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Caderno de Letras

Pelotas, n. 38, set-dez (2020)


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MEMÓRIA: DIMENSÕES ESTÉTICAS E ÉTICAS

MEMORY: AESTHETIC AND ETHICAL DIMENSIONS

Carlos Wender Sousa Silva1

RESUMO: Este artigo propõe uma reflexão em torno das dimensões estética, política, histórica
e ética da memória. Para isso, passa pela análise que Paul Ricœur faz em torno de uma
fenomenologia da memória e, consequentemente, analisa as implicações de uma leitura que
estabelece as representações do passado através da relação entre memória e a condição histórica
dos indivíduos. Discute, então, as noções de memória coletiva e memória individual
(HALBWACHS, 1990) a partir da obra literária K.: relato de uma busca, de Bernardo Kucinski.
Esse texto literário é nossa ferramenta central na discussão da criação de uma concepção de
representação do passado. O presente artigo faz uma análise política da memória (HUYSSEN,
2015) e da forma como ela se manifesta em obras artísticas contemporâneas, a partir de uma
leitura que se afasta de uma compreensão universal e única da lembrança e do esquecimento.
Ou seja, é adotada aqui a ideia de uma memória que se vincula à imagem de um palimpsesto.
Significa dizer algo que vai se reconstruíndo em cima dos vestígios e dos fragmentos de um
movimento passado, o qual passa por um processo de ressignificação constante no presente. A
representação literária é compreendida como parte do processo de formação de uma memória
cultural (ASSMAN, 2011), que observa desde questões literárias, filosóficas e históricas, até
aspectos da psicanálise e da subjetividade que dizem respeito à natureza humana. Nesse sentido,
a memória, entendida como ferramenta de produção literária, assume uma posição discursiva
com dimensões estéticas e éticas.
Palavras-chave: Memória; literatura; estética; ética; Bernardo Kucinski.

ABSTRACT: This article proposes a reflection around the aesthetic, political, historical and
ethical dimensions of memory. For that, it goes through Paul Ricœur's analysis of the
phenomenology of memory and consequently, it analyzes the implications of a reading that
establishes representations of the past through the connection between memory and the
historical condition of individuals. Then, it discusses the notions of collective memory and
individual memory (HALBWACHS, 1990) based on the novel K.: relato de uma busca, written
by Bernardo Kucinski. This literary text is our central tool while is discusses the creation of a
conception of representation of the past. This article makes a political analysis of memory
(HUYSSEN, 2015) and the way it manifests itself in contemporary artworks, from a reading
that moves away from a universal and unique comprehension of the memory and oblivion. In
other words, the idea of a memory that is linked to the image of a palimpsest is adopted here. It
means saying something that is rebuilding itself over the traces and fragments of a past

1
Mestrando em Literatura brasileira contemporânea do Programa de Pós-Graduação em Literatura da
Universidade de Brasília-UnB. Bolsista CAPES.
Memória: dimensões estéticas e éticas Sousa Silva, C. W.

movement, which undergoes a process of constant redefinition in the present. The literary
representation is understood as part of the process of forming a cultural memory (ASSMAN,
2011), which observes from literary, philosophical and historical issues, to aspects of
psychoanalysis and subjectivity that concern human nature. In this sense, memory, understood
as a tool of literary production, assumes a discursive position with aesthetic and ethical
dimensions.
Keywords: Memory; literature; aesthetic; ethic; Bernardo Kucinski.

Há muitos erros entre a vida e as palavras,


eles se tornam evidentes na medida
em que nos apromimamos uns dos outros.
O mais perigoso talvez seja o de deduzir
que a pessoa à sua frente é decorrência
do que lhe aconteceu ou do que lhe faltou,
quando somos feitos de tantas
interferências e interseções.
Claudia Lage

I Memória e literatura: aproximações

A literatura é pensada aqui como uma ferramenta que coloca num movimento
dinâmico aspectos históricos, sociais e políticos de uma ou mais comunidades políticas. Nessa
organização coletiva, a memória exerce algum papel que é responsável por atribuir uma
particularidade a cada indivíduo, mas também por representar um conjunto de ideais,
ideologias, posicionamentos e interesses. É nesse sentido que procuraremos entender a relação
entre passado e presente a partir da literatura. Nosso objetivo é nos debruçarmos sobre uma
cultura da memória que não se encerre no passado, mas que proponha reflexões críticas sobre o
presente e aponte para possibilidades e alternativas para o futuro. A temporalidade é, então,
compreendida como um movimento contínuo em constante transformação.
A memória e a narrativa literária têm suas relações estabelecidas através das
complexidades históricas, políticas, culturais e geográficas daquele conjunto representado.
Vamos pensar como a literatura, e as artes em geral, podem servir à formação cultural e política
de um povo. Sobretudo, quando pensamos em períodos de censura, repressão e violência. Em
momentos como esses, a arte sempre é atacada pelas forças atrasadas, autoritárias e
obscurantistas de uma comunidade política. Os nazistas, por exemplo, rotularam a arte
moderna como “degenerada”. Na ditadura militar brasileira, por sua vez, artistas e intelectuais
foram censurados, perseguidos e exilados. Eram tidos como subversivos, uma ameaça à ordem
institucional. Nesse sentido, os aspectos estéticos próprios da literatura podem nos ajudar a
repensar novos caminhos para uma sociedade, muitas vezes, representanta por grupos
antidemocráticos, escravagistas e autoritários. Então, como a aproximação entre memória e
literatura pode nos ajudar a compreender essa estrutura social?
A evolução do discurso da memória se firmou como foco de pesquisas e estudos
políticos e culturais na década de 1980, tal como os estudos da memória coletiva de Maurice

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Halbwachs. Antes, entretanto, já na década de 1960, as artes tomam para si o compromisso de


representar artisticamente catástrofes históricas e propor algumas reflexões em torno da ação
humana no mundo. Isso se dá, sobretudo, através de uma necessidade que surge de responder
ao passado nazista e de se pensar o Holocausto no período pós-guerra. É, então, em torno do
Holocausto que começa a ser construída uma memória do genocídio de forma intensiva.
Eventos históricos como o julgamento de Eichmann, em Jerusalém, e o Julgamento de
Auschwitz, em Frankfurt, foram importantes nesse sentido. A partir de então o Holocausto se
tornou uma discussão da memória cultural. É nesse período que há a ascensão de uma cultura
pública da memória.

Na década de 1980, a memória do Holocausto entrou de maneiras mais


amplas na esfera pública, articulada com projetos locais e regionais de história
oral, com a ascensão da literatura do testemunho e, em especial, com o
cinema e a televisão (HUYSSEN, 2015, p. 134).

Na literatura, a autobiografia, autoficção ou escritas de si não é necessariamente um


aspecto que diz respeito somente à produção literária contemporânea. Já encontramos registros
dessa escrita em Confissões (1782), de Jean-Jacques Rousseau, ou mesmo antes, nos Ensaios
(1595) de Michel de Montaigne. Mas o gênero autobiografia ou autoficção se consolidou entre
1970 e 1980. É a partir de então que se discute intensamente as representações de si mesmo na
literatura. Um pouco antes, As palavras (1964), de Jean-Paul Satre, já demonstra em que direção
irá se encaminhar essas relações entre memória, literatura e ficção. Na França, há, por exemplo,
uma grande produção dos récits de filiation – romances de filiação –, tais como La Place (1983)
de Annie Ernaux e Vies minuscules (1984) de Pierre Michon. Em todos os casos, passa-se a
discutir e questionar sobre o processo de escrita dentro do próprio ato de escrita.
No caso de textos como K.: relato de uma busca (2011), de B. Kucinski, ou ainda qualquer
obra literária que de alguma forma resgata um evento traumático da nossa história – ditaduras,
Holocausto, genocídio, colonização –, tem-se aí um aspecto a mais. A presença de uma
literatura memorialística que se empenha em manter as lembranças de um evento histórico
traumático para as gerações futuras, ou seja, é uma ferramenta de transmissão de experiências
subjetivas e históricas (GAGNEBIN, 2014) ao mesmo tempo, sem abdicar-se dos aspectos
estéticos e estruturais que a define como literatura.
Essa literatura assume, em alguma medida, um compromisso coletivo, ético. Reivindica
algum lugar social em relação à realidade posta. É um ato emancipatório de registrar no texto
literário algo que a própria atitude humana não conseguiu definir nem resolver. O objetivo, em
muitos casos, é o de não esquecer os mortos, os vencidos, não calar-se diante de um contexto
repressivo e violento. Consequentemente, assumimos a possibilidade da Literatura de poder se
colocar socialmente a partir de elementos da práxis humana. Ou seja, a literatura aparece como
possibilidade de tomada de consciência e de ressignificação da ação humana.
É nesse sentido que tomamos como referencial literário neste trabalho a obra K.: relato
de uma busca, de B. Kucinski. Sendo, pois, essa narrativa construída a partir de uma experiência
pessoal da família do autor, a qual traz aspectos históricos da ditadura militar brasileira,
buscamos refletir sobre algumas questões: em que medida a literatura possibilita uma leitura
crítica de um passado histórico-político coletivo? Ao registrar esses eventos catastróficos dentro
da estrutura estética de um texto literário, que se difere da estrutura do texto histórica, quais

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outras possibilidades a literatura coloca à disposição dos leitores, no sentido de abrir novas
perspectivas? Como a literatura, entendida como espaço de representação da vida humana,
pode percorrer caminhos que ora dizem respeito à uma vida particular ora a uma coletividade?
Nosso objetivo é pensar como as narrativas literárias produzidas em determinado
contexto podem circular por outros espaços e tempos. Como essas narrativas que dizem respeito
a uma comunidade política específica interagem com outros grupos sociais e de que forma elas
podem entrar nos diversos âmbitos da vida social? Reconhecidas as limitações da memória, a
literatura talvez percorra um caminho que nos coloque diante de uma relação mais complexa
entre real e imaginário que talvez nenhum outro âmbito discursivo produzido dentro da
sociedade por meio da linguagem consiga alcançar. Em última análise, vamos analisar se é
possível pensar a memória como um direito cultural.

