Roger Chartier - o Mundo Como Representação
Roger Chartier - o Mundo Como Representação
Roger Chartier - o Mundo Como Representação
Roger Chartier
O editorial da primavera de 1988 dos Annales convida os historiadores a uma reflexo comum a partir de uma dupla constatao. Por uma lado, afirma a existncia de uma " crise geral das cincias sociais", que se nota tanto no abandono dos sistemas globais de interpretao, destes "paradigmas dominantes" que foram, durante certo tempo, o estruturalismo ou o marxismo, quanto na rejeio proclamada das ideologias que lhe haviam garantido o sucesso (ou seja, a adeso a um modelo de transformao radical, socialista, das sociedades ocidentais capitalistas e liberais). Por outro lado, o texto no aplica histria a ntegra de tal diagnstico, pois conclui: "No nos parece chegado o momento da hiptese de uma crise da histria, que alguns aceitam com excessiva comodidade". A histria , pois, vista como uma disciplina ainda sadia e vigorosa, no entanto atravessada por incertezas devidas ao esgotamento de suas alianas tradicionais (com a geografia, a etnologia, a sociologia), e obliterao das tcnicas de tratamento, bem como dos modos de inteligibilidade que davam unidade a seus objetos e a seus encaminhamentos. O estado de indeciso que a caracteriza hoje em dia seria, portanto, algo como o prprio reverso de uma vitalidade que, de maneira livre e desordenada, multiplica os campos de pesquisa, as experincias, os encontros.
Ao propor objetos de estudo, mantidos at ento inteiramente estranhos a uma histria dedicada por completo explorao do econmico e do social, ao propor normas de cientificidade e modos de trabalho imitados das cincias exatas (por exemplo a formalizao e a modelizao, a explicao das hipteses, a pesquisa em grupo), as cincias sociais minavam a posio dominante ocupada pela histria no campo universitrio. A importao de novos princpios de legitimao no domnio das disciplinas "literrias"desqualificava o empirismo histrico, ao mesmo tempo que visava a converter a fragilidade institucional das novas disciplinas em hegemonia intelectual (1). A resposta dos historiadores foi dupla. Operaram uma estratgia de captao posicionando-se nas frentes abertas por outros. Donde, a emergncia de novos objetos no seu questionrio: as atitudes perante a vida e a morte, os rituais e as crenas, as estruturas de parentesco, as formas de sociabilidade, os modos de funcionamento escolares etc. o que significava constituir novos territrios do historiador pela anexao de territrios alheios (de etnlogos, socilogos, demgrafos). Donde, corolariamente, o retorno macio a uma das inspiraes fundadoras dos primeiros Annales,dos anos trinta: o estudo dos utenslios mentais que o predomnio da histria das sociedades havia relegado um tanto a segundo plano. Sob a designao de histria das mentalidades ou, por vezes, de psicologia histrica delimitava-se um domnio de pesquisa, distinto tanto da velha histria das idias quanto da das conjunturas e estruturas. Sobre esses objetos novos (ou reencontrados) podiam ser postos prova modos de tratamento inditos, tomados de emprstimo s disciplinas vizinhas: tais como as tcnicas de anlise lingstica e semntica, os instrumentos estatsticos da sociologia ou certos modelos da antropologia. Porm esta captao (dos territrios, das tcnicas, das marcas de cientificidade) s poderia ser plenamente proveitosa se no se abandonasse nada do que tinha fundado a fora da discipilina, por meio do tratamento quantitativo de fontes macias e seriais (registros paroquiais, cotaes de mercado, atas notariais, etc.). Majoritariamente, a histria das mentalidades construiu-se, pois, ao aplicar a novos objetos os princpios de inteligibilidade previamente provados na histria das economias e das sociedades. Por isso suas caractersticas especficas: a preferncia pelo maior nmero, portanto pesquisa da cultura tida como popular, a confiana no numrico e na srie, o gosto