Antropologia e Religião
Antropologia e Religião
Antropologia e Religião
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 3
2. RELIGIÃO ............................................................................................................. 5
2.1 Conceituando Religião ................................................................................... 5
2.2.1 Conceito .................................................................................................. 7
2.2.2 Fundamentos ........................................................................................... 8
2.3 A Expressão Simbólica de Religião ............................................................. 11
3. Perspectivas Clássicas em Antropologia da REligião ......................................... 15
3.1 Antropologia da Religião - Marcel Mauss ..................................................... 15
3.2 Da Magia à Performance ............................................................................. 16
3.2.1 O Significado das Técnicas Corporais ................................................... 19
3.3 Figura 4: Claude Lévi-Strauss: linguagem primitiva versus a linguagem
moderna ................................................................................................................. 19
3.3.1 Performance e Religiosidade Contemporânea ...................................... 23
3.4 Hierarquia Corporal no Sistema Religioso Brasileiro ................................... 25
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 29
2
INTRODUÇÃO
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A civilização, como a entendemos hoje, ainda é bastante recente se
compararmos com os povos ancestrais que sobreviveram por milhares de anos
com o apoio dos mitos e dos vários ritos de nascimento, colheitas, iniciação,
morte e muitos outros.
Devido a isso, o estudo das religiões atrai antropólogos, filósofos e cientistas
que buscam compreender o comportamento humano e as sociedades como um todo.
O surgimento espontâneo das religiões em absolutamente todos os povos
indica, para muitos desses pesquisadores, uma necessidade de dar sentido ao
mundo, à comunidade, à realidade aterradora e à própria morte.
E mesmo hoje não existe nação que não tenha nas religiões (ou nos mitos) um
dos pilares culturais de sua formação. Então, de forma alguma as religiões são um
objeto de estudo superficial.
4
RELIGIÃO
Fonte: https://www.google.com.br/
o Conceituando Religião
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A Religião tem origem do latim re-ligare: unir ou re-unir. É um conjunto de
sistemas culturais e de crenças, além de visões de mundo, que estabelece os
símbolos que relacionam a humanidade com a espiritualidade e seus próprios valores
morais. Comunidade de pessoas unidas por uma fé, uma prática ou forma de culto.
Esta comunidade deve estar unida por uma busca de «o divino» e ser definida pela
sua maneira de enfrentar os problemas da vida humana. É por isso que na história
das religiões muito se diz sobre a experiência e contacto pessoal com o sagrado.
Um conceito elevado da dignidade do indivíduo, o conhecimento e
reconhecimento de algo chamado «sagrado» não são exclusivamente dos Cristãos,
mas são sim a essência de todas as religiões. Isto foi reconhecido pelo próprio
Concílio Vaticano II no seu documento Dignitatis Humanae respeitante à fé e pureza
religiosas.
Muitas religiões têm narrativas, símbolos, tradições e histórias sagradas que se
destinam a dar sentido à vida ou explicar a sua origem e do universo. As religiões
tendem a derivar a moralidade, a ética, as leis religiosas ou um estilo de vida preferido
de suas ideias sobre o cosmos e a natureza humana.
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Geertz define religião como “um sistema de símbolos que atua para estabelecer
poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através
da formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas
concepções com tal aura de fatualidade que as disposições e motivações parecem
singularmente realistas”.
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. LTC, 1989, pg. 105.
1.1.1 Conceito
Fonte: https://www.google.com.br/
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1.1.2 Fundamentos
Fonte: https://www.google.com.br/
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Teriam desenvolvido a crença em espíritos ou fantasmas, ou teriam feito uso
de magia como um meio de controlar o supernatural;
Teriam também feito o uso de adivinhação como um meio de descobrir
conhecimento oculto;
Ou ainda, buscariam os resultados de rituais tal como oração e sacrifício como
um meio de influenciar o resultado de vários eventos através de uma agência
sobrenatural, às vezes sob a forma de xamanismo ou culto aos antepassados.
Da mesma forma que Edward Tylor, Frazer concebeu a magia como uma
associação de ideias errôneas e, por este motivo, a classificou como “simpática”, ou
seja, como algo que estabelece entre as coisas relações que não existem.
