E-Book Completo - Infâncias, Educação Infantil e Relações...

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E-BOOK

Otavio Henrique Ferreira da Silva


(Organizador)

INFÂNCIAS, EDUCAÇÃO INFANTIL E RELAÇÕES


ÉTNICO-RACIAIS: POSSIBILIDADES E
DESAFIOS NOS 20 ANOS DA LEI 10.639/2003

Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as - ABPN


Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as - COPENE
Editora IFSertãoPE
Dedicatória

Dedicamos esta obra a todas as pessoas que, a despeito dos desafios,


seguem gingando, reexistindo e nos inspirando
a refazer as travessias na arte de viver.

Dedicamos este livro a todos os docentes e estudantes da Educação Básica


e Superior no Brasil, como forma de denunciar o apagamento das suas
histórias, memórias e identidades, com o esperançar da consolidação de
uma Educação para as Relações Étnico-Raciais em todas as escolas
brasileiras.

Agradecimentos
Agradecemos a todos/as os/as pesquisadores/as e colaboradores/as do
projeto de pesquisa que deu origem a este trabalho; a todos os membros
do Laberer/UFPE, na figura de sua líder Ceça Reis. Ao Cnpq pelo
subsídio à realização do projeto; a ABPN enquanto organizadora do XII
Copene que retorna ao Recife depois da sua primeira edição.

Agradecemos a Editora IFSertãoPE do Instituto Federal de


Educação, Ciência e Tecnologia do Sertão Pernambuco – pela parceria
com a Executiva do XII Congresso de Pesquisadores e Pesquisadoras
Negras e Negros (COPENE). Esta parceria possibilitou a publicação desta
coletânea que certamente contribuirá para futuras pesquisas no que diz
respeito à compreensão e combate ao racismo na sociedade brasileira.
Presidente da República
Luis Inácio Lula da Silva
Ministro da Educação
Camilo Sobreira de Santana
Secretário de Educação Profissional e Tecnológica
Getúlio Marques Ferreira

Reitora
CONSELHO EDITORIAL
Maria Leopoldina Veras Camelo
Pró-reitora de Ensino Francisco Kelsen de Oliveira – Propip IFSertãoPE
Maria do Socorro Tavares Cavalcante Jane Oliveira Perez – Cedif IFSertãoPE
Marcio Rennan Santos Tavares – Proext IFSertãoPE
Pró-Reitor de Pesquisa, Inovação e Pós-
Ana Christina da Silva Bezerra – SIBI - IFSertãoPE
Graduação
Andre Ricardo Dias Santos – IFSertãoPE
Francisco Kelsen de Oliveira
Andrea Nunes Moreira de Carvalho – IFSertãoPE
Pró-Reitor de Extensão e Cultura André Ricardo Lucas Vieira – IFSertãoPE
Vitor Prates Lorenzo Hudson do Vale de Oliveira - IFRR
Pró-Reitor de Orçamento e Administração Domingos Diletieri Carvalho - IFSertãoPE
Jean Carlos Coelho de Alencar José Ribamar Lopes Batista Júnior - UFPI
Manuel Rangel Borges Neto - IFSertãoPE
Pró-Reitor de Desenvolvimento Institucional Paulo Gustavo Serafim de Carvalho - UNIVASF
Alexandre Roberto de Souza Correa Rafael Santos de Aquino - IFSertãoPE
Leilyane Conceição de Souza Coelho – UPE
Coordenadora da Editora IFSERTAOPE
Rosemary Barbosa de Melo – IFSertãoPE
Jane Oliveira Perez Rachel Perez Palha – UFPE
Projeto Gráfico da Capa Ricardo Tavares Martins - IFSertãoPE
Mironaldo Borges de Araújo Filho Eriverton da Silva Rodrigues – IFSertãoPE
Diagramação Cheila Nataly Galindo Bedor – UNIVASF
Jane Oliveira Perez Luciana Nunes Cordeiro - IFSertãoPE
Arquivos dos autores/ Cessão para organização da
Fotos no corpo do livro:
edição

Contato
Rua Aristarco Lopes, 240 - Centro
CEP: 56302-100 | Petrolina/PE – Brasil
E-mail: [email protected]
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são de inteira responsabilidade de seus autores.
Direito autoral do texto © 2024 Os autores
Direito autoral da edição © 2024 Editora IFSertãoPE
Publicação de acesso aberto por Editora IFSertãoPE.
É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e autoria.
SUMÁRIO

Em defesa da educação infantil contra-adultocêntica e contra-


colonialista: apresentando 7
um instrumento pedagógico e de luta.
Otavio Henrique Ferreira da Silva
Criança(s) e infância (s) e educação das relações étnico-raciais:
duas décadas da Lei 10.639/03 18
Ana Cristina Juvenal da Cruz
Notas sobre a primeira infância e relações étnico-raciais
Valter Roberto Silvério; Iberê Araujo da Conceição; Ayodele 28
Floriano Silva
Infância negra no Brasil, racismo e violação de direitos
humanos: a educação para as relações etnico-raciais e os 44
desafios para uma educação antirracista
Adeildo Vila Nova
Infâncias negras: desafios e perspectivas antirracistas na
educação infantil paraibana 65
Diego dos Santos Reis
“Nós gostamos de ouvir histórias de máscaras africanas, da cor
da pele e do Baobá!": a educação étnico-racial de crianças em 77
uma EMEI e em museus de Belo Horizonte/MG
Andreza Mara da Fonseca; Vânia Noronha
Jongo na educação infantil: cultura, ancestralidade e identidade
Andresa de Souza Ugaya; Matheus Henrique de Freitas; Maria 96
Luiza Miranda Paulino da Silva
ERER na creche: memória e afetividade 110
Carla Santos Pinheiro; Nanci Helena Rebouças Franco
Aquilombando a infância ou por uma educação antirracista das
crianças pequenas 126
Débora Augusto Franco; Aline Moraes da Costa Lins; Ana Clara
dos Santos Silva
Identidade e preferência racial na percepção de crianças
pequenas em contexto de educação infantil 142
Izzie Madalena Santos Amancio; Cristina Teodoro
Educação infantil e periferia: colonialidades e encruzilhadas na
busca por emancipação… 161
Otavio Henrique Ferreira da Silva
Itinerários teóricos e metodológicos de uma pesquisa sobre as
questões étnicas e “raciais” no contexto da Educação Infantil 182
Christian Muleka Mwewa; Alex Sander da Silva
Das experiências de racismo à educação antirracista... O que
nos dizem 12 educadoras infantis do município de Teixeiras –
MG? 199
Tainara Batista Barros; Rita de Cássia de Souza; Maria Simone
Euclides
Formação de professores: Possibilidades de implementação da
lei 10.639/03 na Educação Infantil 220
Adriana Bom Sucesso Gomes; Rogério Correia da Silva; Tânia
Aretuza Ambrizi Gebara
Relações étnico-raciais e a educação infantil: as ações dos/as
gestores/as na/pela efetivação da Lei 10.639/2003 245
Cecília Maria Vieira; Rachel Benta Messias Bastos; Thaís Regina
de Carvalho
“Agora vou contar o meu conto para vocês”: meninas negras,
Youtube e resistências 263
Andrea Barbosa de Andrade; Lucimar Rosa Dias
Mídia e infância: criança negra
Tatiane Cosentino Rodrigues; Vitória Marinho Wermelinger; 282
Marcelo Matheus Presse Leite
Organizador 300

Autores 301
APRESENTAÇÃO

EM DEFESA DA EDUCAÇÃO INFANTIL CONTRA-


ADULTOCÊNTICA E CONTRA-COLONIALISTA: APRESENTANDO
UM INSTRUMENTO PEDAGÓGICO E DE LUTA

O presente livro conflui com a construção de uma educação básica antirracista no


Brasil, com escopo para os estudos das infâncias e educação infantil. Frente a data histórica
dos 20 anos da Lei 10.639, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no dia 9 de
janeiro de 2003. Buscamos por meio desta obra apresentar as possibilidades e desafios da
educação das relações étnico-raciais junto das crianças em tempo etário de educação infantil,
compreendido entre 0 a 5 anos.
A Lei 10.639 instituiu no currículo da educação oficial a “História e Cultura Afro-
brasileira”, por meio de alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
complementada pela lei 11.645/2008 que incluiu a história e cultura dos povos indígenas.
Conforme o parecer 003/2004 apresentado pela relatora Profa. Dra. Petronilha Beatriz
Gonçalves e Silva junto ao Conselho Nacional de Educação, aponta-se que para fins de
implementação dos dispositivos legais já citados, a temática das relações étnico-raciais deverá
ser incluída na matriz curricular dos cursos de formação de professores para a educação
infantil, bem como, a construção de uma educação antirracista começa na primeira etapa
educação básica.
De acordo a Constituição Federal de 1988, a educação escolar é um direito de todos,
independente de cor, raça, classe, social. Porém, a escola continua a ser no século XXI um
lócus de reprodução do racismo (Hooks, 2013; Gomes, 2019; Gomes, 2020; Gomes, Teodoro,
2021; Noguera; Alves, 2019). Nilma Lino Gomes (2019) em pesquisa sobre o estado da arte
da relação “raça” e “educação infantil” mostra que o racismo continua, presentemente, a
atravessar as crianças negras e a se reproduzir no cotidiano escolar, tanto na relação entre as
próprias crianças, bem como, na incerteza das professoras sobre como intervir adequadamente
em prol de uma postura antirracista.
As infâncias das crianças brasileiras são bem diferentes das infâncias vividas por
crianças dos países colonizadores, ou das infâncias das elites coloniais existentes dentro do
próprio território do Brasil (Abramowicz; Oliveira, 2012; Arenhart; Silva, 2014). A criança

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negra brasileira tem em sua origem familiar, o histórico da exclusão de direitos de cidadania,
pois quando se fundou o Estado Liberal no Brasil a escravidão ainda era prática legalizada
(Noguera, 2019).
A educação no Brasil precisa pensar em práticas pedagógicas que minimizem e
acabem com a opressão infantil, principalmente de crianças negras que vivem à margem da
sociedade. Estas crianças não podem mais ser percebidas na escola exclusivamente por
“problemas de relacionamento com seus colegas e professores ocasionados pela cor, gerando
uma relação conflituosa e, muitas vezes, nociva para aqueles que acabam sendo rejeitados por
seus atributos físicos”, isto desde a educação infantil (Abramowicz; Oliveira, 2012, p. 54).
Para o contexto dos 20 anos da Lei 10.639 e para os muitos outros anos por vir da luta
antirracista e da construção de uma sociedade emancipatória para todos, todas e todes,
reunimos, neste livro, fruto da importante parceria entre Associação Brasileira de
Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as
(COPENE) e Editora IFSertãoPE, um conjunto de textos com reflexões teóricas e
experiências empíricas elaboradas por importantes pesquisadores e grupos de pesquisas das
diferentes universidades brasileiras e em diferentes localizações do território nacional. Os
trabalhos reunidos no livro se posicionam a favor de práticas pedagógicas na educação infantil
e nas pesquisas contra-adultocêntricas e contra-coloniais para combater as desigualdades
enfrentadas pelas crianças negras em uma sociedade estruturada pela colonialidade e pelo
adultocentrismo como a brasileira.
Entende-se o adultocentrismo como uma estrutura presente na relação entre adultos e
crianças, condicionando as crianças apenas num vir a ser, sobressaindo nesta relação o poder
e os interesses dos adultos e da sociedade através da adaptação dos corpos e mentes infantis
(Rosemberg, 1976; Santiago; Faria, 2015; Bujes, 2000; D´Almeida, 2009; Ferreira, 2013;
Noguera, 2019; Noguera; Alves, 2019).
Relativo à colonialidade, esta é a continuação do colonialismo na sociedade do Estado
Democrático de Direito, pois se continuam processos de expropriação dos bens naturais e de
controle territorial, bem como, por meio das relações do mercado financeiro e dos Estados-
nações modernos, promovendo formas de controle de bens físicos mas também formas de
colonização das mentes e auto-colonização, onde os próprios colonizados criam relações de
dependência com as estruturas e culturas coloniais (Fanon, 2008; Maldonado-Torres, 2020).
As evidências da colonialidade na sociedade atual perpassam as relações de violência
de gênero, racismo, exclusão social, pobreza e opressão nas infâncias, tudo isso como uma
herança do projeto moderno-capitalista-colonizador-eurocêntrico; responsável pela

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implantação dessas opressões no solo brasileiro e nos demais países colonizados (Carneiro,
2005; Quijano, 2005; Hooks, 2013; Bispo Dos Santos, 2015; Gomes, 2017; 2020; Rufino,
2018; Lewis, 2019; Almeida, 2020; Ribeiro, 2020; Grosfoguel; Bernadino-Costa; Maldonado
Torres, 2020; Krenak, 2020).
Segundo Noguera e Alves (2019), há uma aproximação entre a condição da infância e
do povo negro: porque ambos são tratados como invisíveis e estão ausentes das prioridades da
matriz eurocêntrica de civilização, estruturada, sobretudo, por relações de poder patriarcais,
etárias, de classes sociais e coloniais. Isso quer dizer que negros, crianças, mulheres e pobres,
população LGBTIQA+ estão em maior situação de exclusão e mais distante da condição de
cidadania plena em sociedades como a brasileira.
Em muitos momentos da história, a escola para crianças negras e indígenas se limitava
a condição de catequização para curar o mal de serem quem são e serem disciplinadas
conforme os interesses dos colonizadores, que neste caso representaria o bem, o caminho da
paz. Assim, ser contra a colonialidade e contra o adultocentrismo, tendo como referencial o
pensador quilombola Bispo dos Santos (2015; 2020), é a defesa de uma experiência concreta e
histórica para a educação infantil, e não apenas teórica.
É nesse sentido, que no texto “Criança(s) e infância (s) e educação das relações
étnico-raciais: duas décadas da Lei 10.639/03” a pesquisadora Ana Cristina Juvenal da Cruz,
da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), apresenta alguns elementos históricos que
dialogam com os avanços trazidos pelos 20 anos de existência da Lei 10.639/2003, articulado
com o campo de estudos sobre as crianças, infâncias e a educação das relações étnico-raciais.
Para a autora, as duas décadas de aplicação da Lei 10.639/03 apontam para um avanço nos
debates e alguns elementos históricos nos permitem acompanhar tal evolução, considerando
os aspectos que perpassam as experiências destinadas às crianças negras, as quais são
atravessadas pelos processos de constituição racial da sociedade brasileira.
Em “Notas sobre a primeira infância e relações étnico-raciais” os pesquisadores
Valter Roberto Silvério, Iberê Araujo da Conceição e Ayodele Floriano Silva, também da
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), apresentam resultados parciais de pesquisa em
andamento cujo objetivo é investigar como a literatura contemporânea tratou o tema da
infância e da criança negra na última década. Os autores partem da revisão dos marcos
teóricos e legais sobre a infância e a criança negra e de levantamento sobre o tema no
Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES. Observa-se um crescimento uniforme de 1996
até o pico em 2018, seguido por uma queda rápida até 2021, com concentração no Sul e
Sudeste. Também, que nas regiões Sul e Sudeste as instituições privadas foram as que mais

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produziram trabalhos, enquanto no Centro-Oeste, Norte e Nordeste as instituições de ensino
públicas se destacaram.
De acordo com Adeildo Vila Nova, pesquisador da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP), no texto “Infância negra no Brasil, racismo e violação de direitos
humanos: a educação para as relações étnico-raciais e os desafios para uma educação
antirracista”, a infância negra no Brasil há muito tempo é negligenciada, tanto no seu
contexto sócio-histórico, quanto educacional, sendo perceptível sua invisibilização e exclusão
desde a colonização do nosso país. Por isso, o autor afirma ser fundamental que educadores e
educadoras busquem estratégias de combate ao racismo, considerando que crianças negras são
constantemente excluídas no ambiente escolar. Ainda, é destacado por Vila Nova que a
educação antirracista se consolida como uma importante iniciativa capaz de congregar os
mais diversos segmentos e aspectos da nossa sociabilidade e deslocar, para o campo
educacional, as discussões há tempos defendidas e difundidas nos movimentos negros
organizados.
Refletir sobre os desafios na elaboração de políticas que promovam a equidade racial
no país e as perspectivas antirracistas na Educação Infantil paraíbana é a abordagem trazida
por Diego dos Santos Reis, pesquisador da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em
“Infâncias negras: desafios e perspectivas antirracistas na educação infantil paraíbana”. Nas
trilhas teóricas propostas por pensadores/as antirracistas, o autor discute os impactos do
racismo nos itinerários formativos de corpos racializados, atravessados pela necropolítica
pública, a qual fornece as premissas do governo pedagógico das infâncias periféricas nas
cidades brasileiras. Reis aponta também a necessidade de pensar as infâncias negras desde o
território e a importância do cumprimento das normativas educacionais antirracistas, como a
Lei 10.639/03, para a concretização de transformações sociais efetivas no campo educacional
brasileiro. Ainda conforme Reis, a captura e a nulificação das infâncias negras, especialmente
as nordestinas, é um projeto de Estado pautado por práticas de subjetivação que brutalizam os
corpos e desumanizam vidas de crianças negras.
As pesquisadoras Andreza Mara da Fonseca e Vânia Noronha, da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), colaboraram com o texto “‘Nós
gostamos de ouvir histórias de máscaras africanas, da cor da pele e do Baobá!’: a educação
étnico-racial de crianças em uma EMEI e em museus de Belo Horizonte/MG”, fruto de uma
pesquisa sobre educação das relações étnico-raciais com crianças pequenas a qual adotou as
experiências em contextos de educação infantil e visitas ao Percurso Território Negro do
Circuito de Museus, em Belo Horizonte. Para as autoras, os conhecimentos desenvolvidos na