pela longa durao, o primado conferido ao recorte scio-profissional. Os traos prprios histria cultural assim definida, que articula a constituio de novas reas de pesquisa com a fidelidade aos postulados da histria social, so a traduo da estratgia da disciplina que se outorgava uma legitimidade cientfica renovada garantia da manuteno de sua centralidade institucional ao recuperar em seu proveito as armas que deveriam t-la derrubado. A operao foi, como se sabe, um franco sucesso, estabelecendo uma aliana estreita e confiante entre a histria e as disciplinas que, durante certo tempo, pareciam ser suas mais perigosas concorrentes. O desafio ento lanado histria no final dos anos oitenta, como o inverso do precedente. No se ancora mais numa crtica dos hbitos da disciplina em nome das inovaes das cincias sociais, mas numa crtica dos postulados das prprias cincias sociais. Os fundamentos intelectuais do assalto so claros: por um lado, o retorno a uma filosofia do sujeito que recusa a fora das determinaes coletivas e dos condicionamentos sociais e que acredita reabilitar "a parte explcita e refletida da ao"; por outro lado, o primado conferido ao poltico que deveria supostamente constituir "o nvel mais abrangente" da organizao das sociedades e, no entanto, fornecer " uma nova chave para a arquitetura da totalidade". A histria , pois, convidada a reformular seus objetos (recompostos a partir de uma interrogao sobre a prpria natureza do poltico), suas freqentaes (privilgio concedido ao dilogo travado com a cincia poltica e a teoria do direito) e, mais fundamentalmente ainda, seu princpio de inteligibilidade, destacado do " paradigma crtico" e redefinido por uma filosofia da conscincia. Numa tal perspectiva, o mais urgente , pois, separar o mais claramente possvel a disciplina histrica (resgatvel s custas de "dilacerantes revises") das cincais sociais outrora dominantes (a sociologia e a etnologia) condenadas por sua adeso preferencial a um paradigma obsoleto (2). De maneira discreta e eufmica, o diagnstico proposto pelo editorial dos Annales, por seu tratamento diferenado da histria, que viveria uma " guinada crtica", e das cincias sociais, que viveriam numa "crise geral", parece-me partilhar algo desta posio. Da uma questo prvia: a constatao proposta pode ser aceita sem reservas? Proclamar, depois de tantos outros, que as cincias sociais esto em crise no basta para estabelec-la. O refluxo do marxismo e do estruturalismo no significa em si a crise da
sociologia e da etnologia, uma vez que, no campo intelectual francs, justamente distancia das representaes objetivistas propostas por estas duas teorias referenciais que se constroem as pesquisas mais fundamentais, invocando contra as determinaes imediatas das estruturas as capacidades inventivas dos agentes, e contra a submisso mecnica regra as estratgias prprias da prtica. A mesma observao vale a fortiori para a histria, obstinadamente refratria (salvo notrias excees) ao emprego dos modelos de compreenso forjadas pelo marxismo ou pelo estruturalismo. Do mesmo modo, no parece que o efeito "volta da China", evocado para designar as desiluses e as rejeies ideolgicas da ltima dcada, tenha contribudo muito para inquietar e modificar a prtica dos historiadores, pois poucos foram os que fizeram a viagem a Pequim. No foi o caso, sem dvida, nos anos sessenta, da gerao de historiadores que, de volta de Moscou, opunha abordagem dogmtica de um marxismo ortodoxo o projeto novo hoje recusado de uma histria social quantitativa.
dada sociedade no se organizam necessariamente segundo divises sociais prvias, identificadas a partir de diferenas de estado e de fortuna. Donde as novas perspectivas abertas para pensar outros modos de articulao entre as obras ou as prticas e o mundo social, sensveis ao mesmo tempo pluralidade das clivagens que atravessam uma sociedade e diversidade dos empregos de materiais ou de cdigos partilhados.