Em 1912 Émile Durkheim publicou o livro “ As Formas Elementares da Vida
Religiosa”. Baseado no trabalho de Feuerbach, o sociólogo considerou a religião "uma
projeção dos valores sociais da sociedade", "um meio de fazer afirmações simbólicas
9
sobre a sociedade", "uma linguagem simbólica que faz afirmações sobre a ordem
social"; em suma, "religião é sociedade que se cultua a si mesma".
Clifford Geertz buscou compreender a religião como fato cultural. O
antropólogo norte-americano compreendia a cultura como um sistema de códigos
simbólicos, construídos pelo próprio processo de desenvolvimento social e
decodificados pelos membros que vivem neste sistema (tendo em vista que "a cultura
é pública porque seu significado o é". O homem, segundo Geertz, é um animal
amarrado a teias de significados que ele mesmo ajudou a tecer. Se cultura é uma teia
de significados, mediada por símbolos, portanto a religião é um sistema de símbolos.
Geertz investigou como os símbolos adequam as ações humanas à ordem
cósmica, à visão de mundo descrita pela religião. A religião seria a instância que
ajustaria as ações humanas a esta ordem cósmica, projetando esta ordem nas
próprias ações. O ritual, por sua vez, era compreendido por Geertz como um
comportamento consagrado, que reforça a ideia de que as concepções religiosas são
verdadeiras e as ações propostas, corretas. É no ritual que acontece a “transformação
idiossincrática”, a “fusão simbólica” entre o ethos e a visão de mundo.
De acordo com Clifford Geertz, religião é " um sistema de símbolos que atua
para estabelecer poderoso, penetrante, e modos de longa duração e motivações nos
homens por formulação de concepções de ordem geral da existência e vestindo
essas concepções com tal aura de factualidade que (5) os humores e motivações
parecem singularmente realistas" (Geertz 1966).
Talal Asad discute a elaboração de teorias que afirmam a especificidade da
religião frente a outras esferas sociais. De acordo com o autor, muitas das teorias
sobre religião partem de um modelo ocidental moderno, o qual imprime à religião um
caráter transhistórico e transcultural. Seu argumento é que “não pode haver uma
definição universal de religião, não apenas porque seus elementos constituintes e
suas relações são historicamente específicos, mas porque esta definição é ela mesma
o produto histórico de processos discursivos".
Neste sentido, propõe-se que a antropologia da religião assuma como sua
tarefa principal a explicitação das condições sociais de produção da religião,
descrevendo e analisando os processos sociais que configuram o que é religioso em
cada sociedade, ao invés de supor a existência de critérios cognitivos e universais
capazes de determinar o que é a religião. Para isso, os antropólogos devem lançar
10
mão da comparação como estratégia metodológica para demonstrar como as religiões
são produtos de configurações sociais específicas.
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Figura 4 – Símbolos da Religião
Fonte: https://www.google.com.br/
O símbolo cumpre sua função ao transmitir uma mensagem, mesmo que seu
significado escape à consciência, ou seja, modificado, camuflado, pois o símbolo, diz
Eliade, dirige-se ao ser humano integral e não apenas à sua inteligência.
A principal característica do símbolo é a simultaneidade de sentidos por ele
revelados, que podem inclusive ser compreendidos em qualquer cultura. Os símbolos
e as imagens têm valências universais porque são “aberturas para um mundo
transhistórico, conservando as culturas ‘abertas’. Ao mesmo tempo, apesar de serem
produtos do inconsciente, são depurados no processo histórico e cultural em que
estejam inseridos”.
A história, diz, pode fazer com que sejam acumuladas novas significações à
estrutura original do simbolismo, mas não a destrói. Ao tornarem-se símbolos, os
objetos “anulam seus limites concretos, deixam de ser fragmentos isolados para se
integrar num sistema, ou melhor, eles encarnam em si próprios, a despeito de sua
precariedade e do seu caráter fragmentário, todo o sistema em questão”. Diante
dessas considerações, é legítimo falar de uma “lógica dos símbolos, pois qualquer
que seja a sua natureza e o plano em que se manifestem, são sempre coerentes e
sistemáticos”.