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turma da educação infantil, aproximados aos possibilitados nos museus, são promissores para
a educação das relações étnico-raciais na infância.
Andresa de Souza Ugaya, Matheus Henrique de Freitas e Maria Luiza Miranda
Paulino da Silva compartilham em “Jongo na educação infantil: cultura, ancestralidade e
identidade” a experiência de uma parceria entre o Departamento de Educação Física da
Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) e
a Escola Municipal Francisco Gabriele Neto, dentro do projeto: “Qual a minha história?
Relações Étnico-raciais na Educação Infantil”. Conforme os autores, neste projeto foi
proposto a inserção do Jongo, expressão cultural afro-brasileira, no contexto das práxis
pedagógicas da instituição de educação infantil em uma perspectiva da educação antirracista e
para a educação das relações étnico-raciais.
No texto “ERER na creche: memória e afetividade” Carla Santos Pinheiro e Nanci
Helena Rebouças Franco, pesquisadoras da Universidade Federal da Bahia (UFBA), tiveram
como objetivo refletir sobre práticas educativas comprometidas com a (re)educação das
relações étnico-raciais em uma creche baiana conveniada e alugada ao poder público
municipal. O método empregado foi de cunho bibliográfico e documental, trabalhando
conceitos a partir dos estudos de Cavalleiro, Lima, Santana, Trindade; as determinações das
DCNEI e das DCNERER; e dados sobre dependência administrativa presentes no censo
Escolar da Educação Básica de 2021. É apontado por Pinheiro e Franco que as creches
brasileiras conveniadas/alugadas ao poder público municipal realizam práticas promotoras da
igualdade racial chamando a atenção quanto a omissão do Estado brasileiro diante da garantia
dos direitos educacionais aos/às bebês e às crianças bem pequenas.
Em “Aquilombando a infância ou por uma educação antirracista das crianças
pequenas” as pesquisadoras Débora Augusto Franco, Aline Moraes da Costa Lins e Ana Clara
dos Santos Silva, do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), apresentam estratégias de
promoção da educação antirracista para a educação infantil em espaços não-formais de
educação. As autoras partem das noções de aquilombamento e de mulherismo africana com a
finalidade de resgatar a coletividade ancestral dos processos de socialização do continente e
da diáspora e, com isso, produzir dispositivos de desmonte das lógicas coloniais e
individualistas, características da educação ocidental, partindo da metodologia das rodas de
conversa com cuidadoras das crianças, mães e profissionais de saúde e educação infantil.
Como resultado, observou-se que as religiões de matriz africana constituem modos de cuidar
e de garantir o direito à diversidade de estilos de vida e à singularização.

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As pesquisadoras Izzie Madalena Santos Amancio e Cristina Teodoro, da
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB), discutem,
no artigo “Identidade e preferência racial na percepção de crianças pequenas em contexto de
educação infantil Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira”, as
implicações da racialização presente na sociedade brasileira, na formação da identidade e nas
preferências raciais de crianças pequenas em contexto de Educação Infantil. Apresentam
também alguns resultados da pesquisa que realizaram na educação infantil para compreender
como as crianças percebiam as identidades de gênero e de raça. De modo geral, é apontado
por Amancio e Teodoro que as crianças têm preferência às(os) bonecas(os) com
características vinculadas ao grupo racial branco, em detrimento daquelas(es) com
características vinculadas ao grupo racial negro, bonecas as quais, por elas, foram
consideradas(os), entre outros critérios, feias(os).
No texto “Educação infantil e periferia: colonialidades e encruzilhadas na busca por
emancipação”, eu, Otavio Henrique Ferreira da Silva, na condição de pesquisador da
Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), trago um texto inédito fruto de minha tese
de doutorado concluída em 2022, cujo objetivo foi compreender o que dizem e fazem
professoras e famílias da comunidade escolar de uma instituição de educação infantil da
periferia quanto a educação das crianças de três anos para o exercício da cidadania. Partindo
da teoria decolonial-emancipatória, analiso os dados coletados em estudo de caso etnográfico
realizado no Centro Infantil Municipal Palmares, em Betim – MG. Os resultados da pesquisa
relevam que o CIM Palmares tem uma comunidade escolar periférica e que a educação das
crianças é realizada sob a encruzilhada onde os processos educativos estão influenciados por
normalizações, padrões de comportamento, moralizações, prevenções à marginalidade.
Contudo, há também na práxis dos sujeitos periféricos potencialidades educativas contra-
colonizadoras/de(s)colonizadoras e emancipatórias junto das crianças.
Sob o título de “Itinerários de uma pesquisa sobre tensões étnicas e “raciais” na
educação infantil” os pesquisadores Christian Muleka Mwewa e Alex Sander da Silva, da
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e Universidade do Extremo Sul
Catarinense (UNESC), respectivamente, oferecem pistas para o trato das questões étnicas e
“raciais” por meio de indicações teóricas e metodológicas do campo educacional, mais
especificamente em centros de educação infantil da cidade de três Lagoas (MS). Os autores
indicam procedimentos no diálogo entre pesquisas documentais e etnográficos. Mwewa e
Silva elegem como referencial teórico alguns estudos do campo da educação alicerçados na
tensão permanente entre o pensamento de Theodor W. Adorno (Teoria Crítica da sociedade) e

12
os Estudos Culturais. Os autores destacam que o estudo apresentado pode contribuir para o
desenvolvimento sustentável e a melhora da qualidade das pesquisas que contenham as
questões étnicas e “raciais” como objeto.
Tainara Batista Barros, Rita de Cássia de Souza e Maria Simone Euclides,
pesquisadoras da Universidade Federal de Viçosa (UFV), apresentam no texto “Das
experiências de racismo à educação antirracista... O que nos dizem 12 educadoras infantis
do município de Teixeiras – MG?”, os resultados parciais de pesquisa realizada para conhecer
as experiências de educadoras infantis do município de Teixeiras – MG em relação ao
racismo no contexto escolar, bem como sensibilizá-las para atuarem na proposição de uma
educação antirracista. As autoras destacam a importância que se deve ter na conscientização
de professores(as) e advogam espaços de diálogo nos quais propostas para a implementação
de uma educação antirracista possam ser discutidas, promovendo reflexões sobre práticas já
existentes e fomentando outras para enfrentar o racismo presente na vida das crianças desde
seus primeiros anos de vida.
Em “Formação de professores: possibilidades de implementação da Lei
nº10.639/2003 na Educação Infantil” os pesquisadores Adriana Bom Sucesso Gomes,
Rogério Correia da Silva e Tânia A. Ambrizi Gebara, da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), apresentam resultados da pesquisa que tratou a formação docente no
intercruzamento das categorias de análises, infâncias, educação infantil e relações étnico-
raciais. Os autores analisam o contexto de efervescência de políticas públicas voltadas à
erradicação do racismo em Belo Horizonte/Minas Gerais, destacando a potência dos Núcleos
de Estudos das Relações Étnico-raciais como um eixo da Política de Promoção da Igualdade
Racial da cidade em resposta à Lei nº 10.639/2003.
Os debates sobre educação das relações étnico-raciais no âmbito da gestão
educacional, é o tema trabalhado no texto “Relações étnico-raciais e a educação infantil: as
ações dos/as gestores/as na/pela efetivação da Lei 10.639/2003” de autoria das pesquisadoras
Cecília Maria Vieira (Universidade de Brasília – UnB), Rachel Benta Messias Bastos
(Instituto Federal de Goiás – IFG) e Thaís Regina de Carvalho (Universidade Federal de
Goiás – UFG). As autoras destacam aspectos referentes aos desafios e papel da equipe gestora
no processo de implementação de políticas e práticas pedagógicas antirracistas na educação
infantil. A partir de pesquisa com profissionais da educação infantil de Goiânia e tendo como
lente analítica a epistemologia negra, os resultados revelam a necessidade da luta permanente
pela contínua efetivação da ERER nas ações educativas de formação e gestão pedagógica
antirracista.

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Na parte final do livro, dois textos irão abordar a relação entre infância negra e mídias
sociais. Primeiro, Andrea Barbosa de Andrade e Lucimar Rosa Dias, pesquisadoras da
Universidade Federal do Paraná (UFPR), em “‘Agora vou contar o meu conto para vocês’:
meninas negras, YouTube e resistência” refletem acerca da cibercultura e o lugar que as
crianças ocupam nesses espaços, especialmente, no YouTube. A metodologia utilizada no
ensaio foi análise descritiva a partir de levantamento teórico. Em sua maioria são as meninas
que trazem os elementos das culturas infantis para o espaço digital articulados a um discurso
de combate ao racismo. Para aprofundar a discussão, as autoras escolheram três meninas
negras que são: MC Elis, Tatielly Lima e Carolina Monteiro com idades entre 5 e 11 na época
da pesquisa. Andrade e Dias concluem que as meninas negras produzem conteúdo os quais
dialogam com a luta antirracista e contribuem também para educar a sociedade e aos próprios
pares em relação à temática.
No segundo texto, intitulado “Mídia e infância: criança negra”, os pesquisadores
Tatiane Cosentino Rodrigues, Vitória Marinho Wermelinger e Marcelo Matheus Presse Leite,
da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), desenvolvem a argumentação a partir do
debate sobre infância e criança negra na esfera pública, em específico na cobertura da mídia
escrita brasileira no período de 2010 a 2021, tendo como base matérias publicadas na Agência
Amazonas, Agência Brasil, Correio Braziliense e Folha de São Paulo. Os autores apontam
que as crianças negras são citadas quanto a desumanização e a sua adultização é para
produção do racismo estrutural. Quando para as crianças negras se nega sua condição de
fragilidade e, portanto, de necessidade de cuidados, estas tornam-se objeto de negligência e
alvos potenciais de inúmeras balas perdidas que vêm aniquilando seus corpos (GOMES;
TEODORO, 2021). Porém, Rodrigues, Wermelinger e Leite advertem que temas afirmativos
de vida são colocados em evidência diante da participação “frequente de mães e mulheres
negras que insistem em problematizar, questionar e criar outras experiências de vida para
crianças negras e não negras”.
Assim, convidamos toda a comunidade acadêmica, professores(as) da educação
básica, militantes e demais interessados na consolidação de uma educação antirracista a
conhecer na íntegra o presente livro. Temos consciência dos limites, mas de que nas palavras
que aqui foram lançadas pelos(as) pesquisadores(as) do campo das infâncias e educação
infantil há potencialidades em prol de uma educação de crianças a qual esteja a serviço da
justiça social e racial. No livro de 2012, organizado por Maria Aparecida Silva Bento, sob o
título “Educação infantil, igualdade racial e diversidade: aspectos políticos, jurídicos,
conceituais”, foram reunidos importantes trabalhos que contribuíram para reflexão dos 10

14
anos da Lei 10.639 e de seus desdobramentos para o campo. Agora, nos 20 anos da referida
lei, três questões estão claras: que a maior vitória que tivemos foi a derrota política que
impusemos ao fascismo que nos atormentou e violentou nos últimos anos no Brasil, que,
mesmo com a saída de Bolsonaro, a raiz fascista e racista que o acompanhava continua viva
entre nós, e, por fim, que há muito por fazer pela efetivação da educação antirracista e
construção de uma sociedade emancipatória e afropindorâmica para todos, todas e todes, a
começar pelas crianças, sejam negras e indígenas, periféricas, yanomamis, maxacalis, tupi,
xacriabás, xavantes, mudurukus, krenaks, pataxós, quilombolas, ribeirinhas, ciganas,
refugiadas…
Boa Leitura!!!

Otavio Henrique Ferreira da Silva


Prof. Dr. da Universidade do Estado de Minas Gerais
Grupo de Estudos e Pesquisas IMERER

REFERÊNCIAS

ABRAMOWICZ, Anete; OLIVEIRA, Fabiana. As relações étnico-raciais e a sociologia da


infância no Brasil: alguns aportes. In:BENTO, Maria Aparecida Silva. Educação infantil,
igualdade racial e diversidade: aspectos políticos, jurídicos, conceituais. São Paulo: CEERT,
2012, 221pp.

ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2020.

ARENHART, Deise; SILVA, Maurício Roberto da. Entre a favela e o castelo: infância,
desigualdades sociais e escolares. Cadernos Ceru, v. 25, n. 1, p. 59-82, 2014.

BISPO DOS SANTOS, Antônio. Colonização, Quilombos: modos e significados. Brasília:


INCIT/UNB, 2015.

BUJES, Maria Isabel. O fio e a trama: as crianças nas malhas do poder. Educação &
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CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser.
2005. 338f. Tese (Doutorado). Universidade de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em
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17
CRIANÇA(S) E INFÂNCIA (S) E EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES
ÉTNICO-RACIAIS: DUAS DÉCADAS DA LEI 10.639/03

Ana Cristina Juvenal da Cruz


Professora da Universidade Federal de São Carlos
[email protected]

INTRODUÇÃO
As duas décadas de existência da Lei 10.639/2003 demarcam um avanço inequívoco
da ação antirracista cuja finalidade inegavelmente ocorre pela educação. A compreensão da
educação das relações étnico-raciais como elemento constituinte na construção de uma
sociedade antirracista, no que se refere às crianças e as infâncias negras, deve se debruçar
sobre o avanço da discussão sobre o tema. Ione Jovino (2015) aponta, por meio da iconografia
como recurso metodológico, uma caracterização de como se deu a constituição da infância e
da infância negra.
Atualmente é consenso, no campo acadêmico dos estudos sobre as crianças e suas
infâncias, que o trabalho do historiador Philippe Ariès (1986) é fundador de um olhar outro
sobre a criança e a infância. Ariès denominou de "sentimento de infância” uma série de
mudanças de comportamentos social, cultural e políticas dirigidas às crianças da modernidade
— contexto temporal da modernidade e da geografia da Europa.
Considerado como referência primária, no tema expresso, o exposto no livro traduzido
no Brasil como “História Social da Criança e da Família”, o qual apresenta uma genealogia
histórica da ideia de infância surgida como tal na modernidade. Segundo Ariès, há um
momento histórico no qual se institui uma mudança de tratamento e, portanto, de status social
em relação à criança que ascende à infância. Assim, é a partir da modernidade que uma forma
criança será considerada um sujeito social distinto e específico, forjando assim o “sentimento
de infância”.
Entretanto, a perspectiva desenvolvida por Ariès foi colocada sob suspeição, ao passo
que as fontes utilizadas no seu trabalho histórico se limitaram ao espaço europeu e à dinâmica
temporal da modernidade. Nota-se que embora Ariès não tivesse proposto analisar toda a
dinâmica da infância, basta ver o título do livro que se dirige ao Antigo Regime francês e
europeu — LÉnfant et la vie familiale sous l'Ancien Régime —, sua analítica foi espraiada
para todo o campo. Assim, a crítica acadêmica que se instalou se deu pela compreensão de

18
que as crianças e famílias analisadas por Ariès eram brancas e vinculadas aos grupos
europeus, o que definia e limitava a concepção de infância e de qual criança sua obra tratava.
Há que se destacar que a modernidade analisada por Ariès foi o momento histórico de
desenvolvimento e consolidação da escravidão negra e do colonialismo (Gilroy, 2001).
Portanto, nos mesmos momentos em que crianças de grupos étnicos localizadas no espaço
africano eram capturadas, vendidas e escravizadas junto a famílias de mulheres e homens
negros, utilizadas na formação e sustentação do capitalismo moderno (MBEMBE, 2014) tais
crianças e famílias não aparecem na obra do historiador. Nesse momento se forjava os
processos de racialização que transformaram tais crianças, homens e mulheres em negras e
escravizadas, assim como o espaço geográfico de onde vinham formulava-se como África.
É neste contexto que o trabalho de Ione Jovino adquire relevância. Existe junto à sua
análise um campo de estudos que se alarga sobre o cotidiano das crianças neste período
(Ferreira, 2019). Consequentemente, a partir da análise de Ione Jovino, ascende-se à infância
também as representações sobre as mulheres e o feminino. No caso das mulheres negras, sua
feminilidade é constituída pela maternidade: o ato de reproduzir, amamentar, cuidar dos bebes
e das crianças, entre outras atividades.
Já as crianças que ascendem à infância descrita por Ariès possuem um determinado
corpo e vêm de uma geografia que não comporta as demais crianças, às quais não fora
possível desenvolver um “sentimento de infância”. O impacto de sua obra no campo de
estudos sobre a criança e a infância ocorreu em diferentes vertentes e, ao longo do tempo, se
consolidou, transcendendo a concepção psicológica de que infância é uma fase/geração/etapa.
No contexto da modernidade, bem como a pretensão conceitual, considerando os limites
geográficos e etnocêntricos de tal proposta, a proposição de Ariès, ao conceituar a construção
daquilo que denominou de “sentimento de infância”, será “retomada e discutida por inúmeros
trabalhos, os quais contribuirão para o interesse pelo objeto, tanto entre os historiadores
quanto no conjunto das ciências sociais” (Sirota, 2001, p. 10).
Sequencialmente a tal leitura, Ione avança e amplia apontando que os elementos de
identificação e mobilidade social que caracterizam as relações sociais a qual o elemento de
destaque era o fenótipo, mas não apenas. A apresentação de telas e gravuras da época
mostram elementos próprios às infâncias como, por exemplo, o brincar. Outros aspectos de
socialização dessas crianças que culminarão nas distinções de ingênuos, menores, moleques,
entre outros termos, aparecendo, em especial, nas práticas de punição dada às crianças, com
destaque às meninas negras cujo histórico de humilhação e representação de certa sexualidade
exacerbada ressoa no tempo histórico até a contemporaneidade. Desse modo, é parte de nosso

