Identidade e Comunidade Africana No Brasil
Identidade e Comunidade Africana No Brasil
Identidade e Comunidade Africana No Brasil
IDENTIDADE E COMUNIDADE
AFRICANA NO BRASIL
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física. Ainda, os africanos nasceram livres em seu continente de origem, foram
transformados em “mercadorias” e à condição de escravizado.
Outro termo que ainda causa desconforto nas relações raciais (negros e
brancos) é o termo negro. No período da escravização, esse termo era utilizado
no sentido pejorativo, para caracterizar aqueles escravizados que não aceitavam
as condições deletérias impostas e, portanto, utilizavam de estratégias de
combate e enfrentamento aos feitores e senhores.
O Movimento Negro ressignificou o termo, imprimindo um sentido positivo
e afirmativo para caracterizar aqueles que se reconhecem pertencentes às raízes
africanas e não aceitam o racismo, a exclusão, as desigualdades, portanto,
assumem posições proativas de luta pela emancipação e inclusão efetiva. Assim,
os termos negros e negras nas relações raciais contemporâneas remetem à
afirmação identitária pautada no reconhecimento e valorização coletiva.
Como dito alhures, a negritude brasileira tem origem na rota transatlântica
a partir do fim século XV e início do século XVI, em outras palavras, no tráfico
humano. Segundo Cashmore (2000), os africanos desterritorializados eram
oriundos de das regiões geográficas da África Ocidental (Senagal, Mali, Níger,
Gana, Togo, Benin, Costa do Marfim, Guiné Bissau etc.) e África Central (Angola,
República do Congo, Gabão, Camarões e Moçambique).
A captura dos africanos pelo interior do continente geralmente era feita por
outros africanos, visto que existiam disputas internas, conflitos e “escravidão
doméstica” entre os grupos étnicos. A afirmação simplista ainda presente no
nosso imaginário e nos livros didáticos de que a “escravização do africano foi um
processo fácil, pois o sistema de escravidão já existia na África” requer outro modo
de olhar e refletir acerca do passado. Conforme Cunha Junior (2007a), a
escravização dos africanos foi extremante difícil, envolveu muitas guerras e lutas,
“ninguém se deixou escravizar”.
Sobre a escravização doméstica existente no continente africano anterior à
chegada dos portugueses, não há qualquer semelhança com o sistema escravista
implantado no Brasil, ligado à exploração econômica. Há uma omissão deliberada
sobre a escravidão doméstica existente na mesma época na Europa e na Ásia
(Cunha Junior, 2007b).
No que tange à travessia nos navios/tumbeiros, Albuquerque e Fraga Filho
(2006) informam que são escassos os relatos de sobreviventes africanos no
interior dos tumbeiros. Em 1649, o capuchinho italiano, frei Sorrento, a bordo de
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um tumbeiro contendo quase mil africanos arrancados de sua terra, registrou:
“aquele barco [...] pelo intolerável fedor, pela escassez de espaço, pelos gritos
contínuos e pelas infinitas misérias de tantos infelizes, parecia um inferno”.
Durante a cruel travessia pelo Atlântico, que poderia durar mais de um mês,
os africanos estabeleciam laços de solidariedade entre eles. Chamavam-se
“malungos” uns aos outros, termo que os unia como grupos étnicos distintos e
criava profundos laços de solidariedade (Albuquerque; Fraga Filho, 2006).
Os colonizadores, estrategicamente, desde a travessia até a chegada e
dispersão no Brasil, colocavam no mesmo espaço grupos negros de diferentes
etnias, sendo bantos, zulus, yorubás, angolas, com o objetivo principal de
dificultar/impedir a organização e enfretamento dos escravizados mediante o
sistema opressor.
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A chegada dos africanos ao Brasil e o desembarque em algum porto já lhes
permitia manter a percepção de que as condições que teriam que enfrentar para
sobreviver não seriam fáceis, mediante experiência da travessia atlântica.
Assim, retirados dos navios e divididos aos lotes, eram tratados como se
não tivessem sentimentos, eram “peças”, “coisas” a serem comercializadas,
portanto, qualquer atitude vinculada à condição humana é desconsiderada.