Segundo Eliade, o pensamento simbólico precede a linguagem e a razão
discursiva, pois o símbolo revela certos aspectos da realidade que desafiam qualquer
outro meio de conhecimento. As imagens, os símbolos e os mitos têm o poder de
revelar verdades secretas do ser e de transportar o ser humano para o mundo
espiritual muito mais amplo. Em outro livro, intitulado O sagrado e o profano, o autor
12
estuda a situação do homem em um mundo saturado de valores religiosos e, por
exemplo, comenta os simbolismos originais: “Graças às fases da Lua – quer dizer, ao
seu ‘nascimento’, ‘morte’ e ‘ressurreição’ –, os homens tomaram consciência de seu
próprio modo de ser no Cosmos e de suas possibilidades de sobrevivência ou
renascimento.
Graças ao simbolismo lunar, o homem religioso conseguiu aproximar amplos
conjuntos de fatos, sem relação aparente entre si, e finalmente integrá-los num único
‘sistema’. É mesmo provável que a valorização religiosa dos ritmos lunares tenha
possibilitado a realização das primeiras grandes sínteses antropocósmicas dos
primitivos”.
Mircea Eliade elaborou uma morfologia do sagrado, constituindo, mediante o
método comparativo, modelos ou estruturas da experiência religiosa, buscando neles
suas características permanentes. A partir da oposição entre sagrado e profano, ele
comparou a experiência religiosa do Oriente e do mundo antigo à experiência profana
do Ocidente e do mundo moderno.
O sagrado, segundo Eliade, é o elemento central da religião. A distinção, para
ele, entre sagrado e profano, é uma distinção ontológica; o simbolismo religioso, um
monumento original de qualquer experiência religiosa profunda. A distinção entre
sagrado e profano implica numa distinção entre o homem religioso e não-religioso,
distintos, por sua vez, no que tange à percepção do tempo, como heterogêneo e
homogêneo respectivamente:
Eliade concebe que a percepção do tempo, como um meio homogêneo, linear,
e inexorável, é uma peculiaridade do homem moderno e não-religioso. O homem
arcaico ou religioso (homo religiosus), na comparação, percebe o tempo como
heterogêneo, isto é, como dividido entre o tempo profano (linear), e o tempo sagrado
(cíclico e retornável).
13
SAIBA MAIS:
14
PERSPECTIVAS CLÁSSICAS EM ANTROPOLOGIA DA RELIGIÃO
15
mentalidade primitiva, na França, e, por fim, os trabalhos posteriores sobre religião,
magia, totemismo e mito de Lévi-Strauss.
Em meio a esse quadro de reflexões sobre o fenômeno da religião é que Mauss
se destaca pela originalidade e tentativa de superação das antinomias de sua época.
Em outras palavras, é em meio a esse quadro que situamos a etnologia religiosa de
Mauss como das mais originais e, curiosamente, pouco explorada abordagem sobre
a dimensão simbólica, mágica e ritual da religião.
Mauss abriu a possibilidade de renovação teórico-metodológica para os
campos das Ciências Sociais e da Religião não só com o Ensaio sobre a Dádiva, de
1925, mas também com Esboço de Uma Teoria Geral da Magia (1903) e sua análise
sobre As Técnicas Corporais (1936), para citar alguns de seus mais conhecidos
ensaios. Estudos estes que sugerem uma teoria da ação social no pensamento de
Mauss, na maioria das vezes classificado como intelectual holista, herdeiro do
“coletivismo metodológico” e “precursor” do estruturalismo francês.
De resto, Mauss deposita na eficácia simbólica (hegelianamente falando, o
“espírito da ação”) um valor sociológico e epistemológico de fundamental importância
na compreensão da magia inscrita nos ritos religiosos. Mauss põe em destaque o
aspecto “mágico” da religião. O que faz com que a religião opere a transformação do
profano em sagrado e seja, ao mesmo tempo, capaz de fundir as pessoas nas coisas
e vice-versa? A magia é portadora de uma qualidade especial cuja eficácia simbólica
possibilita a transformação da natureza das coisas. Em última instância, o que garante
a eficácia simbólica da religião e o seu poder de significação social é o fato de carregar
o embrião da magia.
