Gesto e Música Na Fundação Internacional de Capoeira Angola - FICA - BH
Gesto e Música Na Fundação Internacional de Capoeira Angola - FICA - BH
Gesto e Música Na Fundação Internacional de Capoeira Angola - FICA - BH
Caio Ornelas
Belo Horizonte
2023
Caio Ornelas
Orientador:
Belo Horizonte
2023
O74m Ornelas, Caio.
Inclui bibliografia.
CDD: 780.91
Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária: Rachel Mariana Mateus de Oliveira CRB/6 - 1417
26/07/2023, 11:56 SEI/UFMG - 2479657 - Folha de Aprovação
FOLHA DE APROVAÇÃO
Dissertação defendida pelo aluno Caio Ornelas de Souza, em 20 de julho de 2023, e aprovada pela Banca
Examinadora constituída pelos Professores:
__________________________________________
Prof. Dr. Ângelo Nonato Natale Cardoso
Universidade Federal de Minas Gerais
(orientador)
__________________________________________
Profa. Dra. Ana Carolina Malaquias Pietra
Orquestra Sinfônica Cachoeira Grande
__________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Pires Rosse
Universidade Federal de Minas Gerais
Documento assinado eletronicamente por Angelo Nonato Natale Cardoso, Professor do Magistério
Superior, em 20/07/2023, às 10:41, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 5º
do Decreto nº 10.543, de 13 de novembro de 2020.
Documento assinado eletronicamente por Ana Carolina Malaquias Pietra, Usuária Externa, em
24/07/2023, às 14:19, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 5º do Decreto nº
10.543, de 13 de novembro de 2020.
Documento assinado eletronicamente por Eduardo Pires Rosse, Professor do Magistério Superior,
em 26/07/2023, às 04:02, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 5º do
Decreto nº 10.543, de 13 de novembro de 2020.
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AGRADECIMENTOS
Ao meu professor e orientador Ângelo Nonato Natale Cardoso, a quem agradeço pelos
ensinamentos e sobretudo pela paciência.
À minha família paterna, representada na figura de meu pai, Paulete Ornelas de Souza
(In memorian).
Como será apresentado ao longo deste trabalho, o universo acadêmico tem demonstrado um
interesse cada vez maior em aprofundar as pesquisas em relação a gesto e música. O presente
projeto propõe um estudo nesse sentido tendo como foco a Fundação Internacional de Capoeira
Angola (FICA-BH), onde serão abordados aspectos sociais, históricos e antropológicos que
circundam o objeto de estudo. Também através de análises, procura-se identificar gestos
presentes na performance do grupo em questão, investigando como esses se relacionam com a
música e a importância dessa relação na manifestação artística como um todo. Trata-se de
estudo qualitativo com inscrição na perspectiva da Etnomusicologia, onde, para que se tenha
subsídio e se atinja o acima proposto, são apresentadas questões históricas e contextuais ligadas
à cultura afro-brasileira, além de informações conexas à manifestação cultural foco do presente
trabalho – a capoeira. Sendo assim, fruto de pesquisa bibliográfica, informações levantadas e
relacionadas ao gesto são apresentadas e discutidas juntamente com uma pesquisa de campo
realizada principalmente no grupo supra citado, sempre objetivando a compreensão do gesto
musical na capoeira angola.
As will be presented throughout this work, the academic universe has shown an increasing
interest in deepening research in relation to gesture and music. This project proposes a
study in this sense, focusing on the Fundação Internacional de Capoeira Angola (FICA-
BH), where social, historical and anthropological aspects surrounding the object of study
will be addressed. Also through analysis, we seek to identify gestures present in the
performance of the group in question, investigating how they relate to music and the
importance of this relationship in the artistic manifestation as a whole. This is a qualitative
study with an inscription from the perspective of Ethnomusicology, where, in order to
provide support and achieve the above proposed, historical and contextual questions
linked to Afro-Brazilian culture are presented, in addition to information related to the
cultural manifestation that is the focus of the present work – capoeira. Therefore, as a
result of bibliographical research, information collected and related to the gesture is
presented and discussed together with field research carried out mainly in the group
mentioned above, always aiming to understand the musical gesture in capoeira Angola.
3.3.2. O caxixi............................................................................................................... 76
3.3.4. O atabaque.......................................................................................................... 81
Antes de adentrarmos nas informações referentes aos temas e objetos contidos neste
texto, faz-se necessária uma contextualização a respeito do envolvimento do pesquisador com
o objeto de estudo da presente dissertação.
Até o início da presente pesquisa não tinha conhecimento e nem proximidade com o
universo da capoeira angola. De fato, tal proximidade se deu como consequência de minha
intenção de realizar uma pós graduação. Ou seja, devido a esse objetivo busquei uma temática
que tinha interesse juntamente com algo que acreditava ser também do interesse do curso em
questão. Destarte, as informações contidas no texto dissertativo foram baseadas em uma
pesquisa bibliográfica, onde foram consultadas teses, dissertações, artigos e livros referentes ao
tema em questão, além de um contato que se deu a partir de meu ingresso na pós-graduação o
qual se intensificou ao longo do curso. Consequentemente, durante a pesquisa que gerou a
presente dissertação obtive um maior contato com os fundamentos da capoeira, com seus
mestres e suas manifestações, como será exposto ao longo do presente trabalho.
Apresentada tal relação, seguimos com o objeto em questão o qual faz parte de uma das
manifestações culturais de nosso país.
De fato, os estudos de diferentes manifestações culturais têm despertado cada vez mais
interesse pela comunidade acadêmica. Para tais pesquisas, quando a música as integra, a
etnomusicologia pode ser tomada como uma disciplina relevante para o entendimento mais
holístico da manifestação em questão.
Tal afirmativa encontra respaldo no fato de que a etnomusicologia tem entre suas
premissas a abordagem além do sonoro no estudo da música, incluindo aí o ser humano e sua
cultura, como podemos ver em autores que procuraram definí-la. Tiago Oliveira Pinto (2001,
p.225) elucida trazendo para a discussão os conceitos do etnomusicólogo Alan Merriam:
Titon (1992 apud Pinto 2008, p.226) vai além do fenômeno acústico para definir essa
ciência como “ o estudo do ser humano que faz música”.
11
Ou seja, essa área tem, portanto, afinidade com a antropologia, por tratar as
manifestações musicais como um processo fruto de uma cultura. Como bem observa Jean-
Jacques Nattiez (2016, p.1):
[...] uma abordagem descritiva da música, que vai além do registro escrito de sons,
apontando para o registro escrito de como os sons são concebidos, criados, apreciados
e como influenciam outros processos musicais e sociais, indivíduos e grupos. A
etnografia da música é a escrita sobre as maneiras que as pessoas fazem música”.
Sobre tal ótica, sua aplicabilidade torna-se relevante visto que a performance musical
passa a ser abordada como um conjunto de manifestações e formas de expressão que não se
restringe apenas ao sonoro, mas envolve cerimônias, rituais, eventos teatrais e estende-se por
muitos domínios da vida, a depender da manifestação musical em questão e o foco de seu
estudo, ou seja, é mais do que se ouve e do que se vê.
É sob esse escopo etnomusicológico, que observa uma manifestação musical sob uma
ótica mais holística, que o presente trabalho pretende abordar aspectos históricos, culturais,
sociais, coreográficos e sonoros presentes na manifestação cultural intitulada capoeira angola,
mais especificamente, da Fundação Internacional de Capoeira Angola (FICA-BH) e, a partir
dessa contextualização, analisar buscando compreender a relação dos gestos presentes em sua
performance com os elementos que a cercam.
Atualmente, amplamente difundida no território nacional, a capoeira possui diversas
denominações – angola, regional, contemporânea, benguela, capoeira negrim, para citar
algumas – as quais, por sua vez, costumam estar em conformidade com um estilo distinto. A
1
Ao longo de sua história a etnomusicologia vem mudando suas abordagens no que diz respeito ao estudo da
música. No entanto, não é objetivo deste trabalho entrar em tal seara, para ver mais sobre este assunto, ver:
SEEGER, A. Etnografia da música, 2008; NATTIEZ, J.-J.; LACERDA, M. B.; COELHO, L.
deL.Etnomusicologia ,2020; PINTO, Tiago de Oliveira. Etnomusicologia: Da música brasileira à música mundial,
2008.
12
presente pesquisa terá como foco o que se encontra ainda que genericamente sob o título de
“capoeira angola”.
Sobre a origem dessa expressão, o maior difusor desse estilo de capoeira, mestre
Pastinha2, relata em seu livro “Capoeira Angola” uma possível explicação: “o nome da capoeira
angola é consequência de terem sido os escravos angolanos, na Bahia, os que mais se
destacaram na sua prática” (Mestre Pastinha, 1964, p.20).
Castro Júnior, além de reforçar as afirmações anteriores, acrescenta uma possível razão
para o surgimento da denominação advinda da insatisfação por parte de alguns praticantes
(2004, p.144):
Gonçalves (2012, p.46) ao citar Pedro Abib, apresenta-nos um pouco mais sobre essa
questão e corrobora com a ótica de Júnior no que tange ao surgimento dessas duas vertentes da
capoeira – regional e angola – como uma reação de insatisfação:
[...] Pedro Abib, por exemplo, expõe que o surgimento e a denominação Capoeira
Angola surge como um movimento organizado por capoeiristas em contraponto à
Capoeira Regional de Mestre Bimba. Pois, como explicita Abib, a Capoeira Regional
começa a ganhar prestígio, chegando a influenciar e servir de modelo para a
descriminalização da capoeira em 1937 pelo então presidente Getúlio Vargas.
De fato, antes das primeiras décadas do século XX, não haviam denominações
diferentes para a capoeira, que era “uma só”. Foi a partir das décadas de 1920, na Bahia, e mais
especificamente na cidade de Salvador que a primeira divisão foi apresentada (Gonçalves, 2012,
p.46).
Algumas hipóteses foram levantadas por diferentes pesquisadores para justificar as
possíveis causas para a divisão entre regional e angola. Especula-se que a capoeira regional
teria se aproximado de outras artes marciais e incorporado para si golpes dessas outras artes,
como forma de chamar mais a atenção dos praticantes de outras lutas e sua maior associação a
um esporte, como detalha Abib (2004, p.112).
2
Vicente Ferreira Pastinha, soteropolitano nascido em 5 de abril de 1889 e falecido em 13 de novembro de 1989,
principal referencial da capoeira angola. Nas páginas seguintes traremos mais informações sobre ele.
13
[...] O surgimento da capoeira regional foi e ainda é considerado por muitos, como um
processo de “descaracterização” da “autêntica” capoeira. Entendemos ser essa, uma
visão equivocada e um tanto reducionista desse processo, pois, na figura do mestre
Bimba, revela-se um grande estrategista, que soube articular um importante
movimento que visava a um maior reconhecimento público e valorização dessa
manifestação afro-brasileira, e a sua consequente descriminalização, já que até então,
a capoeira ainda constava no Código Penal Brasileiro. (ABIB, 2004, p.111)
As hipóteses para tal divisão são das mais diversas, porém, não é foco da presente
pesquisa adentrar nessa discussão, pois essa se aterá à FICA-BH, mais especificamente às
relações entre “gesto e música” que ali ocorrem.
Uma vez definido a manifestação cultural e o grupo que a pratica, já citado, delimitamos
nosso objeto de pesquisa e, iremos centralizar nossas pesquisas na relação entre gesto e música
ocorridos nas suas práticas, constituindo esse o nosso objetivo principal. Para tanto, como gesto
é um termo amplo, pois pode ser aplicado tanto para o sentido musical (gesto musical)
entendido por qualquer movimentação sonora que apresente energia ao longo de um
determinado período, quanto para os movimentos corporais presentes na manifestação, entre
outros, nosso primeiro capítulo aborda essa questão para nos dar subsídios para desenvolver o
presente trabalho.
Para a realização da presente pesquisa, nos utilizamos metodologicamente tanto de uma
pesquisa bibliográfica quanto de campo. Para a pesquisa bibliográfica consultamos artigos,
teses, dissertações e livros que abordaram o tema pesquisado ou assuntos afins que contribuíram
para a presente pesquisa. Esse embasamento bibliográfico está presente nos segundo e terceiro
capítulos, os quais, respectivamente, trazem informações sobre a manifestação em questão e
sobre sua música. Apesar de informações bibliográficas serem a principal fonte de tais
capítulos, informações advindas da pesquisa de campo também os ilustram. De fato, as
informações a partir dessas encontram-se mais significativamente presentes no último capítulo,
onde desenvolvemos a temática já mencionada.
14
Como é notório, no decorrer do tempo, conceitos vão sendo emprestados para áreas
distintas daquela onde ocorreu sua gênese. Consequentemente, adaptações são atreladas a esses
em função das adequações adquiridas ao longo do tempo, ocasionando, em grande medida, em
mais de uma definição a partir da mesma representação. Destarte, antes de adentrarmos na
manifestação objeto de estudo dessa dissertação, necessário se faz, para melhor compreensão,
abordarmos conceitualmente outro elemento relevante em nossa proposta – o gesto, vocábulo
que, em concordância com o que foi dito, demostra ter adquirido algumas definições na
trajetória de seus usos.
No dicionário virtual Michaelis por exemplo, constam as seguintes definições:
[...] 1. Movimento do corpo, principalmente das mãos, dos braços, da cabeça e dos
olhos, para exprimir ideias ou sentimentos, na declamação e conversação.
2. Forma de se expressar.
3. V. gesticulação
No Dicionário informal, que, como o próprio nome diz não é elaborado por profissionais
como linguistas e lexicógrafos, encontramos uma definição que situa o gesto em uma relação
causal, mais especificamente, como consequência de algo. De acordo com o mesmo, gesto pode
ser definido como: “movimento do corpo para exprimir ideias ou sentimentos. Aceno, mímica,
sinal”.
Porém, no presente capítulo, adentraremos mais amplamente na questão do gesto, indo
além de sua associação aos movimentos corporais. A percussionista, professora e pesquisadora
Emília Maria Chamone de Freitas (2008, p.40), em sua dissertação: O gesto musical nos
métodos de percussão afro-brasileira, apresenta-nos a relevância da contextualização do termo,
trazendo-o à interpretação social ao tratar sobre a etimologia do termo em questão:
palavra gesto o sentido de sensação ou sentimento, pois ela remetia a uma ação
voluntária, ao ato de “fazer ou executar”. (FREITAS, 2008, P.40)
Laurent Blum nos dá uma amostra do que foi dito anteriormente ao utilizar o termo de
forma distinta de sua origem transpondo-o para o universo musical e também nos remete a
algumas questões apresentadas por Freitas. Em seu artigo Gesto instrumental e transmissão
musical, o autor nos apresenta duas possíveis definições sobre o termo. Na primeira (2001, p.2)
constatamos um caráter histórico que pode nos levar à reflexão de quão abrangente o vocábulo
pode ser3:
Já na segunda possível definição, Blum (2001, p.2) nos traz o termo mais utilizado no
senso comum, que o associa ao sentido corporal, mas salientamos, também, que em sua
abordagem, é mencionado seu caráter consequente já apresentado na definição do dicionário
informal:
3
Todas as traduções ao longo da dissertação são de responsabilidade do autor.
4
En pénétrant le mot “geste” par son étymologie, on s’aperçoit de l’existence de deux significations distinctes. L
a première signification, aujourd’hui quelque peu oubliée, se réfère à la geste, la chanson de geste qui conte au
Moyen Age les exploits d’un héros. Elle met en avant les événements marquants de l’histoire d’un individu en te
ntant de montrer que l’ensemble de ces gestes (l’origine de la geste vient du pluriel gesta) forment une épopée. L
e destin et les particularités du caractère du héros permettent l’avènement d’une légende, la création d’une moral
e profane pour les générations à venir. Ce destin repose sur une vision éminemment diachronique de la vie du hé
ros: c’est par la multitude des faits intervenus à un moment donné que le narrateur fait naître une geste.
5
La deuxième signification, plus proche de nous, evoque le mouvement d’um corps humain. Cependant, tous les
mouvements humains ne sont pas des gestes. La particularité du geste s’appuie sur la force d’intention de celui qui
anime son corps. La marche qui permet à um être humain de se déplacer, de transporter son corps d’um endroit à
um autre, appartient plus généralement au domaine du mouvement. Par contre, le salut d’um être humain vers um
17
Sant’Anna (2020, p.122) após várias acepções sobre gesto, traz reflexões bem
abrangentes sobre o termo:
Sant’Anna (2020, p.125) ainda nos remete a outro elemento importante para a discussão:
a conduta. Sobre essa, o autor define: “se constitui como a maneira de alguém comportar-se, de
proceder e manifestar o seu comportamento. O Ato e o Gesto são elementos importantes para
o campo da análise da conduta”.
No artigo O gesto corporal na performance musical, Madeira & Scarduelli (2014, p.2,
apud HATTEN, 2001b, p.3) acrescentam que a intenção não é necessária para que o gesto seja
percebido como um veículo de mensagens e se efetive também como recurso de se compreender
quem o executa, visto que, para os autores, este ato é definido como “movimento interpretável
como signo, seja intencional ou não, e como tal ele comunica informação sobre o gesticulador
(ou como personagem, ou pessoa que o gesticulador está personificando ou incorporando)”. A
seguir Madeira e Scarduelli (2014, p.3, apud HATTEN, 2001b, p.2) acrescentam que “o gesto
pode ser considerado movimento que é marcado pela sua significância, seja por ou para o agente
ou o intérprete”.