II O passado compreendido como referente central da memória

Na obra A memóra, a história, o esquecimento, Paul Ricœur constrói uma fenomenologia


da memória a partir de duas perguntas centrais nos seus estudos: do que se lembra? E de quem
é a memória? Vamos procurar observar quais aspectos dessas problemáticas podem nos servir.
Antes talvez, seja importante voltar um pouco mais atrás. Para os gregos, mnēmē se referia à
lembrança encontrada e anamnēsis se referia à lembrança buscada, também denominada
recordação. Consequentemente, Ricœur destaca em seu trabalho que “Lembrar-se é ter uma
lembrança ou ir em busca de uma lembrança” (RICŒUR, 2018, p. 24). Nessa perspectiva, a
pergunta “como?” é formulada pela anamnēsis, que se desvincula da pergunta “o quê?”,
formulada pela mnēmē.
Buscaremos ver em que medida a associação de ideias, a construção de um testemunho
ou um relato, seja no texto literário ou em outras formas de manifestação da linguagem, se
realiza mediante a intersecção entre memória e imaginação, ou seja, até que ponto a memória se
constitui a partir da sua interação com a imaginação. A discursão entre memória e imaginação
aparece desde a filosofia socrática, quando se estabeleceu dois temas: de um lado, voltado para
o tema da eikōn, havia a representação configurada a partir de uma coisa ausente, revelando a
confusão da memória e da imaginação; por outro lado, a representação era compreendida por
através de um movimento experienciado e adquirido, expondo o problema da formação
imagética da lembrança.
Talvez o que uma memória e imaginação seja o que Paul Ricœur denomina a presença
do ausente. Projetamos aquilo que queremos recordar a partir das nossas sensações e
pensamentos. Nosso referencial é aquilo que vimos, ouvimos ou sentimos. A imagem projetada
(eidōlon) permanece, enquanto que aquilo que vamos esquecendo (epilelēsthai) se apaga. Aqui
surgem dois problemas, o da memória e o do esquecimento, do qual falaremos um pouco
adiante.
Sendo a rememoração a possibilidade de impressão de uma anterioridade, um paradoxo
é apresentado na medida em que a possibilidade da falsidade (do imaginário) também se
constitui. De um lado, temos a tentativa de retratar determinado aspecto da condição humana
ou reproduzir algum elemento do mundo, do outro lado, temos a simulação e a capacidade
humana de ressignificar um evento, um fato ou um objeto. Esse último aspecto se engendra nas
nuances de cada elemento representado. O que seria, então, essa imagem (eidōlon) representada?

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Antes, Sócrates havia sugerido que a memória, ao se projetar a partir das sensações e das
reflexões daí advindas, constrói discursos que atingem nossa alma, na medida em que emitem
opiniões e discursos verdadeiros. Vamos pensar possíveis direções para esse discurso produzido
a partir de um conjunto de elementos que dizem respeito à experiência de um determinado
indivíduo ou grupo.
Inicialmente, a memória é entendida como afecção (pathos), diferenciando-se da ideia de
recordação. A memória está necessariamente vinculada ao passado. Se diferencia do futuro que
é baseado numa suposição ou numa expectativa, e do presente construído a partir da nossa
percepção de determinada realidade atual. Esses marcos temporais não estão isolados uns dos
outros, mas se orientam primordialmente por meio de referenciais diferentes. A percepção
(aisthēsis) que os seres humanos têm do tempo é justamente o que nos permite estabelecer
marcos de anterioridade, ou seja, diferenciar o antes do depois. Tal como concluiu Ricœur,
nossa compreensão do tempo é semelhante àquela da física, ou seja, percebemos o tempo a
partir do movimento.

é percebendo o movimento que percebemos o tempo; mas o tempo só é


percebido como diferente do movimento quando nós o “determinamos
(horizomen)” (Física, 218 b 30), isto é, quando podermos distinguir dois
instantes, um como anterior, o outro como posterior (RICŒUR, 2018, p. 35).

Estabelecidos dois opostos, um anterior e um posterior, e um intervalo entre eles, manifesta-se,


então, o tempo. Nesse sentido, tempo e memória se interpenetram.
Na história também esse tempo é percebido através da passagem de um fato ou um
evento para outro, da transição de uma estrutura sócio-política para outra. Essa passagem está
ligada às compreensões de continuidade, ruptura e deslocamento. A dinâmica da vida em
sociedade vai estabelecendo esses parâmetros que desenham o movimento histórico contínuo e
em permanente mutação.
Mas, retomemos antes outra questão apresentada por Paul Ricœur, a da relação entre
memória e imaginação. Para ele, a memória, compreendida como afecção, em contraste com a
imaginação, cria uma aporia, ou seja, um impasse e uma incerteza sobre como as impressões de
determinado indivíduo são construídas, na medida em que ele é influenciado tanto pelo real
quanto pelo imaginário. Essa aporia nos permitiria, por exemplo, perceber uma imagem e nos
lembrar de algo distinto dela. “A solução a essa aporia reside na introdução da categoria de
alteridade, herdada da dialética platônica” (RICŒUR, 2018, p. 36). Isso significa dizer que a
construção de um sujeito passa pela relação que ele mantém com o outro, a partir das
referências e das compreensões que ele tem desse outro.
A memória é, então, o resultado da intersecção entre a projeção que determinado
indivíduo faz sobre uma realidade, isto é, a cópia de algo que é semelhante, somada à
representação do outro que está em diálogo com esse indivíduo, isso quer dizer, aquilo que é
externo ao próprio ser. Aristóteles já havia apontado a distinção entre mnēmē e anamnēsis, ou
seja, por um lado, a lembrança vinculada à ideia de afecção, por outro lado, a recordação como
uma busca interessada do próprio sujeito. A passagem do tempo seria o elemento que estabelece
um vínculo entre os dois pólos.
A recordação é produzida nesses espaços de ruptura, continuidade e descontinuidade

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temporal. Essa recordação é possível na medida em que cada um consegue traçar um percurso
até determinada localidade do seu passado. O tempo é responsável por estabelecer as dimensões
e as expectativas geradas a partir dessa busca, o que nos permite concluir que “a tese segundo a
qual a noção de distância temporal é inerente à essência da memória e assegura a distinção de
princípio entre memória e imaginação” (RICŒUR, 2018, p. 38).
A maior contribuição de Aristóteles é a diferenciação entre mnēme e anamnēsis,
posteriormente, pensada também como evocação simples e esforço de recordação. Ao pensar a
relação entre a presença da lembrança e o ato de recordação, Aristóteles apontou uma aporia
que se tornou fundamental em todos os estudos que se seguiram com essa temática, a aporia da
presença do ausente. “Aristóteles imprimiu um grande avanço à discussão ao introduzir a
categoria de alteridade no próprio cerne da relação entre a eikōn, reinterpretada como inscrição,
e a afecção inicial” (RICŒUR, 2018, p. 39).
À memória como representação do passado é atribuído um caráter de confiabilidade,
uma vez que ela se constrói referencialmente a partir de um real anterior. A memória é
associada à reconstrução ou ao testemunho de um evento passado do mundo concreto. Paul
Ricœur analisa também como “o testemunho constitui a estrutura fundamental de transição
entre a memória e a história” (RICŒUR, 2018, p. 41). A imaginação, por sua vez, tem como
ferramenta o irreal, o fictício, é entendida como uma possibilidade, não como uma certeza.
Ricœur defende que, no estudo dessas construções mnemônicas múltiplas, é necessário
entendermos sua relação com o tempo, o que permite o desenho de uma tipologia
minimamente ordenada. Embora a memória seja uma construção discursiva do passado, é uma
atividade que se desenvolve em relação ao presente.
Essa memória-lembrança evidencia uma distinção entre o passado e o presente. Nesse
sentido, Ricœur diz que se trata de uma lembrança como coisa visada, que se diferencia da
memória como visada. Ou ainda, de acordo com a terminologia husserliana, é uma
diferenciação entre o noema – lembrança – e a noese – rememoração. “Um primeiro traço
caracteriza o regime da lembrança: a multiplicidade e os graus variáveis de distinção das
lembranças. A memória está no singular, como capacidade e como efetuação, as lembranças
estão no plural: temos umas lembranças” (RICŒUR, 2018, p. 41). Em geral, nossa lembrança é
associada a experiências, vivências e aprendizagens pessoais. No entanto, essa relação é bem
mais complexa. Paul Ricœur nomea como “estado das coisas” o encontro entre os
acontecimentos como resultados de alguma coisa e as generalidades construídas a partir de um
conjunto de referenciais.
No plano fenomenológico, a lembrança é desenhada por meio da relação entre eventos
que são sucessivos, progressivos ou que mantêm um certo grau de repetição, como, por
exemplo, lembrar o nome de alguém ou um telefone, e aqueles acontecimentos memoráveis,
únicos e inesperados. Esses fenômenos da memória são, em última análise, responsáveis pela
constituição do que somos. Paul Ricœur traz alguns pólos para construir sua linha de
pensamento. Um deles é a relação entre hábito e memória como a intersecção de

dois pólos de uma série contínua de fenômenos mnemônicos. O que faz a


unidade desse espectro é a comunidade da relação com o tempo. Nos dois
extremos, pressupõe-se uma experiência anteriormente adquirida; mas num
caso, o do hábito, essa aquisição está incorporada à vivência presente, não
marcada, não declarada como passado; no outro caso, faz-se referência à
anterioridade, como tal da aquisição antiga. Nos dois casos, por conseguinte,

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continua sendo verdade que a memória “é do passado”, mas conforme dois


modos, um não marcado, outro sim, da referência ao lugar no tempo da
experiência inicial (RICŒUR, 2018, p. 43).

