Bataille e Lacan
Bataille e Lacan
Bataille e Lacan
Os percursos da transgressão
(Bataille e Lacan)
Silvia Lippi
Mestre em Filosofia.
Tradução: Pedro
Henrique Bernardes Resumo: Transgressão é uma noção que com muita frequência é
Rondon esquecida, estigmatizada, ou atribuída pela doxa psicanalítica a
uma estrutura em particular: a perversão. A transgressão faz pensar
na infração, na desordem, na liberdade. Essa liberdade, contudo,
depende paradoxalmente da lei, ao ponto de lei e transgressão al-
gumas vezes poderem se confundir. Veremos como a transgressão
se liga aos conceitos de desejo, fantasma e gozo, por meio das con-
tribuições de Bataille e de Lacan, destacando os pontos de encontro
e os de divergência entre esses dois autores, ‘transgressores’, sem
sombra de dúvida.
Palavras-chave: Desejo, fantasma, gozo, interdito, limite.
do desejo que, se não for acomodado pela razão, leva à morte” (BATAILLE, 1966, p.119).
ele em L’érotisme (BATAILLE, 1957, p.72). Nessa época, para Lacan o desejo está
inteiramente preso na linguagem. O desejo, como metonímia (deslocamento no
interior da cadeia significante) não infringe o princípio de prazer, ele fica aquém.
O desejo é uma barreira ao gozo: isto é o que Lacan sustenta em “Subversão do
sujeito e dialética do desejo” (LACAN, 1960/1966, p.825). Para aceder ao gozo
é preciso um passar além, uma ação violenta que quebre a corrente contínua,
horizontal, uniforme, do desejo apanhado pela linguagem. O desejo tem neces-
sidade de uma efração, de uma forçagem, de um salto no impossível: o desejo
tem necessidade da transgressão.
Vejamos um exemplo, na ficção, da transgressão como ultrapassagem, efra-
ção, salto para além do princípio de prazer. Um exemplo de transgressão como
gozo, conforme Lacan o vê nessa época. No relato Ma mère, de Georges Bataille,
uma mulher, dominada por desejo violento e impossível por seu filho, termina
por suicidar-se. Na primeira versão do texto de Bataille, mãe e filho cometem
carnalmente o incesto. A segunda versão é mais ambígua: o leitor da versão pu-
blicada tende antes a pensar que mãe e filho não chegaram ao final em seu amor.
No entanto, as últimas palavras da mãe antes do suicídio permitem pensar que
alguma coisa de carnal se passou entre os dois: “Beija-me [...] para não pensar
mais. Põe tua boca na minha” (BATAILLE, 1966, p.204). Seja como for, mesmo
sob a forma do fantasma, o incesto é traumático:2 mãe e filho estão fundidos
entre si. A transgressão do interdito impele os dois personagens a ir muito lon-
ge: mesmo as relações sexuais que eles têm com outras pessoas — aliás com as
mesmas pessoas, porque a mãe passa suas amantes para o filho — não é senão a
continuação da dependência total de um em relação ao outro. A separação entre
mãe e filho é violentamente negada, para eles é impossível sair de um amor
cerrado: mãe e filho são prisioneiros do fantasma deles.
No final do relato, entretanto, a transgressão no fantasma se transforma em
transgressão real para a mãe, que passa ao ato — ela se mata. Ela goza de seu amor
por seu filho, até o final: amor incestuoso — transgressão pura — que a conduz
à morte. Nós excluímos que o suicídio da mãe, no romance de Bataille, tenha
sido cometido por sentimento de culpa:3 o ato final não é senão o acabamento
de um ato impossível, mostra a realização da passividade total, a objetivação que
realizaria a união com o Outro, uma união que é igual à morte. A morte é o
signo de um amor sem compromisso, conservado na pureza de seu impossível:
quais se dividem entre as duas interpretações (Cf. Hamano, 2004, p. 235, notas 1 e 2). Em
contrapartida, pensamos que não se trata da preocupação principal de Bataille — o escritor
tinha lido Freud o suficiente para conhecer o poder do fantasma.
3 Não somos da mesma opinião de Gilles Ernst, que compara a mãe do romance de Bataille à
Fedra, heroína de Racine, destruída pelo sentimento de culpa. Ver Ernst (1996, p.102).
“[...] eu te dava aquilo que tinha de mais puro e de mais violento”, diz a mãe
antes de morrer.