preciso considerar tambm que a leitura sempre uma prtica encarnada em gestos, espaos, hbitos. Longe de uma fenomenologia da leitura que apague todas as modalidades concretas do ato de ler e o caracterize por seus efeitos, postulados como universais (7), uma histria das maneiras de ler deve identificar as disposies especficas que distinguem as comunidades de leitores e as tradies de leitura. O procedimento supe o reconhecimento de diversas sries de contrastes. De incio, entre as competncias de leitura. A clivagem, essencial porm grosseira, entre analfabetizados e analfabetos, no esgota as diferenas na relao com o escrito. Os que podem ler os textos, no os lem de maneira semelhante, e a distncia grande entre os letrados de talento e os leitores menos hbeis, obrigados a oralizar o que lem para poder compreender, s se sentindo vontade frente a determinadas formas textuais ou tipogrficas. Constrastes igualmente entre normas de leitura que definem, para cada comunidade de leitores, usos do livro, modos de ler, procedimentos de interpretao. Contrastes, enfim, entre as expectativas e os interesses extremamente diversos que os diferentes grupos de leitores investem na prtica de ler. De tais determinaes, que regulam as prticas, dependem as maneiras
pelas quais os textos podem ser lidos, e lidos diferentemente pelos leitores que no dispem dos mesmos utenslios intelectuais e que no entretm uma mesma relao como escrito. "New readers make new texts, and their meanings are a function of their new form" (8). D. F. McKenzie designou com grande acuidade o duplo conjunto de variaes variaes das disposies dos leitores, variaes dos dispositivos dos textos e dos objetos impressos que os sustentam que deve ser levado em conta por toda histria que postule como central a questo das modalidades contrastadas da construo do sentido. No espao assim traado se inscreve todo trabalho situado no cruzamento de uma histria das prticas, social e historicamente diferenadas, e de uma histria das representaes inscritas nos textos ou produzidas pelos indivduos. Tal perspectiva tem muitos corolrios. De um lado, define um tipo de pesquisa que, necessariamente, associa as tcnicas de anlise das disciplinas pouco afeitas a semelhante proximidade: a crtica textual, a histria do livro, em todas as suas dimenses, a histria scio-cultural. Mais do que um trabalho interdisciplinar que supe sempre uma identidade estvel e distinta entre as disciplinas que firmam aliana , antes um recorte indito do objeto que est proposto, implicando a unidade do questionrio e do procedimento, qualquer que seja a origem disciplinar dos que os partilham (historiadores de literatura, historiadores do livro, ou toriadores das mentalidades na tradio dos Afnales). Por outro lado, esta interrogao sobre os efeitos do sentido das formas materiais leva a conceder (ou re-conceder) um lugar central no campo da histria cultural aos saberes mais classicamente eruditos: por exemplo, os da bibliography, da paleografia ou da codicologia (9). Porque permitem descrever rigorosamente os dispositivos materiais e formais pelos quais os textos atingem os leitores, esses saberes tcnicos, por tanto tempo negligenciados pela sociologia cultural, constituem um recurso essencial para uma histria das apropriaes. Esta noo parece central para a histria cultural, desde que seja reformulada. Esta reformulao, que enfatiza a pluralidade dos empregos e das compreenses e a liberdade criadora mesmo regulada dos agentes que no obrigam nem os textos nem as normas, distancia-se, em primeiro lugar, do sentido que Michel Foucault d ao conceito, ao tomar " a apropriao social dos discursos" como um dos procedimentos maiores atravs dos quais os dicursos so dominados e confiscados pelos indivduos ou instituies que se arrogam o controle exclusivo sobre eles (10). Distancia-se tambm do sentido que a hermenutica da apropriao, pensada como o momento em que a " aplicao" de uma configurao narrativa particular situao do leitor refigura sua compreenso de si e do mundo, logo sua experincia fenomenolgica tido como universal e subtrada a toda variao histrica (11). A apropriao, a nosso ver, visa uma histria social dos usos e das interpretaes, referidas a suas determinaes fundamentais e inscritas nas prticas especficas que as produzem (12). Assim, voltar a ateno para as condies e os processos que, muito concretamente, sustentam as operaes de produo do sentido (na relao de leitura, mas em tantos outros tambm) reconhecer, contra a antiga histria intelectual, que nem as inteligncias nem as idias so desencarnadas, e, contra os pensamentos do universal, que as categorias dadas como invariantes, sejam elas filosficas ou fenomenolgicas, devem ser construdas na descontinuidade das trajetrias histricas.