O elemento temporal dessa relação é justamente o aspecto central para a compreensão


desses fenômenos nas experiências humanas. Essa memória hábito, tal como concluiu Bergson
em Matéria e Memória, é vivenciada e não representada, existe uma certa continuidade, criando
alguns padrões. A memória-lembrança, por sua vez, é espontânea, construída a partir de uma
temporalidade que vai introduzindo aspectos imagéticos nessa lembrança. Consequentemente,
isso faz dela uma representação. Essa característica mantém algum distanciamento com relação
ao presente e se dá mediante construções imagéticas que atingem o campo da possibilidade de
sonhar e de pensar o irreal, uma condição necessariamente humana. “À memória que repete,
opõe-se a memória que imagina” (RICŒUR, 2018, p. 44). É importante também destacar que
Paul Ricœur vê esses fenômenos como polaridades em permanente tensão, enquanto que
Bergson os compreendeu como dicotomias.
Outra dupla de pólos apresentadas pelo autor é a de evocação e a de busca. A evocação
aparece como a lembrança que se formula no presente, a qual Aristóteles nomeou como mnēmē.
E a anamnēsis é o que Ricœur compreendeu como busca e recordação. A mnēmē é caracterizada
como pathos, ou seja, afecção, conforme visto anteriormente. A questão é que nos lembramos de
um ou outro evento/acontecimento, o qual é determinado espaço-temporalmente. “Portanto, é
em oposição à busca que a evocação é uma afecção” (RICŒUR, 2018, p. 45). A evocação
compreende a presença de um ausente anteriormente presente, vivenciado, experienciado ou
apreendido. A nossa análise parte justamente da compreensão da anterioridade de um evento
ou fato e da maneira como ela é formulada no presente. Entretanto, procuraremos assumir mais
à frente uma compreensão da memória que apresente outras dimensões além dessas tensões
entre pólos longamente expostas por Ricœur.
A recordação – anamnēsis – é o que Ricœur denominou busca – zētēsis –. “A ruptura
com a anamnēsis platônica não é, porém, completa, na medida em que o ana de anamnēsis
significa volta, retomada, recobramento do que anteriormente foi visto, experimentado ou
aprendido, portanto, de alguma forma, significa repetição” (RICŒUR, 2018, p. 46). O
esquecimento é designado como o impulso contrário ao esforço de recordação. Nesse sentido, a
lembrança da recordação é uma sucessão de fatos psíquicos relacionados à rememoração de
eventos passados, às projeções e interpretações que lançamos sobre o presente, e à nossa
interação com diferentes construções discursivas e de pensamento. É aí que é organizado todo
um sistema de representação, na medida em que podemos oscilar da mera reprodução à
produção ou invenção.
Paul Ricœur aprofunda esse raciocínio a partir do que seriam as duas dimensões do
esforço de recordação: dimensão intelectual e dimensão afetiva. A primeira, vinculada a um
esforço de apreensão das diferentes linguagens e códigos da vida humana; a segunda, uma
dimensão mais subjetiva, mediada pelas experiências de cada indivíduo como um ser social e
psicológico. Ele conclui, então, que “existe pathos na zētēsis, “afecção” na “busca”. Assim se
entrecruzam a dimensão intelectual e a dimensão afetiva do esforço de recordação, como em
qualquer outra forma de esforço intelectual” (RICŒUR, 2018, p. 48).
As questões a respeito da memória são pensadas a partir de vocábulos como durar,
permanecer e persistir, através dos quais são construídas narrativas dentro de uma extensão

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temporal que se prolonga ou se dilui de acordo com os próprios efeitos dessa memória sobre as
relações humanas. A descrição parte do presente. Parâmetros do presente determinam os limites
de uma descrição ou de um discurso. Na medida em que surgem mais e mais elementos
descritivos, o retorno ao passado torna-se necessário e fundamental ao aparecimento de
propostas que reconfigurem ou repensem o próprio presente. É esse ponto que nos interessa.
Para Ricœur, esse fato caracteriza uma passagem da fenomenologia da lembrança à
consciência íntima do tempo. A referência ao agora permanece durante todo o processo de
produção dessa consciência. Esse aspecto atual é vinculado à experiência cotidiana das coisas
que iniciam, se desenvolvem e são interrompidas ou desaparecem. Há um jogo complexo entre
elementos de continuação, duração, permanência e cessação. Logo, o que ele defende é que a
análise de uma fenomenologia do presente não se volte unicamente para a objetividade
percebida, mas que a objetividade afetiva e prática também sejam colocadas em choque com a
primeira. A memória entendida como continuidade elimina qualquer suposição de exclusão na
relação entre passado e presente, pois ambos referenciais temporais permanecem em interação e
em constante modificação.
O questionamento que se coloca então é: em que medida a representação é uma
reprodução do passado? Os limites dessa discussão são estabelecidos através da distinção entre
lembrança e imaginação. Ao rememorar determinado evento ou relação anterior da vida
humana, o próprio processo de rememoração cria mecanismos que transformam as impressões
do passado, como também constrói ferramentas que desenham o presente.
Um último par de polaridades apresentado pelo filósofo em sua obra são as ideias de
reflexividade e mundanidade, importantes para a compreensão do processo de transição entre
memória e história. Nossas lembranças são sempre constituídas mediante as relações que
estabelecemos com o outro. É um processo de construção de alteridades, no qual o eu sempre se
estabelece no mundo a partir da posição do outro, um corpo se configura coletivamente em
relação a outros corpos, ou ainda o conhecimento que é construído em diálogo com outros já
apresentados. A memória é aqui voltada para sua face interior, de autorreflexão e
autoconstrução.
Três “modos mnemônicos” desenvolvidos por Casey são capazes de refletir os
fenômenos transicionais entre os pólos de reflexividade e mundanidade da memória. O
primeiro é o Reminding, isto é, a capacidade de relacionar uma coisa à outra, de pensar um
objeto ou evento em relação a outro, em última análise, é a lembrança. O segundo modo,
Reminiscing, é a própria reconstrução do passado dentro de uma coletividade. O terceiro modo
mnemônico de transição é o Recognizing, ou seja, reconhecimento. O reconhecimento nos
coloca em contato com a presença de um ausente anteriormente observado ou experienciado.
“O momento da recordação é então o do reconhecimento. Esse momento, por sua vez, pode
percorrer todos os graus da rememoração tácita à memória declarativa, mais uma vez pronta
para a narração” (RICŒUR, 2018, p. 57).
Essas polaridades apresentadas anteriormente são importantes para pensarmos as
noções de memória individual e memória coletiva, que serão trabalhadas a seguir a partir do
romance K. relato de uma busca, de B. Kucinski. Mas é importante ressaltar que vamos percorrer
um caminho além desse que estabelece dois pólos em permanente tensão. Vamos pensar as
projeções de memórias sobre os espaços e de que forma um corpo, não só biológico, mas
também político, consegue estabelecer representações de experiências que se constituem nos
âmbitos individual e coletivo. Nesse sentido, a questão central deste trabalho é entender as

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possibilidades e os desdobramentos que surgem a partir da interação entre a memória de um


protagonista na narrativa literária e a memória como uma representação da coletividade. Esses
espaços, entendido por Ricœur como lugares (place), funcionam como um mecanismo de
criação e preservação das memórias individual e coletiva? Ou seja, partimos desses conceitos
para pensarmos a relação entre memória, representação e história, ou ainda, memória, ficção e
realidade.

III A constituição de uma memória passa pela compreensão de alteridade

Conforme apontado pelo próprio Paul Ricœur, perguntas como se “a memória é


primordialmente pessoal ou coletiva?” (RICŒUR, 2018, p. 105), se não pensadas dentro da sua
complexidade, nos deixam paralisados e estagnados. O fato é que talvez não devamos partir da
questão “a quem é legítimo atribuir o pathos correspondente à recepção da lembrança e a práxis
em que consiste a busca da lembrança?” (RICŒUR, 2018, p. 105). Essa pergunta, assim
estruturada, retira as possibilidades de interação, de convergência ou de rupturas entre a
memória individual e a memória coletiva. Há nessa relação a construção de um referencial
subjetivo e particular, mas também concreto e público. O que se dá mediante referenciais
sociais, históricos, políticos e psicológicos que organizam a própria vida em comum e refletem a
complexidade e o desenvolvimento da natureza humana.
Essa constituição mnemônica é possível a partir da aproximação de um eu e um tu, que
possibilita o estabelecimento de um nós. Na Antiguidade, o interesse girava em torno de se
pensar o que significava ter ou buscar uma lembrança. Para Aristóteles e Platão, por exemplo, a
preocupação era pensar a relação entre o indivíduo e a polis. Pensar “quem lembra” é um
interesse da modernidade. Se, por um lado, essa modernidade passa a se preocupar com a
questão da subjetividade humana, por outro, as ciências sociais apresentaram a ideia de
consciência coletiva. Chegou-se, então, equivocadamente, a uma compreensão de que a
memória individual e a memória coletiva pertenciam a dois pólos que se opunham, indiferentes
e autônomos um ao outro.
O trabalho de Paul Ricœur é importante justamente por demonstrar que não se trata de
dois âmbitos da memória completamente opostos e incomunicáveis, mas, ao contrário, há uma
ponte que estabelece um caminho de ligação entre a memória individual e a memória coletiva.
Para o autor, embora se constituam como dois discursos distintos, com aspectos que são
externos um ao outro, existe um cruzamento que evidencia a presença de relações internas e
similares entre os dois níveis de memória. A tradição que iniciou uma autorreflexão e
autodesignação tem Santo Agostinho como precursor. Lembrar-se de algo passou a ser
entendido também como lembrar-se de si. Paul Ricœur apresenta três aspectos que caracterizam
a memória individual: ela é singular, ou seja, essas lembranças dizem respeito unicamente a um
indivíduo; “o vínculo original da consciência com o passado parece residir na memória”
(RICŒUR, 2018, p. 107); “é à memória que está vinculado o sentido da orientação na
passagem do tempo” (RICŒUR, 2018, p. 108).
O primeiro aspecto aponta para uma série de parâmetros que nos permitem designar
uma memória individual. Em outras palavras, nesse pólo da memória “não se pode transferir as
lembranças de um para a memória do outro” (RICŒUR, 2018, p. 107). Essa memória
individual reflete as experiências vivenciadas pelo sujeito. Elas pertencem ao âmbito privado,
uma vez que são as impressões de um sujeito. O segundo aspecto da memória individual