É o filho que, no final, recusando a morte, se “separa” de sua mãe. Trata-
se de uma traição, o filho engana o amor da mãe: continuando a viver após a
morte de sua mãe, ele trai o desejo do Outro, ele diz “não”, muda o percurso
de seu desejo. “Agora sei — diz a mãe — [...] que vais sobreviver a mim e que,
sobrevivendo, trairás uma mãe abominável” (BATAILLE, 1966, p.205. Grifo nosso).
O filho passa da transgressão da lei que interdita o incesto, à traição da Lei do
desejo do Outro; passa de uma lei para a outra, negando-as, uma de cada vez,
para no final retornar à primeira lei: a impossibilidade do gozo, a castração (Φ).
A castração contém a força do “não”, ela não é uma fraqueza. O “não” do filho
à morte significa que ele não cedeu ao desejo do Outro (materno). Não se trata,
então, de uma forma de transgressão?
Pureza do desejo do Outro (a primeira forma de transgressão), objetivação
do desejo de morte, desejo total que não é senão submissão. O desejo do Outro
é um desejo que se torna o contrário do desejo. No desejo puro, a morte é sofrida,
precipitada, numa paixão sem resistência nem vontade, diz Maurice Blanchot
em L’espace littéraire.
É o desejo impuro (a segunda forma de transgressão) que pode ser vivida:
essa transgressão vem no lugar de uma devoção incondicional mortífera. Não
há responsabilidade ética ante o desejo do Outro, a fidelidade destrói. O de-
sejo de um sujeito e o desejo do Outro não devem tornar-se um monólito: é
preciso que haja separação, e não homogeneidade. Por que não tentar agitar,
fazer mexer-se, fazer entrar a diferença nesse desejo: por que não transgredir
sua Lei?
Todo amor passional nos faz reviver a morte na origem da existência, o
medo de ser destruído pelo mundo no qual se surge. O amor é obrigatoriamente
traumático: entregando-se a todo amor forte, o sujeito se abandona a uma força
destrutiva que detém todo o poder sobre nós. O jogo do amor consiste em resistir
a essa força ao mesmo tempo deixando-se invadir: é entre aceitação (deixar-se
invadir: a primeira forma de transgressão) e resistência (dizer “não”: a segunda
forma de transgressão) que o gozo encontra seu lugar, voltando para dentro do
território do possível.
As duas leis
Vemos bem como, no romance Ma mère, os dois protagonistas transgridem duas leis
diferentes: a lei simbólica (a mãe) e a Lei do Outro (o filho). Em “Kant com Sade”,
Lacan (1963) põe em evidência o laço ambíguo entre lei e desejo: diz inicialmente
que são a mesma coisa e, um pouco mais adiante, no mesmo texto, que o desejo
é o inverso da lei.4 Não se trata de uma contradição. De fato, Lacan fala de duas
leis: a lei edipiana (a lei do pai, a lei simbólica) que podemos pôr em relação com
a “lei do patíbulo” de Kant,5 e a Lei do Outro (o supereu materno).
O desejo está, ao mesmo tempo, em relação com a lei simbólica (a lei que
bloqueia o gozo) e com a Lei do Outro (a lei que comanda o gozo). Consequen-
temente, o desejo se vê puxado com violência do lado da lei e do lado da trans-
gressão, por meio do fantasma que o sustenta, um fantasma que faz concordar
o desejo e o gozo. “É um [...] fantasma [...] bem perturbador, uma vez que não
se sabe onde situá-lo, [...] que te solicita, ele, que te ajustes com teus desejos”
(LACAN, 1963/1966, p.779). Um fantasma “do qual ao menos um pé está no
Outro”, diz Lacan (idem, p.780), portanto, já no campo do gozo.
Expressando com precisão essa posição intermediária do desejo: a transgressão
no fantasma inclui a lei simbólica e a Lei do Outro. E isso vale também para o
fantasma sadiano.6 Contra o lugar comum que considera a perversão como uma
transgressão à lei paterna, a obra de Sade se mostra como tentativa de aliança com
o pai. A figura do libertino assume os traços de uma figura paterna: a potência
de um desejo sem limites vem, paradoxalmente, barrar a Lei do Outro (materno)
(MILLOT, 1991, p.140). Père-version [pai-versão], diz Lacan: desafio ao pai que é
também apelo ao pai, pai que protege contra a mãe, pai que separa de um gozo
mortífero, o gozo do Outro. O perverso está a serviço da Lei do Outro, mas o
“pai” vem socorrê-lo,7 para reconstituir a barreira do desejo.