compsita) em que circulam um corpus de textos, uma ciasse de impressos, uma produo, ou uma norma cultural. Partir assim dos objetos, das formas, dos cdigos, e no dos grupos, leva a considerar que a histria scio-cultural repousou demasiadamente sobre uma concepo mutilada do social. Ao privilegiar apenas a classificao scio-profissional, esqueceu-se de que outros princpios de diferenciao, igualmente sociais, podiam dar conta, com maior pertinncia, dos desvios culturais. Assim sendo, as pertenas sexuais ou geracionais, as adeses religiosas, as tradies educativas, as solidariedades territoriais, os hbitos de ofcio. Alis, a operao que visa a caracterizar as configuraes cultuais a partir de materiais tidos como especficos a elas (assim, exemplo clssico na identificao entre literatura de colportage e cultura popular) parece hoje duplamente redutora. De um lado, assimila o reconhecimento das diferenas unicamente s desigualdades de distribuio; de outro, ignora o processo pelo qual um texto, uma frmula, uma norma fazem sentido para os que deles se apoderam ou os recebem. Tomemos o exemplo da circulao dos textos impressos nas sociedades de Antigo Regime. Compreendla exige um duplo deslocamento em relao s abordagens iniciais. O primeiro situa o reconhecimento dos desvios socialmente mais enraizados nos usos contrastados de materiais partilhados. Mais do que se admitiu por muito tempo, exatamente dos mesmos textos que se apropriam os leitores populares e os que no o so. Ou porque leitores de condio humilde chegassem a possuir livros que no lhes eram especificamente destinados ( o caso de Menocchio, o moieiro do Friul, leitor das Viagens de Mandeville, do Decameronou do Fioretto delia Bibbia, ou de Menetra, o vidraceiro parisiense, admirador fervoroso de Rousseau (13), ou que os livreiros-editores inventivos e avisados pusessem ao alcance de uma ampla clientela textos que circulariam apenas no estreito mundo dos letrados ( o caso da frmula editorial conhecida sob o termo genrico de Biliothque bleue, proposta aos leitores mais humildes desde o fim do sculo XVI pelos editores de Troyes). O essencial , portanto, compreender como os mesmos textos sob formas impressas possivelmente diferentes podem ser diversamente aprendidos, manipulados, compreendidos. Da a necessidade de um segundo deslocamento atento s redes de prtica que organizam os modos, histrica e socialmente diferenados, da relao aos textos. A leitura no somente uma operao abstrata de inteleco: por em jogo o corpo, inscrio num espao, relao consigo ou com o outro. Por isso devem ser reconstrudas as maneiras de ler prprias a cada comunidade de leitores, a cada uma dessas "interpretative communities "de que fala Stanley Fish (14). Uma histria da leitura no se pode limitar unicamente genealogia de nossos modos de ler, em silncio e com os olhos, mas tem a tarefa de redescobrir os gestos esquecidos, os hbitos desaparecidos. A questo de importncia, pois no revela somente a distante estranheza de prticas por longo tempo comuns, mas tambm os agenciamentos especficos de textos compostos para os usos que no so os de seus leitores de hoje. Assim, nos sculos XVI e XVII, e anda hoje muitas vezes, a leitura implcita do texto, literrio ou no, construda como uma oralizao, e seu leitor como um leitor que l em voz alta e se dirige a um pblico de ouvintes. Destinada tanto para o ouvido quanto para o olho, a obra conta com formas e procedimentos capazes de submeter o escrito s exigncias prprias do desempenho oral. Dos motivos tratados no Quixote s estruturas dos livros que costituem a Bibliothque bleue, numerosos so os exemplos da ligao tardia entre o texto e a voz. "Whatever they may do, authors do not write books. Books are not written at all. They are manufactured by scribes and other artisans, by mechanics and other engineers, and by printing press and other machines" (15). A observao pode introduzir uma outra reviso. Contra a representao, elaborada pela prpria literatura, segundo a qual o texto existe em si, separado de toda materialidade, preciso lembrar que no h texto fora do suporte que lhe permite ser lido (ou ouvido) e que no h compreenso de um escrito, qualquer que seja, que no dependa das formas pelas quais atinge o leitor. Da a distino indispensvel entre dois conjuntos de dispositivos: os que provm das estratgias de escrita e das intenes do autor, e os que resultam de uma deciso do editor ou de uma exigncia de oficina de impresso (16). Os autores no escrevem livros: no, escrevem textos que outros transformam em objetos impressos. A diferena, que justamente o espao em que se constri o sentido ou os sentidos , foi muitas vezes
esquecida, no somente pela histria literria clssica, que pensa o obra em si, como um texto abstrato cujas formas tipogrficas no importam, mas tambm pela Rezeptionssthetikque postula, apesar de seu desejo de historicizar a experincia que os leitores tm das obras, uma relao pura e imediata entre os "sinais" emitidos pelo texto que contam com as convenes literrias aceitas e "o horizonte de expectativa" do pblico a que se dirigem. Numa tal perspectiva, "o efeito produzido" no depende de modo algum das formas materiais que suportam o texto (17). No entanto, tambm contribuem amplamente para dar feio s antecipaes do leitor em relao ao texto e para avocar novos pblicos ou usos inditos.
