nicky acha que vocês estão trepando por puro ódio — comentou Aaron,
como se Neil não tivesse dito nada. — Eu aposto que é outra coisa. Vamos
saber em breve, certo?
— Não se mete nisso.
— Não vou. Você queria que eu lutasse por ela. Acha que ele vai lutar por
você?
— Não — confessou Neil.
Aaron deu de ombros, depois se levantou e entrou sem falar nada. Neil es-
perou até que a queimação nas mãos virasse dormência, então se endireitou
e checou os curativos. A luz que entrava pela porta de vidro permitia que
visse a gaze limpa. Era difícil acreditar que algo pudesse doer tanto sem dei-
xar marcas.
Ele respirou fundo para sufocar a raiva ainda latente e voltou para dentro.
A caneca estava onde a havia deixado, e Aaron já estava de volta à cadeira
quando Neil surgiu na sala. Aaron não voltou a olhar para Neil naquela noi-
te, e Neil ficou satisfeito em fingir que o outro não existia.
Kevin e Dan surgiram pouco depois. Neil não identificou nenhuma contu-
são recente em nenhum dos dois, mas pareciam ter passado por um carros-
sel de emoções. Nicky se levantou sem que ninguém pedisse e foi pegar al-
gumas garrafas na cozinha. Quando voltou, Kevin havia encontrado um lu-
gar para se sentar no canto da sala e Dan estava praticamente sentada no co-
lo de Matt. Dan e Kevin estavam mais interessados em ficar bêbados do que
em contribuir para a conversa, então seus companheiros de equipe preen-
cheram o silêncio da melhor maneira possível.
Quando as Raposas se separaram para dormir, a maioria já estava tão bê-
bada que mal conseguia ficar em pé. Por sorte, Renee estava sóbria e ajudou
a conduzir os mais instáveis escada acima. Neil quase os seguiu, mas então
se lembrou que seu quarto ficava no andar de baixo. Como se pudesse ler
sua mente, Allison se inclinou perigosamente sobre o corrimão e apontou
para ele.
— Esta cabana não é à prova de som. Não atrapalhem o meu sono. Isso va-
le pra vocês dois também — disse, apontando um dedo acusador para Dan e
Matt. Dan tentou parecer inocente, mas estava bêbada demais. Allison ba-
lançou o dedo para enfatizar. — Sem sexo onde eu possa ouvir. Não é justo
com quem vai ficar na seca hoje.
— Quem sabe se você pedir com jeitinho, o Kevin ajuda — provocou
Nicky.
O olhar ofensivo de Kevin foi quase mais alto do que o resmungo revoltado
de Allison. Neil balançou a cabeça e foi para o quarto. Andrew não estava
muito atrás e os dois trocaram as roupas de Neil para que ele pudesse dor-
mir. Neil olhou para a cama com alguma consternação. A única pessoa com
quem já havia dividido a cama fora sua mãe. Ficavam espremidos no mes-
mo colchão estreito para que sempre soubessem onde o outro estava; só as-
sim ele conseguia dormir à noite. Hesitar não ajudaria nenhum dos dois, en-
tão Neil escolheu um lado e puxou os cobertores para trás com o máximo de
cuidado.
Apesar das reservas, havia algo dolorosamente familiar no peso de outro
corpo em sua cama. Menos familiar era a sensação de ser empurrado mais
fundo no colchão, com as mãos de Andrew em seus ombros e a língua em
sua boca, mas Neil com certeza poderia se acostumar com aquilo.
Ele não se permitiria ficar pensando nas coisas desagradáveis ditas por Aa-
ron, mas era mais difícil abandonar a suposição de Nicky e não pensar que
aquilo não passava de uma atração alimentada pela raiva. Nicky estava mais
certo do que Neil gostaria de admitir, mas não tinha motivos para se ressen-
tir disso. Sabia o que Andrew pensava de si mesmo — e a apatia de Andrew
era precisamente o motivo pelo qual Neil decidira aceitar as suas investidas.
Mas não era mais tão simples, e Neil não sabia por que ou quando as coisas
haviam mudado. Sabia menos ainda o que fazer a respeito. Teria que avisar
Andrew, mas não naquele momento. Enterrou o mal-estar e a confusão bem
fundo e enfiou os dedos enfaixados no cabelo de Andrew. Não se importava
com a dor, desde que pudesse puxá-lo mais para perto e permitir que An-
drew o dominasse até que ele não conseguisse pensar em mais nada.
As Raposas passaram a maior parte do dia seguinte ao ar livre, caminhando
para cima e para baixo nas trilhas próximas, e se inscreveram para o passeio
a cavalo que ocorreria à tarde. Montar no cavalo fez cada corte e queimadu-
ra nos braços de Neil berrar de dor, mas ele era teimoso demais para ficar de
fora. Teve tempo de se recuperar quando enfim se sentou na sela, de dentes
cerrados para suportar a dor latejante. Quando terminaram o passeio de du-
as horas, ele já tinha quase se esquecido dos ferimentos. Infelizmente, foi re-
lembrado na hora de descer e, quando voltaram para a cabana, procurou pe-
los curativos e antibióticos na mochila. Quando viu o que Neil estava fazen-
do, Andrew chamou Renee.
— Eu consigo — disse Neil, quando a garota se sentou de pernas cruzadas
na cama em frente a ele.
— Eu sei que você consegue — concordou Renee —, mas pode ser mais
fácil se alguém ajudar.
Ele poderia ter insistido na discussão, mas não teria como ganhar contra
Renee, então se submeteu aos cuidados dela. A colega não estremeceu ao ver
as feridas feias nem perdeu tempo com pedidos de desculpas e perguntas.
Apenas se dedicou à tarefa e limpou cada corte e queimadura com o maior
cuidado possível.
Quando terminou, perguntou:
— Você vai deixar as feridas tomarem um pouco de ar?
— Eu deveria, mas não quero que fiquem à mostra.
— Posso pedir pra que não digam nada — sugeriu Renee, adivinhando
com precisão a preocupação de Neil, e, quando percebeu que ele não protes-
taria, deslizou da cama e saiu do quarto.
Allison estava certa sobre os sons na cabana; Neil ouviu cada palavra que
Renee disse às Raposas a dois quartos de distância.
Neil teria ficado ali por mais tempo, mas Andrew se cansou de esperar.
Gesticulou para que ele o seguisse e saiu à procura de Kevin. Neil reprimiu
um suspiro e foi atrás. Quando entrou na cozinha, se preparou para a reação
dos colegas de equipe ao ver todos os seus machucados à mostra. Nicky se
retraiu e olhou para o outro lado, enquanto Aaron analisou os estragos com
interesse. Dan abriu a boca, mas se conteve bem a tempo. Matt foi do cho-
que à raiva em um nanossegundo, e Allison desviou o olhar o mais rápido
que conseguiu. Renee observou os colegas de equipe com um sorriso e o
olhar calmo, pronta para intervir caso algum deles não cumprisse a palavra.
Kevin foi o primeiro e único a fazê-lo, e sua reação era previsível.
— Você vai conseguir jogar?
— Vou — respondeu Neil, antes que alguém reprimisse o colega. — Vai
doer, e se os Urso-gatos pegarem muito pesado na semana que vem pode ser
um problema, mas ainda consigo aguentar. — Ele cerrou o punho para de-
monstrar e tomou o cuidado de não fazer careta ao sentir os nós dos dedos
se esticarem. — Só preciso tomar mais cuidado.
— É óbvio que não — protestou Dan. — Você não vai jogar. Acha que o
treinador vai deixar você entrar em quadra desse jeito? Eu entro no seu lu-
gar, Neil. Renee pode ajudar a Allison mais uma vez, certo? — Ela olhou pa-
ra Renee até que esta concordasse. — Confia na gente pra segurar o jogo.
Você precisa focar em melhorar pra poder jogar nas semifinais.
O primeiro instinto de Neil era protestar e dizer que aquilo era injusto; não
sobrevivera ao pai e aos abusos de Lola apenas para ficar de fora, e queria ar-
gumentar que as Raposas precisavam de toda a ajuda possível. Mas olhou
para os próprios braços e repensou as possibilidades que tinha de jogar. Era
decepcionante perceber que Dan estava certa, mas de alguma forma parecia
fazer sentido.
— Confio em vocês. Obrigado.
— Nossa — comentou Nicky. — Quem está humanizando quem nesse re-
lacionamento, no fim das contas?
Como quem não quer nada, Andrew estendeu o braço em direção ao bloco
de madeira em que ficavam as facas. Renee o tirou do alcance em um piscar
de olhos e sorriu perante a reação de Andrew à sua interferência. Nicky
aproveitou a distração de Andrew para se esconder atrás de Kevin, mais alto.
Neil não deixou de notar o olhar de Aaron para Andrew, e a raiva o domi-
nou, fazendo-o cerrar os punhos de novo. A dor nos nós dos dedos era um
aviso de que precisava relaxar, mas quando percebeu o olhar cortante de Aa-
ron em sua direção, quis enchê-lo de porrada. A dor valeria a pena.
— E por falar nisso — comentou Allison —, ainda estou esperando uma
explicação, Neil. Quando vamos falar disso?
Ela balançou os dedos indicando Neil e Andrew.
— Ao que tudo indica, nunca — respondeu Nicky, taciturno.
— Não seja ridículo — protestou Allison.
Neil fez um esforço enorme para desviar o olhar de Aaron.
— Ainda vai demorar — respondeu ele, e quando Allison pareceu afronta-
da, explicou: — Passei o fim de semana inteiro contando todos os segredos
de uma vida para as pessoas, e vou ter que fazer isso de novo assim que a
gente voltar para o campus. Acho que já revelei o bastante esta semana, né?
Allison abriu a boca, prestes a protestar, mas pensou melhor e ficou em si-
lêncio. Após uma eternidade, olhou para Dan e Renee. Dan ergueu o queixo
discretamente, e Renee se limitou a sorrir. Allison fez uma careta para am-
bas e voltou a olhar para Neil.
— Tudo bem. Pode ser mesquinho… por enquanto. Vamos acabar arran-
cando todos os detalhes mesmo.
Eles tinham tempo livre até que a sede abrisse para o jantar, então foram
para a sala dos fundos. Kevin foi direto para a televisão e mudou de canal até
encontrar um de esportes. Dan e Allison tomaram conta da mesa de totó, e
os outros se dividiram em times para jogar sinuca. Neil não fazia ideia do
que estava fazendo no jogo, mas Renee e Nicky o guiaram. Ele falhou com
sucesso, mas Andrew e Renee conseguiram segurar as pontas contra Matt e
os primos.
Antes do jantar, Neil colocou os curativos de volta nos braços. Depois, Dan
e Matt desapareceram, e Nicky e Aaron entraram no ofurô com Renee e Al-
lison. Kevin se aconchegou próximo à lareira com um livro de história, e
Andrew e Neil foram parar na cozinha. Andrew serviu as bebidas e Neil as
entregou para os colegas de equipe. Quando terminou de levar as últimas,
Andrew serviu uma dose para ele. Fizeram um brinde silencioso e beberam
juntos. O beijo de Andrew era mais quente do que o uísque e mais do que
suficiente para tirar o sabor amargo de sua língua.
Quando Dan e Matt voltaram, a equipe migrou para a sala íntima com
mais bebidas. Foi outra noite passada conversando até tarde sobre todos os
assuntos possíveis, menos Exy. O ar fresco e o álcool fizeram Neil cair no so-
no mais cedo do que pretendia, mas ele não era o único pronto para ir dor-
mir. Renee e Aaron subiram para os quartos assim que Neil desistiu de ten-
tar ficar acordado. Andrew continuou ali para ficar de olho em Kevin, e Neil
desceu sozinho para se acomodar em seu lado da cama. Acordou quando
Andrew entrou, mas voltou a dormir assim que o outro se deitou.
Algum tempo depois, unhas batendo na porta fizeram os dois acordarem.
Neil esticou o braço à procura de uma arma e acertou o braço de Andrew,
que olhou para Neil antes de se levantar. Era tarde e a cabana estava às escu-
ras, mas do lado em que Andrew estava deitado até a porta era uma linha re-
ta. Neil não conseguia ver quem estava do lado de fora, mas a voz calma de
Renee era inconfundível.
— Desculpa, preciso pegar seu carro emprestado. Volto antes do check-out.
— Acende a luz — pediu Andrew.
Neil tateou indistintamente à procura do abajur na mesa de cabeceira. En-
controu-o na quinta tentativa e protegeu os olhos quando o brilho desagra-
dável surgiu. Andrew semicerrou os olhos, incomodado, e foi até sua mala.
Renee estava parada na porta, vestida para sair, parecendo totalmente des-
perta e funesta.
— Renee? — perguntou Neil, porque era óbvio que Andrew não faria per-
guntas.
As palavras de Renee foram como uma descarga elétrica fria em seu siste-
ma:
— Kengo morreu.
Neil a encarou, mas não demorou muito para descobrir o resto.
— Jean?
— Riko o machucou. Estou indo buscá-lo — respondeu Renee.
— Eles não vão deixar você entrar em Evermore — retrucou Neil.
O sorriso dela era fraco.
— Vão, sim.
Andrew depositou as chaves na palma da mão dela, que assentiu em grati-
dão e se virou. Andrew a seguiu, presumivelmente para trancar a porta da
frente quando ela saísse. Neil ouviu o motor ligar do lado de fora, os faróis
do carro em feixes luminosos na janela do quarto enquanto ela se afastava
pelo caminho de cascalho. Andrew fechou a porta e voltou para a cama. Neil
esperou até que ele tivesse se coberto para apagar as luzes. Ouviu a respira-
ção de Andrew suavizar, mas não conseguiu mais dormir. Não conseguia pa-
rar de pensar em Riko e Jean, e Tetsuji e Evermore, e no que a morte de Ken-
go significava para o pedido de trégua do tio.
De algum jeito, coube a Neil explicar a ausência de Renee no dia seguinte.
Kevin recebeu as notícias tão bem quanto Neil achou que receberia e se
trancou no quarto do andar de cima sozinho para ter um ataque de pânico.
A manhã começou com café irlandês. O período da tarde foi um pouco me-
lhor, até que perceberam que Renee havia desligado o celular. As Raposas
confiavam no bom senso dela, mas as férias já não eram as mesmas com sua
ausência.
Renee voltou no meio da manhã no domingo, pois precisavam de ambos
os carros para retornar à Carolina do Sul. Neil estava na varanda dos fundos
com Andrew, assistindo ao cigarro se queimar, quando ouviu o barulho dos
pneus no cascalho. Nicky cochilava em uma das cadeiras de balanço, com a
caneca de café já esquecida na mão que a segurava frouxamente. Neil o acor-
dou e entrou. Os outros se encaminharam para a sala assim que ouviram o
carro. Quando Renee entrou, todos esperavam por ela.
— Ah. Bom dia — disse a garota.
— Como ele está? — perguntou Kevin.
— Nada bem, mas Abby está fazendo o melhor que pode.
— Tá de sacanagem que você sequestrou o Jean — comentou Dan.
— Eu não precisei. — Renee deu de ombros, tirando o casaco e ajeitando-o
com cuidado no espaldar da cadeira. — O presidente da Edgar Allan mora
no campus, então dei uma passadinha na casa dele e pedi que interferisse.
— Você não fez isso — retrucou Allison, encarando-a.
— Eu fiz ele falar com Stephanie no telefone — comentou Renee, referin-
do-se à mãe adotiva. — Ela deixou claro que ele tinha duas opções: resolver
isso em silêncio, só entre a gente, ou ela faria com que todos os colegas de
trabalho espalhassem a notícia dos trotes violentos em Evermore. Ele esco-
lheu o que seria menos prejudicial para a faculdade, ou pelo menos tentou.
O treinador Moriyama não nos trouxe Jean quando o sr. Andritch solicitou,
então fizemos uma visita surpresa ao estádio. Vocês sabiam que nem o presi-
dente tem acesso à quadra? Acho que ele não sabia que seus códigos esta-
vam desatualizados. Teve que pegar os novos com o segurança. Enfim, os
Corvos não estavam esperando pela gente.
— Pra dizer o mínimo — retrucou Matt, seco.
— O mestre teria encoberto tudo — comentou Kevin. — Se soubesse que,
por algum motivo, Andritch estava procurando Jean, teria encontrado um
jeito de escondê-lo.
— O treinador Moriyama não estava lá. Foi para Nova York — afirmou Re-
nee. Kevin a encarou, incrédulo. Renee balançou a cabeça e disse: — Ele foi
convidado pro funeral. O Riko não foi.
Kevin estremeceu da cabeça aos pés.
— Não.
Riko era filho do pai apenas no nome; passara a vida inteira longe dele e do
irmão. Apesar da indiferença, Riko sempre acreditou que seu sucesso em
quadra chamaria a atenção da família e garantiria sua aprovação. A morte de
Kengo tivera um impacto desastroso nos sonhos de Riko, e Kevin havia aler-
tado a Neil que a reação dele seria extrema. O fato de Ichirou ter convidado
o tio, mas ignorado completamente o irmão era como jogar ácido em uma
ferida aberta. Sem ninguém por perto para impedir Riko nem distraí-lo de
um luto que se misturava com a fúria, Jean se tornara um imenso alvo.
— Quando viu o estado de Jean, o sr. Andritch deixou que eu o levasse —
afirmou Renee. — Passei meu número para ele e prometi ficar em contato
enquanto a universidade conduz as investigações. Abby também prometeu
que vai mantê-los atualizados sobre a recuperação dele. Infelizmente, ou
não, Jean não está disposto a dar nenhum nome nem prestar queixas. Não
está feliz por ter vindo pra Carolina do Sul. Já tentou fugir duas vezes.
— E ir pra onde? Não pode ser de volta pra Evermore. Ele perdeu o juízo?
— perguntou Nicky.