A transgressão precisa da lei para se pôr em ação, ao mesmo tempo é a trans-
gressão que a funda. E não apenas para o perverso: pensemos no assassinato do
pai como “ato fundador da lei”, no Totem e tabu de Freud.
A lei edipiana (simbólica) é estrutural para Lacan, mas trata-se de uma lei
que pode ser transgredida no fantasma. É do assassinato do pai que a lei se
origina: a lei simboliza a presença do pai através de sua morte (sua ausência).
O pai simbólico somente pode existir como morto através de seu nome (o nome
é o assassinato da coisa, diz Hegel). A transgressão fantasmática anula e, sem
cessar, reconstitui a lei, uma lei que se torna menos “inabalável” (o pai aceita
fazer-se matar!) e que se aproxima da “regra”em seu sentido wittgensteiniano.
A lei simbólica não controla tudo, algo lhe escapa: especialmente no fantasma.
4 “[...] a lei e o desejo recalcado são uma única e mesma coisa, é mesmo aquilo que Freud
descobriu” (LACAN, 1963/1966, p.782). “Em que se demonstra por outra perspectiva que
o desejo seja o inverso da lei” (idem, p.787).
5 “A lei do patíbulo não é a Lei [...]. Mas a Lei é outra coisa, como é sabido desde Antígona”
p.825).
“[...] não havia mais dúvida: eu não gostava daquilo que chamam de ‘prazeres da
carne’, de fato porque são desenxabidos. Eu gostava daquilo que é considerado ‘sujo’.
Eu não ficava nada satisfeito com a libertinagem comum, pelo contrário, porque esta
emporcalha só a devassidão e, seja como for, deixa intacta uma essência elevada e
perfeitamente pura. A libertinagem que conheço profana não somente meu corpo
e meus pensamentos, mas tudo aquilo que imagino diante dela, e especialmente o
universo estrelado.” (BATAILLE, 1979, p.63)
entende “ser” no sentido de “experiência”. Ele escreve: “Chamo experiência uma viagem
ao fim do possível do homem” (BATAILLE, 1943/1954, p.19).
mas sim uma ação contínua que se afirma no vaivém entre o limite e o ilimi-
tado: a transgressão é um excesso que tem também a função de bloqueio em
seu movimento.
Segundo Bataille, roçamos o limite pela primeira vez ao excedê-lo (pensa-
mos tê-lo ultrapassado, mas somente nos aproximamos dele). Para Bataille, o
impossível é o “imutável”, o “fundo das coisas”. “Criar um possível (humano)
na medida do impossível” (BATAILLE, 2004, p.371). É a transgressão, segundo
Bataille.
Esse ponto de constrangimento e de ligação estreita entre limite e fora do
limite — o possível e o impossível, diz Bataille — nós o reconhecemos no relato
que o Pequeno Hans faz a seu pai a propósito de seus fantasmas. A propósito do
primeiro fantasma, Hans conta a seu pai que o transgride com ele: eles passam
juntos por cima de uma corda, corda que impede de pisar no gramado e que
marca a separação entre dois espaços, limite que não deve ser ultrapassado. Hans
deseja que seu pai e ele sejam embarcados juntos (zusammengepackt) pelo guarda.
O segundo fantasma é ainda uma transgressão: Hans e seu pai juntos quebram
uma vidraça no trem. Trata-se exatamente de uma ruptura, de uma irrupção
em direção ao fora, portanto, de uma transgressão: e lá também, os dois, pai e
filho, são conduzidos juntos (mitgenommen) pelo policial.
Mas por que Hans tem necessidade do pai para transgredir? Por que precisa
do limite para entrar no campo do ilimitado? Lacan diz que, para Hans, trata-
se de “passar ao regime do pai” (LACAN, 1956-1957/1994, p.325), o que quer
dizer dar-lhe uma função simbólica, que o pai de Hans não cumpre de maneira
adequada, razão por que Hans não consegue sair da casa. Sair da casa significa,
para a criança, cair diretamente nos braços de sua mãe, o que corresponde ao seu
desejo “impossível”. Mas ele não pode, ele não pode fazer isso sem a proteção
do pai. Proteção que vai da interdição à identificação9 (fase que, no fantasma,
corresponde a zusammenpackt e a mitgenommen). A proteção do pai se faz em duas
etapas que correspondem ao segundo e ao terceiro tempos do Édipo:10 o pai é,
em primeiro lugar, aquele que diz “não” (segundo tempo), que interdita a mãe:
“não pode pisar no gramado, não pode quebrar a vidraça”. Mas o pai é também
aquele que diz “sim” (o terceiro tempo), que consente que o filho se identifique
com ele:11 “embarcar juntos”. Essa identificação permitirá ao filho agir, come-
çando por sair da casa sem ter medo de ser engolfado pelo desejo da mãe. Graças
à identificação, o pai está ao mesmo tempo ausente, “morto”– o sujeito tomou
secundária). É uma identificação sempre parcial, que se apoia num único traço dessa outra
pessoa (ein einziger Zug) (FREUD, 1921/1981, p.187). Ver também Lacan (1961/ 2000, p.64).