Explorando os horizontes em busca por uma definição de gesto que se adeque ao nosso
escopo, deparamo-nos com Apollinaire Anakesa Kululuka. Em seu artigo: “Do gesto musical à
impressão sonora” traz questões que dizem respeito às relações do gesto com a fisiologia
humana. Sobre a associação, Kululuka (2001, p.5) nos apresenta:
ou plusieurs autre (s) est bien um geste: il suffit d’um signe de la main, même à grande distance de celui qui le
perçoit, pour reconnître immédiatement la volonté de communicatíon de celui qui le produit.
18
Como se pode verificar a partir dos autores citados, as definições sobre gesto variam
também de acordo com o olhar de quem o define e o meio no qual o mesmo está inserido e
assim também ocorre na música. Em seu artigo O Gesto Melódico: Corpo e Melodia,
Contrapontos Possíveis, Sant’Anna (2020, apud Brecht, 2005, p.237) ao se referir às ações
artísticas e possivelmente cotidianas, afirma que “por ‘gesto’ não se deve entender o simples
gesticular; não se trata de movimentos de mão para sublinhar ou começar quaisquer passagens
da peça, e sim de atitudes globais”. Ou seja, como já citado anteriormente, o gesto vai muito
além de sua concepção generalista do senso comum, de que está quase sempre associado
somente aos movimentos corporais. Veremos a seguir que se trata de algo plural, amplo e mais
complexo do que se imagina.
Como observa Freitas, também destacando a questão contextual (2008, p.40):
[...] esses modos de agir, que moldam o corpo e a gestualidade humana em todos os
aspectos da vida, como correr, comer e dançar, são aprendidos através da educação e
da imitação. Habitus como dormir deitado, nadar crawl, sorrir ao sentir alegria, noções
tidas muitas vezes como universais e naturais, são construções históricas e sociais.
6 [...] le rythme des éléments « physiologiques-moteurs » pousse, par vagues, les organes récepteurs à une forte
sensibilité et donne diverses sensations notamment d’intensité, d’accent, de durée, de hauteur et de timbre à
différents gestes actionnables, les macro-gestes. Par ce biais, l’organisme humain, condensateur vivant d’énergies,
fait se balancer successivement et brièvement le corps. Grâce à une dynamique expressive, ces énergies s’amorcent
par jeu alternatif d’explosions-évanouissements. Celles-ci se développent dans le temps sous différents rythmes.
En conséquence, pour marquer par exemple la différence entre frotter et caresser, frôler et cogner, gratter et
égratigner, l’homme use de gestes spécifiques ou d’une gesticulation significative et fonctionnelle adaptés aussi
bien à un acte qu’à une situation.
19
Jean During (2001, p.19) apresenta uma reflexão mais ampla na tentativa de se buscar
definições sobre gesto musical:
[...] o gesto vai além da forma que a destaca como um ornamento, ou ainda, a própria
forma sonora aparece como um gesto, algo que tem elegância própria. Por gesto não
queremos dizer apenas o movimento da mão, mas também os dedilhados, os truques,
todas as artimanhas (os atalhos do pensamento), na configuração de um instrumento
que permite quebrar a uniformidade ou a continuidade, abrir perspectivas, criar
articulações, conectar notas de forma original, etc.9
7
Ver Mabru, 2001; Freitas, 2008; Sant’Anna, 2020; Kululuka, 2001; Brum, 2001.
8
La question du geste, et plus globalement celle du corps dans la musique commence depuis quelques années à
susciter des travaux de recherche, mais il faut bien avouer qu’elle est encore aujourd’hui un terrain sinon neuf, du
moins peu exploré. Pourtant, dès 1936 André Schaeffner, dans son ouvrage désormais classique, intitulé Origine
des instruments de musique. Introduction ethnologique à l’histoire de la musique instrumentale avait largement
ouvert la voie, en postulant pour une origine corporelle de la musique, contre la thèse de l’origine linguistique. Ce
faisant, il montrait l’importance du corps dans la pratique musicale et avançait des notions d’une grande pertinence,
telle que celle de lisibilité corporelle de la musique, dont la portée n’a pas été assez mesurée, me semble-t-il.
9 [...] le geste dépasse la forme sonore qui le met en lumière comme un ornement, ou encore, la forme sonore elle-
même apparaît comme un geste, comme une tournure, un tour de passe-passe qui possède sa propre élégance. Par
geste, on n’entend pas seulement ici le mouvement de la main, mais aussi bien les doigtés, les trucs, toutes les
astuces (les raccourcis de la pensée), dans la configuration d’un instrument qui permettent de briser
20
Se During amplia o conceito gesto musical além do músico, Jorge Sad o extrapola ainda
mais (2001, p.4-5):
[...] o gesto musical não pode ser reduzido ao movimento corporal dos músicos ou do
público: certas figuras musicais resultantes da escrita são chamadas gestos – por
exemplo, François Nicolas (1995) define certas estruturas rítmicas utilizadas em
algumas de suas obras desta maneira -, e também, em determinadas condições, o
próprio som se constitui um gesto.
Laurent Blum (2001, p.8-9) corrobora com a afirmação anterior ao dizer que “o som é
o próprio gesto emitido e percebido, o tímpano do ouvinte vindo ao encontro ao oco da
membrana, da palheta, da corda do instrumento musical”. 10
O gesto musical, ao ser uma forma de controle de múltiplos parâmetros sonoros, tanto
a partir da escrita quanto a partir da performance instrumental, se inscreve na matéria
sonora de maneiras não evidentes na partitura: um simples crescendo em uma nota
sustentada em um clarinete resulta em uma transformação espectral complexa e sutil,
um simples movimento melódico em direção ao agudo da flauta é, ao mesmo tempo,
uma maneira simples de filtrar componentes harmônicos superiores. Talvez esta
associação de variações, às quais alguns denominam timbre, seja o fenômeno cuja
causa é o gesto.
Sobre gesto musical, Apollinaire Anakesa Kululuka em seu artigo “Do gesto à
impressão sonora” (2001, p.2) nos apresenta uma visão bem abrangente onde aponta uma
estreita interação entre os seres quando o gesto musical se efetiva:
l’uniformité ou la continuité, d’ouvrir des perspectives, de créer des articulations, de connecter des notes de
manière originale, etc.
10
Le son est lui-même le geste émis et perçu, le tympan de l’auditeur venant à la rencontre – en creux – de la
membrane,de l’anche, de la corde de l’instrument de musique.
11
Le geste musical est un des phénomènes les plus complexes de l’expression humaine et animale, qui relève de
réactions synchrones diverses et variées. En effet, mille ob servations et expériences me font croire que, dans
l’univers, d’infinis processus d’injonction et de réaction réciproques jouent entre différentes choses existantes. A
travers cette opération, les êtres vivants – en particulier l’homme et l’animal – reçoivent, enregistrent et, dans la
mesure du possible, rejouent le réel ambiant. Ainsi se font-ils miroirs d’interactions d’une réalité donnée ou
simplement leur font-ils écho.
21
No discurso entre músicos é comum a utilização da palavra gesto (ou gesto musical)
para se referir a motivos, frases e partes de uma composição, ou mesmo a peças
inteiras. Essa apropriação metafórica vai de encontro com o alto grau de correlação
entre a música e movimento expressivo, revelando o quanto o movimento e o corpo
estão conectados com o fazer musical.
[...] O que é o “gesto musical”? Uma primeira definição com a qual todos poderiam
concordar seria “movimentos participando diretamente na produção do som”. Mas
esta abordagem do gesto musical, bastante restritiva, não consegue cobrir as
realidades que encontramos nas sociedades andinas. Assim, a proposta de Van Zile
(1998), “movimentos no contexto do evento musical” abre perspectivas de observação
mais apropriadas.12
Segundo Rosália Martinez o gesto é algo tão marcante que é possível distinguir um
músico andino tocando uma determinada flauta com outro músico não andino apenas pela
maneira de execução musical do mesmo instrumento. Martinez (2001, p.1) acrescenta:
[...] Os gestos musicais de uma sociedade podem ser tão específicos quanto seus
instrumentos musicais. Da mesma forma que os objetos produtores de sons,
determinados gestos poderiam nos falar das concepções musicais de um grupo
humano, ou de suas representações do universo social e religioso, do corpo, do sopro,
do espaço...13
12
Qu’est ce que le “geste musical”? Une première définition sur laquelle tout le monde pourrait s’accorder serait
« mouvements participant directement à la production du son ». Mais cette approche du geste musical, trop
restrictive, ne peut recouvrir les réalités que l’on retrouve dans les sociétés andines. Ainsi, la proposition de Van
Zile (1998), « movements in the context of the music event » ouvre des perspectives d’observation plus appropriées.
13
Les gestes musicaux d’une société peuvent lui être aussi spécifiques que ses instruments de musique. Au même
titre que les objets producteurs de sons, certains gestes pourraientnous parler des conceptions musicales d’un groupe
humain, ou de ses représentations de l’univers social et religieux, du corps, du souffle, de l’espace…
22
natureza e função: assim ela está impregnada com o ambiente social feito de marcos
familiares”.14
A questão do gesto e suas relações com o meio social pode ser tão amplamente
explorada que, ao tratar sobre suas impressões obtidas em um ritual musical do oriente médio
onde foi pontuada a execução do tanburag, uma espécie de alaúde com um som poderoso e
penetrante, braço longo, e um espectro acústico amplo, During (2001, p.6), detalha a
importância desse no desempenho musical do executante, porém, levanta a questão da
relevância da vivência do intérprete fora da performance musical, no caso a sua profissão.
Segundo o autor:
[...] O tanburag é um dos instrumentos mais simples, embora suas fórmulas rítmicas
são sutilmente irregulares. Para aproveitá-lo ao máximo, deve-se golpear as cordas
com determinação e força, poupando esforços, porque não é fácil tocar por várias
horas seguidas, com apenas algumas pausas curtas (uma digitação incorreta pode
literalmente machucar os dedos até sangrarem).15
Prossegue ele:
O toque no tanburag pode ter a ver com a profissão exercida pelas tribos de onde se
originam os músicos: ferragens. Alguns músicos também são ferreiros e, quando eles
tocam, zomba-se sobre a maneira com que eles dedilham as cordas do alaúde, como
se estivessem martelando uma bigorna. Neste caso, o ritmo e o gesto são comparáveis.
Além disso, os melhores músicos não descansam os antebraços na tala do alaúde,
como é costume neste tipo de instrumento, para que fique com o peso de todo o braço
ao atingirem as cordas.16
Como se pôde concluir, as reflexões sobre gesto musical são amplas e, talvez também
em decorrência disso, complexas e podem ser abordadas por muitas óticas, como observa Sad
(2011, p.5):
[...] uma das confusões mais importantes que criam obstáculos ao estudo do gesto
musical é a não distinção entre as duas noções de gesto enunciadas: o gesto musical
1414
[...] le percussionniste africain inscrit ses gestes dans son cadre quotidien, quelles que soient leur nature et
leur fonction: ainsi s’imprègne-t-il de l’environnement social constitué de repères familiers.
15
Le tanburag est un instrument des plus simple, encore que ses formules rythmiques soient subtilement
irrégulières. Pour en tirer le meilleur parti, il faut frapper les cordes avec détermination et force, tout en
ménageant son effort, car il n’est pas facile de jouer plusieurs heures d’affilée, avec juste quelques brèves pauses
(une mauvaise frappe peut littéralement blesser les doigts jusqu’au sang).
16
Le jeu du tanburag a peut-être un rapport avec le métier qu’exercent les tribus d’où sont originaires les
musiciens : la ferronnerie. Certains musiciens sont aussi forgerons et, quand ils jouent, on plaisante volontiers
sur leur façon de gratter les cordes du luth comme s’ils donnaient du marteau sur une enclume. En l’occurrence,
le rythme et le geste sont comparables. De plus, les meilleurs musiciens ne reposent pas l’avant-bras sur
l’éclisse du luth, comme c’est l’usage sur ce genre d’instrument, si bien que c’est avec le poids du bras tout
entier qu’ils frappent les cordes.
23
Fato é que a relevância do gesto tem sido notada em várias áreas e, consequentemente,
na busca de se compreendê-lo melhor muitas pesquisas têm sido feitas. Por exemplo, no artigo
Hand Made. Por uma antropologia do gesto musical, Jean During (2001, p.7) menciona que a
pianista estrasburguense Marie Jaëlle, para tentar visualizar o “tocar” realiza o seguinte
experimento:
[...] Discípula mimada de Liszt, ela era muito atenta aos belos sons, cuja percepção
era, segunda ela, a base de qualquer abordagem musical. Para educar os alunos ela os
fez colocar os dedos em uma almofada com tinta e, depois de tocarem ela examinou
as marcas deixadas nas teclas. Assim surgiu a relação entre a nitidez do traço e a
beleza do som. Com a elegância de uma demonstração matemática, o bom gesto (o
grifo é nosso) mede-se pela economia de esforços e aprecia-se pela graça do
movimento e a eficácia do resultado.17
Outra análise que chama atenção diz respeito à relação gesto/som/instrumentista, pois
assim como o contexto social influencia no gesto, não podemos ignorar a questão individual.
Consequentemente a respeito desse trinômio, Apollinaire Anakesa Kululuka (2001, p.4)
discorre:
[...] a forma e a dinâmica do material sonoro produzido estarão ligadas tanto ao gesto
gerador quanto ao instrumento submetido a ele, a fim de ecoar o pensamento do
executante. Em cada gesto, este mostrará o prazer que tem em criar sons que lhe
pareçam musicais. Dependendo do instrumento utilizado e do material sonoro
desejado, ele adaptará os gestos para que a dinâmica do som reflita o pensamento
musical com a maior precisão possível. Por esses gestos, ele também medirá a duração
e o ritmo dos eventos sonoros. Graças a eles, não só imprimirá os impulsos dinâmicos,
a tensão-relaxamento assim como pausas ou silêncios, mas também dará origem ao
tempo de espera e da resolução. Ele também deve sentir a estreita relação entre o
tempo musical, que ele pode viver interiormente, e a manifestação disso através dos
próprios gestos vocais ou instrumentais, consistindo a obra musical em ajustar o mais
precisamente possível o resultado sonoro ao seu pensamento como músico, que supõe
obviamente que este último tem, nele, esse desejo musical pré-existente ao gesto.18
17
Disciple choyèe de Liszt, ele étrait três attentive au beau son, dont la perception ètait selon elee, la base de toute
démarche musicale. As doctrine se résumait à ces mots que Liszt lui rappelait toujours: “à bon entendeur, salut”.
Afin de sensibiliser ses èléves ele leur faisait poser les doigts sur un tampon encreur, puis, après qu’ils aient joué
um motif, ele examinait les traces laissés sur les touches. Ainsi apparaissait le repport entre la netteté de la trace
et la beauté du son. Comme l’élêgance d’une démonstration mathématique, le bom geste se mesure à l’économie
de l’effort et s’apprécie à la grâce du mouvement et à l’efficacité du résultat.
18
[...] la forme et la dynamique de la matière sonore produite seront liées à la fois au geste générateur et à
l’instrument subissant celui-ci, afin de répercuter la pensée de l’exécutant. Dans chaque geste, ce dernier manifestera
le plaisir qu’il a à faire naître des sonorités qui lui semblentmusicales. Suivant l’instrument utilisé et le matériau sonore
désiré, il adaptera les gestes, afin que la dynamique du son traduise le plus justement possible la pensée musicale. Par
ces gestes, il mesurera également tant la durée que le rythme des événements sonores. Grâce à eux, non seulement
il imprimera les pulsions dynamiques, les tensions-détentesainsi que les ruptures ou les silences, mais il fera aussi
naître le temps de l’attente et celui de la résolution. Aussi doit-il sentir la relation étroite entre le temps musical, qu’il
24
Levando as palavras acima para um universo mais circunscrito, Blum (2001, p.5) afirma
sobre os instrumentos de cordas:
peut vivre intérieurement, et la manifestation de celui-ci par le truchement de ses propres gestes vocaux ou
instrumentaux, le travail musical consistant alors à ajuster le plus précisément possible le résultat sonore à sa
pensée de musicien. Ce qui suppose évidemment que ce dernier a, en lui, ce désir musical2 préexistant au geste.
19
L’enlacement de l’instrument s’accompagne d’une pédagogie du centre de gravité: étreindre et faire vivre un
morceau de bois tendu de quelques cordes implique une forte connaissance de l’équilibre de celui-ci et une
étude des points de contact entre eux. Suspendu telle la harpe éolienne mais enlacé à la manière d’un être cher,
l’instrument à cordes dévoile sa richesse sonore par effleurement. Le geste est ici projection. L’esquisse est la
25
During (2001, p.3) além de, como consta nas citações anteriores, enfatiza a relevância
do gesto na música através do uso corporal, aglutina o gesto da audiência ao contexto das
realizações musicais:
[...] É ainda pelo gesto que o corpo se envolve na música, para que ela tome forma e
desempenho. E muito naturalmente é também pelo gesto que a música exerce seu
impacto e exige respostas físicas, mesmo que apenas os aplausos permitidos no final.20
Madeira e Scarduelli (2014, p.18) descrevem uma curiosa pesquisa de Chia-Jung Tsay
(2014) onde se apresenta a análise de uma performance com imagens e sons isoladamente.
Através dos resultados podemos inferir a importância do gesto musical na performance e como
este o influencia. Conforme essa pesquisa:
A partir das citações presentes nesse tópico, podemos constatar o quanto a expressão
“gesto musical” é abrangente e pode compreender tanto uma série de ações musicais passando
por postura corporal, formas específicas de se segurar o instrumento, a empostação para o canto,
a expressividade corporal, o controle da dinâmica na execução de instrumentos, a sensibilidade
tátil de um instrumentista, quanto pelas reações do público frente às performances musicais.