— É autopreservação — comentou Neil. — Se Riko e Tetsuji acharem que
Jean deu com a língua nos dentes, vão matá-lo. Até o fato de ter ido embora
pode ser considerado uma provocação, porque ele não está onde deveria.
— E qual o tamanho do estrago? — perguntou Matt. — Kevin foi liberado
do contrato com a universidade quando se machucou.
— Eles não tinham outra escolha, eu não podia jogar — explicou Kevin. —
Se Jean tiver chances de melhorar, eles ainda podem reivindicar a sua volta,
e não tem nada que a gente possa fazer.
— Mas agora o presidente está envolvido na história, né? — disse Nicky. —
Então o conselho universitário vai se meter em breve, e vão fazer o possível
e o impossível pra esconder isso. Se a notícia vazar, pode acabar com a repu-
tação que eles tanto amam.
— Se o Jean não acusar ninguém e minha mãe aceitar não falar nada, pode
ser que concordem em transferi-lo para outra universidade. Pelo menos esse
é o cenário mais favorável — explicou Renee.
— Jean não vai concordar — sussurrou Kevin.
— Talvez você consiga convencê-lo. Eu agradeceria muito a ajuda — disse
Renee.
— Ele não está a salvo aqui — reiterou Kevin. — Não vou dar falsas espe-
ranças.
— Alguma esperança é melhor do que nenhuma esperança. É o mesmo
acordo que a gente ofereceu pra você, e você ainda está aqui.
— Eu fiquei por causa do Andrew — explicou Kevin.
— E eu não vou aceitar mais nenhum refugiado — interveio Andrew.
— Eu sei — contestou Renee. — Jean é um problema meu, não de vocês.
Prometo que vou lidar com as consequências e repercussões.
— Ele não tem uma família com quem ficar? — perguntou Dan.
— Os pais venderam ele para os Moriyama para saldar uma dívida. Os
Corvos são tudo o que ele tem — explicou Kevin.
Neil balançou a cabeça.
— Kevin vai falar com ele quando a gente voltar.
— Eu não disse isso — protestou Kevin.
— Mas você vai. Você já se afastou dele uma vez, sabendo o que Riko faria
na sua ausência. Não vai fazer isso de novo. Se você não o proteger agora, a
morte dele vai ser culpa sua.
— Porra, Neil. Meio pesado, né? — protestou Nicky.
Neil o ignorou.
— Renee já fez a parte difícil. Ela tirou o Jean de lá. Você só tem que ser fir-
me e fazer com que ele fique. Na hierarquia imaginária do Riko, você está
acima dele. Jean vai dar ouvidos a você.
— É — concordou Matt. — Vocês não chegaram a ser amigos um dia?
Kevin abriu a boca, voltou a fechá-la e desviou o olhar.
— Faz muito tempo.
— Kevin, por favor — implorou Renee.
Kevin ficou tanto tempo em silêncio que Neil achou que fosse se recusar,
mas por fim disse:
— Vou fazer o que puder, mas não prometo nada.
— Obrigada — falou Renee, e olhou para Neil, incluindo-o no agradeci-
mento.
Kevin balançou a mão para indicar que acabara a conversa e se virou.
— Vou arrumar as malas.
Neil o observou subir as escadas batendo os pés, vagamente ciente de Dan
e Allison, que enchiam Renee de perguntas. Quando Kevin sumiu do campo
de visão e não era mais possível ouvir seus passos no quarto, Neil foi atrás.
Subiu as escadas o mais silenciosamente possível, mas a cabana não fora
projetada para entradas furtivas, e ele sabia que Kevin o ouvira chegar. A
porta do quarto estava escancarada, mas Neil a fechou ao entrar. Kevin esta-
va sentado na cama, com um dos joelhos encostado no peito e o olhar vazio
e distante. Neil se sentou de pernas cruzadas na ponta da cama e esperou.
Não levou muito tempo. Kevin apoiou o queixo no joelho e perguntou:
— Como você consegue? — Kevin mexeu os dedos como se estivesse frus-
trado com a imprecisão da própria pergunta. — Depois de tudo o que acon-
teceu este ano, depois do Riko, do seu pai e do FBI, de saber que o Lorde
Ichirou descobriu sobre você, como pode não sentir medo?
— Eu sinto, mas tenho mais medo de deixar tudo para trás do que de me
apegar.
— Não consigo entender.
— Você entende, sim, ou não teria confiado no Andrew e no treinador
quando veio para cá. O problema é que você se entregou nas mãos deles e se
recusa a se comprometer mais do que isso. Pensa que o Riko vai machucar
você por desafiá-lo, então sente medo de ultrapassar demais os limites. Mas
não vai conseguir se salvar se ficar em cima do muro para sempre.
“Kevin”, disse Neil, e esperou até que o outro retribuísse seu olhar. “Você
precisa descobrir o que quer mais do que tudo, aquilo que você morreria ca-
so perdesse. É isso que está em jogo caso você deixe o Riko vencer. Pense em
tudo que seu medo pode custar. Se for coisa demais, você precisa comprar a
briga. Prefere morrer tentando ou nem tentar?”
— De qualquer jeito, o resultado é a morte — ressaltou Kevin.
— Morrer em liberdade ou morrer como um fracasso. A escolha é sua, mas
escolha um lado antes de falar com o Jean de novo. Não vai conseguir con-
vencê-lo se ele perceber que você está blefando.
Kevin não respondeu, então Neil se levantou da cama e o deixou sozinho.
Quando voltou para baixo, os outros discutiam o café da manhã. Renee ti-
nha passado em um drive-thru na volta para a cabana, mas os demais cole-
gas de equipe decidiram adiar a refeição até depois que entregassem as cha-
ves na sede. Tudo o que restava a fazer era arrumar as malas, então cada um
voltou para o próprio quarto para tirar as mochilas dos armários.
Colocaram as coisas nos carros e foram a pé até a sede pela última vez. Re-
nee bebia chá e os outros se empanturravam de ovos e bacon. Ninguém dis-
se uma palavra sobre Jean, pois alguém poderia ouvir, apesar de duvidarem
que alguém naquele salão conseguisse reconhecê-los e ligar os pontos. De-
volveram as chaves ao sair e se dividiram em dois carros. Andrew saiu pri-
meiro, e a viagem de volta ao campus começou.
Deram uma passada na casa de Abby para que Kevin pudesse falar com Je-
an. Abby havia deixado a porta da frente destrancada, como era de costume,
e todos entraram sem bater. Dan gritou um oi para avisar a Abby que tinha
gente chegando, e Abby respondeu mais à frente no corredor.
Encontraram-na sentada à mesa da cozinha com Wymack. Pratos no bal-
cão e guardanapos amassados na mesa indicavam que haviam acabado de
almoçar. Abby organizou a bagunça e guiou Kevin pelo corredor em direção
ao cômodo onde Jean descansava. Neil olhou para o treinador, tentando en-
tender se ainda estava abalado pela confissão de Kevin. A fisionomia calma
de Wymack era impenetrável, o que não impediu que Dan o encarasse como
se pudesse enxergar através daquela máscara.
— Consenso? — perguntou Wymack, quando ouviu a porta se fechar.
— Ele pode ficar escondido com a gente até melhorar. E o que decidir fazer
depois é problema dele — respondeu Dan.
Wymack assentiu.
— Neil, o conselho sabia que você ia voltar hoje.
— Eles querem conversar — concluiu Neil, sem de fato perguntar.
— Me mandaram ligar assim que você voltasse. Você já voltou?
Era tentador aceitar a proposta nas entrelinhas e se esconder mais um pou-
co, mas Neil estava ficando sem tempo. O recesso de primavera havia acaba-
do. As aulas voltariam no dia seguinte e os colegas de classe tinham ouvido
as notícias havia uma semana. Em um ou dois dias, teria que enfrentar a im-
prensa e confirmar tudo o que já haviam descoberto. Sem saber o motivo,
Neil se pegou pensando em qual teria sido a reação do treinador Hernandez
às notícias. Ele se perguntou se os repórteres teriam ligado em busca de in-
formações. Com certeza os antigos colegas de time tinham muito a dizer. Ci-
dades pequenas se sustentavam à base de fofocas.
— Já — respondeu Neil. — Já voltei.
Wymack saiu para fazer a ligação.
Abby retornou sozinha e olhou para os membros do time.
— Jean não consegue receber tantas pessoas.
— Só viemos deixar a Renee e o Kevin — explicou Matt.
Abby voltou a se sentar e olhou para as Raposas.
— Renee disse que a cabana era uma graça.
Eles se esforçaram para descrever os detalhes. Aaron não contribuiu muito,
mas pelo menos parecia prestar atenção na conversa. Tinham acabado de
começar a contar sobre o passeio a cavalo quando Wymack voltou. O treina-
dor parou na porta, em vez de voltar para a cadeira. Neil entendeu e foi até
ele. Andrew ficou para trás, como Neil sabia que faria; Kevin precisava mais
dele do que Neil naquele dia.
Charles Whittier, presidente da Universidade de Palmetto State, morava
em uma casa grande perto dos portões da frente do campus. Wymack e Neil
seguiram pela calçada de pedra ao redor da casa até a porta, e Neil ficou
mais para trás quando o treinador tocou a campainha. Wymack ligara com
antecedência para avisar, e Whittier abriu a porta quase na mesma hora.
— Chuck — disse Wymack, sem cumprimentá-lo.
— Treinador — respondeu Whittier, olhando para Neil. — Podem entrar.
Passaram por uma sala de estar em que caberia todo o apartamento de Wy-
mack e uma sala de reuniões maior do que o quarto de Neil na Torre das Ra-
posas. O escritório de Whittier ficava nos fundos, perto da cozinha. Ele ges-
ticulou para que se sentassem e fechou a porta. Não havia nada na mesa
além de um computador e um telefone, mas uma bandeja no armário próxi-
mo exibia copos de chá gelado. Ele entregou dois para Wymack, que passou
um para Neil, e se sentou em sua cadeira. Neil se segurou à bebida como se
o líquido fosse dar a coragem que precisava para fazer aquilo.
Whittier ainda o olhava como se Neil fosse explodir a qualquer instante,
mas enfim disse:
— Vamos começar.
Ele bateu no botão do mouse e um segundo depois seu telefone tocou.
Uma voz automatizada os recebeu no sistema de conferência. Depois que
Whittier digitou o código de acesso, a voz declarou: “Há vinte pessoas nesta
ligação, incluindo você”, depois uma série de bipes altos se seguiram confor-
me todos se conectavam.
— Aqui é o Whittier. Estou com o treinador David Wymack e… Neil Jos-
ten — disse e olhou para Wymack — aqui comigo. Quem está presente?
Eles se apresentaram, dizendo os nomes e cargos. Neil sentia que o depar-
tamento inteiro de administração comparecera à chamada; os presentes va-
riavam de responsáveis pelo Apoio aos Estudantes à Assembleia de Ex-alu-
nos e todos os onze membros do Conselho de Administração. Depois que
todos foram apresentados e contabilizados, Whittier deu início à reunião.
A isso se seguiram as horas mais longas da vida de Neil. Era óbvio que não
era a primeira vez que se reuniam desde que haviam descoberto a verdade
sobre ele; a conversa parecia continuar de onde tinha parado, e os argumen-
tos mais recentes de Wymack foram citados. Neil teve a oportunidade de de-
fender sua estadia, e Wymack o defendeu com firmeza quando o Conselho o
encheu de perguntas e exigências.
Quando terminaram de interrogá-lo, passaram a brigar entre si. Debatiam
os riscos de manter Neil na universidade, mas estavam igualmente interessa-
dos na publicidade; como ficariam, aos olhos da mídia, se o dispensassem
no fim do ano e como seriam vistos se o defendessem. Neil teve vontade de
relembrá-los de que estava presente. Em vez disso, contou até dez e bebeu o
chá. Wymack não estava nada contente com os comentários impiedosos e
sua tolerância não durou muito.
— Olha só — interrompeu ele, ignorando quando Whittier gesticulou para
que não se metesse. — Olha só — repetiu ele, mais alto, quando os outros
continuaram a falar. Wymack esperou alguns segundos e depois continuou:
— Desde o primeiro dia em que cheguei, vocês questionaram cada decisão
que tomei. E eu sempre provei que sei o que é melhor para a equipe, tanto
para os jogadores quanto para os interesses da universidade. Não é verdade?
“Esta decisão deveria ser mais fácil do que foi contratar Andrew”, acrescen-
tou Wymack, sem esperar que concordassem. “Com Andrew, pedi que tives-
sem fé e paciência, porque sabia que levaria tempo até que vissem que a de-
cisão valeu a pena. Desta vez, os resultados já estão à mostra. Vocês têm tira-
do proveito dos benefícios da presença de Neil desde agosto.
“Neil é um membro essencial da minha equipe”, continuou Wymack, ba-
tendo um dedo na mesa para enfatizar. “Podem perguntar a qualquer pessoa
no time, e todos vão concordar: não estaríamos onde estamos hoje se ele
não estivesse aqui com a gente. Estamos prestes a chegar às finais. Faltam
quatro jogos, só quatro!, para sermos campeões da NCAA. Estamos prestes
a ser o primeiro time do país a derrotar os Corvos de Edgar Allan. Nossa es-
calação é composta por atletas que, ao se formar, vão poder jogar profissio-
nalmente e chegar à seleção. Estamos reformulando a maneira como todos
pensam no programa de Exy de Palmetto State. Tirar Neil da equipe não vai
resolver a nossa situação e com certeza não é a decisão mais inteligente. O
tiro vai sair pela culatra de um jeito tão feio que vocês nunca mais vão que-
rer ver um repórter na vida.”
Todos ficaram quietos por um minuto, mas então voltaram a discutir entre
si. Por fim, abriram para votação e a decisão foi favorável para Neil.
— Obrigado — disse Wymack, em um tom que evidentemente significava
que o treinador estava mais irritado com a teimosia deles do que grato pelo
apoio. — Agora que a decisão foi tomada, tem mais uma coisa que preciso
dizer, já que estão todos aqui. É melhor receberem essa notícia de mim do
que da imprensa.
— O que foi agora? — perguntou um dos membros do Conselho.
— Recentemente, fui informado de que tenho um filho — contou Wy-
mack, com tom e expressão neutros, mesmo parecendo tenso em sua cadei-
ra. — Vou agendar um teste de paternidade agora que estamos de volta ao
campus, só porque quero que a papelada conste no arquivo.
— Parabéns — disse alguém, mais por obrigação do que qualquer outra
coisa.
Wymack abriu a boca, fechou-a e tentou de novo.
— É Kevin Day.
O silêncio que se seguiu foi profundo. Finalmente alguém conseguiu per-
guntar:
— Como é que é?
— Ele me contou na semana passada. Kevin foi… inspirado — explicou
Wymack após buscar pela palavra certa — pela situação de Neil a me contar
a verdade. Achei melhor falar agora porque ele tem planos de revelar isso à
imprensa esta semana. Vamos usar essa notícia para ajudar a combater as
críticas negativas a respeito de Neil. Só pra constar, essa descoberta não tem
impacto algum nas minhas atividades como treinador.
— Entendido — disse uma mulher, parecendo incerta.
Então outra discussão começou. Dessa vez foi mais curta, centrada sobre-
tudo na reação que a universidade teria perante o público quando a notícia
fosse ao ar. Enfim, tudo foi resolvido e a reunião chegou ao fim. A linha api-
tava a cada pessoa que desligava. Whittier esperou para ouvir os dezenove
bipes antes de sair da sala de reuniões.
— Isso foi inesperado — confessou Whittier, com os olhos fixos em Wy-
mack.
Neil julgou que procurasse por sinais de que o treinador já soubesse disso
havia anos, e não uma semana.
Wymack não teve problemas para interpretá-lo, mas, em vez de declarar
inocência, se limitou a dizer:
— Acima de tudo, eu sou o treinador dele.
Whittier balançou a cabeça.
— De presidente para treinador, é exatamente isso que quero ouvir e espe-
ro que você mantenha sua palavra. De Chuck para David, sinto muito. Não
deve ter sido nada fácil descobrir isso.
— Obrigado — disse Wymack, após alguns instantes.
Whittier se levantou e os levou até a porta. Wymack deu uma carona para
Neil até o dormitório. Neil passou o tempo no carro olhando pela janela e se
perguntando se deveria dizer algo. No final, decidiu confiar em Abby e Dob-
son para ficarem de olho em Wymack. Disse um simples “obrigado” quando
Wymack o deixou na calçada e entrou sem olhar para trás.
O que Neil mais teria gostado seria poder ter continuado na cama no dor-
mitório, mas a segunda-feira trouxe de volta a realidade das aulas. Seus feri-
mentos atraíam mais olhares demorados do que gostaria, e alguns colegas de
classe mais ousados o pressionaram para saber fofocas. Não tinha por que
mentir, mas isso não queria dizer que precisava contar a verdade. Neil repe-
liu um atrás do outro.
— Não quero falar disso — dizia ele, cada vez mais alto, sempre que al-
guém ignorava o aviso.
Quando o sinal soou ao fim da última aula, Neil sentiu um alívio quase de-
bilitante. Praticamente fugiu da sala e seguiu a multidão de estudantes baru-
lhentos prédio afora, descendo as escadas. Deu dez passos ao ar livre antes
que alguém surgisse em seu caminho. Neil estava acostumado a se esquivar
de corpos no campus, então deu um passo para o lado e continuou andan-
do. O homem falou:
— Você vai parar.
Neil pensou que não era com ele, mas olhou para trás por instinto. Ele se
arrependeu imediatamente e parou, assustado. O homem era japonês, mais
velho que os estudantes alheios que passavam, mas vestido com roupas ca-
suais para não se destacar. Encarou Neil como se ele fosse a pior coisa que já
tivesse existido e gesticulou, não um convite, mas uma ordem.
— Estamos de saída.
Neil quase perguntou para onde, mas pensou melhor no último segundo.
