Emilene Duarte Rocha Cardoso
Emilene Duarte Rocha Cardoso
Emilene Duarte Rocha Cardoso
PUC-SP
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA
SOCIAL
São Paulo
2022
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São Paulo
2022
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Assinatura: ________________________________________
Data: ___/___/_____
E-mail: ___________________________________________
4
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________
Prof. Dr. Raul Albino Pacheco Filho (Orientador)
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Teresa Cristina Endo
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
____________________________________________
Prof. Dr. Ricardo Monteiro Guedes de Almeida
Universidade Federal do Tocantins (UFT-TO)
5
DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTO
This work was conducted with the support of the National Council of Scientific and
Technological Development (CNPq), to which we thank the granting of an Integral Productivity
Scholarship, GM modality. Process number: 130343/2020-0.
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AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Prof. Dr. Raul Albino Pacheco Filho, que apostou na minha proposta
de trabalho e no meu desejo de pesquisar. Com generosidade e disponibilidade, trouxe
apontamentos precisos, com o rigor técnico necessário para o desenvolvimento de um trabalho
acadêmico.
À Prof.ª Dra.ª Teresa Cristina Endo, pelo cuidado atencioso e generosidade em suas
contribuições e apontamentos.
Ao Prof. Dr. Ricardo Monteiro Guedes de Almeida, pela leitura atenta e precisa para
propor importantes articulações no desenvolvimento deste trabalho.
Ao meu pai e à minha mãe por incentivar sempre e contribuir para a continuidade dos
meus estudos. Especialmente, à minha mãe, que em muitos momentos me apoiou e se fez
presente nas minhas escolhas e direções de vida.
Ao querido Maurício Hermann, pela escuta atenta, paciente, presença afetuosa e ímpar,
que conferiu com nuances distintas para a construção da minha clínica e de um projeto de vida.
Aos amigos e colegas que fiz nas equipes do CAPS Adulto e CAPS Infanfil, com quem
tanto aprendi a desenvolver um trabalho de tão alta complexidade. Compartilhando as dores e
alegrias, com boas doses de comprometimento, bom-humor, dedicação, oferta de cuidado e
senso crítico necessários na saúde mental.
Aos meus filhos, Mariana e Vitor, pela doce presença e por tornarem os momentos mais
leves, sempre com alegria e brincadeiras.
Ao Tadeu, pelo apoio, paciência, torcida, amor e carinho dedicados a mim. E por
exercer a paternidade com tanto amor e cuidado.
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RESUMO
Esta pesquisa busca compreender quais são os elementos essenciais para a construção do caso
clínico do sujeito psicótico, tendo em vista a escuta de seu desejo inconsciente e a
engendramento do laço social no contexto institucional da atenção psicossocial. Para tal,
partiremos da escuta de adolescentes com estrutura psíquica psicótica em um dispositivo clínico
do Sistema Único de Saúde (SUS) — os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS),
equipamentos de saúde mental substitutivos —, uma proposta de desinstitucionalização, assim
como de desconstrução e crítica epistemológica ao saber médico e hospitalocêntrico
constituinte da prática psiquiátrica. Essa ideia representa uma das facetas da concepção e da
produção de cuidado, capazes de ofertar diferentes possibilidades transferenciais para os
impasses de subjetivação no laço. O Projeto Terapêutico Singular (PTS) apresenta-se como
uma estratégia de cuidado, ou seja, um conjunto de propostas de cunho terapêutico que são
discutidas e concebidas por uma equipe multiprofissional. Ressaltamos que tais questões foram
se delineando a partir das narrativas observadas na clínica com sujeitos psicóticos, quando se
formaram algumas indagações acerca dos impasses na construção do caso clínico, refletindo-
se no laço. Entre tais indagações estão as implicações da escuta clínica do sujeito na psicose e
a posição do analista na direção de tratamento psicanalítico. Ou seja, o que está implícito dentro
desse contexto institucional para a realização da escuta do desejo do sujeito, partindo do
pressuposto da construção do caso clínico. Para tanto, alcançar uma conexão entre uma clínica
que se sustente através dessa escuta e a clínica do SUS é um ponto importante, que pode
viabilizar a manutenção de um operador clínico psicanalítico possível na atenção psicossocial.
ABSTRACT
CARDOSO, E. D. R. The clinical case study building, the stalemate in the bond of the
psychotic subject, and the psychoanalytic direction of treatment in a unified health system
mental health resource. 2022. Dissertation (Master’s Degree in Social Psychology) –
Postgraduate Study Program in Social Psychology. Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo, 2022.
This research aims to understand which are the essential elements to the bu the
psychoanalyticilding of a clinical case study of the psychotic subject, taking into account its
unconscious desire and social bond begetting in the institutional context of psychosocial
attention. To achieve this, we start by listening to teenagers with psychotic psychic structure in
a clinical resource from the Unified Health System (SUS), — the Community Mental Health
Centers (CAPS), equipment of mental health substitutes —, a deinstitutionalization proposal as
well as epistemological deconstruction and critique regarding the medical and hospital-centered
knowledge that is part of the psychiatric practice. This idea represents one of the facets of the
production and conception of care capable of offering different transferential possibilities to the
stalemates of bond subjectification. The Singular Therapeutic Project (PTS) presents itself as a
care strategy, namely a set of therapeutic proposals that a multi-professional team debates over
and conceives. We highlight that such questions were outlined from narratives observed in the
clinic with psychotic subjects. These moments gave birth to some questions regarding the
stalemates in clinical case study building and reflecting itself in the bond. Between these
questions lie the clinical hearing implications of the subject in psychosis and where the analyst
stands regarding psychoanalytic treatment. In other words, what is implicit in this institutional
context to the listening to the subject's desire from the assumption of the clinical case study
building. To do it so, an important point is the achieving of a connection between a clinic that
supports itself through this listening and the SUS clinic. This can enable the keeping of a
possible psychoanalytic clinic operator in psychosocial care.
Keywords: CAPS. Psychoanalysis. Clinical case study building. Psychosis. Social bond.
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LISTA DE FIGURAS
LISTA DE SIGLAS
CT Comunidade Terapêutica
MS Ministério da Saúde
RP Reforma Psiquiátrica
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 15
2.4 Por quais ventos nos chegam as implicações atuais na saúde mental? ..................... 47
3.3 O caso Schreber e a construção do seu delírio: A retomada do laço social .............. 56
INTRODUÇÃO
O contato com a área de saúde mental deu-se através de uma equipe multidisciplinar em
um Centro de Atenção Psicossocial — CAPS Adulto, em São Paulo. O cotidiano de trabalho,
juntamente com o fazer clínico e as trocas constantes com a equipe multidisciplinar, assim
como com a equipe intersetorial, trouxe marcas, questionamentos e inquietações que justificam
o desenvolvimento desta pesquisa.
Trabalhando durante alguns anos no CAPS Adulto, para então ser transferida para uma
equipe multidisciplinar do CAPS Infantojuvenil situado igualmente na Grande São Paulo, foi
possível ter uma aproximação maior com adolescentes e crianças. Além da aceitação desse
novo desafio, essa experiência reativou inquietações que também estavam presentes no fazer
clínico no CAPS Adulto. Nessa trajetória, o trabalho institucional na área de saúde mental fez-
se presente também na articulação com a rede intersetorial, onde o diálogo tornou-se
constante. Principalmente em sua atuação no CAPS Infantojuvenil, em que eram comuns as
trocas entre os setores da Assistência Social, Conselho Tutelar, Educação, Judiciário etc. Poder-
se-ia pensar ser esta a ideia de transdisciplinaridade que se configura na sustentação das
diferenças na direção de trabalho do fazer clínico.
assistencialista, revela a não abertura de espaço para o acontecimento e a não escuta do sujeito
do inconsciente, não havendo, portanto, como trabalhar com esse imperativo.
A atenção psicossocial não pode ser entendida, como sua própria composição nominal
indica, uma modalidade de atenção em saúde, no caso, saúde mental. No entanto, se
o primeiro termo do binômio insere esta categoria no campo da saúde — ela é uma
modalidade de atenção em saúde, o segundo termo — psicossocial — está destinado,
senão a retirá-la deste campo, pelo menos a fazê-la transbordá-la, extravasá-la, tanto
quanto a própria loucura o extravasa. E aqui uma primeira verificação importante:
sem transbordar o campo da saúde, qualquer tipo de invenção/intervenção com a
loucura estará destinado ao fracasso. [...] o CAPS trata tanto melhor quanto menos ele
for concebido como um lugar especializado em tratar. Ele tratará sempre melhor,
clinicamente, de seus usuários, quanto mais fiel ele for aos princípios que os fundam
e fundamentam: um pólo de direitos e de encarnação de uma política de sustentação
da loucura no laço social e avessa e combativa a toda prática de exclusão, segregação
e internação não acompanhada. (ELIA, 2013, p.03;07).
dependentes de drogas, o CAPS Álcool e Drogas. O risco seria, a partir destes apontar
uma clínica específica para cada tipo de equipamento. (ENDO, 2017, p.126, grifo do
autor).
A essa questão, Quinet (2003) ressalta que o saber através do olhar clínico, da
composição do quadro clínico em sua minuciosa descrição faz visível o enunciado da doença,
aproximando assim o ver e o saber, o visível e o enunciável, tendo como resultado a produção
do patológico.
Na cena atual, é essencial pensar a saúde pública e sua faceta política de mal-estar,
alienação e higienismo, que a mantém num estado de degradação moral e institucional. Fazer
frente a posições radicais de poder dos autonomeados “guardiões da ordem e limpeza” — e que
configuram o que podemos constatar ser da ordem do retrocesso — é uma transgressão
benéfica e necessária. Freud já nos alertava a respeito do que chamou de “impossível” de
educar/governar/analisar, o que não quer dizer que não se eduque, governe e analise. Isso
porque a cena política não está ausente na clínica entre pacientes e analistas. Pacheco Filho
(2015) aponta “que a intenção de uma saúde universalizada, com equidade, integralidade e
participação social, choca-se, necessariamente, com os interesses dos que têm a saúde como
negócio-mercadoria” (PACHECO FILHO, 2015, p.84).
Poderíamos supor que o desejo do psicanalista, por ser o ponto mais nobre, mas
avançado, do que se pode chegar em uma análise, diria respeito eminentemente ao
campo da intensão, da experiência analítica que se desenvolve entre psicanalisante e
psicanalista. Isso é verdade, mas justamente o que estamos propondo é que é esse
desejo, e não qualquer outro, que é exigível para que o psicanalista atue no campo da
psicanálise em extensão e incida no laço social para além dos limites estritos do laço
analítico com o sujeito em análise, presentificando a psicanálise no mundo, função
definida por Lacan como sendo a de sua Escola. (ELIA, 2017, p.01).
e, por vezes, polêmico, devido à outra direção de trabalho clínico ou por não haver
familiaridade com o campo da psicanálise.
Podemos pensar aqui sobre a própria reunião de equipe, realizada semanalmente, onde
havia muita resistência quanto a o manejo de alguns casos colocados em pauta. Não podemos
deixar de citar também que o trabalho com o Outro exige um trabalho interno pessoal
constante, nos fazendo assumir a condição paradoxal de sujeitos ao mesmo tempo
responsáveis e assujeitados. O ofício em saúde mental e/ou analítico reativa questões
psíquicas importantes que exigem de nós uma elaboração analítica pessoal.
Diante de tais fatos instalou-se uma questão acerca de quais discursos regeriam tais
relações. À direção psicanalítica de tratamento permanece o questionamento sobre como
efetivamente requerer o seu uso em espaços públicos de saúde. A escuta singular, que inclui
desde sempre o sujeito na direção de tratamento, é condição fundamental no acolhimento ao
paciente em sofrimento psíquico.
Ou seja, o que está em questão é fazer a escuta do sujeito em seu desejo e não esquivar-
se às dificuldades por meio da desculpa fácil de que “ele não adere ao tratamento”!
por aqui”, e espera o fim da crise e da internação para novamente receber o usuário
para voltar a pegar remédio no CAPS. (ELIA, 2013, p.08).
Figueiredo (2010) destaca que, para além deste embate constante e cotidiano, podemos
recorrer a três indicações da psicanálise para o trabalho em equipe: 1) a posição subjetiva dos
profissionais como “aprendizes da clínica”, algo que supõe um posicionamento, a priori, vazio
de saber; 2) uma organização coletiva da equipe que remeta ao trabalho com responsabilização
partilhada, fazendo circular o saber que advém do sujeito e não do profissional; e, como
corolário do processo, 3) proceder à construção do caso clínico, algo que se dá a partir dos
elementos fornecidos pelo sujeito e da convergência de saberes da equipe interdisciplinar,
porém, sem eclipsar o saber do sujeito.
Nesse sentido, Viganó (2010) ressalta que, no que diz respeito à construção do caso, que
esta não se dá pela fala direta, mas sim através da escuta de suas particularidades e das
coincidências escondidas em sua história, em que se revelam enigmas de seus atos falhos,
recaídas, ausências. Não podemos deixar de pontuar a importância da responsabilização e da
implicação do próprio paciente em seu tratamento.
Como operar com os efeitos de instituições que não se propõem a tratar? A questão da
institucionalização em acolhimento, por si só, já é um agravante, porque supõe uma ausência
de lugar e de vinculação com o outro. As crianças e adolescentes que são institucionalizadas,
assim o foram devido a uma situação de desenlace com a instituição familiar e de precariedade
social. Pensar nisso remonta à emblemática imagem da capa original do Seminário 4: A relação
de Objeto (1956-1957), de Lacan, com a obra Saturno devorando seu filho, do pintor Francisco
Goya.