19
compromisso histórico trazer a vida dessas crianças, jovens e adultos negros escravizados,
mas também a vida de determinados/as senhores/as escravocratas e sua patologia sádica.
O terror racial, como desenvolvido por Paul Gilroy (2001), é uma das linhas de
análise que nos permite estabelecer articulação com diversos outros acontecimentos em
diferentes temporalidades, como o Apartheid na África do Sul, os linchamentos nos EUA, ou
seja, são as histórias de pessoas torturadas e mortas pelo corpo e fenótipo que carregam, as
quais atravessam o tempo histórico aparecendo em diversas localidades geográficas. São
variadas formas de tortura, considerados atualmente como terrorismo ou “sociabilização no
ódio” como diz Mbembe (2014). Pois, como Gilroy afirma "o terror racial não é meramente
compatível com a racionalidade ocidental, mas, voluntariamente cúmplice dela” (Gilroy,
2001, p. 35). Aqui, cabe ressaltar que tratar a educação das relações étnico-raciais e da
história da África e Afro-Brasileira, como preconizam as legislações, que completam duas
décadas, não se trata de vincular apenas a história das crianças e das infâncias negras à
escravidão e ao colonialismo.
É fundamental reconhecer e conhecer o passado dos povos antes de serem
transformados em africanos e que essa história habite nosso cotidiano e seja contada às
crianças. E, em simultâneo, deve-se saber que há uma genealogia impressa nessas histórias,
ou seja, é imperativo identificar como nascem os processos de racialização.
As pesquisas contemporâneas em história da educação e, de modo específico, das
experiências históricas de educação elaboradas e vivenciadas pela população negra, também
merecem destaque. De modo geral, o que estas pesquisas atestam é uma lacuna no modo pelo
qual a história da educação brasileira é contada; não apenas por ainda habitar uma ignorância
sobre a existência de práticas pedagógicas elaboradas pelas populações negras para as
populações negras, mas também por excluí-las do processo histórico de constituição da
educação brasileira. Isso, no entanto, tem se modificado com qualificadas pesquisas que ainda
precisam ser inseridas no campo da pesquisa.
Marcus Vinicius Fonseca em “A Educação dos Negros: uma nova face do processo de
abolição da escravidão no Brasil” (2002) afirma que a pesquisa contemporânea tem
recuperado a experiência destes grupos. Nesta obra, o autor realiza uma análise das práticas e
concepções educacionais modernas entre 1867 e 1889 criadas para os negros e que auxiliaram
no processo da abolição. Fonseca aborda que, anteriormente ao debate abolicionista, a
educação para as pessoas negras era realizada no espaço privado, caracterizada por uma
metodologia de impregnação de funções pelo cotidiano, visando a formação de trabalhadores
e trabalhadoras que se adaptassem à escravidão. Será com o debate no contexto da abolição e

20
do pós-abolição que esse caráter privado adquire outros contornos. Ao fazê-lo, Marcus
aproxima epistemologicamente dois campos: o da educação e o da história, de maneira a
colocar a questão educacional e os sentidos dados a ela como elemento de compreensão da
abolição e das medidas de integração da população negra na condição de sujeitos livres.
Ao debruçar-se sobre essas práticas, Fonseca indica uma percepção de práticas
destinadas às crianças, em que cuidar e educar adquiriu a mesma semântica, embora a
distinção é referida a remotas experiências com oferta de leitura e escrita. Mesmo as crianças
sob a tutela do Estado, como as que permaneceram sob a lógica da escravidão, passam a ser
inseridas em um processo de serem educadas, mas com algumas distinções.
Assim, as indicações da oferta de educação para pessoas negras fizeram com que essa
prática fosse dirigida a manter as estruturas raciais de dominação e hierarquização 1. A oferta
de educação para as crianças negras esteve diretamente ligada ao projeto de nação que se
pretendia à época. As crianças não eram tratadas como tais, mas como “os futuros
trabalhadores negros do Brasil”, passando a que a condição de criança negra fosse traduzida
como criança pobre (Fonseca, 2002, p. 62).
Será com os estudos contemporâneos, especialmente com o da sociologia da infância,
que a noção da criança como sujeito com agência própria e com um tipo específico de
socialização adquirirá status conceitual. No contexto brasileiro, no aspecto das relações
étnico-raciais na infância, as pesquisas adquirem um avanço buscando romper as
representações proeminentes: a da criança escravizada do final do século XIX e,
posteriormente, da criança abandonada e carente que ascende na pesquisa brasileira na década
de 1980. As análises contemporâneas demonstram um avanço para o debate enquanto
rompem ou buscam romper com a dualidade estabelecida entre essas representações.

Estudos Sociais da Infância e Criança e Infância negra


Ao observarmos as duas décadas após a Lei 10.639/200, é possível nos debruçar sobre
alguns acontecimentos históricos que permitam ampliar o debate e as contribuições que essa
legislação enseja. As pesquisas sobre criança e infância no conhecido Projeto UNESCO,
aplicado no Brasil (Cruz, 2018), demonstra um percurso entre a articulação com a
preocupação sobre as condições de vida das crianças negras, especialmente com sua educação
aventadas por diferentes associações do movimento negro.

1
Ver em Danilo Reinol: <http://anais.anped.org.br/regionais/sites/default/files/trabalhos/23/7057-TEXTO_-
PROPOSTA_COMPLETO.pdf>.

21
De modo geral, é tratado como consenso, o qual é, a partir dos anos 1970 e,
especialmente nos anos 1980, de que a pesquisa sobre a criança e sua infância irá se
consolidar teórica e metodologicamente. Tal posicionamento vem com os pressupostos que
romperão com a análise da infância como categoria que trata da socialização, pela via da
escolarização. Essa consideração estabeleceu uma analítica desescolarizante da sociologia da
educação (Sirota, 2001, p. 11).
No entanto, quando se considera as crianças e infâncias negras no Brasil, há um
processo histórico ainda pouco analisado. Na década de 1950, o conjunto de pesquisas
capitaneadas pela UNESCO foram amplamente conhecidas com variadas pesquisas empíricas,
as quais foram aplicadas estabelecendo uma experiência de pesquisa sem precedentes no
contesto brasileiro, elevando o status das ciências sociais praticadas no Brasil. De forma
característica, o Brasil já era projetado no contexto da UNESCO como um exemplo moderno
de relações raciais. Os artigos publicados sobre o país na revista no periódico O Correio da
UNESCO são elucidativos desse movimento (Cruz, 2017).
O percurso de evolução do Projeto UNESCO se deu com percalços como os que
aventou Guerreiro Ramos. Ao estabelecer uma crítica aos trabalhos realizados no âmbito do
Projeto UNESCO, Guerreiro Ramos afirmou que os pressupostos que orientavam as pesquisas
partiam de um olhar exógeno, constituindo o negro em uma estereotipia singular, e questionou
em 1954:
Que é que, no domínio de nossas ciências sociais, faz do negro um problema ou
um assunto? [...] Isto acontece desde os estudos de Nina Rodrigues até Arthur Ramos,
e os atuais estudos sobre relações de raça, patrocinados pela UNESCO (RAMOS,
1954 apud, Barbosa, 2006, p. 265).

Guerreiro Ramos advogava que para tratar das questões que acometiam a condição da
população negra deveria se contar nas pesquisas com a participação direta de pessoas negras e
ainda das associações políticas negras. As experiências desenvolvidas no Projeto UNESCO,
de alguma forma estabeleceram tal proposta uma vez que intelectuais e militantes do
movimento negro participaram ativamente das pesquisas da UNESCO.
Sob tal contexto, foram elaboradas comissões específicas com para debater os temas e
os objetos que mereceriam atenção nas investigações. Compostas por lideranças e pessoas
pertencentes as associações do “meio negro”, estudantes e pesquisadoras/es do Projeto
UNESCO. A “Comissão para o estudo das relações raciais entre brancos e pretos” definiu os
temas que deveriam ser investigados; já a “Comissão especial de alguns intelectuais de côr”
ocupou-se dos debates de pensadores e pensadoras negras e, por fim, na terceira “Comissão
do Estudo da Mulher Negra em São Paulo” procurou as especificidades das crianças e das

22
mulheres negras. Para a organização desta última comissão de mulheres negras, havia uma
“Comissão das Senhoras de Côr” (Bastide, 1955).
Nas investigações sobre as relações raciais entre as crianças que integram a Pesquisa
UNESCO realizada em São Paulo, destaca-se a descrição elaborada por Francisco Lucrécio
em parceria com Renato Jardim Moreira. O texto é apresentado como um estudo de caso
“Situação das crianças ‘negras’ e brancas nos parques infantis”. Maria Isaura Pereira de
Queiroz (1996) descreveu o trabalho realizado com Renato Jardim Moreira, estudantes à
época da pesquisa, indicando que ambos utilizavam o método das histórias de vida como um
procedimento na pesquisa sociológica.
O estudo de Francisco Lucrecio e Renato Moreira foi realizado em um dos Parques
Infantis de São Paulo. Os Parques compuseram um dos projetos da gestão de Fábio Prado,
indicado pelo então interventor federal Armando Sales de Oliveira, então nomeado por
Vargas, na prefeitura de São Paulo, entre 1934 a 1938. A responsabilidade de coordenação
desses espaços ficou a cargo de Mário de Andrade, no interior de sua atuação como diretor do
Departamento de Cultura e Recreação.
Com a articulação entre uma “intelectualidade modernista” e a ascendente “burguesia
ilustrada” paulistana se verificam os arranjos institucionais que levaram a criação dos Parques
Infantis voltados para a construção de uma “cultura brasileira” (Faria, 1993). O objetivo era
ofertar uma educação para crianças a partir de três anos, o que naquele momento não era
obrigatória. Constituía-se uma via de promoção de uma experiência estética e educativa
considerada renovadora, uma vez que seria direcionava para as classes populares e
trabalhadoras.
No documento que descreve parte do trabalho das comissões e que se encontra no
acervo de Florestan Fernandes, localizado na Biblioteca Comunitária da Universidade Federal
de São Carlos (BCO-UFSCar), a “Comissão feminina encarregada de examinar os
característicos do preconceito de côr relativamente à mulher e à criança”, estão descritas as
presenças várias mulheres como Maria Nascimento, Nair Ribei ro, Sofia Campos e Edila
Nogueira intitulada a profissão de costureira. O formato é o de uma entrevista coletiva, na
qual são descritas as perguntas e as respostas das participantes. — As descrições relatam as
situações cotidianas de preconceito e discriminação racial.
Sobre os relatos acerca das situações envolvendo crianças brancas, Bastide afirma a
existência de “uma espécie de ‘tabu da côr’ que se aprende desde a infância; desenvolve-se na
criança um duplo mecanismo de comportamento, paternalista com relação aos negros,
igualitário com relação aos brancos, pelo menos aos brancos da mesma classe” (Bastide,

23
1955, p. 126). Essa leitura do impacto das relações e da orientação dos pais no
desenvolvimento do preconceito racial se expressa semelhantemente nas análises de Virgínia
Bicudo.
A partir de sua incursão como pesquisadora e docente da área de sociologia, Bicudo
participa da pesquisa e publica na Revista Anhembi o texto “Atitudes dos alunos dos grupos
escolares em relação com a côr dos seus colegas” cujo objetivo foi o de evidenciar “os
sentimentos e os mecanismos psíquicos de defesa manifestos nas atitudes relacionadas com a
côr dos colegas; e a influência das relações intrafamiliares no desenvolvimento daquelas
atitudes” (Bicudo, 1955, p. 227, sic). A primeira versão do texto foi publicada em 1953 e,
posteriormente, no livro organizado por Florestan Fernandes e Roger Bastide: Relações
raciais entre brancos e negros, em São Paulo, em 1955. Em investigação semelhante, a
pesquisa da psicóloga polonesa Aniela Meyer Ginsberg “Pesquisas sôbre as atitudes de um
grupo de escolares de São Paulo em relação com as crianças de côr” (1955) estudou “a atitude
das crianças em idade escolar para com os seus colegas brancos e de côr” a partir dos
marcadores de “idade, sexo, meio social, e a côr dos examinados” (Ginsberg, 1955, p. 311,
sic)2. Aniela atuou por indicação de Otto Klineberg, quem trabalhou no Brasil entre 1943 e
1947, recomendo-a como psicóloga social para o Projeto UNESCO. Os trabalhos das autoras
são semelhantes aos que haviam sido desenvolvidos por Kenneth Clark e Mamie Phipps
Clark3 nos EUA. Kenneth Bancroft Clark alcançou reconhecimento internacional por seu
trabalho citado no caso a respeito da inconstitucionalidade da segregação racial nas escolas
norte-americanas, em 1954. Já Mamie Phippis Clark publicou a pesquisa de mestrado “The
Development of Consciousness of Self in Negro Pre-School Children” realizado no Howard
University, em 1938. Na ocasião, identificou que a autopercepção das crianças sobre a
“negritude” ocorria de forma muito latente na infância, o que lhe possibilitou a projeção dos
seus estudos na famosa metodologia das bonecas.
Bastide argumentou no livro “Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo”
no item “Manifestações do preconceito de côr” um subitem denominado “A linha de côr na
escola” no qual descreveu as estratégias de apropriação da formação escolar e profissional.
Ao afirmar que o interesse seja no “futuro operário” se debruçaram na pesquisa nas escolas
primárias, onde supostamente não haveria “barreiras ostensivas na escola primária, que é
2
Ginsberg descreve os grupos de escolares compostos por “crianças pobres operárias e artesãs”, “crianças filhos
de operários de nível econômico mais elevado” e, por fim, “crianças de uma escola particular [...] filhos de ricos”
(GINS- BERG, 1955, p. 315, sic).
3
Cf. Karera, A. (2010). Profile of Mamie Phipps Clark. In A. Rutherford (Ed.), Psychology's Feminist Voices
Multi- media Internet Archive. http://www.feministvoices.com/bonnie-strickland/

24
obrigatória por lei. [...] Ora, se ela está teórica- mente aberta a todos, muitos pais se queixam
de que, sob formas diversas, há uma tendência para repelir o negro” (BASTIDE, 1955, p. 142,
sic). Tal afirmação diverge das inúmeras afirmações elencadas por participantes negras e
negros, participantes das investigações.
As antinomias expressas na leitura de Bastide apareceram mais como uma opinião, o
que chegava a incoerência de atribuir aos pais a existência de preconceito e/ou “má vontade”
praticada pelos professores nas escolas. Tal afirmação ignorava, inclusive, os dados obtidos a
partir dos casos relatados pelas mulheres e homens negros participantes da pesquisa. No
entanto, Bastide afirmou acreditar que o desenvolvimento de um “ideal democrático nos
educadores” seria a causa do combate ostensivo a essas práticas, mais uma, das inúmeras,
existência de uma “irritação” das pessoas brancas com medidas como oferta e ampliação de
cursos de formação para negros seriam traduzidas das famílias para as crianças (Bastide,
1955, p. 143).