Se falar do gesto musical sobre vários aspectos é complexo, quando adentramos no
universo sonoro essa mesma característica permanece. Por exemplo, ao falar sobre gesto
melódico, Sant’Anna (2020, p.132) levanta alguns pontos no que diz respeito ao potencial da
melodia para provocar emoções no ouvinte associando tal fato às intenções do compositor:
[...] as relações estabelecidas entre os seus elementos básicos para dar origem à frase
resultam em uma estrutura que carrega as intenções de seu compositor. Tais intenções
escondem-se por detrás das formas melódicas, das suas linhas e nuances sintáticas. E
caractéristique du mouvement de l’instrumentiste à cordes. Toucher délicatement et faire de son corps à l’instar
du corps de l’instrument le réceptacle du son est le nœud gestuel de cette famille.
20
C’est pourtant par le geste que le corps s’implique dans la musique, si bien qu’elle prend corps et devient
performance. Et tout naturellement c’est aussi par le geste que la musique exerce son impact et appelle des
réponses physiques, ne serait-ce que les applaudissements permis à la fin.
26
essas intenções, por sua vez, imbuem as linhas da melodia de sentido, provocando
sensações de tristeza, alegria, raiva, poder, fraqueza, medo, coragem etc. Elas
aparecem como resultado das combinatórias dos elementos mínimos, somadas ao
caráter dinâmico empregado em seus contornos. Está aí o gesto melódico, delineado
nas ondas da melodia, impregnado nos acontecimentos das suas linhas; seus graves e
agudos, fortes e fracos, fluxos em continuidades e descontinuidades, alargamento e
encurtamento dos tempos de duração. Todo o processo se desenvolve por meio do ser
humano, que com seu corpo, imprime na sua obra todos os seus conteúdos internos.
Sad (2011, p.2), acrescenta à discussão a questão do gesto acoplado ao som, à tradição
do ensino:
21
Música acusmática é uma espécie de música eletroacústica especialmente composta para apresentação através
de alto falantes, em vez de ser realizada performaticamente. (FRIESEN; BAPTAGLIN, 2022)
22
Dans le tanbur sacré des Kurdes, et notamment dans l’école transcendante d’Ostâd Elâhi, la libération de la
main droite, celle qui produit les sons, passe par sa mort symbolique. Le premier geste qu’on apprend est celui
de faire tomber la main droite sur les cordes« comme un morceau de viande morte ». L’image de la viande se
comprend comme désossée, ce qui n’est pas évident à réaliser: relâcher toute tension, laisser la main trouver sa
27
Assim como During, Luc Charles Dominique, sobre outra ótica, menciona a metáfora
ao comentar sobre gesto musical associando-o a termos e expressões linguísticas. O autor, em
seu artigo “Jogar", "sonhar", "tocar". Uma taxonomia francesa histórica e dualista do gesto
musical (2001, p.3) escreve:
[...] assim como há gestos bons, humildes, contidos, gestos graciosos e maus,
violentos, excessivos, desordenados, há, antes mesmo de qualquer referência ao seu
conteúdo, palavras boas e más na base essencial de seu modo de transmissão.
Geralmente, as muitas metáforas musicais de volume sonoro são por vezes
construídas sobre a noção de gesto, como “levantar a voz”, é dito em italiano (língua
internacional de referência para o vocabulário musical) “alzando la voce”, frase que
vem do gesto “levantar” (“alzando la mano”: levantando a mão), assim como "abaixe
a voz" é dito "abbassando" no sentido de abaixar a mão (“abbassando la mano”)
(Rougnon, 1933). 23
Uma questão se faz presente: técnica e gesto estão acoplados ou são coisas distintas?
Dominique (2001, p.11) apresenta a sua visão sobre a relação técnica/som:
O gesto musical estabelece-se em uma intricada relação de causas e efeitos, não sendo
forme naturelle, laisser les doigts se placer, abdiquer toute volonté, puis, après la chute, remonter en laissant le
pouce trouver tout seul sa place et sa fonction, qui consiste à frapper les cordes dans l’autre sens. Après les
formules courantes telles qu’on les trouve dans le jeu du dotâr en général, si l’élève a la main assez souple, il
commence à s’exercer à faire le shor: pouce, index, majeur, annulaire, auriculaire se repliant tour à tour à partir
de la main grande ouverte jusque vers la paume, comme un éventail qui se ferme. Pas question de commencer
avec un instrument, on s’exerce en posant la main sur la cuisse, en grattant un bord de table, puis en touchant les
cordes, mais étouffées. Après cela, on peut s’essayer sur l’instrument: ouvrir et fermer l’éventail des doigts en
effleurant les cordes à grande vitesse. Les débutants sont fascinés par cet apprentissage; ils oublient tout le reste
pour parvenir à faire un shor correct, comme si la philosophie ou la sagesse du tanbur tenait à ce geste. Ou peut-
être tout simplement parce que le déploiement des doigts, s’il est bien fait, a la grâce d’un paon qui fait la roue.
23
Tout comme il existe de bons gestes, humbles, retenus, gracieux, et de mauvais gestes, violents, excessifs,
désordonnés, il y a, avant même toute référence à leur contenu, des bonnes et des mauvaises paroles sur la base
essentielle de leur mode d’émission. D’une façon plus générale, les très nombreuses métaphores musicales du
volume sonore sont parfois bâties sur la notion du geste, comme le fait d’« élever la voix » se dit en italien (langue
internationale de référence du vocabulaire musical) « alzando la voce », locution qui provient du geste « lever » («
alzando la mano »: en levant la main), tout comme « abaisser la voix » se dit « abbassando » au sens d’abaisser la main
(« abbassando la mano ») (Rougnon 1933).
24
Les termes toucher et sonner renvoient tous deux à des actes corporels et gestuels d’une intensité singulièrement
différente. Toucher, c’est effleurer. Sonner, c’est s’agripper, se pendre, faire poids de tout son corps ou battre de
toutes ses forces. Ramené au vocabulaire musical, le premier est le verbe du bas sonore, le second, celui du haut.
28
Depois do exposto, acreditamos que a separação de técnica e gesto não nos parece
interessante para compreendermos uma performance, pois, em nossa ótica, ambos estariam
imbricados em um todo. Em concordância com tal afirmativa, em alguns momentos Jean
During deixa subentendido que gesto e técnica se confundem e se misturam. O autor (2001,
p.12) ao comentar sobre os exemplos apresentados ao longo do texto diz:
Madeira e Scarduelli (2013, p.6) corroboram com nossa perspectiva, pois, segundo eles
“a relação entre gesto corporal e técnica instrumental começa então a surgir, sendo ambos
fundados sobre a mesma base – o movimento”.
Como podemos ver, as explanações sobre a expressão gesto musical são bem amplas e
podem se desdobrar sobre diversas óticas gerando interpretações diversas. Uma vez que
apresentaremos neste trabalho uma perspectiva etnomusicológica, não podemos nos furtar a
abrangência da expressão, visto que o contexto tem sido uma das premissas dos trabalhos nessa
área. Para o presente trabalho, portanto, iremos considerar gesto musical todas as expressões
que resultam como causa ou efeito do sonoro presente na manifestação em questão – a
capoeira angola. Obviamente que tal perspectiva ampliará os exemplos presentes ali, no
entanto, não será possível esgotá-los em nossa exposição. Sendo assim, procuraremos ao longo
do trabalho exemplificar tal perspectiva para tornar mais cristalina a questão do gesto musical
no universo proposto.
25
Ces exemples montrent comment les artistes, par la richesse du toucher, compensent largement la
simplicité, voire la banalité de la trame rythmique binaire. Il y a quelques raisons de penser que ces finesses ne
sont pas simplement l’effet de l’habilité des joueurs de luth ou de cymbalum au service d’une sensibilité esthétique,
mais qu’elles reposent sur un autre type de geste par nature plus riche: celui des doigts de la main droite.
29
Os primeiros capítulos dessa dissertação, como consta na introdução, tem como escopo
alicerçar o último e principal tema. Sendo assim, após explanarmos sobre “gesto”, iremos,
agora, trazer informações que, acreditamos, serão relevantes para a compreensão da
manifestação com a qual trabalharemos para, então, unirmos tais conteúdos e cumprimos com
nosso objetivo apresentando o gesto na capoeira de angola. Ademais, como vimos no capítulo
anterior, uma vez que consideramos para o presente trabalho gesto musical como expressões
que resultam como causa ou efeito do sonoro presente na manifestação em questão,
aproveitaremos a oportunidade para ilustrar o que consideramos exemplos de gestos que, de
alguma forma achamos interessante, não necessariamente musicais, ao longo dos capítulos.
No que tange à influência africana em nossa língua, por exemplo, Mendonça (2012, p.7)
discorre: “em 1789, no primeiro dicionário monolíngue do idioma português, Antônio Morais
e Silva já identificava várias palavras de origem africana, como batucar, cafuné, malungo e
quiabo, de uso corrente entre os brasileiros”.
Essa contribuição africana ao “falar brasileiro” foi além de vocábulos isolados,
influenciando na morfologia, na sintaxe, na semântica, no ritmo das frases, etc, como bem nos
mostra Alberto da Costa e Silva na introdução do trabalho de Renato Mendonça sobre o tema,
onde menciona a contribuição lexical ao idioma brasileiro e suas configurações (2012, p.8):
Falares africanos na Bahia – aos quais, para se formar ideia do tamanho dos aportes
da África ao português do Brasil, se teria de acrescentar uma boa quantidade de
palavras usadas somente em outros estados -, o vocabulário que ocupava 1/3 do livro
de Renato Mendonça já servia de argumento contra os que subestimavam a
contribuição dos povos negros às maneiras brasileiras de falar e escrever. Essa
influência africana- advertiu, também pioneiramente, Renato Mendonça – não se
reduzia ao enriquecimento lexical: ela se estendia à fonética, à morfologia, à sintaxe,
à semântica, ao ritmo das frases e à música da língua.
Era de se esperar tal influência, uma vez que as negras africanas começaram a trabalhar
nas cozinhas dos senhores de engenho e novas técnicas foram introduzidas no preparo dos
alimentos, adaptando seus hábitos culinários aos ingredientes do Brasil. Os autores já citados,
Souza e Guasti (2018, p.12), ao tratarem desse tema, nos trazem mais informações sobre este
quesito:
Assim, foi incorporado aos hábitos alimentares dos brasileiros o angu, o cuscuz, a
pamonha e a feijoada26, nascida nas senzalas e feita a partir das sobras das carnes das
refeições que alimentavam os senhores; o uso do azeite de dendê, leite de côco,
temperos e pimentas; e de panelas de barro e colheres de pau. Os traficantes de
escravos também trouxeram para o Brasil ingredientes africanos como é o caso da
banana, ícone de brasilidade mundo afora e da palmeira de onde se extrai o azeite de
dendê.
26
Sobre a menção à feijoada, há uma controvérsia apresentada pelo programa “O guia politicamente incorreto” do
canal History Chanel em que historiadores contestam a afirmação de que a feijoada foi criada no Brasil pelos
escravos das senzalas que preparavam o feijão junto a restos de comida da “Casa Grande”. De acordo com esses
historiadores, cozidos de feijão com carnes e linguiças eram comuns em Portugal bem antes do período da
colonização do Brasil, assim como em outros países do mundo em que se preparavam cozidos de feijão, como o
cassoulet, um prato muito comum na França, porém utilizando o feijão branco.
31
Outra influência marcante na cultura brasileira foi a das religiões africanas, gerando aqui
no Brasil os cultos denominados afro-brasileiros. Um ponto importante a ser destacado é o
sincretismo religioso, que se trata da fusão de elementos das religiões africanas aos das religiões
oficiais no Brasil, como o catolicismo, por exemplo. Pelo fato de terem seus cultos associados
à “feitiçaria” e não terem suas religiões reconhecidas, os africanos e seus descendentes tiveram
que aderir a imagens de santos católicos como forma de burlar suas práticas, além de realizarem
os mesmos quase sempre de forma clandestina. Santos (2009, p.222 apud SANTOS,2016)
esclarece sobre essa temática,
Ainda sobre o tema do sincretismo religioso, Ramos (2010, p.222 apud SANTOS, 2016)
esclarece,
Obrigados pelos senhores e pela igreja, a única opção para os africanos era aceitar a
fé cristã. No entanto, os mesmos eram impedidos de frequentar os espaços religiosos
dos brancos. Então criaram irmandades com nomes católicos para se adequarem às
exigências sociais; mas, por detrás das imagens católicas, utilizavam da devoção aos
santos para cultuarem seus orixás com ritos e cultos africanos. Dessa forma surgiu o
nascimento de religiões afro-brasileiras.
Sobre tal ótica, novamente, podemos destacar uma das concepções de gesto também
apresentada no primeiro capítulo (ver página 16), agora sobre a perspectiva de Freitas (2020,
p.40) quando nos aponta a questão contextual do gesto, pois, tendo um referencial distinto de
seu original – imagens e nomenclaturas – o significado transportado pelos gestos perante esse,
supomos, era similar ao de seus antepassados.
Acima, procuramos exemplificar o que já é notório: que a África influenciou
consideravelmente a cultura brasileira e, como não poderia ser diferente, tal influência
desembocou na música, na dança e em outras atividades artístico-culturais, como é o caso da
capoeira – um dos focos da presente pesquisa.
abordar temas considerados insignificantes pelos mesmos. Com a capoeira angola não foi
diferente, e isso pode ser uma das explicações das divergências etimológicas referentes à
terminologia que dizem respeito à manifestação cultural em questão.
Sobre essa falta de interesse no que diz respeito à cultura brasileira o professor Ruben
George Oliven (2001, p.3) afirma,
Outra possível razão pode ser explicada pelo fato de que a transmissão dos ensinamentos
da capoeira, historicamente tem se dado por meio da tradição oral, de mestre a mestre e seus
respectivos alunos. Gonçalves (2012, p. 29) reforça essa questão,
Mais uma hipótese, apresentada por Lott (2018, p.451) foi a queima de arquivos
referentes ao período da escravidão no Brasil, que contribuiu também para a falta de registros
mais precisos sobre o tema:
[...] Talvez, se não houvesse ocorrido a queima dos arquivos da escravidão pelo então
ministro da Fazenda Ruy Barbosa em 14 de dezembro de 1890, as informações sobre
a capoeira pudessem ser mais numerosas. No entanto, a oralidade, as notícias de
jornais, as iconografias – como por exemplo tem-se obra de Augustus Earle – e os
arquivos de polícias propiciaram as bases para o estudo do tema ao longo dos tempos.
Uma vez que não é foco deste trabalho esmiuçar questões conexas à temática da
etimologia, pretendo me ater às hipóteses mais citadas pelos autores na bibliografia consultada 27
no que diz respeito a essa questão.
27
SOARES, Antônio Joaquim Macedo. Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: INL,1945,
p.51, (1ª edição 1889). BEAUREPAIRE-ROHAN, Visconde de. Dicionário de vocábulos brasileiros. Salvador,
Ed. Progresso, 1956, p.72 (1ª edição 1889).
33
CAPOEIRA: Pequena perdiz de voo rasteiro, de pés curtos, de corpo cheio, listado de
vermelho escuro, cauda curta e que habita todas as matas. Tem um canto singular, que
é antes um assobio trêmulo e contínuo de canto modulado. [...] Esse canto só se ouve
ao amanhecer e ao anoitecer; assobio cantado que se tira das mãos colocadas ao modo
de tubo, e imita a da capoeira.“Tocar capoeira” é tirar som igual ao do canto da ave;
e dele se usam no mato os caçadores como chamado, e no campo os moleques,
pastores e vigias de gado para se chamarem uns aos outros, e também aos bois de
manhã quando o levam para o pasto e de tarde à hora de recolher.
De acordo com SOARES (1999, p.19) a associação aos capoeiristas ao canto dessa
“pequena perdiz” se deu porque muitos desses, utilizavam do assobio como forma de alertar a
presença de inimigos.
Outra hipótese corrente na bibliografia é a relação do termo à vegetação. De acordo com
Soares (1989, p.20):
Pode ser que capoeira gente venha de Capueira mato. Do negro que fugiu dizia-se
ainda “foi para a capueira, caiu na capueira, meteu-se na capueira. E não só do negro,
também do recruta e do desertor do exército e da armada, e que procurava fugir das
autoridades policiais. E diz-se também do gado que foge para o campo. Um capoeira
não seria sinônimo de “negro fugido”, “canhabora”, “quilombola”? Este para se
defender precisava atacar, e as vezes inculcava apenas mais malvadeza do que tinha.
“Negro fugido, canhabora, quilombola” ainda hoje são sinônimos de entes faquistas,
assassino, e ao mesmo tempo vivo, esperto, ligeiro, corredor, destro em evitar que
outros o peguem. Capoeiras enfim...
Porém, mesmo apresentando tais hipóteses, o próprio Soares (1999, p.22) acrescenta um
outro personagem à essa discussão que refuta as anteriores atinente a essa questão:
Em artigos escritos para o jornal Rio esportivo, entre julho e outubro de 1926, o
estudioso argentino radicado no Brasil, Adolfo Moralles de Los Rios Filho, fez
cuidadosas observações etmológicas para refutar a hipótese de “capoeira” ser um
termo derivado dos quilombos. Discordando de etimologistas “facilmente
contentados” que atribuem o termo aos usos e refúgios de escravos fugidos, Adolfo
Moralles pergunta se escravos em fuga escolheriam “misérrimas capoeiras” ao invés
do alto das montanhas e as serras íngremes, em risco de enfrentar Capitães-do-Mato
bem armados e a cavalo.