Seguiu o estranho até o estacionamento da biblioteca. Havia um carro para-
do no meio-fio e, quando alguém abriu a porta do banco de trás, Neil en-
trou. O homem que o acompanhara bateu a porta e andou até o banco do
carona.
Ninguém disse uma palavra. Neil olhou pela janela, prestando atenção no
caminho caso precisasse voltar sozinho, mas não teve muito tempo para
pensar. Foi levado para o canteiro de obras do outro lado do campus. Viu
carros estacionados e equipamentos ociosos, mas nenhum operário. Grande
parte da área externa do novo dormitório estava pronta, e os homens deveri-
am estar ocupados lá dentro, mas Neil preferiria ter testemunhas.
Havia apenas outro carro estacionado ali. O motorista parou ao lado e des-
ligou o motor, mas ninguém se moveu. Depois de um minuto de um silên-
cio tenso, Neil entendeu a deixa e saiu. A porta em frente a ele estava des-
trancada. Neil abriu, mas hesitou no meio do movimento quando reconhe-
ceu quem o esperava dentro do carro.
À primeira vista, Ichirou Moriyama não parecia grande coisa. Seu terno de
seda preto exalava uma riqueza excessiva, mas suas feições juvenis prejudi-
cavam essa pretensão. Era apenas alguns anos mais velho do que Neil, e a
genética o fazia aparentar ser ainda mais jovem. Era só mais um empresário
com ambições, ou, talvez, outro herdeiro feito CEO e vivendo uma vida de
luxo. Neil se deixou enganar por um segundo, e então olhou nos olhos de
Ichirou, no banco traseiro.
Aquele homem não era como o pai de Neil, com temperamento forte, jeito
durão e uma péssima reputação. Não era como Riko, egoísta, cruel e adepto
a birras infantis. Era um homem que poderia colocar ambos sob controle
com um simples olhar, um homem nascido para comandar. Era o poder dos
Moriyama em carne e osso e, com a morte do pai, estava sozinho e intocável
em seu trono.
Neil considerou se virar e se afastar, mas suspeitava que seria um ótimo jei-
to de levar um tiro nas costas. Não sabia por que estava ali, já que nem Riko
havia conhecido o irmão em pessoa, mas entendia que um passo em falso
significaria o fim da trégua esperançosa do tio. Desesperado, Neil tentou se
lembrar de qualquer conselho que o ajudasse a lidar com aquele encontro.
Não poderia enfrentar Ichirou como Neil Josten; precisava se portar como
um Wesninski. Cada palavra que saísse de sua boca deveria ser verdadeira, e
aquela deveria ser a maior mentira que Neil já contara.
Ele ignorou a insegurança e a onda crescente de pânico e disse, com muito
cuidado:
— Posso entrar?
Ichirou ergueu dois dedos em um comando silencioso, e Neil subiu no car-
ro. Fechou a porta, com firmeza mas sem bater, e olhou fixamente para o
ombro de Ichirou.
— Você sabe quem eu sou? — perguntou Ichirou.
— Sei — respondeu Neil, e vacilou por meio segundo ao debater qual seria
o título adequado. “Senhor” não demonstrava o respeito necessário, mas Ke-
vin se referira a Kengo mais de uma vez como “lorde”. Era um termo antigo
e esquisito, mas tudo o que Neil tinha naquele instante. — Você é o Lorde
Moriyama.
— Isso — concordou Ichirou, com uma calma comedida em que Neil não
confiava nem por um segundo. — Você está ciente de que meu pai está mor-
to? Ainda não ouvi suas condolências.
— Me parece presunção oferecer isso. É presumir que você valoriza o que
digo, mas eu não sou nada.
— Você não é um nada, e é por isso que estou aqui. Você entende.
Não foi uma pergunta, mas Neil abaixou a cabeça e disse:
— Meu pai morreu nas mãos do meu tio e o FBI está investigando o que
resta do círculo dele. Eu sou uma ponta solta e é preciso lidar comigo de um
jeito ou de outro.
— Eu posso dar um fim nisso — comentou Ichirou, e Neil acreditou. Pouco
importava que o FBI tivesse caixas lotadas com depoimentos e nomes forne-
cidos por Neil. Se Ichirou quisesse acabar com aquela história e fazer todos
os boatos desaparecerem, bastavam algumas ligações e algum dinheiro. —
Mas estou aqui. Gosto de saber o valor das coisas antes de jogá-las fora, para
entender como compensar a perda.
— Eu não valho nada agora, mas se tiver o tempo e a oportunidade, posso
pagar sua família por todos os problemas que causei. Um jogador mediano
de Exy ganha três milhões de dólares por ano. Não preciso de tanto dinhei-
ro. Posso doá-lo para a sua família. Posso repassá-lo por qualquer proprie-
dade ou instituição de caridade que você tenha herdado.
— Uma tentativa nada discreta de comprar sua liberdade.
— Meu lorde, estou tentando corrigir os erros e cumprir uma promessa
quebrada. Meu destino era pertencer ao seu tio. Era para eu ter sido criado
em Evermore para ser um Corvo e jogar pela seleção. Qualquer receita hipo-
tética que eu viesse a ter sempre foi sua por direito. Retornei ao Exy assim
que minha mãe morreu porque estou ciente do meu propósito.
— E, ainda assim, você não voltou para o meu tio — retrucou Ichirou.
Parecia um teste, e a resposta errada significaria a morte. Neil sabia qual
era a mais segura, mas um pensamento perigoso se materializou na ponta
de sua língua. O pai havia servido a Kengo, mas para ter tanto território e
poder, este precisava confiar nele. Nathan tinha o direito de informá-lo de
ameaças e possíveis complicações. Neil não tinha tal autoridade, mas preci-
sava tentar.
— Sei que você não tem motivos para acreditar no que digo — começou
Neil, com cuidado —, e sei que ainda não mereço seu tempo ou considera-
ção. Mas sou um Wesninski. Minha família é a sua família. Por favor, acredi-
te quando digo que nunca arriscaria a segurança do seu império. Jogar por
Edgar Allan seria ir contra tudo que minha família deveria defender.
Neil hesitou, como se estivesse com medo de continuar e ultrapassar uma
linha tênue. Ichirou esperou. Neil desejou poder ler algo, qualquer coisa, no
rosto de Ichirou, mas a expressão dele era serena e seu tom não mudara des-
de o começo daquela conversa terrível. Neil não sabia se estava enganando
Ichirou e não sabia se faria a diferença, ainda que fosse possível.
Neil respirou fundo e acrescentou:
— Seu irmão vai destruir tudo o que você tem a não ser que seja subjuga-
do.
Foi o suficiente para ganhar um sorriso discreto de Ichirou. Neil deu tudo
de si para não se retrair quando Ichirou afirmou:
— Uma suposição um tanto ousada.
— Sim, mas é a verdade.
Ichirou ficou em silêncio por tanto tempo que Neil se perguntou se deveria
sair do carro e ir embora. Finalmente, Ichirou gesticulou para que ele conti-
nuasse.
— Riko passou a vida inteira tentando ser o melhor jogador em quadra.
Quando sente que sua superioridade está ameaçada, ataca sem se preocupar
com as consequências. Tudo o que aconteceu no ano passado serve como
prova da instabilidade crescente dele.
“Kevin Day foi o segundo maior investimento do seu tio, mas Riko o lesio-
nou por causa do orgulho ferido. No início do seu segundo ano, Kevin tinha
um patrimônio líquido de sete dígitos entre seu contrato profissional, seu
lugar garantido na seleção e os patrocínios. Poderia fazer sua família ganhar
quinze, vinte milhões por ano após a formatura. Agora, Kevin está recome-
çando do zero.
“Riko matou um dos meus colegas de equipe em agosto e admitiu o que fez
em local público. Em novembro, interferiu no sistema de justiça de Oakland
e deixou uma trilha de dinheiro da Califórnia até a Carolina do Sul só para
ferir outro companheiro de equipe, e em dezembro comprou um psiquiatra
em Easthaven, em Colúmbia, para continuar essa tortura. No recesso de Na-
tal, me fez voltar à minha aparência natural para que o pessoal do meu pai
pudesse me encontrar e me matar. Foi ele quem criou as bases para o con-
fronto em Maryland que culminou com a morte do meu pai e toda esta in-
vestigação por parte dos agentes federais.
“Na semana passada, ele reagiu à morte do pai agredindo um dos colegas
de equipe até deixá-lo por um fio. Sorte dele que era Jean Moreau; Jean sabe
quem sua família é e nunca prestaria queixas contra Riko. Mas Jean agora
está sob nossa custódia enquanto se recupera e a Universidade de Edgar Al-
lan está conduzindo uma investigação por baixo dos panos contra os Cor-
vos. Vão descobrir todos os trotes e abusos que seu tio tolera e alguém vai
ter que responder por isso. O que acontece se eles encontrarem evidências
das manipulações de Riko durante a investigação?
“Não estou dizendo que seu irmão tenha ultrapassado limites”, mentiu
Neil, “mas ele não tem tomado cuidado. Está ficando pior porque se sente
ameaçado, mas há cada vez mais pessoas de olho na gente agora. Cedo ou
tarde, ele vai ser pego, e tenho medo de que isso acabe resvalando em você.
Não vou me permitir correr tamanho risco, então não posso jogar para o
seu tio em Edgar Allan. Sinto muito.”
Outro silêncio interminável se seguiu. Um dia, uma semana ou um ano se
passou.
— Olhe bem nos meus olhos e ouça com muito cuidado — disse Ichirou,
por fim, e Neil arrastou o olhar para o rosto dele. O sorriso já havia sumido
havia muito tempo, e seus olhos escuros pareciam enxergar através de Neil.
— De onde venho, a palavra de um homem vale tanto quanto o nome, e esse
nome ganha importância de acordo com a quantidade de sangue que ele
derrubou pela minha família. Você nunca me provou nada e nunca disse
uma verdade. Não vale o ar que respira. Consideraria sua morte o pagamen-
to justo para todas as dívidas que me causou.
“No entanto, você é filho do seu pai, e seu pai significava algo para mim. É
por causa dele que vim até aqui pessoalmente, em vez de mandar alguém
para falar com você. Sabe o que vou fazer se achar que está desperdiçando
meu tempo? Sabe o que vou fazer com qualquer pessoa que você já tenha
conhecido ou com quem já tenha falado? Vou matar todo mundo que um
dia já defendeu você e fazer com que cada morte dure uma eternidade.”
Não soava como uma ameaça; era uma promessa.
— O que posso fazer para convencer você de que estou dizendo a verdade?
— perguntou Neil.
— Nada — respondeu Ichirou, e disse algumas palavras em japonês para os
dois homens sentados nos bancos da frente.
O passageiro da frente tirou um celular do bolso. Neil não conseguia en-
tender uma palavra do que o homem dizia, mas reconhecia o tom raivoso
em sua voz. Por um momento torturante, pensou que ele arquitetava mortes
horríveis para todas as Raposas. Quando uma nova onda de pânico amea-
çou surgir, Neil cerrou os dentes e encarou o assento vazio entre ele e Ichi-
rou. O passageiro fez diversas ligações durante vários minutos, depois desli-
gou e guardou o celular. Usou um tom respeitoso ao voltar a se dirigir a
Ichirou.
Fosse lá qual fosse a notícia, a expressão de Ichirou não se alterou. Ele ba-
teu o polegar no tornozelo e refletiu. Neil não sabia quanto tempo ficaram
em silêncio, dez minutos ou dez vidas, mas tinha certeza de que estava pres-
tes a morrer.
— Talvez sua vida tenha um preço, afinal — disse Ichirou. — Oitenta por
cento dos seus ganhos durante toda sua carreira vão ser o suficiente. Espero
dízimos semelhantes de Day e Moreau. É o mínimo, considerando que mi-
nha família financiou o treino deles. Alguém vai entrar em contato para fa-
zer os arranjos. Se você não conseguir entrar em uma equipe após se formar,
o acordo vai ser cancelado e você vai ser executado. Estamos entendidos?
O choque fez o ar fugir dos pulmões de Neil; o alívio era tão intenso que,
por alguns instantes, ele achou que fosse vomitar. De algum jeito, conseguiu
manter o tom calmo ao concordar.
— Entendido. Vou falar com Kevin e Jean agora mesmo. Não vamos decep-
cioná-lo.
Ichirou lançou um olhar sombrio para ele.
— Então você está dispensado, por enquanto.
Foi tão abrupto que Neil quase se esqueceu de agradecer.
— Obrigado.
Ele tentou sair do carro sem parecer que corria desenfreado, mas não tinha
certeza se tinha conseguido. Assim que fechou a porta, os dois motoristas li-
garam os motores. Neil ficou parado enquanto os carros se afastavam e ob-
servou, em um torpor, sumirem de vista. Saber que tinham ido embora não
o fez se sentir menos seguro, e Neil caiu de joelhos no asfalto. Enfiou os de-
dos no jeans esticado sobre os joelhos e tentou fazer o coração voltar a bater
no ritmo normal.
Quando achou que conseguiria se levantar sem cair, seguiu pela Perimeter
Road de volta para o campus, até o prédio em que Kevin tinha aulas de his-
tória. O relógio no celular dizia que faltavam quinze minutos para as aulas
acabarem. Ele ficou parado, encostado contra a parede e esperou. Kevin foi
um dos últimos a sair e, assim que o viu, parou.
— Vou levar você para a casa da Abby. Precisamos falar com o Jean —
anunciou Neil em francês.
— Agora não — retrucou Kevin.
— Agora, sim. — Neil esticou o braço quando Kevin pareceu pronto para
se afastar. — Ichirou veio ver a gente.
Kevin se engasgou em negação. Quando tentou falar uma segunda vez, sua
voz saiu rouca em descrença:
— Não brinca com isso.
Neil o encarou de volta em silêncio até que ele se retraísse e desse meio
passo para trás.
— Não. Ele se recusa até a encontrar o Riko. Não viria até aqui.
— Vamos — afirmou Neil.
A caminho da Torre das Raposas, Neil enviou uma mensagem para An-
drew, de modo que, quando chegaram lá, ele os esperava sentado no porta-
malas do carro. Tinha um maço pequeno em uma das mãos e um cigarro na
outra. Quando os dois se aproximaram, jogou o último para o lado e abriu o
carro enquanto descia. Era um trajeto curto do dormitório até a casa de
Abby. Neil bateu à porta, apesar de estar destrancada, e a mulher atendeu al-
guns segundos depois. Franziu a testa ao vê-los, mas abriu caminho para
deixá-los entrar.
— Vocês não têm aula agora?
— Não. Cadê o Jean? — perguntou Neil.
— Da última vez que fui ver, ele estava dormindo.
— É importante. Vou acordá-lo.
Abby estudou a expressão sombria de Kevin por um momento e se afastou.
Neil guiou Kevin e Andrew pelo corredor, e ela continuou os encarando; ele
bateu de leve à porta do quarto e entrou. Jean acordou, assustado com o ba-
rulho, e se sentou na cama. Mas, a julgar pelo som que fez ao afundar de vol-
ta no colchão, tentar se mexer tinha sido um erro. Neil aproveitou a distra-
ção de Jean e examinou os estragos que Riko causara enquanto se encami-
nhava para o lado da cama. O rosto de Jean estava todo machucado e incha-
do. Os dois olhos estavam escuros, cortesia do nariz quebrado, e pontos vol-
tavam a ligar o queixo à bochecha. Punhados de cabelo haviam sido arran-
cados, deixando partes da cabeça descoberta e outras protegidas apenas por
fios curtos. Neil suprimiu a raiva inesperada e se sentou na ponta do col-
chão.
— Oi, Jean.
— Vai embora — protestou o outro, com repugnância na voz. — Não te-
nho nada para falar com você.
— Mas tem pra ouvir, porque acabei de contar seu paradeiro para o Ichi-
rou.
Foi o bastante para chamar a atenção de Jean. Kevin se sentou do outro la-
do de Jean, com o rosto pálido mais uma vez ao ouvir o nome de Ichirou.
Neil olhou para trás para garantir que Andrew estava ouvindo e depois con-
tou sobre a visita de Ichirou: por que tinha aparecido, como havia escolhido
poupar suas vidas e o preço que teriam que pagar por isso. Kevin e Jean ou-
viram tudo em silêncio.
— Não é um perdão e não é de fato a liberdade, mas é proteção. — Neil
olhou de um rosto chocado para o outro. — Somos ativos para a família
principal agora. O rei perdeu todos os seus homens e não tem nada que ele
possa fazer sem entrar no território do irmão. Estamos seguros… para sem-
pre.
Jean fez um som terrível e enterrou o rosto nas mãos. Kevin abriu a boca,
tornou a fechá-la e olhou assombrado para Jean. Neil esperou, mas nenhum
dos dois parecia capaz de esboçar mais nenhuma reação. Por fim, ele se le-
vantou os deixou ao conforto questionável um do outro. Andrew o seguiu
para fora do quarto, mas Neil o puxou pela manga quando ele fechou a por-
ta. Andrew se virou obedientemente para ele.
— Qual a sensação de se vender? — perguntou Andrew.
— Vale cada centavo — respondeu Neil. — Ele pode ficar com tudo o que
quiser. Não preciso do dinheiro. Ele me deu tudo o que preciso: a promessa
de um futuro. Tenho a permissão, ou melhor, a obrigação, de viver a minha
vida do jeito que quero. Vou me formar em Palmetto State daqui a quatro
anos e jogar Exy até que me forcem a me aposentar. Quem sabe até possa
morrer de velhice.
— Você está cada dia mais parecido com eles — comentou Andrew.
Neil supôs que ele se referia aos colegas de equipe mais otimistas.
— Você vai ter que descobrir alguma coisa só sua para te manter em pé. Eu
estou seguro, Kevin não precisa mais da sua proteção, Nicky vai acabar vol-
tando para o Erik e Aaron tem a Katelyn. Qual vai ser o sentido de viver
quando não for mais nosso cão de guarda?
