Declaracao de Principios Da Fag
Declaracao de Principios Da Fag
Declaracao de Principios Da Fag
APRESENTAÇÃO
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Para nós, a luta a nível nacional, num processo de construção que atinja - ou ao menos se
esforce ao máximo para atingir - todo o país, é nossa única chance num largo prazo. Como
anarquistas, somos partidários da organização política federativa. Entendemos que a melhor
forma de construir uma Organização Anarquista para todo o Brasil, é através da construção e
coordenação simultânea de organizações federativas a nível estadual-regional (como é o
caso da FAG).
Não existe um Brasil, mas sim vários brasis que se encontram e muitas vezes se chocam.
Vivemos em um país rico com seu povo condenado à fome, miséria e desespero.
Reconhecemos e reivindicamos as diversidades locais e regionais mas estamos totalmente
contra qualquer forma de separatismo.
Buscamos realizar uma luta popular e libertária que coordene as características regionais
com os aspectos nacionais da classe oprimida brasileira. Assim, vemos como possível a
construção de uma Organização política anarquista de intenção revolucionária atuando em
todo o Brasil.
Sabemos que não é e nem será fácil. Estamos de acordo com o que dizia a parcela mais
lúcida das organizações guerrilheiras dos anos 60: “no Brasil não existe fórmula pronta nem
receita de bolo para fazer a revolução. Aqui tudo é muito complexo, a revolução brasileira tem
de ser inventada!”
Alguns dos possíveis caminhos para esta “invenção” acreditamos que já podem ser
indicados, pois são fruto do aprendizado histórico e das experiências concretas realizadas por
nossa classe e povo durante 500 anos de luta. O papel das organizações políticas de
intenção revolucionária é aprender e implementar estes caminhos. Esta luta tem como
conseqüência abrir caminho em um longo prazo para um processo de revolução social
brasileira.
Atuar de forma integrada na América Latina é proposta e intenção antiga por parte dos
anarquistas. Desde o final do século XIX até os dias de hoje, nossa militância vem buscando
formas de enfrentar o inimigo no Continente.
No nosso caso, a tarefa é dobrada, pois temos a missão de combater o inimigo de classe
por dentro de sua potência regional sub-imperialista (o estado-nacional do Brasil). Desde os
tempos da colônia passando pelo império e agora república, o papel das classes dominantes
brasileiras em nível continental sempre foi o de contenção e ação contra-revolucionária. O
último exemplo deste papel é o Brasil como motor de integração das economias capitalistas
latino-americanas. Devido a dimensão de continente (não é exagero conceber este território
como a América Brasileira), aqui operam outros impérios além do império norte-americano.
Esta soma de estado-empresa-império fez do capitalismo brasileiro, promovido pela ditadura
militar, recordista em crescimento econômico e desigualdades sociais.
Em nível continental, reproduziram-se diversas variantes deste modelo de crescimento, de
equilíbrio na balança comercial, da função do estado como gerador de subsídios e infra-
estrutura para o capital privado, da entrada de multinacionais de peso, do fator militar como
garantia das mudanças dos rumos do sistema.
Agora é a vez do capitalismo neoliberal, flexibilização do trabalho regular, reajuste do
sistema, contenção dos gastos públicos (incluindo os gastos sociais), aumento da
competitividade, mais e mais vantagens oferecidas para o capital, menos e menos direitos
para os trabalhadores e marginalizados.
Nesta etapa de desenvolvimento do sistema se faz necessária uma resposta adequada em
todos os níveis da luta popular e ideológica, tentando com isso criar condições para uma
resistência em larga escala, que pode vir a gerar um processo e uma situação revolucionária.
Outra função da Coordenação é tentar dar resposta ao inimigo também de forma
integral. Isto faz de nossa luta libertária também luta anti-imperialista e solidária com os
movimentos revolucionários latino-americanos. Combater o imperialismo norte-
americano (atual polícia do mundo) e os outros imperialismos neste Continente, que o
inimigo pensa ser seu quintal, é tarefa de todos os revolucionários. Queremos apoiar
mutuamente as lutas populares latino-americanas através de nossas organizações
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coordenadas, participar nos processos revolucionários deste Continente, para termos a
chance de conquistarmos nossa libertação como classe e povos irmanados.
A ORGANIZAÇÃO E A IDEOLOGIA
Após uma trajetória de quase três décadas de lutas operárias ininterruptas, atuando sempre
com uma metodologia de ação direta, de forma clandestina ou pública, a Confederação
Nacional do Trabalho/Federação Anarquista Ibérica (CNT/FAI) levantou-se em armas contra
o fascismo. Simultaneamente, fez a guerra contra o franquismo apoiado pelas potências do
eixo nazi-fascista e também foi processando a revolução social. Em muitas zonas, o processo
revolucionário espanhol gerou a mais impressionante coletivização e autogestão de campos e
fábricas da história da humanidade. As milícias libertárias (operárias-camponesas-juvenis-
internacionais) combatiam por uma economia e sociedade controlada e gerida pelos próprios
trabalhadores, do campo e da cidade, através de seus sindicatos e entidades de base.
Também se provou, outra vez mais, que é possível fazer a luta armada sem militarizar,
produzir sem patrão nem hierarquia e funcionar a sociedade sem estado - tudo isso sendo
efetivado com maior planejamento e eficiência. Devido à supremacia bélica dos fascistas, a
não-intervenção das democracias capitalistas ocidentais, a traição dos comunistas e também
por nossas insuficiências, entre elas a falta de uma definição adequada do poder no projeto
político libertário, os trabalhadores espanhóis e do mundo inteiro foram derrotados na
revolução mais avançada de sua história.
O anarquismo mundialmente perdeu força após sua derrota na Espanha. Recobrou um
pouco de sua versatilidade, tendo um novo discurso, com os ventos do maio de 1968 (embora
ainda longe da força e do classismo libertário). Na desilusão com o dito “socialismo
real”(capitalismo de estado) e a partir de metade da década de 1980, o anarquismo ressurge
em algumas lutas socialistas e populares. A queda do muro de Berlim e do bloco soviético
reforça nossos argumentos de que não existe socialismo sem liberdade.
