5 Variacao Dialetal No Territorio Portugues Segura
5 Variacao Dialetal No Territorio Portugues Segura
5 Variacao Dialetal No Territorio Portugues Segura
Luisa Segura
Centro de Linguística da Universidade de Lisboa
Qualquer língua viva está sujeita a variação interna que se manifesta, como é
sabido, sincronicamente na variação geográfica e na variação social as quais,
apesar de intimamente interligadas, têm sido campo de estudo privilegiado da
dialectologia e geografia linguística por um lado e da sociolinguística por outro.
É na variação geográfica que o português apresenta actualmente em Portugal que
me centrarei, estabelecendo, num segundo momento, alguns pontos de contacto
entre a caracterização dos dialectos portugueses e o português do Brasil.
A classificação que apresento é a que consta da “Nova proposta de classificação
dos dialectos galego-portugueses” de Lindley Cintra que, desde o seu
aparecimento em 1971, tem sido geralmente seguida na divisão do espaço
dialectal português. Tal como as classificações que a precederam, toma como base
os aspectos fonéticos1. O autor fundamenta a sua classificação na observação
directa dos dados que ele próprio recolheu, entre 1953 e 1956, para a elaboração
do Atlas Linguístico da Península Ibérica. Também com base nesses materiais,
nomeadamente na observação de alguns mapas, L. Cintra estabelece algumas
“áreas lexicais no território português”2, a partir de regularidades encontradas na
distribuição do léxico.
Antes de passar à apresentação dos dialectos portugueses convém esclarecer dois
aspectos. O primeiro prende-se com a descrição de Cintra: como o nome da sua
“proposta” indica, o autor inclui nela os dialectos galegos que, no entanto, não
1
Como se sabe, são os aspectos fonéticos aqueles que se tomam tradicionalmente como base para
uma classificação dos dialectos, visto permitirem uma sistematização ancorada exclusivamente em
factores linguísticos, o que não acontece se se partir da variação lexical, muito dependente de
factores extralinguísticos, nomeadamente de ordem histórica e cultural.
São as seguintes as classificações de que os dialectos portugueses têm sido objecto: Leite de
Vasconcellos é autor de 3 dessas classificações: (1897), uma reformulação desta proposta inserta
em (1901) e (1929); Paiva Boléo e M. H. Santos Silva (1962); Vásquez Cuesta e M. A. Mendes da
Luz (1971) e L. Cintra (1971).
2
Por falta de espaço, não serão, no entanto, aqui comentadas. V. Cintra (1962).
1
serão tomados aqui em consideração; vamos limitar-nos aos dialectos que se
encontram adentro das fronteiras portuguesas.3
O segundo aspecto prende-se com a minha descrição: sigo Cintra na classificação
dos dialectos continentais, bem como na extensão e localização geográfica dos
traços e na delimitação de fronteiras. A descrição é porém complementada,
nomeadamente no que diz respeito aos dialectos insulares e à caracterização das
“variedades” ou “regiões sub-dialectais” com dados provenientes das recolhas
efectuadas para o Atlas Linguístico-Etnográfico de Portugal e da Galiza, em
elaboração no Centro de Linguística da Universidade de Lisboa.
Para estabelecer a sua classificação, L. Cintra começou por verificar quais os
traços que os falantes comuns do português europeu sentem como fortemente
diferenciadores, ou seja, aqueles que permitem reconhecer uma pessoa como
sendo oriunda do Norte ou do Sul de Portugal. A determinação desses traços
permitir-lhe-ia depois a selecção de um ou de alguns deles para traçar fronteiras
entre os dialectos. Os traços diferenciadores que L. Cintra começou por
estabelecer são os seguintes:
1. Ausência de distinção fonológica entre /v/ e /b/, em proveito de /b/,
pronunciado quer oclusiva, quer fricativamente ([b] e [ ], respectivamente):
peso. É um traço próprio das Beiras e do norte de Portugal. (V. Mapa 1).
3
Relativamente à actual situação do galego face ao português V. Barros Ferreira et al. (1996: 491, 492).
2
3. Manutenção da oposição fonológica entre a africada palatal / / (representada
O traço fonético seleccionado por Cintra para distinguir estes dois grupos de
dialectos é o que estabelece o limite entre realizações ápico-alveolares [ ] e [ ] e
realizações predorsodentais [s] e [z] para os fonemas /s/ e /z/. Esta isófona divide
o país em duas áreas: a das realizações ápico-alveolares a norte e a das realizações
predorsodentais a sul.