o Da Magia à Performance
A magia tem sido vista com desconfiança pelos cientistas sociais desde há
muito tempo. É suficiente lembrar o clássico de Sir James George Frazer, O Ramo de
Ouro, cuja versão resumida publicada em 1922, reconhecia o caráter lógico da magia
embora ratificasse o juízo evolucionista de que “a magia é um sistema espúrio de lei
natural, bem como um guia enganoso de comportamento: é tanto uma falsa ciência
quanto uma arte abortiva” (1982, p. 34). Nessa perspectiva, a magia não tendo o
status de religião representaria o lado perigoso e sobrenatural das atividades
humanas voltadas para o benefício prático do indivíduo.
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Como também destaca Firth, ainda em 1938, “a magia é, portanto, apenas uma
forma de resposta cultural a situação de incerteza” (1978, p. 161). A partir de Mauss,
o status e a compreensão da magia mudam.
Magia é ação simbólica e o símbolo é veículo de comunicação, então, seguindo
a sugestão de Mauss, magia é linguagem. Através da magia a sociedade fala. Aí as
palavras apresentam um poder mágico, muitas vezes assumindo uma função mágica
equivalente ao mana, categoria nativa (da Melanésia) vista como princípio vital que
explica a força das coisas, dos atos e das representações mágicas. “É ele que faz a
rede apanhar, com que a casa seja sólida, que a canoa vá bem no mar. No campo, é
a fertilidade; nos remédios, é a virtude salutar ou letal”, observa Mauss (1974b, p.
140).
Posteriormente, muitos outros antropólogos reconheceriam no parentesco da
magia com a linguagem uma das “causas” do mundo . Mauss & Hubert em “Esboço
de Uma Teoria Geral da Magia” (1974a), apresentam uma definição ampla da magia
como um fenômeno social composto basicamente de três elementos:
Atos;
agentes;
representações.
São considerados mágicos somente os fatos que toda a sociedade julga como
tal e que pertencem à tradição. Os atos rituais mágicos estão presentes em várias
atividades e ações como gestos e práticas relacionadas às artes, ciência, medicina,
indústria etc, o que faz da magia um fato sociológico e não única e exclusivamente
um fenômeno religioso.
A qualidade mágica dos agentes da magia decorre de suas posições liminares
na sociedade, por exemplo, “certos personagens que atraem a atenção, o temor e a
malevolência públicos, por particularidades físicas ou por uma destreza extraordinária,
como os ventríloquos, os malabaristas, os farsantes; uma enfermidade basta, como
no caso dos corcundas, dos aleijados, dos cegos, etc.” (p. 58). Assim, o poder mágico
de muitos seres ou personagens não pertence a eles, pertence em princípio às
instituições que representam.
Tradicionalmente, esse é o caso das diversas profissões vistas como mágicas
ou que estão ligadas (virtualmente) à magia, tais como, médicos, barbeiros, ferreiros,
artistas, coveiros etc. Também certos lugares, como cemitérios e encruzilhadas, são
considerados preferenciais para o exercício da magia.
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Assim, a “condição liminar “da magia e do mágico contribui para a formação de
uma imagem, muitas vezes reproduzida e recriada nos contos, nos mitos, nas lendas,
enfim, no imaginário popular, por meio da tradição oral na qual o “diz-se que” ganha
status de verdade e realidade. Nesse “mundo mágico” ou mundo de magias, os
mágicos são capazes de confundir corpo e alma, matéria e espírito, o animal e o
humano, haja vista as metamorfoses (para não dizer performances) dos xamãs nas
sociedades primitivas.
Na verdade, o mágico é alguém que se faz, pois “não há mágico honorário e
inativo. Para ser mágico, é necessário fazer magia...” (p. 116), observam Mauss &
Hubert. A magia consiste numa “ideia prática” cuja ações e representações, ou seja,
a performance ritual e o sistema de crenças que a caracteriza, não estão separados,
ao contrário, formam um único processo simbólico traduzido em termos de “arte de
fazer”.