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Memória: dimensões estéticas e éticas Sousa Silva, C. W.

permanece vinculado ao primeiro. A própria continuidade temporal da pessoa e a sua


referencialidade no mundo se dão por meio da permanência e continuidade dessa memória
privada, o que possibilita a construção de uma identidade específica, que se diferencia das
outras em volta. “É principalmente na narrativa que se articulam as lembranças no plural e a
memória no singular, a diferenciação e a continuidade” (RICŒUR, 2018, p. 108). A alteridade
seria constituída por meio desse processo identitário que se desenvolve temporalmente. O
terceiro aspecto tem a ver com o movimento continuo da memória do passado para o futuro ou
vice-versa. É um trânsito que se faz no presente, da lembrança à expectativa, num processo em
que um aspecto delimita o outro mutuamente.
É aí que se constrói um olhar voltado para a interioridade movimento do qual Santo
Agostinho é o percursor. Confissões, uma obra autobiográfica do autor, é uma das primeiras a
apresentar essas problemáticas. A interioridade é colocada como esse lugar íntimo, de
autoconhecimento e autorreflexão. O esquecimento é visto como um elemento intrínseco à
própria memória. A memória é compreendida como a presença da anterioridade (do passado).
O tempo é interpretado como esse momento de transição, de passagem de um antes para um
depois.
Posteriormente, John Locke, também inserido numa corrente filosófica com o olhar
voltado para o interior, afasta-se das concepções platônicas e neoplatônicas de percepção do eu.
Ele apresenta três noções que são fundamentais para o seu pensamento: identity, consciousness e
self. É uma tríade (identidade-consciência-si) que constitui o sujeito. A ideia de consciência
desenvolvida pelo pensador iria influenciar toda uma corrente de pensamento posterior. Para
Locke, a pessoa é identificada através da consciência, designada self. A identidade se distingue
da diferença e designa um ente auto-referencial, que se volta para si. “O saber dessa identidade a
si, dessa “coisa pensante” (referência a Descartes), é a consciência” (RICŒUR, 2018, p. 115). É
aí que se estabelece um elo entre consciência, si e memória. “A identidade pessoal é uma
identidade temporal” (RICŒUR, 2018, p. 115).
Para os nossos fins, interessa pensar as aproximações entre consciência e memória. A
identidade, então, está o tempo todo estabelecendo aproximações e rupturas em relação à
diferença, aquilo que é externo a si – oposto. Em A memória, a história, o esquecimento, Paul
Ricœur traz ainda a visão de Husserl a respeito desse olhar interior, o que nos ajudará na
compreensão de uma memória individual. Na obra de Husserl também o debate gira em torno
de três problemáticas: interioridade, memória e tempo. Esse olhar interior sofre diversos
deslocamentos ao longo do processo de constituição da memória, o que se dá num fluxo
temporal. A intersubjetividade aponta algumas diretrizes desse processo. É exatamente esse
deslocamento num dado fluxo temporal que determina a formação da memória. No
pensamento de Husserl “a consciência do tempo é declarada íntima. [...] Não há intervalos,
portanto, entre consciência e tempo” (RICŒUR, 2018, p. 120). Isso nos remete a

Santo Agostinho, que dissociou o tempo da alma do tempo físico que


Aristóteles vinculava à mudança e colocava assim na esfera da física. Teremos
de nos lembrar disso quando elaborarmos a noção de tempo histórico
enquanto tempo de calendário enxertado na ordem cósmica (RICŒUR, 2018,
pp. 120-121).

Husserl defende a ideia de que há múltiplas formas de aproximar Bild, Phantasie e

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Memória: dimensões estéticas e éticas Sousa Silva, C. W.

Erinnerung. Existe um certo dinamismo na representação do passado, o qual é possível através da


interação entre esses três elementos: o fantástico, o fictício e o rememorado. Mas de que forma
essas concepções nos ajudam a pensar a relação entre memória individual e memória coletiva? É
possível pensá-las além de dois pólos tensionados? Essa relação se daria a partir de uma
experiência subjetiva, que entraria em contato com a experiência do outro e,
consequentemente, acionaria uma experiência comum/coletiva? Já podemos pelo menos
apontar que uma imagem de um determinado evento, episódio ou acontecimento passado, ou
seja, algo marcado pela anterioridade, reconstruído no presente, reflete justamente uma
representação do passado influenciada pelos referenciais do presente.
Peter Pál Pelbart pode nos ajudar a nos aproximarmos da ideia de alteridade que dê
conta da constituição de uma memória, já entendida como algo que se constitui nesse
movimento do eu em relação ao outro. No livro Vida Capital – Ensaios de biopolítica, analisa o
conceito de multidão como um corpo orgânico capaz de potencializar novas perspectivas para o
futuro. Uma concepção de multidão

pensada enquanto multiplicidade heterogênea, não-unitária, não-hierárquica,


acentrada e centrífuga. [...] A multidão como figura subjetiva não identitária,
que não delega poderes nem pretende conquistar o poder, mas desenvolver
uma nova potência de vida, de organização, de produção (PELBART, 2018, p.
133).

A partir dessa ideia de multidão como corpo biopolítico multiforme o autor nos ajuda a pensar
em uma concepção de alteridade que servirá às dimensões da memória que apresentaremos
mais adiante. Diz ele:

A multidão, concebida como um corpo biopolítico coletivo, nos seus poderes


de constituir para si comunidades múltiplas, desenha assim novas
possiblidades de relação com a alteridade. Para dizê-lo em termos mais
filosóficos: não mais pensar segundo a dialética do Mesmo e do Outro, da
Identidade e da Diferença, mas resgatar a lógica da Multiplicidade.
Arrisquemos o exemplo poético: Fernando Pessoa reivindicava o direito de
experimentar todos os Outros que o habitavam ou rodeavam, e a essa
experiência de metamorfose múltipla deu ele o nome de outramento. O
outramento não é dicotômico ou binário, mas plural, mutante, antropofágico.
Não se refere ao meu direito de ser diferente do Outro ou o direito do Outro
de ser diferente de mim, preservando em todo caso entre nós uma oposição,
nem mesmo se trata de uma relação de apaziguada coexistência entre nós, em
que cada um está preso à sua identidade feito um cachorro ao poste. Trata-se
do direito de diferir de si mesmo, de se descolar de si, desprender-se da
identidade própria e construir sua deriva ao acaso dos encontros e das
hibridações que a multidão nos propicia. É uma lógica inteiramente distinta
daquela que a subjetividade moderna nos propõe, na sua dialética (nacional
ou colonial) que essencializa o Outro para, negando-o, constituir-se a si. É uma
outra subjetividade, pós-colonial, pós-nacional, pós-humanista, pós-identitária.
Subjetividade multitudinária processual, aberta à sua dimensão de alteridade e
itinerância própria (PELBART, 2018, p. 126).

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Memória: dimensões estéticas e éticas Sousa Silva, C. W.

A biopolítica aqui é pensada além daquela apresentada por Michel Foucault, a qual se referia
essencialmente às práticas disciplinares de domínio dos corpos e das mentes. Agora, essa
biopolítica também tem outro lado que se refere à potência dessa coletividade de ressignificar
suas relações e os usos dos diferentes instrumentos que a colocam em interação e em
movimento. É nesse sentido que vamos pensar alteridade e, consequentemente, o trânsito entre
memória individual e memória coletiva a partir da produção literária.

IV Entre memória coletiva e memória cultural: um olhar para fora

A história se refere à construção de memórias coletivas. A própria comunidade política –


a sociedade – é a fonte primária dessas memórias construídas a partir das relações humanas no
mundo. O outro exerce um papel de referencial na constituição da lembrança do eu, pois é
nessa relação com o outro que estabeleço meus próprios referenciais. A memória individual se
estabelece a partir dessa percepção do indivíduo dentro de um grupo social. Perceber-se inserido
dentro de uma coletividade reorganiza a própria experiência individual. Por isso, talvez seja
interessante pensar essas diferentes dimensões da memória como um corpo, ou seja, um
elemento que está vivo a partir do funcionamento concomitante e relacional de vários órgãos.
Se estabelecem lembranças compartilhadas e comuns que, pouco a pouco, vão
construindo uma unidade representativa de um grupo, um pensamento ou uma historia
coletiva. Desse modo, o testemunho é fundamental na construção desses parâmetros, na
medida em que se passa do testemunho que vem do outro para uma lembrança construída por
nós mesmos. Há um deslocamento do outro para si e de si para o outro. Esses deslocamentos
são importantes, pois consistem no movimento de fora para dentro (das aproximações de um
grupo para o âmbito pessoal) que é responsável por inserir cada sujeito dentro de uma
comunidade, garantindo também as especificidades de cada um. Esses deslocamentos se dão de
diversas formas: numa viagem, num encontro, na mudança de rotina, na tensão gerada pelo
contato com o outro e na interação com outras pessoas que também têm outros referenciais de
mundo.
Halbwachs demonstra que a nossa lembrança está intrinsicamente ligada à atitude do
outro à nossa volta. Nos lembramos na medida em que estabelecemos vínculos com outros
indivíduos, rompemos outros, re-construímos certas relações, ignoramos outras. Os
deslocamentos temporais e espaciais determinam os parâmetros de constituição dessa
lembrança pessoal. Ao reler, por exemplo, um texto, uma carta ou uma mensagem de um
amigo, voltamos ao contexto da primeira leitura, somos ainda levados ao contexto de produção
daquele objeto enunciativo. Ao ver uma fotografia de alguém conhecido somos imediatamente
levados às situações fáticas que produziram a minha relação com esse outro sujeito. É um
movimento pela própria consciência do indivíduo.
Nos recolocamos no mundo o tempo todo na medida em que nossa lembrança é
direcionada pela forma como o outro ver o mundo. Essa lembrança não é totalmente autêntica
nem voltada para si mesma, é, ao contrário, dinâmica e é tecida dentro de uma cadeia de
interações e movimentos sociais muito mais complexos. Halbwachs considera que cada
memória individual seja uma perspectiva ou um ponto de vista da memória coletiva. Essa
perspectiva se dá através do lugar que o indivíduo ocupa no mundo e das relações que ele
estabelece com quem está à sua volta.