Grupos étnicos culturalmente diferentes eram misturados, da mesma forma que
parentes próximos (pai, mãe, filhos, irmãos) eram separados.
O Valongo teria recebido ao menos meio milhão de escravos entre fins do
século XVIII. Essa área do cais representa o maior porto negreiro das Américas e
constitui um lugar emblemático da diáspora africana em nível internacional. Os
africanos chegados debilitados ou doentes permaneciam no Valongo por dias em
recuperação, para logo serem expostos ao comércio. O índice de mortalidade no
Valongo era alto, fato comprovado mediante à construção de um cemitério nas
proximidades dessa área com finalidade de sepultar os africanos recém-chegados
(Soares, 2011).
Conforme apontam Albuquerque e Fraga Filho (2006), os compradores
examinavam o corpo de homens e mulheres de acordo com os critérios criados
pelos “especialistas em exames fenotípicos/corporais”, que definiam o que
significava ter boas condições físicas para desempenhar determinadas funções.
A inspeção corporal fazia parte do conjunto de sofrimentos imputados a esse
coletivo, a extrema subnutrição, as doenças, a exposição quase nus, enfim, a
captura, a travessia e a chegada dos africanos são marcadas pela concepção de
que o “[escravizado] perde sua origem e personalidade. O [escravizado] é um
sujeito sem corpo, sem antepassados, nomes ou bens próprios” (Schwarcz, 2001,
39).
O mercado escravista mantinha alguns códigos, leis e acordos tácitos entre
vendedores e compradores. Assim, após a inspeção corporal, havia um acordo
entre vendedores e compradores. Por exemplo, se no período de quinze dias o
escravizado morresse, o comprador tinha direito de receber outro.
No que alude à dispersão, no século XVII, Salvador e Recife eram os
centros distribuidores dos africanos que desembarcavam na colônia. Por meio
desses centros, os africanos escravizados poderiam seguir para diversas regiões
naquela época, “capitanias hereditárias”, mas a concentração ocorria nas áreas
produtivas.
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Já no século XVIII, com a descoberta de ouro e pedras preciosas na região
Sudeste (Minas Gerais), o Rio de Janeiro torna-se o centro de dispersão. A partir
dali os africanos escravizados eram conduzidos para províncias de São Paulo,
Minas Gerais, Goiás, Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do sul (Albuquerque;
Fraga Filho, 2006).
No que se refere à dimensão do trabalho desenvolvido pelos sujeitos
negros no Brasil escravista, Henrique Cunha Junior (2007b) destaca que o
trabalho compulsório foi realizado por mais de 300 anos, com especificidades
diferentes conforme região, época e ciclos produtivos do Brasil colonial. Segundo
o autor, as variações produtivas fizeram com que o Brasil recebesse uma
diversidade de conhecimentos trazidos pelos africanos vindos de diferentes
regiões geográficas. Todos os ciclos de produção implantados no Brasil contavam
com o domínio de conhecimentos especializados dos africanos.
Ainda, segundo Cunha Junior (2010), os ciclos econômicos da Formação
Histórica do Brasil têm vínculo direto e inseparável dos conhecimentos técnicos e
tecnológicos da história africana. Esse fato é geralmente oculto na História do
Brasil, visto que a História Africana é quase que completamente desconhecida no
país.
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eles, não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho
corrente” (Antonil, 1977, XI).
Em 1700, o artigo “Economia Cristã dos Senhores no Governo dos
Escravos”, de autoria de Jorge Benci, tinha como objetivo ensinar aos
proprietários de escravizados formas de ampliar os lucros, por meio de um trato
menos desumano. A intenção era doutrinar, disciplinar, dominar utilizando,
quando necessário, formas de castigos menos penosas, “porque as prisões e
acoites, mais de qualquer outro gênero de castigos, lhes abatem o orgulho e
quebram os brios” (Benci, 1977, p. 50).
Na época do escravismo, os sujeitos africanos recebiam diferentes
denominações, conforme o domínio da língua portuguesa. Assim, os que não
falavam, não compreendiam português e ainda desconheciam os valores culturais
dos portugueses eram considerados boçais.