É verdade também que ainda estamos bem longe da inserção que tínhamos até as três
primeiras décadas do século XX. Nesses tempos, nossos companheiros protagonizaram as
lutas do proletariado em muitas partes do mundo. Mas em distintos países o anarquismo,
mesmo que de forma tímida em muitos lugares, busca constantemente ocupar de volta sua
função de ser uma opção real e viável, como método e caminho para a libertação popular.
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Houve movimentos de massas trabalhadoras, protagonizados por militantes anarquistas, na
maioria dos países latino-americanos. As grandes conquistas de nossa classe, em especial
da classe operária, foram fruto do esforço e dedicação de nossos companheiros e
companheiras que muitas vezes entregaram suas vidas pela classe e ideologia de que somos
parte.
Na Revolução Mexicana (1910-1917), a luta camponesa com orientação libertária
transformou-se em guerra revolucionária. Por “Terra e Liberdade” os indígenas, mestiços,
camponeses, operários e todos os oprimidos mexicanos lutaram até as últimas
conseqüências. Se levantaram em armas contra uma elite que lhes oprimia e oprime desde
1500 até hoje. Em todo esse processo revolucionário, uma organização anarquista foi um de
seus fermentos na ideologia e na ação. O Partido Liberal Mexicano –que inicialmente tinha
uma orientação liberal-radical, depois se torna anarquista mas manteve o nome anterior - e
seus militantes atuaram por mais de duas décadas, antes e durante a luta revolucionária, pela
conquista das terras coletivizadas, pela libertação indígena, camponesa e operária e para
formar um Poder Popular para derrotar o estado e a classe dominante. São esses mesmos
gritos, essa mesma ação direta que hoje vemos no México em diferentes expressões.
Ricardo e Henrique Flores Magón, Práxedes Guerrero e milhares de outros companheiros e
companheiras anarquistas se dedicaram de corpo e alma pela mais justa das causas. Estas
sementes, mesmo depois de mais de 70 anos de revolução traída, continuam e sempre
continuarão dando frutos.
Outro exemplo de anarquismo e povo em luta vem do vizinho Uruguai, a antiga Banda
Oriental. Do povo hermano que vive um pouco mais ao Sul, vem uma tradição de luta
libertária ininterrupta desde 1870. Sua expressão mais forte foi nos anos 60 e 70, quando a
Federação Anarquista Uruguaia (FAU, fundada em 1956 e hoje nossa co-irmã) enfrentou o
estado, a oligarquia e o imperialismo. Colocada na clandestinidade em dezembro de 1967, a
FAU através de seu braço de massas (a Resistência Operário Estudantil - ROE) e de seu
braço armado (a Organização Popular Revolucionária 33 orientais - OPR-33) promoveu a luta
de classes e a ação direta em todos os níveis. Inúmeras passeatas estudantis, ocupações de
fábricas (1/3 do movimento operário era de influência libertária), levantes e apoios nos bairros
proletários. Na resposta ao golpe militar no Uruguai (junho de 1973), a maior greve geral da
história desse país, com ocupações em todas as fábricas por mais de 15 dias.
Durante toda sua luta revolucionária a guerrilha urbana anarquista agia para aprofundar o
processo global de transformação e para apoiar o movimento operário e popular (onde
estavam profundamente inseridos) com ações como: expropriações bancárias, sabotagens,
propaganda armada e seqüestros de patrões e outros inimigos de classe.
Depois do golpe no Uruguai, por três anos a FAU resistiu aos militares, operando desde a
Argentina. Até que o golpe militar também naquele país (maio de 1976), e o posterior
assassinato de dezenas dos militantes anarquistas mais experientes, impediu esta
Organização de atuar organicamente por quase uma década. Mas ela se reproduziu em gente
nova que foi assumindo a luta contra a ditadura uruguaia (1973-1985) a partir de 1980. Com
os militantes que saem da prisão, que voltam do exílio e aqueles/as jovens que assumiram a
luta libertária nos últimos anos da ditadura, a FAU se recontrói em 1985. Hoje é parte viva e
ativa das lutas populares uruguaias e do anarquismo no Continente.
Os dois referentes mais importantes de organizações especifistas-anarquistas-
revolucionárias na América Latina estão nas organizações acima mencionadas: o Partido
Liberal Mexicano (PLM) e a Federação Anarquista Uruguaia (FAU).
A influência anarquista na América Latina também gerou uma identidade de combate.
Desde o século XIX é identificada a resistência popular com as cores negra e vermelha.
Devido a essas influências, as guerrilhas latino-americanas e outros movimentos políticos e
populares seguem utilizando nossas cores até os dias de hoje.
No Brasil, o anarquismo chegou na metade do século XIX (sua primeira aparição histórica
foi durante a Revolução Praieira, 1848, em Pernambuco; através da corrente mutualista).
Junto com os operários imigrantes, a partir da década de 1890, ganhou força real, atuando
com sentido classista e revolucionário. Até 1930 fomos hegemônicos no movimento dos
trabalhadores urbanos. De 1930 a 1937, disputamos palmo a palmo contra o bloco amarelo-
comunista-trabalhista o protagonismo das lutas operárias e urbanas.
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A classe trabalhadora brasileira conseguiu suas conquistas históricas lutando com a
bandeira e a ética libertária. As mesmas conquistas que hoje tentam nos tirar (as 8 horas de
trabalho, o respeito aos direitos do trabalhador, o salário mínimo e a cesta básica, etc.) vieram
do suor e do sangue dos trabalhadores em inúmeras lutas, nas greves gerais de 1917, na
tentativa de insurreição no Rio de Janeiro em 1918, nos enfrentamentos contra a patronal e a
repressão, na luta e organização das Federações Operárias estaduais e da Confederação
Operária Brasileira (COB, com seus congressos em 1906, 1913 e 1920). Toda uma cultura
operária e anarquista era combustível moral e militante para a luta de classes libertária, de
forma que além da atuação sindical se constituíram escolas libertárias, centros de cultura,
teatro social, coletivos feministas e inúmeros jornais operários.