— Aaron não tem a Katelyn.
— Ficar em negação não combina com você. Já falamos disso.
— Você falou. Eu não ouvi — retrucou Andrew.
— Escolhe a gente — pediu Neil. Foi o suficiente para Andrew se calar,
mesmo que só por um segundo, mas Neil aproveitaria qualquer chance que
tivesse. — Kevin vai retomar o lugar dele na seleção assim que se formar. Ele
acha que, com tempo e prática, eu também consigo chegar lá. Vem com a
gente. Vamos jogar todos juntos nas Olimpíadas um dia. Vamos ser impla-
cáveis.
— Essa obsessão é sua, não minha.
— Pega emprestado até que ter a sua, então. — Neil segurou a manga de
Andrew com mais força quando este começou a se soltar. — Você não acha
divertido? Ter um lugar, uma equipe, uma cidade diferente a cada semana e
poder fumar e beber enquanto isso? Não quero que isso acabe.
Andrew se soltou.
— Tudo acaba.
Ele empurrou o maço no peito de Neil e saiu pelo corredor. Andrew já ha-
via cortado a fita das extremidades e Neil conseguiu abrir o pacote sem
grandes problemas e sem sentir dor. Sacudiu a caixa sobre a palma da mão,
mas não caiu nada. Teve que enfiar os dedos em busca do conteúdo e consi-
derou o tecido amarrotado com certa decepção. Não entendeu até mudar a
posição da mão e deixar as extremidades se desenrolarem. Segurava duas
faixas de braço idênticas às de Andrew. Eram longas o bastante para escon-
der os curativos e as cicatrizes novas nos antebraços de Neil.
Quando Abby se aproximou, ele ergueu a cabeça. Ela olhou de Neil para a
porta fechada do quarto, e então para o presente que Neil segurava.
— Está tudo bem?
Neil pensou um pouco, mas não por muito tempo.
— Nunca estive melhor.
Quando Neil contou as novidades, a alegria das Raposas foi quase unânime.
Até Aaron pareceu ficar feliz o bastante para parabenizá-lo. Kevin não con-
seguiu se recuperar tão rápido de ter seu mundo virado de cabeça para bai-
xo, e passou a tarde inteira distraído. Perdeu gols que costumava marcar de
olhos fechados e passou os intervalos sentado sozinho nos degraus. Wymack
não teceu comentários a respeito do desempenho medíocre e fez Dan se ca-
lar quando ela tentou dizer alguma coisa.
Dan convenceu todos a irem para o centro, para um jantar de comemora-
ção. Não podiam falar do acordo com Ichirou em público, mas podiam e fa-
laram sobre todo o resto que queriam. Ninguém deixou de notar as faixas de
Neil, mas, após algumas provocações bem-intencionadas, mantiveram a pa-
lavra e não se meteram no não relacionamento de Neil e Andrew.
Neil passou a maior parte da refeição observando Kevin e Andrew. Kevin
permaneceu calado, encarando o prato e brincando com a comida. Andrew
estava sentado na ponta da cadeira, entre os dois atacantes, com os dedos
entrelaçados e em frente ao rosto para esconder a boca. Observava a todos
com um olhar impassível, sem dizer nada. Quando alguém cometeu o erro
de tentar inclui-lo na conversa, ele se limitou a encará-los até que desistis-
sem. Neil percebeu o olhar cansado que Matt e Dan trocaram, a decepção
evidente nas caretas que repuxavam os lábios. Haviam feito um belo pro-
gresso nas montanhas, ou pelo menos era o que pensavam, mas Andrew se
fechara de novo sem aviso prévio. Neil queria dizer que Andrew estava con-
servando toda sua energia para o colapso silencioso de Kevin, mas não sabia
como comunicar isso sem atrair a ira de Andrew.
Por fim, voltaram para o dormitório. Neil seguiu Nicky até o quarto dos
primos. Kevin foi direto para o banheiro, mas deixou a porta aberta. Neil
olhou das mãos que apertavam a pia com força para o reflexo de Kevin. Não
sabia a causa daquele olhar intenso, a não ser que ele estivesse olhando para
o número em sua bochecha. Kevin fora o segundo melhor durante a vida in-
teira. Agora, tinha a liberdade de lutar pela colocação que sempre merecera
e com a qual sempre temera sonhar. Neil não o culpava por sentir medo,
mas precisava que Kevin superasse aquilo.
Quando Kevin não deu sinal de que se moveria tão cedo, Neil desistiu. An-
drew estava sentado em sua mesa, então Neil foi se sentar ao seu lado. Nicky
e Aaron estavam nos pufes, jogando video game. Passaram por três fases até
que Kevin ressurgisse.
Kevin olhou de Neil para Andrew e disse:
— Me levem pra quadra.
Era óbvio que não se importava com quem obedeceria, mas Neil olhou pa-
ra Andrew. Ele estava com a janela aberta para poder soprar a fumaça para
fora. Ainda tinha metade do cigarro, mas não hesitou em apagá-lo no peito-
ril da janela. Colocou a bituca de lado para fumar depois e desceu da mesa.
Quando chegou à metade da sala, Neil se levantou e se convidou para ir jun-
to. Kevin não pareceu notar e Andrew apenas olhou brevemente para ele.
Nicky acenou em uma despedida alegre e voltou aos monstros do jogo.
Deixaram Kevin no vestiário e continuaram para a quadra. Neil ficou perto
da parede para estudar o piso polido e as patas de raposa reluzentes. An-
drew se sentou no banco da casa e não disse nada. Kevin não demorou mui-
to e apareceu com um balde de bolas em uma das mãos e a raquete na outra.
Neil o observou atravessar a quadra vazia até a área da defesa. Kevin colocou
o balde no chão, vestiu as luvas e começou a arremessar no gol vazio.
Andrew tolerou o espetáculo até que não houvesse mais bolas no balde, en-
tão se levantou, entediado:
— Ele é mesmo patético.
— E quem não é? — perguntou Neil, sem tirar os olhos de Kevin.
Kevin analisou a bagunça ao redor e balançou a raquete de um lado para o
outro. Usou a ponta para puxar algumas das bolas que estavam mais próxi-
mas e depois passou da mão direita para a esquerda. Neil esperava que ele
fosse sacudir a mão direita e recomeçar, mas Kevin pegou a próxima bola
com a raquete ainda na mão esquerda.
Neil apoiou as mãos na parede da quadra em expectativa. As reverberações
fizeram o calor percorrer cada corte e queimadura em processo de cura em
seu braço e ele resmungou, com dor:
— Andrew.
Kevin ignorou o barulho e deslizou a bola na rede da raquete. Deu um giro
experimental e depois arremessou. Neil pensou que ele estava mirando no
mesmo lugar que havia arremessado nos últimos cinco minutos, mas a bola
caiu a meio metro de distância. Kevin sacudiu a raquete com óbvia irritação
e pegou outra bola. Deu outro arremesso, mas ainda acertou longe do alvo.
Fez o mesmo com todas as bolas que conseguia alcançar com mais facilida-
de. Acertou o alvo na quinta tentativa, e todas as quatro bolas que foram ar-
remessadas depois bateram no mesmo lugar.
Neil olhou para trás. Andrew tinha se virado ao ouvir seu nome, e sua fisi-
onomia era indecifrável. A contração no canto da boca poderia ser de des-
prezo, mas Neil não tinha certeza. Por fim, Andrew se virou bruscamente e
saiu. Neil olhou de novo para a quadra. Kevin reunia as bolas. Ele cerrou os
dentes, se preparou para a dor e bateu na parede de novo.
Kevin apontou a raquete para Neil em uma ordem para que parasse. Neil
ignorou a pulsação da mão, que alternava entre quente e fria, e acenou com
a mão esquerda para Kevin, que fez um gesto desdenhoso e voltou ao que
estava fazendo. Neil resistiu à vontade de entrar em quadra e sufocar o cole-
ga por sua imprudência, mas foi por pouco. Apenas o observou aumentar a
velocidade aos poucos, passando de arremessos parados para arremessos em
movimento. Kevin corria até as bolas enquanto quicavam e tentava arremes-
sá-las o mais rápido possível. Desenhou duas cruzes no gol, os pontos carde-
ais primeiro, seguidos pelos quatro cantos, e acertou o centro do gol com ca-
da bola que veio a seguir.
Neil estava com uma sensação estranha ao assisti-lo, mas não sabia se era
por medo de que Kevin se machucasse ou por estar fascinado. Sempre soube
que Kevin era o melhor, mas tinha quase se esquecido de como ele jogava
em seu auge.
Um flash de laranja na visão periférica de Neil o distraiu de Kevin, e ele ob-
servou Andrew apoiar o capacete no banco do time da casa. Andrew sem
dúvida notara a atenção, mas focou em calçar as luvas. Não explicaria nada
de boa vontade, então Neil perguntou:
— Você vai jogar com ele?
— Alguém precisa ficar de olho nesse idiota.
Ele puxou a última correia no lugar, amarrou o capacete e foi para o por-
tão. Não se deu ao trabalho de bater para avisar, mas Kevin, que estava vira-
do naquela direção, parou assim que o viu. Olhou na direção de Neil. A pro-
teção que usava no rosto e a distância entre eles o impossibilitava de enxer-
gar sua expressão, mas Neil podia adivinhar que havia algo de acusador. Ele
balançou a cabeça e deu de ombros com exagero, tentando parecer inocente.
Andrew bateu o portão ao entrar e foi para o gol.
Kevin levou as bolas para a área da defesa. Andrew fez um gesto expansivo
para fosse lá o que Kevin tivesse dito e apoiou a raquete despreocupadamen-
te no ombro. Ele se recusou a se mexer, mesmo quando Kevin sinalizou que
estava pronto. Kevin ficou parado, segurando a raquete por mais alguns se-
gundos, até desistir e arremessar. Andrew apenas desviou e a bola passou ao
lado de seu capacete. O gol se iluminou em vermelho. Kevin arremessou de
novo e de novo, então começou a perder a paciência e a mirar em Andrew.
A bola bateu no capacete, e Andrew por fim assumiu a posição, pronto para
jogar.
Quando Kevin arremessou de novo, Andrew defendeu, jogando a bola na
direção dele. Kevin precisou recuar para conseguir segurá-la. Assim que vol-
tou a se equilibrar, mirou no gol de novo. Andrew defendeu e devolveu na
direção dos joelhos de Kevin, que deu um passo para o lado bem a tempo.
Os dois continuaram nesse ritmo por algum tempo até que Kevin marcou
outro gol. Conseguiu marcar mais dois, mas Andrew defendeu logo a seguir,
com um movimento incrível da raquete. Daí para frente, o ritmo aumentou.
Não era mais um treino; era uma luta. Andrew tentava cortar os rebotes de
Kevin, que, por sua vez, desafiava o outro a manter o ritmo. Desde que havi-
am se conhecido, Exy representava uma ferida aberta entre os dois. Era a
parte crítica da amizade pela qual Andrew se recusava a expressar apreço e a
qual Kevin não conseguia consertar, um sonho no qual Andrew não acredi-
tava e do qual Kevin não conseguia desistir. Aquele momento, depois de
tantos anos, significava um cessar-fogo, e Neil mal podia respirar ao obser-
var o duelo. Dava até para ver o temperamento de ambos se manifestando
nos detalhes: um movimento da raquete de Kevin aqui e ali, e a brutalidade
crescente nas defesas de Andrew.
Era inevitável que Kevin ganhasse. Mesmo com a mão esquerda, ele se de-
dicava demais aos treinos para perder para Andrew. Apesar de ter todo o ta-
lento nato para ser um campeão, Andrew não tinha o refinamento de um
atleta; a força bruta não seria o bastante para vencer Kevin. Após marcar
cinco gols seguidos, Kevin deixou a raquete cair e saiu batendo os pés na di-
reção do gol. Andrew apoiou a raquete no ombro e o observou se aproximar.
Neil esperava que Kevin começasse a gritar, mas ele agarrou a grade do ca-
pacete de Andrew e o jogou com tudo contra a parede do gol. Neil estreme-
ceu e foi na direção do portão, ciente de que chegaria tarde demais para im-
pedir que Andrew arrancasse o couro de Kevin, mas precisava tentar. Parou
no meio do caminho, ao notar que Andrew não tinha se mexido. Estava
com o punho cerrado ao lado de Kevin, parecendo ter desistido do soco, e
não jogara o outro para longe. Ficou ali, parado, ouvindo o que Kevin estava
rosnando. Por fim, Kevin o soltou e se afastou. Andrew o acertou nas costas
com a ponta da raquete com força, fazendo-o cambalear e avançar para a li-
nha do gol de novo.
Alguns segundos depois, voltaram a treinar como se nada tivesse aconteci-
do, e continuaram até que Kevin enfim precisou se sentar. Neil recolheu as
bolas da quadra enquanto os dois tomavam banho e achou mais prudente
não tecer comentários para nenhum dos dois. A volta até a Torre das Rapo-
sas foi silenciosa, e Kevin seguiu direto para a cama. Andrew pegou a bituca
do cigarro na janela, acendeu-a e observou o campus escuro. Neil o olhou
durante alguns minutos e então voltou para o quarto.
No dia seguinte, Kevin tinha voltado a ser ele mesmo, despótico e sarcásti-
co como sempre. Também havia voltado a jogar com a mão direita, sem
mencionar nada sobre o treino do dia anterior. Neil pensou que talvez tives-
se machucado a mão ao empurrar Andrew com tanta força, mas, quando foi
para a quadra para o treino da noite, voltou a usar a mão esquerda. Andrew
treinou com ele sem hesitar, e os dois duelaram como se já tivessem se es-
quecido dos acontecimentos do dia anterior. Neil ainda estava de fora da
disputa, mas não se importava. Via seu futuro em cada arremesso e cada de-
fesa, cada gol marcado e impedido, e mal conseguia respirar de tanta empol-
gação.
Uma vez que as Raposas tinham folga na sexta-feira à noite e a guerra fria
entre Andrew e Aaron havia acabado, o grupo estava livre para retornar a
Colúmbia pela primeira vez em meses. Mas começaram tarde, porque Neil e
Kevin queriam assistir à partida da USC contra Edgar Allan. Os Troianos fo-
ram com tudo contra os Corvos, mas seu melhor não era bom o bastante.
Perderam a partida, ainda que pela menor diferença de gols que já haviam
conseguido.
Na entrevista pós-jogo, Jeremy aceitou bem a derrota e não se arrependeu
das decisões que haviam tomado. Evitou todas as oportunidades de criticar
os Corvos por seu estilo sujo de jogo, mas se animou quando os repórteres
focaram no quão perto os Troianos haviam estado da vitória.
— Nós quase conseguimos, né? — disse Jeremy. — Acho que ninguém es-
perava que a gente chegasse tão perto. Foi diferente sem Kevin e Jean em
quadra.
— Pior época do ano pra alguém se machucar — concordou o repórter. No
início da semana, Tetsuji havia anunciado que Jean não participaria dos
próximos jogos devido a contusões graves. — Há rumores de que Jean não
vai voltar a tempo para as finais.
— É, falei com ele no início da semana. Ele com certeza deu o ano por en-
cerrado, mas vai estar de volta no outono. Só não de preto. — Jeremy exibiu
seu sorriso aberto e não esperou as reações. — Ontem ele nos enviou por fax
a última papelada que precisávamos pra oficializar o processo, então agora
posso contar: ele vai ser transferido para a USC pra jogar seu último ano.
— Deixa eu ver se ouvi direito. Jean Moreau está saindo de Edgar Allan pa-
ra jogar pela USC?
— Encomendamos os equipamentos dele hoje de manhã, mas vamos ter
que levá-lo pra tomar um pouco de sol este verão! O coitado está pálido de-
mais pra usar vermelho e dourado agora. — Ele riu como se a notícia não
fosse causar alvoroço entre os torcedores fanáticos da Edgar Allan. — Infe-
lizmente, o número que ele usava já tem dono, mas Jean disse que não liga
pra qual vai usar. Assim que eu souber qual vai ser, aviso vocês.
— Você pode nos dizer por que ele está se transferindo?
— Não posso entrar em detalhes porque não cabe a mim falar sobre os as-
suntos pessoais do Jean, mas posso dizer que estamos empolgados em rece-
bê-lo. Acho que temos muito a aprender um com o outro. O próximo ano
vai ser incrível. Acho que vocês vão presenciar muitas mudanças em todos
os setores. Todos nós precisamos reavaliar o que estamos levando pra qua-
dra.
Nicky pegou o controle remoto e desligou a TV.
— Eu tenho uma teoria de que Renee e Jeremy são irmãos perdidos há
muito tempo. O que você acha que aconteceria se eles unissem forças?
— Seriam assassinados — apostou Aaron, levantando-se do pufe. — A
guerra é lucrativa; ninguém quer lidar com as idiotices da paz mundial dos
dois.
Nicky fez uma careta para ele.
— Obrigado por essa dose tão animada de realidade.
Os cinco desceram juntos para o carro, e Neil foi atrás, entre Aaron e
Nicky. A primeira parada de Andrew foi no Sweetie’s para tomarem sorvete.
Nicky e Aaron estavam distraídos falando sobre a distribuição dos dormitó-
rios para o ano seguinte e não pareceram notar que Andrew havia ignorado
o bufê de saladas e a tigela de biscoitos, até o momento em que a refeição
acabou e Aaron foi pagar. Ele pegou cada guardanapo na mesa à procura de
pó de biscoito, e então franziu a testa para Andrew do outro lado da mesa.
— Quantos?
Andrew não havia trocado uma única palavra durante toda a noite, mas
enfim desviou o olhar da parede oposta e encarou o irmão.
— Zero.
— Zero — repetiu Aaron, como se fosse um número desconhecido. — O
que você quer dizer com zero?
— Não vamos pegar nada? — perguntou Nicky, chocado.