Já aqueles que aprendiam a língua portuguesa, se adaptavam aos
costumes culturais portugueses e desempenhavam de maneira satisfatória as
tarefas atribuídas eram chamadas de ladinos. Por fim, aqueles que nasciam no
Brasil, tinham domínio da língua portuguesa e incorporavam os valores culturais
dos portugueses eram chamados de crioulos.
No Brasil escravista, as tarefas majoritariamente eram desenvolvidas pelos
escravizados, daí surgiu o preconceito em relação ao trabalho manual e livre, e
mediante mão de obra compulsória o trabalho livre estava associado à desonra.
Ainda, a percepção em relação à posse de escravizados no Brasil colonial estava
associada ao símbolo de poder e prestígio de quem os possuía, o prestígio e
importância na hierarquia social eram avalizados pela quantidade de
escravizados.
O cotidiano nas fazendas dos ciclos econômicos (açúcar, ouro, café) era
árduo, com extensas jornadas de trabalho e alimentação escassa. As pessoas
negras escravizadas desempenhavam diversas tarefas, desde a atividade
principal até aquelas com menos prestígio, não menos importantes. Assim,
existiam pessoas negras escravizadas exercendo profissões de músicos, artistas,
intelectuais, médicos, enfermeiros, farmacêuticos práticos. (Karasch, 2000).
O letramento e a alfabetização sempre estiveram no horizonte de aspiração
da população escravizada, dentre as formas mais potentes para (re)existência.
Conforme Fonseca (2001), a escolarização de pessoas negras era realizada
apenas nas brechas do sistema colonial, como uma forma de resistência e
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contestação. O autor ressalta que legalmente no Brasil o acesso à leitura e escrita
era vetado a pessoas escravizadas.
De outra perspectiva, Morais (2007) destaca a observação de Gilberto
Freyre na obra Casa Grande e Senzala quando diz que “nas senzalas da Bahia
de 1835 havia talvez maior número de gente sabendo ler e escrever do que no
alto das casas-grandes”. Esta frase corrobora o que outros intelectuais afirmaram
sobre os conhecimentos trazidos pelos africanos, os malês escravizados na Bahia
faziam seus registos em árabe.
Por muito tempo, a historiografia difundiu a ideia de que os africanos
trazidos para o Brasil eram desprovidos de todo e qualquer conhecimento, e aos
poucos, essas ideias foram desconstruídas. Conforme Morais (2007, p. 496), “os
africanos que foram trazidos para cá não pertenciam a sociedades
desorganizadas, iletradas, e eram capazes, do ponto de vista intelectual”.
Ainda, é possível inferir, de acordo com a autora supracitada, que as tarefas
desenvolvidas aqui exigiam conhecimentos especializados na mineração, nas
construções de igrejas centenárias, no calçamento de ruas e na construção de
ferrovias. Também como alfaiate, pedreiro ou carpinteiro, profissões que exigiam
o uso de medidas e cálculos, indicava um grau refinado de letramento, portanto,
para alguns grupos étnicos escravizados, os usos sociais da palavra escrita não
eram estranhos (Morais, 2007).
As formas de (re)existência das pessoas escravizadas no Brasil colonial
são também invenções e recriações no sentido de romper com o processo de
coisificação social imposto, no esforço de produzir novos jeitos de viver ou
sobreviver onde a condição de humanidade se tornava deletéria mediante a
brutalidade do poder colonial.
Conforme Gomes (2004, p.14), eram distintas as formas de enfrentamento
do sistema escravista, mediante “as transgressões, os assassinatos de senhores,
as fugas, o culto aos ancestrais, a estética, a medicina natural”, dentre outras
ações que “desafiavam o poder despótico do sistema escravista em seu propósito
de se estabelecer como referencial único e exclusivo”.
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forma de resistência organizada da coletividade negra escravizada. Dessa forma,
Maria de Lourdes Siqueira (s/d, p. 13) destaca que:
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Os Quilombos se formaram no Brasil escravista, entretanto, sua existência
não desaparece com o fim desse sistema, ao contrário, torna-se um local de
recepção pós-treze de maio de 1888.
Na literatura contemporânea sobre o tema, encontramos duas
interpretações, uma defende a existência de Quilombos somente enquanto
perdurou o sistema escravista, e outra defende que Quilombos continuaram a
existir após a Abolição.