Questões contemporâneas da/para a infância negra e perspectivas de futuro


As duas décadas de aplicação da Lei 10.639/03 apontam para um avanço nos debates
sobre as crianças e suas infâncias e as relações étnico-raciais. Neste texto, alguns elementos
históricos nos permitem acompanhar tal evolução; considerando os aspectos que perpassam as
experiências destinadas às crianças negras, as quais são atravessadas pelos processos de
constituição racial da sociedade brasileira. Trata-se, assim, da compreensão da percepção e do
significado, não apenas de como nos constituímos subjetivamente, mas de como se processam
nossas relações. Ione Jovino afirmou: "Apesar da dureza da escravidão, é possível pensar
numa singularidade da infância negra, marcada pela reverberação dos modos negro-africanos
de conceber a infância e sua educação”. Há, portanto uma tarefa própria à escola e à
universidade.
Essa tarefa, que emerge deste nosso tempo, requer a análise histórica das duas décadas
da lei e de como tal medida é um processo de longa duração de crítica e de reflexão sobre a
condição de pessoas negras e não negras e sua relação com a educação. Esse exercício como
função de quem está na educação adquire outros relevos no atual contexto histórico. Exige-se
de nós agora considerarmos como essas experiências históricas expandiu as premissas de
imposição de lógicas excludentes e, de forma específica, de cunho neoliberal. Tal lógica
neoliberal não é mais apenas como um modelo econômico, mas a projeção de um modo de
vida pautada no individualismo, do capitalismo de generalização das estruturas de
propriedade como modelo aplicado às nossas relações interpessoais, do trabalho incessante na

25
dita racionalidade empresarial, a qual tentam nos impor a se espraiar por todos os espaços da
vida.
Na educação, na escola ou na universidade esse modelo se constitui por duas vias: a
primeira é pelo abandono e pela exclusão de crianças, jovens e pessoas adultas que perdem o
acesso a essas instituições, sendo desencorajadas a estudar. A segunda via se produz pela
lógica violenta da competição, da monetarização das relações e o do individualismo.
Paralelamente, vemos o pulsar das ruas e dos gritos que ecoam em vários lugares.
Esses gritos, os quais foram ecoados em torno da premissa de que com racismo não há
democracia, permitiu ouvir-se a busca à superação dos resquícios fantasmáticos da escravidão
e do colonialismo. Esse movimento visa estabelecer uma ruptura de um representável, da
estereotipia de uma figura fantasmática de uma humanidade não existente — que ainda paira
sobre nós.
Desse modo, a lei 10.639/03 e as demais legislações que foram empreendidas como
um conjunto de ações para a igualdade racial, constituindo-se como um conjunto de ações
afirmativas, fazem parte de uma história de longa duração e de reflexão para a busca por uma
sociedade antirracista. Observar as duas décadas precedentes mostram os limites e avanços.
Dos limites ainda se identifica que a educação das relações étnico-raciais aparece muitas
vezes circunscrita a ações individuais e sem a articulação com a comunidade escolar. Dos
avanços é inegável que as professoras e professores demonstram mais conhecimento sobre a
legislação, que participaram de cursos de aperfeiçoamento na temática e que aumentaram seu
compromisso com a tarefa de educar. No entanto, o atual contexto apresenta retrocessos a um
processo que vinha se constituindo como paulatino, com publicações específicas,
financiamento de cursos e com uma estrutura orgânica de aplicação da legislação.
É impossível não finalizar essa reflexão com tais questões, pois vínhamos de um
processo de luta e de conquistas concretas em muitos setores da sociedade brasileira. Tais
conquistas no âmbito das diferenças abalaram e colocaram a sociedade brasileira de frente
com a sua história ao se colocar no debate público as diversas discriminações e preconceitos
que estão no tecido brasileiro e como essas questões estão na nossa história. Esse movimento
levou a discussões sobre as dimensões subjetivas do que significa habitar o espaço público
com corpos que emergem já esquadrinhados por um contexto social, econômico, cultural e
estético.
A tarefa política que se abre nesta presente é a da articulação e proposição de
alternativas e saídas ao que estamos vivendo. Entende-se, por isso, não apenas a necessidade

26
de uma leitura descritiva do que ocorre, mas também uma necessidade performativa, ou seja,
do que se produz quando se diz sobre um acontecimento.
Maria de Lourdes do Nascimento, em uma edição de sua coluna Fala Mulher no Jornal
O Quilombo, em 1950, alertou:
Se nós mulheres negras do Brasil, estamos mesmo preparadas para usufruir os benefícios da
civilização e da cultura, se quisermos de fato alcançar um padrão de vida compatível com a
dignidade da nossa condição de seres humanos, precisamos sem mais tardança fazer política
precisamos constituir um exército de eleitoras pesando na balança das urnas, usar o máximo
as franquias democráticas que nos asseguram o direito que é também o sagrado dever cívico
de votar e sermos vota- das para qualquer pleito eletivo nas próximas eleições de 3 de outubro
(Nascimento, 1950).

O tempo histórico como um movimento de contrações e dobras nos coloca diante de


desafios que parecem se repetir. Que saibamos nos projetar em quem veio antes e nos
possibilitou olhar para nossa história e nos encontrar nas lutas que já foram combatidas antes.
Lutas que foram vencidas. E que serão novamente.

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27
NOTAS SOBRE A PRIMEIRA INFÂNCIA E RELAÇÕES ÉTNICO-
RACIAIS

Valter Roberto Silvério


Profº Titular do Deptº e Programa de Pós-Graduação em
Sociologia, da Universidade Federal de São Carlos.
[email protected]

Iberê Araujo da Conceição


Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos
[email protected]

Ayodele Floriano Silva


Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos
[email protected]

Introdução

O presente capítulo apresenta resultados parciais da pesquisa “Uma década de


produção sobre infância e criança: 2010 – 2021”, conduzida pelo Núcleo de Estudos Afro-
Brasileiros da Universidade Federal de São Carlos (NEAB-UFSCar) 4, parte do projeto
“Relações étnico-raciais e primeira infância: aspectos psicossociais, educacionais e culturais”,
coordenado pelo Instituto Amma Psique e Negritude. São aqui apresentados uma breve
revisão dos marcos teóricos e legais sobre a infância e a criança negra e um levantamento
sobre o tema no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES.
O principal objetivo do projeto é analisar as dimensões psicossociais, educacionais e
culturais relacionadas ao Marco Legal da Primeira Infância 5. O nosso pressuposto é de que o
campo normativo que pensa a criança e a infância pode ser analisado a partir de três
dimensões: a acadêmica, a política legislativa e a da ação do Estado brasileiro no campo da
4
O grupo de pesquisa do projeto é composto pelos seguintes professores pesquisadores: Valter Roberto Silvério,
Tatiane Cosentino Rodrigues; doutorandos, Ayodele Floriano Silva, Iberê Araujo da Conceição e Vitória
Wermelinger e graduando Marcelo Presse.
5
Lei n.º 13.257/2016 que estabelece princípios e diretrizes para a formulação e a implementação de políticas
públicas para a primeira infância em atenção à especificidade e à relevância dos primeiros anos de vida no
desenvolvimento infantil e no desenvolvimento do ser humano, em consonância com os princípios e diretrizes da
Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) ; altera a Lei n.º 8.069, de 13 de
julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente); altera os arts. 6º, 185, 304 e 318 do Decreto-Lei n.º 3.689,
de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal); acrescenta incisos ao art. 473 da Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 5.452, de 1º de maio de 1943; altera os arts. 1º, 3º, 4º e 5º da Lei
n.º 11.770, de 9 de setembro de 2008; e acrescenta parágrafos ao art. 5º da Lei n.º 12.662, de 5 de junho de 2012.

28
infância. Desse modo, a pesquisa visa investigar como a literatura contemporânea tratou o
tema da infância e da criança negra na última década.
A hipótese geral é de que a noção universal de criança, presentes na legislação, nas
políticas sociais e na literatura especializada, apagam a diferença constitutiva entre a criança
negra e branca. Ou seja, enquanto a criança branca é vista como sujeito de direito à infância, a
criança negra, contrariamente, é vista num lugar de carência, de falta ou até de ameaça. No
caso brasileiro, há um processo de racialização da criança negra que é "adultizada" e como
resultado cristalizada na condição de “menor” no imaginário social brasileiro.
Nesse sentido, temos que o surgimento da “criança negra” e da “infância negra”, no
campo normativo e do conhecimento, enquanto um sujeito de direitos, é ainda muito recente.
Dessa maneira, optamos por um expediente de pesquisa em múltiplos percursos
metodológicos: Percurso 1 – Análise do periódico Correios da Unesco; Percurso 2 –
Levantamento de Dissertações e Teses; Percurso 3 – Levantamento de artigos (Nacional e
Internacional; Percurso 4 – Levantamento na mídia jornalística.
Desse modo — tendo em vista a pouca atenção acadêmica recebida pelo tema — neste
capítulo tratamos do Percurso 2, sendo ele fundamental à compreensão, ainda que de forma
breve e indicativa, do que se tem produzido sobre o tema.

Marcos teóricos e históricos sobre a criança e infância negra

A Declaração Universal dos Direitos da Criança, promulgada pela Organização das


Nações Unidas (ONU), em 1959, é considerada um dos marcos fundantes do reconhecimento
pelo ocidente do estatuto de sujeito e da dignidade de pessoa outorgados à criança. Este marco
é explorado por Rosemberg e Mariano (2010), no artigo “A Convenção Internacional sobre os
Direitos da Criança: debates e tensões”, em que se analisa e historiciza as abordagens
contemporâneas sobre infância, a Declaração dos Direitos das Crianças é apontada pelos
autores como um destes marcos que avança sobre a precedente, de 1924. Conhecida como a
Declaração de Genebra, sob os auspícios da Liga das Nações e alicerçando e, posteriormente,
influindo na publicação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Crianças de 1989,
documento, então, ratificado por vários países. Seus impactos no Brasil estão relacionados ao
artigo 227 da Constituição Brasileira de 1988 e o surgimento do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) de 1990.
Outro marco apontado pelos autores neste artigo, mas também amplamente citado e
debatido no campo dos estudos da infância é a publicação do livro de Philippe Aries (1961),
“L’enfant et la vie familiale sous l’ancien regime”, traduzido para o português como “História

29
social da criança e da família”, em 1970. Apesar das críticas que lhe foram feitas, o autor
desloca a ideia de infância da medicina e psicologia, por exemplo, estendendo para outros
domínios do conhecimento humano. Esse deslocamento permite que estudos que partam dessa
noção elaborada a partir de Ariès possam compreender a infância não apenas como uma fase
do desenvolvimento e comportamento humano, mas também como um conceito/ideia
construídos em consonância com a história, a cultura e o contexto que fizeram emergir um
sentimento de infância. Segundo Rosemberg (2012):

Aries (1961), além de inaugurar a “visão da infância como uma construção social, dependente
ao mesmo tempo do contexto social e do discurso intelectual” (Sirota, 2001, p. 10), lançou as
bases para a mudança paradigmática proposta nas décadas de 1980 e 1990 pelos estudos sociais
sobre a infância (na tradição anglo-saxônica), ou sociologia da infância (na tradição
francófona): alçar a infância à condição de objeto legitimo das ciências humanas e sociais;
tratar a infância como construção social; romper com o modelo “desenvolvimentista” da
psicologia (por exemplo o piagetiano) “impelido para uma estrutura de racionalização adulta
permanentemente definida” (Jenks, 2002, p. 212); atacar o conceito de socialização da criança
como inculcação, até́ então predominante na antropologia, na psicologia e na sociologia;
conceber a criança como ator social. Em suma, romper com uma visão adultocêntrica da
sociedade, no geral, de suas instituições inclusive as acadêmicas, pela qual a criança é vista
apenas como um vir a ser do adulto e que, para tanto, deve ser aculturada ao mundo social via
processo de socialização entendido como condicionamento das normas sociais, impostos de
“cima” (universo adulto) para “baixo” (universo infantil) (ROSEMBERG, 2012, p. 22).

No que diz respeito ao contexto brasileiro, embora o trabalho de Ariés se constitua em


um marco, é importante considerar a crítica de Khulmann Jr. (1998) a respeito da análise
histórica da emergência do sentimento de infância no Brasil. Ao fato deste já se fazer presente
durante o processo de colonização, pelas relações e funções estabelecidas com as crianças
indígenas, por exemplo. O autor localiza tanto as distinções de tratamento entre os grupos
branco, indígena e negro quanto o sentimento de infância. Especificamente em relação aos
descendentes de africanos escravizados vamos verificar aquelas distinções na Lei n° 2040 de
28 de setembro de 18716 que diz o seguinte:

6
A Princeza Imperial Regente, em nome de Sua Magestade o Imperador e Senhor D. Pedro II, faz saber a todos
os subditos do Imperio que a Assembléa Geral Decretou e ella Sanccionou a Lei seguinte: Art. 1º Os filhos de
mulher escrava que nascerem no Imperio desde a data desta lei, serão considerados de condição livre. § 1º Os
ditos filhos menores ficarão em poder o sob a autoridade dos senhores de suas mãis, os quaes terão obrigação de
crial-os e tratal-os até a idade de oito annos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da
mãi terá opção, ou de receber do Estado a indemnização de 600$000, ou de utilisar-se dos serviços do menor até
a idade de 21 annos completos. No primeiro caso, o Governo receberá o menor, e lhe dará destino, em
conformidade da presente lei. A indemnização pecuniaria acima fixada será paga em titulos de renda com o juro
annual de 6%, os quaes se considerarão extinctos no fim de 30 annos. A declaração do senhor deverá ser feita
dentro de 30 dias, a contar daquelle em que o menor chegar á idade de oito annos e, se a não fizer então, ficará
entendido que opta pelo arbitrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor. § 2º Qualquer desses menores
poderá remir-se do onus de servir, mediante prévia indemnização pecuniaria, que por si ou por outrem offereça
ao senhor de sua mãi, procedendo-se á avaliação dos serviços pelo tempo que lhe restar a preencher, se não
houver accôrdo sobre o quantum da mesma indemnização. § 3º Cabe tambem aos senhores criar e tratar os filhos
que as filhas de suas escravas possam ter quando aquellas estiverem prestando serviços. Tal obrigação, porém,
cessará logo que findar a prestação dos serviços das mãis. Se estas fallecerem dentro daquelle prazo, seus filhos
poderão ser postos à disposição do Governo. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim2040.htm

30
Art. 1º Os filhos de mulher escrava que nascerem no Imperio desde a data desta lei, serão
considerados de condição livre. § 1º Os ditos filhos menores ficarão em poder o sob a
autoridade dos senhores de suas mãis, os quaes terão obrigação de crial-os e tratal-os até a
idade de oito annos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãi terá
opção, ou de receber do Estado a indemnização de 600$000, ou de utilisar-se dos serviços do
menor até a idade de 21 annos completos. No primeiro caso, o Governo receberá o menor, e
lhe dará destino, em conformidade da presente lei. A indemnização pecuniaria acima fixada
será paga em titulos de renda com o juro annual de 6%, os quaes se considerarão extinctos no
fim de 30 annos. A declaração do senhor deverá ser feita dentro de 30 dias, a contar daquelle
em que o menor chegar á idade de oito annos e, se a não fizer então, ficará entendido que opta
pelo arbitrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor.

Neste sentido, é importante considerar também todo o debate e processo de


institucionalização da infância e de determinadas crianças a partir da Lei n° 2040 de 28 de
setembro de 1871 (lei do Ventre Livre). O que se observa no texto da lei não é uma
preocupação com o “menor” ou com sua mãe, mas a proteção daquilo que o senhor (o
patriarca) considerava sua propriedade, tudo que encontrava em seus domínios (terra,
instrumentos de trabalho, pessoas). A abolição da escravatura, lei n° 3353 de 13 de maio de
1888, e a primeira constituição republicana de 24 de fevereiro 1891 não estabelecem nenhum
tipo de prescrição em relação aos destinos dos desescravizados e seus filhos, portanto, estão
em plena consonância com a vigência dos poderes senhoriais e patriarcais. Confundindo-se
com a figura do patriarca e sua família, a indistinção que caracterizaria o período não permite
a emergência de uma noção de público que extrapolasse os limites do privado, masculino e
branco. A expressão dos interesses da família patriarcal, como interesse geral da sociedade,
advém da colonização, em que poucos indivíduos tiveram concessão de terras e títulos e
passaram a explorarem as terras da Coroa como se fossem suas. E neles não se encontram a
educação enquanto política pública.
Assim, nos cabe perguntar como e quando se deu o processo de institucionalização da
infância no país? Quais diferenças podemos observar no tratamento dado às crianças de
grupos de pertencimento étnico-racial e classes distintas? Qual a diferença entre os “Jardins
de infância” e as “Creches” em relação às respectivas origens dos grupos que participaram da
formação social do Brasil?

Sobre proteção da criança nas Constituições brasileiras


Podemos distinguir três correntes que justificam a proteção destinada à criança, a
saber: a) doutrina da proteção integral, partindo dos Direitos da Criança reconhecidos pela
ONU, na qual a lei asseguraria a satisfação de todas as necessidades das pessoas de menor
idade, nos seus aspectos gerais; b) doutrina do Direito Penal do “Menor”, pela qual o direito
só se ocupa do “menor” a partir do momento em que pratique um ato de delinquência; c)

31
doutrina intermediária da situação irregular, em que os “menores” são sujeitos de direito
quando se encontrarem em estado de patologia social, definida legalmente7.