A magia é portadora de uma significativa qualidade performativa que parece
inscrita nos rituais da prece, nas danças xamânicas, nos processos simbólicos de
trocas. Em suma, a magia tem mesmo uma qualidade performativa cujos atos rituais
são o melhor exemplo, pois, lembram Mauss & Hubert, “são, por essência, capazes
de produzir algo além das convenções: são eminentemente eficazes; são criadores;
fazem” (p. 48, grifo meu). Tudo isso nos coloca frente a ideia de uma antropologia da
performance onde o dizer e o fazer se interpenetram no mundo da magia. Nesta
perspectiva, o dizer é um modo de fazer e o fazer pode ser visto como um outro modo
de dizer.
A compreensão da magia como sistema de crenças (representações) e práticas
(rituais) simbólicas, cuja eficácia consiste na produção de sentido, está na base da
antropologia de Mauss. Assim, o que o mágico faz quando faz magia é, na verdade,
acionar o sistema de símbolos e significados que irão fornecer o sentido de suas
ações. Como na linguagem, em que a fala consiste numa ação individualizada e
reflexiva (performativa) dentro do sistema da língua (das regras inconsciente e
coletiva), também o mágico opera nesse sentido, ou seja, suas performances (verbal
e corporal) são dramatizações do sistema cultural de crenças organizado
simbolicamente.
No entanto, mais do que simples processo de “reprodução” do sistema de
significados, a performance mágica tem a dimensão de uma ação simbólica, e como
tal, designa a possibilidade de criação de novos sentidos. Não à toa, suponho, Mauss
18
se dedicou à análise dos ritos verbais como a prece e das técnicas corporais, duas
instâncias que alimentam, atualmente, o campo de estudos da antropologia da
performance. Portanto, antes de passarmos à antropologia da performance e algumas
possibilidades no campo religioso contemporâneo, vale destacar um ou dois pontos
sobre as técnicas corporais.
Fonte: https://www.netmundi.org/filosofia/2019/antropologia-da-religiao
19
parece ter antecipado o corpus das preocupações que hoje envolvem as reflexões em
torno do patrimônio cultural imaterial.
20
escrito em parceira com Hubert, Esboço de Uma Teoria Geral da Magia, pode ser
visto como um texto seminal no pensamento de Mauss.
Se se toma as últimas obras de Mauss, cuja metodologia individualista parece
evidente em As Técnicas do Corpo, Uma Categoria do Espírito Humano: A noção de
Pessoa, a noção de ‘Eu’, o Manual de Etnografia, pode-se mesmo sugerir a existência
de uma linha de continuidade no pensamento de Mauss. A começar pela ideia de
Esboço, a qual nos informa sobre o sentido do “campo” teórico e empírico de Mauss .
Em outras palavras, na prática, Esboço de Uma Teoria Geral da Magia orienta o
pensamento de Mauss, o que significa dizer que o “Esboço”, é ele mesmo, uma
espécie de “ideia prática” levada a termo.
Assim, não me parece sem sentido que os últimos trabalhos de Mauss, embora
explore temáticas marcadas pelo peso das representações sociais, faça um apelo ao
indivíduo e à ação social. É dentro deste quadro de referência que As Técnicas
Corporais, sem perder de vista a magia – basta lembrar as inúmeras referências de
Mauss aos atos tradicionais como atos mágicos – , deve ser vista como referencial na
medida em que carrega a marca de seu tempo. Comunicação originalmente
apresentada em 1934 e, posteriormente publicado em 1936, “As Técnicas Corporais”
falam, a exemplo do Manual de Etnografia, não só das sociedades primitivas, mas
principalmente das categorias, problemas e possibilidades de investigação colocados
pela sociedade e as ciências sociais de seu tempo.
Mauss antes de ser um etnólogo das sociedades primitivas ou historiador das
“religiões dos povos não-civilizados”, título que ele recusou veementemente, era um
etnógrafo de sua própria sociedade e da própria antropologia social nascente.