Oliveira, Veronese e Palma (2009) ressaltam que, “quando ocorre a clínica do fechar
a porta, atender seus pacientes, e ir embora, ela é dissociada e puramente defensiva quanto
20
aos impasses institucionais.” (OLIVEIRA; VERONESE; PALMA, 2009, p.1346, grifo nosso).
E mais:
Partindo dessas experiências buscou-se formalizar uma questão que visasse contribuir
em três frentes de trabalho do analista, ou seja, na vertente clínica, na vertente institucional e
na questão política em saúde pública.
Pensando que a escuta do sujeito pelo analista pode ser promovida para além da clínica
convencional, estando em um movimento de ampliação, o tema-pesquisa refere-se à
interrogação sobre quais seriam as ressonâncias e vicissitudes da escuta psicanalítica do sujeito
psicótico em sua articulação com o âmbito institucional.
Sendo assim, desde meados da década de 1970 no Brasil — com os movimentos pela
Reforma Sanitária, seguidos pelo movimento da Luta Antimanicomial nos anos seguintes, até
a instauração da Lei 10.216 (Lei Paulo Delgado, que dispõe sobre a proteção e os direitos das
pessoas com transtornos mentais) — deu-se o redirecionamento do modelo assistencial, em que
todos os profissionais redefinem o seu modo de intervir.
O profissional “psi” redireciona seu trabalho para a rede pública de saúde mental, para
o ambulatório que deve ser renovado com atendimentos coletivizados como a
recepção; para o trabalho com egressos de internação — incluindo o processo de
desinstitucionalização de pacientes de longa permanência nos hospitais psiquiátricos;
para a atenção a usuários com abuso de drogas; para os novos dispositivos de atenção
psicossocial, e, hoje cada vez mais, para o trabalho de construção da rede de atenção
psicossocial que se impõe. (FIGUEIREDO, 2010, p.02).
Diante desse cenário histórico pôde-se elencar três tempos da interlocução entre a
clínica psicanalítica e a Reforma Psiquiátrica. O primeiro tempo da clínica versava sobre o
exercício do ambulatório enquanto dispositivo de consulta, privilegiando a prática analítica.
Para tanto, Figueiredo (2010) acentua que esse momento, tratava-se de “tornar a clínica
partilhável, desprivatizando o consultório” (FIGUEIREDO, 2010, p.03).
E, ao falarmos em desejo, supõe-se que o sujeito na psicose pode estar muitas vezes
sendo confundido como alguém a quem não se identifica o desejo, e como alguém que
“demanda” alguma coisa. Lacan (1957-58/1999) nos lembra que o desejo está instalado numa
relação com a cadeia significante, que ele se instaura e se propõe inicialmente na evolução do
sujeito humano como demanda. “O que se produz da relação com o objeto mais primordial, o
22
objeto materno, efetua-se desde logo com base em signos, com base no que poderíamos chamar,
para dar uma imagem do que queremos dizer, de moeda do desejo do Outro.” (LACAN, 1957-
58/1999, p.262-3).
A atenção psicossocial se expande para novas articulações e interseções, mas não deve
perder o fio condutor inicial e nem ser reduzida a estratégias educativas ou punitivas.
A clientela ou população-alvo é cada vez mais os jovens e adultos com
vulnerabilidade e risco social, além daqueles com graves transtornos psíquicos, como
os psicóticos e neuróticos graves com longo percurso psiquiátrico. [...] A contribuição
possível e importante a partir da orientação psicanalítica deve se dar na ampliação do
dispositivo da “construção do caso”, agora promovendo a “circulação do caso” como
meio permanente de sua construção. (FIGUEIREDO, 2010, p.05).
De antemão, para situar o método do caso clínico, trazemos uma definição em que
Viganò (1999), tomando a origem etimológica da palavra “caso” e da palavra “clínica”, nos
dimensiona o que seria o fazer clínico:
Caso vem do latim cadere, cair para baixo, ir para fora de uma regulação simbólica;
encontro direto com o real, com aquilo que não é dizível, portanto, impossível de ser
suportado. A palavra clínica vem do grego kline e quer dizer leito. A clínica é
ensinamento que se faz no leito, diante do corpo do paciente com a presença do
sujeito. É um ensino que não é teórico, mas que se dá a partir do particular; não é a
partir do universal do saber, mas do particular do sujeito. (VIGANÒ, 1999, p.40).
Nessa mesma orientação, Gianese (2015) nos fala de uma dupla operação: operação um,
construir-se; operação dois, formalizar.
sujeito, entendendo que são norteadas por uma determinada posição no discurso.
(FIGUEIREDO, 2004, p.79).
Faria (2014) assinala que o primeiro tempo possui a característica de ser um tempo de
“suspensão”, não apenas da articulação do falo como elemento simbólico que ordena o campo
da linguagem para a criança, mas igualmente da entrada do pai, que ainda não está para a
criança, mas que já está em potência de forma velada no Outro materno.
Nesse sentido, Quinet (2006) afirma que a criança é identificada ao objeto de desejo da
mãe: “Essa construção lógica é possível pela equivalência simbólica proposta por Freud,
bebê=falo, que permite colocar a criança em posição de identificação com o falo materno.”
(QUINET, 2006, p.09). Aqui, a criança estaria na posição de objeto de gozo da mãe.
Essa função imaginária do falo, Freud a desvelou como pivô do processo simbólico
que arremata, em ambos os sexos, o questionamento do sexo pelo complexo de
castração. [...] Essa é, com efeito, na economia subjetiva, tal como a vemos
comandada pelo inconsciente, uma significação que só é evocada pelo que chamamos
de metáfora, precisamente a metáfora paterna. (LACAN, 1958/1998a, p.561).
Dessa forma, o pai não se faz presença efetiva para a criança, mas se faz presente no
psiquismo da mãe, tal como é a representação que esta tem do seu próprio pai.
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De acordo com Faria (2014), a questão do Édipo em Lacan pode ser pensada em como
a função paterna é transmitida à criança. Nesse sentido, o valor que o complexo de Édipo tem
é o da transmissão. A transmissão de um nome — o do pai — que se faz pelas vias do desejo
materno. No segundo tempo do Édipo, Lacan situa a saída da criança da posição de falo
materno, ao assumir a castração paterna, ou seja, uma alusão à função do pai. Assim, a
incidência da castração na criança depende de sua incidência enquanto falta no Outro materno.
Mas há de fato uma privação, uma vez que toda privação real exige a simbolização.
Assim, é no plano da privação da mãe que, num dado momento da evolução do Édipo,
coloca-se para o sujeito a questão de aceitar, de registrar, de simbolizar, ele mesmo,
de dar valor de significação a essa privação da qual a mãe revela-se o objeto. Essa
privação, o sujeito infantil a assume ou não, aceita ou recusa. Esse ponto é essencial.
Vocês o encontrarão em todas as encruzilhadas a cada vez que sua experiência os
levar a um certo ponto que agora tentamos definir como nodal no Édipo. (LACAN,
1957-58/1999, p.191)
O autor afirma que “a função do pai no complexo de Édipo é ser um significante que
substitui o primeiro significante introduzido na simbolização, o significante materno”
(LACAN, 1957-58/1999, p.180). E conclui dizendo:
Portanto, a aceitação dos efeitos da castração paterna por parte da criança, constitui o
registro simbólico, o ingresso no triângulo edípico propriamente dito.
A Verwerfung será tida por nós, portanto como foraclusão do significante. No ponto
em que, veremos de que maneira, é chamado o Nome-do-Pai, pode, pois responder no
Outro um furo e simples furo, o qual, pela carência do efeito metafórico, provocará
um furo correspondente no lugar da significação fálica. (LACAN, 1955-56/1998e,
p.564).
Ensinamos, seguindo Freud, que o Outro é o lugar da memória que ele descobriu pelo
nome de inconsciente, memória que ele considera como objeto de uma questão que
permanece em aberto, na medida em que condiciona a indestrutibilidade de certos
desejos. A essa questão respondemos com a concepção da cadeia significante, na
medida em que, uma vez inaugurada pela simbolização primordial (que o jogo Fort!
Da! evidenciado por Freud na origem do automatismo de repetição torna manifesta)
essa cadeia se desenvolve segundo ligações lógicas, cujas influência sobre o que há
por significar, ou seja, o ser do ente, se exerce pelos efeitos de significante descritos
por nós como metáfora e metonímia. É num acidente desse registro e do que ele se
realiza, a saber, na foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro e no fracasso da
metáfora paterna, que apontamos a falha que confere à psicose sua condição essencial,
com a estrutura que a separa da neurose. (LACAN, 1955-56/1998e, p.581-582).
Segundo Quinet (2006), falar “da psicose” ao invés de “as psicoses” é acentuar a psicose
como uma estrutura clínica, uma estrutura que se revela no dizer do sujeito e que corresponde
a um modo particular de articulação dos registros do real, do simbólico e do imaginário. O autor
também destaca que: “É acentuar que na psicose, assim como na neurose, trata-se da estrutura
da linguagem, ou melhor, da relação do sujeito com o significante.” (QUINET, 2006, p.04).
É a emergência na realidade de uma significação enorme que não se parece com nada
— e isso, na medida em que não se pode ligá-la a nada, já que ela jamais entrou no
sistema de simbolização [...] Que se passa, pois, no momento em que o que não é
simbolizado reaparece no real? Tem sua serventia empregar a esse respeito o termo
defesa. É claro que o que aparece sob o registro da significação e de uma significação
essencial, que diz respeito ao sujeito. (LACAN, 1955-56/1998e, p.102-103).
Para tanto, levantamos a seguinte problemática, que vem nortear esta pesquisa: Qual a
escuta que podemos fazer do sujeito psicótico, tendo por princípio seu desejo? O que está
implícito no cenário institucional da atenção psicossocial, para realizar a escuta do desejo desse
sujeito? E quais os impasses no laço advindos da (não) escuta desse sujeito e das relações com
a rede intersetorial?
A pesquisa em psicanálise trata-se de uma pesquisa clínica, pois seu campo de atuação
é o inconsciente, que inclui necessariamente o sujeito.
De acordo com Figueiredo (2004), o que se trata de construir são as etapas, as escansões
(avanços, obstáculos, repetições e regressões) da dinâmica subjetiva do sujeito. Para tanto, são
consideradas a história clínica do sujeito; a ocasião do pedido de ajuda e endereçamento à
equipe de tratamento; tempos lógicos da condução do tratamento; escansões da posição
subjetiva (demanda, sintoma, angústia, repetição etc.); escansões na direção de tratamento
(arranjos sintomáticos que o sujeito reconhece nas manifestações do inconsciente); diagnóstico
de estrutura; escanções na equipe/equipamento de rede (discussão clínica da equipe,
reformulação do projeto terapêutico).
construção do caso clínico proposto por Viganò (2012) em sua aplicação ao trabalho coletivo,
e organizando uma síntese do método que funciona como enquadre, englobando os tópicos a
seguir: História-Caso; Supervisão-Construção; Conceitos-Distinções.
Com o intuito de fazer uma apresentação inicial do conteúdo desta pesquisa, trazemos
os elementos-chave que compõem da dissertação através do desenrolar de seus capítulos, assim
como dos respectivos objetivos que permeiam cada um deles em suas contribuições para o
estreitamento das relações entre psicanálise, saúde mental e políticas públicas.
Além de Lacan, autores como Quinet e De Battista trazem contribuições valiosas quanto
à conceituação na constituição psíquica da psicose, assim como na formalização do delírio,
onde o sujeito assume uma outra posição possível no direcionamento para a cura, algo
considerado sob a chave do desejo. Como pode ser visto no caso Schreber, onde, “finalmente,
há uma recomposição da realidade com a reconstrução do mundo a partir do trabalho do
delírio”. (QUINET, 2006, p.55).
O discurso detém os meios de gozar, na medida em que implica o sujeito. Não haveria
nenhuma razão de sujeito, no sentido em que falamos de razão de Estado, se não
houvesse, no mercado do Outro, o correlato de que se estabelece um mais-de-gozar
que é captado por alguns. [...] O mais-de-gozar é uma função da renúncia ao gozo sob
o efeito do discurso. É isso que dá lugar ao objeto a. Desde o momento em que o
mercado define como mercadoria um objeto qualquer de trabalho humano, esse objeto
carrega em si algo da mais-valia. (LACAN, 1968-69/2008, p.18-19).
30
Figueiredo e Alberti (2006) destacam algo abordado nas seções que compõem o quarto
capítulo, que diz respeito à relação da psicanálise com a saúde mental e que se revela como
uma aposta para as autoras.
A ênfase dirigida ao trabalho de cuidado em saúde mental, neste trabalho, aponta para
a vertente clínica psicanalítica, trazendo à discussão uma intersecção entre a vertente
institucional e as vicissitudes atreladas ao fazer clínico no laço social do sujeito psicótico no
campo institucional de saúde pública, direcionamento dado a esta pesquisa.
O sujeito de que se trata na reforma alude a uma dimensão política e social. Sabemos
que o imperativo com que se trabalha na saúde pública parte da necessidade e da demanda,
contrapondo-se à lógica da própria Reforma Psiquiátrica, na qual busca-se a inclusão do sujeito
em sofrimento psíquico no laço social e que, segundo Quinet (2009), vai na direção psicanalítica
de tratamento em que se propõe a inclusão da Foraclusão.