Para o historiador das sociedade de Antigo Regime, construir a noo de representao como o instrumento essencial da anlise cultural investir de uma pertinncia operatria um dos conceitos centrais manuseados nestas sociedades. A operao de conhecimento est, assim, ligada ao utenslio nacional que os contemporneos utilizavam para tornar sua prpria sociedade menos opaca ao entendimento. Nas definies antigas (por exemplo, a do Dicionrio universal de Furetire em sua edio de 1727) (23), as acepes correspondentes palavra "representao "atestam duas famlias de sentido aparentemente contraditrias: por um lado, a representao faz ver uma ausncia, o que supe uma distino clara entre o que representa e o que representado; de outro, a apresentao de uma presena, a apresentao pblica de uma coisa ou de uma pessoa. Na primeira acepo, a representao o instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente substituindo-lhe uma "imagem"capaz de rep-lo em memria e de "pint-lo" tal como . Dessas imagens, algumas so totalmente materiais, substituindo ao corpo ausente um objeto que lhe seja semelhante ou no: tais os manequins de cera, de madeira ou couro que eram postos sobre a uma sepulcral monrquica durante os funerais dos soberanos franceses e ingleses ("Quando se vai ver os prncipes mortos, exibidos em seus leitos de morte, s se v a representao, a efgie") ou, mais geralmente e outrora, o leito fnebre vazio e recoberto por um lenol morturio que " representa" o defunto (" Representao diz-se tambm na igreja de uma falsa uma de madeira, coberta por um vu de luto, em torno do qual se acendem cirios, quando se oficia uma cerimnia fnebre") (24). Outras imagens funcionam num registro diferente: o da relao simblica que, para Furetire, "a representao de algo de moral pelas imagens ou pelas propriedades das coisas naturais(...). O leo o smbolo do valor, a bolha o da inconstncia, o pelicano o do amor materno". Uma relao decifrvel portanto postulada entre o signo visvel e o referente significado o que no quer dizer, claro, que necessariamente decifrado tal qual deveria ser. A relao de representao entendida como relao entre uma imagem presente e um objeto ausente, uma valendo pelo outro porque lhe homloga - traa toda a teoria do signo do pensamento clssico, elaborada em sua maior complexidade pelos lgicos de Port Royal (25). Por um lado, so essas modalidades variveis que permitem discriminar diferentes categorias de signos (certos ou provveis, naturais ou institudos, aderentes a ou separados daquilo que representado, etc.) e caracterizar o smbolo por sua diferena com outros signos (26). Por outro lado, ao identificar as duas condies necessrias para que uma tal relao seja inteligvel (ou seja, o conhecimento do signo como signo, no seu desvio em relao coisa significada, e a existncia de convenes regulando a relao do signo com a coisa), a Lgica de Port-Royal prope os termos de uma questo fundamental: a das possveis incompreenses da representao, seja por falta de " preparao" do leitor (o que remete s formas e aos modos de inculcao das convenes), seja pelo fato da "extravagncia" de uma relao arbitrria entre o signo e o significado (o que levanta a questo das prprias condies de produo das equivalncias admitidas e partilhadas (27). As formas de teatralizao da vida social na sociedade de Antigo Regime do o exemplo mais manifesto de uma perverso da relao de representao. Todas visam, de fato, a fazer com que a coisa no tenha existncia a no ser na imagem que exibe, que a representao mascare ao invs de pintar adequadamente o que seu referente. Pascal desnuda este mecanismo da "vitrina" que manipula os