Assim, para Ademir Fiabani (2005), após 1888, os Quilombos históricos,
formados exclusivamente pelas fugas, teriam desaparecidos, pois não havia mais
necessidade de se refugiar nas matas para garantir a liberdade. Para o autor, a
partir da Abolição, surgem as comunidades negras, caracterizadas pela
autonomia e subsistência.
Já Leite (2000) diverge dessa perspectiva analítica, argumentando que a
Abolição foi um processo incompleto, inacabado, e que os Quilombos e
quilombolas se mantiveram no pós-Abolição como territórios de resistências e
lutas diversas. Infere-se que o Quilombo também representou e representa um
local de produção, com trabalho familiar que se relaciona com vários segmentos
sociais.
Historicamente, os Quilombos ficaram invisíveis na sociedade brasileira,
destituídos de direitos básicos, como cidadania, educação, energia elétrica, vias
de acesso e saúde. E é recente o processo de reconhecimento como sujeitos
partícipes da história do Brasil, bem como a garantia de direitos territoriais
ancestrais em relação às pequenas porções de terras ocupadas para
subsistência.
Desta forma, o conceito de Quilombo assume novo significado, na
perspectiva de assegurar direitos aos quilombolas que secularmente ficaram à
margem de toda e qualquer política pública. Assim, a nova ressignificação
considera que:
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Com base nessa nova acepção de Quilombo, os sujeitos quilombos
poderão, dentre outras dimensões, afirmar sua territorialidade por meio da
memória coletiva, de práticas, saberes e manifestações culturais que corroboram
suas singularidades históricas e culturais.
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É possível perceber que a Lei de Terras foi aprovada simultaneamente ao
fim do tráfico Atlântico. Sobre esse fato, Martins (2000) ressalta:
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pela liberdade e dignidade humana, foi resistência contra a opressão, a violência
física e simbólica, por isso a liberdade foi luta e conquista.
O fim do sistema escravista no Brasil e os arranjos políticos/sociais/legais
sinalizam para diversas interpretações, entretanto são convergentes no sentido
de que o passado escravista paulatinamente desnuda o abismo da desigualdade
social entre negros e brancos em todas as dimensões sociais.
É importante registrar a participação das mulheres e sua contribuição para
o fim do sistema escravista. Assim, destacamos duas mulheres negras no Brasil
escravista, sendo:
Aqualtune – filha do Rei do Congo, a princesa foi vendida como escrava
para o Brasil, em razão das rivalidades existente entre os diversos reinos
africanos. Grávida, foi vendida para o engenho de Porto Calvo (AL), onde, pela
primeira vez, teve notícias de Palmares. Já nos últimos meses de gravidez,
organizou sua fuga e a de alguns escravos. Começa, então, ao lado de Ganga
Zumba (seu filho), a organização de um Estado negro, que abrangia povoados
distintos confederados sob a direção suprema de um chefe. Aqualtune instalou-
se, posteriormente, em um desses mocambos, povoados fortificados, a 30 léguas
ao noroeste de Porto Calvo. Uma de suas filhas (Sabrina) deu-lhe um neto, que
foi Zumbi dos Palmares. Segundo o que apontam alguns estudos, Aqualtune era
avó de Zumbi dos Palmares. Morreu queimada, quando já era idosa.
Acotirene – uma das primeiras mulheres a habitar os povoados quilombolas
da Serra da Barriga em Alagoas. Matriarca do Quilombo do Palmares, exercia a
função de mãe e conselheira dos primeiros negros refugiados na Cerca Real dos
Macacos. Era consultada para todos os assuntos, desde questões familiares até
questões político-militares. É reconhecida como uma das primeiras lideranças
femininas nos anos iniciais do Quilombo de Palmares. A importância de Acotirene
refere-se, principalmente, ao vínculo com a religiosidade de matriz africana, sendo
fundamental na colaboração das táticas e estratégias de combate.
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REFERÊNCIAS
KARASCH, M. A vida dos escravos no Rio de janeiro, 1808 – 1850. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
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MARTINS, J. de S. Reforma agrária: o impossível diálogo sobre a história
possível. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, INCRA, 2000.
REIS, J. J.; GOMES, F. dos S. Liberdade por um fio: história dos quilombos no
Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 2012.
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