E ainda citando Rios Filho nos parágrafos seguintes, Soares (1999, p.22) reforça,
A correta etimologia do tupi para os significados de mato baixo ou mata extinta, como
detalhadamente ele mostra, não poderia gerar o termo “capoeira”, e sim outros, algo
semelhante, mas diversos. Afastada a hipótese anterior, ele procura outras. O “Cá”
indígena, que se refere a qualquer material oriundo da mata, da floresta, com o “Pú”
referente a cesto, indicam o termo nativo que significa cestos feitos com produtos da
mata: “Cá-Pú”.
utilizado pelos escravos para carregar “capões”, espécie de frangos castrados para engorda
rápida e que eram vendidos nos mercados da época. Embasando tal hipótese, Soares (1999,
p.22-23) aponta que
Com efeito, os grandes cestos carregados pelos escravos no período colonial para
desembarcar e carregar mercadorias eram chamados “Capú”. Esses escravos, como
carregadores quase exclusivos dos grandes cestos, muitos colocados ao ganho, se
tornariam, segundo a lógica do autor, “capoeiros”, ou aqueles encarregados de
carregar o “Capú”, como açougueiros, leiteiros e aguadeiros formariam outros tantos
ofícios da escarvaria urbana.
A hipótese citada acima, que aponta a associação etimológica aos cestos e aos galos foi
defendida por Beaurepaire-Rohan (1956, p.72), como constatamos publicado em seu
Dicionário de vocábulos brasileiros:
Como o exercício da capoeira entre dois indivíduos que se batem por mero
divertimento se parece tanto com a briga de galos, não duvido que o vocábulo tenha
sua origem em Capão, do mesmo modo que damos em português o nome de capoeira
a qualquer cesto em que se metem galinhas.
E, trazendo novamente Rios Filho para a discussão, Soares (1999, p.23) apresenta a
conclusão do mesmo
Nas hipóteses do estudioso, a capoeira como luta teria nascido nas disputas da estiva,
nas horas de lazer, nos “simulacros de combate” entre companheiros de trabalho, que
pouco a pouco se tornaram hierarquias de habilidades, onde se duelava pela primazia
no grupo. Dessas disputas de perna teria nascido o “jogo da capoeira” ou dança do
escravo carregador do “capú”.
Como pudemos ver, as hipóteses etimológicas sobre o termo “capoeira” são variadas e
divergentes, porém nos ativemos às informações que considerei mais pertinentes porque dentro
da bibliografia consultada são as que apresentaram um maior embasamento histórico e
argumentos que considerei mais plausíveis.
Uma das inferências assinala a capoeira com origem no Brasil e levanta uma outra
divergência: se a sua origem seria rural ou urbana. Uma dessas hipóteses pode ser observada
em apontamentos, quando nos referimos à origem da terminologia. Rios Filho (1946, p.51-54)
levanta a hipótese da origem da capoeira entre os escravos de ganho 28 pela escravatura urbana:
“adeptos da capoeiragem fizeram-se desde logo, os pretos de ganho, os negros de carro e
carrinho, os mariscadores, peixeiros e pescadores de canoa e caniço, e toda classe de
carregadores marítimos ou não”. Provavelmente em função de sua relativa liberdade por
pertencer a essa classe de escravos, esses teriam mais tempo para praticar outras atividades
longe dos olhos de seus donos.
Também há aqueles que concebem sua origem entre os escravos rurais do Brasil, nas
senzalas. Sobre esse tema, Amorim (2019, p.11) detalha e logo em seguida levanta
questionamentos sobre esta concepção:
[...] um reforço imaginário [...] relacionou a capoeira à escravidão rural, a sua prática
nas senzalas sob o olhar desconfiado do senhor de engenho. A capoeiragem, porém,
fincou raízes em áreas urbanas [...] nas principais cidades portuárias, tendo surgida
como prática urbana de resistência de escravos de ganho.
O autor trás para a discussão ainda a teoria de que a capoeira teria surgido nos quilombos
brasileiros. A respeito disso, Amorim (2019, p.12) relata,
[...] Quanto à teoria da origem da capoeira nos quilombos, que, por vezes, remete
especificamente à Palmares, a mesma afirma que Zumbi era um habilidoso capoeira
(hoje patrono da capoeira). Nesse caso, a origem remete a 1697, com o próprio
28
Os escravos de ganho eram aqueles que ganhavam permissão ou eram, talvez, obrigados por seus senhores a
realizarem algum tipo de trabalho pelas ruas onde o recebimento de uma parte do montante do ganho era dado ao
seu senhor.
36
Se, por um lado, há autores que apontam para a nacionalidade brasileira como origem
da capoeira, também encontramos apontamentos de sua gênese do outro lado do Atlântico
aumentando a complexidade sobre este tema. Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha, um
dos maiores difusores da capoeira angola no Brasil em seu livro Capoeira Angola (1964) é
categórico ao afirmar que a capoeira angola tem sua origem na África. Diz o Mestre (1964,
p.20): “Não há dúvida que a capoeira angola veio para o Brasil com os escravos africanos”. E
prossegue: “o nome da capoeira angola é consequência de terem sido os escravos angolanos os
que mais se destacaram na sua prática”.
Apontarmos a capoeira, em sua totalidade, como algo original da África, não nos parece
algo tão provável, mas talvez possamos apontar suas raízes naquele continente. É o que nos
conta o historiador Carlos Eugênio Líbano Soares (1999, p.24) ao se referir sobre as origens
africanas da capoeira,
[...] O viajante português Neves de Souza, no início dos anos 1960, registrou em
Angola uma dança cerimonial de iniciação, praticada entre grupos da região de
Mocupe e Molondo, atual sul de Angola. Realizada durante as festas do Mufico, rito
de puberdade das moças do grupo, é executada dentro de um grande círculo de pessoas
da tribo, que batendo palmas fazem a cadência. Dentro da roda dois jovens realizam
a Dança da Zebra, ou N’Golo, na qual, imitando movimentos de animais, tentam
atingir o rosto do oponente com o pé.
Portanto, a minha tese é a de que a capoeira foi inventada no Brasil, com uma série
de golpes e toques comuns todos os que a praticam e que os seus próprios inventores
e descendentes preocupados com o seu aperfeiçoamento modificaram-na com a
introdução de novos toques e golpes, transformando uns, extinguindo outros,
associando a isso o fato que o tempo se incumbiu de arquivar no esquecimento muito
deles e também o desenvolvimento social e econômico da comunidade onde se pratica
a capoeira. Assim, dos toques e golpes primeiros, de uso de todos os capoeiras, uma
boa parte foi esquecida, permanecendo uma pequeníssima e uma outra desapareceu
em função, como já disse, do desenvolvimento econômico e social.
africanas e em regiões onde houvera a presença do escravo africano no novo mundo. Tal
importância repousa no tema de nossa dissertação, pois como nos aponta o autor Sant’Anna
(2020, p.122) no capítulo anterior (ver páginas 14-15), o gesto, apesar de ser associado a
movimentos corporais, vai além, exprimindo conteúdos psicossociais, ou seja, tais movimentos
corporais podem ser identificados como gestos corporais que foram transportados para um novo
contexto e, consequentemente, apesar da manutenção do aspecto físico, adquiriram significados
distintos conexos a esses, apresentando, de alguma forma uma relação especular com seu
passado.
Reflexo deste contexto, a origem da perseguição à capoeira, parece ser bem antiga. De
acordo com o Dossiê Inventário para Registro e Salvaguarda da capoeira como patrimônio
cultural do Brasil (IPHAN, 2007, p14), por exemplo,
O mais antigo registro referente à capoeira foi encontrado pelo jornalista Nireu
Cavalcanti. O documento data de 1789 e se refere à libertação de um escravo chamado
Adão, preso nas ruas do Rio de Janeiro devido à prática da capoeiragem, o que mostra
que a repressão acontecia antes mesmo da criminalização da capoeira, em 1890,
durante o governo provisório do Marechal Deodoro da Fonseca.
39
Se sua origem era, aos olhos da época, mal vista, certas associações realizadas ao longo
de seu percurso contribuíram para que tal ótica encontrasse uma razão visto que sua prática
começou, de fato, a ser associada à parte da bandidagem da época. Sendo assim entre seus
praticantes haviam pessoas marginalizadas e até mesmo marginais de fato. Soares (1999, p.3)
nos traz mais informações sobre essa questão, ao se referir ao século XIX, mais especificamente
na capital carioca:
A capoeira foi um fenômeno que marcou fortemente a vida social da cidade do Rio
de Janeiro no século passado. Grupos de negros ou homens pobres de todas as origens,
portando facas e navalhas, atravessando as ruas em “correrias”, ou indivíduos
isolados, igualmente temidos, conhecedores de hábeis golpes de corpo que passaram
à tradição como “capoeira”, os “capoeiras”, como eram chamados, faziam parte
integrante da cultura popular de rua de então.
Desta forma, podemos inferir que, além do preconceito contemporâneo àquela época à
cultura oriunda dos negros, havia uma razão lógica para que se marginalizasse a capoeira, visto
que esta associara-se a este universo, como bem observa Soares (1999, p.3) ao afirmar que esta
prática se alinhava
Ou seja, devido a tal associação, os “capoeiras” foram temidos durante muito tempo
tanto nas cidades de Salvador quanto no Rio de Janeiro. Sobre esta última ainda, Soares (1999,
p.24) ressalta,
As primeiras décadas do século XIX foram marcadas na cidade do Rio de Janeiro pelo
terror da capoeira. Geralmente identificados como escravos portadores de facas,
estoques, ou qualquer instrumento perfurante, ou então formando “maltas”, grupos
armados que percorriam as ruas da cidade, os capoeiras mantiveram em permanente
vigilância a capital da colônia e depois Império.
associativa de resistência29 mais comum entre escravos e homens livres pobre no Rio
de Janeiro da segunda metade do século XIX. Por volta da década de 1850, a geografia
das maltas já estava bastante sofisticada para comportar uma elaborada denominação
pitoresca, ligada geralmente aos mais importantes marcos de referência da cidade
colonial – as igrejas, que pontilhavam o ambiente urbano.
Retomamos aqui a concepção de Sant’Anna (2020, p.122) que apresenta o gesto como
uma reação (ver páginas 14-15). Tomando o contexto da época descrito e generalizando, pode-
se inferir que a resposta gestual diante dessa manifestação era de, no mínimo, receio, visto à
sua prática associar-se com a marginalia contemporânea 30.
Apesar de sua marginalização, a eficácia da capoeira como um recurso de agressão ou
defesa não passou desapercebida na época, uma vez que capoeiristas eram contratados como
capangas de políticos e poderosos. Ainda utilizando o historiador Soares, este trás para a
discussão, o termo “partido capoeira”, para falar sobre a importância política dos capoeiristas
durante o período do Brasil imperial, durante os anos 1880, que antecedeu a proclamação da
república. A respeito disso, (1999, p.243) expõe,
Para nós o Partido Capoeira não é um grupo específico, com determinado número de
membros. Ele significa um método, uma forma de fazer política. Esta forma de
atuação política teria duas características básicas: a primeira, estava ligada ao espaço
onde esta atuação teria lugar. Este espaço era a rua, a praça pública. Esta política na
rua estava dirigida, pensamos nós, não somente ao grupo adversário que se pretendia
coagir, mas ao restante da sociedade. Para essa havia uma mensagem que se pretendia
passar, mensagem essa ligada a formas de identidade, e uma presença no contexto
político dominante. A política de rua dos capoeiras era, desta forma, uma leitura e
uma prática invertida da política fechada dos gabinetes.
Repare que na citação de Soares fica clara o caráter agressivo das maltas quando o autor
se refere a “coação”31. As maltas exerciam um poder violento sobre a população constringindo
essa a seguir suas vontades, no caso, a política.
29
A forma como esse termo é utilizado aqui é bastante complexa, estando muitas vezes ligado a questões
ideológicas e não necessariamente baseado em fatos. Porém, por não ser o foco desse presente trabalho o tema não
será aprofundado.
30
Uma comparação pode ser feita com a atualidade, por exemplo, com dois motoqueiros sobre a mesma moto
quando esses se aproximam de outros indivíduos e causam certa apreensão, pois, mesmo sabendo que, obviamente,
nem todos motoqueiros são criminosos, bandidos, nas cidades grandes brasileiras, se utilizam desse recurso para
realizarem seus crimes.
31
Nos dias atuais, de forma análoga presenciamos facções de bandidos, além de milícias, agindo em comunidades
obrigando seus moradores a acatarem suas vontades as quais estão conectadas a interesses, em sua quase totalidade,
ilícitos e também políticos.
41
A partir do que vimos até aqui não é difícil compreendermos porque a prática de
capoeira no país aconteceu durante muito tempo de forma clandestina, às escondidas, pois o
“terror” e marginalização delegados a essa prática cultural, levou a um longo período de
repressão por parte das autoridades policiais da época. Reis (1997, p.40) ao falar sobre essa
repressão aos “capoeiras”, detalha,
Já a respeito da perseguição policial sofrida por parte dos capoeiristas, ser justificada ou
não, Soares (1999, p.277) discorre a seguir, tendo como pano de fundo o período histórico do
Segundo Reinado no Brasil (1840-1889) e destaca uma relação ambígua frente as praticantes
da capoeira:
Certamente, a relação ambígua demonstrada pelos poderes públicos, ora reprimindo ora
buscando uma aliança, não se devia ao fato destes grupos praticarem capoeira mas, sim, pela
força que demonstravam ter enquanto grupos, fosse ela lícita ou não. A capoeira, nestes casos,
entraria como um recurso das maltas as quais, através dessas habilidades corporais aumentavam
seu poderio no quesito “violência” tornando-as mais perigosos ainda.
Para exemplificarmos ainda mais como a capoeira era perseguida, vamos retroceder a
um determinado período histórico. Conta-nos Soares (1999, p.277),
Mas, como dito, se por um lado, os praticantes da capoeira estiveram sobre a vigilância
das autoridades da época, por outro, tais indivíduos mostraram-se aliados ao poder público, pois
sobre as transformações ocorridas durante o período do segundo reinado, mencionadas
anteriormente, consta que os capoeiristas tiveram muito destaque e importância durante a guerra
do Paraguai, tendo existido pelotões específicos só com capoeiristas. É sabido que o destaque
dos negros nesse conflito, foi tão notável que foi usado como um dos argumentos que
desembocaria no processo de abolição da escravatura. Entretanto, se sua atuação na referida
guerra, auxiliou no louvável processo da libertação dos escravos, não se pode dizer o mesmo
no que diz respeito a outras atuações junto à sociedade. Por exemplo, sobre tais temas, consta
no Dossiê: Inventário para Registro e Salvaguarda da capoeira como patrimônio cultural do
Brasil (Brasília, 2007, p.15),
Ou seja, temos aí, novamente, atuações louváveis e condenáveis aos olhos da sociedade.
A partir da década de 1930 constatamos uma tentativa de valorizar a capoeira e,
consequentemente, seus praticantes, pois essa deixa de ser considerada legalmente uma prática
criminosa e desde então passou a figurar como uma arte marcial brasileira e também como um
esporte nacional. Pouco antes, um marco dessa evolução foi a publicação do livro Ginástica
nacional (capoeiragem) metodizada e regrada (Burlamaqui, 1928). Um outro fato marcante
desse reconhecimento foi quando um dos maiores expoentes da capoeira regional, Mestre
Bimba, conseguiu uma licença oficial para que pudesse ensinar capoeira em seus “centros de
cultura física”.
Sobre esse assunto, Reis (1997, p.97) reforça,
[...] Entre finais do século passado e princípios deste, já haviam sido realizadas as
primeiras tentativas – provenientes da cidade do Rio de Janeiro – de legitimar
socialmente a capoeira, enaltecendo-a como um “esporte nacional”, criada pelo
“espírito inventivo do mestiço”.
A partir de tudo isso, deste processo onde ora é considerada “inimiga” ora “aliada”, a
capoeira vem ganhando cada vez mais adeptos em suas modalidades, estando presente em
diversas obras de arte seja inspirando ou como protagonista e, consequentemente, obtendo cada
vez mais reconhecimento internacional, como poderemos confirmar no tópico seguinte. Ou
seja, não podemos deixar de ressaltar que o mesmo objeto que outrora, como comentamos,
despertava gestos de temor naqueles que o deparavam, viria, após um longo processo, suscitar
gestuais de admiração na mesma sociedade, como veremos a seguir.
Como vimos nas páginas anteriores, a história da capoeira apresenta matizes distintas,
com problemáticas na identificação de sua origem e em suas funções contextuais, por exemplo,
44
hora exercendo um papel nobre, hora fazendo parte de momentos questionáveis e, em grande
parte do tempo, estando à margem da sociedade.
No entanto, podemos verificar que ela ganha mais destaque e reconhecimento a partir
da década de 1930 tendo, inclusive, reconhecimento entre os mais diversos artistas e escritores,
influenciando na cultura brasileira, vide as referências encontradas em diferentes áreas. É fato
que tal importância faz parte de um movimento de artistas que buscavam valorizar
manifestações nacionais. De acordo com IPHAN (2007, p.38),
[...] Entre os anos de 1930 e 1940, cresce o interesse de intelectuais brasileiros de
alguns estrangeiros por essas manifestações, que se tornaram seus objetos de estudo e
pesquisa. Entre eles estavam Gilberto Freyre, Edison Carneiro, Arthur Ramos, Jorge
Amado, Donald Pearson, etc. Na realidade, esses intelectuais tiveram uma
participação importante na construção de uma nova visão da sociedade sobre
manifestações culturais afro-brasileiras. No caso da capoeira da Bahia, é relevante o
papel desempenhado por Édison Carneiro, pioneiro ao publicar em 1936, um artigo
de página inteira sobre capoeira na impressa baiana, ressaltando seus aspectos
culturais. Este texto foi posteriormente inserido no seu livro Negros Bantus. Esta é a
primeira vez que a capoeira baiana recebe uma pequena descrição etnográfica.