A fronteira entre os dois grandes grupos de dialectos segue uma linha que
atravessa Portugal no sentido noroeste-sudeste, desde a costa ocidental na região
3
de Aveiro até uma região próxima da fronteira política com Espanha, na Beira
Baixa e que abrange portanto o Minho, Trás-os-Montes, o Douro Litoral e a parte
norte da Beira Litoral, a Beira Alta e parte da Beira Baixa. (V. Mapa 2).
A norte desta linha de fronteira, L. Cintra destaca ainda unidades de menor
extensão que se caracterizam por, pelo menos, um traço comum. Assim, no grupo
dos dialectos setentrionais, distinguem-se outros dois grupos, o dos dialectos
transmontanos e alto-minhotos e o dos dialectos baixo-minhotos, durienses e
beirões.
(os alimentos) pronunciado com [z]. Neste grupo de dialectos a pronúncia torna
pois facilitada a tarefa de distinguir a grafia de pares como os acima indicados ou
ainda de passo [ ] e paço [ ], servo [ ] ‘criado’ e cervo [ ]
4
do distrito da Guarda, junto da fronteira com a Espanha e ainda noutros pontos
dispersos da Beira Alta não representados no mapa (V. Mapa 2).
em Porto [ ].
Este grupo de dialectos distingue-se do grupo dos dialectos setentrionais por ter
operado a simplificação do sistema de quatro sibilantes em duas, uma surda e
outra sonora, em benefício das realizações predorsodentais que constituem a
norma linguística portuguesa. Nesta área, passo e paço pronunciam-se de uma
mesma maneira, [ ], assim como coser e cozer são, igualmente, homófonas,
5
Embora a área ocupada pelo português centro-meridional apresente, do ponto de
vista dialectal, uma maior homogeneidade do que a área correspondente ao
português setentrional, é todavia possível distinguir dentro dessa área dois grupos
de dialectos:
Estes dois grupos de dialectos são delimitados pela isófona que corresponde à
monotongação do ditongo [ ] em [ ] que lhe serve pois de fronteira, ou seja,
Interior e Sul.
Esta fronteira parte da costa ocidental, por alturas de Óbidos, desce quase até
Lisboa e, inflectindo depois para nordeste, acompanha o curso do Zêzere (afluente
do Tejo), atingindo a raia a norte de Castelo Branco (V. Mapa 2). É de referir,
relativamente a este traço, que Lisboa constitui uma ilhota de conservação do
ditongo no interior de uma área de monotongação. De referir também que, em
Lisboa, o ditongo tem a realização fonética [ ], contrariamente a grande parte da
Dentro da área ocupada pelos dialectos do Centro-Interior e Sul − e que vai desde
o Ribatejo e Beira-Baixa até ao Algarve − destacam-se duas variedades
localizadas em extremidades opostas, nordeste e sudoeste, que apresentam não só
profunda alteração de timbre do sistema vocálico acentuado, como também sons
desconhecidos do português padrão.
6
alguidar [ $ % # ], pisado [ #% ], bordado [ " #%], fumar [ # ], espalhar
desaparecimento da vogal final átona [ ], grafada –o, ou, por vezes, a sua
de /a/ que é pronunciado com timbre muito próximo de [.], como em mar [ / ],
Dialectos insulares
7
padrão, no que diz respeito aos traços consonânticos, ou seja, não têm sibilantes
ápico-alveolares, nem a africada palatal e mantêm a oposição entre /b/ e /v/;
quanto aos ditongos, ei mantém-se, excepto na ilha de São Miguel, em que
monotonga e ou é, em geral, substituído por oi.
Os dialectos que, pela especificidade e regularidade de alguns dos seus traços,
mais se destacam são os da Madeira (Porto Santo incluído), de São Miguel e da
Terceira.
Dialectos madeirenses
[ " ] por atrás do forno. Este traço nunca foi atestado em dialectos
continentais.5
Dialectos açorianos
Dialectos micaelenses
4
Este fenómeno ocorre, se bem que de modo não tão sistemático, também em algumas ilhas
açorianas. Para informação mais completa sobre traços comuns aos dois arquipélagos V. SEGURA
DA CRUZ e SARAMAGO (1999).
5
Este traço ocorre nos Açores com uma certa frequência numa das ilhas do grupo ocidental, as
Flores, e foi também registado numa freguesia da ilha de São Miguel, os Mosteiros.