Quadro 1 - PROTEÇÃO NAS CONSTITUIÇÕES 1824-1988


Ano/período Proteção à criança/ infância
1824 Não há referência alguma à proteção à criança.
1891 Não há referência alguma à proteção à criança.
TÍTULO IV - Da Ordem Econômica e Social
Art. 121 - A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do
trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os
1934 interesses econômicos do País.
§ 3º - Os serviços de amparo à maternidade e à infância, os referentes ao lar e ao
trabalho feminino, assim como a fiscalização e a orientação respectivas, serão
incumbidos de preferência a mulheres habilitadas.
DA EDUCAÇÃO E DA CULTURA
Art. 129 - A infância e à juventude, a que faltarem os recursos necessários à educação
1937
em instituições particulares, é dever da Nação, dos Estados e dos Municípios
assegurar, ela fundação de instituições públicas de ensino em todos os
TÍTULO VI - Da Família, da Educação e da Cultura
1946 Art. 164. É obrigatória, em todo o território nacional, a assistência à maternidade, à
infância e à adolescência. A lei instituirá o amparo das famílias de prole numerosa
TÍTULO IV - DA FAMÍLIA, DA EDUCAÇÃO E DA CULTURA
1969 Art. 175 - § 4º Lei especial disporá sôbre a assistência à maternidade, à infância e à
adolescência e sôbre a educação de excepcionais.
TÍTULO VIII - Da Ordem Social -
1988 CAPÍTULO III - Da Educação, da Cultura e do Desporto
Art. 203 - I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à
velhice; II – o amparo às crianças e adolescentes carentes;
Art. 208 - IV – educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco)
anos de idade;
CAPÍTULO VII - Da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao
adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao

7
COELHO, BERNARDO L. M. A proteção à criança nas constituições brasileiras: 1824 a 1969. Revista de
Informação Legislativa. Brasília a. 35 n. 139 jul./set. 1998, pp. 93-108.
https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/390/r139-07.pdf?sequence=4

32
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a
salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão.
§ 1o O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do
adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades não governamentais,
mediante políticas específicas...
Fonte – Elaboração dos autores e autoras.

Como podemos observar no quadro acima, as constituições anteriores à 1988 não


continham nenhuma provisão específica à criança e infância (1824 e 1891) e as constituições
subsequentes (1934; 1937; 1946 e 1969) guardavam linha de continuidade com a defesa dos
interesses senhoriais e, posteriormente, oligárquicos. A oligarquia é o governo, ou o controle
dele, em que o poder está concentrado nas mãos de pequeno número de indivíduos ou de
poucas famílias. Desta forma, apenas a partir da promulgação da Constituição de 1988, fruto
de um processo de mobilização e pressão sociais exercidos sobre a assembleia constituinte de
1987, é que surge tanto uma política de proteção social da criança quanto um conjunto de
prescrições que tendem a orientar e aprofundar as lutas dos movimentos sociais por direitos.
No caso específico das prescrições em relação à educação infantil, elas se integrarão
legalmente ao sistema de ensino apenas na Lei n° 9394 de 1996, Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (LDB), em que passa a ser definida como primeira etapa da educação básica e
compreende as creches, para crianças até 3 anos e as pré-escolas para crianças de 4 e 5 anos.

Movimento negro e o ativismo educacional


Do ponto de vista de Silvério (2005), no final do século XX o lugar da diversidade na
constituição de uma nova ordem social, cultural e política estava colocada como uma questão
de fundo. Sob esse ponto de vista, a Constituição Federal de 1988 refletiria uma transição
sociopolítica profunda, nos quais os ideais de uma sociedade homogênea (em sua composição
étnico-racial) e harmônica (do ponto de vista aglutinador da ideologia nacional) e cordial
(relacionada às relações entre grupos e pessoas) estaria dando lugar a uma sociedade que se
entende como complexa, diversa e heterogênea (no aspecto étnico-racial), dissonante (sobre a
ideologia nacional) e conflituosa (nas relações entre grupos e pessoas) (SILVÉRIO, 2005).
Desde a abertura política, as ações do Movimento Negro brasileiro foram
fundamentais para a construção tanto de um campo normativo favorável ao tratamento das
questões relativas, ao pertencimento étnico-racial, quanto na ampliação da compreensão
social dos impactos da discriminação racial e do racismo. Em relação à política pública

33
educacional, é notável um tipo de ativismo político com objetivo explícito de ampliação do
acesso e inclusão de conteúdos que dialogassem com o papel da população de origem
africana, construída como negra no Brasil.
Segundo Silvério e Trinidad (2012), o período compreendido entre a promulgação da
Carta Magna de 88 e da Lei º 10639/2003 é especialmente importante para a compressão das
mudanças sociais contemporâneas. Em um primeiro período (1987-1996), o ativismo negro
esteve marcado pela reivindicação do movimento negro frente ao Estado pela valorização da
cultura e pelo reconhecimento social da população negra, sobretudo a partir dos debates na
Assembleia Constituinte de 1987. Sucederam, posteriormente, com maiores relevâncias, a
Marcha Zumbi dos Palmares (1995), a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional n. 9.394/1996 (LDB) e, finalmente, pela constituição, em 1996, do Grupo de
Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra (GTI), pelo ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso.
Esses eventos anteriores marcaram uma mudança de uma reivindicação abstrata e
cultural pela valorização da cultura negra para uma articulação política material e
institucional. Esse segundo período (1997-2004) foi marcado pelos seguintes eventos: os
Seminários Regionais Preparatórios para Conferência Mundial Contra o Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata; a III Conferência Mundial das
Nações Unidas Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata,
realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em Durban, na África do Sul (2001); e,
por fim, a aprovação da alteração da LDB pela Lei n° 10.639/2003 e sua posterior
regulamentação. Como consequência desse conjunto de eventos, o Estado passa a reconhecer
oficialmente a existência do racismo e da discriminação racial no país e, a partir disso, desde a
década de 1990, notam-se diversas ações do poder público para o combato ao racismo e ao
preconceito nas escolas.
Em vista disso, a aprovação da Lei n° 10.639/03 e a implementação da Resolução n°
3/2004 e do Parecer do Conselho Nacional de Educação (Conselho Pleno 001/2004), que
estabelece a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” no currículo
oficial da rede de ensino da educação básica, iniciam a perspectiva de visibilidade e do
reconhecimento desses sujeitos e de suas experiências.

A criança negra na educação


De forma geral, a criança negra tem sido apresentada pelas pesquisas a partir de um
protótipo de infância na qual ela é relacionada a baixa-estima em um contexto escolar que não

34
acolhe a sua diferença, a sua particularidade cultural e que em diversas situações lhe impede
de permanecer nesse ambiente, por esse ter como base um único modelo de indivíduo e de
cultura. Conforme as pesquisas de Cavalleiro (2000), Algarve (2004) e Souza (2001) na
escola é possível encontrar práticas discriminatórias e silenciamentos. Além disso, outros
estudos apontam para um currículo conservador e excludente, o qual contribui para o
afastamento das questões raciais.
Estudos como os de Jesus (2018) e Santana (2021) apontam que estudantes negros
enfrentam dificuldades para permanecerem na escola, sendo os que apresentam as maiores
taxas de evasão e repetência. No entanto, essas pesquisas tem como foco estudantes do Ensino
Fundamental e Ensino Médio. As pesquisas na Educação Infantil nos mostram algumas
evidências que nos fazem refletir sobre o nosso papel enquanto educadores, nossas
concepções e crenças e o reflexo disso na construção da identidade das crianças negras e não-
negras.
Com o foco na Educação Infantil destacamos as pesquisas de Cavalleiro (2000) e
Oliveira (2004). A primeira analisa o processo de socialização de crianças pré-escolares (4 a 5
anos), no que se refere às relações étnicas estabelecidas no espaço da escola e no ambiente
familiar. Cavalleiro (2000) conclui que a criança negra, desde a educação infantil, está sendo
socializada para o silêncio e para a submissão. A segunda pesquisa analisou as práticas
educativas que ocorrem na creche, com ênfase na criança negra. Oliveira (2004) verificou que
a questão racial apareceu nas práticas educativas, principalmente, em situações que
demonstravam determinado “carinho”, que a autora optou por chamar de “paparicação” por
parte das professoras em relação a determinadas crianças, estando as negras, na maior parte
do tempo, “fora” ou excluídas.
As pesquisas realizadas apontam para a existência da problemática racial no espaço da
educação infantil; seja pelo silêncio ou pela oferta de carinho. As concepções e valores das
profissionais envolvidas com estas crianças, a mídia em geral são elementos que
possivelmente atuam de forma ativa na veiculação e construção de imagens, ideias e ideais
estéticos que acabam fortalecendo o grupo brancos e estigmatizando negativamente o negro.
A cultura negra é silenciada na escola, um silêncio que corresponde à inexistência e
não simplesmente ao ato de calar-se, omitir ou abafar, mas como uma maneira de não ver, de
relegar, um ‘pacto’ que não deve ser quebrado, pois senão teríamos que refazer o currículo,
refazer a escola. Diante disso, a escola reproduz um discurso baseado na igualdade de todos
os seus alunos.

35
A partir desse discurso da igualdade, os agentes pedagógicos acabam acionando
mecanismos de poder que fixam um modelo de sociedade e punem todos os que dele desviam,
mutilando a particularidade cultural do segmento da população negra brasileira, a partir de um
ritual que se legitima na instituição escolar, não por aquilo que é dito, mas por tudo aquilo que
silencia.
Desta forma, o que as pesquisas sugerem como uma ferramenta de combate ao
racismo é que tal questão não continue sendo ocultada na instituição escolar, devendo
possibilitar um espaço permanente para discussão e reflexão de posturas racistas e
preconceituosas visando à superação de estereótipos, estigmas e discriminações contra os
negros — realidade comum no ambiente escolar.
Destacamos o artigo de Rosemberg e Rocha (2007) que de alguma forma corrobora
com a nossa classificação ao mostrar que as pesquisas sobre as relações raciais têm se
caracterizado como denúncia contra o racismo. Deste modo, o artigo das autoras pretende
aprofundar o debate sobre classificação e denominação de cor/raça no Brasil contemporâneo,
também trazem para o debate a voz de crianças e adolescentes sobre a denominação de
cor/raça entre alunos de escolas públicas paulistanas. Segundo as autoras, o artigo produzido
associa dois objetivos, o político: de dar voz e escutar a voz de crianças e adolescentes sobre a
pertença racial e o acadêmico: estender o conhecimento sobre o sistema de classificação racial
para idades que em regra não são atingidas pelos inquéritos nacionais.
Além disso, segundo os autores, a pesquisa realizada visa contribuir para o volume
crescente de estudos sobre relações raciais no Brasil que dedicam pouca atenção às crianças e
adolescentes, já que parte substantiva dos estudos sobre crianças negras, no Brasil, preocupa-
se com a “produção e reprodução de preconceito racial e seu impacto na construção de sua
identidade racial” (Rocha, Rosemberg, 2007, p. 771).

Teses e Dissertações do Catálogo da CAPES


Na busca dos 10 temas8 relacionados à infância e à criança na base de dados da
CAPES, coletamos os dados referentes à modalidade dos trabalhos produzidos, ao ano de
publicação desses trabalhos, à região das Instituições em que foram produzidos e se eram
instituições públicas ou privadas. É necessário apontar que não limitamos o recorte histórico
nessa etapa da pesquisa por conta da necessidade de construir um panorama histórico geral
sobre o tema, além da última década. A partir do levantamento dos 10 temas citados, foi
possível encontrar um total de 58.752 trabalhos na biblioteca de dissertações e teses da
8
Infância; Infância e Discriminação; Infância Negra; Infância e Educação; Infância e Educação Infantil;
Educação; Infantil e Discriminação Racial; Criança; Criança Parda; Criança Negra; e Criança Preta.

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CAPES somando os resultados, ou seja, sem eliminar as repetições. A partir dos resultados
obtidos, constatamos, como esperado, que número de dissertações supera o número de teses,
dissertações de mestrado profissional e de trabalhos de conclusão de curso da modalidade
profissionalizante.

Criança
Dos 58.752 trabalhos encontrados no catálogo da CAPES, 28.244 estão relacionados
ao tema “infância” e 30.508 estão relacionados ao tema "criança". Os trabalhos produzidos
sobre o tema “criança” começam a aparecer no catálogo da CAPES a partir do ano de 1989,
tendo um tímido número de produções que começa a crescer também no final da década de
1990. De 2006 em diante esse número começou a crescer de forma bem perceptível, chegando
no seu auge entre os anos de 2015 e 2018, chegando a contar com 2146 publicações no ano de
2018. A partir de 2019, esse número começa a ser reduzido, chegando a marca de 599
trabalhos publicados no ano de 2021, como pode ser observado no gráfico a seguir.
Os trabalhos sobre a temática “criança” que estão relacionados a questões raciais
apresentam um número bem pequeno de produções. De um total de 30.007 trabalhos
referentes ao tema “criança”, 287 (1,0%) são referentes à “criança negra”, 138 (0,45%) à
“criança parda” e 77 (0,25%) à “criança preta”. No que diz respeito a categoria mais
relevante, “criança negra”, tem seu primeiro trabalho publicado no ano de 1996 e mantém
uma média de 2 trabalhos por ano até 2002, o ano de 2003 conta com 4 produções sobre o
tema. A primeira década dos anos 2000 conta com uma média de 2 trabalhos por ano, mas
manteve uma constância de publicações sobre o tema. A partir de 2010 essa média sobe para
4 trabalhos por ano. Os anos de 2017 e 2018 foram os anos que contaram com uma maior
incidência de trabalhos escritos sobre o tema, com uma média de 10 publicações. Os anos de
2019 e 2020 apresentam uma queda no número de publicações, contam respectivamente com
2 e 3 trabalhos publicados.
A partir do ano de 2002 começam a aparecer publicações sobre “criança preta” na base
da CAPES. A primeira década dos anos 2000 conta com uma média de 2 trabalhos por ano
sobre o tema. Em 2010 houve um aumento no número de trabalhos sobre o tema, os anos de
2015 (10 trabalhos), 2020 (12 trabalhos) e 2021 (10 trabalhos) são os anos com os maiores
números de produções sobre o tema. A primeira publicação do tema “criança parda”
encontrada na biblioteca de dissertações e teses da CAPES data de 2000 e conta com
trabalhos publicados até o ano de 2021. Até o ano de 2010 há uma média de duas publicações
por ano sobre o tema. De 2011 em diante, essa média sobe para 10 trabalhos por ano. Os anos

37
que contam com o maior número de trabalhos são 2014 (14 trabalhos), 2019 (16 trabalhos) e
2020 (17 trabalhos).

Gráfico 1 – Busca do termo “criança” no Catálogo da CAPES

Fonte: Elaboração dos autores e autora, 2022.

Infância

Nas buscas por palavras-chave, com o termo “Infância” recebemos 16.257 trabalhos
sobre o tema, 221 (1,4%) dos trabalhos falam sobre “infância e discriminação”, 218 (1,4%)
abordam a temática “infância negra” e somente 9 (0,05%) dos trabalhos se enquadram na
temática “educação infantil e discriminação racial”. Em contrapartida, as temáticas que não
estão inseridas em um recorte racial contam com um número maior de publicações, uma vez
que 8769 (54%) trabalhos abordam o tema “infância e educação” e 2770 (17%) trabalhos
versam sobre “infância e educação infantil”.
Quanto ao recorte temporal de publicação destes trabalhos, foi possível observar que o
primeiro trabalho produzido sobre o tema “infância” catalogado na base CAPES data de 1996.
Pensando no recorte racial do tema “infância”, foi possível observar que a categoria “infância
negra” tem sua primeira produção no ano de 2008 e apresenta uma faixa de um ou dois
trabalhos produzidos a cada dois anos. A última publicação sobre o tema na base da CAPES é
do ano de 2019. O tema “educação infantil e discriminação racial”, que conta com apenas
nove resultados na base de dados CAPES, tem sua primeira produção datada de 2006 e a

38
última de 2019. A temática “infância e discriminação” possui trabalhos publicados desde o
ano de 1998 na base da CAPES, somando um total de 78 trabalhos e apesar de não apresentar
uma linearidade no número de publicações através das décadas, houve trabalhos escritos sobre
o tema até o ano de 2021. Entre os anos de 2019 e 2021 houve uma perceptível queda no
número de publicações sobre o tema, chegando ao número mínimo de 1 publicação no ano de
2021. As produções sobre a temática seguem um crescimento constante e entre os anos de
2017 e 2018 atingem o seu ponto máximo de produção, na faixa de 1.300 trabalhos
produzidos por ano. A partir de 2019, esses números começam a cair e no ano de 2021 apenas
333 trabalhos sobre o tema foram publicados na base da CAPES. Os dados podem ser
apreciados no gráfico abaixo.

Gráfico 2 – Busca do termo “infância” na CAPES

Fonte: Elaboração dos autores e autoras.

Quanto à região de publicação dos trabalhos sobre o tema “Infância”, foi possível
observar que o maior número de produções, assim como o maior número de instituições que
produziram sobre o tema, tanto públicas, quanto privadas, se encontram no Sudeste.
Independente da palavra-chave, termos em mente as diferentes proporções populacionais das
regiões nos ajuda a interpretar esses resultados.