O estatuto e dimensão do “louco” na sociedade, desde a Idade Clássica até os dias atuais,
é carregado de pluralidade em seus significados e de diversidade quanto aos setores sociais e
sua não homogeneidade.
A exclusão, ou melhor dizendo, os espaços ocupados por aqueles que traziam essa
marca psíquica, são inúmeros. Especialmente importante frisar que asilos, hospitais, prisões
constituem um lugar comum para a sua circulação.
32
Essa concepção mudou no século XVII, com a criação de uma nova modalidade de
hospital, evidenciando um caráter segregacionista e deixando de assumir a exclusividade
filantrópica para “cumprir uma função de ordem social e política mais explícita”
(AMARANTE, 2007, p.23).
Através de uma perspectiva histórica, Foucault nos diz que: “De início, à instituição
atribuía-se a tarefa de impedir a mendicância e a ociosidade, bem como as fontes de todas as
desordens.” (FOUCAULT, 1972/2019, p.63). Ainda:
Phillipe Pinel (1745-1826) destaca-se não apenas por sua obra de reformador, mas
sobretudo por fundar uma tradição clínica, com orientação consciente e sistemática. Ele
elaborou uma nosografia, isto é, uma primeira classificação das enfermidades mentais. Na
rotina de identificar as patologias, observá-las, descrevê-las e classificá-las, uma nova forma de
produção e construção do saber e da prática médica ganhou aspectos clínicos e sentidos
terapêuticos. Aos enfermos classificados de acordo com a sua sintomatologia, consolidou o
conceito de “alienação mental” fundando a psiquiatria. Porém, o hospital fundado por Pinel não
se apresentou como lugar de tratamento e cuidado para as pessoas em sofrimento psíquico,
caracterizando por vezes práticas iatrogênicas aos seus internados. Demarcando-se assim, o fio
condutor para proposições transformativas no que tange às reformas psiquiátricas.
(LANCETTI; AMARANTE, 2006; AMARANTE, 2007).
1
Juliano Moreira ocupa essa direção por 27 anos até 1930, quando foi destituído pelo governo de Getúlio Vargas.
É conhecido como Mestre da Psiquiatria Brasileira e seus estudos na Alemanha vincularam a psiquiatria brasileira
à corrente alemã, dando um importante significado quanto à discussão etiológica das doenças mentais. O
biologicismo, tendência predominante da tradição alemã, passa a explicar não só a origem das doenças mentais,
mas também muitos dos fatores e aspectos étnicos, éticos, políticos e ideológicos de múltiplos eventos sociais.
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Entre os anos 1930 e 1950, considerados a era dos choques e da psiquiatria comunitária,
o asilamento tornou-se mais frequente e a psiquiatria expandiu-se com a aparecimento dos
primeiros neurolépticos. Nesse momento, a assistência psiquiátrica continua a ser prestada em
seus moldes manicomiais.
O advento das duas Grandes Guerras Mundiais fez com que a sociedade passasse a
refletir e reconhecer o caráter anacrônico e iatrogênico das práticas da psiquiatria convencional.
Durante a Segunda Guerra, houve urgência por tratamentos com maior eficácia clínica na
recuperação de soldados traumatizados em campos de concentração. Movimentos sociais
populares em prol de direitos civis e políticos para os inseridos nas chamadas instituições totais
passaram a movimentar processos revolucionários visando políticas de democratização no que
tange ao campo da saúde mental. Nas décadas de 1950 e 1960, no período pós-guerra, o
recrudescimento da crítica às instituições totais surgiu como um fenômeno em vários países e
a desativação gradual das instituições asilares — tanto para portadores de doenças contagiosas
quanto portadores de deficiências e de transtornos mentais — levou às primeiras experiências
de reformas psiquiátricas. (AMARANTE, 2007; VASCONCELOS, 2009).
acompanhamento terapêutico dos pacientes, que poderia ser realizado pela mesma equipe
multiprofissional, tanto no interior do hospital quanto no local de residência, dando destaque
para o trabalho em equipe de enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais, que passariam a ter
um novo protagonismo no contexto das políticas de saúde mental. (AMARANTE, 2007).
da Reforma Psiquiátrica Italiana ou Lei Basaglia. Era a única lei nacional em todo o mundo a
prescrever a extinção dos manicômios em todo o território nacional, determinando que fossem
constituídos serviços e estratégias substitutivas ao modelo manicomial. (LANCETTI;
AMARANTE, 2006, p.624).
O Centro está sempre aberto e qualquer um pode ter acesso a ele quando quiser. Não
existem consultas por agenda e muito menos lista de espera. Por isso, os pacientes
usam o centro como ponto de encontro, de socialização e de vida cotidiana. [...] O
dado mais importante de todas as atividades, e em particular dos laboratórios, é o fato
de que são utilizados conjuntamente por “normais”, por pacientes psiquiátricos, por
tóxico-dependentes (e sobretudo por jovens). Este é um exemplo concreto da
tendência de não compartimentalizar e, ao contrário, multiplicar as trocas sociais, que
são essenciais ao processo de desinstitucionalização. (ROTELLI; LEONARDIS;
MAURI, 2001, p.39-40).
39
Kyrillos Neto (2007), referindo-se a Basaglia, assinala que, por mais que se mudem as
técnicas, o psiquiatra relaciona-se com o paciente enquanto corpo doente, objeto de pesquisa
considerado em sua materialidade, cuja diferença deve ser catalogada, gerida e anulada. O
hospital psiquiátrico, encabeçado pelo princípio de autoridade, com sua meta de ordem e
eficiência, aniquila o doente mental que, prisioneiro desse corpo doente, perde sua identidade
pessoal e ganha identidade institucional. O mesmo autor nos diz que, o paciente psiquiátrico
reduzido à doença é um excluído que jamais poderá se opor àqueles que o excluem, pois todos
os seus atos serão compreendidos a partir de um quadro psicopatológico e de um código de
sintomas.
No campo da reforma vicejou-se uma outra posição, propondo que o sofrimento que
acompanha a experiência da loucura demanda um trabalho que não se resolve pelo
questionamento das instituições sociais que regulam o lugar social do louco. A
especificidade desse sofrimento e o fato de que ele se materializa de maneira
absolutamente singular na experiência de cada um fazem com que a clínica e suas
categorias sejam instrumentos de aproximação não apenas úteis, mas necessários para
o propósito de construir novas possibilidades de existência para o louco e outro lugar
social para a loucura. (TENÓRIO, 2001, p.23).
Tal artigo visa apresentar as diretrizes que organizam o SUS, assegurado pelo artigo 196
da CF/1988, que declara o acesso à saúde como direito de todos e um dever do Estado.
Estão incluídos na lei n° 8.080/1990 alguns dos princípios fundamentais do SUS, que
preveem as seguintes garantias: universalidade, integralidade e equidade no acesso à saúde. O
princípio da universalidade supõe o alcance e direito à saúde para todos, incluindo acesso aos
serviços de saúde em todos os níveis de assistência. O princípio da integralidade propõe a
necessidade de um atendimento à saúde resolutivo em todas as esferas. Quanto ao princípio da
equidade, este é norteado para a redução do impacto das diferenças, enfatizando o atendimento
aos indivíduos de acordo com as suas necessidades.
O SUS é resultado desse processo político, “uma realização importante deste processo
foi a inserção no texto constitucional da saúde como direito de cidadania e dever do Estado, o
que realçou e deu força jurídica de relevância pública às ações e serviços de saúde”
(VASCONCELOS; PASCHE, 2006, p.532).
2
I Conferência Nacional de Saúde Mental (1987); Intervenção no Hospital Psiquiátrico Anchieta em Santos
(1989); II Conferência Nacional de Saúde Mental (1992); Encontro Nacional dos Usuários - I Encontro Nacional
em São Paulo (1991); II Encontro Nacional no Rio de Janeiro (1992); III Encontro Nacional em Santos (1993); IV
Encontro Nacional em Goiânia (2000); I Encontro Nacional da Luta Antimanicomial em Salvador (1993); Lei
10.216 de 06/04/2001.
42
Como foi visto na década de 1970, devido à sedimentação das transformações ocorridas
no Brasil e com a decorrente reformulação de um lugar social para a “loucura”, a partir da
Reforma Psiquiátrica Brasileira surgem mudanças na assistência à saúde mental, advindas do
processo de humanização da saúde no país com a Constituição de 1988 e da estruturação de
uma política de saúde que institucionalizou o Sistema Único de Saúde.
Para tanto, tal reforma foi amparada pelos preceitos que fazem proposições em redes
alternativas de tratamento ao sujeito em sofrimento psíquico. Nesse sentido, a tessitura de uma
rede visando o agenciamento do cuidado à saúde mental foi imprescindível, sendo criadas
estratégias específicas através de dispositivos como os Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS), Núcleo Ampliado de Saúde da Família (NASF), residências terapêuticas, hospitais-
dia, consultórios de rua, mecanismos que assegurassem a integralidade do atendimento sem o
direcionamento para as internações hospitalares.
43
Nesse contexto, a lei n° 10.216 de 6 de abril de 2001, também chamada de Lei Paulo
Delgado, dispõe sobre os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona
o modelo assistencial em saúde mental, constituindo, por sua vez, uns dos marcadores da
Reforma Psiquiátrica no Brasil.
Logo, identificar parceiros e atores com potencial para constituir uma rede —
instituições, equipes, familiares e comunidade — tornou-se necessário.
§1° O Centro de Atenção Psicossocial de que trata o caput deste artigo é constituído por
equipe multiprofissional que atua sob a ótica interdisciplinar e realiza atendimento às pessoas
com transtornos mentais graves e persistentes e às pessoas com necessidades decorrentes do
uso de crack, álcool e outras drogas, em sua área territorial, em regime de tratamento intensivo,
semi-intensivo, e não intensivo. E de acordo com o caput § 4°, os Centros de Atenção
Psicossocial estão organizados nas seguintes modalidades: CAPS I; CAPS II; CAPS III; CAPS
AD; CAPS AD III; CAPS IJ.
a) A criança e o adolescente são sujeitos e, como tal, responsáveis por sua demanda
e seu sintoma. São sujeitos de direitos e detentores de lugares autênticos de fala.
A noção de sujeito implica também a de singularidade, ou seja, não é possível
pensar em tratamentos e abordagens terapêuticas de forma homogênea e
prescritiva, pois vale a máxima de que “cada caso é um caso”;
b) Acolhimento universal: significa que as portas dos serviços devem estar abertas
a todos aqueles que chegam com alguma necessidade de saúde e de saúde mental;
c) Encaminhamento implicado e corresponsável: no caso de haver outro serviço
que melhor se ajuste às necessidades do usuário, os profissionais que fizeram o
acolhimento devem, de maneira implicada e corresponsável, promover o
acompanhamento em outro serviço (muito diferente de um procedimento
administrativo e burocrático de preencher uma guia de encaminhamento para
outro serviço);
d) Construção permanente da rede e da intersetorialidade: a partir da noção de
clínica ampliada e da complexidade das intervenções em saúde mental, álcool e
outras drogas, é fundamental a construção cotidiana de uma rede de profissionais,
ações e serviços para a garantia do acesso de crianças, adolescentes e jovens aos
cuidados nesta área.
e) Trabalho no território: trata-se de um conceito que extrapola os sentidos
meramente geográficos ou regionais, mas tem relação com as redes de relações e
afetos e com as redes sociais daquele que é cuidado, que inclui a família, os
vizinhos, a escola, a praça, o clube, os lugares de lazer etc.
f) Avaliação das demandas e construção compartilhada das necessidades de
saúde mental: as demandas que chegam aos serviços de saúde mental (vindas do
sujeito, da família, da escola e dos serviços da rede de saúde ou da rede
intersetorial) devem ser discutidas e elaboradas em conjunto pelas equipes, pelos
familiares e pelos usuários. (BRASIL, 2014, p.25).
efetivação da política pública de saúde mental infantil e juvenil (BRASIL, 2005) que
vem impactando positivamente a construção da rede de serviços para esta população.
As diretrizes atuais da saúde mental estão alinhadas com os princípios estabelecidos
no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) — que afirmam a criança e o
adolescente como sujeitos de direito; com as bases éticas do Movimento da Reforma
Psiquiátrica — que defende o direito à inclusão social da pessoa com transtorno
mental; e também com as deliberações da III e IV Conferências Nacionais de Saúde
Mental, realizadas respectivamente em 2001 e 2010 — que propõem a montagem de
um sistema intersetorial e abrangente diante da complexidade de demandas que
envolvem a saúde mental dessa população, nomeado Rede Pública Ampliada de
Atenção à Saúde Mental. (BRASIL, 2013, p.104, grifo do autor).
[...] a clínica não é lugar de aplicação de saber, mas de produção, o que significa que,
havendo produção de saber, há necessariamente condições para a prática clínica, uma
47
vez que o saber produzido, não tem caráter especulativo, foi gerado a partir de uma
experiência em que o sujeito está necessariamente implicado. (ELIA, 1986/2000,
p.32).
Endo (2013) ressalta que a sustentação da conduta ética do analista está amparada no
sentido de buscar, no cotidiano das práticas, várias possibilidades de escuta do discurso do
paciente e de acompanhamento responsabilizado de seu tratamento. Aquilo que se distancia do
discurso traz à evidência somente a caracterização de sintomas, excluindo a subjetividade do
sujeito.