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Memória: dimensões estéticas e éticas Sousa Silva, C. W.

Numa tentativa de ir além, Paul Ricœur procura fazer uma análise que aproxime essas
duas memórias, como dois discursos que necessariamente se entrecruzam. O autor fala, então,
em três elementos dessa relação: o eu, os coletivos e os próximos. A referência ao outro coexiste
com a referência a mim mesmo.

Não existe, entre os dois pólos da memória individual e da memória coletiva,


um plano intermediário de referência no qual se operam concretamente as
trocas entre a memória viva das pessoas individuais e a memória pública das
comunidades às quais pertencemos? Esse plano é o da relação com os
próximos, essas pessoas que contam para nós e para as quais contamos, estão
situados numa faixa de variação das distâncias na relação entre o si e os
outros. Variação de distância, mas também variação nas modalidades ativas e
passivas dos jogos de distanciamento e de aproximação que fazem da
proximidade uma relação dinâmica constantemente em movimento: tornar-se
próximo, sentir-se próximo (RICŒUR, 2018, p. 141).

Nosso intuito é pensar a memória como objeto de representação literária que figure não
somente numa complexidade estética e artística, mas também que apresente algum
compromisso ético e social. A partir de K. relato de uma busca, vamos observar como a narrativa
literária pode se voltar tanto para aquele conjunto de personagens que a integram quanto para
um corpo coletivo, ainda que esse corpo mais extenso possa não ter experienciado exatamente
os mesmos conflitos que as personagens de um romance. A memória é, então, compreendia
também por meio de seu potencial político e cultural. O professor de literatura comparada
alemão Andreas Huyssen nos ajuda a projetar um percurso em torno de uma cultura e uma
política da memória a partir da relação entre passado e presente de eventos catastróficos e
traumáticos como o Holocausto.

No decorrer das duas últimas décadas, a cultura da memória e a política da


memória tornaram-se verdadeiramente transnacionais, se não globais. Da
África do Sul à Argentina e ao Chile, da Bósnia e do Kosovo a Ruanda, o
trauma histórico e as violações dos direitos humanos despontaram como loci
privilegiados da comemoração pública no trabalho de arquitetos, acadêmicos,
pintores e escritores. Criaram-se Comissões da Verdade e, em países como
Argentina e Chile, os tribunais tornaram-se atuantes nos últimos tempos, após
um período prolongado de silêncio sobre o terrorismo de Estado do período
da Guerra Fria (HUYSSEN, 2015, p. 139).

Há no debate público uma necessidade de arquivar e documentar registros de eventos


históricos catastróficos e traumáticos. Há também uma cobrança por reconhecimento político
de crimes contra a humanidade, além da construção de narrativas que incorporem esses eventos
à identidade nacional. A literatura pode ser importante nesse sentido na medida em que seus
recursos estéticos oferecem uma reflexão social mais ampla. Escrever literatura sobre esses
acontecimentos em si já envolve um problema de representação estético e ético. Não dá para
pensar nos aspectos estéticos da representação literária de um genocídio ou de uma colonização,
por exemplo, sem se pensar na dimensão ética desse trabalho.
Huyssen já percorre um caminho em que deixa de lado um pouco a visão que coloca o

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Memória: dimensões estéticas e éticas Sousa Silva, C. W.

esquecimento em oposição à memória. Para ele, o esquecimento emerge como algo que cria a
memória. Isso quer dizer que, em alguma medida, só nos lembramos e refletimos acerca de algo
passado porque é possível esquecer. Paul Ricœur havia proposto uma fenomenologia do
esquecimento. Andreas Huyssen também procura ir além da oposição reducionista entre
rememoração e esquecimento. Para ele, “O esquecimento precisa ser situado num campo de
termos e fenômenos como silêncio, desarticulação, evasão, apagamento, desgaste, repressão –
todos os quais revelam um espectro de estratégias tão complexo quanto o da própria memória”
(HUYSSEN, 2015, p. 158). Nesse sentido, compreender o papel do esquecimento é
fundamental na compreensão do papel da memória.
Ricœur fala em mémoire empêchée – memória impedida –, ligada à concepção freudiana
de consciente, algo que gera uma necessidade de repetição, e a mémoire manipulée – memória
manipulada –, relacionada à ideia de narrativa, a qual é construída num processo seletivo de
argumentos, ideias, experiências, posições, etc. Ricœur fala ainda em oubli comande –
esquecimento obrigatório –, ou seja, um esquecimento institucional, muito ligado ao papel da
anistia. Huyssen procura trazer alguma complexidade na compreensão dessas duas últimas
formas de esquecimento. Ele está pensando em memória relacionada à uma política da
memória pública. É uma preocupação que gira em torno da própria representação do
Holocausto. Huyssen defende que seu propósito de pensar uma política do esquecimento se
volta para a exploração das “complexidades e os efeitos do esquecimento público que se perdem
nas descrições moralizantes e epistemológicas do elo entre memória e esquecimento”
(HUYSSEN, 2015, p. 160).
A construção de uma política da memória e as relações que estabelecemos entre
memória e esquecimento são necessariamente importantes no sentido de repensar no âmbito
público aspectos da vida humana, sempre buscando criar projetos coletivos que nos apontem
para novas possibilidades mais humanísticas e solidárias de se colocar no mundo.

O que friso aqui é que a política da memória não pode prescindir do


esquecimento. Afinal, é esse o sentido do oubli manipulé de Ricœur, que
resulta da inevitabilidade da mediação da memória pela narrativa. Todavia, ao
contrário de Ricoeur, que afirma que o oubli manipulé resulta da mauvaise foi
[má-fé] e do vouloir ne pas savoir [não querer saber], sustento que o
esquecimento consciente e voluntário pode ser produto de uma política que,
em última instância, beneficia o vouloir savoir [querer saber] e a construção de
uma esfera pública democrática (HUYSSEN, 2015, pp. 160-161).

A literatura é também compreendida como um espaço de disputa política e simbólica.


Essa dimensão política é assumida pela literatura na medida em que ela se propõe a representar
a própria natureza humana. Uma reflexão sobre o passado é necessária na medida em que
precisamos criar novos caminhos no presente. Assim, a memória é uma ferramenta que pode
nos ajudar a compreender a natureza da ação humana e suas implicações. A literatura aparece
mais uma vez como potência.

Afinal, as obsessões pelo passado não se limitam a eventos traumáticos e a


seus efeitos, amiúde sintomáticos e patológicos. Como dizem os críticos da
indústria da cultura, qualquer passado pode ser usado, transformado em

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mercadoria, distorcido, comercializado, reelaborado, deslocado, indiciado,


processado, julgado e, é claro, esquecido. Mas até o discurso do esquecimento,
como mostraram a sociologia e psicologia, ainda contém vestígios e restos do
passado. As indústrias da cultura e da herança criam roupas e móveis retrô,
restaurações, refilmagens e mercados de recompra – termos de nosso
vocabulário que substituíram, todos eles, a celebração do novo, do
vanguardista, do revolucionário, da promessa de futuros alternativos
(HUYSSEN, 2015, p. 177).

Precisamos construir uma noção de memória que considere a verdade histórica, os fatos, as
evidências de determinada experiência, mas também as incertezas e incompletudes intrínsecas
ao próprio discurso da memória.

Por isso, quero sugerir que desloquemos o foco e examinemos os usos do


passado em suas interligações e em seus conflitos transnacionais e
transculturais, e não apenas em seu espaço nacional e, portanto,
territorialmente limitado. O que emerge em decorrência dessa reorientação
são palimpsestos da memória em fluxo constante, acrescentando e apagando
dados à medida que se deslocam no tempo.
Nesses palimpsestos da memória, um passado local ou nacional se aproxima
de outros passados lembrados, ou até se funde com eles, sendo estes reescritos
e usados de diversas maneiras. Nesse processo, geram-se novos tipos de
constelações mnêmicas transnacionais que, em sua maioria, têm permanecido
sob o radar da consciência crítica. Elas também parecem ter uma prevalência
muito maior na literatura, no cinema e nas artes do que nos estudos
acadêmicos sobre a memória (HUYSSEN, 2015, p. 178).

A ideia é pensar além do debate entre memória coletiva e memória individual. Pensar o
movimento da memória que vai assumindo diferentes perspectivas e construindo novas
roupagens. Nesse sentido, a memória coletiva não é estável nem reflete isoladamente um grupo
ou comunidade. Significa tampouco dizer que se encerra e se volta para determinada realidade
histórica isoladamente.

Em vez disso, parto da observação de que todos os fenômenos da memória


costumam ser conflituosos e estar em fluxo constante no tempo. [...] A
memória é sempre o passado do presente, o passado comemorado e produzido
no presente, que inclui, de forma invariável, pontos cegos e evasões. A
memória, portanto, nunca é neutra. Tal como a própria historiografia, por
mais objetiva que pretenda ser, toda lembrança está sujeita a interesses e usos
funcionais específicos (HUYSSEN, 2015, p. 181).

A memória, como qualquer outro discurso produzido pelo ser humano, tem uma carga
ideológica, traz consigo diversos interesses e não reflete jamais a totalidade das perspectivas
sobre aquele determinado evento ou objeto que é rememorado. Como produtores dessa
memória dentro do espaço literário, por exemplo, precisamos nos perguntar quais interesses
levamos conosco, quais as implicações das nossas escolhas discursivas, quais reflexões queremos

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propor e em que medida nossa atitude no presente reflete nossa compreensão do passado. A
ideia do palimpsesto nos parece muito próxima do que queremos apontar. Aquilo que vamos
construindo sobre os vestígios e os fragmentos de uma experiência passada. E que outros virão
após nós e darão continuidade a esse movimento.
Essa memória se constitui tanto do registro que se tem do passado quanto das rupturas e
das quebras produzidas sobre essa mesma anterioridade, que transita no presente em meio a
uma série de encontros e desencontros, possibilidades e impossibilidades. A escrita é, dessa
forma, um processo fundamental na produção dessa memória. Uma escrita que se dá a partir
dos fragmentos, da sujeira produzida anteriormente; uma escrita que se reflete no corpo, nas
atitudes, nos interesses, nos ideais de cada um. Uma escrita que não é neutra, não é pura nem
limpa; é, antes, permeada pelos processos de ruptura, encontros e desencontros que nos
inserem no mundo.