signos destinados a produzir iluso e no a fazer conhecer as coisas tais como so: Os nossos magistrados conheceram bem esse mistrio. As suas togas vermelhas, ps arminhos com que se enfaixam como gatos peludos, os palcios em que julgam, as flores-de-lis, todo esse aparato augusto era muito necessrio: e, se os mdicos no tivessem sotainas e galochas, e os doutores no usassem borla e capelo e tnicas muito amplas de quatro partes, nunca teriam enganado o mundo, que no pode resistir a essa vitrina to autntica. Se possussem a verdadeira justia e se os mdicos fossem senhores da verdadeira arte de curar, no teriam o que fazer da borla e do capelo; a majestade destas cincias seria bastante venervel por si prpria. Como, porm, possuem apenas cincias imaginrias, precisam tomar esses instrumentos vos que impressionam as imaginaes com que lidam; e destarte, com efeito, atraem o respeito" . (Pascal, Pensamentos, traduo de Srgio Milliet, So Paulo, Difuso Europia do Livro, 1957, pp. 70-71) A relao de representao , desse modo, perturbada pela fraqueza da imaginao, que faz com que se tome o engodo pela cerdade, que considera os signos visveis como ndices seguros de uma realidade
que no o . Assim desviada, a representao transforma-se em mquina de fabricar submisso, num instrumento que produz uma exigncia interiorizada, necessria exatamente o possvel recurso fora bruta: "S os homens de guerra no esto disfarados assim, realidade a sua parte mais essencial: estabelecem-se pela fora, ao passo que os outros o aparncia" (28).
Toda reflexo engajada sobre as sociedade de Antigo Regime s pode inscrever-se na perspectiva assim traada, duplamente pertinente. Por considerar a posio " objetiva" de cada indivduo como dependente do crdito que aqueles de que espera reconhecimento conferem representao que d de si mesmo. Por compreender as formas de dominao simblica, pelo "aparelho" ou pelo "aparato", como escreve La Bruyre (29), como o corolrio da ausncia ou do apagamento da violncia imediata. E portanto no processo de longa durao de erradicao da violncia, tornada monoplio do Estado absolutista (30), que preciso inscrever a importncia crescente das lutas de representao, cuja problemtica central o ordenamento, logo a hierarquizao da prpria estrutura social.
mentalidade" (ou de uma " viso do mundo" ou de uma " ideologia"), e depois fazia passar desta ltima a uma consignao social unvoca. A tarefa parece menos simples desde a partir do momento em que cada srie de discursos seja compreendida em sua especificidade, ou seja inscrita em seus lugares (e meios) de produo e suas condies de possibilidade, relacionada aos princpios de regularidade que a ordenam e controlam, e interrogada em seus modos de reconhecimento e de veridicidade. Reintroduzir assim no mago da crtica histrica o questionrio estabelecido por Foucault para o tratamento das "sries de discursos " certamente mutilar a ambio totalizadora da histria cultural, desejosa de reconstrues globais. Mas tambm a condio para que os textos, quaisquer que sejam, que o historiador constitui em arquivos, sejam subtrados das redues ideolgicas e documentais que os destruam enquanto "prticas descontnuas" (32).
Notas
1 Os dados relativos s tranformaes morfolgicas (peso numrico, capital escolar e capita; social dos docentes) das disciplinas universitrias durante a dcada de sessenta foram reunidas por P. BOURDIEU, L. BOLTANSKI e P. MALDIDIER, "La dfense du corps", Information sur les Sciences sociales, X, 4,1971, pp. 48-86. Eles constituem a base estatstica so livro de P. BOURDIEU, Homo academicus, Paris, Les Editions de Minuit, "Le sens commum", 1984, 302 p.