Nesse sentido, Dias (2019) aponta que dar um outro acento ao que tange ao PTS, como
diretriz norteadora da singularização do cuidado, enfatiza o desejo como um traço singular do
sujeito, dando destaque ao que é próprio de cada um.
2.4 Por quais ventos nos chegam as implicações atuais na saúde mental?
3
“O Instituto Nise da Silveira encerra a internação de pessoas após 110 anos de funcionamento. No dia 26 de
outubro de 2021, o último paciente internado recebeu alta e foi transferido para uma residência terapêutica. As
portas do instituto estão abertas para visitação ao museu que foi nomeado Nise da Silveira e possui um acervo
48
De fato, uma boa parte das CTs no Brasil possui práticas tão desumanas e iatrogênicas
quanto as das antigas instituições asilares manicomiais, sem garantir minimamente a
preservação dos direitos humanos mais básicos. [...] O que sim fica evidente é a
necessidade de uma sistemática fiscalização e regulamentação das CT, a fim de que
somente permaneçam em atividade aquelas que, de fato, sigam o modelo proposto
originalmente, nascido no mesmo berço da Reforma Psiquiátrica. (PERRONE, 2014,
p.578).
Não tenho dúvida de que as relações cronológicas e causais, aqui descritas, entre o
complexo de Édipo, intimidação sexual (ameaça de castração), formação do superego
e o começo do período de latência são de um gênero típico, porém, não desejo
asseverar que esse tipo seja o único possível. Variações na ordem cronológica e na
vinculação desses eventos estão fadadas a ter um sentido muito importante no
desenvolvimento do indivíduo. (FREUD, 1924/1996c, p.276).
Faria (2014) assinala que o primeiro tempo possui a característica de ser um tempo de
“suspensão” não apenas da articulação do falo como elemento simbólico que ordena o campo
da linguagem para a criança, mas igualmente da entrada do pai, que ainda não está para a
criança, mas que já está em potência de forma velada no Outro materno.
Lacan (1949/1998c) formula no primeiro tempo lógico o que ele chamou de “o estádio
do espelho” como formador da função do eu, no qual ele destaca que:
A assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhado na
impotência motora e na dependência da amamentação que é o filhote do homem nesse
estágio de infans parecer-nos-á pois manifestar, numa situação exemplar, a matriz
simbólica em que o [eu] se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na
dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no
universal, sua função de sujeito. (LACAN, 1949/1998c, p.97).
Quinet (2006) afirma que a criança é identificada ao objeto de desejo da mãe. “Essa
construção lógica e possível pela equivalência simbólica proposta por Freud, bebê=falo, que
permite colocar a criança em posição de identificação com o falo materno.” (QUINET, 2006,
p.09).
Essa função imaginária do falo, portanto, Freud a desvelou como pivô do processo
simbólico que arremata, em ambos os sexos, o questionamento do sexo pelo complexo
de castração. [...] Essa é, com efeito, na economia subjetiva, tal como a vemos
comandada pelo inconsciente, uma significação que só é evocada pelo que chamamos
de metáfora, precisamente a metáfora paterna. (LACAN, 1955-56/1998e, p. 561).
Nesse cenário, o pai não se faz presença efetiva para a criança, mas se faz presente no
psiquismo da mãe, tal como é a representação que esta tem do seu próprio pai. De acordo com
Faria (2014), a questão do Édipo em Lacan pode ser pensada em como a função paterna é
transmitida à criança. Nesse sentido, o valor que o complexo de Édipo tem é o da transmissão.
A transmissão de um nome ― o do pai ― que se faz pelas vias do desejo materno.
51
No segundo tempo do Édipo, Lacan situa a saída da criança da posição de falo materno,
ao assumir a castração paterna, ou seja, a alusão à função do pai. Assim, a incidência da
castração na criança depende de sua incidência enquanto falta no Outro materno.
Quinet (2006) afirma que, no segundo tempo lógico do Édipo, dá-se a simbolização.
Lacan nos indica que o fato de poder representar a mãe não só pelo objeto carretel, mas por
fonemas, denuncia sua simbolização pela criança. A enunciação de um par de fonemas ― fort
(longe) e da (aqui) ― marca a entrada da criança na linguagem, no mundo simbólico. A mãe,
podendo ser simbolizada por uma palavra, passa de um estatuto de objeto primordial ao de
signo. A relação da criança com a mãe deixa de ser imediata, pois há uma mediação simbólica
pela linguagem.
Mas há de fato uma privação, uma vez que toda privação real exige a simbolização.
Assim, é no plano da privação da mãe que, num dado momento da evolução do Édipo,
coloca-se para o sujeito a questão de aceitar, de registrar, de simbolizar, ele mesmo,
de dar valor de significação a essa privação da qual a mãe revela-se o objeto. Essa
privação, o sujeito infantil a assume ou não, aceita ou recusa. Esse ponto é essencial.
Vocês o encontrarão em todas as encruzilhadas a cada vez que sua experiência os
levar a um certo ponto que agora tentamos definir como nodal no Édipo. (LACAN,
1957-58/1999, p.191).
Lacan (1957-58/1999) afirma ainda que “a função do pai no complexo de Édipo é ser
um significante que substitui o primeiro significante introduzido na simbolização, o significante
materno” (LACAN, 1957-58/1999, p.180). A aceitação, por parte da criança, da castração
paterna, constitui o registro simbólico, o ingresso no triângulo edípico propriamente dito.
Para esta pesquisa faz-se objeto de estudo a abordagem, a partir de Lacan, da estrutura
psíquica na psicose, mas não sem antes trazer as contribuições de Freud, de onde Lacan partiu
para o desenrolar de sua teoria embasada no campo do simbólico.
Na concepção inicial dada por Freud para se referir à paranoia, a Verwerfung, permitiu-
se vislumbrar a essência da estruturação psíquica na psicose. É a partir dessa referenciação de
Freud que consideramos importante trazer conceituações no que diz respeito à paranoia, onde
seria possível pensar a proposição de base lacaniana no que se refere à foraclusão.
Nesses textos, acentua-se a diferença estrutural entre neurose e psicose, apontando uma
outra base conceitual para a especificação da psicose. Lacan, a partir do mecanismo específico
que Freud propõe, a Verwerfung, nos remete à foraclusão do significante do Nome-do-pai. Para
a melhor compreensão desse ponto, utilizamos um dos textos de Freud que levam a elucidar
posteriormente a proposição lacaniana da foraclusão, trazendo ― estruturalmente ― as
diferenças entre neurose e psicose.
Desse modo, Freud, em seu texto A negativa (Die Verneinung), de 1925, dá pistas a
respeito das formas lógicas e psicológicas da negação, assinalando que:
[...] o conteúdo de uma imagem ou ideia reprimida pode abrir caminho até a
consciência, com a condição de que seja negado. A negativa constitui um modo de
tomar conhecimento do que está reprimido; com efeito, já é uma suspensão da
repressão, embora não, naturalmente, uma aceitação do que está reprimido.
(FREUD,1925/1996a, p.182).
Nessa perspectiva, Freud (1925/1996a) nos situa através de duas operações: a primeira
é a atribuição da afirmação, e a segunda está relacionada à expulsão, nas representações do
interno e do externo.
O estudo do julgamento nos permite, talvez pela primeira vez, uma compreensão
interna (insight) de origem de uma função intelectual a partir da ação recíproca dos
impulsos instintuais primários. Julgar é uma continuação, por toda a extensão das
linhas de conveniência, do processo original através do qual o ego integra coisas a si
ou as expele de si (Ausstossung), de acordo com o princípio do prazer. A polaridade
de julgamento parece corresponder à oposição dos dois grupos de instintos que
supusemos existir. A afirmação (Bejahung) ― como substituto da união ― pertence
a Eros; a negativa ― o sucessor da expulsão ― pertence ao instinto de destruição.
(FREUD, 1925/1996a, p.184, grifo nosso).
Lacan (1955-56/1988) vai nos dizer que a partir da Verneinung, ocorrem fenômenos que
devem provir da passagem de um registro para outro, e que se manifestam, curiosamente, com
o caráter do negado e do desmentido ― é posto como não sendo existente. “Aí está uma
propriedade primeiríssima da linguagem, já que o símbolo é como tal conotação da presença e
da ausência.” (LACAN, 1955-56/1998e, p.184).
O processo de que se trata aqui sob o nome de Verwerfung, e que não tenho notícia
de que algum dia tenha sido objeto de um comentário um pouquinho consistente na
literatura analítica, situa-se muito precisamente num dos tempos que Sr. Hyppolite
acaba de destacar para vocês na dialética da Verneinung: tra-ta-se exatamente do que
se opõe à Bejahung primária e constitui como tal aquilo que é expulso. [...] A
Verwerfung, portanto, corta pela raiz qualquer manifestação da ordem simbólica, isto
é, Bejahung que Freud enuncia como o processo primário em que o juízo atributivo
se enraíza, e que não é outra coisa senão a condição primordial para que, do real,
alguma coisa venha se oferecer à revelação do ser, ou, para empregar a linguagem de
Heidegger, seja deixado-ser. (LACAN, 1954/1998d, p.389).
Lacan (1955-56/1998e) diz que a realidade não é o que está em causa para o psicótico,
a questão não é da ordem da realidade. Mas o sujeito tem uma certeza radical de que sim, o é,
dando-nos assim a chave para a definição do fenômeno psicótico.
É a emergência na realidade de uma significação enorme que não se parece com nada
― e isso, na medida em que não se pode ligá-la a nada, já que ela jamais entrou no
sistema da simbolização. (LACAN, 1955-56/1998e, p.105).
Uma exigência da ordem simbólica, por não poder ser integrada no que já foi posto
em jogo no movimento dialético sobre o qual viveu o sujeito, acarreta uma
desagregação em cadeia, uma subtração da trama na tapeçaria, que se chama delírio.
Um delírio não é forçosamente sem relação com um discurso normal, e o sujeito é
5
O Comentário falado sobre a Verneinung de Freud, por Jean Hyppolite, encontra-se nos Escritos (LACAN,
1954/1998d, p.879-902).
56
Partindo dessa concepção, Quinet (2006) nos aponta a posição estrutural do sujeito
psicótico:
6
Conforme paginado na fonte.
57
Após uma curta doença, entre 1884 e 1885, doença mental que consistiu em um delírio
hipocondríaco, Schreber, então no exercício de um cargo bastante importante na
magistratura alemã, sai da casa de saúde do professor Flechsig, curado, parece que de
maneira completa, sem sequela aparente. Ele leva durante cerca de oito anos uma vida
que parece normal, e ele próprio afirma que sua felicidade doméstica só é
ensombrecida pelo desgosto de não ter um filho. Ao cabo desses oito anos, ele é
nomeado presidente do Tribunal de Apelação na cidade de Leipzig. Tendo recebido
antes do período de férias o aviso daquela promoção importantíssima, ele assume suas
funções em outubro. Ele é, parece, como acontece com bastante freqüência em muitas
crises mentais, um pouco ultrapassado por suas funções. Ele é jovem, 51 anos, para
presidir um tribunal de apelação daquela importância, e essa promoção o desnorteou
um pouco. Ele se encontra no meio de pessoas muito mais experientes, mais calejadas
no manejo de processos delicados, e durante um mês ele se estafa, como ele próprio
se exprime, e recomeça a ter problemas ― insônias, fuga de ideias, aparição no seu
pensamento de temas cada vez mais perturbadores que o levam a ter de novo uma
consulta. Mais uma vez o internamento. Em primeiro lugar, na casa de saúde, com o
professor Flechsig, depois, após uma curta estada na casa do Dr. Pierson em Dresden,
na clínica de Sonnenstein, onde ele permanecerá até 1901. É ali que seu delírio vai
passar por toda uma série de fases das quais ele nos dá um relato extremamente seguro,
parece, e extraordinariamente composto, escrito nos últimos meses de seu
internamento. O livro será publicado logo depois de sua saída. Ele não dissimulou,
portanto, a ninguém no momento em que reivindicava o direito de sair, que
participaria sua experiência à humanidade inteira, com o desígnio de transmitir a todos
as revelações capitais que ela comporta. É desse livro publicado em 1903 que Freud
se encarrega em 1909. Ele fala dele nas férias com Ferenczi, e é em dezembro de 1910
que ele redige uma Memória sobre a autobiografia de um caso de paranoia delirante.
(LACAN, 1955-56/1998e, p.36-37).
Partindo da análise realizada por Freud, das Memórias de Schreber7, Lacan referiu-se
ao fenômeno central das “Memórias”, tornando possível discernir a dialética imaginária
envolvida no processo desencadeante do delírio. “O estudo do delírio de Schreber tem o
interesse eminente de nos permitir discernir de maneira desenvolvida a dialética imaginária.
[...] a saber: a dialética do corpo espedaçado em relação ao universo imaginário, que é
subjacente na estrutural normal.” (LACAN, 1955-56/1998e, p.107).
7
A análise das “Memórias”, realizada por Freud, estão em Observações Psicanalíticas sobre um caso de paranoia
relatado em autobiografia (O caso Schreber), artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913).
58
Referindo-se ao delírio pensado como uma significação que não se fecha, e também
como uma tentativa de cura, Quinet (2006) o revela como uma construção na tentativa de barrar
o gozo.