Estabelecendo uma continuidade no tempo, da magia às técnicas corporais, Mauss
parece caminhar em direção a uma perspectiva na qual as noções de técnicas
corporais e as categorias de pessoa e de “eu”, tem correspondência com a percepção
dos indivíduos e seus corpos concretos emergentes na realidade social de sua época9
. Evidentemente, não há como negar a estreita relação que se estabelece entre
o sistema mágico e as técnicas corporais, afinal, o mágico é um ator manipulador de
objetos e representações sociais. Embora Mauss não tenha concluído sua tese de
doutoramento, A Prece, a despeito do domínio social da religião sobre o ato da prece
como rito oral diretamente relacionado às coisas sagradas, exige na sua execução,
onde quer que seja, uma técnica corporal. Seja rezando em coletivo ou
individualmente, neste momento, o corpo se faz portador de outros significados,
21
portando, de outras técnicas corporais. Contudo, não se deve perder de vista que os
ritos não se separam de outros comportamentos sociais cotidiano. Poder-se-ia evocar
ainda as expressões obrigatórias dos sentimentos, no qual inúmeras técnicas
corporais elaboradas são acionadas exigindo a participação dos indivíduos nos
dramas rituais.
Momentos extraordinários, os atos mágicos são atos de natureza ritual e, como
tal, são capazes de mudar ainda que, temporariamente, a natureza das coisas. Nesta
perspectiva, também o próprio mágico sofre um processo de transformação,
“metamorfose” como tem sugerido alguns estudos etnológicos brasileiros sobre o
xamanismo. Não é preciso muito esforço para demonstrar o quanto nas chamadas
“religiões mágicas” as técnicas corporais são ritualmente fundantes, ou seja, elas
podem ser vistas como estruturas basilares na constituição do sistema.
Por exemplo, segundo Jacqueline Pólvora,
22
momento, nos aproxima então da antropologia da performance e da religiosidade no
mundo contemporâneo.
23
Particularmente a abordagem do antropólogo social inglês Victor Turner tem
sido útil para se pensar os processos rituais.
Se Mauss definia “o homem [como] um animal rítmico” (1993, p. 93), Turner o
define como um animal peformativo, significando isso que o homem é um ser auto
performativo, portanto, reflexivo, e capaz de “revelar ele para elemesmo” (1988, p.
81).
A performance para Turner consiste numa espécie de “meta-comentário
social”, ou seja, uma experiência dramática e de significativa reflexividade na qual os
agentes envolvidos transmitem seus conhecimentos, resolvem seus conflitos,
exageram suas emoções, enfim, avaliam o significado de suas identidades sociais.
Experiência reflexiva classificada como pós-moderna, a antropologia da
performance apresenta grande afinidade com a temática da identidade. Haja vista a
intensificação dos estudos de identidade a partir dos anos 70, coincidir com as
discussões sobre os ritos à luz dos modelos do teatro a partir deste período. Via de
regra, tanto identidades e performances têm em comum o fato de produzirem
situações de reflexividade nas quais os agentes envolvidos relativizam a estrutura
social criando realidade alternativa preenchida, temporariamente, pela experiência da
liminaridade.
Os conflitos que marcam os processos de construção de identidades podem
ser vistos, segundo a abordagem de Turner, como dramas sociais. Nas performances
os grupos refletem sobre eles mesmos e a sociedade da qual são parte, podendo,
neste momento, serem agentes ativos de mudança social. Será junto aos rituais que
as performances se mostram mais eficazes posto que, a definição de performance
parece confundirse com a de ritual no pensamento de Turner, na medida em que
expressam uma “seqüência complexa de atos simbólicos”.
Em outras palavras, como destaca Langdon o “rito não é conceituado [por
Tuner] como uma mera repetição de atos em seqüência, mas como um ato
performático com poder de transformar o indivíduo e a sociedade” (1999, p. 22).
De resto, os ritos são momentos marcantes na constituição de uma identidade,
ou tomando emprestado os termos da etnologia ameríndia, na construção da pessoa.
Neste processo, o corpo, uma vez mais, revela-se de fundamental importância e sua
presença notável no cenário das religiosidades contemporâneas é um sinal da sua
“tangibilidade”, ou melhor, entrada em cena.
24
Turner considera a antropologia da performance como parte constitutiva da
antropologia da experiência.