Andrew o ignorou, nada interessado em repetir o que já havia dito. Nicky e
Aaron trocaram um longo olhar, havia confusão em um rosto e descrença
no outro. Andrew não ficou por perto para tirarem a dúvida, deslizou para
fora do banco e se dirigiu para a porta. Neil seguiu com Kevin logo atrás, e
os primos os alcançaram no carro. A viagem do Sweetie’s até o Eden’s Twi-
light foi silenciosa, e Andrew os deixou na calçada, como de costume. Kevin
pegou a etiqueta do estacionamento enquanto os seguranças recebiam
Nicky e Aaron entusiasmados. Eles entraram para encontrar uma mesa e
Andrew foi embora.
Apesar de ainda não haver mesas disponíveis, havia espaço para uma pes-
soa no bar. Nicky roubou o banquinho e acenou para chamar a atenção de
Roland, que apareceu assim que terminou de atender os outros clientes.
— Quanto tempo — disse Roland e acrescentou, mordaz: — De novo. Vo-
cês precisam parar de sumir do radar.
— O ano está sendo meio louco — comentou Nicky.
— Foi o que ouvi dizer — concordou Roland, olhando para Neil, logo atrás
de Nicky. — Como você está?
— Estou bem — respondeu Neil.
Roland parecia prestes a dizer mais alguma coisa, mas, depois de trocar
olhares com Nicky e Aaron, balançou a cabeça e voltou a misturar as bebi-
das. Nicky o presenteou com histórias sobre o recesso de primavera. A festa
estava barulhenta demais para que Neil ouvisse alguém se aproximar, mas
de repente Andrew surgiu ao lado dele. Roland olhou de Andrew para Neil e
vice-versa, com a testa franzida em uma preocupação maldisfarçada. Neil
percebeu que estava à procura de algum sinal de que os dois estavam bem
depois do que ele havia deixado escapar em janeiro.
Nicky sabia quando estava sendo ignorado e não teve problemas em inter-
pretar o olhar perscrutador de Roland. Interrompeu a história que contava
para protestar:
— Nem vem me dizer que sabia deles dois antes de mim! — Mas quando
Roland fez cara de culpado, disse: — Ai, meu Deus, você sabia. Que porra é
essa? Faz só umas semanas que descobrimos. Desde quando você sabe que o
Andrew é gay?
— Eles são “os dois” agora? — perguntou Roland, em vez de responder. Seu
sorriso estava de volta, largo e satisfeito, e ele parou de encher a bandeja pa-
ra servir as doses. Sempre otimista, deu uma para Neil também. Nicky dis-
tribuiu os copos, e Neil aceitou o seu após uma ligeira hesitação. Roland pe-
gou a própria dose e a inclinou em um brinde. — Precisamos bebemorar. Já
passava da hora.
— Não é motivo de orgulho — retrucou Aaron.
— Hater — protestou Nicky, e se virou para se certificar de que Neil não es-
tava deixando a própria bebida para Andrew. Eles viraram ao mesmo tempo
e Roland recolheu os copos vazios. Nicky apontou para o bartender enquan-
to este voltava a misturar bebidas. — Percebi que você não me respondeu,
viu? Você é zero discreto. E o que quer dizer com “Já passava da hora”?
— Você pode arrancar essa história do Andrew — respondeu Roland.
— É mais fácil tirar leite de pedra do que conseguir uma resposta desses
dois — lamentou Nicky. — É impossível e é bem capaz que eu quebre os de-
dos tentando. Como você sabia? Seu gaydar é mais avançado que o meu
ou… — Nicky ficou boquiaberto quando entendeu. — Espera. Nem foden-
do. Nem fodendo! Vocês dois…?
— Não — interrompeu Aaron. — Para. Não quero saber disso. Não quero
pensar nisso. Quero só beber e fingir que não conheço vocês.
— Pensei que a gente fosse amigo — disse Nicky a Roland. — Como você
pôde esconder isso de mim?
— Eu sou bartender. Não costumo deixar a bebida vazar, muito menos os
segredos das pessoas. Tirando aquela exceção — corrigiu ele, com uma care-
ta discreta para Andrew, ainda impassível. — Desculpa por aquilo, aliás.
Não quis apressar as coisas.
— Roland, a partir de agora estamos brigados — protestou Nicky, bufando.
— Talvez você consiga minha amizade de volta se me der muitas bebidas
hoje. Vamos procurar uma mesa, Aaron.
Kevin foi junto, provavelmente para se afastar das muitas reviravoltas da-
quela conversa. Andrew se sentou no banco para que ninguém se enfiasse
entre ele e as bebidas, e Neil ficou o mais próximo das costas dele que conse-
guiu. Roland serviu o conteúdo da coqueteleira em dois copos altos, alguns
refrigerantes para Neil e acabou, então enxaguou a coqueteleira em uma pia
que ia até a cintura e deslizou a bandeja cheia demais para mais perto de
Andrew.
— Então, sobre aquelas algemas almofadadas — disse Roland, e riu com a
cara que Andrew fez.
Assim que Roland se afastou para verificar os outros clientes, Andrew co-
meçou a reorganizar as bebidas em uma nova ordem indeterminável. Quan-
do ele acabou, Nicky ainda não tinha voltado, então Andrew começou a be-
ber o drinque mais próximo. Parado ali, observando-o, Neil pensou que não
se importaria de esperar por um assento a noite toda. Seu relógio ainda esta-
va correndo, mas os dias contados seguiam uma programação diferente ago-
ra. Neil tinha todo o tempo do mundo, e isso deixou um calor em seu estô-
mago mais forte do que qualquer uísque.
Como a USC havia perdido dois jogos consecutivos nas semifinais, o CRE
decidiu que seria melhor cancelar a terceira partida. Não adiantaria nada co-
locar Raposas e Corvos para se enfrentarem uma vez que ambos já estavam
classificados para as finais. As duas universidades tiveram uma semana extra
para descansar, recarregar as energias e se esquivar da imprensa sedenta por
histórias.
Sempre que tinham um microfone ou uma câmera apontados para o rosto,
as Raposas pareciam confiantes, e nem sempre era fingimento. O ódio que
sentiam de Riko ajudava a amenizar a agitação causada pelo nervosismo. Os
Corvos tinham pouco a dizer sobre as Raposas, mas era provável que fosse
porque estavam lidando com as consequências da transferência abrupta de
Jean. Nos últimos dias, ele se tornara o atleta mais requisitado nos noticiá-
rios da NCAA, mas se recusava a dizer onde estava ou a falar com a impren-
sa. Seu silêncio não ajudava os Corvos, principalmente depois da entrevista
ousada que Kevin concedera, e as especulações e rumores estavam come-
çando a sair do controle.
Na tarde de segunda-feira, Wymack informou à equipe que o jogo final se-
ria no Castelo Evermore. Apesar de não serem boas notícias, não era surpre-
sa para ninguém. Por funcionar também como o estádio da seleção nacio-
nal, o tamanho da Edgar Allan era quase cinquenta por cento maior do que
o da Palmetto State. Eles precisavam de todos os assentos possíveis. Ainda
que Wymack julgasse que o lugar não tivesse capacidade para um confronto
como aquele, com certeza era maior do que o da Carolina do Sul e acomo-
daria a quantidade de torcedores que costumava comparecer às finais.
Quando terminou seu anúncio, Wymack passou uma prancheta. Edgar Al-
lan iria reservar uma seção para “amigos e família” logo atrás dos bancos
destinados aos visitantes. Eram, ao todo, dezoito assentos disponíveis para
dividir entre nove atletas, e Wymack precisava de uma lista de nomes para
que pudesse reservar o quanto antes, a fim de se dedicar aos preparativos
para a viagem do aeroporto até Edgar Allan.
Dezoito não parecia ser muito, mas as Raposas não conseguiram preencher
a lista. Ninguém no grupo de Andrew precisava de assentos, e Allison pas-
sou a prancheta adiante sem hesitar. Renee precisava de um para a mãe ado-
tiva e doou o segundo para Matt, para que o pai dele pudesse levar a amante
da vez. Dan foi a última, para saber quantos assentos extras poderia usar.
Várias de suas irmãs de palco haviam mudado do antigo clube para empre-
gos diferentes, mas as poucas que ainda estavam lá dificilmente conseguiri-
am uma noite de sexta-feira de folga.
Naquela noite, Nicky e Aaron apareceram para o treino sem serem convi-
dados. Neil esperava que Kevin os mandasse embora com um discurso do
tipo “Agora já é tarde demais”, mas ele os colocou para praticar na hora. Na
quarta-feira, os veteranos também compareceram. Uma semana e meia não
era tempo o suficiente para tornar alguém especialista nos movimentos e
truques dos Corvos, mas Kevin deu o melhor de si. Sua atitude cáustica e jei-
to grosseiro de desprezar as habilidades dos colegas de equipe em nada aju-
davam durante o dia, mas à noite as Raposas se submetiam com uma deter-
minação silenciosa e sombria. Matt foi o primeiro a perceber que Kevin jo-
gava com a mão esquerda à noite, uma vez que coube a ele a tarefa de defen-
der os avanços do colega em quadra. Ter uma arma secreta contra os Corvos
os deixava mais animados.
Com todas as Raposas juntas, era mais difícil para Neil ficar sozinho com
Andrew após o treino, pois ficava mais óbvio que não estavam indo direto
para os dormitórios. Dividir o quarto com Andrew facilitava a tarefa de ficar
sozinho com ele entre uma aula e outra. Os treinos das Raposas se tornaram
tão longos que grande parte das aulas estavam alocadas nos mesmos espaços
de tempo. Teria sido impossível ficarem sozinhos sem a ajuda de Nicky, que
agora passava boa parte do tempo livre no quarto das outras Raposas, e ar-
rastava Kevin consigo sempre que podia. Andrew era forçado a escolher en-
tre Neil e sua natureza controladora. Às vezes, Neil ganhava; outras vezes, o
rancor de Andrew o fazia caçar a dupla de rebeldes assim que percebia o que
estava acontecendo.
A semana seguinte passou ainda mais devagar, em parte porque era a últi-
ma semana de aulas. Na sexta-feira à noite, as Raposas enfrentariam os Cor-
vos nas finais de Exy da NCAA; na segunda-feira, começariam as provas da
faculdade. Três dos professores de Neil tornaram as aulas opcionais, permi-
tindo que os alunos fossem para as revisões e os testes práticos ou optassem
por estudarem sozinhos em outro lugar. Neil tentou ir para a primeira aula,
mas desistiu na metade. Pretendia encontrar um lugar vazio na biblioteca,
mas acabou indo parar na Toca das Raposas.
Wymack não pareceu surpreso ao vê-lo, mas fez Neil jurar que não seria re-
provado em nenhuma matéria antes de emprestar algumas gravações de jo-
gos para que ele pudesse assistir. Na manhã seguinte, Neil nem tentou ir pa-
ra a aula. Entre uma partida e outra que assistia, aproveitava para correr e
fazer exercícios de cardio. Corria nos degraus do estádio logo pela manhã,
para que as pernas tivessem tempo de se recuperar até o treino da tarde. Se
esforçava para ir cada vez mais rápido, mais rápido e mais rápido, ciente de
que não adiantaria nada.
Os Corvos se moviam como trovões em quadra; raramente davam muitos
passos com a bola, porque haviam aperfeiçoado as técnicas de passe a níveis
quase impossíveis. No outubro passado, tinham colocado as Raposas no chi-
nelo. Kevin investira meses ensinando Neil a passar a bola daquela forma,
mas aquilo não lhes daria qualquer vantagem agora. De nada adiantava que
Neil e Kevin conseguissem fazer gols se a defesa não conseguisse controlar o
ataque adversário, diminuindo a vantagem de gols. Cada partida que Neil
via ressaltava essa sensação, a ponto de fazê-lo sentir vontade de vomitar.
Aaron e Andrew cancelaram a sessão de quarta-feira com Dobson para
chegar ao treino na hora, mas Kevin não compareceu ao treino de quinta à
noite. Não deu nenhuma explicação além de alegar que “precisava resolver
uma coisa”, deixando Neil no comando. Dizer aos outros o que fazer era tão
terrível quanto Neil achava que seria, mas não tinha tempo para hesitar. O
jogo seria dali a dois dias, e Neil era a única outra pessoa que sabia todos os
exercícios dos Corvos. Guiou os companheiros de equipe, sabendo que não
seriam capazes de dominar as técnicas em tão pouco tempo, mas precisando
que entendessem o que enfrentariam na sexta-feira. As Raposas faziam mui-
tas perguntas, mas não recuaram diante do desafio e, quando acabaram,
Dan se aproximou e murmurou em seu ouvido:
— Muito bem, capitão.
Já era mais de uma da manhã quando saíram de quadra. Ao voltar para o
dormitório, Neil sentiu a cabeça girar de exaustão. Enquanto os outros se
trocavam para dormir, ele ficou em pé diante da mesa, olhando para os li-
vros sem de fato enxergá-los. Folheou um dos cadernos sem entusiasmo, en-
tão empurrou tudo para o lado. Queria correr, mas sabia que seu corpo pre-
cisava de um descanso após os treinos longos daquele dia. Ele se contentaria
em andar de um lado para o outro, mas não queria que os outros percebes-
sem sua ansiedade. Era como se a dúvida pudesse arruinar tudo o que esta-
vam construindo.
Nicky voltou para a sala de estar.
— Ei. Tá tudo bem?
— Estou bem — disse Neil. — Só pensando.
Nicky ficou em silêncio, mas demorou um minuto para se virar. A luz da
sala estava acesa, então ele fechou a porta do quarto. Neil ficou quieto e imó-
vel até que o quarto mergulhasse no silêncio, então se sentou à mesa e enca-
rou a parede. Ficou ali por tanto tempo, os pensamentos girando, que mal
podia acreditar que o céu não estivesse se iluminando, anunciando o nascer
do dia. Por fim, sua mente pareceu se acalmar pelo menos um pouco, e ele
se levantou para dormir. Deu alguns passos para longe da mesa e a porta da
suíte se abriu, revelando Kevin.
Ele exalava um cheiro tão forte de álcool que dava para sentir do meio do
aposento, mas bastou que Neil olhasse para o curativo em seu rosto para se
esquecer do fedor. Era esperar demais, algo impossível de acreditar, mas ain-
da assim Neil congelou e o encarou. Kevin fechou a porta com um empur-
rão e cambaleou para trás. Quase caiu, equilibrando-se no último segundo, e
olhou para Neil com a vista cansada. Era tudo que o colega conseguiria fa-
zer, Neil pensou, então foi até ele. Kevin apontou para o rosto com dificulda-
de. Neil ergueu um dos cantos da fita e puxou o curativo.
Sentiu que caía e voava ao mesmo tempo; seu estômago se revirou um se-
gundo antes que a adrenalina inundasse suas veias. Desde os primeiros dias
em que estivera sob os cuidados cruéis dos Moriyama, Kevin ostentava a ta-
tuagem com o número “2”. Riko e Kevin haviam usado marcadores perma-
nentes durante anos, reforçando os traços quando ameaçavam desaparecer.
Quando enfim tinham idade suficiente, trocaram por um tipo de tinta mais
permanente. Agora, o número não estava mais lá, coberto pela imagem es-
cura de uma peça de xadrez. Neil sabia pouco, quase nada sobre o jogo, mas
tinha certeza de que aquilo não era um rei.
— Você fez — disse Neil, atordoado demais para pensar em qualquer outra
coisa.
— O Riko pode ser o rei — enunciou Kevin, com a pronúncia exagerada
dos bêbados. — O mais cobiçado, o mais protegido. Aquele que sacrifica to-
das as peças para proteger o trono. Tanto faz. Eu? — Kevin apontou de novo,
querendo indicar a si mesmo, mas embriagado demais para conseguir er-
guer a mão acima da cintura. — Vou ser a peça mais mortífera do tabuleiro.
— A rainha — comentou Andrew, em algum lugar atrás de Neil, que não o
ouviu se levantar, mas era óbvio que teria acordado ao ouvir a porta bater.
Um Andrew sóbrio tinha o sono tão leve quanto Neil, talvez ainda mais, já
que estava acostumado a ter pessoas hostis entrando sorrateiramente em seu
quarto. Neil olhou para ele, mas Andrew estudava Kevin. Andrew atraves-
sou a sala para ficar ao lado de Neil e segurou o queixo de Kevin. Virou a ca-
beça dele de um lado para o outro para inspecionar a tatuagem nova. — Ele
vai ficar furioso.
— Ele que se foda — disse Kevin, deslizando um pouco mais para baixo na
porta. — Que se fodam todos eles. É uma perda de tempo ficarem irritados.
Deviam estar com medo.
— Ou a fúria vai ser pouco — comentou Andrew.
Kevin gesticulou debilmente para Neil, que pressionou o curativo de volta
no lugar, sobre a pele inchada e avermelhada. Neil deixou a mão cair e cer-
rou os punhos para esconder o tremor causado pela empolgação. Duvidava
que Kevin ou Andrew tivessem notado; estavam muito ocupados olhando
um para o outro. Por fim, Andrew sorriu, lento e frio. Era a primeira vez que
sorria desde que tinha parado de tomar os remédios, e Neil não conseguia
parar de olhar.
— Agora está ficando divertido — disse Andrew.
— Até que enfim — retrucou Kevin, que era metade exaustão e metade
exasperação.
Os dois tiveram que unir forças para levar Kevin até o quarto. Neil não sa-
bia como ele subiria as escadas do beliche, mas quando chegou a hora ele
conseguiu de algum jeito. Assim que encostou a cabeça no travesseiro, já es-
tava dormindo. Neil se sentiu cheio de energia ao olhar para a cama de Ke-
vin. Estava inquieto, tonto demais para ficar parado. A escuridão deveria ter
escondido a agitação que tomara conta dele, mas Andrew não se deixava en-
ganar. Cutucou o ombro de Neil ao sair do quarto. Neil desviou o olhar da
forma inconsciente de Kevin e o seguiu.