Entre as medidas repressivas que incidiam frontalmente contra as atividades militantes dos
anarquistas se inclui a criação de uma colônia penal na Clevelândia (Oiapoque), em plena
floresta amazônica, entre os anos de 1924-27. Para lá eram mandados acusados de crimes
comuns, meninos de rua e presos políticos, em sua maioria anarquistas. Lá, em condições
precárias, os prisioneiros que não lograssem fugir logo morriam vítimas da malária. Entre os
mártires da Clevelândia se encontram militantes do movimento operário gaúcho, como Nino
Martins.
Assassinatos, deportações, torturas e desaparições já eram práticas comuns do governo em
relação aos militantes de esquerda.
O anarquismo a partir do golpe do Estado Novo (1937), quando foram fechados os
sindicatos livres e toda a ideologia condenada a clandestinidade, sofreu a maior derrota de
sua história no Brasil. É verdade também que algumas limitações, tais como falta de uma
análise da conjuntura que se desenhava, nos impediram de buscar uma forma de
organização para militarmos nas condições adversas que o inimigo nos impôs. Depois, de
1945 até o golpe militar de 1964 o anarquismo perde sua força de outrora mas ainda assim
mantêm militância em alguns sindicatos e desenvolve trabalho cultural e de propaganda. A
partir de 1985 veio o ressurgimento em maior escala de nossa ideologia. Após mais de uma
década de diversas tentativas, uma parte dos anarquistas (a qual nos incluímos) tenta abrir o
caminho libertário junto das lutas de nossa classe e povo.
No Rio Grande do Sul, como em todas as partes da América Latina, entendemos nossa
ideologia como parte dos 500 anos de resistência.
A história das lutas populares neste pedaço do Brasil começa com as lanças charruas,
minuanas e de tantos outros povos indígenas, erguidas contra os conquistadores portugueses
e castelhanos. Sentimos na própria veia tamanho sangue derramado pela ganância dos
impérios mercantilistas. Mas também sentimos na alma a dignidade dos primeiros povos
gaúchos, que domesticaram o cavalo trazido pelo invasor e sobre ele montados pelearam até
o último combatente.
Quando Portugal e Espanha entraram em acordo sobre a possessão destas terras, seus
filhos se levantaram em armas outra vez. Livrando-se da tutela colonialista, as Missões
Guaranis enfrentaram as potências da época. Uma guerra de libertação foi travada, e o povo
trabalhador guarani - que vivia de cultivar a terra e de manufaturas -, largou da enxada, arado,
martelo, entalhadeiras e forno de barro e ergueu a lança missioneira contra o invasor. Sepé
Tiaraju, Nicolau Languiru e milhares de outros anônimos combatentes escreveram a história
com o sangue e a alma dos filhos da terra em luta.
O Continente de Rio Grande de São Pedro foi colonizado como fronteira viva, por
latifundiários-militares, peões-soldados e trabalhadores escravos. A rebeldia dos
descendentes de charruas, guaranis das missões e mestiços gerou a cultura gaudéria numa
terra antes sem cerca nem fronteira. É esta mesma cultura e espírito de liberdade que
reivindicamos, que cultivamos como semente da luta popular cotidiana das pessoas simples
que não abaixam a cabeça para os poderosos.
As guerras da colônia, depois província do Império, contra o território hermano da Banda
Oriental (Uruguai) e contra as províncias argentinas vizinhas, levou a um povo da mesma
cultura (apenas sotaque diferente) a guerrear entre si por interesses de latifundiários,
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impérios, comerciantes, ditadores e caudilhos.
Também uma série de conflitos entre os partidos das oligarquias gaúchas cansou de atirar
povo contra povo quando havia necessidade. Pela “cor de um lenço”, mas não pelas terras
para serem compartidas, a gauchada se matou a mando dos fazendeiros até o princípio da
década de 1930.
Os trabalhadores negros escravizados nas charqueadas, olarias e estâncias conquistaram
sua liberdade campo afora, ou em armas (mesmo quando enganados), nas mais diversas
ocasiões (como durante a Guerra dos Farrapos). É esta mesma liberdade que tem de ser
conquistada todos os dias. De forma consciente ou espontânea, por instinto de sobrevivência
e dignidade, o povo negro daqui resiste. A cultura da etnia afro-brasileira, todos os dias é
marginalizada ou manipulada. No cotidiano de milhões de negros e negras, está o
enfrentamento e a peleia contra uma elite racista que manda no Rio Grande do Sul.
Os camponeses imigrantes chegaram aqui e foram trabalhar na lavoura ou criaram
minifúndios. Ao contrário da maioria dos descendentes de imigrantes, seguem pertencendo a
sua classe de origem e seguem sendo trabalhadores rurais. É dessa cultura e luta de classe
que tem origem o MST.
Com a chegada de uma leva maior de operários imigrantes, veio junto a ideologia
anarquista, e uma capacidade nunca antes vista de organizar os trabalhadores e oprimidos.
Este estado viu crescer uma das maiores lutas do proletariado brasileiro desde 1870,
quando os comerciários foram os primeiros a se organizar, até tomar forma, corpo e conteúdo
organizado. A primeira vez que se parou num 1º de maio neste estado foi em Porto Alegre,
em 1892. Já nessa ocasião, a classe operária se reuniu na Praça da Alfândega, prestando
homenagem aos mártires anarquistas e participando do ato promovido por nossos
companheiros.
Com a Federação Operária do Rio Grande do Sul (FORGS) presente em quase todo o
estado, a luta de classes cresce de maneira impressionante. São operários gráficos,
pedreiros, marceneiros, carpinteiros, professores, têxteis, garçons, da construção civil,
ferroviários, metalúrgicos, condutores, vidreiros, comerciários e diversas outras categorias
que se organizam. Os sindicatos são revolucionários e de orientação anarquista. O maior
momento foi em 1917, quando uma série de greves radicalizadas levou à greve geral em
Porto Alegre. Esta greve, de tão profunda, ganhou o nome de “Guerra dos Braços Cruzados”.