2 Para uma formulao coerente e radical destas proposies sob forma de constatao, ver M. GAUCHET, "Changement de paradigma en sciences sociales?", Le d'abat, 50, mai-aot 1988, p. 165170. 3 R. CHARTTER," Science sociale et dcoupage regional. Note sur deux dbats 1820-1920", Acts de la Recherche en Sciences Sociales, 35 novembre, 1980, pp. 27-36. 4 E. GRENDI," Micro-analisi e storia sociale", Quaderni Sttorici, 35,1972, pp. 506-520. 5 R. CHARTTER, Lectures et lecteurs dans la France d 'Ancien Regime, Paris, Editions du Seuil, 1987, 369 p. et A. BOURDEAU, R. CHARTIER, M. -E. DUCREUX, C. JOUHAUD, P. SAENGER, C. VELAYVALLANTIN, Les Usages de l 'imprim (XV e.-XIXe, sicles), Paris, Libraire Arthme Fayard, 1987,446 p. 6 P. RICOEUR, Temps et rcit,t. III, Le temps racont,Paris, Editions du Seuil, 1985, pp. 228-263. 7 W. ISER, L 'acte de lecture. Theme de l 'effect esthtique, Bruxelles, Pierre Mardaga, 1985 (tr. rf. de Der Akt des Lesens. Theme sthetischer Wirkung, Munich Wilhelm Fink, 1976). 8 D.F. McKENZIE, Bibliography Sociology of Texts: panizzi lectures, 1985, Londres, The British Library, 1986, p.20. 9 Como exemplo, cf. A. PETRUCCI, La scrittura, Ideologia e rappresentazione, Turin, Einaudi, 1986. 10 M. FOUCAULT, L "Orare du discoursing Editions Gallimard, pp. 45-47. 11 P. RICOEUR, Temps et rcit, op. cit.,t. III, p. 229. 12 Esta perspectiva deve muito ao trabalho de M. DE CERTEAU particularmente ao livro L 'Invention du quotidien, I,Arts de faire,Paris, Union Gnerale d'Editions, 10/18,1980. 13 C. GINZBURG, Le fromage et les vers. L'Univers d'un meunier du XVIe. sicle. Paris, Flammarion, 1980 (tr. fr. de il fromaggio e i vermi. Il cosmo di un mugnaio del '500, Turin, Louis Mntra, compagnon vitrier au 18e. sicle,prsent par Daniel ROCHE, Paris, Editions Montalba, 1982. 14 S. FISH, Is There a Text in This Class? The Authority of lnterpretative Communities,Cambridge (Mass.), Harvard University Press, 1989, pp. 1-17. 15 R. STODDARD, "Morphology and the Book from an American Perspective", Printing History,l7,1987, pp. 2-14. 16 R. CHARTIER, "Texts, Printing, Readings", The New Cultural History, introduo de Lynn Hunt, Berckeley, university of California Press, 1989, pp. 154-175. 17 H. R. JAUSS, Pourune esthtique de la rception, Paris, Editions Gallimard, 1978, pp. 21-80 (tr. fr. de Literaturgeschichte als Provokation, Frankfort-sur-le-Main, Suhrkamp Verlag, 1970, pp. 144-207). 18 P. BOURDIEU, Choses dites, Paris, Les Editions de Minuit, 1987, pp. 47-71. 19 E. DURKHEIM e M. MAUSS," De quelques formes primitives de classification. Contribuition l'tude des reprsentations collectives", Anne sociologique, 1903, reeditado em M. MAUSS Oeuvres compltes, 2, Reprsentations collectives et diversit des civilizations, Paris, Les Editions de Minuitv 1969, pp. 13-89 (citao p. 83).