Aqui, reencontramos a antropologia do concreto de Mauss. “Nós adquirimos
nossa sabedoria não por meio de um pensamento abstrato solitário, mas por
participação imediata ou indireta através dos gêneros de performances nos dramas
socioculturais” (1988, p. 84, tradução livre), observa o antropólogo inglês. Também
para Mauss, a base da antropologia do concreto é a experiência dos homens. Ponto
este de grande relevância epistemológica para caracterização do pensamento de
Mauss, embora fosse considerado um “antropólogo de gabinete” o sobrinho de
Durkheim procurou ampliar seu quadro de referências com boa dosagem de empiria,
declara Oliveira (1988, p. 37).
Assim, uma reflexão que leve em conta o significado da magia e da
performance nos rituais religiosos à luz da etnologia de Mauss deve ater-se à sua
antropologia das “técnicas do corpo”, bem como, às “expressões obrigatórias do
sentimento” a fim de atingir o “homem total”. Uma pequena incursão pelo imaginário
das religiões brasileiras nos possibilita lançar luz sobre o simbolismo corporal e sua
significação no processo de hierarquização da sociedade. Vejamos.
Fonte: https://www.google.com.br/
Na impossibilidade de, neste momento, explorar em profundidade um “objeto”
religioso qualquer que, ao mesmo tempo, sirva de exemplo e funcione como espécie
25
de “fato social total” por meio do qual a magia, as técnicas corporais, as performances,
as expressões obrigatórias dos sentimentos estejam todas reunidas a um só tempo,
gostaria de sugerir uma pequena reflexão sobre a relação corpo e sociedade no
âmbito das religiões espiritualistas no Brasil a partir do estudo de Robert Hertz sobre
“A Preeminência da Mão Direita” (1980). Robert Hertz foi um dos companheiros de
Mauss no campo dos estudos de “história das religiões dos povos não-civilizados”.
Seu ensaio sobre a polaridade religiosa a partir das mãos (direita/esquerda),
além de representar uma importante contribuição ao campo de estudos das
representações cosmológicas em torno do sagrado e do profano também põe em
evidência a dimensão da corporalidade na organização dos sistemas religiosos.
Assim, em simetria à horizontalidade da polaridade direita/esquerda: sagrada/profana
(o que não exclui a hierarquia, ou seja, a mão direita é considerada hierarquicamente
superior à esquerda), a verticalidade alto/baixo das mãos e dos pés apresenta
correspondência com as performances corporais no plano hemisférico. Em outras
palavras, quando vista numa perspectiva hemisférica ou, nos termos bakhtinianos de
uma “topografia corporal”, o “alto” e o “baixo” em correspondência a divisão
hemisférica norte/sul parece acompanhar o movimento das representações que
fazemos dos corpos.
À exemplo da preeminência da mão direita sobre a esquerda, e sua
correspondência cosmológica com o sagrado e o profano, no hemisfério norte a
preeminência das mãos (alto/superior) sobre os pés (sul/ inferior) parece evidente. É
no mínimo curioso o fato de alguns dos principais esportes-símbolos de identidade
nacional nos países do hemisfério norte ter como referência básica as mãos como,
por exemplo, tênis, beisebol, futebol americano, basquetebol, boxe. Em contrapartida,
as principais manifestações esportivas e culturais, ao menos no Brasil, evidenciam a
importância dos pés, da ginga e do andar rebolado como técnicas corporais. Assim,
abaixo da linha da cintura reside o samba, o futebol, a capoeira, o passo de “urubu
malandro”.
A questão é: este sistema de representações aplica-se a outros fenômenos?
Em outras palavras, de que modo esse idioma corporal se expressa no campo das
religiões brasileiras? Sem pretender estabelecer um “continuum” religioso entre
Candomblé e o Kardecismo - nesse momento, a aproximação dessas religiões
representa somente uma estratégia metodológica -, podemos ver na comparação
26
desses sistemas uma hierarquia de valores correspondente às técnicas corporais
hierarquicamente distintas.
No Kardecismo, a preeminência é a das mãos; no Candomblé, prevalecem
os pés - isto não exclui, por exemplo, o jogo de búzios enquanto ritual relacionado às
mãos. O fato é que, predominantemente, a dança, embora exija o movimento dos
braços, põem em destaque os pés, a região inferior do corpo; no Kardecismo, a
ausência da dança, de certa forma já denuncia a prevalência das mãos no ritual do
“passe”. Mais do que defender um reducionismo estruturalista, estas considerações
tem o objetivo de desencadear um processo de reflexão sobre cosmologias religiosas
e sua correspondência com o sistema cultural no Brasil à luz do “idioma corporal”.