A concepção do estádio do espelho, tal como Lacan (1949) nos introduz, como:
Ensinamos, seguindo Freud, que o Outro é o lugar da memória que ele descobriu pelo
nome de inconsciente, memória que ele considera como objeto de uma questão que
permanece em aberto, na medida em que condiciona a indestrutibilidade de certos
desejos. A essa questão respondemos com a concepção da cadeia significante, na
59
medida em que, uma vez inaugurada pela simbolização primordial (que o jogo Fort!
Da! evidenciado por Freud na origem do automatismo de repetição torna manifesta),
essa cadeia se desenvolve segundo ligações lógicas cujas influências sobre o que há
por significar, ou seja, o ser do ente, se exerce pelos efeitos de significante descritos
por nós como metáfora e metonímia. (LACAN, 1955-56/1998e, p.581-582).
No esquema L (figura 1), elaborado por Lacan, podemos fazer a leitura da formalização
da relação com esse Outro do sujeito, tanto para o discurso neurótico quanto para o discurso na
psicose.
Figura 1 — Esquema L
O que se constata na psicose é que, nela, a cena do inconsciente não é invertida, assim
como se apresenta na neurose. Em Schreber (esquema I, figura 3), ele recebe a mensagem direta
de Deus. O inconsciente como discurso do Outro indicaria ao psicótico que a relação
estabelecida por ele é de exterioridade à subjetivação do discurso do Outro. “Essa conjuntura
surge quando o Nome-do-Pai foracluído é chamado em oposição simbólica ao sujeito (S), isto
é, no lugar do Outro (A).” (QUINET. 2006, p.19).
60
Figura 2 — Esquema R
Ao triângulo S aa’ (esquema L) ele sobrepõe o triângulo mãe resultando o tripé criança
imaginário do esquema R: qp im. Não podemos nos habituar a pensar que a relação
dual exclui o três. Segundo o autor, para Lacan, o par imaginário é sempre no mínimo
três, tal como encontramos no triângulo imaginário do esquema R. [...] Na retroação
do Édipo, o estádio do espelho não se reduz a dois, mas indica a identificação da
criança ao falo imaginário da mãe que, por seu lado a simboliza no falo. É
estruturalmente a essa identificação com o falo que se encontra atrelado, no nível
imaginário, o sujeito da psicose antes do desencadeamento. (QUINET, 2006, p.51).
Figura 3 — Esquema I
Quinet (2006) coloca que, para a restauração imaginária em Schreber, ele responderá de
duas formas diferentes: através da prática transexualista (imagem no espelho em que está
vestido de mulher); e da transformação em mulher, e que a partir de sua relação com Deus se
originarão os “homens schreberianos”.
[...] o esquema nos mostra como os dois furos em movimento marcam que houve certo
consentimento ao efeito da linguagem, e o resultado é que um novo mundo se
reconstruiu em torno desses furos-redemoinhos. Isso quer dizer que a distorção que
ele manifesta entre as funções aí identificadas pelas letras transpostas do esquema R
só pode ser apreciada em seu uso de retomada dialética. Apenas apontamos aqui, na
dupla curva da hipérbole que ele desenha, exceto pelo deslizamento dessas duas
curvas ao longo de uma das retas diretrizes de sua assíntota, o vínculo tornado
sensível, na dupla assíntota que une o eu delirante ao outro divino, de sua divergência
imaginária no espaço e no tempo com a convergência ideal de sua conjunção. Não
sem destacar que Freud teve a intuição dessa forma, uma vez que ele mesmo
introduziu o termo assíntota a esse respeito. (DE BATTISTA, 2020, p.220).
62
A autora (2020) ressalta que a dinâmica do caso Schreber é lida sob a chave do desejo.
A fantasia de Schreber, expressa na frase “como seria bom ser copulado como uma mulher”, é
o fator desencadeante de sua segunda crise. De Battista (2020) afirma que,
Interessa-nos ressaltar que Schreber constrói um Outro que precisa dele e o deseja,
um Outro carente, ao qual ele faz falta. E o faz a partir de um Deus que não
compreende os homens vivos, que lida apenas com mortos: um Deus que não entende
nada do desejo. [...] Um Deus inicial em que Freud encontra a impostura do Pai que
se acha fazedor da lei. Schreber fura esse Deus ao lhe atribuir uma iniciativa que lhe
concerne, constrói um Outro ao qual pode faltar, ainda que não possa perdê-lo. A
fantasia de desejo, inicialmente recusada, se impõe, é aceita. Schreber já não se
defende dela e se transforma em mulher objeto do gozo divino, de um Deus carente,
imperfeito, ao qual faz falta. (DE BATTISTA, 2020, p.185).
Quinet (2006) levanta a seguinte questão: qual a realidade do sujeito na psicose? Ela
está na dependência da relação do sujeito com o significante e se declina da seguinte forma:
antes do surto, a realidade é sustentada por bengalas imaginárias; quando do surto, há uma
dissolução imaginária e uma catástrofe subjetiva equivalente ao fim do mundo; e, finalmente,
há uma recomposição da realidade com a reconstrução do mundo a partir do trabalho do delírio.
Uma vez restabelecida sua realidade, Schreber reivindica e consegue alta hospitalar e, voltando
ao convívio familiar, retoma o controle sobre sua vida.
63
Lacan (1958-59/2016) destaca que o desejo não é algo que estaria vinculado a apenas
uma estrutura psíquica, mas a todas as estruturas.
Nos é proposta por Lacan (1958/1998a) uma articulação que estrutura o desejo a partir
de uma manifestação que que está aquém da demanda. Destacamos aqui, em suas palavras:
O desejo é aquilo que se manisfesta no intervalo cavado pela demanda aquém dela
mesma, na medida em que o sujeito, articulando a cadeia significante, traz à luz a
falta-a-ser com o apelo de receber seu complemento do Outro, se o Outro, lugar da
fala, é também o lugar dessa falta. O que é assim dado ao Outro preencher, e que é
propriamente o que ele não tem, pois também nele o ser falta, é aquilo a que se chama
amor, mas são também o ódio e a ignorância. É também isso, paixões do ser, o que
toda demanda evoca para-além da necessidade que nela se articula, e é disso mesmo
que o sujeito fica tão mais propriamente privado quanto mais a necessidade articulada
na demanda é satisfeita. (LACAN, 1958/1998a, p.633-634).
Com efeito, um dos princípios decorrentes dessas premissas é que: ― se o desejo
efetivamente está no sujeito pela condição, que lhe é imposta pela existência do
discurso, de que ele faça sua necessidade passar pelos desfilamentos do significante;
e ― se, por outro lado, como demos a entender anteriormente, abrindo a dialética da
transferência, é preciso fundar a noção do Outro com maiúscula como sendo o lugar
de manifestação da fala. [...] ― deve-se afirmar que, obra de um animal presa da
linguagem, o desejo do homem é o desejo do Outro. [...] Isso visa a uma função
totalmente diversa daquela da identificação primária anteriormente evocada, pois não
se trata da assunção das insígnias do outro pelo sujeito, mas da situação de o sujeito
ter que encontrar a estrutura constitutiva de seu desejo na mesma hiância aberta pelo
efeito dos significantes naqueles que para ele representam o Outro, na medida em que
sua demanda lhes está sujeita. (LACAN, 1958/1998a, p.634-635).
64
A direção de tratamento que constituirá o próximo capítulo será pela via dos discursos.
As formações discursivas que caracterizam os laços sociais são, de acordo com Quinet (2009),
formas de tratamento do real do gozo pelo simbólico. Com o emprego de matemas que
permitam escrever os quatro discursos que estruturam o Outro, ainda que o sujeito psicótico
permaneça fora do laço, a sua direção de tratamento é algo que se revela ― pelo avesso ―
através do discurso do analista.
[...] há também um avesso dos discursos como um todo que é representado pelo avesso
ao laço social estabelecido, que é o psicótico. Ele é esse fora que nos remete ao fato
de que nós estamos presos aos discursos. Nesse sentido ele é livre: livre dos discursos
estabelecidos e seus avessos. Isso significa que há uma impossibilidade real relativa a
seu gozo, real a ponto de fazê-lo entrar na circulação dos laços sociais. (QUINET,
2009, p.52).
65
O delírio como foi visto no capítulo anterior, ao falarmos do caso Schreber, inscreve-
se como uma tentativa de cura na psicose. O esquema I foi visto como a representação do
processo de estruturação e os efeitos de estabilização e solução da psicose em Schreber, sob a
articulação da sua metáfora delirante, em que se dá a transformação em “A mulher de Deus” e
acontece a reinserção no laço, retomando a sua vida familiar e profissional. O sujeito psicótico
permanece foracluído, mas operar na direção de tratamento é realizável, como veremos na sua
possibilidade pela via discursiva. O que nos dá a dimensão, enquanto analistas, de não recuar
frente à psicose, e é exatamente essa a concepção que a Psicanálise possibilita a partir de Freud
e Lacan.
A partir disso, constitui-se uma questão paradoxal nessa clínica pensar a possibilidade
de uma direção de tratamento na psicose pela via discursiva. Quanto a essa questão, Quinet
(2009) destaca o seguinte:
Se eles estão fora-do-discurso e, portanto, fora do laço social por estrutura, isto não
quer dizer que jamais entrem em relação com um outro sujeito dentro do marco de um
dos discursos do mestre, do universitário, da histérica e do analista? A vida cotidiana
e a clínica com sujeitos psicóticos nos mostram que eles entram numa relação em que
está em jogo o governo, o comando, a dominação, a submissão, a educação, a
burocracia, o fazer desejar, a sedução, a provocação de saber, o psicanalisar.
(QUINET, 2009, p.09).
Pensando a psicanálise como discurso, uma práxis e uma ética que sustenta e dá lugar
efetivo à loucura no laço social, quais são os impasses implícitos ― envolvidos dentro do
contexto institucional da atenção psicossocial ― para realizar a escuta do desejo do sujeito na
psicose? E qual o modo de se fazer operar a possibilidade/impossibilidade dessa escuta na
circulação em rede da atenção psicossocial?
Figueiredo e Alberti (2006) nos dizem que, na relação da psicanálise com a saúde
mental, revela-se como uma aposta.
66
[...] para propor tal relação é preciso apostar nela. É a aposta na causa freudiana, de
que o desejo ― índice da presentificação do sujeito ― é a Fênix que sempre renasce
― por maiores que sejam as dificuldades que encontramos dos discursos, passando
pelas dificuldades do trabalho em equipe, a resistência ao tratamento, os interesses
econômicos que nem sempre levam em conta o sujeito e a reação terapêutica negativa,
para citar somente algumas. Sem a psicanálise não é possível tratar verdadeiramente
dessas dificuldades, razão de não bastar haver sujeitos atravessados pela causa
freudiana para sustentar a relação da psicanálise com a saúde mental. É também
necessário o psicanalista. (FIGUEIREDO; ALBERTI, 2006, p.09).
ciência é uma das lições, dentre muitas, que se pode tirar desse seminário. Para tal, a escrita do
discurso psicanalítico [...] formalizava” (CASTRO, 2009, p.248), ou seja, fornecia uma
formulação lógica para que os psicanalistas pudessem elaborar, de forma estruturada, a clínica
psicanalítica no mundo contemporâneo.
Quinet (2009) salienta que na clínica dos discursos, como propõe Lacan, permite-se um
acréscimo à clínica das estruturas subjetivas ordenadas pelo Édipo, e não a exclusão desta,
tratando-se de investigar não só a relação estrutural do sujeito e suas estratégias para lidar com
o desejo e o gozo do Outro, mas também se e como ele se insere nos discursos, sua relação com
a mestria (ou a autoridade), com o saber, com o outro do laço social, com o mais-de-gozar, ou
seja, os objetos pulsionais excluídos da civilização e sua posição com respeito ao gozo.
Ainda, referindo-se a acepções distintas de campo, o autor nos diz que, mesmo
ocorrendo a bipartição em dois campos no ensino de Lacan, esses não se excluem mutuamente.
“Assim como o âmbito do para além do princípio do prazer não exclui o inconsciente e a
metapsicologia, o campo do gozo com a teoria dos discursos e a nova concepção de sinthoma
não exclui o campo da linguagem com suas leis e a referência ao Nome-do-pai.” (QUINET,
2009, p.24).
Quinet (2009) nos sinaliza em qual campo estamos e nos interessa no que toca aos
discursos. “É um campo operatório cuja área é constituída por constantes e variáveis, sendo
estruturado por conceitos e matemas que lhe são próprios. [...] de acordo com a psicanálise é
uma operação no campo do gozo, ao qual Lacan batizou com o qualitativo de seu nome: o
campo lacaniano.” (QUINET, 2009, p.24).
8
A mais-valia representa, no sistema capitalista, a desigualdade entre o valor produzido pelo trabalho e o que é
recebido pelo trabalhador, pois este estaria alienado ao seu valor de produção. Lacan recuperou em Marx, e extraiu
o conceito homólogo de mais-de-gozar no contexto da produção dos discursos. O discurso então, seria definido
por uma produção de mais-de-gozar. “O discurso detém os meios de gozar, na medida em que implica o sujeito.
Não haveria nenhuma razão de sujeito, no sentido em que falamos de razão de Estado, se não houvesse, no mercado
do Outro, o correlato de que se estabelece um mais-de-gozar que é captado por alguns. [...] O mais-de-gozar é uma
função da renúncia ao gozo sob o efeito do discurso. É isso que dá lugar ao objeto a. Desde o momento em que o
mercado define como mercadoria um objeto qualquer do trabalho humano, esse objeto carrega em si algo da mais-
valia.” (LACAN, 1968-69/2008, p.18-19).