39
Tabela 1 – Censo demográfico por raça/cor e região do Brasil.

População Brasil Sudeste Sul Centro-Oeste Nordeste Norte


190.755.799 80.364.410 27.386.891 14.058.094 53.081.950 15.864.454
Geral
(100%) (42,1%) (14,3%) (7,34%) (27,8%) (8,31%)
Negra 50,7% 43,8% 20,7% 56% 69,2% 73,7%
Branca 47,7%) 54,9% 78,3% 41,5% 29,2% 23,2%
Indígena 0,47% 0,1% 0,3% 0,9% 0,4% 1,9%
Amarela 1,1% 1,1% 0,7% 1,5% 1,2% 1,1%
Fonte: IBGE 2010.

Gráfico 3 – Número de instituições privadas ou públicas na busca por “infância” no


Catálogo da CAPES.

Fonte: Elaboração dos autores e autoras.

As regiões Sudeste e Sul, mas principalmente o Sudeste, se destacam em relação ao


número de instituições privadas que produzem sobre o tema. A região que conta com o menor
número de instituições privadas é o Norte.
No que se refere ao tema “Criança”, o padrão se repete, como pode ser visto no gráfico
abaixo.

40
Gráfico 4 - Número de instituições privadas ou públicas na busca por “criança” no
Catálogo da CAPES

Fonte: Elaboração dos autores e autoras.

Interessante de ambos os gráficos é observar que as instituições de ensino superior


privado são majoritárias no Sul e no Sudeste, indicando uma absorção do mercado sobre o
tema nessas regiões. Por outro lado, no Norte, Nordeste e Centro-Oeste, são as instituições
públicas que ocupam esse espaço de debate. Esse padrão merece uma melhor análise em
outras etapas da pesquisa, em que poderemos avançar nas investigações comparativas por
região.
Já no que diz respeito a área de concentração dos trabalhos escritos sobre “criança”
que se encontram na base da CAPES, observamos que a maior parte dos trabalhos (43,70%)
sobre o tema se enquadram na área de Ciências da Saúde, seguido da área de Ciências
Humanas e Sociais (somadas as duas, 42,70%), como é mostrado no gráfico a seguir. Já em
relação aos trabalhos sobre “infância”, o maior número de trabalhos escritos sobre o tema se
enquadra na área de Ciências Humanas e Sociais (52,10%), quase o dobro dos resultados na
área de Ciências da Saúde (28,10%).

Conclusão e próximos passos


A título de conclusão deste capítulo, assinalamos que os resultados que aqui se
encontram são preliminares e precisarão ser analisados à luz dos outros resultados. Nas
próximas etapas iremos realizar as seguintes ações: Percurso 1 - investigação da agenda

41
internacional para a infância e relações étnico-raciais, a partir dos Correios da UNESCO e sua
incorporação no cenário nacional; Percurso 3 - aprofundar a análise comparativa do campo da
infância e relações étnico-raciais entre Brasil e Estados Unidos, por meio da comparação dos
resultados na base brasileira Scientific Electronic Library Online (SciELO) e da norte-
americana Education Resources Information Center (ERIC); Percurso 4 - Analisar a
representação da criança e infância negra na mídia jornalística brasileira.

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42
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43
INFÂNCIA NEGRA NO BRASIL, RACISMO E VIOLAÇÃO DE
DIREITOS HUMANOS: A EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES
ETNICO-RACIAIS E OS DESAFIOS PARA UMA EDUCAÇÃO
ANTIRRACISTA
Adeildo Vila Nova
Doutorando em Serviço Social
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
[email protected]

Os brancos retirando os negros da África não previam que iam criar o racismo no mundo,
que é problema e dilema. Eu lia o livro, retirava a síntese. E assim foi duplicando o meu
interesse pelos livros. Não mais deixei de ler.
Carolina Maria de Jesus (1914-1977).

Introdução
A infância negra no Brasil foi e ainda é atravessada por uma série de circunstâncias
que a expõe aos mais diversos fatores de riscos. Riscos estes resultantes em diversas
violações dos seus direitos fundamentais estabelecidos em estatutos legais como a
Constituição Federal de 1988, culminando na promulgação do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), em 1990. Partimos da ideia de que o racismo é um dos fatores que
agravam seriamente as condições socioeconômicas dessas crianças e consequentemente as
violações sofridas.
Apontamos neste capítulo que, entre esses direitos violados, a educação se coloca
como algo ainda pouco discutido, especialmente quando nos referimos especificamente à
educação de crianças negras; haja vista o histórico de exclusão escolar desse segmento
populacional, o qual se estabeleceu ainda no Brasil colonial, mas que ainda é recorrente na
atualidade, como descortinaremos no desenvolvimento desse estudo.
Iniciativas como a da Educação para as Relações Étnico-raciais (ERER) se colocam
como uma ferramenta importante para estabelecer um currículo apropriado e que garanta o
respeito às diversidades históricas e culturais dos povos constitutivos do nosso país, com
destaque para o povo negro que fundou as bases para o Brasil que temos hoje. Levar essa
perspectiva na nossa formação sócio-histórica é fundamental para entender nossas origens e
valorizar quem, de fato, carregou e carrega esse país nas costas.
Nesse sentido, a educação antirracista se consolida como uma importante iniciativa, a
qual pode congregar os mais diversos segmentos e aspectos da nossa sociabilidade e deslocar
para o campo educacional as discussões há tempos defendidas e difundidas nos movimentos

44
negros organizados. Pensar a educação antirracista é pensar a partir de uma nova perspectiva
de análise: o negro torna-se protagonista e não apenas meros objetos da elite escravista
brasileira — como costumamos aprender nas escolas. A educação antirracista nos possibilita
entender a população negra, mesmo escravizada, como sujeitos ativos que construíram sua
própria história com muita luta e resistência contra a escravização que lhes era imposta.
Para este estudo, considerando sua dimensão política e ideológica, optou-se, não à toa,
pelo método do materialismo histórico-dialético em Marx, pois
[...] nos desafia a trabalhar sempre considerando a contradição e o conflito; o ‘devir’; o
movimento histórico; a totalidade e a unidade dos contrários; além de apreender, em todo o
percurso de pesquisa, as dimensões filosófica, material/concreta e política que envolve seu
objeto de estudo. (Lima e Mioto, 2007, p. 39).

Nessa mesma perspectiva, decidiu-se pela pesquisa bibliográfica, metodologia que se


coloca como uma estratégia importante para a obtenção das informações e das relações
necessárias para o estabelecimento de uma análise crítica que considere a totalidade do
objeto de estudo. Mas não podemos confundir pesquisa bibliográfica com revisão
bibliográfica ou revisão de literatura. Lima e Mioto (2007, p. 38) apontam muito bem as
diferenças entre uma e outra.
[...] falta compreensão de que a revisão de literatura é apenas um pré-requisito para a realização
de toda e qualquer pesquisa, ao passo que a pesquisa bibliográfica implica em um conjunto
ordenado de procedimentos de busca por soluções, atento ao objeto de estudo, e que, por isso,
não pode ser aleatório.

A partir de uma bibliografia criticamente selecionada, analisamos a infância negra no


Brasil a partir da perspectiva de uma educação antirracista para apontar os desafios da
Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER), considerando as implicações do racismo
nesta dinâmica e realidade social e a sociabilidade engendrada no nosso país considerando a
nossa formação sócio-histórica que tem como base fundadora as relações de uma nação
colonizadora e escravista.
Desenvolvemos nossa reflexão apontando alguns elementos que traduzem, em certa
medida, o apagamento das crianças e da infância negra no nosso país, analisando a escassa
bibliografia sobre a temática ou a existência de uma literatura onde o destaque é dado às
crianças da casa-grande e não das senzalas, dos quilombos, ou na nossa contemporaneidade,
das favelas brasileiras.
Trazemos algumas discussões sobre os impactos do racismo nas infâncias e juventudes
brasileiras apresentando alguns dados estatísticos sobre as condições sociais específicas às
quais a juventude e a infância negra estão expostas e reafirmando o abismo social que essa

45
população infantojuvenil, mas não somente, se encontra e as consequências dessa exposição
às mais diversas expressões da violência no nosso país.
Procuramos estabelecer uma relação entre essas violências e a violação de direitos
fundamentas de crianças e adolescentes como o direito à vida, à saúde, à liberdade, ao
respeito, à dignidade, à convivência familiar e comunitária, à educação, à cultura, ao esporte,
ao lazer, à profissionalização e à proteção no trabalho; todos preconizados no Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), considerando o racismo como um fator preponderante para
essas violações, haja vista os dados estatísticos apresentados que colocam a infância negra em
um lugar de extrema exposição a riscos sociais como exploração do trabalho infantil, por
exemplo.
A educação e a infância negra no Brasil aparecem numa análise das dificuldades e dos
obstáculos impostos á população negra para o acesso à educação e os impactos desses
obstáculos na formação educacional de negros e negras do nosso país, especialmente as
crianças negras. Analisamos ainda o quanto essas políticas educacionais implantadas no
Brasil colonial contribuíram para a reprodução do racismo e consequentemente para a
exclusão da população preta e pobre na contemporaneidade.
Apontamos a importância da Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER)
trazendo um pouco do histórico da sua implantação no Brasil, bem como o pioneirismo dessa
iniciativa a partir da reivindicação dos movimentos negros organizados que passaram a
conduzir a luta no sentido da inclusão racial da população negra nos diversos segmentos que
constituem a nossa sociedade.
A educação antirracista também é um ponto fundamental que abordamos neste estudo
tendo em vista a importância dessa educação como um mecanismo indispensável para o
combate ao racismo, nas suas mais diversas expressões; o enfrentamento à exclusão escolar
que entendemos estar fortemente ligado ao racismo sofrido pelas crianças negras no ambiente
escolar; bem como a eliminação do trabalho infantil que também se coloca como uma
agravante nas causas do abandono escolar pelas crianças negras pelo Brasil afora.

O apagamento de crianças negras no Brasil como expressão do racismo


A infância negra no Brasil há muito é negligenciada tanto no seu contexto sócio
histórico quanto educacional. Do ponto de vista sócio histórico percebe-se um processo de
invisibilização recorrente desde a colonização. Milhares de crianças foram escravizadas no
nosso país, mas na nossa historiografia esse aspecto ainda é pouco explorado. Um número

46
ainda muito incipiente de obras literárias discute os processos de escravização das crianças
negras no nosso país.
No livro “História das crianças no Brasil”, organizado pela professora Mary Del Priore
(2018), dos quinze artigos do livro — analisando o seu sumário —, apenas dois discutem a
questão da criança negra e escravizada no Brasil. Com o título “Crianças escravas, crianças
dos escravos”, de Ana Maria Mauad, no qual essa questão aparece mais explicitamente. E no
artigo: “Criança esquecida das Minas Gerais”, de Julita Scarano, que aborda a
comercialização de crianças negras e as funções que exerciam naquele período. Os demais se
referem às crianças de elite, nas embarcações, na relação com os jesuítas.
Um pouco mais adiante, é lançado o livro “História Social da Infância no Brasil”
organizado pelo professor Marcos Cezar de Freitas (2003), e nenhum título no sumário,
sequer, cita a questão da escravização das crianças, embora alguns títulos tragam discussões
no que se refere à temporalidade dos séculos XVI ao XX. Novamente, a cor das crianças é
omitida, o que traz consequências importantes como: o apagamento e a invisibilidade dessa
população negra infantil à época. Esse sumiço da cor em documentos da segunda metade do
século XIX foi percebido e denunciado pela professora Hebe Mattos (1998) em sua
importante obra Das cores do silêncio.
Se pensarmos nas crianças que estão sobrevivendo em situação de rua: Quem são
essas crianças e em que condições elas vivem? Apesar da sua sobrerrepresentação nesses
espaços, contraditoriamente são invisibilizadas. O apagamento da sua história e dos processos
sócio-históricos de formação do nosso país que as submeteram a essas condições pouco são
discutidos, muito menos enfrentado pelos poderes constituídos do nosso país.
Predominam nas ruas crianças e adolescentes do sexo masculino (71,8%). A faixa etária
predominante é entre 12 e 15 anos (45,13%). Quase metade das crianças e dos adolescentes em
situação de rua (49,2%) se declarou parda ou morena e se declararam negros 23,6%,
totalizando 72,8%, proporção muito superior à observada no conjunto da população. (Conanda,
2012).

Crianças também foram escravizadas, mas nas histórias sobre a infância brasileira isso
passa de forma muito discreta e sem o devido destaque, tendo em vista a importância dessa
força de trabalho infantil durante o período de escravização dos negros. Esse trabalho se dava
nas plantações, mas não somente. O trabalho doméstico infantil era muito comum entre as
crianças negras escravizadas, especialmente as meninas negras.
No espaço doméstico, meninos, e, sobretudo meninas, desempenhavam toda sorte de tarefas:
servir a mesa, varrer, costurar, recolher cinzas do fogão, carregar água, limpar urinóis, banhar
senhores e seus filhos, ajudá-los a se vestir, espantar as moscas que os atormentavam, embalá-
los no vaivém das redes, tudo aquilo que, enfim, que seus braços de força, ainda modesta,
pudessem suportar – e, não raro, até mais do que isso. (Schwarcz e Gomes, 2018, p. 170).

47
Percebe-se uma reiteração das condições precárias de vida dessa população infantil
negra na contemporaneidade. Não é difícil encontrarmos nas ruas das grandes cidades
famílias negras que precisam fazer malabarismos para garantir o mínimo possível para a
manutenção da sua própria vida; e as crianças negras não estão excluídas dessa dinâmica. Ao
contrário, são extremamente inseridas nesses contextos e de forma muito precarizada, haja
vista o agravamento das condições objetivas de vida da população negra, especialmente agora
em que estamos tentando sair de uma pandemia, a COVID-19, que devastou a população
mundial e potencializou as expressões do racismo, causando um empobrecimento ainda maior
nas populações mais vulnerabilizadas como as negras e indígenas da classe trabalhadora.

Racismo e seus impactos na juventude e infância negra no Brasil


Pensar o racismo no Brasil é um grande desafio considerando o processo histórico de
colonização e escravização que mancham a nossa formação sócio-histórica e que a elite
burguesa, ou aburguesada, do nosso país insiste em não reconhecer sua existência e as
consequências nefastas sobre a vida de trabalhadoras/es negras/os brasileiras/os.
Especialmente quando ainda pouco se discute, em termos acadêmicos, políticos e sociais, a
incidência do racismo e suas consequências na infância negra brasileira.
As discussões sobre o racismo no Brasil se configuram numa arena de disputas
ideológicas, políticas e acadêmicas. São inúmeras as tentativas de conceituar, de buscar
termos que sintetizem e expliquem de maneira objetiva a questão racial e seus
desdobramentos na vida cotidiana e objetiva da população brasileira (Santos, 1984;
Guimarães, 2009; Carneiro, 2011; Almeida, 2021).
O fato é que a população negra brasileira é o principal segmento populacional, o qual
sofre os impactos do racismo; nas suas mais diversas expressões que constituem a nossa
sociabilidade, especialmente marcada por relações de poder, hierarquizadas a partir do dito
padrão europeu em que a superioridade branca, ou seja, a considerada humana, é estabelecida
como norma e as demais expressões e singularidades constituintes da nossa sociedade é tida
sempre como o outro, não humano e, portanto, passível de ser discriminado, explorado, preso,
assassinado, especialmente a juventude e a infância negra do nosso país.
As estatísticas comprovam o lugar de privilégio dessa branquitude, ao mesmo tempo
em que revelam as diferenças abissais em relação aos negros e o lugar de desproteção em que
se encontra essa população. Negros/as são as maiores vítimas de homicídios no Brasil.
Segundo o Atlas da Violência (2019), em 2017, 75,5% das pessoas assassinadas no país eram

48
pretas ou pardas — o equivalente a 49.524 vítimas. A chance de um jovem negro ser vítima
de homicídio no Brasil é 2,5 vezes maior do que a de um jovem branco. Negros também são
maioria entre os que morrem em decorrência de ações de agentes de segurança do Estado. De
acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2019), 74,5% das pessoas
assassinadas em intervenção policial são pretas ou pardas.
As mulheres negras são vítimas mais recorrentes de homicídios. Segundo o Atlas da
Violência (2019), a taxa de assassinatos dessas mulheres cresceu 29,9% de 2007 a 2017. No
mesmo período, o índice de homicídio de mulheres não negras cresceu 4,5%. As mulheres
negras são o principal grupo de risco nos casos de feminicídio. Os dados do Anuário
Brasileiro de Segurança Pública (2019) mostram que 61% das mulheres que sofreram
feminicídio no Brasil eram negras.
Os negros são a maioria entre as pessoas presas no Brasil. Levantamento Nacional de
Informações Penitenciárias Atualização (DEPEN, 2017), do Ministério da Justiça e Segurança
Pública, aponta que 61,6% dos detidos no país eram pardos ou pretos em junho de 2017
(dados mais recentes disponíveis). Os brancos representavam 34,38% dos presos. 64,1% das
crianças e dos adolescentes em situação de trabalho infantil são negros. 83,5% das vítimas de
homicídios de 10 a 19 anos são negros.
Conforme o UNICEF, as crianças e adolescentes ainda representam um percentual
grande dos brasileiros: são 53,7 milhões de meninos e meninas que precisam ter seus direitos
garantidos. Para o UNICEF, a face mais trágica das violações de direitos que afetam meninos
e meninas no Brasil são os homicídios de adolescentes: a cada hora, alguém entre 10 e 19
anos é assassinado no País [estimativa do UNICEF baseada em dados do Datasus (2018)] —
quase todos meninos, negros, moradores de favelas.
Para o professor Silvio Almeida (2021, p. 50), no que se refere à perspectiva estrutural
do racismo, ele “é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo ‘normal’
(grifos do autor) com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até
familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional”. (Almeida,
2021, p. 52) infere que “o racismo pode ser desdobrado em processo político e processo
histórico”.