Nesta perspectiva, as performances desenvolvidas no “passe”, do Kardecismo,
e nas danças, do Candomblé, descrevem não só um conjunto de técnicas corporais
que as sustentam senão todo um sistema de valores cujo significado deve ser
compreendido em sintonia com a ideologia da hierarquia na sociedade brasileira.
Ideologia esta apreendida nos estudos de DaMatta (1983), e que tem como uma de
suas fontes de inspiração a abordagem desenvolvida pelo discípulo de Mauss, o
antropólogo francês Louis Dumont, sobre o sistema hierárquico de castas na Índia.
No Brasil, o princípio da hierarquia atravessa não só o catolicismo tradicional,
mas também o interior e as relações entre as outras expressões religiosas. Devendo-
se entender por ideologia da hierarquia o sistema de valores que organiza a sociedade
e as religiões tendo por princípio o “englobamento do contrário”, quando a igualdade
cede lugar à diferença e à hierarquia.
Se, do ponto de vista fisiológico não existe diferença entre a mão direita e a
mão esquerda, do ponto de vista sociológico, a mão direita engloba a mão esquerda
na medida em que esta é identificada à totalidade do sistema. O mesmo princípio
aplica-se ao caso da relação entre as mãos e os pés, onde a posição das mãos em
relação ao corpo pertence ao plano da superioridade. Curiosamente, é suficiente
lembrar, neste momento, a interpretação marxista de Engels para quem mais do que
os pés ou a ação de ficar em pé, a chave do processo de hominização, ou seja, o
processo da transformação do macaco em homem encontra-se nas mãos enquanto
instrumento do trabalho. Assim, quando comparada aos pés, a mão está ao lado da
escrita, da arte erudita, do fazer culto, ficando próxima da esfera da razão, superando
o movimento das pernas e dos pés, então, veículos do nomadismo, da errância, da
dança, portanto, membros localizados sob a região do prazer.
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É dentro deste quadro de referências que localizamos as técnicas corporais
inscritas nos “passes”, no Kardecismo, e as “danças dos orixás”, no Candomblé,
como expressões da corporalidade brasileira cujo significado deve ser apreendido à
luz da ideologia da hierarquia.
Afinal, na formação histórico-cultural da sociedade brasileira o Candomblé
ocupou lugar marginal sendo duramente perseguido pela polícia e proibido pelas
classes superiores como atestam inúmeros pesquisadores do assunto. Presente no
Brasil desde fins do século passado, o Kardecismo encontrou amplo
desenvolvimento nos anos 50, satisfazendo assim parte dos anseios de setores das
classes médias, principalmente, profissionais liberais, frente ao processo de
modernização.
Do ponto de vista sociológico, a variável classe social contribui para o
aprofundamento da questão, pois não só no passado histórico das religiões mágicas
no Brasil, também hoje a correspondência entre o popular e a corporalidade é bastante
evidente e forte como se pode ver, por exemplo, nas danças e festas dos catolicismos
populares, nas danças e rituais das religiões afro-brasileiras, nas manifestações de
cura dos neopentecostalismos e nas sessões e jornadas esotéricas.
O contrário acontece com as representações oficiais das religiões tais como a
Igreja Católica Apostólica Romana, os Protestantismos Históricos e o
Kardecismo, em que o corpo é objeto de grande vigilância e acentuada disciplina,
ficando muitas vezes em segundo plano.
Em suma, estas reflexões visam mostrar não só a atualidade do pensamento
de Mauss, em particular, sua contribuição para a antropologia da religião, mas
também apresentar um “objeto” de pesquisa ainda em construção, cuja trajetória parte
da magia, destaca o papel das técnicas corporais e aproxima-se da antropologia da
performance, com fins a permitir uma investigação no campo da religião no Brasil.
Portanto, este é um primeiro passo em direção à uma abordagem sobre o significado
das performances corporais na construção das identidades sociais no âmbito das
religiões brasileiras.
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1. REFERÊNCIAS
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