9
O objeto a conceituado por Lacan como objeto causa do desejo e inassimilável como objeto concreto,
estabelecerá, segundo Quinet (2009), a principal identificação do sujeito com um traço unário vindo do Outro, o
S1, o significante-mestre, matriz da identificação simbólica, e o S2, o significante binário, como um outro
significante para o qual o sujeito está representado. O sujeito estaria entre estes dois significantes. Segundo o
mesmo autor, a conceitualização do objeto a é o que permite a Lacan dar esse passo a mais e propor um novo
campo estruturado por aparelhos de linguagem que determinam as relações entre as pessoas. Pois é, o objeto a que
tetraedra o campo do gozo em quatro discursos. Ele é o matema tetraédico desses discursos. (QUINET, 2009,
p.27).
69
[...] o que se passa em virtude da relação fundamental, aquela que defini como sendo
a de um significante com um outro significante. Donde resulta a emergência disso que
chamamos sujeito ― em virtude do significante que, no caso, funciona como
representando esse sujeito junto a um outro significante. (LACAN, 1969-70/1992,
p.11).
Na escrita desses discursos, Lacan lança mão de quatro letras (a: o objeto a, mais-de-
gozar, condensador de gozo e causa-do-desejo; $: o sujeito barrado pelo significante;
S1: o significante mestre, o sê-lo, o significante pelo qual os outros significantes são
ordenados; S2: o saber constituído enquanto cadeia significante), distribuídas em
quatro lugares, divididos dois a dois ao modo de quadrantes e separados por duas
barras ― a barra ( / ) aqui cumpre a função de ser o sinal que estabelece a resistência
à significação, ou seja, a operação do recalcamento. Para especificar cada um desses
lugares de apreensão do efeito significante pelo sujeito (não nos esqueçamos que se
trata de um esquema calcado na lógica quadripartito). (CASTRO, 2009, p.249).
Lacan (1969-70/2008) ressalta que: “Eis um exemplo, se parece legítimo que a cadeia,
a sucessão de letras dessa álgebra, não pode ser desarrumada, ao nos dedicarmos à operação de
quarto de giro, iremos obter quatro estruturas, não mais, das quais a primeira lhes mostra de
algum modo o ponto de partida.” (LACAN, 1969-70/2008, p.12). E constrói os quatro
discursos, dando a cada um deles a seguinte nomeação10: o Discurso do mestre; Discurso
universitário; Discurso da histérica; e o Discurso do analista.
As setas dão a orientação de sentido para o quarto de giro circular na cadeia significante.
Tendo, para isso, um operador de progressão (sentido horário) e de regressão (sentido anti-
horário), permitindo a circulação nos lugares que estruturam os discursos. A impotência é
representada pelas duas flechas que se cruzam entre os discursos, impedindo que a produção
encontre a verdade.
10
Os quatro elementos são formulados a partir de um conjunto ordenado, onde cada estrutura é mantida em sua
composição. Porém, a produção dos quatros discursos é dada pelo ¼ de giro entre os matemas, tanto no sentido
anti-horário, quanto no sentido horário, ocorrendo daí uma permutação cíclica.
71
Partindo da representação dos matemas dos discursos, Quinet (2009) coloca que:
Além disso, os discursos nos permitem verificar qual o elemento dominante no laço
social. O que é, segundo Quinet (2009), o determinante do agir do sujeito, ou seja, ele age de
acordo com a dominante do discurso em que está inserido.
Lacan vai formalizar com os discursos esse modo de ação da dominante: o mestre
(S1), o saber (S2), o sujeito (S) ou o objeto (a). Ao especificar a dominante de cada
discurso Lacan a designa muito precisamente. No discurso do mestre a dominante é a
lei, no da histérica é o sintoma, no do universitário é o saber e no do analista, o mais-
de-gozar. Eis o que confere a marca de cada discurso, agindo de modo imperativo,
irrecusável, exercendo diretamente a sua influência sobre todos os outros elementos.
Assim, o que caracteriza a ação de governar é a lei, a do educar, o saber; no caso da
histeria, ou seja, do fazer desejar, é a divisão do sujeito expressa no sintoma, e o que
vai dominar o discurso do analista é o próprio analista com seu desejo, pois é ele que
dirige o tratamento. (QUINET, 2009, p.34-35).
Um outro ponto crucial é a inclusão da foraclusão. Inclusão tal que a atesta como uma
diferença radical no seio da sociedade. Quinet (2009) ainda nos faz um alerta a respeito da
inclusão da foraclusão do Nome-do-Pai, indicando ao trabalhador de saúde que este deve
precaver-se em relação, tanto ao seu furor sanandi, quanto ao seu furor incluendi. “Isto significa
não exigir dele a todo custo aquilo que é valor fálico em nossa ordem social (trabalho, dinheiro,
sucesso, competição, competência etc.), e sim deixá-lo fazer sintoma sem Nome-do-Pai, um
sintoma que pode ir do delírio à arte, passando por todas as artimanhas.” (QUINET, 2009, p.50).
74
No que se refere à construção do caso clínico, Viganò (2012) nos propõe uma primeira
abordagem, tomando a etimologia das palavras “caso” e “clínica”.
“Caso” vem do latim “cadere”, cair para baixo, ir para fora de uma regulação
simbólica; encontro direto com o real, com aquilo que não é dizível, portanto,
impossível de ser suportado. A palavra “clínica” vem do latim “klinein” e quer dizer
leito. A clínica é o ensinamento que se faz no leito, diante do corpo do paciente, com
a presença do sujeito. É um ensino que não é teórico, mas que se dá a partir do
particular; não é a partir do universal do saber, mas do particular do sujeito.
(VIGANÒ, 2012, p.116).
Nesse tipo de clínica institucional encontra-se uma orientação que vai tentar responder
a algum tipo de pacto que o laço social provoca. Casos de adolescentes, por exemplo, na saúde
mental são constantemente alvos de imagens de fragilidade, demandas sociais e objetalização,
sendo então comum a instrumentalização no âmbito público, a opção por soluções que não
consideram a escuta do sujeito. Podendo ainda fazer uma escuta a queixas que teria um viés de
amparo social através de proposições curativas, e levando, muitas vezes, a situações
cronificadas.
75
No caso da segunda orientação analítica, a que nos interessa nesta pesquisa, Viganò
(2012) vai nos dizer para manter o vazio de saber, o que quer dizer, em suas palavras:
Por fim, o autor propôs um terceiro ponto, que seria a construção do caso dentro dessa
orientação analítica. Viganò (2012) nos fala dessa construção como algo que deve restaurar a
topologia de um “furo originário [...] do furo da falta que causa o desejo” (VIGANÒ, 2012,
p.120).
O ato é um ponto de não retorno; é, pois, sempre alguma coisa eficaz. Pode-se pensar
que, quando se tenta fazer a exigência de falar de um tratamento, é porque se teme
que o êxito daquele ato seja infeliz. O êxito feliz de um ato é aquele por meio do qual
o sujeito no ato consegue dizer bem. Aprende a falar, se preferirem. É esse ato que se
trata de construir. [...] Para Freud, construir o caso era também construir a teoria. Em
outros termos, a construção de um caso é o discurso mesmo do psicanalista, que parte
sempre do particular. (VIGANÒ, 2012, p.122).
76
Relembremos, com a Figura 7 a seguir, o discurso do analista proposto por Lacan (1969-
70):
O discurso analítico seria o único que se estrutura como um ato, ou seja, é a escrita de
uma ruptura de laço, para que aí se invente um outro tipo de laço.
Outro ponto importante proposto por Viganò (2012) é a construção de caso enquanto
trabalho de equipe dentro do âmbito da saúde mental. Nesse eixo, o significante-mestre é
substituído por um debate democrático. A equipe multiprofissional composta pela assistência,
psicologia, enfermagem, psiquiatria, fonoaudiologia, educadores e ― não poderíamos deixar
de incluir ― a rede intersetorial, todos somos atravessados pelo discurso do mestre. Mas na
proposta de construção de caso clínico, o autor se vale do que ele chamou de “autoridade
clínica”.
A construção do caso, dentro do grupo, é um trabalho que tende a trazer à luz a relação
do sujeito com o seu Outro, portanto tende a construir o diagnóstico do discurso e não
do sujeito. [...] Trata-se de um novo percurso profissional que, a partir do coletivo,
tem a função motor, para lançar novamente o desejo de cada membro da equipe,
evitando, inclusive, a segregação ― que, desta vez, é das profissões ― em relação
àquilo que, juridicamente, estamos autorizados a fazer. (VIGANÒ, 2012, p.124-
125;126).
77
5 VINHETAS CLÍNICAS
Este capítulo traz alguns fragmentos da articulação clínica e teórica a respeito do que
está em pauta nos espaços institucionais de serviços substitutivos da atenção psicossocial,
através de desdobramentos decorrentes da construção do caso clínico em uma equipe multi e
transdisciplinar.
Assim, diante de tal proposta, como estabelecer uma clínica no SUS ― tal como nos diz
Endo (2017) ― que dê embasamento para a escuta do sujeito? Uma vez que esta escuta se
caracteriza como um contraponto em face às propostas terapêuticas ofertadas que trazem em
sua essência a atmosfera do campo institucional, onde há cenários impregnados pela implicação
11
Os casos clínicos abordados referem-se à experiência clínica institucional em CAPS Infantojuvenil da
pesquisadora em um momento anterior à atualidade pandêmica que vivenciamos nos anos 2020-2021.
12
À reabilitação de usuários com transtorno do espectro autista, preconiza-se atualmente uma linha de cuidado
amplamente direcionada à Análise do Comportamento Aplicada, conhecida como ABA (Applied Behavioral
Analysis).
13
Os Caps têm como premissa ser de portas-abertas, ou seja, há o acolhimento da demanda espontânea feita pelo
usuário e não somente o atendimento a demandas advindas de outros equipamentos de saúde e/ou serviços de
diversos setores, protocolo a ser seguido a partir das portarias ministeriais sobre os CAPS.
78
Importante observar o que Endo (2017) nos diz sobre o cotidiano das práticas, em que
se estabelecem pólos em contradição com a prática no âmbito da esfera de políticas públicas e
da clínica.
Esse contraditório pode ser visto nos ditames da Coordenação Geral de Saúde Mental
do Ministério da Saúde, local em que se produzem as diretrizes de atendimentos,
inseridos numa determinada política de saúde mental. Nesta construção do aparato
técnico para as ações de saúde mental, fica evidente a tentativa de uma aliança
harmônica entre a clínica e a esfera política. (ENDO, 2017, p.60).
Em que deve se basear a direção de tratamento do paciente 14, e onde entra o sujeito na
construção do seu saber no âmbito institucional? Isso bem poderia refletir a saída de cena da
clínica convencional, em que há a primazia do modelo médico. Tal modelo, conforme foi dito,
supõe prerrogativas protocolares pela de via de oficinas e atendimentos psicoterápicos, mas
também é direcionado pelas condutas administrativas e burocráticas.
O que não deixa de evidenciar que a intersecção institucional tem suas especificidades,
principalmente em se tratando das vertentes que se articulam entre si ― ou seja, o viés político,
clínico e institucional com cunho burocrático ―, por estarem vinculadas a um cotidiano
sucateado, que pode não ser suficientemente capaz de prover avanços necessários no setor.
14
Ao longo do texto, para referir-se ao sujeito, por vezes, adota-se o termo “paciente”, algo que nesse contexto
não assume a conotação de passividade do sujeito, mas sim de um usuário do dispositivo de saúde do SUS.
79
Chama a atenção o destaque que as autoras dão para o discurso institucional em que é
verificado um determinado aspecto do cotidiano de trabalho dentro dessas mesmas instituições:
uma manifestação burocrática ― face do discurso de mestria ― e suas modalidades de
perversidade. Revela-se, assim, a atuação de um dispositivo cruel, expresso em configurações
discursivas em que se fazem protagonistas os efeitos burocráticos conferidos a tais discursos
institucionais.
Importante salientar que, no caso da saúde mental, o meio de barrar o gozo do sujeito
psicótico é através da criação de um efeito de barra à própria instituição, condição essencial
para que haja a escuta desse sujeito, onde o estar atento à construção do saber advém da
experiência clínica que é dada caso a caso.
O exercício da clínica no Sistema Único de Saúde (SUS), como ressalta Endo (2017),
“demarca um cenário a ser investigado, o que não significa estabelecer uma especificidade desta
prática, mas observação, reflexão e análise do clínico-pesquisador sobre seus afetos e o páthos
presente nas narrativas construídas sobre os atendimentos neste contexto”. (ENDO, 2017,
p.125).
80
O olhar médico não encontra o doente, mas a sua doença, e em seu corpo não lê uma
biografia, mas uma patologia na qual a subjetividade do paciente desaparece atrás da
objetividade dos sinais sintomáticos que não remetem a um ambiente ou a um modo
de viver ou a uma série de hábitos adquiridos, mas remetem a um quadro clínico onde
as diferenças individuais que afetam a evolução da doença desaparecem naquela
gramática de sintomas, com a qual o médico classifica a entidade mórbida como o
botânico classifica as plantas. (ROTELLI; LEONARDIS; MAURI, 2001, p.92-93).