A classe organizada ganhou as ruas, ocupou e tomou os meios de produção e expulsou a
Brigada Militar na base da dinamite! Durante este conflito, os militantes anarquistas foram a
principal influência na Liga de Defesa Popular (LDP), comitê operário que orientou e
dinamizou a greve geral vitoriosa.
Sabendo que somos fruto e parte desta história, modestamente, mas com firmeza,
queremos ocupar nosso lugar nas lutas dos povos gaúcho, brasileiros e latino-americanos.
Fazemos nosso o sangue e a esperança índia, negra, dos gaúchos livres e dos trabalhadores
imigrantes. Esperança também que está nos sentimentos da gurizada das vilas, cujo destino
é uma incógnita e o futuro é o dia de hoje e quem sabe, o de amanhã.
Parte desta luta já tem um caminho apontado, pois plantando a justiça no chão ocupado e
semeado, os Trabalhadores Rurais Sem-Terra provam na prática que a luta é a única saída.
Os companheiros e companheiras camponeses que tombaram em diversos enfrentamentos,
como em Anoni e em Santa Elmira, não caíram em vão. Da dor de nossa gente que tombou
pela mesma causa tiramos a energia e a vontade de superar os problemas e as dificuldades
para seguir lutando.
Hoje em dia a responsabilidade de todos os militantes populares é imensa. Vivemos uma
época difícil, de pouca esperança em um destino diferente, de enfraquecimento das lutas
populares. Como os primeiros militantes anarquistas da época da FORGS, estamos de corpo
e alma para sermos uma semente a mais na caminhada, luta e libertação de nossa classe e
povo.
Esta é a nossa história. Este é o nosso compromisso.
Liberdade Responsável
Autogestão
Por afirmar a autogestão como princípio que expressa as novas relações sociais resultantes
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do socialismo somos partidários de uma crítica áspera ao controle das decisões exercido por
interesses privados ou através de estruturas burocráticas.
A sociedade socialista, no nosso ponto de vista, tem que significar para os trabalhadores
não somente a satisfação de suas necessidades materiais, mas a possibilidade concreta de
tomada de controle das decisões e gestão direta dos meios socializados de sobrevivência
com a mais ampla participação popular nos locais de trabalho, estudo, bairros, vilas e
associações culturais do mais simples ao complexo.
Os anarquistas sempre defenderam as concepções de autogestão e se debatem
frontalmente com as correntes socialistas que a postergam para a última etapa da luta social,
com a instauração da sociedade comunista. Segundo esse socialismo classificado de
autoritário por suas pretensões, o processo revolucionário deve necessariamente consolidar
suas conquistas e preparar o povo para um novo modelo de convivência social a partir da
concentração de poder político nas instituições do Estado. Essa fórmula foi definida por
ditadura do proletariado e estava fundada ainda na existência de uma vanguarda intelectual
que fosse capaz de assumir o governo do Estado identificada absolutamente com os
interesses da classe trabalhadora.
A história nos brinda exemplos dramáticos de quando a energia e a imaginação
revolucionária dos trabalhadores apoderados dos campos e das fábricas, das escolas e
rádios foram assaltados por interesses de governo Em outras palavras: quando o poder
exercido pelas organizações operárias e populares foi aos poucos absorvido pela classe
técnico-burocrática instalada na administração do Estado.
Consideramos tão desumanizadora quanto a alienação que separa o trabalhador do
resultado do seu trabalho a alienação do ser humano da sua vontade, da dimensão política
da decisão.
Como esclarece Luigi Fabbri: “Os anarquistas admitem também – e como poderiam deixar
de fazê-lo? – a necessidade de uma administração dos interesses sociais comuns; mas não
dão a essa administração um caráter estatal, quer dizer, não dão aos administradores os
meios e a faculdade de impor sua própria vontade, senão que somente lhes atribuem uma
função executiva.” A heterogestão imposta pelo monopólio estatal do poder político além de
um produto das classes dominantes é um produtor de classes dominantes.
Portanto, a autogestão para nós é um projeto de construção de autonomias individuais e
coletivas que rompe com a alienação proveniente da dominação capitalista através da prática
social e histórica de apropriação coletiva da economia pelos trabalhadores e da
democratização do controle das decisões.
Não acreditamos numa autogestão econômica plena dentro do capitalismo e cremos menos
ainda que modos de produção convivendo e comercializando com a exploração capitalista
possam ser uma saída popular profunda. Contudo não descartamos que em determinadas
circunstâncias unidades produtivas geridas pelos próprias trabalhadores pode se transformar
num espaço complementar de organização e luta que experimenta novos valores nas
relações de trabalho.
A autogestão é completamente oposta à realidade e aos objetivos da sociedade capitalista,
fazendo parte das lutas das classes oprimidas contra o sistema pela busca de uma nova e
mais humana sociedade.
Democracia Direta
Ação Direta
Classismo
Por ser uma sociedade baseada em um conjunto de mecanismos que ativam e reproduzem
relações de dominação, o sistema capitalista conforma uma determinada estrutura de
classes, ou seja, um ordenamento hierárquico de mando e/ou obediência onde estão
posicionados distintos estratos sociais. Como relação que pressupõe, em linhas gerais,
dominantes e dominados, a dominação é uma expressão dinâmica de um conflito que quando
está situado em uma estrutura de classes dá lugar a luta de classes.
O poder das classes dominantes reside no controle privado ou burocrático dos meios de
produção, comunicação de massas e serviços; na centralização das decisões políticas; nos
aparelhos de repressão e coação; na ideologia burguesa e nos valores que difunde sobre
todas a sociedade. Entendemos que o processamento da luta de classes constitui o motor da
mudança social sendo que na sua condução em sentido revolucionário joga um papel as
ideologias revolucionárias e uma adequada organização da vontade política.
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O anarquismo é a instrumentalização das idéias e aspirações de justiça social com
igualdade e liberdade que encontra na luta e na vida dos trabalhadores e dos oprimidos desse
sistema a sua potencialidade. Sua noção de humanidade projeta uma sociedade sem classes
nem dominação, meta que só a luta revolucionária das classes oprimidas pode alcançar. Por
isso “qualquer tentativa de fazer do anarquismo um atributo da humanidade atual, de atribuir a
ele um caráter humanitário geral seria uma mentira social e histórica”, pois em um sistema de
dominação “não há uma humanidade, há uma humanidade de classes: escravos e senhores”
(Plataforma).