8
Entre os dialectos açorianos é o da ilha de São Miguel aquele que apresenta maior
especificidade. O sistema vocálico acentuado sofre uma evolução em cadeia:
/i/ é realizado com maior abertura e abaixamento, [ )], ou seja, quase como [ ]
[" (% ], fazer [ (]; /#/ é realizado como [-], como em terra [ -0 ]; /a/
Dialectos terceirenses
9
Este traço tem grande vitalidade também na ilha Graciosa e ocorre, em menor
grau, noutras ilhas dos grupos Central e Ocidental6.
grafada -o, sobre a vogal acentuada, sobretudo /a/. Esta sofre uma modificação no
seu timbre, que a faz aproximar de [.]: pato é quase p[.]to, gado quase g[.]do.
O mirandês
6
Como já se referiu, este traço ocorre também com frequência no arquipélago da Madeira, se bem que de
forma não tão sistemática como na ilha Terceira.
7
O repovoamento desta zona foi feito, na Idade Média, com colonos leoneses. Para mais informações
sobre a razão histórica deste facto e da consequente existência de dialectos leoneses em território
português ver H. de Carvalho (1964).
10
minoritária, de segunda língua oficial de Portugal. Actualmente é falado em cerca
de 30 aldeias do concelho de Miranda do Douro8.
Os traços fundamentais do mirandês que o distinguem como pertencendo a um
domínio linguístico diferente do domínio galego-português são:
a manutenção do -L- e do -N- intervocálicos latinos (que desapareceram em todo
o domínio galego-português), como em pala [ ] a corresponder a pá, malo
8
Um pouco mais ao norte, no concelho de Bragança, subsistem outros dialectos do asturo-leonês, o
rionorês e o guadramilês, falados respectivamente em Rio de Onor e Guadramil.
11
Relativamente ao traço que L. Cintra escolheu como diferenciador dos dois
grupos de dialectos, a pronúncia das sibilantes, podemos verificar que a
coexistência dos 4 fonemas (2 ápico-alveolares e 2 predorsodentais) era
generalizada a todo o território ainda no início do séc. XVI; no fim desse século a
confusão, ou seja, a neutralização que havia de se tornar normativa começava
porém a manifestar-se, como nos dá conta Duarte Nunes de Leão na sua
Orthographia da Lingoa Portuguesa, publicada em 1576:
"Que tenhamos grande t to nos vocabulos, em que entra c, s e z. Porque a mais da
gente, e não soo a vulgar, se engana na scriptura, confundindo estas letras, e
poendo h as por outras, sem distinção, sendo ellas differentes, e distantes na
pronunciação, e natureza, assi como o são na figura." (citado por Castro 1991).
Século e meio depois, o ortografista João de Morais Madureira Feijó, na sua
Orthographia, ou Arte de Escrever e Pronunciar com acerto a Lingua Portuguesa
(1739) ainda pugna pela distinção das duas pronúncias, dando para cada uma
delas a descrição articulatória apropriada:
"Ja dissemos que o C como C se pronuncîa com a extremidade anterior da lingua,
tocando nos dentes quasi fechados, em quanto sahe o seu som, que he suavemente
brando. O S pronunciase com a ponta da lingua moderadamente applicada ao
paladar junto aos dentes de cima com os beiços abertos, em quanto sahe hum som
quasi assobiando do meyo da bocca, como se percebe nestas palavras Sancto, Sá,
Sé, etc. Pois se esta he a rigorosa, e propria pronunciaçaõ do S, como se equivoca
com a do C, que he taõ diversa? Se os sons saõ diversos, como póde ser a
consonancia a mesma? Demos a cada huma destas letras a diversidade da sua
pronunciaçaõ, e logo se perceberá a diversidade de Sá, ou Çá, Sé, ou Ce, Si, ou Ci,
So, ou Ço, Su ou Çu. Pronunciese Çapato, e Sapato, Maça e Massa; e diga quem
naõ he surdo a differença, que percebe entre hum, e outro som".