Andrew o empurrou contra a parede com mãos fortes e beijos profundos.
— Viciado.
— Eu estava esperando isso desde junho. Você está esperando há muito
mais tempo — objetou Neil.
Andrew não se deu ao trabalho de negar. Já era quase madrugada quando
finalmente foram se deitar, mas Neil poderia recuperar as horas sem sono na
viagem de ônibus até o norte. Ele se escondeu embaixo dos cobertores e so-
nhou com Evermore desmoronando sobre sua cabeça.
Quando faltava uma hora para o início da partida, todas as vagas do estacio-
namento do campus da Edgar Allan estavam ocupadas. Os arredores do es-
tádio fervilhavam de torcedores vestidos de preto. Os flashes das câmeras ir-
rompiam e corpos robustos de terno indicavam a chegada de celebridades.
Para onde quer que olhasse, Neil via policiais, e uma seção inteira havia sido
reservada para os carros da imprensa.
Neil olhou para os companheiros de equipe. Nicky tamborilava os dedos
nos quadris e observava. Aaron estava ombro a ombro com Katelyn, os nós
dos dedos brancos por causa da força com que segurava a mão dela. Andrew
não parecia abalado com o hospício em que haviam entrado, mas seu olhar
calmo percorria a multidão em busca de ameaças. Renee mexia em seu colar
de cruz e rezava, com o olhar distante. Dan e Matt estavam de braços dados
atrás de Renee, pilares gêmeos de força prontos para a luta. O rápido toc-
toc-toc do salto de Allison no chão denunciava seu desconforto, mas sua fi-
sionomia era de desdém.
Ao lado de Neil, Kevin estava inabalável. Assim que entraram no ônibus,
ele exibiu sua nova tatuagem. A comemoração da equipe dificultou o sono
de Neil, mas ele não iria reclamar da empolgação. A reação de Wymack foi
um sorriso rápido e contido, o que demonstrava que fora o primeiro a saber
daquilo. Neil pensou nas tatuagens de chamas tribais nos braços do treina-
dor e se perguntou se Wymack recrutara seu tatuador para o trabalho. Pelo
menos isso explicaria como Kevin havia retornado para o dormitório na
noite anterior, visto que mal conseguia andar.
Neil não sabia precisar o que fora a gota de água para Kevin, mas, ao que
tudo indicava, o espetáculo da noite anterior não fora fruto de uma coragem
de bêbado. Ele estava comprometido; não tinha mais como voltar atrás. En-
carava o Castelo Evermore como mais um obstáculo medíocre em seu cami-
nho até a glória. Neil não sabia se aquela determinação era verdadeira ou
pura força de vontade, assim como não sabia quanto daquele desdém era
fruto de uma performance destinada à imprensa. Tinha a impressão de que
o descaso de Kevin era noventa por cento genuíno, e aquilo acalmava Neil.
Duas mulheres reuniram o esquadrão das Raposetes. Quatro seguranças
escoltaram a equipe do ônibus até o estádio, e outros seis ficaram de guarda
ao longo do curto percurso. Parecia um tanto excessivo, mas a diretoria da
Edgar Allan não queria correr riscos. Os flashes das câmeras disparavam
conforme as Raposas passavam, e era só uma questão de tempo até que al-
guém percebesse que a tatuagem de Kevin havia mudado. Alguém gritou,
incrédulo, chamando a atenção de todos para o rosto do atleta e, de repente,
dez seguranças não pareciam o bastante. Houve um coro de vaias de todos
os lados enquanto a notícia se espalhava pela torcida, mas a desaprovação
cruel era interrompida por gritos dispersos de “Rainha!”. Kevin aguentou tu-
do com uma expressão arrogante.
Era a primeira vez que Neil entrava no vestiário destinado à equipe visitan-
te em Evermore. Kevin os alertara durante a subida, o que não impediu Neil
de se sentir como se entrasse em uma tumba. Era duas vezes maior que o
vestiário das Raposas, mas parecia cem vezes menor. Não havia decoração
alguma nas paredes, escuras como a noite do chão ao teto. As Raposas senti-
ram o peso assim que pisaram ali e se espalharam o mais rápido possível, jo-
gando sacolas laranja em todos os cantos da sala para tentar quebrar a ilusão
esmagadora.
— Edgar Allan dá as boas-vindas aos adversários desta noite — disse um
dos seguranças, quando o time parou de se movimentar. — O estádio está
lotado, assim como as torres. Representantes estaduais e universitários estão
no Norte, a Seleção no Sul e o CRE no Oeste. Estamos recebendo doze re-
presentantes das ligas principais e seis de times profissionais. Vocês não es-
tão autorizados a falar com nenhum deles, a não ser que sejam convidados
por um membro da minha equipe. — Ele esperou um pouco para ter certeza
de que as Raposas haviam entendido. — Podem usar a área técnica à vonta-
de durante a próxima meia hora. Depois, os Corvos vão ocupar o lugar des-
tinado à equipe da casa e vocês devem voltar à sua metade do estádio. Algu-
ma pergunta?
Nicky levantou a mão.
— Eu. Quem está na torre leste?
— O leste é reservado para convidados de Moriyama e clientes empresari-
ais — respondeu Kevin.
O segurança confirmou com a cabeça e olhou em volta para verificar se
mais alguém teria perguntas, depois saiu.
— Bom — disse Dan, quando a porta se fechou —, era isso que a gente
queria.
— Bora — assegurou Matt.
Eles deixaram os equipamentos ali e se dirigiram à área técnica. Do lado de
fora, parecia que ninguém estava ali para torcer pelas Raposas, mas as arqui-
bancadas estavam pontilhadas por pequenos grupos de estudantes e torce-
dores em todos os tons de laranja. Eles acenaram para todos os rostos ami-
gáveis que identificaram, ganhando aplausos escassos e cumprimentos entu-
siasmados. Os torcedores dos Corvos foram rápidos em retaliar, ficando de
pé e vaiando a plenos pulmões.
No meio de cada seção havia um torcedor vestido com listras vermelhas e
pretas e, um por um, todos ergueram as mãos. Mesmo o mais próximo ain-
da estava longe demais para que Neil pudesse ver o que segurava, mas ele
chutou que deveria ser um sino de bicicleta, o que só fez sentido cinco se-
gundos depois, quando toda a seção, do chão às vigas, saltou de uma vez só.
Ao pousarem, a próxima saltou, e o som ecoava em ondas, circundando o
estádio. Era uma cacofonia estrondosa e mais perturbadora do que Neil que-
ria que fosse. Quando a onda voltou, os torcedores listrados ergueram de
novo os braços, sinalizando que repetiriam o movimento.
— Meu Senhor — disse Nicky, quase inaudível mesmo estando atrás de
Neil. — Acho que não consigo… Erik!
Nicky contornou Neil e disparou para as arquibancadas. A primeira fila es-
tava vazia, com um segurança de cada lado, mas um homem tinha acabado
de aparecer para apresentar seu ingresso. Como Erik Klose conseguira ouvir
Nicky com o barulho das arquibancadas Neil não sabia, mas o homem se
afastou do segurança no mesmo instante e se inclinou sobre a grade para dar
um abraço apertado em Nicky, que se agarrou a ele como se anos tivessem se
passado desde a última vez que estiveram na mesma sala, alheio ou comple-
tamente despreocupado com os olhares que atraíam.
Alguns segundos depois, o restante dos convidados das Raposas surgiu, já
que Wymack havia providenciado o transporte de van do aeroporto para to-
dos. O treinador dispensou a equipe, sabendo o quanto precisavam de ros-
tos amigáveis naquele instante. Allison não convidara ninguém, mas seguiu
os veteranos até as arquibancadas. Aaron se dirigiu às Raposetes para falar
com Katelyn. Neil ficou para trás com Andrew e Kevin, observando.
Quatro das irmãs de Dan conseguiram comparecer. Usavam vestidos de
verão brancos customizados para soletrar RA-PO-SAS, e o quarto exibia
uma pata de raposa que já começava a perder uma das almofadinhas. Elas
praticamente esmagaram Dan, sufocando-a com um abraço coletivo, e a en-
cheram de elogios. Foram rápidas em envolver Allison em um abraço, e a fa-
miliaridade em seus sorrisos receptivos indicava que já a haviam encontra-
do pelo menos uma vez antes.
Stephanie Walker ocupava o assento ao lado e segurou Renee por um lon-
go tempo. Os pais de Matt se sentaram ao lado dela. A trança da mãe dele
estava tingida de laranja, e a mulher vestia um macacão igualmente brilhan-
te. Matt falava dela com muita frequência, então Neil sabia o quanto ele a
amava. Ainda assim, ficou surpreso ao ver o quanto o sentimento era recíp-
roco. Havia um orgulho feroz no sorriso de Randy Boyd, que fez Neil se
lembrar de Dan, e ela brincou com os cabelos do filho espetados com gel. O
pai foi um pouco mais reservado, mas sorriu ao dar um tapinha no ombro
de Matt em saudação. A mulher que trouxera como convidada parecia ser
pouco mais velha do que Matt, e os dois nem se cumprimentaram.
Betsy Dobson foi a última a entrar. Andrew não havia reservado um in-
gresso para ela, então Neil presumiu que Wymack e Abby a haviam convida-
do. Andrew não pareceu nem um pouco surpreso, mas se aproximou assim
que ela se acomodou. Betsy sorriu ao vê-lo, gesticulando ao redor. Neil não
conseguia ouvir por causa da torcida, mas imaginou que estaria fazendo as
mesmas observações redundantes de sempre. Neil desviou o olhar antes que
ela o visse e voltou a prestar atenção na torcida.
— Vocês dois podiam pelo menos ir lá cumprimentar — protestou Wy-
mack, um tanto magoado.
— Não tem por quê. Eles só vão nos distrair — respondeu Kevin.
— O nome é “rede de apoio”. Vai pesquisar.
— Thea está assistindo do sul hoje — comentou Kevin, olhando para o ca-
marote VIP elevado. Estava muito longe e muito alto para que Neil distin-
guisse qualquer rosto, mas já havia um pequeno grupo grudado nas paredes
envidraçadas. Saber que a seleção estava ali para assisti-los jogar provocou
um arrepio que desceu pelo corpo inteiro de Neil. Kevin voltou a olhar para
o treinador e complementou: — E meu pai não perde nenhum dos meus jo-
gos. Isso já basta pra mim.
Do outro lado de Wymack, o olhar de Abby se suavizou. A mandíbula do
treinador tremeu por um momento, até que ele disse, em um tom neutro:
— Sua mãe sentiria orgulho de você.
— Não só de mim — disse Kevin, em um raro acesso de humanidade.
O momento era íntimo demais, ou quem sabe o desconforto no peito de
Neil fosse apenas fruto da solidão e da perda. Neil os deixou interagindo e
foi se juntar aos colegas de equipe. O aperto de mão de Erik era firme e seu
sorriso, enorme. Alguns segundos após as irmãs de Dan se apresentarem,
alegres, Neil já não sabia dizer quem era quem. O sorriso paciente de Step-
hanie era tão enervante quanto o comportamento pacífico de Renee um dia
fora, e Neil tinha certeza de que Randy estourara alguns de seus órgãos vitais
com a força do abraço que deu nele. O pai de Matt ignorou as apresentações
e contou para Neil sobre um cirurgião plástico que conhecia, caso ele qui-
sesse dar um jeitinho no rosto.
— Pai — protestou Matt, horrorizado —, que porra é essa?
— Neil Josten — interrompeu um segurança —, um homem chamado Stu-
art Hatford está aqui para vê-lo.
Neil seguiu o segurança até a metade da área técnica. Uma parede separava
o local das arquibancadas, e Stuart esperava do outro lado, apoiado e com os
braços cruzados. Ele dispensou o segurança com um simples aceno de cabe-
ça e lançou um olhar pensativo para o sobrinho.
— Achei que você já tinha voltado para a Inglaterra — disse Neil.
— Tenho ido e vindo. Teria vindo buscar você antes, mas ele nos disse que
não deveríamos interferir até que tomasse uma decisão.
Neil não precisou perguntar a quem Stuart se referia. O tio esperou que
Neil concordasse e então continuou.
— A morte do seu pai deixou um vazio difícil de ser preenchido. O chefi-
nho está botando ordem na casa e correndo atrás do prejuízo, tirando pesso-
as da Califórnia e levando pra Carolina do Sul. Policiais, médicos, agentes
duplos… tanto faz. Qualquer pessoa que represente o menor risco para a
nova engrenagem é eliminada. É bem interessante ver um império ser refor-
mulado. E bem sangrento também.
— Eles tinham pessoas na Carolina do Sul? — perguntou Neil, com o cora-
ção acelerado. — Calma, médicos? Médicos de verdade ou psiquiatras? Você
tem nomes?
— Não costumo entrar em detalhes a não ser que me digam respeito —
disse Stuart. — Algum nome em particular?
— Um psiquiatra em Colúmbia, Proust. Trabalhou em Easthaven, deixou-
se ser comprado e usado pelo irmão errado. Eu contei… contei para o chefi-
nho — comentou Neil, após um momento de hesitação — a respeito dele.
— Vou investigar — prometeu Stuart, então lançou um olhar despreocupa-
do ao redor. — Você sabe que eles ainda estão de olho em você, certo? Espe-
rando qualquer deslize, esperando pra ver se alguém vai ser burro o bastante
pra tentar alguma coisa. A isca e o espião ao mesmo tempo. Seja esperto, tá?
Você escolheu isso, e não posso proteger você se as coisas derem errado de
novo.
— Vou tomar cuidado. Obrigado.
— Queixo erguido — disse Stuart, endireitando-se. — Olhar no alvo. O
chefinho está aqui hoje à noite. Não faça com que ele se arrependa de ter in-
vestido em você.
Neil não era burro e sabia que não deveria olhar para a torre leste, então se
limitou a concordar e observar Stuart desaparecer em meio aos torcedores.
Correu de volta para onde Wymack estava e decidiu que seria melhor não
contar para Kevin quem estava presente naquela noite. O treinador deu mais
um minuto para que a equipe falasse com os convidados, depois os condu-
ziu para o vestiário. Todos se trocaram o mais rápido possível, sentindo-se
renovados após verem o entusiasmo dos convidados, e correram na área téc-
nica até os Corvos aparecerem.
Neil tinha achado que a torcida estava barulhenta antes, mas as boas-vin-
das que deram à equipe da casa fizeram seus ouvidos zumbirem. As Raposas
voltaram para o vestiário para se alongar e poupar os tímpanos. Colocaram
o restante dos equipamentos com calma e retornaram para a sala principal.
Wymack deixou que respirassem durante um minuto e os enviou de volta
para a área técnica. Os árbitros da noite se dividiram entre o lado da equipe
da casa e do visitante e esperavam nos portões da quadra para permitir a en-
trada dos times. Quando chegaram, os Corvos eram um fluxo interminável
de preto do outro lado, e Neil tentou não olhá-los. Os aquecimentos nunca
haviam sido tão breves; em um minuto, Neil estava ocupando seu lugar em
quadra, e no próximo já estava sendo chamado para as apresentações antes
do início da partida.
A banda itinerante de Palmetto State, Notas de Laranja, havia aparecido
em algum momento e, assim que o narrador acabou de ler a escalação das
Raposas, a banda berrou o grito de guerra, cheia de orgulho. O narrador
aguardou até que a última nota soasse para passar para a escalação dos Cor-
vos. A canção de luta da Edgar Allan soou tão maligna como sempre, e a ba-
teria continuou em uma batida pesada muito depois que o restante da banda
havia parado de tocar. Os torcedores batiam os pés com força e o estádio pa-
recia se contorcer em uma massa raivosa. Neil não sabia dizer se estava se
sentindo sufocado devido às reverberações da multidão ou à própria pulsa-
ção acelerada.
Dan e Riko se dirigiram para o meio da quadra para o cara ou coroa, e as
Raposas ganharam a saída de bola. Pelo jeito, os torcedores não parariam
tão cedo. Wymack tinha alguns minutos até que as escalações iniciais fossem
convocadas a entrar, então puxou a pequena equipe para perto, a fim de que
todos pudessem ouvi-lo.
— Eu sou uma merda com essa parada de conversa motivacional, mas
Abby ameaçou fazer picadinho de mim se eu não fizesse um esforço hoje à
noite. Depois de passar uma boa hora pensando muito mesmo, foi isso que
consegui. Não tive tempo de ensaiar o discurso, então finjam que estou di-
zendo algo rebuscado e encorajador. Combinados?
Ele olhou para os atletas, retribuindo o olhar de cada um por alguns ins-
tantes.
— Quero que vocês fechem os olhos e pensem por que estão aqui hoje.
Não me digam que é por “vingança”, porque só de terem chegado às finais já
conseguiram isso.
“Isso não é mais sobre Riko. Nem mesmo sobre os Corvos. É sobre vocês. É
sobre tudo o que tiveram que enfrentar para chegar aqui, o preço que tive-
ram que pagar, e sobre todos aqueles que riram quando vocês ousaram so-
nhar grande. Se estão aqui hoje, é porque se recusaram a desistir e a ceder.
Estão aqui, aonde todos disseram que jamais chegariam, e ninguém pode di-
zer que vocês não lutaram pelo direito de jogar esta partida.
“Todos os olhos estão em vocês. Está na hora de mostrar do que são feitos.
Não há espaço para dúvidas, não há espaço para hesitações, não há espaço
para erros. Hoje a noite é de vocês. O jogo é de vocês. O momento é de vo-
cês. Aproveitem com todas as forças. Derrubem todas as barreiras e deem
tudo de si. Vocês vão lutar, porque não sabem morrer em silêncio. Vão ga-
nhar porque não sabem como perder. Aquele rei já está no poder há tempo
demais… Está na hora de derrubar o castelo dele.”
A buzina soou, alertando-os que era hora de entrar. Wymack bateu palmas
e gritou:
— Vamos!