Muito foi questionado sobre o caráter de classe do anarquismo como forma de combater a
sua influência no movimento operário mundial. Os socialistas da matriz marxista mais
ortodoxa fizeram uma campanha difamatória para identificá-lo com as ideologias da pequena
burguesia, dos pequenos proprietários de terra ou para o vincular pejorativamente com os
interesses do que chamaram “lúmpem proletariado” (camadas marginais da sociedade
lançadas fora da esfera de produção capitalista).
Essas acusações situadas em um contexto de disputas de hegemonia na classe
trabalhadora com início na 1ª Internacional já manifestavam sinais de totalitarismo incrustado
no pensamento socialista, que evoluíram até configurar-se historicamente como marxismo-
leninismo. Não aceitar a pluralidade ideológica revolucionária no interior dos movimentos de
classe significaria mais tarde a instituição do partido único e de um eficiente aparelho
repressivo contra as alternativas que não se enquadravam nas teses da “autêntica ideologia
do proletariado”.
Assim concluímos que o anarquismo é uma ideologia de todas as classes oprimidas e
exploradas enquanto tais, enquanto sejam capazes de se libertar sem oprimir ou explorar.
O anarquismo não é um sistema fechado de idéias ou uma teoria científica acerca dos
progressos sociais-históricos e suas leis fundamentais. A qualidade de ideário aberto
articulado por alguns princípios básicos caracterizam o pensamento libertário e a sua firme
posição anti-dogmática. Contudo, para fins de uma abordagem militante o definimos de uma
maneira geral como crítica às relações de dominação em todas os níveis da vida social,
crítica adequada a cada circunstância concreta a que está dirigida.
Nascida no século XIX, a ideologia anarquista se afirmou como crítica radical do capitalismo,
realizando uma luta teórica sem tréguas, ora específica ora mais global, contra seus diversos
mecanismos de poder.
A sociedade capitalista é um sistema baseado na dominação, um fenômeno histórico
específico do poder, que está operacionalizado pela exploração e controle do trabalho pelo
capital, com uma estrutura jurídica, política e repressiva que reproduz tal dominação.
É um sistema que conforma relações de produção, distribuição e troca que retiram os
trabalhadores das esferas de gestão direta dos seus meios de sobrevivência, tanto pelo
controle privado dos patrões quanto pelo controle burocrático dos aparelhos de Estado e seus
dirigentes.
O capitalismo constitui uma organização social que se apoia na centralização do poder
político no Estado, isto é, em um conjunto de instituições operadas por uma minoria
posicionada sobre a sociedade, que atribuídas da noção de impessoalidade, regulam o
conjunto social a partir de seus interesses particulares. Essa organização social funciona
também através de uma série de símbolos e significações que se difundem e conservam no
imaginário da população o fundamental de suas estruturas de dominação.
Não faltam exemplos que ilustram o caráter de sua ação classista tão danoso sobre os
trabalhadores, os pobres e marginalizados do campo e da cidade. Em 1960 20% da
população dos países mais ricos dispunham de uma renda 30 vezes superior à dos 20% mais
pobres. Em 1995, essa renda era 82 vezes maior.
A fortuna das 3 pessoas mais ricas do mundo ultrapassa o PIB acumulado dos 48 países
mais pobres, enquanto 3 bilhões de pessoas vivem com menos de 2 dólares por dia. 4% da
riqueza acumulada das 225 maiores fortunas seriam suficientes para satisfazer as
necessidades essenciais de toda a população dos países em vias de desenvolvimento:
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comida, água potável, infra-estrutura sanitária, educação, saúde… 2 bilhões de pessoas no
mundo sofrem de anemia, das quais 0,4% estão nos países industrializados. O número de
pessoas mal nutridas subiu mais que o dobro em 20 anos, passando de 103 milhões em 1970
para 215 milhões em 1990 (referência: PNUD 1998).
As 200 maiores empresas representam 24,5% do PIB mundial (1998) equivalente ao PIB de
150 países, enquanto que o patrimônio das 200 pessoas mais ricas do planeta passou de U$
440 bilhões em 1994 para U$1.042 bilhões em 1998 representando 41% da renda acumulada
de toda população mundial. Em 1999 existiam 1 bilhão e 500 milhões de pessoas pobres no
mundo, sendo que o Brasil possui 28,7% de sua população abaixo da linha de pobreza,
aproximadamente 47 milhões de pessoas. O desemprego estrutural em nosso país está a
uma taxa permanente de 10% da população (fontes: IBGE-PNAD-1998 e PNUD-ONU-1999).
A crítica socialista e libertária resulta para nós em atitude revolucionária contra esse sistema
porque a desigualdade social, a injustiça e a crueldade não são simples desvios mas traços
de sua própria natureza, de sua estrutura classista, de sua ideologia individualista. Por isso
rejeitamos o capitalismo e abraçamos o desafio de construir um mundo novo.
A Organização
O anarquismo não é e não pode ser contrário à organização e sua estreita relação
com as sociedades humanas. Esta é um elemento impossível de ser subtraído da vida social
e mesmo aqueles individualistas e antiorganizadores que a contestam como um prejuízo às
liberdades e iniciativas pessoais têm necessidade de se organizar na hora de agir por um
objetivo qualquer.
Por organização entendemos a soma das vontades de um conjunto de indivíduos que têm
por base um acordo mútuo empregam determinados meios para realizar suas finalidades.
Assim quando sofremos a vontade unilateral dos outros ou impomos nossa própria vontade
em detrimento das demais estamos diante de uma organização autoritária consubstanciada
por relações de dominação. Por sua vez, quando vivemos com os demais em fraternal acordo
visando a satisfação comum, teremos uma organização livre e horizontal.