Antes da celulose da madeira, se usava, para fazer papel, fibras de algodão


extraídas de trapos e roupas velhas. Era assim que se escrevia, sobre as fibras
dos farrapos, vi isso no livro sobre restauração, conto à Melina. Os panos,
imerso em água e cal, se desintegravam. Com as fibras se fazia uma pasta, que
era prensada e colocada para secar ao sol. Sobre essa superfície se escrevia, esse
material feito de pano, suor, poeira, vestígios de gente andando nas ruas, de
gente tirando e colocando as roupas, lavando e secando-as no varal, usando até
desbotar as cores, até gastar o tecido, até romper os fios. Sempre há algo já
existente no processo da escrita, você não acha. Escrever nunca começa do
nada, de um ponto vazio, inabitado, limpo, nunca se começou, o próprio
papel é outra coisa transformada. Escrevemos e tocamos nessas fibras
esgarçadas, amassadas e prensadas, escrevemos e vestimos as roupas usadas,
limpamos a sujeira, nos afogamos na água e secamos ao sol. Escrevemos e
remexemos nos panos usados para cobrir a nudez, tirados após um dia de
trabalho, arrancados para o desejo do corpo, sujos por todas as coisas que
sujam, limpos por todas as coisas que limpam. Virados ao verso e ao avesso.
Nos contaminamos, submergimos do melhor e do pio. Nunca estamos
inocentes (LAGE, 2019, p. 73).

V K. relato de uma busca: a narrativa literária como legado

O romance K. relato de uma busca, de B. Kucinski, lançado em 2011, traz como


protagonista K., um pai que sai em busca da filha, professora universitária, militante e
desaparecida política, em plena ditadura militar no Brasil. Pouco a pouco esse pai percebe a
arbitrariedade e a violência do regime autoritário instaurado. Antes do desaparecimento da
filha, K. tinha permanecido alheio aquele contexto político no qual vivia, embora fosse judeu e
tivesse vindo para o Brasil justamente para fugir do nazismo na Europa. Essa narrativa literária
de B. Kucinski é uma autobiografia ou autoficção na medida em que a irmã do autor, Ana Rosa
Kucinski, é uma desaparecida política, assassinada pela ditadura militar brasileira. Entretanto,
trata-se de um texto literário, ou seja, uma narrativa com toda a estrutura de um texto ficcional.
Os limites entre o real e o imaginário são colocados à prova ao longo da narrativa.

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Já na epígrafe do livro, o autor sugere esse passeio entre o real e o ficcional: “Caro leitor:
Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu”. Aí já estão as primeiras evidências de
que se trata de um texto literário, mas também de um texto de memória. Nosso intuito é
justamente passar pela construção dessa memória que diz respeito a uma família vítima das
violências cometidas pelo regime autoritário, mas também que exerce um papel de legado, na
medida em que se coloca à disposição das gerações futuras para contribuir num processo de
compreensão da nossa história e, consequentemente, de ressignificação da ação humana, como
também funciona como porta-voz de tantas outras vítimas da censura, da repressão e da
violência ditatorial.
Na narrativa, K., anos depois, continua recebendo as cartas enviadas pelo banco e pelos
Correios endereçadas à filha. Essas cartas trazem uma recorrente lembrança da ruptura, do
afastamento e do impedimento imposto a esse pai de poder viver com a própria filha. O carteiro
que ainda entrega as cartas seladas e carimbadas simboliza o esquecimento coletivo em relação a
um evento violento e traumático para a história de toda uma coletividade.

O carteiro nunca saberá que a destinatária não existe; que foi sequestrada,
torturada e assassinada pela ditadura militar. Assim como o ignoravam antes
dele, o separador das cartas e todos do seu entorno. O nome no envelope
selado e carimbado, como a atesta autenticidade, será o registro tipográfico
não de um lapso ou falha do computador, e sim de um mal de Alzheimer
nacional. Sim, a permanência do seu nome no rol dos vivos será,
paradoxalmente, produto do esquecimento coletivo do rol dos mortos
(KUCINSKI, 2016, p. 15).

Aqui, começamos a pensar até que ponto uma obra literária é necessária à sociedade, tendo em
vista que esse mal de Alzheimer nacional é institucional e coletivo. Ele é um projeto político
dentro da nossa sociedade que visa manter algumas estruturas de poder já estabelecidas. A
literatura pode ter, então, além do seu caráter estético e literário, um papel de denúncia, um
posicionamento face à realidade apresentada.
No romance, a língua iídiche, a qual K. se dedicava inteiramente, aparece como um
espaço de alienação e distanciamento com relação à realidade posta, uma vez que o personagem
não voltava seus olhos para o que acontecia no país naquele momento. Preocupado pelo fato da
filha não ter dado notícias nos últimos dias, K. lembra que na véspera desapareceram dois
estudantes de medicina judeus, além de outros não judeus. Por entender que se tratava de caso
da ditadura e não de antissemitismo, a Federação decidiu se omitir. Isso por si só já revela
alguma falta de empatia, desinteresse e mesmo corporativismo das associações, coletivos e
federações com relação às violências praticadas desde o início do período ditatorial.
Sem notícias da filha, K. vai ao campus da universidade, em direção ao Conjunto das
Químicas, onde ela era professora. Lá foi informado por amigas dela, entre palavras abafadas e
entrecortadas, que a filha não aparecia há onze dias, sendo que nunca havia faltado a nenhuma
aula anteriormente. K. é orientando por essas amigas da filha a não procurar informações junto
às autoridades da universidade, pois pessoas estranhas estavam na universidade e na reitoria.
Esse pai vai ainda a um outro endereço que a filha tinha passado para ele, mas não encontrou o
vestígio de qualquer pessoa lá.
Ele, então, com os outros dois filhos no exterior e as amigas da professora desesperadas,

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se sente só e impotente diante do desaparecimento da filha. Cogita acidente, doença grave e


prisão. Ele mesmo tinha noção de que, naquela situação,

O Estado não tem rosto nem sentimentos, é opaco e perverso. Sua única fresta
é a corrupção. Mas às vezes até essa se fecha por razões superiores. E então o
Estado se torna maligno em dobro, pela crueldade e por ser inatingível. Isso
ele sabia muito bem (KUCINSKI, 2016, p. 19).

Só então esse pai se dá conta de que a sua dedicação ao iídiche o impediu de notar qualquer
coisa quando a filha sempre aparecia correndo, nervosa, deixando endereço para que ele a
procurasse só em último caso. Passa a se sentir culpado por esse distanciamento e até pelo
segundo casamento com uma mulher judia alemã, com quem morava.
O trecho em que K. procura seu amigo advogado para pedir orientações diante dessa
situação evidencia a arbitrariedade do regime instaurado e a suspensão de garantias e direitos
individuais essenciais de qualquer democracia, tais como os direitos ao devido processo legal e a
ampla defesa. “Nas prisões de motivação política, os tribunais estavam proibidos de aceitar
pedidos de habeas corpus. Não há nada que um advogado possa fazer. Nada. Esta é a situação”
(KUCINSKI, 2016, p. 20).
O delegado que registrou o desaparecimento da filha de K., constrangido e omisso, ao
saber que se tratava de “uma professora universitária, de quase trinta anos, adulta e vacinada”
(KUCINSKI, 2016, pp. 20-21), e ao ouvir do pai que o motivo poderia ser político, se limita a
circular uma fotografia dela em todas as delegacias e a informar K. que, se não recebesse
nenhuma notícia em cinco dias, deveria procurar o Instituto Médico Legal. K. decide ir ao IML
vinte e cinco dias após o sumiço da filha, onde descobre que ali a muito tempo não chegava o
corpo de uma mulher branca, todos os corpos ali eram negros ou pardos.
K. lê em um jornal que um arcebispo tinha convocado uma reunião com familiares de
desaparecidos políticos. Embora tivesse algum desprezo pelos membros e pelas práticas das
instituições religiosas, além de os considerar hipócritas, ele vai a essa reunião. Os relatos e
depoimentos nessa reunião davam a dimensão do Estado de exceção que havia se instaurado no
país.

Já havia caído a noite e os relatos prosseguiam. Variavam cenários, detalhes,


circunstâncias, mas todos os vinte e dois casos computados naquela reunião
tinham uma característica comum assombrosa: as pessoas desapareciam sem
deixar vestígios. Era como se volatilizassem (KUCINSKI, 2019, p. 24-25).

K., que havia fugido da Polônia dominada pelo regime nazista, pouco a pouco, se dava conta da
violência praticada pelo Estado brasileiro. Ele

tudo ouvia, espantado. Até os nazistas que reduziam suas vítimas a cinzas
registravam os mortos. Cada um tinha um número, tatuado no braço. A cada
morte, davam baixa num livro [...] Não havia a agonia da incerteza; eram
execuções em massa, não era um sumidouro de pessoas (KUCINSKI, 2016, p.
25).