Violação dos direitos das crianças e das/os adolescentes como expressão do racismo
estrutural
Os direitos fundamentais das crianças e das/os adolescentes estão instituídos no
Estatuto da Criança e do/a Adolescente (ECA) por meio da Lei Federal n.º 8.069, de 13 de

49
julho de 1990, que dispõe sobre a proteção integral à criança e à/ao adolescente (art. 1º). Este
instituto legal considera criança a pessoa até doze anos incompletos, já adolescente é
considerado aquela pessoa entre doze e dezoito anos (art. 2º), acrescentando em seu parágrafo
único que, excepcionalmente, poderá ser aplicado às pessoas entre dezoito e vinte e um anos.
O ECA deriva da Constituição Federal (CF) de 1988, também conhecida como a Constituição
Cidadã, pela importante difusão dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, além de
promover a participação popular.
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem,
com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão. (CF, 1988, art. 227).

Expressos em lei, um rol de importantes mecanismos de proteção às crianças e às/aos


adolescentes estão instituídos, porém, na prática, há de se considerar um abissal descompasso
entre a letra da lei e a realidade vivenciada cotidianamente pelas crianças e adolescentes no
nosso país. Especialmente quando os indicadores sociais são analisados a partir de uma
perspectiva crítica em que as relações de raça, classe e gênero são consideradas categorias
fundamentais; entendendo que estas são fundantes da sociabilidade brasileira e
consequentemente apontando as desigualdades estruturais entre ricos e pobres, homens e
mulheres, negros e brancos — expressas pelo racismo, machismo entre outras formas de
opressões constituintes das sociedades, calcadas no sistema capitalista de produção e
reprodução da vida e dos/as sujeitos/as sociais.
Neste contexto, o racismo, nas suas dimensões expressas anteriormente, se constitui
como um dos principais fatores de exposição das crianças negras às circunstâncias de
extremas violências que condicionam suas formas de viver e de estar no mundo no qual a cor
da sua pele se torna, por um lado, alvo da violência policial, sexual, entre outras; e, por outro
lado, o segmento populacional menos atendido pelas políticas públicas que garantam a
efetividade dos seus direitos fundamentais, bem como à proteção contra essa infinidade de
violências e opressões sofridas.
Esse elemento do racismo, da desigualdade racial, é um elemento que o país ainda não superou.
E um dos motivos é porque o Brasil é um país que demorou a admitir que existe discriminação
racial. Tivemos uma ideologia de uma pseudodemocracia racial, quando todo os conteúdos
escolares e referências de acesso a políticas públicas são brancos. (Volpi, 2020 apud Lisboa,
2020, online).

Percebe-se uma reprodução perversa de mecanismos de exclusão de crianças e


adolescentes negras/os do seu processo de inserção e de sociabilidade, e do não atendimento

50
às suas necessidades e direitos fundamentais por meio da negação da sua existência como
protagonista da sua própria história, ao passo que super expõe seus corpos a processos de
violências, as mais diversas, e a processos de super exploração da sua força de trabalho e,
consequentemente, a cooptação da sua dignidade como pessoa em condições peculiares de
desenvolvimento. Para Volpi (apud Lisboa, 2020, on-line) “o maior dos desafios para fazer
valer esses direitos no Brasil é a desigualdade, e, entre as diversas formas em que ela se
apresenta no país, destaca-se o racismo”.

Direito à vida e à saúde


Recordo quando minha mãe teve uma menina. Nasceu morta e podre, com as carnes
desligando-se dos ossos. As pessoas que iam visitá-la saiam vomitando e comentando: “eu
nunca vi ninguém nascer assim”. Carolina Maria de Jesus (1914-1977).

A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a


efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio
e harmonioso, em condições dignas de existência (ECA. art. 7º). Neste artigo é assegurada a
proteção à vida e à saúde das crianças e das/os adolescentes por meio de políticas públicas
que garantam o seu nascimento e desenvolvimento dignos, mas a realidade que se apresenta
nos dão conta de que essa dignidade no nascimento e no desenvolvimento estão muito longe
de serem alcançadas.
Os trabalhos pioneiros desenvolvidos no NEPO/UNICAMP, valendo-se de técnicas indiretas
para o cálculo da mortalidade infantil, permitiram apontar um diferencial sistemático na
mortalidade de menores de um ano, dependendo da raça/cor no Brasil, mesmo controlando as
variáveis reconhecidas como condicionantes socioeconômicas deste evento. (Cunha, 2003, p.
12).

Em tempos de pandemia de COVID-19, a população preta, pobre e periférica foi a que


mais sofreu os impactos das medidas de proteção contra a doença, tendo em vista os rígidos
protocolos de saúde, que tem no isolamento social sua principal estratégia. As condições
precarizadas de sobrevivência dessa população não oferecem nenhuma condição de
cumprimento do isolamento social. Moradias muito pequenas, insalubres e em territórios com
pouquíssima infraestrutura de saneamento básico impõem esse segmento populacional às
principais formas de contaminação da síndrome respiratória aguda grave, popularmente
conhecida como Covid. Além da necessidade de se manter trabalhando, pois, a grande maioria
dessas famílias são chefiadas por mulheres, empregadas domésticas que têm seu salário como
a única fonte de renda responsável pela manutenção da família. Nota-se um destaque para as
crianças negras nos indicadores sobre mortes por Covid-19.

51
Com base nos dados do SIVEP Gripe (Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da
Gripe), do Ministério da Saúde, o levantamento aponta que desde o início da pandemia, 57%
das crianças de até dois anos que morreram pela covid-19 no Brasil eram negras. As crianças
brancas totalizaram 21,5%, seguida pelas amarelas (origem asiática), com 0,9%. Sendo que
16% não tiveram a raça identificada. (ALMA PRETA, 2022).

Se pensarmos sobre as violências resultantes nas mortes de crianças e de adolescentes


no Brasil, nos chama a atenção o grande número de homicídios causados pela violência
policial que atingem especialmente este público infantojuvenil. São vidas ainda em formação,
que são ceifadas diariamente por instituições que, em tese, deveriam proteger esse segmento
populacional, mas, contrariamente, têm contribuído cada vez mais para as estatísticas do
genocídio da população negra, projeto de necropolítica em curso no nosso país.

Direito à liberdade, ao respeito e à dignidade


[...] se a cozinheira tinha filha, pobre negrinha! O filho da patroa a utilizaria para o seu
noviciado sexual. Meninas que ainda estavam pensando nas bonecas, nas cirandas e
cirandinhas eram brutalizadas pelos filhos dos senhores [...]. Carolina Maria de Jesus (1914-
1977)

A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como


pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos
e sociais garantidos na Constituição e nas leis (ECA. art. 15). Este artigo, pelo seu contrário,
nos faz pensar sobre as constantes violações dos seus direitos fundamentais em curso no
nosso país. Não é difícil exemplificarmos por meio da violência e exploração sexual de
crianças, inclusive as negras e especialmente do sexo feminino, mas não somente, pois
também há registros de violência e exploração sexual contra meninos. Durante esta pandemia
de COVID-19 evidencia-se uma ligeira diminuição dos registros dos casos, mas especialistas
atribuem esta diminuição ao fato de que estas violências acontecem principalmente no âmbito
doméstico e que, na verdade, o que está havendo é uma grande subnotificação desses casos.
Cunha (apud Lisboa, 2020, on-line) alerta que “as crianças serão as maiores vítimas indiretas
da pandemia no médio e longo prazo” e acrescenta que “A criança está sofrendo sozinha
em casa. O abusador está lá, e ela não tem a quem recorrer.”
Os registros de violência contra crianças caíram 18% em março em relação ao mesmo mês do
ano anterior. Como a gente sabe que 90% das violências contra a criança acontecem no
ambiente doméstico, o que está acontecendo é uma grande subnotificação. Os atores sociais que
fazem a denúncia não estão fazendo, porque são justamente os professores, educadores e
profissionais de saúde. É gravíssima a situação. (Cunha, 2020 apud Lisboa, 2020, on-line).

O direito à proteção contra a violência física e/ou psicológica necessita do


envolvimento e comprometimento de diversos atores, tendo em vista as suas peculiaridades e

52
especificidades. Uma violência que se dá especialmente no âmbito doméstico precisa ser
observada com bastante atenção, já que, na maioria das vezes, a vítima está exatamente sob os
cuidados do seu abusador/violentador. Especialmente durante a pandemia COVID-19,
momento em que o isolamento social foi a principal medida sanitária para evitar o contágio, o
que deixou as crianças ainda mais expostas a esse tipo de violência.

Direito à convivência familiar e comunitária


Eu não queria que a minha mãe morresse, porque as crianças que ficavam sem as mães iam
residir com outras famílias e perdiam a liberdade. Carolina Maria de Jesus (1914-1977).

É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e,


excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em
ambiente que garanta seu desenvolvimento integral (ECA. art. 19). Apesar do direito à
convivência familiar e comunitária expresso neste instituto legal de proteção às crianças e
às/aos adolescentes, o que sabemos é que cada vez mais crianças estão sendo retiradas de suas
mães e dos seus pais pelo simples argumento de pobreza, quando esta não pode ser
considerada razão e/ou motivo para destituições do poder familiar. A retirada de filhas/os de
mães e de pais pobres tem sido cada vez mais usada como forma de punição a estas famílias,
bem como alimentar o banco de dados com crianças em condições de acolhimento
institucional e/ou colocadas à disposição para colocação em famílias substitutas em adoção.
Refletir sobre acolhimento institucional no Brasil é também se debruçar sobre as
condições de sobrevivência e de uma forma particular de sociabilidade das crianças negras,
marcada socialmente por uma série de violações de direitos e de garantias fundamentais
estabelecidas e amparadas pelo ECA em seus inúmeros dispositivos — como do direito ao
acolhimento institucional. Afirmativa corroborada pelo jurista Silva Júnior (2016, pp. 15-16),
chamando nossa atenção para dizer que “merece realce também o fato de que o ECA assegura
às crianças e aos adolescentes o direito ao acolhimento (institucional e familiar)” asseverando
que o ECA “prevê que ‘acolhimento’ significa, entre outros predicados, o respeito à
identidade cultural e étnica da criança.” (grifos do autor). Mas como pensar um espaço ou
instituição que tem o dever legal e ético de proteger, mas que, na prática, acaba por violar
ainda mais seus direitos? Como entender a ação estatal que se utiliza da prerrogativa de
interferir nas estratégias de sobrevivência e formas de resistência e de ser e estar no mundo
das pessoas sob o argumento e culpabilização das/os trabalhadoras/es de não protegerem
suas/seus filhas/os se sob a sua responsabilidade a desproteção continua sendo uma constante?

53
Percebe-se, inevitavelmente, que há um componente racial importante nestas ações,
sob responsabilidade central do Judiciário, pois é sabido que entre as crianças que em
instituições de acolhimento, as crianças negras são, de longe, a grande maioria. De acordo
com dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), plataforma do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), atualizada em tempo real e acessado às 20h47m do dia 28 de
agosto de 2022, o número de crianças acolhidas no Brasil, em números absolutos, é de
30.302. Desse total, 15.068 (49,8%) são do sexo masculino e 15.214 (50,2%) do sexo
feminino. Quando analisamos os dados com os dados de raça/etnia, a distribuição fica da
seguinte forma: 4.957 (16,4%) de crianças brancas; 8.186 (27,0%) de pardas; 2.349 (7,8%) de
pretas; 139 (0,5%) de indígenas e a grande maioria de “não informada” de 14.603 (48,2%).
Conforme a metodologia do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), se
somarmos as crianças pretas e as pardas, totalizamos as crianças negras que, sendo assim,
representam 10.535 (34,8%) do universo das crianças acolhidas no nosso país. O que mais nos
chama a atenção é que quase a metade das crianças acolhidas não consta a informação sobre
sua raça/cor/etnia. O que nos coloca um grande desafio: o de garantir que estas informações
sejam registradas a fim de que possamos estabelecer um perfil o mais fidedigno possível das
crianças que estão em instituições de acolhimento institucional no Brasil. A região sudeste
conta com 14.522 crianças acolhidas, com destaque para o estado de São Paulo que mantem
8.814 crianças acolhidas.

Direito à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer


Os pobres completavam o quarto ano e recebiam o diploma. As crianças ricas prosseguiam os
estudos. Os pobres não tinham possibilidades de estudar nem o curso ginasial. E quantos
meninos pobres choravam porque queriam estudar! E quantos meninos ricos choravam
porque não queriam estudar. Carolina Maria de Jesus (1914-1977).

A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento


de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho [...] (ECA.
art. 53). A premissa que se coloca como principal neste artigo é a do direito à educação, à
cultura, ao esporte e ao lazer, mas como pensar sobre a realização desses direitos sem garantir
o mais fundamental de todos que é a vida, ou mesmo a comida, pois sabemos haver crianças
pelo Brasil afora morrendo de fome.
Neste cenário de tantas violações e precarização da vida, os direitos elencados neste
tópico tornam-se artigos de luxo, privilégios de pouquíssimas pessoas deste país. "Uma
criança negra tem três vezes mais possibilidades de abandonar a escola que crianças não
negras" (Volpi, 2020 apud Lisboa, 2020, on-line). Dados da UNICEF dão conta de que

54
“64,1% das crianças e adolescentes em trabalho infantil em 2016 eram negros, assim como
82,9% das vítimas de homicídios entre 10 e 19 anos e 75% das meninas que engravidam entre
10 e 14 anos” (Lisboa, 2020, on-line).
A violação do direito à educação às crianças negras no Brasil nos remete ao período
colonial escravista da segunda metade do século XVII, mais especificamente no ano de 1854,
por meio do Decreto n.º 1.331 que instituía o ensino obrigatório simultaneamente, no seu
artigo 69, proibia a participação de escravizados e versava sobre o seguinte: “não serão
admitidos, nem poderão frequentar a escola: os meninos que padecerem [de] moléstias
contagiosas, os que não tiverem sido vacinados, os escravos”. Além das/os escravizadas/os,
quem mais poderia não ter acesso à saúde senão os/as filhos/as dos escravizados? Mais um
instituto legal que tem explicitamente as crianças negras como seu principal alvo. “Desde o
início, a história é marcada pela desigualdade no acesso da população negra ao sistema
educacional e, consequentemente, à qualificação profissional e acesso ao mercado formal de
trabalho” (Santos, 2020, p. 34).

Direito à profissionalização e à proteção no trabalho


Uma das famílias ricas, das que criavam enjeitados para tratarem dos porcos e galinhas,
varrerem a casa, arrumá-la, fazerem compras e a comida. Era proibido ter escravos, então
eles pegavam uns negrinhos para cria-los. Um infeliz que ia crescer sem instrução. Carolina
Maria de Jesus (1914-1977).

É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos, salvo na condição de


aprendiz. (ECA. art. 60). Contrariamente ao que preconiza este artigo, o trabalho infantil no
nosso país tem se constituído como uma doença/chaga social, o qual atravessa séculos da
nossa história. Originado desde o período escravista em que crianças negras eram
escravizadas e de maneira cruel e, muitas vezes, involuntariamente, tendo em vista que muitas
delas, pela pouca idade, eram obrigadas a acompanhar suas mães também escravizadas e,
consequentemente, sua força de trabalho infantil também era explorada, aumentando assim os
lucros dos senhores de suas mães. Especialmente após a Lei do Ventre Livre em que:
[...] o Estado quando ficava com as crianças podia entregá-las para associações que se
utilizariam gratuitamente dos serviços prestados por esses até completarem 21 anos. Ou seja,
as crianças a partir de 8 anos eram obrigadas a trabalhar para o proprietário da mãe ou para
associações de “caridade” indicadas pelo Estado até completarem 21 anos. (Santos, 2020, p.
36, grifos da autora).