Toda sociedade supõe organização ainda que isto não signifique Estado, isto é, um conjunto
de instituições políticas, jurídicas, militares, econômicas, financeiras, etc., por meio do qual o
povo é alienado da gestão de seus próprios assuntos, da direção dos meios para seu bem
estar pela centralização do poder por uma minoria que se vale da força coletiva e dos
“interesses gerais” da sociedade. O Estado é a forma atual de organização político-social que
os anarquistas combatem por seu caráter hierárquico e coercitivo.
Concordamos com a análise do anarquista italiano E. Malatesta quando considera: a
organização como princípio e condição da vida social, hoje e no futuro; a organização
específica anarquista e a organização das forças populares na luta anticapitalista. O
anarquismo além de crítica radical ao Estado e à hegemonia autoritária, se constitui também
em princípio organizativo que concebe a autonomia das práticas sociais e a federação criada
a partir de interesses comuns.
Como militantes anarquistas nos articulamos com uma organização própria para efetivar
uma prática política de intenção revolucionária. Estamos agrupados especificamente com
métodos, acordos e estruturas que têm a função de criar a unidade de ação.
O anarquismo militante historicamente foi avesso ao modelo de organização adotado por
outras doutrinas socialistas que esmaga a democracia interna e centraliza as decisões
segundo a vontade de uns poucos dirigentes. Ao centralismo e seus pretensiosos adjetivos o
anarquismo militante opôs o federalismo adequado à dinâmica de uma organização
anarquista e às condições históricas concretas da luta em que se inscreve. Porém, vale
comentar, o movimento libertário abriga distintas concepções organizativas que nem sempre
atendem ao interesses de militância revolucionária.
A Federação Anarquista Gaúcha é adepta do especifismo, como tal uma organização
política que concebe o federalismo como “concordância livre entre indivíduos e a Organização
em trabalhar coletivamente rumo a um objetivo comum. Contudo, tal acordo e federação, que
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é baseada nele, só poderão se tornar realidade, ao invés de ficção ou ilusão, sob as
condições essenciais de que todos os participantes do acordo e a Organização cumpram
completamente os deveres assumidos, conforme as decisões compartilhadas”.(Plataforma)
A questão da organização deve resolver o problema da coordenação e convergência das
atividades das forças militantes do anarquismo e se fazer instrumento eficiente de articulação
das suas frentes de luta segundo uma estratégia de longo prazo que aponta para a ruptura
revolucionária. Nesses termos não exime a noção fundamental de responsabilidade de seus
membros, “uma certa disciplina, não automática senão voluntária e reflexiva, em perfeito
acordo com a liberdade dos indivíduos (...) necessária sempre que muitos indivíduos, unidos
livremente, empreendam um trabalho ou uma ação coletiva qualquer”.(Bakunin)
Acreditamos que a ordem como imposição vertical de uma vontade não é o único fator
capaz de regular a participação coletiva, mas sim que esta pode ser organizada por um
conjunto de relações postas em atividade por decisões baseadas no acordo livre e
responsável. É possível e necessário promover a ação coletiva a partir de critérios que sejam
respeitados por todos que dispensam a força e a disciplina militarista em favor de motivações
solidárias conscientes em cada um. Isso vale para a organização específica anarquista, para
os movimentos populares e para a sociedade que queremos, fazendo de cada experiência de
luta e organização uma verdadeira escola de vida onde vamos aprendendo a confrontar e a
superar os esquemas autoritários que conformam a natureza do sistema capitalista.
Prática Política
Inserção Social
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A Intenção Revolucionária
Pretendemos lutar por uma utopia realizável. Uma utopia que é uma forma distinta de
organização social e de convivência entre os seres humanos.
Trata-se de uma forma de organização social ainda não experimentada. Nesse sentido, nos
propomos o impossível para torná-lo realidade. Assim concebido, o impossível é o que
demora um pouco mais, exige mais esforço, firmeza, imaginação e responsabilidade.
Existem duas exigências básicas: revolução e etapa de transição.
A transição é um tema que os socialistas revolucionários do século XIX não puderam
abordar, por limitações históricas. Em nosso século, a defesa do “socialismo real” ou diversos
modelos leninistas, condicionados por circunstâncias de sobrevivência, limitou, salvo
honrosas exceções, a análise do tema a um nível panfletário ou muito simplista. Hoje, diante
dos novos fatos históricos, há um retorno ao ponto de partida.
Em nosso movimento não existe literatura sobre esse tema. E mais, parece ser um tema
que tem sido constantemente passado por cima. Às vezes aparecem, aqui ou ali, menções
separadas e parciais do problema. Mas um tratamento metódico não foi feito.
Contudo, é um tema relevante, que tem efeitos sobre o conjunto do trabalho revolucionário a
ser realizado antes e depois da desestruturação da ordem capitalista. Dependendo de como
se interprete essa temática, determinados procedimentos e prioridades serão estabelecidas.
Temos designado como período de transição aquele que sucede à um evento revolucionário
e dá começo a uma nova forma de organização social. Para nosso caso específico, esse
começo é orientado para uma sociedade comunista libertária.
Antes de mais nada convém estabelecer uma ressalva que clareie nossa proposta. A
sociedade socialista e libertária não pode surgir por “evolução” do seio da sociedade
capitalista. Esta não dá lugar a modificações nessa direção, pelo contrário, combate
firmemente toda tentativa de modificação de suas estruturas fundamentais. O capital é inimigo
declarado desta transformação. Uma nova ordem social, correspondente a outro sistema,
será conseqüência de uma ruptura. No processo anterior à ruptura, os elementos destacados
da luta pela transformação serão ferozmente atacados pelo sistema capitalista, que sempre
trabalha por sua reprodução. Qualquer componente que afete essa reprodução será
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violentamente atacado. Violência que pode expressar-se em distintos níveis: político,
ideológico, econômico, social, físico.
De toda forma, é necessário destacar que existem atividades que podem e devem ser
realizadas no seio das sociedades capitalistas. Atividades sociais e políticas que permitem a
participação e a resolução de problemas da população. Atividades que geram, ao mesmo
tempo, noções e experiências; que fazem o crescimento da consciência e a confiança nas
próprias forças.
Tanto maiores serão as possibilidades de organização para o libertário, quanto mais esteja
desenvolvida a participação popular na etapa prévia da revolução.