Carneiro narra como era o ritual da roda, apresenta o berimbau como instrumento
indispensável à realização da brincadeira, cita e interpreta algumas cantigas,
vinculando-as ao universo cultural africano.
Desta forma, artistas de áreas distintas, utilizaram e utilizam da temática principal desta
dissertação para ilustrar, desenvolver ou inspirar suas obras artísticas. Por exemplo, um escritor
brasileiro que mencionou o universo da capoeira em diversas de suas obras literárias foi o
baiano Jorge Amado (1912-2011). Algumas referências à capoeira podem ser encontradas em
romances como Capitães de areia, Jubiabá, Mar morto, entre outras. Pires (2010, p.6) relata
sobre o interesse do escritor por esse universo da capoeira,
Na sequência da citação, Pires (2010, p.8) traz mais um ponto de elucidação sobre o
assunto,
Mestre Nestor Capoeira, Mestre Camisa e o Mestre Leopoldina, que executou boa parte da
trilha sonora.
Posteriormente, diversos outros filmes fizeram referência à capoeira direta ou
indiretamente. Entre os quais podemos destacar o filme Besouro (2009) dirigido por João
Daniel Tikhomiroff que conta a trajetória do lendário capoeirista Manuel Henrique Pereira
(1895-1924) mais conhecido como Besouro Mangagá. Já no filme dirigido por Karim Aïnouz,
Madame Satã (2002), no qual é retratada a vida do folclórico transformista brasileiro João
Francisco dos Santos, (1900-1976) é possível ver em algumas cenas, várias referências à
capoeira, através de golpes que o protagonista utilizava em seus embates corporais. Vale
destacar também o filme-documentário Capoeira, um passo a dois (2007) dirigido por Jorge
Itapuã e que mostra a rotina de uma mulher e o seu mestre de capoeira.
Além de filmes, diversos documentários e curtas metragens foram produzidos sobre a
capoeira. Dentre as obras de maior repercussão, podemos destacar o documentário Vadiação
(1954) de Alexandre Robatto Filho, gravado na Bahia e que conta em sua produção com
diversos mestres da época e seus discípulos, entre eles, o já mencionado Mestre Bimba. Outros
dois documentários fundamentais para se adentrar no universo da capoeira angola são: A
capoeira Angola segundo o Mestre Pastinha (1991) de Antônio Carlos Muricy que contém
imagens raras de diversos mestres famosos como Mestre Rogério e Mestre Moraes, entre outros
e do mesmo diretor, Pastinha, uma vida pela capoeira (1998). Nesse último documentário é
possível ver imagens raras do próprio Mestre Pastinha e de seus discípulos, Mestre João Grande
e Mestre João Pequeno, fundamentais para a sequência do legado de Pastinha.
Outra produção bastante rica é o filme documentário Mestre Leopoldina, a fina flor da
malandragem, a respeito da vida e trajetória do Mestre Leopoldina, produzido no ano de 2005
por Rosa La Creta.
É importante destacar também a produção cinematográfica Only the Strong, título
traduzido no Brasil como “Esporte sangrento” de 1993, dirigido por Sheldon Lettich. Apesar
de ser mais um dos filmes que apresenta um desconhecimento sobre a América do Sul e de
“caricaturizar” seus costumes, é considerado o único filme hollywoodiano que mostra a
capoeira como arte marcial afro-brasileira com amplo destaque do início ao fim. Esse filme,
também ajudou a popularizar a capoeira em diversos países do mundo.
Indo além da arte cinematográfica, a capoeira também não foi ignorada pelo vídeo
games. Na série de jogos Teekken, que traz vários lutadores de diferentes artes marciais como
karatê e taekwon-Do, produzida e criada pela Bandai Namco Entertainment, a capoeira também
47
se faz presente através do personagem Eddy Gordo, um capoeirista brasileiro que, inclusive,
luta trajando as cores de nossa bandeira.
Já nas artes plásticas, muitas referências à capoeira também foram feitas. Dentre as
representações mais antigas que se tem notícia há um destaque para a obra Negroes fighting
Brasils (Negros lutando) do pintor inglês Augustus Earle produzida entre 1821 e 1823.
A obra mostrada foi pintada durante o período em que o artista morou na cidade do Rio
de Janeiro e podemos observar na pintura a figura do guarda, representando o período de
repressão à pratica de capoeiragem. É interessante notar, entre outras coisas, há ausência de
instrumentos musicais durante a prática de capoeira, algo que será detalhado posteriormente no
presente trabalho.
Outro artista plástico do passado que fez referências à capoeira em sua arte foi o pintor
alemão Johann Moritz Rugendas. Dentre as pinturas do artista, podemos destacar a obra San-
Salvador, de 1834.
48
No entanto, vale destacar que o olhar que se tem diante das artes de Earle, Rugendas e
Carybé são bem distintos, pois, enquanto nos dois primeiros tais representações, supomos,
deveriam causar certa apreensão, no último, como o simbólico se transporta para a admiração,
tomando gesto em um sentido amplo, resultam em reações gestuais diversas.
Se a capoeira pode ser encontrada na literatura, no cinema e nas artes plásticas, um de
seus elementos constitutivos mais relevantes também não é ignorado: a música. Várias
referências à capoeira são encontradas na música popular brasileira. Apenas para citar como
exemplo, na música Triste Bahia, de Caetano Veloso, do disco Transa (1972), o compositor faz
uma homenagem ao consagrado Mestre Pastinha, já mencionado anteriormente: “Pastinha já
foi à África, pra mostrar capoeira do Brasil”! Outra referência marcante da capoeira está na
canção Domingo no parque (1968) de Gilberto Gil, que ganhou o segundo lugar no Festival
Internacional da canção de 1967. Na introdução da música há uma nítida referência a um toque
de berimbau, instrumento símbolo da capoeira e um dos protagonistas da história, (João) é um
capoeirista. Também na canção Berimbau (1992) do grupo Olodum, há uma homenagem ao
instrumento que dá título à canção: “Ô berimbau, pedaço de arame, pedaço de pau”. Nessa
canção há também o mesmo recurso utilizado por Gilberto Gil, que é o de se inspirar em um
dos “toques” do berimbau para criar a melodia para a letra que se segue: ‘’Berimbau sim,
berimbau não, berimba, berimba, berimba sim...’’
Como foi possível observar ao longo de todo esse tópico, as referências à capoeira são
diversas em diferentes seguimentos culturais do Brasil, ou seja, em variadas formas de arte a
capoeira, hoje, se faz presente, tornando-a uma das representantes de nossa “brasilidade” e
demonstrando sua inegável importância na história do país.
Como podemos constatar através dos exemplos dados, hoje a capoeira está inserida em
produções estrangeiras, seja em filmes, nas artes plásticas ou em videogames. Entretanto, a
propagação desta manifestação em várias partes do mundo não se deu da noite para o dia, mas
tratou-se de um processo paulatino onde alguns autores podem ser identificados como
incentivadores desta divulgação. Desta forma, pode-se dizer, desde os anos 1950, a capoeira
passou por um gradativo processo de globalização, como nos mostra o Dossiê do IPHAN:
[...] Mestre Arthur Emídio foi, provavelmente, o primeiro capoeirista a viajar para o
exterior, entre os anos 1950 e meados de 1960. Depois dele, em 1966, Mestre Pastinha
e seus discípulos fizeram a antológica viagem para a África, onde participaram do
Festival de Artes Negras. Mestre Jelon Vieira, integrante do grupo Viva Bahia, que
51
não voltou ao Brasil após uma série de shows pela Europa, permaneceu em Londres
e, em 1975, foi se apresentar em Nova York, onde resolveu estabelecer residência. Ao
lado de Loremil Machado, foi o pioneiro da difusão da capoeira nos Estados Unidos.
Em 1979, chegaria Mestre Acordeon, responsável pelo ensinamento do jogo na costa
oeste, na Califórnia. A capoeira, dessa forma, cobriu as duas faces do território norte-
americano. Em 1990, Mestre João Grande chegaria a Nova York e inauguraria a
primeira escola de capoeira angola dos Estados Unidos: Capoeira Angola Center, com
sede em Manhattan.
Ou seja, a difusão da capoeira encontrou e tem encontrado muitos agentes que tem
atuado para tal propósito ao longo de sua história e tal processo se estende ainda no século XXI,
pois no ano de 2004, por exemplo, o então ministro da cultura Gilberto Gil leva 15 capoeiras
brasileiros para realizar apresentações desta arte na ONU:
[...] Em 19 de agosto de 2004, o ministro da cultura, Gilberto Gil, viajou para Genebra,
na Suiça, sede europeia da ONU, a convite do então secretário-geral Kofi Annan. Na
ocasião, o ministro levou 15 capoeiristas brasileiros e estrangeiros para homenagear
o embaixador Sérgio Vieira de Mello, morto exatamente um ano antes em um atentado
terrorista em Bagdá, capital do Iraque, e aproveitou para lançar as bases de um
“Programa Brasileiro e Internacional para a Capoeira”.
A luta pela difusão da capoeira tem se mostrado frutífera visto que, como vimos, além
sua presença na contemporaneidade se encontrar em vários domínios e localidades distintas.
Em novembro de 2014, em Paris, a UNESCO via 9ª sessão do Comitê Intergovernamental,
aprovou a Roda de Capoeira, um dos símbolos do Brasil mais reconhecidos internacionalmente,
como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Sendo assim, podemos afirmar que a
capoeira é hoje um dos maiores símbolos da identidade brasileira e está presente em mais de
160 países.
Mas vários foram as atuações para que tal reconhecimento se concretizasse. Por
exemplo, é relevante ressaltar a importância de outro documento que contribuiu bastante para
tal, trata-se do Plano de salvaguarda e o reconhecimento dos mestres de capoeira tanto pelo
IPHAN quanto pelo ministério da educação (MEC).
De acordo com IPHAN (2017, p.4-5):
Por se tratar o presente trabalho, de uma pesquisa tendo como foco um grupo de capoeira
situado na cidade de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, achamos relevante
trazer uma breve explanação sobre o histórico dessa arte neste local. Portanto, a seguir,
podemos conferir um pouco mais sobre esse assunto através de um trecho do documento
Mapeamento da capoeira de Minas Gerais, IPHAN (2014, p.14):
[...] Em Belo Horizonte, surge a oferta pela primeira academia de ginástica, incluída
entre as modalidades de luta e ginástica. A capoeira aos poucos adquire adesão no
restante do estado de Minas Gerais. No final dos anos 1960 passa a ter mais espaço
em cidades tais como Juiz de Fora e Teófilo Otoni.
[...] No universo dos 848 municípios contatados (dos 853 existentes) com êxito, 546
possuem prática de capoeira e 302 não possuem capoeira. Dos 546 municípios que
possuem essa prática, em 437 há grupos e/ou mestres de capoeira e em 109 a capoeira
é praticada por meio de contratos com as prefeituras, em programas sócio-
educacionais como CRAS, ProJovem, Programa de Erradicação do trabalho
Infantil/PETI, Minas Olímpica, entre outros.
32
Há inúmeras citações aos dossiês do IPHAN porque, além da qualidade dos trabalhos, encontramos poucos
arquivos oficiais sobre registros históricos da capoeira em Minas Gerais e na cidade de Belo Horizonte.
54
[...] identificado nesse estudo, surgiu nas primeiras décadas do séc. XX, como se pode
verificar no extinto Jornal “As alterosas”, publicado na capital mineira, no ano de
1916, em um anúncio que convidava publicamente as pessoas a participarem do
Centro de Cultura Physica Olavo Bilac”, que oferecia aulas de Capoeira, jogo do pau,
boxe, jiujitsu, entre outras “atividades atléticas ministradas pelo sportman Pereira da
Silva”.
Nesse período dois dos maiores nomes da capoeira na cidade iniciaram suas atividades: Mestre
Cavalieri e Mestre Dunga. Outros nomes importantes para a difusão da capoeira na cidade
foram os mestres Rogério e Jurandir. (SILVA & ANTUNES, 2016, p.56)
Figura 6:Grão Mestre Dunga
capoeira para Belo Horizonte, pois quando ele chegou à cidade não viu e nem ouviu
relatos de outras pessoas sobre a capoeira na cidade. Para ele parece interessante
confirmar esta história (e ele o faz algumas vezes), pois este é o maior “título” que ele
tem na capoeira: ser o seu precursor em Belo Horizonte. Porém, ele não se enaltece,
pelo contrário, relata seus feitos, mas também cita vários outros capoeiras e seu papel
na constituição da capoeira belo horizontina. Ainda nesta perspectiva, é curiosa a
visão dele sobre o Mestre Dunga – considerado atualmente como uma lenda viva da
capoeira mineira e talvez tão ou mais renomado que ele: Mestre Dunga não era
capoeirista e sim um saltador (deixando claro o seu pioneirismo e relevância),
inclusive que aprendeu a capoeira ‘em si’ em Belo Horizonte, com a turma dele (ele
diz que o Mestre Dunga aprendia rápido, tinha muita facilidade).
[...] Certo dia, uma sexta-feira da Paixão, Cavalieri foi à São João Del Rey, cidade de
sua esposa. Chegando lá encontrou dois capoeiristas antigos, o Borracha e o Boca,
que lhe falou: “Mestre aqui tem um capoeira um bocado bom, preciso te apresentar o
Dunga”. Mas como diz o Mestre Toninho Cavalieri, “[...] que sabia capoeira nada!
Ele sabia era dar salto mortal, aquele jeitão dele”. Neste mesmo dia Cavalieri encontra
com Dunga, que se apresenta, e ficam falando de Capoeira e jogando à frente da
procissão até de madrugada. Depois desse episódio, o próprio Cavalieri consegue
moradia, no Bairro Padre Eustáquio, para o Dunga se mudar para Belo Horizonte.
Natural de Juiz de Fora, Mestre Cavalieri se mudou para Belo Horizonte e para aumentar
sua renda, procura a Associação Cristã de Moços (ACM) para oferecer seus serviços como
professor de capoeira. Palhares (2016, p.89) detalha esse momento histórico que marca o
importante momento de difusão da capoeira na cidade de Belo Horizonte, onde são citadas
figuras da velha guarda da capoeiragem na capital mineira:
A pessoa com quem Cavalieri conversou lhe disse que colocaria um aviso no antigo
jornal Diário da Tarde anunciando aulas de capoeira na ACM. Logo pela manhã, uma
pessoa já estava na porta de sua casa para saber mais informações a respeito da
capoeira. Aquela pessoa que pediu informações era Luís Mário Ladeira, que mais
tarde viria ser muito conhecido em Belo Horizonte como Jacaré, o Mestre Jacaré – da
velha guarda da capoeiragem mineira. Logo em seguida veio Luís Alberto, o Paulo
Batista, o Mestre Paulão (fundador do Grupo Ginga) e tantos outros: “[...] chegaram
uns vinte lá em casa e montamos o primeiro grupo” [...] Nós começamos a treinar, o
grupo foi aumentando, aumentando e ficou bem grande, uns 50 alunos mais ou
menos”.
Um dos alunos do Mestre Cavalieri, citado anteriormente, se tornou uma das figuras
mais importante da capoeira na cidade de Belo Horizonte, trata-se do Mestre Paulo Batista,
conhecido como Mestre Paulão e posteriormente como Paulão Filosofia, que teve esse apelido
pelo fato do mesmo ter ministrado aulas de capoeira na Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas (FAFICH) da Universidade Federal de Minas Gerais. De acordo com Melo (2013,
p.76-77), Mestre Paulão foi muito importante na consolidação da capoeira na cidade e em maior
difusão no meio universitário e entre a classe média:
57
Na mesma entrevista, Mestre Cavalieri relata sobre o ponto de encontro dos capoeiristas
na capital mineira, a Feira Hippie, que acontecia na Praça da Liberdade, atualmente conhecida
como Feira de artesanato e que tem sua localização na Avenida Afonso Pena, local esse onde
até hoje acontecem diversas rodas de capoeira, encontros de capoeiristas e simpatizantes.
Palhares (2016, p.89), se utilizando novamente de trechos de entrevista com o Mestre Cavalieri,
reforça:
Porém, apesar do que foi relatado por Mestre Cavalieri e de ser sabido que as rodas de
capoeira contribuíram para o desenvolvimento da feira mencionada, não me parece correta a
informação de que foi a capoeira e suas rodas que levaram ao início da feira hippie na cidade
de Belo Horizonte, uma vez que é se tem registro de que a feira foi uma iniciativa dos próprios
artesãos da cidade no final dos anos 1960, obtendo apoio, a partir dos anos 1970, da prefeitura
da cidade, como podemos constatar na informação do Portal BH (2022):
Idealizada por um grupo de artistas mineiros e críticos de arte, esta feira surgiu na
Praça da Liberdade em 1969. Artistas plásticos e artesãos de diversas especialidades
ali se reuniam, expunham e vendiam os seus trabalhos. Em 1973, foi reconhecida e
oficializada pela Prefeitura de Belo Horizonte.
que tais fontes devem ser questionadas e postas a prova mediante observação no
contexto que lhes é próprio. A fala do pesquisado, por se tratar de importante fonte de
informação, deve ter sua veracidade e aplicabilidade testadas. Não pode ser
simplesmente aceita como dogma, verdade final e inquestionável. A palavra final da
análise, coincidente ou não com a fala do pesquisado, cabe ao pesquisador, a quem
compete, também, filtrar, verificar, questionar e, se necessário, descartar
completamente as informações do nativo.