Quanto à africada [ ], grafada ch, é sabida a sua antiguidade como representante
dos grupos PL-, FL- CL- iniciais de sílaba e também que a sua fusão com a palatal
[ ] é uma inovação vinda do sul (com Lisboa a ter um papel, se não responsável
pela própria inovação, pelo menos preponderante na sua aceitação); da confusão
que começava a existir entre a pronúncia e a grafia de ch e de x dá-nos conta, pela
primeira vez, no último quartel do séc. XVII, João Franco Barreto na sua
Ortografia da Lingua Portuguesa, de 1671:
12
"... muytos por a lingua os nã ajudar, ou por mao costume, pronunciam
barbaramente, dizendo (e ainda escrevendo) páchã, cacha, enchada, cochim,
enchurrada. (...) sendo que outros, que se devem pronunciar e escrever per ch,
como chave, chapeo, chafariz, fechadura, etc. escrevem e pronunciam xave,
xapeo, xafariz, fexadura" (citado por A. Pinto, 1981). No séc. XVIII, Madureira
Feijó, na já citada Ortographia, continua a distinguir as duas pronúncias,
circunscrevendo a confusão aos oriundos de Lisboa:
"...[CH] na [pronúncia] dos Portuguezes nunca sôa nem como C, nem como Q,
mas faz hum terceiro som, em que se não percebe como sôa, ferindo as vogaes
seguintes deste modo Cha, Che, Chi, Cho, Chu: v.g. Chave, Chaminé, China,
Chove, Chuva, cuja pronunciaçaõ não tem similhança com outras letras, e só os
oriundos de Lisbôa a equivócaõ tanto com o X, que a cada palavra trocaõ huma
por outra; porque não só pronunciaõ, mas tambem escrevem Xave, Xemine, Xina,
Xove, Xuva. E a alguns ouvi, que lhe era tão difficultosa a pronunciaçaõ do Ch,
que achando-o escripto, o pronunciaõ como X; e pelo contrario, aonde achaõ X, o
pronunciaõ como Ch.".
Quanto à inexistência de distinção entre /b/ e /v/, ela era já notada no séc. XVI por
Duarte Nunes de Leão que, na citada Orthographia, já a circunscreve
geograficamente à Galiza e ao Norte de Portugal. É de notar que o ortografista
nota também o fenómeno inverso, que poderemos considerar como de
ultracorrecção:
"O que muito mais se vee nos Gallegos, e em alg s Portugueses d’entre Douro e
Minho, que por vós e vósso, dizem bos, e bosso, e por vida, diz bida. E quasi
todos os nomes, em que há v cõsoante mudão em b. E como se o fizess aas
vessas, os que nos pronunciamos per b pronuncião elles per v." (citado por Castro,
1991).
Relativamente à monotongação do ditongo ou, inovação mais uma vez iniciada no
Sul de Portugal, ela só começou a manifestar-se no séc. XVII, segundo Teyssier
(1982: 52, 53).
Parece, pois, certo que os traços a que nos vimos referindo ocupavam, na época
em que se deu a colonização, uma área muito maior em Portugal e existiriam
certamente na pronúncia dos colonizadores que se instalaram no Brasil. Como se
explica então que não tenha perdurado nenhum desses traços no português do
13
Brasil, pelo menos no português que se tornou normativo brasileiro, tendo este
coincidido, em todos os casos considerados, com a pronúncia meridional
portuguesa? Para dar resposta a esta pergunta, já várias vezes feita, têm sido
formuladas várias hipóteses. A este respeito vale a pena relembrar as
considerações feitas, há mais de cinquenta anos, por dois mestres da língua
portuguesa: Serafim da Silva Neto e Luis F. Lindley Cintra.
A primeira e mais imediata das hipóteses, mas que foi necessário abandonar por
não corresponder à verdade histórica, foi, como se sabe, a do eventual predomínio
de colonizadores oriundos do Centro e Sul de Portugal, onde algumas das
evoluções referidas já se teriam dado. Esta interpretação teve paralelo ou terá sido
inspirada na teoria do andaluzismo na colonização da América pelos espanhóis;
de facto, nos países americanos de língua espanhola verifica-se uma situação
idêntica, ou seja, predominaram no espanhol da América as características
linguísticas meridionais, especialmente as andaluzas9. Esta situação é
particularmente evidente no que diz respeito ao tratamento das sibilantes, com
resultados diferentes, nos dois países ibéricos, ao nível da assunção pela norma.
Assim, enquanto as ápico-alveolares se consubstanciaram como um traço dialectal
em Portugal, tendo vingado na norma as sibilantes predorsodentais, em Espanha
aconteceu exactamente o contrário, ou seja, as sibilantes ápico-alveolares
constituem a pronúncia normativa, sendo as sibilantes predorsodentais o traço
dialectal, neste caso não do Norte, mas do Sul de Espanha, mais concretamente da
Andaluzia. Ora, a teoria da suposta proveniência meridional da maioria dos
colonizadores que conviria à situação do português e do espanhol na transposição
para a América foi, porém, desmentida, tanto na América de língua espanhola,
como no Brasil, pelos dados históricos; estes revelam efectivamente a existência
de colonizadores de todas as regiões da Península Ibérica e, no caso do Brasil, se
chegou a haver predomínio de alguma região, ele seria até de sinal contrário, ou
seja, seria do Norte e Centro e não do Sul do país.