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O narrador acompanha essa luta do pai à procura da filha desaparecida e traz ao longo
da narrativa muitos dos elementos que caracterizaram a ditadura militar brasileira. A repressão,
a tortura, o assassinato, todos esses eram características do regime autoritário no Brasil. Esse
narrador lembra dos assassinatos no Araguaia, o fato das forças militares ditatoriais terem
impedido o luto de muitas famílias desaparecendo com os corpos. A vida lá fora que seguia
normal, indiferente. A impunidade e a conciliação para manter um jogo de interesses das forças
dominantes. A organização repressiva que era mantida também através de informantes civis,
delatores, denúncias e traições.
A família de K. já tinha sofrido com a invasão das tropas alemãs à cidade de Wloclawek,
na Polônia, ocasião na qual a maior parte foi dizimada. Ao investigar o desaparecimento da
filha, K. vai descobrindo um outro mundo ao qual ela também pertencia, que incluía marido,
cunhada e sogros. Esse pai descobre que a filha e o genro desconhecido tinham em comum o
interesse pela política e o envolvimento nos movimentos de resistência e luta armada. K. passa a
se perguntar até mesmo sobre o engajamento da filha nas lutas políticas, fato até então
ignorado. Ele encontra uma carta da filha para uma amiga criticando a alienação e a indiferença
das pessoas diante daquele quadro político.
O narrador constrói a imagem de K. como a de alguém que se desligou da realidade à
sua volta, a partir de uma certa alienação provocada pela própria língua e literatura iídiche.
Alguém que deixou de perceber o que acontecia com o país, com a sua filha. K. busca a ajuda
de organizações e entidades humanitárias que também precisam agir com descrição. Mesmo
com a ajuda de uma organização, ele não consegue obter nenhuma notícia sobre o possível
paradeiro da filha. Até mesmo Jacobo, membro da organização que investigava o
desaparecimento da personagem, também desaparece e é substituído.
Um ditador relata o dia em que pegou o casal e narra o fato de não saber o que fazer
com a cadela, Baleia. O relato do militar-narrador evidencia ainda uma contradição das ideias
de desumanidade e covardia dentro das forças ditatoriais. Ele defende que a cadela precisa ser
sacrificada, pois é uma prova viva que pode a qualquer momento denunciar o sumiço do casal.
Seu superior hierárquico, por outro lado, ordena que cuidem e alimentem a cachorra, pois,
segundo ele, pensar em matá-la é um ato de desumanidade. No que o militar-narrador
questiona sobre o ato deles mesmo de torturar e matar estudantes.
O governo, pressionado, dá uma resposta à mídia com relação à lista de desaparecidos.
Mas os ditadores se limitam a dizer que alguns estão foragidos, outros já cumpriram pena,
outros ainda que nunca foram presos. Numa guerra também psicológica, os ditadores divulgam
que não há nem mesmo registro de alguns desaparecidos, como no caso da filha de K. O
governo ditatorial omite e divulga informações falsas.
É interessante como a narrativa consegue dar uma dimensão das violências praticadas
por esse regime autoritário, na medida em que questiona também o que mais poderia ser tão
cruel e desumano que pudesse surpreender aquele pai à procura de sua filha, e impressionar
nós mesmos, sejam as vítimas da ditadura, seja qualquer cidadão que tenha se formado nesse
contexto. Nesse sentido, a epígrafe do capítulo “A abertura” é não só simbólica, mas uma
ferramenta estética de compreensão dos atos praticados pelos ditadores. A epígrafe, um trecho
literário de um rabino e poeta judeu diz: “Que poderiam eles fazer-te que já não tenham feito?”
Quais violências e outras manifestações de opressão e silenciamento ainda poderiam ser
colocadas em prática e surpreender-nos? A tortura, o assassinato de perseguidos políticos, o

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exílio, o pau de arara, o choque elétrico, a família que é impedida de enterrar o corpo de uma
vítima e concluir um processo de luto. O que mais além desses atos ainda poderia nos chocar?
A narrativa revela muitos aspectos da estrutura ditatorial. Notícias e encomendas falsas
enviadas ao endereço desse pai que insistia junto às instituições uma resposta sobre o paradeiro
da filha. Os familiares que buscam qualquer notícia de um desaparecido também passam a ser
inimigo desse sistema repressivo e autoritário. Simpatizantes e cúmplices do regime político
criminoso instaurado contribuem na difusão de notícias falsas e tortura psicológica.
O torturador que narra o capítulo A abertura dá vários indícios dos métodos de tortura
física e psicológica, como quando fala com seu auxiliar, Mineirinho, a respeito do pedido de um
norte-americano para que entregassem o casal desaparecido ao pai da vítima. Ele aponta que
ainda que ambos estivessem vivos como poderiam ser apresentados após tudo que aconteceu.
Há aí um indício de que o processo anterior ao assassinato foi tão cruel e violento que não seria
justificável nem mais que aparecessem vivos ou que se mostrasse o corpo.
Outro episódio emblemático na narrativa é a tentativa desse pai de concluir o processo
de luto. K. pede autorização ao rabino para concluir uma das etapas do luto que se dá um ano
após a morte da pessoa, ou seja, colocar a lápide – matzeivá – ao lado do túmulo de sua esposa,
ainda que não tivesse encontrado o corpo da filha. Mas o rabino é irredutível e não admite
colocá-la se não há o corpo. Colocar essa lápide significaria para aquele pai de alguma forma o
fechamento de um ciclo.
Surge, então, a ideia de escrever um livro em memória da filha. Talvez uma referência
indireta ao próprio romance K. relato de uma busca. O processo de escrita entendido como uma
ferramenta que potencializa a relação entre quem escreve e quem é lembrado. Parece exercer
também um papel importante de resistência, permanência, talvez como último gesto ou ato
final. A atitude de K. de querer imprimir e distribuir alguns exemplares desse livro é não só uma
homenagem à sua filha, mas também uma reflexão sobre aquele episódio histórico de uma
coletividade. Em uma leitura mais ampla, é uma reflexão sobre a própria condição humana, as
relações estabelecidas entre as pessoas, as sensações, as vivências, as opressões, as rupturas e os
apagamentos daí advindos. Nessa perspectiva, a literatura exerce essa função de representar
ações humanas injustificáveis e incompreensíveis como proposta de transformação dessa mesma
realidade caracterizada pela crueldade e pela barbárie.
O capítulo Imunidades traz um paradoxo interessante. Esse capítulo aponta um percurso
das lutas e dos embates travados por alguém que cobra respostas do Estado e das forças
políticas. K. acaba vencido pela exaustão e pela indiferença. Esse é um aspecto importante
demonstra como aquele evento histórico e político foi tratado durante e após o período de
ditadura. O pai que termina vencido, sem saber da filha, sem poder enterrá-la, representa a
própria incapacidade do país em lidar com tal acontecimento criminoso.
A literatura revela, mais uma vez, sua capacidade de potencializar todo esse
encadeamento de eventos, de feridas abertas e não cicatrizadas, de punições não atribuídas aos
ditadores e seus cúmplices, de silenciamento diante de qualquer movimento que questione as
forças políticas impositivas, ontem e hoje. O texto literário é em alguma medida um afago à
memória da vítima e uma abertura para o futuro, não mais para essa desaparecida política
calada e enterrada, mas para todas as gerações que veem depois. A dor de K., por exemplo,
permanecia anos depois. Oito anos após o desaparecimento da filha, K. busca nas fotografias
alguma lembrança dela e algum indício de que aquilo que viria a ocorrer já era anunciado antes
mesmo, o que ele não teria percebido dado o seu distanciamento e a sua ocupação, pela qual,

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agora, se culpava.
O capítulo A terapia aponta as dores e as feridas não cicatrizadas nas vítimas, em suas
famílias, e, em muitos casos, pessoas que apenas testemunharam as violências praticadas pelo
Estado de exceção. Esse capítulo narra os traumas provocados a uma personagem que
testemunhou as torturas e as diversas formas de violência durante o período em que trabalhou
como faxineira para os ditadores. Jesuína Gonzaga, 22 anos, faxineira e cozinheira, indicada por
“gente lá de cima” para trabalhar em determinada empresa, como ela mesmo relata, é
encaminhada pelos chefes para a terapeuta a fim de obter uma licença médica para tratar das
alucinações que tem. Tudo indica que sejam traumas advindos dos testemunhos de violência da
ditadura.
A terapeuta insiste em perguntar quem são essas pessoas “lá de cima” que a indicaram
para a atual empresa e quais são os barulhos que Jesuína tem na cabeça. Até que ela resolve
revelar que quem a indicara foi o delegado Fleury, um ditador. Ela narra à terapeuta que foi
retirada da prisão por Fleury para desempenhar algumas atividades domésticas na casa onde ele
mantinha os presos e torturados, inclusive levar água para presos e limpar as celas. Embora
Jesuína diga que acabou indo para a cama com o torturador dos presos políticos, as causas dos
sangramentos que sofria eram motivadas pelo estupro do padrasto quando ainda era
adolescente, motivo pelo qual se envolveu com drogas e foi presa.
Na casa em que trabalhou para Fleury era mantida, na verdade, uma das prisões ilegais
da ditadura, onde havia o porão e as salas de tortura e de interrogatório, as celas, ou seja, toda a
estrutura física para manutenção de um regime ditatorial e paraestatal criminoso. Lá, Jesuína
era também incumbida de ganhar a confiança dos presos e delatar qualquer intenção deles a
Fleury. Ajudou, de verdade, somente Luiz, prisioneiro jovem torturado. Ela, então, revela à
terapeuta o motivo dos seus pesadelos, o que ela viu na garagem por um buraco em um dia que
ficou sozinha na casa.
A reunião da Congregação é um dos capítulos mais emblemáticos do romance. Os
professores do Instituto de Química da Universidade de São Paulo, dezenove meses após o
desaparecimento da filha de K., estão reunidos no complexo denominado Conjunto das
Químicas para mais uma reunião da Congregação. Na pauta, o pedido da reitoria de rescisão de
contrato da professora “por abandono de função”. Ao mesmo tempo, há um pedido de
recontratação de um professor aposentado, um dos membros da comissão que abriu o processo
de demissão da filha de K. A universidade viria a reconhecer o erro da demissão muitos anos
mais tardes, mas sem qualquer perdido de desculpas daqueles que participaram dessa decisão.
O narrador, nesse capítulo, tendo como fonte a ata da reunião, indica que apenas pode
imaginar como foram os diálogos dessa reunião. Ao estabelecer uma narrativa literária desse
evento burocrático-administrativo, transitamos entre o imaginário e o real a partir de todos os
referenciais literários e históricos apontados pelo romance até ali. O narrador descreve o que
consta na ata da reunião daquele dia e, então, reinterpreta o conteúdo formal desse documento
para criar os possíveis diálogos que tenham ocorrido entre os professores, demonstrando que a
demissão da professora foi algo articulado previamente, a partir de um jogo de interesses desses
indivíduos envolvidos naquela situação.
O narrador defende que o professor, diretor do Instituto, que preside a reunião teria o
domínio daquela situação. O professor advindo da filosofia que cogita pedir a palavra se opõe
veemente à pauta dessa reunião. Apenas imaginamos o que passa em sua cabeça. A
recontratação do professor aposentado é aprovada. No segundo ponto da reunião, a demissão

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da professora desaparecida. A imagem construída pelo narrador do que pode estar passando na
cabeça do professor que preside a reunião naquele momento já nos revela o resultado que será
tomado:

O regulamento é claro e taxativo. E mais, como direto do Instituto, se não


demitir posso ser acusado de prevaricação. Isso se não for acusado de coisa
pior, de cumplicidade com subversivos ou algo parecido. Sempre o nosso
dever, como cientistas, é o de preservar a instituição. Não dar pretexto a uma
intervenção ou cassações (KUCINSKI, 2016, p. 146).