Pode-se admitir a universalidade formal que o SUS assume como uma de suas diretrizes,
mas o efeito do “um a um” em sua singularidade não deve ser perdido de vista. O sujeito vem
à análise ― ou a instituição solicita seu atendimento ― sob uma demanda de sentido
presentificado em seu sintoma, cabendo, através do discurso do analista, destacar que:
O ato analítico, com a não resposta à demanda de sentido que o sujeito traz com seu
sintoma, abre uma brecha no Outro, e a questão do desejo aparece no âmbito da pulsão
relacionado aos significantes da demanda que vão ser decifrados na história do sujeito.
A pulsão é um código pessoal do sujeito na medida de sua alienação ao Outro. A
pulsão está articulada com o Outro e se apresenta para o sujeito como uma alteridade
que toma a forma de uma demanda do Outro, demanda imperativa superegóica. Pois
a demanda do Outro é articulada a uma figura do Supereu, e o sujeito é ameaçado por
ela ― ele vive perigosamente a pulsão ― em virtude de sua consequência ser a
castração. É devido à pulsão, com sua exigência de satisfação, que o Outro demanda
sua castração. (QUINET, 2003, p.103).
Para que haja essa relação entre o sintoma e a doença, ou seja, o estabelecimento de
relação do significante com o significado, é necessária a intervenção de um ato que
será efetuado pelo olhar médico. Este transforma o sintoma em um significante que
significa imediatamente a doença como sua verdade, fazendo assim do sintoma um
sinal, um signo mórbido. [...] O ato médico constitui o saber através do olhar clínico,
da composição do quadro clínico em sua minuciosa descrição, fazendo do visível o
enunciado da doença. Ele aproxima assim o ver e o saber, o visível e o enunciável,
tendo como resultado a produção da verdade da patologia. (QUINET, 2003, p.119,
grifos do autor).
81
Em A direção do tratamento e os princípios de seu poder (1958), Lacan nos diz que o
psicanalista certamente dirige o tratamento. E a partir disso podemos verificar o que Elia (2017)
coloca, referindo-se ao conceito de psicanálise em extensão. O autor aponta que a Psicanálise,
aplicada no campo público, não tem equivalência ao conceito de extensão, e que é o desejo do
analista que assegura que o seu trabalho em tal campo tenha efeitos de Psicanálise. Assim, é
através do desejo do analista que se dá o operador lógico do processo analítico.
Para Elia (2017), o psicanalista que atua no campo público não é uma mescla de
pesquisador com trabalhador social e/ou universitário, e também não se caracteriza como um
semi-psicanalista, onde os interesses seriam divididos entre a psicanálise de um lado e as
questões sociais de outro. Ele se constituiria como um psicanalista inteiro, o que não quer dizer
que estaria em sua totalidade ― não-todo ―, pois, segundo o autor, no espaço institucional (do
território e do público) demandas e outros fatores são direcionados ao psicanalista, que é
convocado a responder a partir desses diversos lugares.
Sua função na equipe de atenção psicossocial não poderia não ser orientada pela
psicanálise, e seu exercício não pode não ser regido pelo desejo do psicanalista. Essa
afirmação não seria aceita na e pela comunidade de trabalhadores de saúde mental
com facilidade, e talvez eu não afirmasse isso se não estivesse em uma jornada de
psicanalistas. A exigência de pluralismo nas referências teóricas de um campo de
políticas e práticas públicas torna essa afirmação inaceitável, e vejam que situação
aparentemente contraditória: eu estou inteiramente de acordo com esta exigência ética
de pluralismo, e consideraria detestável se a psicanálise fosse exclusiva ou mesmo
principal referência de saber nas políticas públicas. A questão é de outra ordem:
estamos diante de um impossível do real, pois não é possível que a função de
supervisor clínico-territorial não seja exercida com base no desejo do psicanalista. Por
exemplo, o supervisor ocupa uma função êxtima na equipe, sendo seu elo íntimo com
o exterior, com a rede, e só a psicanálise tem uma topologia que dá conta disso. (ELIA,
2017, p.03, grifo do autor).
Outro, na puberdade, convoca o pai a partir do ponto sobre o qual ele não legisla. O sujeito
precisará inventar uma nova nomeação, uma nova inscrição no laço social.
A autora ressalta que “a questão do Pai como função simbólica é crucial na adolescência:
o adolescente faz um apelo ao pai na tentativa de dar conta do impacto do gozo que o invade.
Mas o pai será forçosamente incompetente para responder às questões cruciais do sujeito”.
(ALBERTI, 2009, p.14).
A partir das cenas expostas a seguir, pode-se pensar no desdobramento das dimensões
inerentes ao sujeito, que se orientam no tempo lógico e se estruturam como uma figura erótica
do tempo, diferindo do tempo cronológico.
O mesmo autor nos diz que as referências ao instante de ver, ao tempo para
compreender, e ao momento de concluir, são apresentadas por Lacan com os mesmos termos
utilizados por Freud para referir-se à economia da libido, sendo as três modalidades de tempo
indicadas por Lacan como uma tensão temporal. O “momento de concluir” seria pensado a
partir do modelo da “descarga”, numa referência ao circuito de tensão/resolução que
acompanha a dimensão quantitativa do princípio do prazer. “Podemos perceber que essa
articulação de um tempo libidinal à lógica vai mais adiante, pois trata-se também da erotização
de um tempo epistêmico, no qual as instâncias do ver, do compreender e do concluir encontram-
se na dependência de uma tensão libidinal.” (MANDIL, 2014, p.02).
É nesse contexto de uma “tensão temporal” que encontramos a referência ao ato, uma
vez que, para Lacan, a conclusão ou resolução desta tensão não se faz sem a sua
incidência. Nos termos do sofisma dos três prisioneiros, nenhuma dedução lógica
permitiria a qualquer um deles chegar a uma “asserção subjetiva”, a uma afirmação
sobre si mesmo ― no caso, uma afirmação sobre a cor do disco que cada um carrega
em suas costas ― sem a interposição de um ato. Nesse sentido, não é a certeza lógica
que produz a conclusão, mas o ato de conclusão que produz uma certeza, a partir da
qual o sujeito poderá fazer uma afirmação. (MANDIL, 2014, p.02).
presença de um enredo em que emergem à cena questões tecidas a partir do “instante de ver”,
do “tempo de compreender” e do “momento de concluir”, representados respectivamente por
“primeiro”, “segundo” e “terceiro momento” em cada um dos casos mostrados.
Durante as sessões o paciente trazia informações a respeito das suas incursões, pois, em
sua história, Matheus já havia passado por outras institucionalizações, e apresentava
descompensação emocional devido à transição recente da instituição de acolhimento a qual
pertencia.
Durante a infância, contou com os cuidados da avó, que recentemente havia falecido
(cerca de 1 ano). Seus pais eram separados e sua mãe havia perdido a guarda dos seus irmãos
15
A fim de preservar a identidade dos adolescentes, serão usados nomes fictícios para todos os envolvidos.
84
devido a envolvimento com drogas. Em sua história familiar, havia ocorrido o suicídio de sua
irmã mais velha, algo que o deixava, em seus relatos, muito perturbado. Fazia uso de drogas
em suas “fugas” da instituição, o que dava a entender que encontrou uma solução química para
suprir a falta da irmã. Em suas conversas comigo, dizia que tinha um bom relacionamento com
o pai, afirmando que o que o impedia de estar com ele era a madrasta.
A justificativa para tal demanda seria a de que o paciente estava “em situação
incontrolável dentro do abrigo”, após uma discussão em que Matheus arremessou tomates em
funcionários na cozinha. Por vezes se envolveu em situações de agressão com os funcionários
do abrigo, com outros acolhidos, com a madrasta, em outras instituições por que passou... Com
destaque para a dificuldade de Matheus de se situar dentro do discurso institucional e em
atender às demandas a ele dirigidas.
Fazendo uso da construção do PTS junto à equipe do CAPS IJ, estabeleceu-se o atendimento
clínico e psiquiátrico para Matheus. Evidenciando, pois, que não há uma proposta clínica
descolada da prática psiquiátrica e que, por vezes, limite a escuta do sujeito, por estar referida
apenas ao fato de “controlá-lo” organicamente através do ajuste medicamentoso. É nesse
sentido que o Projeto Terapêutico Singular assume a pertinência de uma representação de
“barra” a esse sujeito sem limites nem amarras.
Fingermann (2016) fala sobre a impotência do mestre em resolver esse “resto” que
permanece não subjetivável. O resto inapreensível da operação de subjetivação (alienação) do
discurso do mestre ― chamado objeto a ― passa a sustentar, enquanto verdade, o “semblante”.
O sujeito $ põe o significante mestre S1 para trabalhar, a fim de produzir um saber S2.
Esse saber que é uma produção que não é do sujeito, de acordo com Lacan (1969-70), e
que está na posição de uma pretensão insensata de ter como produção um ser pensante, um
sujeito.
16
A abreviação NP refere-se ao Nome-do-pai.
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Importante ressaltar que nos atendimentos no CAPS IJ Matheus fazia-se presente com
queixas e falas: “― Esses remédios estão me matando!”. Enfatizando sua impossibilidade em
lidar com o insuportável da invasão medicamentosa.
Em outro momento, nas intermitências entre fuga do abrigo e uso de drogas, houve uma
possibilidade de reinvenção de si mesmo para Matheus e, com ele demonstrando receptividade
com a proposta, como um anteparo, foi ofertada a inserção em um grupo de capoeira e a
retomada dos estudos. Porém, em seus últimos atendimentos com a pesquisadora, Matheus
apareceu vestindo terno e gravata, dizendo ter se convertido a uma religião evangélica. Falava
que em “nome de Deus” iria conseguir sair das drogas. Parecia ter encontrado essa referência
para amarrá-lo nos encontros evangélicos de que participava. Talvez o Nome-de-Deus ao qual
Matheus se referia fosse uma amarração possível ao Nome-do-pai foracluído.
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A inserção de pacientes psicóticos que fazem uso de drogas é dificultada por não haver, por vezes, um
diagnóstico que o sustente, ficando o usuário identificado ou reduzido ao “uso de drogas”.
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Foram feitas as primeiras entrevistas com a tia, já que todas as tentativas com o pai para
uma primeira abordagem foram em vão. Conversando com ela, a justificativa para o
encaminhamento de Joaquim era a sua inserção em um serviço de saúde que pudesse oferecer
um acompanhamento intensivo, já que ele não apresentava “aderência” à escola e a outros
equipamentos.
Havia queixas da tia em relação aos cuidados que o pai dispensava a Joaquim, que,
segundo ela, eram escassos... “― Ele mal fica em casa... Eu acabo ficando o tempo todo com
ele (Joaquim)”. Junto a isso havia inúmeras solicitações dela, direcionadas à equipe, para que
Joaquim fosse inserido em diversas atividades, assim como o acompanhamento intensivo com
a psiquiatria para conter a sua agitação.
Eis a seguir uma das cenas do cotidiano de atendimento com Joaquim. “Abre-se o
grande portão de entrada do CAPS IJ e lá está ele. Arrasta a tia pelo braço até a recepção, ao
que é recebido pela psicanalista/pesquisadora, e começa a fazer os seus diferentes trejeitos, tudo
isso para dizer que ele não queria subir. Circula pelo pátio, vai nos cavalinhos (brinquedos), e
é convidado a fazer uma atividade nos mesões de oficina. Os seus chamamentos são muitos.
Mas está na ordem do dia: hoje Joaquim vai circular por tudo!”
Nos dias de suas atividades, Joaquim fazia um circuito pelas dependências do CAPS IJ.
Certa vez, em um atendimento, ele quis tirar o tênis. Ao final, na hora de ir embora, foi pedido
que ele calçasse o tênis, ao que ele permaneceu parado. Ao ver a cena, a tia imediatamente veio
calçá-lo, dizendo: “― Se eu não calçar, ele não faz!” E, assim, seguia a sua rotina em casa
também, para tomar banho, ela precisa acompanhá-lo, “porque senão ele fica olhando a água
cair sem se molhar!”
Um ponto importante que se colocava era o de que, assim como no Caps e na escola,
Joaquim não conseguia ficar em sala de aula. Fazia o seu circuito também pelas dependências
da escola, permanecendo por poucas horas em aula (1 hora) ou, às vezes, nem conseguindo
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manter-se lá, o que gerava um desconforto na gestão escolar. Essa era uma questão que trazia
grandes dificuldades para as professoras, no que diz respeito à inclusão, porque passa por uma
dimensão que o enclausura em um viés assistencial ou médico.
Também se faz relevante nos situarmos quanto ao discurso sustentado pela equipe
naquele momento, pois era dado de antemão um saber já conhecido.
Nas discussões em equipe, o PTS de Joaquim era revisto como algo cujo cuidado
pudesse ser direcionado a suas questões familiares. Por exemplo, reconsiderar o lugar de
impotência em que a cuidadora o colocava, se colocava e colocava a equipe, em sua busca
infindável, de uma demanda à outra em um mosaico de padecimentos.
Construir uma clínica não segregativa no campo da saúde mental, onde não seja imposta
a cronificação do sujeito, constitui um desafio. Mas é possível, desde que se proponha sair do
discurso da impotência, o que, aqui, implicaria em não deixar de fora qualquer expressão
subjetiva de Joaquim, ainda que não correspondesse às expectativas da sua tia, da gestão escolar
ou mesmo da equipe de saúde mental.