[...] De acordo com o Grão Mestre, nas décadas de 1960 e 1970, não havia academias
para a prática da capoeira, motivo pelo qual a dança passou a ser chamada de batuque
de fundo de quintal. Isso porque os jogos de capoeira aconteciam nos terreiros dos
barracos, nos quilombos, como ele mesmo apelida as favelas da cidade. O capoeirista
fala que, durante a ditadura militar, a polícia tratava de dispersar os montinhos ou
aglomerados de gente que se reunia pelas ruas de Belo Horizonte. Foram dez anos de
perseguição à capoeira de rua. A Rural era o carro do exército que rondava a Praça da
Liberdade, a Praça Sete, a Praça da Rodoviária e o Parque Municipal e acabava com
qualquer montinho. (Blog Overmundo, 2008)
Na mesma entrevista, o Grão Mestre Dunga relata ainda ter convivido com figuras
lendárias da capital mineira e que constam como personagens da grande obra do escritor
mineiro Roberto Drummond, o livro Hilda Furacão. Entre as personagens constam a prostituta
Maria Tomba Homem e o travesti Cintura Fina, este último, aliás, era “capoeirista da
vadiagem”.
O Grão Mestre participou ativamente das mais tradicionais rodas de capoeira nas praças
da cidade de Belo Horizonte: Praça Sete, Praça da rodoviária, Praça da estação e Praça da
Liberdade. Durante muitos anos o mestre divulgou a arte em seu espaço conhecido como
Senzala, na Vila São Vicente ou “Marmiteiro”, no bairro Padre Eustáquio em Belo Horizonte.
A partir da década de 1980, Mestre Dunga fundou a Associação Cordão de Ouro – A Senzala
Eu Bahia. Já a partir de 2006, a associação passou a ser denominada ABRACCE, Associação
Brasileira de Capoeira Cordão de Ouro – Eu Bahia. O Mestre gravou um cd no ano de 2004:
“Grão Mestre Dunga – A lenda viva da capoeira”, com 28 faixas.
O referido mestre exerceu importante influência sobre capoeiristas que viriam a se tornar
mestres de capoeira posteriormente. Uma personalidade muito importante dentro desse contexto
59
é o Mestre João (Mestre João Bosco), fundador da Associação Cultural Eu Sou Angoleiro
(ACESA) situada na cidade de Belo Horizonte. De acordo com Silva & Antunes (2016, p.56):
33
Na citação original, constava sem data precisa, tendo a letra X representando a imprecisão.
60
[...] Fundado no ano de 1983, o Grupo Iúna de Capoeira Angola é uma Organização
Não Governamental – ONG. Tendo como seu fundador e presidente de honra Edson
Moreira da Silva (Mestre Primo). Há vinte anos, o grupo vem atuando em projetos
socioculturais, com crianças, adolescentes e adultos da região leste de Belo Horizonte,
atendendo principalmente os bairros Saudade, Alto Vera Cruz e Taquaril. Na sede do
grupo são oferecidas, além das oficinas de Capoeira Angola, o programa, “Coletivos
Mulheres da Arte”, que, desde 2005, tem como foco a geração de trabalho e renda,
baseadas em uma economia solidária realizado com as mães dos jovens praticantes de
capoeira. Além dos projetos desenvolvidos, o Grupo Iúna, realiza vários intercâmbios
entre grupos de Capoeira Angola e outros praticantes de Capoeira em âmbito
municipal, estadual, nacional e internacional.
capoeira na cidade de Belo Horizonte: Mestre Boca, Mestre Farofa, Mestre Véi, Mestre
Chocolate, Mestre Tigrê, Mestre Negão, Mestre Mão Branca e Mestre Reinaldo (Kisuco) entre
tantos outros.
Como foi possível observar nas informações apresentadas, constata-se que a capoeira
na cidade de Belo Horizonte teve a sua efervescência ao final dos anos 1960 e início dos anos
1970 ganhando espaço e reconhecimento até os dias atuais. Também pode-se inferir que a
capoeira tem atualmente na capital de Minas Gerais um de seus principais polos e referência,
tendo em vista a quantidade de praticantes e o número de mestres mencionados anteriormente.
62
Dizer que as manifestações culturais mais autênticas e notáveis são de origem banto é
algo realmente discutível, porém é inegável a importância dessa influência. De Castro (1995,
p.29) vai mais além no parágrafo seguinte e explica a expansão dessa influência banto de forma
mais detalhada, desembocando também na capoeira e alguns de seus instrumentos,
especificando mais a influência da nação Angola em nossa cultura,
[...] Essa penetração está no ritmo do samba, como símbolo da musicalidade brasileira,
e na capoeira, dança marcial elevada recentemente à condição de esporte nacional. De
origem banto também é o berimbau, arco musical monocórdio que marca o ritmo e os
toques da capoeira, assim como é evidente a influência de Angola na temática de seus
cantos em louvor a Aruanda, ou seja, Luanda, mas no sentido de África mítica, morada
dos ancestrais.
Toda a influência africana que o Brasil recebeu, gerou o termo “cultura afro-brasileira”.
Sobre este, Souza (2000, p.79-80) esclarece que,
[...] A opção que faço pelo uso do termo ‘afro-brasileira’ para designar a cultura e a
tradição negra no Brasil está diretamente ligada ao entendimento de que, no cômputo
geral das trocas, determinados elementos da cultura africana resistem e permanecem
como diferenças.
63
Na sequência da citação, Souza (2000, p.79-80) nos impele a refletir que, apesar das
diferenças adquiridas no Novo Mundo, as semelhanças ancestrais facilitavam a união de grupos
culturais distintos quando esta se fazia necessário.
Não esquecendo de um dos focos de nosso trabalho e considerando o gesto como algo
abrangente (ver Freitas, 2020, p.40 e página 16 no primeiro capítulo), torna-se plausível supor
que havia gestos semelhantes nessas raízes africanas que acompanharam seus objetos
concomitantes ao novo mundo nas manifestações que aqui se recriaram e encontraram morada,
como veremos a seguir.
Desse ponto em diante, haverá um maior detalhamento no que diz respeito à influência
musical africana nas manifestações culturais que envolvem a música em seu contexto mais
amplo. Antes, porém, é importante explanarmos sucintamente sobre a questão histórica que
permeia o tema.
Ao falar sobre a linguagem musical da África negra, Gabriel Gonzaga Bina (2006, p.16)
relata que: “em geral, entende-se por música africana o conjunto de músicas tradicionais dos
povos que habitam ao sul do Rio Senegal e à beira dos lagos Chade e Tana” e detalha que a
África dita negra é composta por uma infinidade de etnias e culturas, mas o uso dos tambores
é comum em todas elas”.
Bina também nos apresenta um panorama onde divide os povos nos que ele considera
como sendo os que representam “a verdadeira” cultura negra em três. (2006, p.16):
[...] O grupo sudanês, ao Norte do Equador (Senegal, Guiné, Costa do Marfim, Norte
dos Camarões, Nigéria, Sul do Mali e do Chade, etc). Sua música foi influenciada
pelo Islã; Povos bantos, ao sul de uma linha que une a foz do rio Níger à do rio Tana,
no Quênia (sul dos Camarões, Gabão, Congo, Zaire, Tanzânia, Ruanda, Zâmbia,
Moçambique, Angola, etc). Sua música foi mais preservada de outras influências; O
grupo nilótico, na região do alto Nilo e do lago Vitória (província equatorial do Sudão,
Quênia, Uganda).
2. A música é concebida como um fenômeno global, cuja análise nem se cogita fazer.
Os músicos africanos não conhecem sistema teórico. Em todos os povos africanos a
evolução musical desde as origens parece ter acontecido regularmente integrando todo
o entorno sonoro;
Na maioria das línguas africanas, especialmente nas línguas do grupo banto, a altura
relativa dos sons é significante. A música é capaz de imitar os ritmos e os “tons” do
discurso, permitindo que os instrumentos falem. A linguagem de um tambor de axila,
de uma cítara, de um arco de boca ou de um violino é a língua usual totalmente
compreendida quando o informante-músico é habilidoso e o receptor, atencioso. Se a
afinação e a execução de um instrumento não levarem em conta as características
linguísticas (se é um estrangeiro que toca, por exemplo), a mensagem não será
compreendida pela comunidade. Os tambores são utilizados para, através de códigos,
transmitirem mensagens à distância.
É importante, porém, ressaltar que algumas dessas informações são contestáveis, uma
vez que o autor em muitos momentos generaliza e procura falar sobre a música africana como
uma propriedade que é difícil de ser comprovada por diversos motivos, dentre eles a vastidão
de culturas dentro de um continente tão grande e suas mais variadas contradições. Além disso,
percebe-se em algumas de suas falas algo que soa muito mais advindo de inferências
ideológicas do que necessariamente fruto de uma constatação científica, tal como uma suposta
pureza original que é “expressão de uma cultura coletivamente ligada à vida social [...], uma
maneira de ser e agir em harmonia com a natureza”.
No entanto, algumas de suas afirmações parecem encontrar respaldo na manifestação
que estudamos, por exemplo, a intricada conexão relatada pelo autor entre realizações sonoras
e o contexto não pertencente ao fenômeno acústico onde este se insere, como a função
comunicativa apresentada pelo autor, a qual encontramos em religiões afrodescendentes (ver
65
Cardoso, 2006) e também nos deparamos na relação gesto/música na capoeira angola e que será
abordada no capítulo seguinte.
Outros autores também despertaram interesse em pesquisar as raízes históricas da
influência africana em nossa música. Em depoimento ao jornalista Jean-Yves de Neufville, o
etnomusicólogo Paulo Dias (2009) falou sobre as práticas de origem africanas mantidas no
Brasil desde o fim do tráfico de escravos, e a tradição afro-brasileira. Segundo ele, houve uma
manutenção da tradição mesmo após o fim da escravidão, como podemos ver a seguir,
Na roda de capoeira há padrões que podem ser identificados sobre vários aspectos, sejam
musicais, corporais, por parte daqueles que estão jogando, assistindo ou se preparando para
entrar na roda e jogar. De fato, percebe-se uma alternância entre aqueles que participam
diretamente desta manifestação. Há uma seção de integrantes que executam os instrumentos
específicos e que, por vezes, se revezam, ora tocando um ou outro instrumento, jogando,
cantando ou, simplesmente, assistindo. Desta forma, enquanto a música é executada alguns
participantes jogam capoeira através de demonstrações dos chamados golpes e movimentos
corporais (gestos) que serão detalhados posteriormente. Ressaltamos que é comum um
revezamento entre o tocar e o jogar capoeira entre os mesmos participantes numa mesma roda.
A roda de capoeira, seja regional ou angola, vai além dos aspectos físicos mencionados,
é um espaço onde muitos elementos simbólicos se fazem presente. Ali, podemos detectar
hierarquias, relações sonoras que extrapolam o fenômeno acústico, sejam instrumentais ou
vocais, movimentos corporais, entre outros. A respeito deste universo simbólico e no tocante à
capoeira de angola, Simões (2008, p.63) descreve:
66
[...] A performance ritual da capoeira angola consiste na roda, que representa por sua
vez, “o mundo velho de Deus” (o universo). Para descrevê-la é necessário que seja
feita uma abordagem que contemple desde a questão da musicalidade, passando pela
questão da corporeidade, hierarquia, valores morais, entre outras.
Apesar de não ser totalmente imprescindível (vide que é possível “jogar capoeira” sem
acompanhamento musical), a música na roda de capoeira angola é algo de muita relevância para
o desenvolvimento da manifestação e seu contexto, devido aos elementos que estão em íntima
conexão com essa, tais como a dança e todo o seu desenvolvimento. Essa possibilidade ajuda a
contribuir com uma dúvida corrente: seria a capoeira luta, dança ou jogo? A meu ver, trata-se
de uma manifestação cultural plural onde a união de todos me parece o mais plausível.
Sobre o que foi dito anteriormente, da possibilidade de se jogar capoeira sem música,
também é possível fazê-lo sem seus instrumentos característicos. De fato, tudo indica que, em
seus primórdios, era o que ocorria. Gallo (2012, p.59) reforça tal afirmativa utilizando de uma
pintura de Augustus Earle: Negros lutando (já apresentada no capítulo 2, página 45, para ilustrar
melhor tal informação:
A capoeira no seu contexto inicial era jogada nas ruas, acompanhada apenas com
palmas e cantorias. Há uma lacuna nos registros históricos que impede a reconstrução
do contexto em que foram inseridos os instrumentos que hoje fazem parte da roda de
capoeira. Não há registros nem indícios precisos das circunstâncias em que foram
inseridos berimbau e caxixi na capoeira. Esta gravura de Debret (1824) mostra
movimentações sem a presença de instrumentos musicais.
Já uma roda de capoeira Angola não estaria completa se faltassem todos os instrumentos do
chamado “conjunto” de capoeira Angola34.
Ainda sobre a música, podemos destacar algumas características relevantes, tais quais:
ausência de instrumentos harmônicos, presença de padrões rítmicos, tanto no berimbau quanto
nos instrumentos de percussão, sendo essa última uma característica de manifestações culturais
que se utilizam da memória e da oralidade para seu ensino; utilização de síncopes, algo peculiar
em músicas de influência africana; uso de canto responsorial onde um solista canta e o côro
responde; melodias repetitivas, consequência da razão mencionada nos instrumentos de
percussão. Todos esses elementos serão melhor abordados nos tópicos referentes aos toques e
cantos de capoeira Angola.
A partir de agora, será feito um maior detalhamento a respeito dos instrumentos musicais
que compõem a chamada “orquestra” da capoeira, ou seja, os instrumentos utilizados para se
acompanhar as melodias e ritmos que compõem a manifestação cultural em questão. Esses
podem variar de grupo para grupo e um estudo que abarque tal variação não é escopo deste
trabalho, portanto focaremos aqueles mais utilizados no grupo objeto de nossa pesquisa.
Corroborando com o que afirmamos acima e conforme Walderloir Rego, os
instrumentos musicais da capoeira angola são diversos e variam de acordo com o grupo. Até a
data da publicação de seu ensaio: Capoeira Angola – Ensaio etnográfico (1968), segundo o
autor, ainda não havia sido feita uma classificação correta dos instrumentos musicais utilizados
em tempos remotos e dos que ainda existiam até o momento. Porém, Rego (1968, p.70) além
de mencionar instrumentos musicais que não se vê nas rodas de capoeiras contemporâneas,
menciona alguns que parecem fazer parte desta manifestação já a algum tempo:
34
A fala do mestre nos remete à rivalidade entre esses dois estilos de capoeira, pois nota-se uma valorização da
capoeira de angola – prática da qual faz parte – sobre a regional, entretanto, não faz parte dos objetivos desse
trabalho entrar em tal discussão.
68
Dournon, in Myers (1992, p.260 apud Gallo, 2012) ao falar sobre a classificação
organológica de alguns instrumentos, apresenta uma descrição que engloba alguns dos
instrumentos utilizados na “orquestra” musical da capoeira. Para tanto, a autora se utiliza do
sistema criado pelo etnomusicólogos austríaco Erich Von Hornbostel e o musicólogo alemão
Curt Sachs que deram origem ao sistema de classificação Hornbostel & Sachs 35. Em sua
classificação, a maioria dos instrumentos que integram a capoeira são denominados de
idiofônicos. Sobre estes:
35
De acordo com Ballesté (2012, p.5-6): Desde o século III a.c há registros de sistemas de classificação de
instrumentos musicais. O mesmo ocorreu na índia no século IV e só a partir do século XVII foram publicadas as
primeiras obras a respeito do tema, com destaque para os trabalhos de Michael Praetorius (1618-1619), Marin
Mersenne (1636), e os trabalhos de Victor-Charles Mahillon de 1874, esse último que deu as bases para os
trabalhos que viriam a ser o sistema Hornbostel & Sachs.
36
Na foto que disponibilizamos não se percebe as dimensões distintas dos berimbaus. No entanto, mais adiante no
trabalho é apresentada uma nova foto onde tais diferenças é melhor percebida.
69
3.3.1. O berimbau
37
Na figura não dá para se perceber a diferença entre os três berimbaus, porém, a distinção entre esses se dá
em função de suas dimensões, tanto na vara que compõe o “corpo” do instrumento quanto na cabaça, como
será exposto mais adiante.
38
O treinel é um professor de capoeira que está abaixo dos contramestres e mestres na hierarquia da capoeira.
70
Gallo (2012, p.47 apud Mukuna,1979, p.138) detalha um pouco mais sobre os arcos
africanos que deram origem ao berimbau, também menciona a diversidade de formas de se tocar
estes instrumentos, além de nos trazer a curiosa informação de que o berimbau, como o
conhecemos na capoeira, não seria africano, mas, de alguma forma, teria se inspirado neste.
Segundo o autor:
[...] estes arcos africanos são encontrados em muitas variações regionais. Dependendo
do tamanho, podem ser tocados com a extremidade apoiada ao chão, pode ser usada
a boca como ressoador, pode ser tocado coletivamente na horizontal, pode ser usada
uma cabaça como ressoador fixo. Esta última variação é uma forma primitiva do arco
que originou o berimbau. Segundo Mukuna, “o berimbau, como se conhece no Brasil,
não veio da África, mas extraiu seu modelo dos vários arcos musicais populares na
área banta, onde a escravidão foi praticada.
nordeste do Brasil, observou essas festas e fez uma síntese descritiva, incluindo alguns
instrumentos musicais, dentro eles o berimbau, conforme se vê nessa passagem:
__“Os negros livres também dançavam, mas se limitavam a pedir licença e sua festa
decorria diante de uma das suas choupanas. As danças lembravam as dos negros
africanos. O círculo se fechava e o tocador de viola 39 sentava-se num dos cantos, e
começava uma simples toada, acompanhada por algumas canções favoritas, repetindo
o refrão, e frequentemente um dos versos era improvisado e continha alusões
obscenas”.
Fonte: Pinterest
39
Como dito, viola é um dos tipos de berimbau, no caso o de som mais agudo.