Esse pensamento revela tanto o corporativismo dessa classe quanto sua indiferença com
relação aos acontecimentos da ditadura. Fica demonstrado como as pessoas agem muitas vezes
motivadas por interesses propriamente de um grupo, ainda que esses interesses divirjam dos
interesses éticos, morais e sociais da coletividade. Não importa a vida nem a liberdade roubada
de um indivíduo ou de uma comunidade, importa que esse grupo dominante mantenha seu
status quo de antes. Um pensa na sua carreira e progressão, outro em manter uma boa
vizinhança entre a instituição e o regime militar instaurado, outro ainda tem medo. Um ou
outro não se conforma com o silenciamento diante do desaparecimento de uma colega de
profissão.
K. pensa na possibilidade de retomar a literatura para lidar com o próprio trauma, como
uma forma de se reconciliar com a sua filha e de propor alguma coisa que denuncie as
atrocidades praticadas por aquele Estado de exceção e que preserve a memória, as lutas e a
resistência da filha e de tantas outras vítimas da ditadura militar. K. tenta, inicialmente,
reproduzir a violência da qual a filha foi vítima e se vê impossibilitado de utilizar um evento
catastrófico para alimentar um desejo pessoal, talvez apenas um ego. Ele compreende, então,
que a literatura vai muito além disso. Ela capta na realidade muitas das ações humanas para
ressignificá-las a partir da obra literária, a qual passa a propor alguma reflexão crítica em torno
das circunstâncias, das escolhas e dos sentidos que cada indivíduo dá a um determinado
contexto social.
É nesse sentido que ele decide escrever para as netas sobre a tragédia ocorrida com a
filha, não mais como um desejo pessoal, mas como um legado, uma obrigação moral, ética e
política. Ele se coloca ao lado de sua filha, vítima da ditadura, criando outras formas de
resistência, tanto em respeito àquelas formas encontradas pela própria filha e por tantos outros,
quanto levantando novas possibilidades de apreensão do passado a partir do presente. Essa
memória da filha que K. quer construir tem uma dimensão estética, até mesmo para lidar com o
paradoxo entre a necessidade e a impossibilidade de representar um evento violento e
inexplicável. Mas há também essa dimensão ética da memória, que se coloca na medida em que
ele coloca as lutas da filha como legado para as gerações futuras. É uma tentativa de abrir os
olhares para novas perspectivas. Olhares que não voltem a compactuar com a violência, a
tortura, a opressão ou o silenciamento, mas que saibam conviver com a pluralidade de ideias e
pensamentos.
A literatura como legado para que não mais, em situações de violência ou opressão, nos
coloquemos numa situação de conivência pessoal ou de interesses voltados a si mesmo. Para
que não mais aceitemos as discriminações injustificadas, a arbitrariedade institucional nem o
apagamento da livre manifestação do pensamento. A literatura faz reflorescer novamente essas

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ideias pisoteadas na vida cotidiana. Ela aproxima o eu do tu no intuito de encontrar


aproximações e lutas em comuns que coloquem o nós num movimento orgânico. A memória é
uma ferramenta estética para a literatura, como no caso do romance K. relato de uma busca, mas
ela também é espaço de disputa política e ideológica.
Um exemplo disso é o paradoxo da nossa sociedade que aparece no capítulo As ruas e os
nomes. Esse capítulo demonstra a importância de se criar uma memória das vítimas de um
sistema político autoritário. Por menor que seja o gesto, ele é necessário. Não pode ser
diminuída a importância das pessoas que lutaram e resistiram a um sistema repressor,
defendendo a nossa liberdade e se posicionando contra as diversas formas de injustiça. O nosso
gesto pode ser realizado de diferentes formas, seja nomeando ruas com o nome dos
desaparecidos políticos, seja instaurando uma Comissão para investigar os crimes cometidos
pelos agentes ditatoriais, ou ainda levando essas discussões para os diferentes espaços de
manifestação artística, política e intelectual. “A homenagem aos desaparecidos políticos em
placas de rua tinha a função pedagógica de lembrar às futuras gerações a importância da
democracia e dos direitos humanos” (KUCINSKI, 2016, p. 150).
O paradoxo presente tanto no romance quanto na realidade é o fato de que nos
deparamos também no dia a dia com homenagens a ditadores, torturadores e genocidas. Não é
difícil encontrar uma avenida, uma rua, uma ponte ou uma estátua de um agente de um Estado
de exceção ou de um sistema político autoritário. K., por exemplo, após a homenagem a sua
filha, passou a observar as placas nas ruas. Ele ficou surpreendido ao se deparar com uma
avenida nomeada como Avenida General Milton Tavares de Souza, o responsável pelo DOI-
Codi, ou ainda, com o nome Costa e Silva na ponte Rio-Niterói, ditador que editou o AI-5.
Esse paradoxo se estende ainda mais quando pensamos que o personagem histórico
homenageado é vilão para alguns e herói para tantos outros. No caso do Brasil, isso é bastante
significativo. Até hoje, algumas camadas da sociedade brasileira tem uma simpatia e apoia
ditadores de outra hora. Há um episódio político muito representativo dos últimos anos nesse
sentido. O atual Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, durante a votação do
impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, no plenário da Câmara dos Deputados, votou a
favor da destituição da então Presidenta homenageando um dos mais perversos torturadores do
regime militar brasileiro, o militar Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Essa é uma reflexão do nosso tempo e também do romance. “Como foi possível nunca
ter refletido sobre esse estranho costume dos brasileiros de homenagear bandidos e torturadores
e golpistas, como se fossem heróis ou benfeitores da humanidade?”. K. não consegue entender
essa lógica na sociedade brasileira. Mas, talvez, seja possível apontar alguns indícios dessa
característica autoritária de determinadas camadas da nossa sociedade. Uma delas é a de que
esse país é formado através da escravização dos negros e do genocídio da população indígena.
As elites até hoje não aceitam lidar com qualquer manifestação política que defenda
uma sociedade mais igualitária, humana e justa. Essas elites controlam as vidas econômica,
política, social e cultural de toda a população, além de dominar os meios de informação e de
entretenimento. Seu objetivo é somente um: manter-se no domínio da estrutura econômica e
política do país. Para alcançar esse fim, muitas vezes essas elites flertam com o autoritarismo e
com a violência para colocar em prática esse projeto de poder. Daí, aliam-se as forças militares
para obterem sucesso. K. pensa que em outros países homenagear um ditador seria impensável.
Ao voltar para São Paulo e olhar para um dos principais viadutos da cidade com o nome de um
ditador, conclui: “Centenas de pessoas passam por aqui todos os dias, jovens, crianças, e leem

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esse nome na placa, e podem pensar que é um herói. Devem pensar isso. Agora ele entendia
por que as placas com os nomes dos desaparecidos foram postas num fim do mundo”
(KUCINSKI, 2016, p. 153).
Nesse sentido, pensar uma autoficção, autobiografia, escritas de si, ou ainda, literatura
de testemunho, nos ajuda a aproximar a dimensão estética da dimensão ética dessa produção
literária. Um texto de memória que tenha como contexto as violências das ditaduras, do
Fascismo, do Nazismo, da escravização e da colonização, não se encerra na discussão em torno
da construção estética da narrativa ficcional, mas nos permite fazer leituras expansivas na
medida em que percorre uma gama de sentidos vinculados à natureza humana. Passado e
presente estão em permanente reconstrução, tanto pelo fato de que os agentes do presente
continuamente ressignificam os sentidos do passado, quanto pelo aspecto de que projetamos
saídas para o futuro a partir desses referenciais criados no presente. Pensar as dimensões
individual e coletiva da memória não como dois pólos distintos ou como dimensões que se
inscrevem no mundo separadamente, mas como partes de um corpo vivo maior.
Nos parece consensual o fato de que a memória se constitui a partir desses referenciais,
dos interesses e das ideologias de quem a produz. A memória percorre os caminhos do real e do
imaginário concomitantemente. No texto ficcional, o relato pessoal de uma personagem
percorre as muitas histórias semelhantes a sua – de quem lutou, resistiu, de quem foi silenciado
ou se omitiu, daqueles que consentiram ou torturaram, de quem estuprou ou violentou. Não
nos interessa delinear o que é real e o que é ficcional em K. relato de uma busca, por exemplo.
Interessa, antes, pensar a construção desse legado que a própria narrativa propõe. Pensar na
construção de uma política da memória que nos coloque diretamente em oposição às forças
autoritárias e atrasadas que dominam os espaços de representação e de poder. Pensar uma
memória cultural que tenha no texto literário possíveis ferramentas que potencializam no
indivíduo seu desejo de emancipação, liberdade e igualdade. A memória, a escrita, a literatura
em última análise, como respostas à violência e à barbárie.

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Recebido: 02/06/2020
Aceito em: 16/09/2020

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