20 M. MAUSS," Divisions et proportions de la sociologie", Anne sociologique, 1927, reeditado em M. MAUSS, Oeuvres compltes, 3, Cohsion sociale et divisions de la sociologie, Paris, Les Editions de Minuit, 1969, pp. 178-245 (citao p. 210). 21 Por exemplo, cf. C. GINZBURG, Les Batailles Nocturnes Sorcellerie et rituels agraires en Frioul, XVIeXVIIIe sicle, Lagrasse, Editions Verdier, 1980 (tr. fr. de I Benandanti. Stregoneria e culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turin, Giulio Einaudi Editore, 1966). 22 Por exemplo, cf. L. BOLTANSKI, OLes cadres. La formation d 'un groupe social, Paris, Les Editions de Minuit, 1982. 23 FURETIERE, dictionnaire universel,contenant gnralement tous les mots franais tant vieux que modernes et les termes des sciences et des arts, corrigido por M. Basnage de Bauval e revisto por M. Brutel de La Rivire, la haye, 1727, artigos Representation e Symbole (todas as citaes deste pargrafo so tiradas desses dois verbetes). 24 R. E. GIESEY, Le roi ne meurt jamais. Les obsques royales dans la France de la Renaissance, Paris, Editions Flammarion, 1987, pp. 137-145, " Effigie, representation et image" (tr. fr. de The Royal Funeral Ceremony in Remaissance France, Geneve, Libraire Droz, 1960, pp. 85-91). 25 A. ARNAULD e P. NICOLE, La logique ou l'art de penser,Paris, Presses Universitaires de France, 1965. Sobre a teoria do signo em Port-Royal, ver o estudo fundamental de L. MARIN, La Critique du discours. Etude sur la Logique de port-Royal et les Pernes de Pascal, Paris, Les Editions de Minuit, 1975. 26 A. ARNAUD e P. NICOLE, op. cit., Livro I, captulo IV, pp. 52-54. para uma discusso sobre a definio do simblico, ver a srie de artigos publicados no Joumal of Modem History aps a publicao do livro de R. DARNTON, The Great Cat Massacre and Other Episodes in French Cultural History,New York, Basic Books, 1984 (tf. fr. Le grand massacre des chats. Attitudes et croyances dans l'ancienne France, Paris, Editions Robert Laffont, 1985): R. CHARTIER, "Texts, Symbols and Frenchness", Joumal of Modern History, 57,1985, pp. 682-685, R. DARNTON, " The Symbolic Element in history", Joumal of Modern History, 58,1986, pp. 218-234, D. LACAPRA, " Chartier, Darnton and the great Symbol Massacre", Joumal of Modern History, 60, 1988, pp. 95-112 e J. FERNANDEZ," Historians Tell Tales: of Cartesian Cats and Gallic Cockfights", Joumal of Modern History,60, 1988, pp. 113-127. 27 A. ARNAUD e P. NICOLE, op. cit., Livro II, captulo XIV, pp. 156-160. 28 PASCAL, Penses, 104, in Oeuvres compltes, Paris, Editions Gallimard, "Bibliothque de la Pliade", 1954, p. 1118. (Trad, de Sergio Milliet, citada) 29 LA BRUYERE, Les caractres, Paris, Garnier-Flammarion, "Du mrite personnel", 27, pp. 107-108. 30 N. ELIAS, La Dynamique de l 'Occident, Paris, Calmann-Lvy, 1975, " Esquisse d'une thorie de la Zivilisation", pp. 187-324 (tr. fr. de ber den Prozess der Zivilizations, Soziogenetische und psychqgenetische Untersuchungen, Bern, Verlag, Francke AG, 1969, et Francfort-sur-e-Main, Suhrkamp, 1979, vol. II," Entwurt zur einer Theorie der Zivilization"). 31 L. W. LEVINE, Highbrow-Lowbrow. Tje Emergence of Cultural Hierarchy in /America, Cambridge (Mass.), Harvard University Press, 1988, pp. 11-81. 32 M. FOUCAULT, L 'Orare du discours, op. cit., p. 54. 33 N. ELIAS, La societ de cour, Paris, Editions Flammarion, 1985, pp. 108-110 (tr. fr. de Die hfische Gesellschaft. Untersuchungen zur Soziologie des Knigstums ind der hfischen Aristokratie mit einer Einleitung: Soziologie und Geschichtswissenschaft. Damstadt-Neuwied, Luchterhand, 1969).
34 R. KOSELLECK, Le rgne de la critique, Paris, Les Editions de Minuit, 1979 (tr. fr. de Kritik und Krise: eine Studie zur Pathogenese der burgerlichen Welt, Friburgo, Verlag Karl Albert, 1959, e Francfort, Shrkamp, 1976).
Roger Chartier historiador e diretor de estudos na cole des Hautes tudes en Sciences Sociales de Paris. Traduo de Andrea Daher e Zenir Campos Reis. * Texto publicado com permisso da revista Annales (NOV-DEZ. 1989, N 6, pp. 1505-1520). O original em francs encontra-se disposio do leitor no IEA para eventual consulta.
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