Serafim da Silva Neto que, como se sabe, foi um dos opositores desta teoria,
considerava ter-se verificado no Brasil o que, no passado, já se teria verificado no
9
É de notar, no entanto, que a adopção dos traços meridionais teve, num caso e noutro, consequências
diferentes: enquanto na América de língua espanhola há uma identificação com traços dialectais, no
Brasil há uma identificação nesses aspectos com traços do português europeu padrão.
14
Sul de Portugal, tratando-se numa e noutra região de áreas de colonização10. Então
aí, como em todas as áreas de colonização, ter-se-á formado uma espécie de koinê,
de falar geral que constituiria um “denominador comum” na sua expressão, dos
falares de todas as regiões presentes e que seria adoptada por todos os
participantes.
A esta interpretação, e sem discordar dela, L. Cintra acrescenta aquilo que
considera a “força expansiva” dos falares meridionais portugueses – “uma espécie
de prestígio linguístico maior” – que teria levado, na koinê que se constituíu, à
progressiva adopção pelos colonizadores nortenhos das características
meridionais. Embora consciente de que a origem dessa “força expansiva” é difícil
de explicar, apoia-se, no entanto, para a afirmar em duas ordens de razões: por um
lado, a situação que se verifica no português do Brasil ser exactamente a mesma
que se verifica no português que se fala nos Açores e na Madeira que, lembro,
eram desertos à data dos Descobrimentos dos portugueses. Lá, como no Brasil, e
independentemente das especificidades próprias, não existem sibilantes ápico-
alveolares, não existe a confusão entre b e v e não existe a africada, os traços
verdadeiramente mais marcantes dos dialectos setentrionais portugueses. Apoia-
se. por outro lado, naquilo que lhe foi dado observar nas recolhas que ele próprio
efectuou em Portugal, nos anos 50, isto é, o progressivo recuo dos traços fonéticos
do Norte perante os do Sul; e se é certo que as pronúncias normativas de Lisboa e
de Coimbra, tendo absorvido a quase totalidade das inovações do Sul,
propiciaram, sem dúvida, a sua adopção, é um facto que essa situação ainda não se
verificava no tempo em que os colonizadores se instalaram nos arquipélagos
atlânticos e no Brasil. Embora consciente disso, repito, L. Cintra dá como
exemplo da persistência dessa “força expansiva” dos falares meridionais a
expansão que, parece, continua a processar-se para o Norte de Portugal da única
das inovações características do Sul que não foi adoptada pela norma: a
monotogação do ditongo [ei] em [e]11.
Concluindo com as palavras de L. Cintra: “O facto várias vezes apontado de o
português do Brasil apresentar uma série de características fonéticas que o
10
De facto, o sul de Portugal foi, no tempo da Reconquista aos mouros, uma região onde afluíram
homens do Norte.
11
Relembro que Lisboa não monotongou o ditongo, mas também não o mantém sob a forma [ ];
pronuncia-o como [ ], isto é, introduziu uma maior distância entre os seus elementos, através de uma
diferenciação.
15
aproximam dos falares meridionais do português da Europa deve-se
possivelmente à generalização, na língua dos colonizadores, das características de
uma pronúncia que, como ainda hoje acontece no continente português, era a que
apresentava maior força expansiva, não precisando de ser a pronúncia da maioria
para ser a mais geralmente aceite”.
Veremos se as pesquisas actualmente em curso no domínio da geografia
linguística, em Portugal e no Brasil, o Atlas Linguístico-Etnográfico de Portugal e
da Galiza (ALEPG) e o Atlas Linguístico do Brasil (ALIB) virão revelar novos
factos para apoiar ou desmentir estas posições.
Bibliografia
BOLÉO, Manuel de Paiva e M. Helena Santos Silva (1962) “Mapa dos Dialectos
e Falares de Portugal Continental”. Boletim de Filologia XX (1961), 85-112.
16
CINTRA, Luís F. Lindley (1962) “Áreas lexicais no território português”. Estudos
de Dialectologia Portuguesa. Lisboa: Sá da Costa Editora, 1983, 55-94.
17
TEYSSIER, Paul (1982) História da Língua Portuguesa, Lisboa: Sá da Costa.
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