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Cecília tinha 18 anos e frequentava o CAPS desde os 17, ocasião do seu primeiro surto.
Ficou um ano em isolamento e um mês trancada no quarto, só saindo para ser levada ao pronto-
socorro. Durante esse período houve uma notável precarização da sua higiene e prejuízos em
seu cuidado pessoal, momento em que permaneceu ao celular ― assistindo a séries adolescentes
― e em que desferiu constantes automutilações, expondo a sua fragmentação corporal. Ela não
aceitava contato, a não ser da própria mãe. Veio ao CAPS IJ sob encaminhamento da UBS de
referência.
Nesse ponto Cecília já havia completado a maioridade, ou seja, estava com 18 anos e
isso implicaria em não poder continuar sendo assistida no CAPS IJ, pelas leis institucionais.
Pensar em um rearranjo de PTS que saísse do circuito significante doença-medicamento se fazia
urgente. Importante destacar que Cecília parecia buscar ― diante do seu corpo, que ela corta,
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Esse grupo era realizado juntamente com a assistente social da equipe multiprofissional.
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que adoece e que se dissolve ― o amparo, suporte e reconhecimento do Outro, numa tentativa
de se constituir, de se amarrar.
Colocando o seu pedido em pauta, propôs-se que ela procurasse ajuda com a assistência
social sobre a possibilidade de “trabalho”, pois, segundo a equipe, ela mesma apontava para
este caminho.
Houve esforços da assistência social para inseri-la em um estágio, que Cecília iniciou,
mas, ao fim, não conseguiu sustentar, por questões de horário, assiduidade e demandas
medicamentosas.
Viganò fala: “Em síntese, trata-se de não colocar a pergunta: O que podemos fazer por
ele?, mas outra pergunta: O que ele vai fazer para sair daqui?” (VIGANÒ, 2012, p.120,
grifo do autor). A questão sobre um não saber do sujeito, que impõe um vazio e que pode
permitir a passagem à posição de trabalho de um analisante, poderia ser uma aposta para
Cecília.
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Estavam presentes Cecília e a mãe, juntamente com a psiquiatria e a assistência social.
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A questão colocada ― de como fazer laço num discurso no qual o sujeito psicótico está
foracluído ― passa pela criação de uma possível “gambiarra” que, aqui, se caracterizaria como
um PTS, sendo uma proposta que se opera em equipe e a partir da construção do caso. De
acordo com Viganò (1999), seria necessário reativar a relação do sujeito com o Outro,
precedendo o ato.
Alocar a psicanálise como balizadora para pensar a construção de PTS que tenham
como norte a dimensão do desejo ― intenta a sustentação de práticas clínicas nestes
equipamentos de saúde mental que preconizem o sujeito e não apenas a direção de
trabalho que os profissionais julguem necessária, e é um movimento no sentido de
assegurar estes serviços como espaços prioritários para a singularidade em sua
expressão mais particular, neste caso o sintoma. (DIAS, 2019, p.68).
O acting out, sendo uma das facetas de resposta subjetiva do sujeito, situa o seu sintoma
onde, a partir da conceituação feita por Lacan (1962-63/2005) no seminário A angústia, diz-se
que o desejo, para se firmar como verdade, envereda por um caminho em que só conseguiria
fazê-lo de uma maneira singular.
Kris, por estar num certo caminho que talvez tenhamos que nomear, quer reduzir seu
paciente com os recursos da verdade; mostra-lhe da maneira mais irrefutável que ele
não é plagiador; leu o seu livro, e esse livro é realmente original; ao contrário, foram
os outros que copiaram. O sujeito não tem como contestá-lo. Só que não está nem aí
para isso. E, ao sair, que faz ele? [...] ele vai comer miolos frescos. [...] O sintoma é a
mesma coisa. O acting out é um sintoma. O sintoma se mostra como outro. (LACAN,
1962-63/2005, p.139).
A experiência analítica assegura a tarefa de conseguir dizer tudo. O acting out surge
como obstáculo interno a essa tarefa, isto é, mostra o que não se diz, porque é impossível dizê-
lo.
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Lacan (1962-63/2005) diferencia o “acting out” da “passagem ao ato” como uma outra
resposta subjetiva. O autor ressalta que o momento da passagem ao ato é de maior embaraço
do sujeito. “É então que, do lugar em que se encontra ― ou seja, do lugar da cena em que, como
sujeito fundamentalmente historizado, só ele pode manter-se em seu status de sujeito ― ele se
precipita e despenca fora da cena.” (LACAN, 1962-63/2005, p.129).
Motta (2005) refere-se ao acting out como o surgimento do objeto a na cena, com seus
efeitos de perturbação e desordem, implicando em uma dinâmica subjetiva que faça com que o
sujeito traga à cena o objeto a. Diversa é a passagem ao ato, na qual é o sujeito que se encontra
fora da cena com o objeto a.
Trata-se aqui de referir o ato não apenas a uma conjuntura epistêmica mas também a
uma dinâmica libidinal. Talvez não seja exagero dizer que a precipitação, a aceleração
temporal, a pressa, a passagem pelo “desfiladeiro do eu-não-penso” ― todas elas
figuras de linguagem que procuram captar o momento imediato que antecede ao ato
― indicam a entrada do sujeito numa zona de radiação máxima do objeto (a), com
seus efeitos de desregulagem do tempo. (MANDIL, 2014, p.04).
É nesse sentido que, diante dos impasses clínicos apresentados nos casos de Matheus,
Joaquim e Cecília, e da condução dos desdobramentos institucionais, buscou-se trazer
discussões para o atendimento psicanalítico de adolescentes, advindos de outros setores
institucionais e/ou mesmo por demanda espontânea, imprimindo facetas possíveis de
articulação com a rede intersetorial.
Essa instrumentalização, que muitas vezes opta por soluções que não consideram uma
possibilidade de escuta singular, termina por reforçar as condições de anonimato da
queixa. Quem escuta essas queixas frequentemente está mais interessado em como
será possível amparar seu lugar na instituição, ou mesmo no “social”, a partir de
propostas curativas. Muitas vezes, as políticas propostas vão beneficiar mais àquele
que propõe do que propriamente terem efeitos de uma escuta singular daquele que
está demandando alguma coisa. (COSTA, 2006. p.161-162).
E, na mesma direção:
Ou seja, o sujeito, tal como concebido pela psicanálise, que na sua condição de
linguagem pode advir a uma condição desejante, é legado a uma face objetal, uma vez
que a obediência cega a regulamentos indica um princípio de automatismo dos atos,
sem uma intermediação da linguagem. Este é o próprio funcionamento da alienação,
de uma posição ― lugar e função ― precisamente apresentada por Lacan no Estádio
do Espelho. Assim, se configura um funcionamento em que um está a serviço, numa
condição objetal, do gozo do Outro, se produzindo uma relação de instrumentalidade.
É neste ponto que é possível aproximar burocracia e modalidade de perversidade: uma
instrumentalidade no plano discursivo expressa em derivações da forma gramatical
“Eu sei, mas”. (OLIVEIRA; VERONESE; PALMA, 2009, p.1348).
Costa (2006) destaca ainda algo pertinente em relação aos trabalhadores da saúde
mental. Segundo a autora:
Hermann (2009) nos diz que a banda de Moebius trata-se de uma figura topológica que,
ao realizarmos uma torção em uma tira de papel e fixarmos suas extremidades, teremos sua
representação. O autor cita a figura de Escher, que, segundo ele, permite perceber o andar das
formigas em um contínuo, de modo que o lado externo e o lado interno desaparecem.
Caminhando sob a superfície da banda, a formiga retorna ao mesmo ponto após realizar duas
voltas, estabelecendo então uma continuidade entre o lado interno e externo.
Assim, é preciso percorrer uma volta na banda para que o sujeito se encontre no avesso
de sua posição original. Mas são necessárias duas voltas para que ele retorne ao mesmo ponto,
perdendo uma cota de gozo, na forma de dívida simbólica ou causa desejante, para reinscrever-
se no pacto civilizatório e ao preço de fazer de sua perda condição mínima de desejo.
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E aqui, é o polo do desejo que se opõe à ética tradicional, como é possível destacar
nesta citação:
Para fazê-los compreender, tomei o suporte da tragédia, referência que não é evitável,
como o prova o fato de que, desde seus primeiros passos, Freud teve de tomá-la. A
ética da análise não é uma especulação que incide sobre a ordenação, a arrumação, do
que chamo de serviço dos bens. Ela implica, propriamente falando, a dimensão que se
expressa no que se chama de experiência trágica da vida. É na dimensão trágica que
as ações se inscrevem, e que somos solicitados a nos orientar em relação aos valores.
(LACAN, 1959-60/2008a, p.366).
É preciso simplesmente lembrar que o que nos satisfaz na comédia, nos faz rir, nos
faz apreciá-la em sua dimensão humana, não excetuando o inconsciente, não é tanto
o triunfo da vida quanto sua escapada, o fato de a vida escorregar, furtar-se, fugir,
escapar a tudo o que lhe é oposto como barreira, e precisamente as mais essenciais, as
que são constituídas pela instância do significante. (LACAN, 1959-60/2008a, p.367).
Referindo ao sintoma como bem-dizer, Quinet (2003) destaca que a ética da psicanálise
é o bem-dizer o sintoma.
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A tragédia de Antígona trata-se de uma das peças da trilogia, de Sófocles, em que a partir da interdição de
Creonte ― que representa a ética tradicional ― interdita-se o sepultamento de Polinices ― traidor da pátria ― de
acordo com os ritos sagrados onde este seria deixado a esmo. É invocada a partir disso a cena trágica de Antígona,
com um único desejo que é prover as homenagens funerárias para o seu irmão. Antígona nos revela uma posição
de radicalidade, pois ela não cede em seu desejo, ainda que às custas da própria vida.
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O bem dizer do sintoma é um dizer de verdade que toca o real, é um dizer sobre o
núcleo irredutível do real do sintoma. Eis a dimensão ética do sintoma, que a
psicanálise inaugura. [...] Diferentemente da medicina e da psiquiatria, onde se tenta
abolir o sintoma a todo custo, a psicanálise não promete a abolição do sintoma, pois
este é um signo do sujeito. Bem dizer o sintoma equivoca com abençoar o seu sintoma,
que aponta para a conciliação com o sintoma. Trata-se de uma conciliação distinta do
compromisso neurótico de recalcar a verdade da castração do sujeito. A verdade,
segundo Lacan, nós a recalcamos e com o real habituamo-nos. A conciliação com o
sintoma no final da análise implica, por um lado, em não recalcar a verdade do
sintoma, e sim bem dizê-la, e, por outro lado, em se habituar ao seu real, reduzido aqui
a um caroço ou núcleo irredutível. E qual o efeito dessa redução? É um efeito sobre o
mal-estar que o sintoma provocava. Bem dizer o sintoma é a condição para aquilo que
Lacan propôs para se referir à relação do sujeito com seu sintoma no final de análise:
savoir y faire, saber lidar com o sintoma. O bem dizer do sintoma a que leva uma
análise conduzida até seu final é a condição de saber lidar com ele. (QUINET, 2003,
p.141).
Um dos caminhos que essa discussão sugere é o trabalho com os dejetos institucionais.
Ou seja, a escuta daquilo que retorna como efeito de um discurso automatizado,
circunscrito à impessoalidade. Escutar e apontar para uma palavra que indique a
dimensão subjetiva parece ser um recurso fundamental. Servir como suporte para a
construção de um arranjo singular, no lugar de uma fala automatizada e subserviente,
é um trabalho que exige esforços de várias ordens. (OLIVEIRA; VERONESE;
PALMA, 2009, p.1351, grifo das autoras).
Entretanto, a questão não é fazer oposição às duas construções entre si, mas de alcançar
uma conexão entre a clínica no SUS, que supõe a construção do caso clínico no bem-dizer do
sintoma, e a clínica do SUS, que se ordena através de significantes organicistas burocráticos.
Este é o ponto de conexão importante, que pode permitir a sustentação de um operador clínico
psicanalítico viável na atenção psicossocial.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Do ponto de vista histórico, a partir das reformas e políticas públicas de saúde mental
que viabilizaram a desinstitucionalização de sujeitos em sofrimento psíquico, podemos pensar
que há uma direção no que remete aos espaços de referenciamento e às proposições de
tratamento — como os CAPS —, como foi visto na década de 70, devido ao estabelecimento
das transformações ocorridas no Brasil.
Ao mesmo tempo, isso não deixou de trazer paradoxos. Pois para a instrumentalização
da efetividade da clínica do SUS, não se pode perder de vista a articulação da psicanálise para
sustentar a singularização do cuidado ao sujeito psíquico, de acordo com a direção ética do
analista.
O sujeito na psicose, como foi visto nas vinhetas clínicas, experimenta a fragmentação
corporal em razão da falta do significante primordial do Nome-do-pai, e o exercício do papel
institucional estaria na transmissão da lei simbólica. Pois, suas respostas subjetivas vinculadas
ao sintoma, evidenciadas por actings e passagem ao ato, apontam para a circularidade da “não
escuta” singular nesses espaços institucionais.
Por fim, esta pesquisa buscou abordar a viabilização de uma prática do analista — em
um contexto institucional, político e clínico — que vise a ampliação de paradigmas. Não é
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possível esgotar o tema, mas, sim, a ampliação e abertura de novas frentes para possíveis
articulações entre a psicanálise e as práticas no âmbito da saúde mental.
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REFERÊNCIAS
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