72
Uma observação relevante a ser mencionada é que a variação dos sons dos berimbaus
se dá através da diferença de tamanhos nas cabaças e vara. Por exemplo, o berimbau gunga, de
som mais grave, possui uma cabaça e vara bem maiores em relação ao berimbau viola, de som
agudo.
Um dos indicativos de que o berimbau “reina” na hierarquia da capoeira vem de uma de
suas funções, a qual, em certa medida, dita a dinâmica das rodas de capoeira. Porém Reis (1997,
p.201), ressalta que esse “domínio” do berimbau em relação aos outros instrumentos nem
sempre aconteceu:
[...] Hoje em dia não se concebe a capoeira sem o berimbau, o que não parecia ocorrer
no século passado quando, como pude observar nos documentos históricos que se
referem à capoeira do Rio de Janeiro, capoeirava-se geralmente ao som dos atabaques.
A respeito das dimensões e dos elementos que constituem o berimbau, uma das figuras
mais importantes da capoeira Angola e já mencionado inúmeras vezes anteriormente, enriquece
também esse tema. Mestre Pastinha (1964, p.29) detalha:
40
Também conhecida como biriba-branca é uma árvore nativa do Brasil e encontrada tanto na Mata Atlântica
quanto na Amazônia. Sua madeira é bastante utilizada para a fabricação do berimbau, principalmente por sua
durabilidade e manejo.
74
Sobre a realização sonora do berimbau, sua forma de tocar e ainda sobre objetos físicos
que auxiliam nesta realização, Mestre Pastinha (1964, p.29) detalha:
3.3.2. O caxixi
que se faz ao arame com a baqueta, com a mão direita faz com que o caxixi realize suas
sonoridades. Sobre esta ótica o mestre estaria correto, entretanto, há momentos em que o caxixi
realiza sons através de movimentos da mão direita independentemente da batida da vareta no
arame, o que nos leva a considerar que tratar-se de dois instrumentos distintos, novamente
destacamos a importância, já citada por Cardoso (2016), de não se aceitar as falas êmicas como
dogmas.
A respeito da história do caxixi, Mukuna (1979, p.161 apud Gallo 2012, p.47) detalha a
hipótese de que esse instrumento possa ter vindo da região africana do Congo:
[...] O caxixi, na sua região de origem, é conhecido como dikasá e tem valor ético
particular na cultura do Congo, associado a cerimônias de iniciação que marcam o
ritmo de vida da sociedade e invocam o “colégio” dos espíritos protetores da
sociedade e suas forças vitais, nas quais tem a função de fornecer o padrão rítmico
básico, além de uma função extramusical, também é parte dos adereços cerimoniais.
A seguir, Gallo (2012, p.36) apresenta um panorama resumido sobre esse instrumento,
apontando sua inserção na cultura brasileira através dos africanos:
É um chocalho feito de vime, em formato cônico. Possui contas dentro que ao ser
chacoalhado produz seu som característico. Tradicionalmente acompanha o berimbau
e, com o passar do tempo passou a ser utilizado em pares (um agudo e outro grave),
possibilitando diversas combinações rítmicas, inclusive polirritmias. O caxixi
utilizado desta forma é aplicado em diferentes ritmos brasileiros, principalmente os
de origem africana.
A mão direita segura a vareta com os dedos polegar, indicador e médio, restando os
dedos mínimo e anelar para manter fixo por intermédio de uma pequenina alça, o
Caxixi, uma delicada cestinha de vime com sementes secas em seu interior,
funcionando, pelos movimentos da mão como um pequenino chocalho. A caixa de
ressonância, formada por uma cabaça, aumenta e diminui a intensidade do som
afastando ou aplicando contra o abdômen a abertura da mesma.
3.3.3. O pandeiro
Fonte: Pinterest.
[...] Subirá, estudando a presença da música entre os povos hindus, inclui o pandeiro
como um dos antiquíssimos instrumentos musicais da velha Índia. Os hebreus dele
faziam bastante uso, sobretudo em cerimônias religiosas. Penetrou na Idade Média,
impôs sua presença e na península ibérica se instalou em definitivo com a invasão
árabe, sendo usado com frequência em bodas, casamentos e cerimônias religiosas.
O mesmo autor, prossegue nos trazendo mais informações gerais a respeito deste
instrumento em séculos passados (1968, p.79):
Sobre a entrada deste instrumento no Brasil, suas origens e sua disseminação, Rego
(1968, p.81) relata,
Sobre as possibilidades sonoras no que diz respeito ao pandeiro e que esse instrumento
apresenta na “orquestra” da capoeira angola, Larraín (2005, p.57-58) descreve,
O mesmo autor ainda detalha um pouco mais sobre a sonoridade desse instrumento.
Larraín (2005, p.62) acrescenta,
Repare que o autor não menciona notas definidas, mas, genericamente, menciona
frequências baixas e agudas. Tal fato se dá por esse instrumento não apresentar alturas
definidas.
A seguir serão demonstrados alguns fotogramas apresentando alguns recursos obtidos
ao pandeiro. Os fotogramas foram extraídos do canal do Youtube: Só Ritmos (2016) onde são
detalhados diversos recursos em diferentes momentos do vídeo. Abaixo, destacamos apenas
aqueles que dizem respeito à sua realização em nosso objeto de pesquisa:
41
Idiofones são os instrumentos em que a vibração se dá pelo próprio corpo do instrumento. Já os membranofones
são os instrumentos em que o som é produzido por meio da vibração de uma membrana esticada em algum suporte.
Para mais detalhes, ver Ballesté 2012.
81
3.3.4. O atabaque
Uma descrição a respeito das características físicas desse instrumento e um pouco sobre
a sua execução é detalhado por Rocca (1986, p.18),
[...] é uma espécie de tambor afunilado. Tem o feitio de uma estreita barrica ou o feitio
de um tambor comprido e cônico, pode ainda ter a forma cilíndrica. Leva uma pele
esticada em uma das bocas (na mais larga dos afunilados) onde é tocado com as mãos.
Em alguns toques a mão esquerda apenas funciona com respostas discretas, aos toques
da mão direita, para preencher o sentido da pulsação rítmica. Em outros, toca com a
mesma intensidade da mão direita, completando os toques principais.
Lody e Sá (1989, p.23 apud Cardoso 2006, p.53) também apresenta uma descrição física
a respeito do instrumento e de sua construção:
Santo D.Fernando.
Ainda a respeito das origens históricas deste instrumento, Rego (1968, p.84) acrescenta,
42
A depender do músico, essa manulação pode ser invertida.
84
3.3.4. O Agogô
3.3.5.O reco-reco
Stasi (2011, p.19) apresenta uma descrição que nos traz mais informações para
complementar a citação anterior,
Os reco-recos estão entre os mais antigos instrumentos fabricados pelo homem (Idade
da Pedra/Paleolítico: cerca de 15 mil anos atrás), tendo sido usados em todos os
43
Sobre certa ótica, samba pode ser entendido como um nome genérico onde se encontra algumas subdivisões,
tais como samba partido-alto, samba canção, samba de roda, entre outros.
44
Na cultura popular, muitas vezes, o mesmo nome designa objetos distintos, o que parece ser o caso aqui, pois
“ganzá”, correntemente, refere-se a outro instrumento.
87
Sá (2013, p.1) traz uma apresentação descritiva que reforça o que foi dito anteriormente
e, acrescenta a classificação deste instrumento:
O som do reco-reco se assemelha ao som produzido por uma serra, com uma
intensidade menor, já que a raspagem acontece entre dois pedaços de madeira. Para
imaginar a sua sonoridade foneticamente podemos utilizar as letras “cr” estendendo a
sonoridade do “r” de acordo com o tempo que demore a raspagem.
3.5. Os Toques
Uma das características mais marcantes da música da Capoeira Angola são os toques do
Berimbau. Sobre esse tema tão importante para a roda de capoeira angola, PASTINHA, (1964,
pag.32) detalha abordando também sobre características do ritmo e andamento:
conhecidos, o toque de São Bento, muito usado para o início do ‘’jogo’’ é denominado
de São Bento grande, quando o ritmo é lento e São Bento pequeno, quando o ritmo é
rápido, obrigando os capoeiristas a executarem os movimentos do “jogo’’ com maior
velocidade. O toque de Angola, também usado para início de ‘’jogo’’ pode ser lento
ou rápido. Ainda, o toque de Santa Maria, o toque de cavalaria, este, em épocas
remotas servia de aviso aos capoeiristas, da aproximação da cavalaria da polícia
quando a capoeira era objeto de severa repressão.
[...] Há também o toque de Santa Maria de Angola (cujo ‘’apelido’’ é Panha laranja
no chão tico-tico): o jogo correspondente a esse toque desenvolve-se, em geral, em
apresentações realizadas na rua ou nas academias em ocasiões festivas, pois exige a
participação do público.
Como apresentado no capítulo 1, que trata do gesto de uma forma geral, gesto enquanto
conceito é polissêmico, portanto, é interessante que, para que consigamos uma melhor
compreensão desse, o delimitemos em nosso campo de estudo - a Capoeira Angola, mais
especificamente no grupo FICA. Também sobre o mesmo propósito, necessário se faz que
elaboremos uma divisão do mesmo em categorias.
Mesmo após tal demarcação e cisões, a tarefa, ainda assim, mostrar-se-á ingrata e
incompleta devido à riqueza de detalhes que podemos observar na manifestação em questão.
Destarte, dentro das categorias que levantaremos não pretendemos esgotar o assunto, mas
apresentarmos exemplos que, esperamos, possam servir de amostragem para um entendimento
mais holístico do fenômeno.
Antes, porém, de adentrarmos no cerne da dissertação, uma breve apresentação da
fundação em questão se faz necessária para que possamos tomar um pouco de conhecimento
sobre o local de onde retiramos a maioria de nossas informações da pesquisa de campo.
45
Jurandir Francisco do Nascimento. Nascimento: 28/12/1960. Natural do Rio de Janeiro. Pratica capoeira desde
os 9 anos de idade e teve a graduação de mestre de capoeira em Duque de Caxias. (Ver IPHAN)
90
46
Acreditamos que tal atribuição seja a um estilo de capoeira que tem surgido nas últimas décadas e não prioriza
a angola ou a regional em sua prática, mesclando movimentos de ambas.
47
Para mais informações sobre o grupo FICA, ver Blog da FICA-BH.
93
4.1 Os gestos
Categorizar algo significa olhar o objeto sob uma certa ótica trazendo à tona
determinadas características comuns e/ou diferenciais. Nessa perspectiva, o mesmo objeto pode
ser categorizado de formas distintas na medida em que se elenque determinadas características
em detrimento de outras. Sendo assim, nossa classificação tem como base a escolha de certas
94
peculiaridades e não se espera que seja a última nem a mais completa, ao contrário, outros
olhares certamente trarão contribuições completando ou tomando caminhos distintos daqueles
apresentados no presente capítulo.
Dentre os tipos de gestos catalogados nesta presente pesquisa, constam: gestos
simbólicos, corporais, linguísticos e gestos musicais. No entanto, devido ao caráter da
manifestação em questão a qual, devido a ser uma manifestação popular que tem a tendência a
ser dinâmica, e ao tipo de pesquisa que se enquadra o presente trabalho, a qual tem um tempo
limite para se finalizar, não temos a pretensão de esgotar o assunto, mas levantar uma certa
amostragem para colaborar com pesquisas futuras.
Também vale ressaltar que a inclusão de um gesto em uma categoria não a retira
necessariamente de outra, muitas vezes estando essa, sobre certa ótica, em ambas, portanto,
gerando elementos que se encontram em posições híbridas. No entanto, para facilitar sua
abordagem e seu entendimento acabamos por optar em situá-la naquela categoria na qual a
característica em questão fica mais evidenciada.
48
Ver: Mello, 2005; Ulfe, 2004; Domínguez Acosta, 2021; Carvalho, 1990; Marques, 2009; Turner, 1973.
49
The ritual symbol is "the smallest unit of ritual which still retains the specific properties of ritual
behavior...the ultimate unit of specific structure in a ritual context"(Turner, 1973, p.1100).
95
50
A ritual is a stereotyped sequence of activities involving gestures, words, and objects, performed in a
sequestered place, and designed to influence preternatural entities or forces on bchalf of the actors' goals
and interests. Rituais may be seasonal, hallowing a cui turally defined moment of change in the
climatic cycle or the inauguration of an activity such as planting, harvesting, or moving from winter to
summer pasture; or they may be contingent, held in response to an individual or collective crisis. Contingent
rituais may be further subdivided into life-crisis ceremonies, which are performed at birth, puberty, marriage,
death, and so on to demarcate the passage from one phase to another in the individual's life-cycle, and rituais
of affliction, which are performed to placate or exorcise preternatural beings or forces believed to have
afflicted villagers with illness, bad luck, gynecological troubles, severe physical injuries, and the like. Other
classes of rituais include divinatory rituais; ceremonies performed by political authorities to ensure the health
and fertility of human beings, animais, and crops in their territories; initiation into priesthoods devoted to
certain deities, into religious associations, or into secret societies; and those accompanying the daily offering
of food and libations to deities or ancestral spirits or both.
96
Sobre o “simbólico”, Luc Charles Dominique 51 (2001, p.4) traz para a discussão
questões histórico/religiosas onde podemos observar a questão hierárquica, algo que, como
dissemos, está presente na prática da capoeira. Segundo o autor:
Como é possível constatar nas citações anteriores, muitos dos símbolos presentes em
rituais são manifestados em prol de alguma religião. A capoeira angola não pode ser
literalmente enquadrada como religião, no entanto, sobre certa ótica, a crença no intangível
através do simbolismo se encontra tanto em suas práticas que permitimo-nos atribuir uma certa
religiosidade a essa manifestação.
51
Parmi toutes ces oppositions symboliques médiévales, celle dont la sémantique symbolique est la plus « chargée
» est celle du haut et du bas. Elle possède à la fois des connotations cosmogoniques, sociales et morales. Mais, alors
que dans ces divers champs, c’est le haut qui prédomine au détriment du bas, le discours chrétien des Pères de l’Eglise,
relayé par celui de l’ère médiévale et, plus tard, de l’âge baroque, va introduire une autre connotation, primordiale,
qui est celle de la morale religieuse, à la polarité opposée. D’un côté l’excès, l’orgueil (le premier des sept péchés
capitaux) est associé au « haut » corporel mais aussi sonore; de l’autre, l’humilité du chrétien devant son Créateur
reflèteun comportement idéalement « bas ». Ce thème va s’exprimer déjà chez saint Augustin, pour se retrouver plus
tard par exemple chez Raoul Ardent (fin XIIe siècle), ou chez saint Bernard et Hugues de Saint-Victor. Ce dernier,
dans le De institutione novitiorum, s’adresse aux novices pour leur indiquer les étapes qui jalonnent leur route
d’aspirants à la condition de bonitas, condition qui leur accordera la béatitude en Dieu : ils devront, entre autres, « user
de gestes modestes, mesurés et humbles pour être agréables, se servir de sons bas et suaves pour ne pas effrayer, de
significations vraies mais adoucies pour que la vérité ne soit pas trop amère. »
97
A performance ritual da roda de capoeira angola consiste na roda, que representa por
sua vez ‘’ o mundo velho de Deus (o universo). Para descrevê-la é necessário que seja
feita uma abordagem que contemple desde a questão da musicalidade, passando pela
questão da corporeidade, hierarquia, valores morais, entre outras. Considerando
sempre os inúmeros pares de oposição expressos, tais como, movimentos de
resistência versus movimento de submissão, jogo de cima e jogo embaixo, jogo de
dentro e jogo de fora, alegria e dor (tristeza), luta e diversão, luta e opressão, lealdade
e falsidade, mão versus pé, etc. A roda apresenta um panorama do universo simbólico
da capoeira.
Percebe-se na fala do autor todo esse universo de significados subjacentes aos atos
físicos os quais, por sua vez, muitas vezes, passam desapercebidos aos olhos de um leigo. No
artigo “Narrativas do corpo e gestualidade na capoeira Angola” (Souza & Dias 2010) vê-se
mais uma citação sobre o tema:
Figura 31: Fonogramas retirados do vídeo mencionado e que mostra o passo a passo até o
apanhar do dinheiro, representado pelo saco plástico, utilizando a boca.
Repare que o gesto dos “capoeiras” são impulsionados pelo gesto linguístico, o qual
falaremos um pouco mais nas páginas seguintes.
As informações levantadas até o momento no que diz respeito às relações entre símbolo
e ritual se aplicam ao jogo de capoeira tanto de maneira geral quanto na FICA, o que era de se
esperar pois, como dito, a fundação tem muita representatividade no âmbito dessa manifestação.
Mas as questões simbólicas nessa fundação vão além da roda de capoeira, propriamente dita. O
espaço conta inclusive com diversos ícones, símbolos ou signos que representam a
ancestralidade africana, a religiosidade e outros elementos associativos.
No espaço, como poderemos ver a seguir nas figuras 52, 53 e 54, constam muitos
quadros com referências a divindades do candomblé, bandeiras de países africanos, animais
simbólicos, plantas, referências à cultura afro-brasileira em geral, entre outros.
98
52
De acordo com a mitologia Xangô é um poderoso Iansã está ligada ao mundo dos mortos. (Ver Brasil
orixá guerreiro que domina os raios e os trovões. Escola-UOL)
(Ver Brasil Escola-UOL)
54
Segundo a mitologia, Iemanjá nasceu do
53
De acordo com a mitologia, Iansã é tão poderosa casamento do céu (Obatalá) e da terra (Odudua).
quanto o seu marido Xangô e é uma deusa que Passou a representar as águas. (Ver Brasil Escola-
percorreu vários reinos em busca da sabedoria de UOL)
outros orixás. Ainda de acordo com a mitologia,
99
Como dito no primeiro capítulo, tomamos como premissa que o gesto na capoeira angola
são expressões que resultam como causa ou efeito do sonoro presente nessa manifestação.