— Raposas! — rugiram eles em resposta, e o time titular se dirigiu para o
portão.
Os Corvos entraram em quadra e assumiram suas posições. Riko foi o pri-
meiro a ser chamado, e Neil presumiu que jogaria a partida do mesmo jeito
que jogara a última: havia participado dos quinze minutos iniciais e dos
quinze minutos finais. Kevin foi o primeiro a ser chamado pelas Raposas,
mas Neil estava logo atrás dele. Ambos se dirigiram para suas posições, no
meio da quadra. Neil manteve os olhos em Riko, ciente de que ele já deveria
saber a respeito da tatuagem de Kevin. Ele estava certo; Neil ainda estava a
seis metros de distância quando viu o ódio glacial na expressão do adversá-
rio.
Riko não falou até Kevin e Neil estarem prontos, e então soltou uma série
de palavras japonesas que pareciam ser cruéis. Kevin o ignorou até que Riko
falasse de novo; então o olhou impassível e respondeu. Neil não sabia o que
Kevin havia dito, mas Riko torceu as mãos protegidas por luvas em torno da
raquete como se imaginasse a sensação de partir o pescoço de Kevin. Deixar
Riko irritado a poucos segundos de uma partida tão importante era, ao mes-
mo tempo, estúpido e revigorante. Neil não conseguia mais ouvir os torce-
dores por causa da pulsação em seus ouvidos.
Quando a última Raposa se posicionou, ele encarou o relógio e esperou até
que passasse a marca de dez segundos. Olhou para além do outro atacante,
onde estavam o meia e o primeiro defensor, acompanhando a contagem re-
gressiva mentalmente. Quando faltavam dois segundos, visualizou o goleiro
e imaginou o gol se iluminando em vermelho quando as Raposas marcas-
sem. Ao sinal de um segundo, a campainha tocou e Dan deu o primeiro sa-
que da noite.
Quase sete meses haviam se passado desde a última vez que Raposas e
Corvos haviam se enfrentado em quadra, e não demorou muito para que os
Corvos percebessem que estavam jogando com uma equipe completamente
diferente. No outono anterior, as Raposas haviam tomado o jogo como per-
dido antes mesmo de entrarem em quadra. Jogaram contra os Corvos por-
que era necessário, mas sua esperança estava voltada para os campeonatos
da primavera. Naquela noite, incentivadas pela determinação e sentindo o
gosto do desespero, as Raposas tiveram o início de partida mais sólido do
ano inteiro.
As Raposas eram ferozes, mas os Corvos estavam furiosos. Neil podia sen-
tir isso, como um veneno na quadra, uma vibração ruim que fazia todos os
seus instintos de sobrevivência sibilarem. A grande piada da NCAA não de-
veria ter chegado tão longe no campeonato, nem deveria fazê-los pagar um
preço tão alto. Haviam perdido Jean, passado por uma investigação interna
e suportado a dor da violência de Riko após a morte do pai. O ataque de
seus torcedores a Palmetto State e as acusações veladas de Kevin trouxeram
muita publicidade negativa para a equipe. Havia rumores de que Edgar Al-
lan queria fechar o Ninho e reintegrar o time com o restante do campus, vi-
sando a segurança psicológica dos próprios atletas. Agora, Kevin surgia na
quadra deles com um sorriso de escárnio e uma nova tatuagem, e as Rapo-
sas corriam como se não tivessem dúvidas de quem se consagraria vencedor.
As Raposas não eram mais a mesma equipe, mas os Corvos também não.
Não haviam levado as Raposas a sério no outono passado. Mas agora eram
obrigados a isso, e não pouparam esforços.
A partida não começou violenta, mas não demorou para se tornar. Corpos
se chocavam contra as paredes da quadra e no chão; e raquetes estalavam
juntas, resvalando em camisas e capacetes. O som estridente delas deslizan-
do pelo chão, arrancadas com força de mãos protegidas com luvas, ecoavam
nos ouvidos de Neil enquanto ele se obrigava a se mover mais rápido. A de-
fesa e os meias das Raposas lutavam com unhas e dentes para proteger o gol
e afastar a bola, mas as boas intenções e resolução não foram o bastante para
resistirem por muito tempo. Os defensores não eram rápidos para competir
com um ataque daquele nível. Renee fez tudo o que pôde para impedir, mas
Riko e Engle faziam as bolas passarem por ela em um piscar de olhos. A ca-
da vez que o gol se iluminava em vermelho, indicando que os Corvos havi-
am marcado, Neil se retraía.
Quando foram dispensados para o intervalo, estavam exaustos e ansiosos.
Nicky mal conseguiu chegar ao vestiário antes de começar a hiperventilar.
Abby o puxou de lado e o forçou a beber algo. Renee estava com os lábios
brancos e tensa no centro da sala. O placar era de sete a três, e os Corvos en-
trariam em quadra com uma equipe descansada assim que a buzina soasse.
As Raposas não sabiam se poderiam recuperar o placar, como ocorrera com
os Troianos. Seria uma ladeira dali pra baixo.
Renee abriu a boca, mas não conseguiu falar. Neil presumiu, pela culpa em
seus olhos, que estava tentando se desculpar. Ele nunca a tinha visto tão de-
sapontada, mas a equipe também nunca tinha apostado tanto em um único
jogo. A garota fechou a boca, pigarreou e tentou de novo. O que saiu não foi
uma desculpa, mas uma pergunta baixinha:
— Tem certeza?
Neil não entendeu, mas Andrew respondeu:
— Sim.
— Ok. Com licença — disse Renee.
Ela saiu e fechou a porta, desaparecendo no vestiário feminino. Dan pare-
cia pronta para ir atrás dela, mas Wymack balançou a cabeça e indicou que
continuasse a se alongar.
— Deixa ela em paz — pediu o treinador, em voz baixa. — Ela não queria
jogar no gol hoje à noite, depois do que aconteceu no jogo da USC. Foi a
gente que a convenceu. — Ele disse “a gente”, mas olhava para Andrew. —
Andrew disse que poderia controlar o placar se ela mostrasse a ele como os
Corvos jogavam.
— Você devia ter deixado ela ficar de fora — reclamou Aaron. — Seria
muito mais útil como uma quarta defensora. A diferença no placar é péssi-
ma.
— E de quem é a culpa? — perguntou Kevin.
Aaron e Matt se irritaram, mas ficaram quietos. Nicky respirou fundo, trê-
mulo, e disse:
— Como vamos defender se eles não carregam a bola?
— Você tem que empurrar eles de volta — insistiu Kevin. — Fazer com que
fiquem longe da área de ataque para impedir que passem a bola com tanta
velocidade. Foquem em fazer com que os arremessos saiam de longe, aí An-
drew vai ter mais chances de defender.
— Ótimo plano — respondeu Aaron, com um sarcasmo intenso. — Só que
eles são quase tão rápidos quanto a sua versão miniatura aí. É impossível fa-
zer pressão se não conseguimos acompanhar.
— Se virem — retrucou Kevin, e a conversa acabou ali.
O intervalo de quinze minutos acabou cedo demais. Renee se juntou a eles
enquanto voltavam para a quadra. Dan deu um abraço rápido na compa-
nheira, sem dizer nada, consciente de que palavras de encorajamento e de
conforto seriam inapropriadas naquele momento. Os repórteres esperavam
no portão de entrada da quadra pela escalação inicial das Raposas, então
Neil seguiu Kevin, que se manteve calmo e em silêncio até que um dos árbi-
tros abriu o portão. Antes de entrar, ele bateu com a cabeça da raquete no
chão e a segurou com a outra mão. Caminhou até o meio da quadra de cabe-
ça erguida para jogar com a mão esquerda, e a torcida foi à loucura.
Neil não era o único que havia se esquecido de como Kevin se comportava
em seu auge. Os Corvos o haviam colocado de lado quando ele quebrara a
mão e estudado seu estilo de jogo com a mão direita quando perceberam
que jogariam contra ele de novo. Ainda que imaginassem que isso poderia
acontecer, não estariam preparados, porque Kevin não tinha mais medo de
expor Riko. Kevin explorou as fraquezas dos ex-companheiros de equipe a
cada oportunidade que teve e, sem Jean por perto para ouvir, falava em fran-
cês para puxar as jogadas com Neil do outro lado da quadra. Três minutos
após o início do segundo tempo, Kevin marcou um gol, e cinco minutos de-
pois, voltou a marcar.
Os Corvos se recuperaram, como Kevin e Neil sabiam que iria acontecer, e
o jogo se tornou uma luta feroz. Repetidas vezes, os Corvos fintavam Matt e
Aaron e arremessavam no gol, mas Andrew defendia cada uma das bolas.
Andrew não estava chamando muito a defesa, talvez por compreender que
os colegas estavam esgotados, ou talvez por estar focado demais nos atacan-
tes dos Corvos para se distrair com os próprios defensores. Neil nunca o ti-
nha visto jogar assim, com tanta intensidade, velocidade e determinação,
mas Andrew tinha promessas a cumprir e um gol para defender.
Após dezessete minutos de jogo, o placar era de oito a seis, e os Corvos en-
fim perderam a paciência. Quando Kevin marcou seu terceiro gol, Reacher
deu um soco nele. Não parou após acertar o golpe e continuou a agredi-lo.
Os árbitros abriram os portões, mas as equipes foram mais rápidas em se
juntar. Os únicos que não intervieram foram os goleiros, que ficaram para-
dos nas linhas que demarcavam as áreas, observando. Foram necessários to-
dos os seis árbitros para separar a briga. Reacher foi expulso de quadra com
um cartão vermelho, e Kevin e Matt receberam amarelos.
Kevin cobrou a falta e marcou outro gol, o que não ajudou a melhorar o
clima em quadra. Em vez de voltarem a implicar com o atacante, os Corvos
passaram a prestar atenção nos defensores e em Andrew. Matt e Aaron esta-
vam com mais dificuldades do que o normal, pois seus marcadores os fazi-
am tropeçar a cada finta. A irritação fez Matt e Aaron recuarem um pouco, e
Neil sabia que não demoraria muito até que um deles perdesse a cabeça. Por
enquanto, Allison era a única a dar voz à raiva, ameaçando os Corvos com
gritos e insultos.
Quando Jenkins conseguiu passar por Aaron de novo, arremessou a bola
para que quicasse antes do gol. Era óbvio que Andrew chegaria primeiro,
mas Williams foi atrás mesmo assim. Quando Andrew rebateu, Williams de-
veria ter mudado de direção e recuado para se juntar à sua equipe, mas, cor-
rendo a toda velocidade, colidiu com Andrew, esmagando-o contra a pare-
de. O gol se iluminou em vermelho porque os sensores embutidos confundi-
ram o peso dos jogadores com um gol. A torcida, surpresa, ficou em silêncio
por alguns instantes; fazer falta no goleiro era uma das infrações mais graves
no Exy. Quando finalmente voltaram a si e começaram a protestar, Andrew
já tinha empurrado Williams para longe. Ele se afastou cambaleante da pa-
rede e balançou até parar. A armadura dos goleiros era feita para protegê-los
da bola, que vinha sempre em alta velocidade, mas não de raquetes e corpos.
Andrew estava sem fôlego.
Neil se aproximou em um piscar de olhos. Não se lembrava de ter deixado
a raquete cair, mas de repente estava com as duas mãos livres. Colocou as
mãos espalmadas nas costas de Williams e o empurrou com toda sua força.
Jenkins tentou agarrar o companheiro de equipe, mas não conseguiu impe-
dir a queda, e Williams caiu de joelhos com todo seu peso. Matt puxou Neil
de volta antes que ele desferisse outro golpe.
— Calma! — ordenou Matt, porque os árbitros furiosos já estavam a meio
caminho. — Você não pode levar cartão! Não temos ninguém pra entrar no
seu lugar. — Quando Neil abriu a boca, ele disse: — Eu jogo na defesa. É mi-
nha função defender o gol, entendeu?
Neil não recebeu cartão pelo empurrão antidesportivo, mas um dos árbi-
tros o repreendeu severamente. Neil o encarou de volta em um silêncio fu-
nesto. Matt o empurrou para longe antes que sua atitude causasse uma puni-
ção e pediu desculpas em seu nome. Neil se virou para verificar como An-
drew estava. O goleiro retribuiu o olhar parecendo entediado, então olhou
para além de Neil, para o burburinho em volta de Williams. Os Corvos esta-
vam recebendo outro cartão vermelho, mas não parecia ser uma vantagem
para as Raposas. Tetsuji estava aproveitando para substituir os jogadores.
O único Corvo a entrar em quadra duas vezes foi Riko. Os outros dois
eram novos, um atacante de apoio e um meia-atacante que Neil se recordava
do jogo de outubro passado. Os Corvos pretendiam abrir a defesa das Rapo-
sas, o que, àquela altura, não daria muito trabalho. Estavam quase na meta-
de do segundo tempo. Por mais que as Raposas estivessem habituadas a jo-
gar por bastante tempo, estavam perdendo força rapidamente. Era cansativo
enfrentar uma equipe como aquela.
— Eles não são rápidos o bastante — disse Andrew.
Ele só poderia estar se referindo à defesa, então Neil concordou:
— Eu sei.
— Você está cansado?
Neil sabia que ele não estava preocupado, mas isso não tornava a pergunta
menos confusa. Não tivera posse de bola o bastante para se cansar, mas não
poderia afirmar isso com Matt a meio metro de distância.
— Ainda não.
— Então vou assumir o comando. Matt — falou Andrew, e Matt se virou
para eles no mesmo instante. Andrew ergueu um dedo da raquete para
apontar para Neil. — Dan vai entrar no lugar do Neil, e o Neil vai entrar no
seu lugar.
Matt o encarou.
— Como é que é?
— Você está mancando — retrucou Andrew. Neil não tinha percebido, es-
tava focado demais na bola e nos Corvos. Lançou um olhar assustado para
os pés de Matt, como se pudesse enxergar a fonte da dor do colega. — Você
não serve de nada pra mim agora. Pede pra Abby dar uma olhada. Neil
aguenta o tranco enquanto isso.
Haviam passado a noite toda comentando o quanto o grande calcanhar de
aquiles da defesa era a velocidade. Neil era o jogador mais rápido da primei-
ra divisão de Exy, mas não sabia por que Andrew julgava aquela uma solu-
ção viável. Neil queria apontar todos os motivos pelos quais era uma ideia
ruim, mas não tinha o direito de ir contra Andrew.
— Quando comecei, eu era defensor, lembra? — explicou Neil para Matt.
— Os Corvos me colocaram contra Riko quando fiquei com eles em dezem-
bro. Sei como ele se move.
— Duas semanas de treino não prepararam você pra enfrentar o melhor
atacante do Exy.
— Kevin é o melhor atacante— corrigiu Neil — e não preciso ser o melhor
defensor para contra-atacar Riko. Só tenho que ser mais rápido do que ele.
Nós dois sabemos que eu sou. Confie em mim. Posso mantê-lo longe de An-
drew enquanto você descansa.
— O treinador nunca vai aceitar — afirmou Matt.
— Diz pra ele que não temos opção — disse Andrew, como se fosse simples
assim.
Talvez tenha sido a convicção de Andrew a convencer Matt. Andrew nunca
tinha dado a mínima para o jogo antes e só se esforçava de vez em quando.
O fato de se importar a ponto de discutir era inesperado e inédito. Matt ain-
da parecia cheio de dúvidas e pronto para argumentar, mas se virou e saiu
em silêncio. Enquanto se encaminhava para os portões, Neil enfim notou
que o colega realmente estava mancando. Matt não precisava mais se fazer
de forte, então parou de tentar esconder o sofrimento.
Parou no portão para discutir com Wymack e Abby. Talvez invocar o nome
de Andrew tenha funcionado, ou talvez Wymack estivesse desesperado a
ponto de tentar qualquer coisa. De qualquer forma Dan entrou em quadra
alguns segundos depois. Allison foi até ela, presumindo que seria substituí-
da, mas Dan pediu que ela fosse para seu lugar e assumiu a posição de ata-
cante para cobrar a falta.
— Você é maluco — disse Neil para Andrew, em voz baixa.
— Isso não é novidade pra ninguém — retrucou Andrew.
Neil balançou a cabeça e assumiu sua nova posição ao lado de Riko. O
olhar de Riko alternava entre Neil, Dan e Andrew. Levou apenas um segun-
do para entender o que acontecera, e abriu um sorriso frio.
Talvez ele tivesse o direito de se sentir presunçoso. Não importava que Neil
tivesse começado a jogar Exy como defensor. Passara metade da vida longe
das quadras e, durante os últimos dois anos, se dedicara a aprimorar suas
habilidades como atacante. Durante o recesso de Natal, Riko tinha visto com
os próprios olhos o quanto Neil estava fora de forma e era triste na defesa.
Mas havia se esquecido que Neil só fora colocado na quadra dos Corvos
após apanhar tanto de Tetsuji que perdera a consciência. A saúde de Neil pi-
orara cada vez mais, graças aos constantes abusos de Riko. Mas, naquele dia,
Neil estava em perfeita forma, e puto da vida com os Corvos por machuca-
rem suas Raposas.
Andrew rebateu a bola para o outro lado da quadra e a luta para ver quem
venceria nos minutos finais começou. Neil perseguia Riko a cada passo,
usando a raquete e o corpo para atrapalhar os arremessos e forçá-lo para
longe de Andrew. Os dois duelavam em quadra, se esquivando um do outro
e correndo em disparada, dando passadas laterais e se empurrando, quase
tropeçando a cada vez que se viravam. Riko usou todos os truques que co-
nhecia para tentar passar por Neil, mas não conseguiu superá-lo por muito
tempo.
Ninguém arremessou no gol por minutos. Riko rosnou, cheio de ódio,
quando Andrew rebateu seu último arremesso. Neil deu risada, sabendo que
isso o enfureceria ainda mais. A impaciência e a raiva de Riko eram o com-
bustível de Neil, que ficava cada vez mais rápido e já nem notava a queima-
ção que subia por suas coxas e panturrilhas.