10 O primeiro tempo, é claro, é o do apego à mãe.
11 Lembremos que a identificação está ligada ao assassinato do pai.
seu lugar — e presente: o sujeito pode agir, e assinar seus atos com o nome do
pai. É o limite que sai de seu limite e explora o campo do ilimitado, reduzindo
seu perigo. O possível e o impossível se dão as mãos. A transgressão fantasmada
por Hans, assim, fica protegida, parcial e incompleta, graças à intervenção do
pai simbólico, o pai do nome. O pai — a lei — é o eixo da transgressão.
Topologia da transgressão
Como o exemplo do Hans demonstra, o gozo precisa da proteção do fantasma.
No fantasma nós nos encontramos ante duas sequências indissociáveis, das quais
a segunda nega a primeira, mas não diretamente, não frontalmente: trata-se de
uma “contradição inesperada”. A primeira sequência se refere ao gozo e a segun-
da ao seu interdito (vimos isso com o fantasma do Pequeno Hans). A banda de
Moebius é que pode ajudar-nos a compreender a estrutura do fantasma.
12 No seminário D’un Autre à l’autre Lacan mostra, comentando a aposta de Pascal, a jogada e
o risco do jogo (LACAN, 1968-1969, p.178). “O jogo de que se trata, como jogo que verda-
um jogo frívolo, mas de um jogo que implica riscos para o sujeito, porquanto
seu desejo está implicado aí (o desejo está “em jogo”na transgressão).
O que é salutar e excitante no erotismo, explica Bataille, é especialmente o
aspecto de jogo: o jogo pressupõe uma distância (como o riso), e ao mesmo
tempo uma implicação completa (como o sonho).13 Esse duplo movimento
conduz ao imprevisto, à surpresa, e assim ao “segredo”: algo inexplicável que
faz gozar. O segredo se refere à relação entre o sujeito e a morte.14 Tomemos
como exemplo uma obra musical, o Don Giovanni de Mozart.15 Trata-se de um
dramma giocoso: apresenta com alegria (giocoso) o mundo do desejo e do sofrimen-
to, ligados, no entanto, da maneira mais dramática, com a morte, verdadeira
jogada de toda a obra.
A transgressão representa, para Bataille, o imprevisto, a única possibilidade
de sair do cálculo, do sério, do trabalho que aliena. E, para Lacan, a transgressão
é uma astúcia, um estratagema para poder gozar, graças ao fantasma. Gozar:
mas com a condição de admitir a castração, de aceitar um gozo que passa pelo
corpo e pela linguagem ao mesmo tempo, um gozo “insatisfeito”, pronto a
aceitar o oxímoro.
deiramente se joga, não é jocus, mas sim ludus [...]. Isso seguramente comporta o jogo mortal
de que falei há pouco [...]” (idem, p.181).
13 “Os objetos do desejo respondem à excessiva instabilidade de um jogo, sendo o sonho, ele
próprio, essencialmente o jogo que aquele que dorme joga livremente com sua vida, cujos
resíduos lhe voltam ao acaso na liberdade do sono” (BATAILLE, 2004, p.22).
14 “Quer se trate de sagrado, de prazer ou de outro aspecto [...] é o jogo, é o improvável, que
se manifesta; o ápice disso, aliás, é a morte, uma vez que o jogo nunca é tão exatamente ele
mesmo do que quando a morte está dada nele. A morte revela o improvável, revela-o como
jogo” (BATAILLE, 2004, p.27).
15 “[...] no momento exato em que escrevo assim ele acaba de colocar num fonógrafo o disco
da abertura de Don Giovanni: mais do que qualquer outra coisa, a abertura do Don Giovanni liga
o que me coube da existência a um desafio que me abre ao arroubo fora de si.” (BATAILLE,
1995, s/n.)
Referências
Silvia Lippi
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