Antes de abordar o tema transição parece-nos necessário esclarecer outra premissa, para
evitar equívocos.
A desestruturação de um sistema abre novas possibilidades, surgem combinações que não
estavam na ordem anterior. Daí que não podemos ver os limites com um olhar pleno do
horizonte capitalista que hoje temos frente a nossos olhos. Vão surgir possibilidades que não
podiam ser imaginadas na situação anterior. Não seria correto, então, ver somente os
referenciais anteriores, sem incorporar o “salto” que habilita a ruptura para iniciar um processo
até o libertário.
De todas as maneiras o “salto” não produz possibilidades ilimitadas, possibilidades mágicas.
As possibilidades de um determinado ordenamento social depois da revolução guardarão
certa relação com a realidade que o precedeu.
Não mudará radicalmente toda uma cultura de corte autoritário, individualista, de pouca
participação, de submissão aos que estão “por cima”. Uma milenária cultura que criou raízes.
Citando Bakunin, podemos dizer que “o ser humano está determinado pelas inumeráveis
relações políticas, religiosas e sociais, pelos hábitos, costumes, por todo um mundo de
preconceitos, ou pensamentos elaborados através dos séculos”. “Trata-se em essência de
educar para a liberdade, de elevar à consciência de sua força e capacidade a homens e
mulheres habituados à obediência e passividade”, como dizia Malatesta.
Não devemos esquecer que a transição é um período altamente conflitivo, onde seus
protagonistas se encontram abalados pela pressão de situações-limites, entre o que deveria
ser e o que é, devendo tomar decisões que, lamentavelmente, não são sentidas como
propriamente corretas em forma pura ou certa, situações que temos de assumir ou renunciar
a participar da história. Muito menos devemos esquecer que, na história, são inumeráveis as
transições que se tornam situações permanentes, além da vontade de seus atores. Às causas
interiores assinaladas temos que somar as exteriores, sejam estas à nível internacional ou
desde o interior da sociedade, sejam os elementos reacionários ou sejam aqueles que, em
discordância com a sociedade anterior, propõem um modelo de mudança e de sociedade
diferente, antagônico, ao que queremos construir.
E se trata, também, de ter em conta e valorizar os esforços cumpridos pela humanidade,
através de sua história, para melhorar sua própria condição. Junto da sujeição, o ser humano
é também portador de um instinto de liberdade, como o definem Bakunin e Noam Chomsky.
As lutas dos povos por justiça, melhores condições de vida, etc., refletem esse instinto.
Portanto, mesmo considerando as possibilidades que geram o “salto”, uma revolução não
cria o espaço para um ordenamento social libertário imediato. Ainda que tomando como
modelo uma certa história de participação da população. “Entre o homem e a sociedade
existe uma ação recíproca. Os homens fazem da sociedade o que esta é e a sociedade faz
deles o que são. Para transformar os homens há que transformar a sociedade”, escreveu
Malatesta.
De imediato, a revolução não será feita somente pelos libertários. É de se supor que várias
organizações políticas e sociais, de distintas orientações ideológicas, estarão presentes; que
forças da ordem capitalista destruída seguirão operando. Ao mesmo tempo as mudanças nos
costumes e formas de pensamento das pessoas não serão tão profundas para matar todo um
longo passado autoritário. Tudo isso limita o processo que se inicia. Importante é situar os
limites para não propormos inviabilidades que nos deixam por fora de toda e qualquer
incidência histórica. Pois, como disse Malatesta, ”a vida deve continuar um dia depois da
revolução e se não se puder organizar libertariamente essa vida as pessoas preferirão o
autoritarismo à ausência de funcionamento social”.
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Baseando-se no critério de que não haverá uma sociedade libertária no dia seguinte à
revolução, é obrigatório propormos tudo o que concerne a esse período de transição para o
ordenamento social mais acabado. Quais são as propostas gerais, a adequar a cada
circunstância histórica concreta, de formas de organização social para os distintos níveis:
econômico, político, ideológico-cultural, militar (organismos regulares de defesa da revolução,
ex.milícias populares), etc.
De acordo com o modelo de sociedade anarquista que queremos construir, nossa ação no
presente - aqui e agora - e no amanhã da ruptura e da transição, dá-se sobre dois eixos
básicos: o Poder Popular e a Organização específica. Sobre o primeiro, como já dissemos,
todo ato de democracia direta, participação popular, toda instância autogestionária é uma
contribuição na construção de nossa utopia. Mas, simultaneamente, é importante assumir a
lição da história de que é impossível chegar a uma sociedade socialista e libertária sem uma
Organização Anarquista inserida na realidade e forte politicamente, com uma estratégia
revolucionária que contemple os métodos a aplicar em cada conjuntura.
Não bastam frases genéricas e vagas. É preciso pensar o funcionamento da economia, das
instâncias globais de decisão política, a articulação das distintas áreas sociais, os valores a
ressaltar, etc.
É comum encontrar em nosso movimento e entre os teóricos clássicos do socialismo, a
suposição, não expressa mas de uma maneira implícita, de que os problemas que impedem
uma justa e solidária organização social são externos às pessoas. Tratar-se-ia de estruturas
econômicas e políticas, como o Estado, as quais estariam impedindo que fosse expressa uma
certa bondade inata que está brigando para sair na superfície social. Tratar-se-ia apenas de
acabar com essas estruturas (que assim vistas, ninguém sustenta) e o demais viria por si
mesmo.
Daí, então, que basta uma luta constante pela ruptura do sistema. O resto não está
revestido de complexidade. Uma parte disso, obviamente, é verdade. Mas daí a acreditar que
a disposição ao socialismo libertário é algo dado, natural, há uma grande distância. As
pessoas carregam em suas costas séculos de noções e representações, de referenciais
políticos e de convivência, de individualismo negativo. Existem práticas políticas e sociais que
tem profundas raízes. O poder não está só no Estado, exterior às pessoas. Existem egoísmos
que podem reproduzir antigas ou produzir novas formas de exploração e opressão.