Quando ele e Riko caíram no chão pela enésima vez, Neil sentiu algo em
seu ombro estalar e ficar dormente. Decidiu que não era hora de se preocu-
par, então se levantou e chegou à bola antes de Riko, passando-a para Alli-
son. A garota passou para Kevin, que jogou para Dan, que, por fim, devol-
veu para Kevin marcar o gol. O jogo estava empatado: oito a oito.
Mais dez minutos se passaram sem que ninguém marcasse, ainda que não
fosse por falta de tentativas. Enfim, Berger conseguiu fazer a finta em Aaron
e arremessar com rapidez no gol. Andrew não foi veloz o bastante para de-
fender e bateu com a raquete na parede quando o gol ficou vermelho. Sua ir-
ritação era tão inspiradora quanto a de Riko, mas Neil não conseguia defen-
der sozinho e Aaron havia chegado no limite. Quando os Corvos voltaram a
cometer uma falta e as Raposas recuperaram a posse de bola, Wymack man-
dou Nicky e Matt entrarem.
Neil esperava ser tirado de quadra, mas Nicky trocou de lugar com Allison,
que estava exausta, e Matt assumiu o lugar de Aaron. O sorriso que Matt
lançou a Neil foi ao mesmo tempo um encorajamento e um pedido de des-
culpas. Neil retribuiu com um sorriso tenso, e os dois avançaram como um
só. Com três defensores em quadra, as Raposas finalmente conseguiram se
recuperar e, nos últimos cinco minutos, bloquearam o ataque dos Corvos.
Riko e Berger arremessavam de longe porque não tinham outra escolha, e
Andrew defendia tudo. Do outro lado da quadra, Kevin marcou em um re-
bote, deixando a partida novamente empatada.
Neil percebeu que o jogo seria decidido com cobrança de faltas, e pensar
em enfrentar o goleiro dos Corvos estando tão exausto era aterrorizante.
Havia usado toda a sua energia, esgotado suas forças, e se movia apenas gra-
ças a algum senso estúpido de autopreservação. Sentia as pernas e os
pulmões queimarem, e a dormência no ombro fora substituída pelo calor.
Seus pulsos e braços estavam doloridos, e havia hematomas por todo o seu
corpo de tanto trombar com Riko e cair no chão. Seus cotovelos ardiam por
todas as vezes que haviam batido em sua raquete; ele já não sentia os pró-
prios pés, e havia grandes chances de Riko ter quebrado um ou dois de seus
dedos da última vez que pisara nele.
Neil não percebeu que haviam chegado ao último minuto do jogo até que a
buzina soou no alto. Seu corpo, ciente do significado daquele som, enfim
deu sinais de que havia desistido. Ele caiu de joelhos e mal conseguia usar as
mãos para se erguer. Sentia o estômago se revirar, mas não tinha forças para
vomitar. Os músculos, privados de oxigênio, pareciam se desintegrar, mas
inspirar exigia um esforço enorme. Neil sugava o ar pela boca em breves in-
tervalos, mas não adiantava nada.
A buzina tocou de novo, e o coração de Neil parou.
O zumbido em seus ouvidos não era só dele. Seus companheiros estavam
berrando, gritos de guerra que não chegavam a formar palavras para expres-
sar a descrença e a vitória. Os dedos de Neil tremiam tanto que era quase
impossível abrir as tiras do capacete, mas ele conseguiu jogá-lo para o lado.
Piscou para afastar o suor dos olhos e olhou para o placar.
Dez a nove para as Raposas — Kevin havia marcado nos últimos dois se-
gundos.
Neil gostaria de sorrir, mas precisou de todas suas forças apenas para olhar
para Riko. O capitão dos Corvos e rei do Exy encarava o placar como se es-
perasse que os números mudassem. As Raposas corriam umas para as ou-
tras, ainda gritando sem parar, mas os Corvos permaneciam estáticos, como
pedras. Era a primeira derrota na história da Edgar Allan, contra o mais im-
provável dos adversários.
Neil respirou tão fundo que sentiu o ar rasgando-o por dentro.
— Eu perguntaria qual é a sensação, mas acho que você sempre soube co-
mo é ficar em segundo lugar, seu monte de merda.
Riko desviou o olhar do placar. Encarou Neil, inexpressivo e atordoado, e
então a repulsa retorceu sua fisionomia, transformando-a em algo terrível.
Ele ergueu a raquete acima da cabeça, mas Neil levou alguns instantes para
perceber que Riko tinha a intenção de acertá-lo. Dan gritou seu nome do
outro lado da quadra, mas não havia nada que Neil poderia fazer além de
observar a raquete de Riko descer. Mal tinha forças para respirar. Esquivar-
se estava fora de cogitação.
A raquete de Riko se aproximou a ponto de Neil ouvir o vento assobiando,
e então uma segunda raquete surgiu de repente, grande, brilhante e laranja.
Andrew usou toda a força que ainda tinha no golpe e acertou o antebraço de
Riko. O barulho que os ossos fizeram ao se quebrar era terrível. A raquete
do adversário caiu, inofensiva, e Riko foi o único a gritar. Cambaleou para
longe, caiu de joelhos e segurou o braço em frente à barriga. Andrew colo-
cou sua raquete na frente de Neil como um escudo e observou o colapso de
Riko com uma expressão entediada.
Neil perdeu Riko de vista quando as Raposas o cercaram. Dedos enluvados
acariciavam sua cabeça e seus ombros, à procura de qualquer sinal de que
havia se machucado. Neil ignorou aquele desespero, mais interessado em
ouvir os gritos intermináveis e agonizantes de Riko. Então Dan segurou o
rosto dele e o sacudiu.
— Neil — disse ela, com tanto desespero e medo que Neil se viu obrigado a
olhar para Dan.
— E aí? — respondeu Neil, rouco de exaustão e embriagado pelo triunfo.
— A gente ganhou.
Dan o abraçou, deixando uma risada abafada escapar nos ombros protegi-
dos dele.
— É, Neil. A gente ganhou!
Deveria haver uma cerimônia para que Edgar Allan entregasse o troféu do
campeonato para seus sucessores. Entretanto, a celebração foi adiada até a
manhã seguinte. Em vez disso, houve policiais e paramédicos, depoimentos
e entrevistas. Neil se perguntava por que havia esperado algo de diferente no
que tangia às Raposas.
Riko fora levado às pressas em uma ambulância, mas os Corvos e as Rapo-
sas foram mantidos no estádio até as duas e meia da madrugada. Os torce-
dores só saíram quando a polícia os obrigou, dirigindo-se aos portões de
Evermore em um silêncio mortal. Os convidados das Raposas e as Raposetes
argumentaram, defendendo seu direito de ficar, mas perderam a discussão.
Ao partirem, prometeram encontrar as Raposas no hotel.
Quando enfim receberam autorização para tomar banho e trocar de roupa,
as Raposas estavam quietas. As longas horas que haviam se passado desde a
última buzina fizeram com que a merecida empolgação se esvaísse tempora-
riamente. Eles se sentiam tão doloridos e esgotados que se mover parecia
uma tarefa hercúlea. Neil se encostou na parede do chuveiro, porque sabia
que não devia se sentar. Adormeceu sem querer, mas acordou quando a
água esfriou. Bocejou enquanto se vestia e foi ao encontro dos companhei-
ros de equipe.
Um segurança o esperava do lado de fora do vestiário.
— Neil Josten, eles têm algumas últimas perguntas a fazer.
Neil se virou em silêncio e acompanhou o homem até a área técnica. O es-
tádio já estava vazio e a polícia tinha ido embora. Cansado demais para per-
guntar o que estava acontecendo, Neil se arrastou atrás do segurança em si-
lêncio. A um terço da descida, havia um portão que os seguranças usavam
para se mover entre a área técnica e as arquibancadas. O segurança o des-
trancou e fez sinal para que Neil passasse. Havia refrigerante derramado no
pavimento, e seus sapatos estavam grudentos; o lugar inteiro fedia a comida
gordurosa e cerveja.
Depois da escada seguinte, havia uma entrada pela qual aos torcedores
chegavam ao estádio vindos do círculo externo. Neil estivera no círculo ex-
terno das Raposas apenas uma vez, uma vez que a entrada destinada ao time
permitia que contornassem as barracas de comida e as lojas de bugigangas.
O anel externo dos Corvos era bastante parecido, com exceção dos banners
com datas de campeonatos pendurados nas vigas. O que antes era fonte de
orgulho, agora servia como um lembrete do fracasso daquela noite.
Estava escrito LESTE acima de um elevador, em letras vermelhas e em ne-
grito, e Neil se esqueceu dos banners. O guarda teve que passar o crachá e
digitar um código de seis dígitos para que pudessem passar. Havia apenas
dois botões dentro, “térreo” e “torre”. Neil fechou os olhos durante o passeio
até o topo.
O segurança ficou para trás quando Neil saiu, e este seguiu sozinho. Um
pequeno corredor dava para uma sala espaçosa que ele reconheceu. Nove
anos antes, estivera ali com Riko e Kevin enquanto seu pai cortava um ho-
mem em pedaços.
Stuart Hatford e um homem que Neil não reconheceu estavam parados nos
cantos mais distantes. Tetsuji e Riko estavam sentados em um dos sofás, o
treinador com as costas retas e o rosto impassível, e o atleta encolhido e
amedrontado. Neil viu o gesso branco despontando da tipoia em que os
médicos colocaram o braço de Riko. Poderia ficar olhando aquilo para sem-
pre, mas Ichirou estava parado perto das janelas com vista para a quadra e
Neil sabia que não deveria ignorá-lo. Neil ficou a meio caminho entre os ir-
mãos e fixou os olhos na gola de Ichirou.
Estava tão silencioso que dava para ouvir o tique-taque do relógio de al-
guém. Neil contou um minuto, depois dois, sem que ninguém dissesse uma
palavra. Por fim, Ichirou tirou uma mão enluvada do bolso e fez um gesto. O
homem desconhecido entregou uma arma para ele. Neil esperou, em silên-
cio e sem fôlego, que Ichirou a apontasse para ele. Poderia pedir uma segun-
da chance, mas sabia que não adiantava tentar. Suas palavras não mudariam
o que acontecera naquela noite, e nem mesmo Neil mentiria bem o suficien-
te para convencer Ichirou de que sentia muito.
Ichirou avançou, mas não foi até Neil. Parou diante do tio e falou em um
japonês tranquilo. Tetsuji ouviu tudo em silêncio, com a expressão impassí-
vel. Quando Ichirou ficou quieto, Tetsuji se curvou, ficando de joelhos. Não
se endireitou de novo, mesmo quando Ichirou voltou seu olhar intenso para
Riko, que finalmente se mexeu o bastante para erguer o olhar. Os irmãos se
encararam pela primeira vez. Ichirou se agachou na frente dele, devagar e
em silêncio.
— Ichirou — disse Riko, tão emocionado que Neil quase não conseguiu
compreender a palavra.
Talvez estivesse amaldiçoando o nome do irmão por demorar tanto tempo
para surgir em sua vida. Talvez estivesse implorando por justiça ou vingan-
ça. Riko abriu a boca para dizer mais alguma coisa, mas tornou a fechá-la
quando Ichirou usou a mão livre para segurar sua bochecha.
Não era para confortá-lo, o que Neil percebeu tarde demais. Ichirou apon-
tou a arma para a têmpora de Riko e puxou o gatilho sem hesitar. O tiro foi
tão inesperado, tão alto, que Neil deu um pulo. O corpo de Riko estremeceu
sob a força do impacto. O sangue espirrou nas costas de Tetsuji e no sofá de
couro em que ambos estavam sentados. Ichirou afastou as mãos e deixou
Riko cair.
Quando Ichirou se endireitou, o estranho deu um passo à frente. Ichirou
devolveu-lhe a arma, e o homem se ajoelhou para pressioná-la na mão sem
vida de Riko. Neil o observou curvar os dedos de Riko ao redor do objeto,
apertando-o. Em um canto distante de sua mente, Neil sabia o que estava
acontecendo, mas naquele momento estava chocado demais para entender.
Ichirou parou na frente de Neil.
— Suas atitudes foram responsáveis por sacrificar o treinador e o capitão
dos Corvos. Está satisfeito?
A princípio, Neil não conseguiu compreender, afinal Tetsuji ainda estava
vivo. Quando a ficha caiu, Neil parou de respirar. Tetsuji Moriyama estava
deixando o cargo — não necessariamente porque Neil havia pedido, mas
porque Ichirou estava ali e testemunhara em primeira mão o que os Corvos
haviam se tornado sob a orientação dele. Stuart dissera que Ichirou estava
correndo atrás do prejuízo. A violência impensada e a sanidade frágil dos
Corvos os colocavam em enorme desvantagem. Ichirou não queria estar li-
gado à reputação manchada da Edgar Allan.
De repente, Neil ficou mais acordado do que nunca.
— Seu pessoal está seguro, e o meu também. Sim, estou satisfeito.
O sorriso de Ichirou foi frio e efêmero.
— Não importa o nome que usem para você. Você sempre vai ser um Wes-
ninski de coração. — Ichirou gesticulou para Neil como se estivesse afugen-
tando uma mosca insignificante. — Está dispensado.
O segurança levou Neil de volta ao vestiário e o deixou na porta. Ele entrou
sozinho e encontrou todas as Raposas à sua espera. Olhou de um rosto can-
sado para o outro, deleitando-se com tudo o que haviam conquistado na-
quela noite e imaginando como reagiriam quando ouvissem as notícias no
dia seguinte.
— O que é tão engraçado? — perguntou Nicky, ao avistá-lo parado próxi-
mo à porta.
Neil não percebera que estava sorrindo.
— A vida?
Seu bom humor pareceu injetar um pouco de ânimo na sala. Dan se sentou
um pouco mais ereta, e Matt conseguiu sorrir. Kevin pressionou os dedos
com força contra a nova tatuagem. Aaron e Nicky trocaram olhares triun-
fantes, e Allison estendeu a mão para apertar a mão de Renee. O aceno de
Wymack era de aprovação; e o sorriso de Abby era puro orgulho.
— Vamos cair fora — disse o treinador. — Temos uma festa pra ir. Quem
não estiver no ônibus em dois minutos vai passar a noite aqui.
Wymack jamais deixaria alguém da equipe para trás, mas as Raposas saí-
ram depressa, como se acreditassem na ameaça. Neil esperou de lado en-
quanto os outros saíam, sabendo que Andrew seria o último a passar. Wy-
mack sabia que era melhor ir na frente e seguiu as Raposas pelo corredor.
Andrew levara a mochila de Neil para ele. Neil a pegou e a jogou para o la-
do. Andrew o estudou por um momento, então também soltou a mochila e
apoiou a mão na parede, perto da cabeça de Neil.
— Você está sempre escapando por um triz, já está perdendo a graça —
disse Andrew. — Achei que soubesse fugir.
Neil fingiu estar confuso.
— Achei que você tinha me dito para parar de fugir.
— Dica de sobrevivência: ninguém gosta de espertalhões.
— Tirando você.
Um ano antes, Neil não era ninguém e vivia assustado, cheio de ódio por
ter aceitado o contrato com as Raposas e contando os dias até que fosse mo-
rar com Wymack. Naquela noite, fora o atacante titular da equipe no topo
da classificação da NCAA. Em dois anos, seria capitão e em quatro se for-
maria em Palmetto State. Primeiro encontraria um time para jogar profissi-
onalmente e depois lutaria com unhas e dentes para chegar à seleção. Já po-
dia sentir o peso de uma medalha olímpica pendurada no pescoço. Não im-
portava a cor, desde que fosse dele.
Melhor do que aquele futuro brilhante era o que tinha naquele instante:
uma quadra que sempre seria seu lar, uma família que jamais desistiria dele
e Andrew, que pela primeira vez não havia desperdiçado tempo para negar
que o que havia entre os dois poderia de fato significar algo mais. No come-
ço, Neil nem havia notado a falta de resposta, distraído demais por seus
pensamentos vertiginosos. Agora, não podia deixar de sorrir. Puxou An-
drew para si.
Aquilo era tudo o que mais queria, tudo de que precisava, e Neil jamais
abriria mão.
Minha eterna gratidão a algumas das minhas pessoas favoritas no mundo:
KM, Amy, Z, Jamie C e Miika. Vocês fizeram o impossível ao recolher os
destroços desta trilogia. Agradeço às minhas irmãs, que fizeram esta capa
para mim quando eu estava prestes a desistir.
Todo o meu amor para você que está segurando este livro, que apostou em
Neil, nas Raposas e no Exy. Esta história não seria nada sem você. Obrigada
por acreditar em algo louco comigo.
Este e-book foi desenvolvido em formato ePub
pela Distribuidora Record de Serviços de Imprensa S. A.
Os homens do rei
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Até onde voce iria para salvar o amor de sua vida? Em Sombras do
sul, a aguardada sequência de Luzes do norte, Dimitria e Aurora vão
precisar se aventurar em lugares desconhecidos para salvar o amor
entre as duas. Embarque no universo apaixonante e fantástico cri-
ado por Giu Domingues.
Maria Freitas conta como uma fita cassete consegue levar um jovem
trans até um passado distante, no qual reencontra alguém especial.
O único que pode salvar Sera é justamente quem ela passou a vida
planejando matar.
Quando Lily esbarra em Atlas — com quem não fala há quase dois
anos —, parece que finalmente chegou o momento para poderem
retomar o relacionamento da adolescência, já que ele também está
solteiro e parece retribuir os sentimentos de Lily. Mas apesar de di-
vorciada, Lily não está exatamente livre de Ryle. Culpando Atlas pe-
lo fim de seu casamento, Ryle não está nada disposto a aceitar o
novo relacionamento de Lily, ainda mais com Atlas, o último homem
que aceitaria ver perto de sua filha e da ex-esposa.