Sendo assim os gestos linguísticos também são muito comuns no universo da capoeira angola.
A falta de entendimento da linguagem específica do meio, inclusive, pode ocasionar mal
entendidos e constrangimentos desnecessários. Assim como outros casos já mostrados em
outras categorias de gesto, os gestos linguísticos, por vezes também podem ser enquadrados
como simbólicos, por exemplo.
100
Em seu artigo Capoeira angola, música e acontecimento, Marco Antônio Saretta Poglia
(2018, p.3) apresenta um diálogo do mestre Cobra Mansa que trata da importância de se
preservar o sentido correto dos termos no universo da capoeira angola:
Um dia eu tava na roda, aí uma menina começou a cantar (...). Eu joguei um jogo, aí
chamei uma outra pessoa pra jogar, aí ela começou a cantar Ai, ai, aidê/joga bonito
que eu quero ver [cantando]. Eu falei:
–Mas você falou! (risos). Você mandou eu jogar bonito que você quer ver...
Aí, coitada, ela ficou toda embananada. Aí eu falei: “eu tô brincando. Mas daí você
toma cuidado, porque se o mestre tá na roda e você chega pra ele e manda ele jogar
bonito, é porque ele tá jogando feio”. Mas a pessoa não tinha ideia do efeito que ia
ser.
No mesmo artigo, Poglia (2018, p.4) traz um novo relato em que aborda as questões
simbólicas ou até mesmo místicas presentes na filosofia de muitos mestres da capoeira, no caso,
o mestre Renê:
[...] Mestre Renê traz muito presente nas suas aulas e oficinas de capoeira a ideia de
que o capoeirista precisa “ver o invisível”, ou como ouvi de seu mestre, Paulo dos
Anjos, “ter o terceiro olho, enxergar com o olho do capoeirista”. O desenvolvimento
dessa sensibilidade, que expressa também a malícia da capoeira, vem com o tempo,
através da vivência nesta arte e que pode ser fundamental para se compreender a
intencionalidade de alguns cantos.
Podemos dizer que o exemplo mostrado no diálogo acima se enquadra como um gesto
linguístico/simbólico, o qual, como mencionamos carrega um significado latente.
É o caso do que denominamos gestos linguísticos encontrados em sua imensa maioria
nos cantos da capoeira. O repertório da música de capoeira é muito vasto e neste se encontram
uma série de gestos que podem, muitas vezes serem considerados tanto linguísticos quanto
simbólicos. Nessa tradição encontramos canções transmitidas através de mais de um século via
tradição oral e também, em tempos mais recentes, através de gravações. Muitas das cantigas
são de domínio público e não se conhece a autoria enquanto outras a composição é assinalada.
Entre os gêneros, constam ladainhas, corridos, louvações, entre outros55.
As letras em geral abordam temas caros ao universo da capoeira Angola, como a
ancestralidade africana, a hierarquia e exaltação ao mestre, a religiosidade, histórias específicas
55
Uma vez que extrapola os objetivos deste trabalho, não abordaremos os tipos de gêneros poéticos/musicais
pertencentes ao universo cantado da capoeira.
101
[...] O repertório musical da capoeira angola traz em seus cantos mais tradicionais
muitas referências a eventos históricos a ela associados (sua origem, a escravidão e a
perseguição da polícia) e a situações cotidianas da Bahia ou outras regiões do Brasil,
e também à África e à realidade do povo negro. Seus versos contêm ainda comentários
sobre situações de jogo recorrentes e expressam traços fundamentais da filosofia da
capoeira – o respeito à hierarquia, a luta do fraco contra o forte, a ambivalência
presente nos jogos.
Na sequência da citação, Poglia (2018, p.2) faz uma análise mais detalhada no que ele
denomina “códigos” internos presentes nas letras dos cânticos e que sugerem situações das mais
diversas. Interessante ressaltar na fala do autor que este exemplifica a relação gestual presente
nas atitudes do público ao interagir em resposta à letra da música. Ademais, também explicita
a relação do gesto linguístico como causador de atitudes que ocorrerão ao longo de um jogo.
[...] É importante para o bom cantador dominar um repertório amplo e variado, pois
este deverá utilizar a música para interagir com o público, narrar alguma situação
inusitada ou intervir também nos jogos sempre que julgar persistente. Isso pode ser
feito tanto através do canto de versos como vem jogar mais eu, mano meu, que instaura
um clima mais amistoso entre os jogadores, quanto de outros mais incisivos, como
vou bater, quero ver cair, uma solicitação explícita para um jogo mais combativo,
com aplicação de rasteiras. Ou ainda pela escolha de músicas tradicionalmente
associadas a um determinado tipo de jogo ou cujo ritmo induza a situações previstas
(um jogo mais manhoso, um jogo mais ofensivo, etc).
[...] De um ponto de vista amplo, a cantiga de capoeira tanto pode ser o enaltecimento
de um capoeirista que se tornou herói pelas bravuras que fez quando em vida, como
pode narrar fatos da vida cotidiana, usos, costumes, episódios históricos, a vida e a
sociedade na época da colonização, o negro livre e o escravo na senzala, na praça e na
comunidade social. Sua atuação na religião, no folclore e na tradição. Louvam-se os
mestres de capoeira e evocam-se as terras de África de onde procederam. Fenômeno
importante a se observar em boa parte das cantigas de capoeira é o diálogo. Não é o
diálogo normal entre duas pessoas presentes, mas o entre uma pessoa humana presente
e outra pessoa ou coisa ausente, onde as indagações são feitas e respondidas por uma
só pessoa. Esse tipo de diálogo existente no canto dos negros foi estudado por Ortiz,
que o examinou sob os múltiplos aspectos não só em Cuba como em outros países
afro-americanos.
102
Oi yayá mandô dá
Uma vorta só
ô qui vorta danada
Uma vorta só
ô qui leva ou me vorta
Uma vorta só
ôi qui vorta danada
Uma vorta só
Ôi yayá mandô dá.
A seguir serão mostradas outras letras de cantigas bastante presentes nas rodas de
capoeira Angola em seus variados gêneros. Uma observação relevante é o fato de que uma
mesma cantiga possui letras diferentes em diferentes gravações disponíveis ou quando cantadas
em diferentes grupos. Uma das hipóteses para tal ocorrido pode ser o fato já mencionado
anteriormente de que muitas dessas canções são de domínio público e passadas via tradição oral
ao longo dos anos, o que viria a explicar as alterações nas letras de uma mesma música. Para
manter uma certa referência, as letras mencionadas a seguir foram extraídas da apostila de
musicalização do Grupo Candeia de Capoeira Angola (2021).
56
As cantigas selecionadas pelo autor não possuem título, somente numeração. Foram escolhidas as de número
22, 24, 25 e 27 e foi mantida a linguagem informal presente na fonte original.
103
No exemplo mostrado acima, o termo “novo” tem o sentido de estruturado, firme, e que
com esses recursos é mais fortalecedor para se enfrentar as dificuldades da vida.
Outro tema bastante abordado no universo das cantigas de capoeira Angola é o universo
cotidiano, muitas vezes retratado de forma simples e/ou bucólico. A ladainha “Eu já vivo
enjoado”, de Mestre Patinha e disponível em Grupo Candeia (2021, p.21) é uma amostra dessa
104
informação. A referida obra, inclusive foi utilizada por Caetano Veloso que utilizou alguns
trechos de sua letra na música Triste Bahia, no álbum Transa de 1972.
Eu já vivo
(Mestre Pastinha)
Eu já vivo enjoado
De viver aqui na terra
Oh mamãe eu vou pra lua
Falei com minha mulher
Ela então me respondeu
Nós vamos se Deus quiser
Vamos fazer um ranchinho
Todo feito de sapé
Amanhã às 7:00 horas
Nós vamos tomar café
Eu que nunca acreditei
Não posso me conformar
Que a lua venha a terra
Que a terra vai a luar
Tudo isso é conversa
Pra comer sem trabalhar
O senhor amigo meu
Veja bem o meu cantar
Que é dono não se ciuma
Quem não é quer ciumar
Iê Galo Cantou
Dentro do mesmo tema abordado anteriormente, ou seja, localidades descritas nas letras,
há uma exaltação à Bahia, na obra “Bahia, nossa Bahia”, de Mestre Pastinha, disponível em
Grupo Candeia (2021, p.14):
Bahia, nossa Bahia
(Mestre Pastinha)
Iê!
Bahia minha Bahia
Capital é Salvador
Quem não conhece a Capoeira
Não pode dar seu valor
Capoeira veio da África
Africanos quem nos trouxe
Todos podem aprender
105
Como é possível observar, os temas são vastos e muitas das canções se renovam, apesar
de existirem as “canções” tradicionais dos mestres antigos que são exaltadas em quase todas as
rodas de capoeira Angola.
Como pôde ser observado ao longo deste tópico, o universo simbólico está presente em
quase tudo no que se refere ao universo musical, porém observo que isso tem uma presença
maior ainda quando se trata de manifestações rituais, onde a música é mais um personagem de
um “teatro” onde todos os elementos são protagonistas. Não se pode ignorar também que cada
uma dessas letras pode ser considerada gestos linguísticos pois, por vezes, levam a
determinadas atitudes e, outras, ao contrário, serão consequência de determinados atos. Ainda
há de se considerar as reações individuais de cada um perante ao significado que atribuem a
tais letras em função de como essas são ressignificadas em seu universo cognitivo o que, apesar
de relevante, seria inviável de se trabalhar aqui.
Todas as informações que dizem respeito aos gestos linguísticos do universo da capoeira
angola, encontram ressonância na Fundação Internacional de Capoeira Angola (FICA-BH) e
são utilizados de alguma forma, salvo algumas modificações, como é o caso de outras letras
presentes no repertório, mas que mantém o mesmo sentido das expostas nesse tópico referente
ao tema em questão.
Os gestos corporais são de suma importância no ritual de capoeira angola, assim como
em sua roda. Os golpes, a ginga, os movimentos que ocasionarão nos toques dos instrumentos
são todos elementos que fazem parte do que é classificado como gestos corporais, resultados
ou consequências do sonoro musical.
É importante ressaltar que, como dito nos tópicos anteriores, muitas vezes um gesto
pode ser enquadrado em mais de uma categoria, por exemplo, um gesto pode ser corporal e
simbólico ao mesmo tempo, como foi exemplificado, ou algum gesto musical que também pode
ser classificado como corporal, como será mostrado ao longo deste tópico.
A seguir serão apresentados alguns gestos simbólicos/corporais presentes na roda de
capoeira angola.
Gestos de cumprimentos antes e após o jogo de capoeira.
106
Figura 39: Espécie de transe ou oração, algo muito comum entre os participantes da roda de
capoeira Angola.
Luís Vitor Castro Junior (2012, p. 123) descreve essa saudação em seu texto: A arte-
capoeira nas imagens do “Capeta Carybé”, trazendo um complemento com a poética descrição
de Miguel Serres:
Dos gestos corporais na capoeira Angola, os mais explícitos são os golpes. Entre os mais
comuns constam: rabo de arraia, aú, cabeçada, meia lua de frente, martelo, benção, rasteira,
rolê, queda de rim, tesoura de frente, negativa, entre outros.
Medeiros (2012, p.103) corrobora com algumas informações já apresentadas
anteriormente e acrescenta outras sobre o tema em questão:
[...] Quanto aos golpes, esses, mais que os toques, uns desapareceram, outros
sofreram transformações substanciais e novos apareceram totalmente desvinculados
do processo de formação, que originou os golpes primitivos, como é o caso dos golpes
da chamada capoeira regional que, usando de elementos importados, conseguiu
perfazer um todo de 52 golpes. À semelhança dos toques, há um certo número de
golpes, que são comuns a todos os capoeiras, como rabo de arraia, aú, armada,
rasteira, jogo de dentro, cabeçada, meia lua, em suas várias modalidades, de frente,
costa, compasso, baixa, média, alta e mais alguns poucos golpes.
Como forma de ilustrar alguns dos principais golpes, as ilustrações a seguir foram
retiradas do Glossário Terminológico ilustrado de Movimentos e golpes de Capoeira, de Eliane
Dantas dos Anjos (2002):
Figura 40: Armada
Não nos cabe aqui descrevê-los profundamente uma a um. Mas cabe-nos refletir
que esses golpes nem sempre são reflexos da música. Em sua maioria, se efetuam muito
mais em função do que é apresentado pelo seu “oponente”, ou seja, a escolha do golpe
111
por parte de um jogador está, em certa medida, condicionada ao que o outro faz. Trata-se
de um “diálogo” onde um desenvolve um gesto corporal em resposta do que o outro
apresentou. Porém, pode-se dizer que a velocidade do golpe, essa sim, está, em certa
medida, atrelada ao andamento ditado pela música. Sendo assim, os gestos corporais
presentes na roda de capoeira angola seriam “perguntas e respostas” que se materializam
tendo ao fundo a música, sendo essa a condutora do andar dessa “conversa”. No caso das
“perguntas e respostas” presentes nos gestos do corpo, Mestre Jurandir também se utiliza
da mesma analogia (FICA-BH) chamando-os de “diálogos corporais”.
Medeiros (2012, p.103) acrescenta mais informações sobre o que seriam esses
“diálogos corporais”:
Faz-se necessário pontuar que um gesto dos mais peculiares na prática de golpes
de capoeira angola é que os mesmos são simulados, ao contrário de outras lutas. Medeiros
(2012, p.103) esclarece: “De maneira geral o capoeirista prefere mostrar sua destreza
“marcando” o golpe no companheiro, sem, no entanto, completá-lo. Se o seu companheiro
não pode evitar um ataque lento, não existe razão para utilizar um golpe mais rápido”.
Foram catalogados também nesta pesquisa, gestos corporais que não podem ser
utilizados ou devem ser evitados no ritual da roda de capoeira angola. Por exemplo, não
é aconselhável tocar algum instrumento na roda de capoeira com as pernas cruzadas.
Segundo Mestre Jurandir, da FICA-BH, a explicação se dá pelo fato do “cruzar de pernas”
estar associado ao cruzamento de energias, algo incompatível com a filosofia do ritual de
capoeira angola. A própria configuração da roda em forma de círculo, de acordo com o
referido mestre se dá com o sentido de circular energias, de algo aberto. Pelo mesmo
motivo, de acordo com Mestre Jurandir, não se deve bater palmas durante a execução do
conjunto musical de capoeira.
Como dito, o a FICA é representativa da capoeira angola de maneira geral e todos
os gestos corporais mencionados neste tópico são encontrados tanto na Fundação em
questão quanto em outras rodas de capoeira angola. O gesto corporal/simbólico, por
exemplo, já mostrado anteriormente na categoria de gestos simbólicos (cumprimento dos
112
participantes ao final da roda, p.113), e os golpes utilizados durante o jogo. A seguir serão
mostradas algumas imagens catalogadas durante uma das rodas na FICA-BH.
Figura 52: Golpe de capoeira na FICA-BH
A citação acima nos leva a uma categoria de gestos que pode ser enquadrado como
sendo musical, corporal e simbólico ao mesmo tempo.
Obviamente a execução de um instrumento, inevitavelmente, tem gestos. Destarte,
impregnados de gestos, estão os toques de berimbau, que “regem” a roda. Sobre a possível
origem de alguns toques, Rego (1968, p.62) faz uma importante contribuição após ter
feito uma catalogação dos principais toques de capoeira à época:
[...] há uma constância nos toques Angola, São Bento Grande, São Bento
Pequeno, Cavalaria, Iuna e Benguela (ver figuras abaixo). Como já tivemos a
oportunidade de dizer, os toques divergentes dos comuns raramente constituem
um toque totalmente diferente dos demais. Via de regra, é um já existente,
apenas com outro rótulo ou então uma ligeira inovação, introduzida pelo
tocador, fazendo com que se dê um toque novo. A denominação de alguns
toques da capoeira está ligada a determinados povos ou regiões africanas pura
e simplesmente pelo nome, ou são toques litúrgicos ou profanos de que a
capoeira se valeu, como Benguela, Angola, Ijexá e Gêge, isso sem se falar das
combinações Angola em Gêge e Gêge-Ketu. Antigamente, segundo
capoeiristas idosos, o toque chamado na capoeira de Gêge era o toque dos
povos gêges (Dahomey) chamado bravun, toque litúrgico, específico do
Oxumaré, o Arco-Íris e que na capoeira era tocado em atabaque, conforme a
ilustração de capoeira existente em Rugendas.
114
57
Transcrição retirada da apostila musical do Grupo Candeia. A apostila em questão também apresenta
uma descrição das escolhas referentes à notação entre outros toques. No entanto, não vemos
necessidade de apresenta-las aqui.
115
era executado nas rodas para avisar sobre a presença da polícia que vinha reprimir as
rodas, narrativa também corrente no meio em questão.
Mas retomando a temática, como dito, inevitavelmente, a realização de um
instrumento requer um gesto, portanto, todo e qualquer sonoro realizado pelo instrumento
é decorrente disso e não teríamos tempo hábil para abordar todo o gestual gerado pelas
realizações sonoras do grupo instrumental da capoeira. No entanto, como ilustração,
descreveremos as principais formas gestuais de se tocar o berimbau.
- O toque do caxixi concomitantemente à vareta que toca o berimbau com a mão
direita.
- O canto responsarial (canto resposta).
- O uso de termos durante o canto como “Yê!”, que remete à ancestralidade
africana, muito presente no ritual de capoeira angola.
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