A complexidade de um tal processo de transformação exige um alto nível de compreensão
dos mecanismos sociais. Caminhar com um projeto finalista que possa ser operativo nas mais
diversas circunstâncias conjunturais. Propor e resolver problemas, períodos de ação, estar
atentos às mudanças, calcular as próprias forças, as forças de inimigos e aliados pontuais.
Desenvolver uma capacidade de análise que permita adiantar-se aos acontecimentos para
poder agir com maior eficácia. Trabalhar por um desenvolvimento técnico e político que
permita a incidência correspondente.
A construção de uma sociedade socialista e libertária é tarefa voluntária, vinculada aos
processos reais. Não é possível efetivá-la de um dia para outro. É um processo social
voluntário que requer um processo, um largo aprendizado de novas formas de funcionamento.
Requer a destruição de velhos e vigorosos mitos.
A destruição do Estado (entendendo por Estado a forma atual, jurídico-política, da
sociedade de classes, das relações sociais vigentes), não é um ato pontual, conjuntural, mas
uma ação contínua, permanente de destruição e simultaneamente de construção de um novo
relacionamento social, é um processo não necessariamente uniforme e linear.
A forma que poderia adquirir essa transição necessária a designamos com o nome de Poder
Popular Democrático. A liberdade será uma orientação constante e prioritária de todo esse
período. Se conjugarão aqui a nova situação pós-revolucionária, as forças sociais e políticas
em jogo, as lutas ideológicas, o estado espiritual da população, os avanços possíveis e a
atenção da vida social em todos os seus aspectos. Cada processo oferecerá suas
possibilidades específicas, mas o modelo de transição parece ser comum a todos eles.
As propostas feitas mais atrás sobre democracia direta como sistema e ação direta como
orientação guardam estreita relação com a definição que aqui fazemos de Poder Popular
Democrático.
Outra coisa que é historicamente impensável é que serão os anarquistas que farão a
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revolução sozinhos. Igualmente impensável que faremos sozinhos a reconstrução. Pois isso
implicaria uma concepção de ditadura que não permitiria a expressão da discordância ou de
outras propostas. Mesmo no caso de sermos maioria estaríamos nos confrontando e também
fazendo acordos. Esse é o princípio básico da política. Está fora de nossa concepção uma
sociedade de doutrina ideológica única e de organização política única. A doutrina válida de
liberdade está em estreita relação com o que possa construir cada sociedade nesse sentido.
É impossível adivinhar quais e com que características serão os atores hegemônicos em
uma conjuntura revolucionária. Mas temos de admitir que podemos não ser a força
majoritária. Nesse caso, podemos chegar a ser, e isso depende de nosso desenvolvimento
político, uma força com alguma influência em algum processo revolucionário. O que implica
ter claro tudo que é necessário confrontar e compartir.
De nossas experiências históricas como movimento, a mais completa que temos é a
Revolução Espanhola, um projeto global de organização e uma força social de grande
importância. Ainda que, bem sabemos, tudo que esta revolução teve de compartir e enfrentar.
Muitas vezes um pensamento desejoso se situa fora das realidades sociais. Acredita-se
possível tudo o que se elabora ao nível de pensamento. Alguns discursos libertários têm algo
disso. Daí a subestimação dos problemas concretos da acumulação de forças para a ruptura
e a transição possível depois dela. Os dois temas apontados - 1) conceito de exterioridade e
de como é o ser humano; 2) confusão de processos sociais com processos de pensamento -
têm trazido um saldo muito negativo ao nosso movimento.
Uma sociedade com livre articulação de todas suas instâncias sociais, com todas as
pessoas participando, não precisaria de instância política específica. O que se espera de uma
sociedade completamente libertária é, ao mesmo tempo, transferido ao presente e à etapa de
transição. Por aí pode vir essa falta de idoneidade política do anarquismo, essa falta de
“ofício” que Peirats critica, referindo-se às experiências da Espanha e que é transferido, com
caráter mais geral, ao anarquismo. Por seu lado, falta demonstrar que uma sociedade
libertária possa prescindir da instância globalizadora que faz o político.
Aquela carência, aquela falta de ofício de que fala Peirats ao referir-se ao papel do
movimento libertário na Espanha, é conseqüência de vários fatos:
1) A já mencionada carência e imprecisão sobre o período de transição. O absoluto,
revolucionário e anarquista, eternamente adiado para amanhã, anula a possibilidade de
buscar respostas para hoje.
2) O repúdio e a confusão sobre o que é ação política, identificada por nosso movimento
somente com mecanismos e práticas próprias do sistema capitalista.
3) Uma visão totalizante do agir revolucionário, onde não se perceba como necessários nem
a confrontação, nem os acordos e alianças com outras forças políticas.
Para nós, a ação política é uma instância, ao mesmo tempo que globalizadora, de síntese,
que a sociedade deve possuir para ir resolvendo os problemas de caráter geral e nacional. É
uma instância que vai mais além, abarca muito mais que o simplesmente corporativo, parcial
ou regional. É através da ação política que se torna possível ir resolvendo o conjunto de
necessidades e problemas globais da população de um país. A ação política é a instância
específica e diferenciada e constitui um espaço particular das práticas. A organização que a
expressa, ou seja, a organização política, deve compreender essa particularidade.
As confrontações, contradições, acordos tirados no campo político têm um teor geral e
sintético. Pelo menos, hoje e no período de transição, a organização política se diferencia das
outras práticas sociais pelos temas que aborda e a forma como os trata.
Os processos de ruptura e transição requerem uma organização política revolucionária forte
e de desenvolvimento equivalente, com o adequado conhecimento: das forças em disputa,
dos diferentes acordos que são possíveis de concretizar, dos movimentos gerais da
conjuntura; do estado ideológico da população. Igualmente: bom desenvolvimento técnico;
planos para períodos; propostas para todo evento relevante; especial conhecimento do meio
em que se opera.
As precedentes considerações não esgotam, nem de longe, o tema. Temos procurado,
nesta oportunidade, deixar proposto um problema que entendemos de principal importância
para o nosso futuro. Como proposta geral para uma Declaração de Princípios, estimamos que
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é suficiente, mas para outros propósitos, insuficiente. Acreditamos que devemos continuar
analisando a problemática formulada.
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