Percebe-se, na atualidade, a continuidade desse processo de opressão e exploração da


força de trabalho infantil das crianças negras e sua atualização pelas atuais formas de
precarização da força de trabalho e da busca incessante dos donos dos meios de produção por

55
lucros crescentes, indo até as últimas consequências para conseguir seus objetivos
econômicos e financeiros com a utilização dessa força de trabalho infantil.
Os dados de trabalho infantil no Brasil mostram que as crianças negras representam 62,7% da
mão de obra precoce no país. Quando se trata de trabalho infantil doméstico, esse índice
aumenta para 73,5%, sendo mais de 94% meninas. Esses números só começaram a ser
apresentados nas últimas pesquisas, mas podem ser explicados por um olhar histórico,
segundo especialistas que trabalham com o tema. (Dias, s.d., on-line).

De acordo com Santos (apud Dias, s.d., on-line) “A questão é permeada por um
racismo estrutural, uma vez que pessoas negras, escravizadas e libertas, não tiveram inserção
de trabalho, de maneira digna, com direitos assegurados, com estrutura mínima que permitisse
acesso aos demais direitos”.

Educação e a infância negra no Brasil


Como pudemos observar anteriormente, a educação é um dos principais direitos
garantidos na Constituição Federal de 1988 e por mais que seja um dos principais direitos, ele
aparece em quarto lugar, alinhando à cultura, ao esporte e ao lazer, na lista com os demais
direitos fundamentais. Direitos estes reiterados no Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), de 1990. É claro que não especifica essa educação como sendo para a infância negra,
embora quando da aplicação da educação no Brasil, os negros, incluindo as crianças, foram
veementemente proibidos de frequentarem a escola. Ao relatar a proibição de acesso das
crianças escravizadas, Del Priore (2000, p. 236) afirma que “a desigualdade social e racial
inscrevia-se, portanto, nas origens do ensino público que não era para todos, mas para
alguns”.
Importante notar o quanto a educação para a população negra, quando esta existia,
estava intrinsecamente atrelada ao trabalho. Para Santos (2020, p.34), “desde o início, a
história é marcada pela desigualdade no acesso da população negra ao sistema educacional e,
consequentemente à qualificação profissional e acesso ao mercado formal de trabalho”.
Vemos que a situação das crianças negras no período da escravidão era muito difícil, e na
maioria das vezes não tinham acesso à instrução. A educação estava restrita ao aprendizado das
tarefas demandadas pelos senhores. Desde que nasciam eram carregadas pelas mães para o
trabalho. (Santana, 2006, p. 34).

Essa relação intrínseca entre trabalho e escola entre as crianças negras ainda pode ser
observada no cotidiano dessas crianças na contemporaneidade. Um cotidiano marcado pela
exploração da força de trabalho infantil e pela ausência ou disponibilização inadequada da
educação a esse segmento populacional que segue sendo prejudicado pelas políticas públicas
educacionais e sociais. Um cotidiano atravessado pelas necessidades básicas como

56
alimentação, por exemplo, para manutenção da própria vida, bem como da vida dos seus
familiares, também marcada pela superexploração comum da sociabilidade do modo de
produção capitalista ao qual estamos inteiramente inseridos. O relato abaixo nos dá a
dimensão da exposição de crianças negras às condições de extrema exploração e descaso das
autoridades como se fossem naturais. Crianças negras têm sua força de trabalho explorada
enquanto crianças não-negras saem da escola particular para o seu descanso diário em seus
carros e casas luxuosas.
Dia de semana em uma cidade como São Paulo, por volta do meio-dia. Uma cena que se
“naturalizou” é meninas e meninos de dez anos ou até menos vendendo doces ou limpando
vidros de automóveis nos cruzamentos das ruas. A cor dessas crianças é negra. E se andarmos
para determinados lugares, particularmente onde existem escolas particulares, vemos crianças
brancas saindo alegremente das aulas e entrando em carros particulares dos seus pais, indo para
casa descansar. (Oliveira, 2021, p. 59, grifos do autor).

Como podemos observar, os impactos desse racismo, que é estrutural e estruturante,


mecanismo indispensável para o controle, disciplina e acomodação desses corpos negros no
sistema capitalista de produção, são vistos e vivenciados cotidianamente em vários
segmentos populacionais negros e os impactos na população infantojuvenil, especialmente
às crianças negras, não poderiam ser diferentes.
Quando se fala na educação das crianças negras no Brasil, é fundamental que
consideremos os fatores históricos, sociais e econômicos aos quais as famílias negras e
geralmente pobres estão inseridas. Uma criança que tem explorada sua força de trabalho, se é
que podemos chamar assim, mesmo sendo ilegal a realização de trabalhos por crianças, ainda
que seja para sua própria subsistência, em detrimento às condições de vida de uma criança
branca, não terão as mesmas possibilidades de desenvolver suas habilidades plenamente. É
sabido que muitas crianças pobres, em sua grande maioria negras, vão à escola
exclusivamente para se alimentar, haja vista as condições de extrema pobreza as quais estão
expostas. Os trabalhos forçados, a extrema pobreza, as precárias condições de moradia, entre
outros fatores, prejudicam demasiadamente o desenvolvimento escolar das crianças negras,
inclusive obrigando-as, pelas condições apresentadas acima, a deixarem de ir à escola e os
aspectos objetivos da vida cotidiana dessas crianças negras, que se constitui como um grupo
racial com suas especificidades e particularidades, não podem ser negligenciados pelas nossas
pesquisas e estudos.
Os estudos estão atentos à origem social da população que consegue frequentar a escola, que
se evade ou a ela não tem acesso, omitindo-se em considerar que as oportunidades de acesso e
permanência na escola também não são as mesmas para os diferentes grupos raciais, como vêm
demonstrando as pesquisas. (Pinto, 1992, p. 41).

57
A relação entre raça e educação, considerando a importância dessa articulação para a
construção de uma escola plural que atenda as mais diversas expressões culturais e históricas
da nossa sociedade, como as populações negras e indígenas; infelizmente, ainda têm sido
negligenciadas por parte de intelectuais e pesquisadores que se debruçam sobre essas
questões. Assim, a articulação entre raça e educação é um “tema esquecido pelos educadores
e pesquisadores que, frequentemente, tendem a priorizar as diferenças de classe ao
dimensionar os fatores que dificultam tanto o acesso como a permanência da população no
sistema educacional”, como aponta Pinto (1992, p. 41).
Pensar a educação no Brasil na perspectiva da infância negra é pensar sobre uma série
de violações que, como vimos, se estabelece desde o período colonial, no qual crianças negras
eram legalmente impedidas de frequentar as escolas. Diante dessa realidade, como pensar um
sistema educativo que contemple uma população já tão prejudicada pelo processo histórico
em que sua vida vale mais do que a do outro? Onde suas referências positivas são
deliberadamente ignoradas em detrimento de um padrão cultural e educacional em que o
branco é tido como universal, como padrão? Talvez a resposta esteja na possibilidade de
diversificação de conteúdos e de valorização das especificidades e particularidades dos
diversos povos que compõem a nossa sociedade.

Educação para as relações étnico-raciais (Erer)


Foi na década dos anos 1970 que o movimento negro e os movimentos sociais
organizados travaram muitas batalhas para garantir uma constituição democrática, tendo como
estratégias encontros regulares em níveis estadual e nacional visando à construção de uma
agenda que desse contra das políticas que enfrentassem o racismo e as desigualdades raciais
no nosso país.
A educação, naquela oportunidade, se colocava como pilar fundamental para esse
enfrentamento, constituindo-se para o movimento negro como elemento central de
mobilização, além de um valor que estrutura sua ação desde as suas primeiras organizações.
Reivindica-se a incidência desse movimento na política educacional para garantir inserção da
temática sobre as relações étnico-raciais no currículo escolar para o desenvolvimento de um
sistema educacional que respeite a diversidade étnica e racial do nosso país.
Dessa forma, no final da década de 1970, a ênfase na questão educacional dada pelo
movimento negro situou-se na denúncia do ideal de branqueamento implícito veiculado nos
livros didáticos e nas escolas, na omissão dos conteúdos escolares, no enfoque que a história dá
ao negro, ao seu modo de ser, às suas habilidades, da tendência em enfatizar a sua docilidade,
esquecendo-se de todo o movimento de resistência, e, ainda, da omissão dos interesses
subjacentes à Abolição (Pinto, 1993, p. 26).

58
Pelos estudos realizados até o momento, foi possível identificar que o termo
Educação para as Relações Étnico-Raciais (Erer) foi cunhado pela professora Petronilha
Beatriz Gonçalves e Silva, denominando-o como uma estratégia que tem no currículo e nas
interações estabelecidas na escola seu ponto focal, desnaturalizando as relações entre
negros, brancos e indígenas e colocando-as no âmbito dos objetos de aprendizagem que
devem ser ensinados no espaço escolar.
Indicada pelo movimento negro organizado, a professora Petronilha compôs a
Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação (CNE), integrando a
comissão responsável pela elaboração do Parecer CNE/CP nº 3/2004, que regulamentou a
Lei 10.639/2003, ocupando o cargo de relatora desta comissão. É neste parecer que a
expressão “educação para as relações étnico-raciais” aparece em documentos oficiais.
A educação para as relações étnico-raciais é caracterizada por três ações que,
conjuntamente, formam as bases para a implementação da Lei 10.639/2003 conforme segue:
reconhecer e valorizar a cultura, a identidade e a história dos negros brasileiros (Dcnerer,
2004, p. 130).

Educação antirracista
A educação antirracista se coloca como uma ferramenta fundamental, mas não o
suficiente, para minimizarmos os efeitos nefastos do racismo, como a exclusão
socioeducacional de crianças, adolescentes e jovens negras/os. Mecanismo indispensável para
combater o racismo estrutural, o trabalho infantil e a exclusão socioeducacional. Mas é
preciso reiterar que apenas a educação antirracista não é suficiente, tendo em vista que o
racismo estrutural se sobrepõe as demais expressões do racismo. Estruturando as relações
sociais e impondo determinações que, indiretamente, exclui e empurra para as margens os
segmentos populacionais mais pobres e expostos às mais diversas violações de direitos, como,
por exemplo, uma infraestrutura básica que garanta minimamente as condições de saneamento
básico para uma saúde física e mental adequadas a manutenção da vida e da dignidade
humana.
Pensar a educação antirracista é mudar a perspectiva de análise da nossa formação
sócio-histórica. É pensar o negro no Brasil, como muito bem nos ensinou Clovis Moura
(2019), como sujeito e não como objeto. É trazer para o centro das discussões o protagonismo
dos povos negros que foram sequestrados da África e foram escravizados, mas que não
aceitaram passivamente, como alguns historiadores e intelectuais brasileiros (Freyre, 2006;
Fernandes, 2008; Prado Jr) querem nos fazer pensar. É ressaltar as diversas manifestações e

59
formas de organização desses povos como estratégias de resistência às atrocidades cometidas
pelos senhores escravistas. É apresentar às nossas crianças e juventudes as importantes
contribuições dessa população que, mesmo escravizada, resistiu e resiste até a atualidade,
lutando contra todas as formas de preconceito e discriminação para garantir a manutenção da
sua história, cultura, religião e demais expressões e manifestações de um povo que fundou as
bases da construção do nosso país.
Ensinar sobre a história africana e afro-brasileira é falar para esses jovens sobre uma
existência. É fundamental desde cedo tratar sobre a contribuição negra, sobre a cultura e a
literatura. Esses jovens passam a ter referências, sentem-se partes da escola e inseridos naquela
realidade. (DANAE, s.d., on-line).

É preciso pensar a educação antirracista como algo permanente e na comunidade


escolar. Portanto, não se trata de apenas uma disciplina estabelecida na carga-horária das
escolas de ensinos fundamental e médio. A questão racial deve ser pautada sempre que for
expressa e/ou manifesta nas relações entre as/os alunas/os, especialmente nas manifestações
de racismo, muito comum nas rodinhas de adolescentes nos pátios das escolas. Nos casos de
conflitos entre as/os alunas/os o racismo é algo recorrente e é especialmente nestes momentos
que a escola precisa conversar sobre essa temática. Não podemos ignorar o conteúdo racista
dessas manifestações e, por isso mesmo, não podemos nos calar e muito menos silenciar as/os
envolvidas/os. São estes momentos especiais para a escola trazer elementos para que a
comunidade escolar reflita não apenas sobre o fato ocorrido, o caso de racismo, mas sobre as
circunstâncias em que o evento se deu, as causas pelas quais alunos e alunas têm
determinados comportamentos. Espaço adequado para discutirmos a formação social do nosso
país e as consequências dessa formação colonial-escravista na contemporaneidade e nas ações
e atitudes das/os alunas/os.
A educação antirracista precisa ser uma constante nas relações que se estabelecem
entre alunas/os negras/os e não negros. É um equívoco pensar a educação antirracista como
algo de responsabilidade apenas das/os negras/os. Combater o racismo na escola é uma
tarefa de todas/os, negras/os e brancas/os. É uma tarefa de toda sociedade nas suas mais
diversas representações e instituições; é possibilitar a universalização da educação,
considerando a sua totalidade, mas não ignorando as especificidades e particularidades dos
povos que constituem as diversidades da nossa sociedade.
Toda criança e todo o adolescente têm direito a uma educação de qualidade e inclusiva,
baseada no reconhecimento e valorização da identidade, história e cultura dos diversos povos
que ajudaram a formar nossa sociedade multiétnica e multirracial. Nesse sentido, todos os
setores do Estado e da sociedade, assim como cada cidadão e cidadã, são agentes
indispensáveis na tarefa de assegurar a inclusão equânime de todos os grupos sociais nos
processos de desenvolvimento do país. Isso só será possível por meio da universalização de
uma educação antidiscriminatória e de qualidade. (Oliva, Barros e Sthal, 2013, p. 6).

60
Neste sentido, não podemos nos furtar dessa nossa responsabilidade e simplesmente
delegarmos ao outro essa atribuição. Cabe a nós, individual e/ou coletivamente, engajarmo-
nos e nos organizarmos na luta antirracista; não apenas nas escolas, mas na sociedade m geral.
Não podemos nos calar frente a casos de racismo, seja em que grau ou local for. A luta
antirracista, antes de uma bandeira de luta, deve ser um posicionamento político e ideológico
que nos impulsione e nos mobilize sempre que identificarmos casos de racismo, seja no nosso
dia a dia, cotidianamente, seja nas instituições e/ou lugares que frequentamos. O racismo é um
inimigo que não dorme e como tal deve ser combatido constante e insistentemente. Não
podemos dar trégua ao racismo, especialmente nas escolas, espaço de formação das nossas
subjetividades e da construção de conhecimentos, sob pena de reproduzirmos os valores
coloniais, conservadores e equivocados que concebem a sociedade como espaço de submissão
e de autoridades de uns sobre os outros, de ricos sobre pobres, de brancos sobre negros.
Precisamos acabar com essa dicotomia, esse binarismo, esse maniqueísmo para podemos
romper com as diversas formas de repressão e de opressões que compõem a nossa
sociabilidade.

Considerações finais
Fazer a interlocução entre racismo e educação na perspectiva dos direitos
fundamentais preconizados no ECA buscando estabelecer uma conexão com as instituições de
educação e os processos de exclusão, ou exclusão includente como nos ensina Kuenzer
(2005), de crianças negras a partir de estudos pioneiros que versam sobre o racismo na
infância nos mostra a dimensão do desafio que temos pela frente. Falar sobre racismo no
Brasil é falar sobre o processo nefasto de colonização e de escravização dos povos negros
sequestrados da África para o Brasil, um dos maiores receptadores de negros escravizados e
último país do mundo a abolir a escravidão.
O racismo, nas suas mais variadas expressões e configurações, tem sido
frequentemente utilizado para controlar, conter, prender e exterminar a população negra
brasileira, especialmente jovens e periféricos, culminando no expressivo genocídio
constatado no nosso país. Resultando nos altos índices de encarceramento e de homicídios
desse segmento populacional, refletindo na violação dos direitos das crianças e
adolescentes que têm sido cada vez mais institucionalizados e sofrendo maus-tratos — dos
mais diversos.

61
Infere-se, a partir das análises críticas e discussões refletidas e elencadas neste estudo,
que, de fato, há uma correspondência íntima entre racismo e exclusão socioeducacional de
crianças e adolescentes negras/os. Que há um amálgama entre ambos. Que nessa exclusão de
crianças negras há uma motivação que também é racial, que é racista. Tratar a exclusão de
crianças negras do ambiente escolar na perspectiva do racismo é fundamental para buscarmos
estratégias de, se não eliminar, diminuir o racismo que está presente na estrutura social, nas
instituições, mas também nas nossas ações. Quando, indubitavelmente, crianças e
adolescentes são afetadas/os direta ou indiretamente pelas nossas intervenções. Estabelecendo
o cumprimento das diretrizes e orientações previstas no ECA para a defesa dos diretos e
garantias fundamentais e priorizando, de fato, as crianças do nosso país, especialmente as
crianças negras.

Referências

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Paulo: Cortez, 2020. p. 9-13.

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264 p. (Feminismos Plurais).

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64
INFÂNCIAS NEGRAS: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
ANTIRRACISTAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL PARAIBANA

Diego dos Santos Reis


Professor da Universidade Federal da Paraíba
[email protected]

“[...] Para que um dia as histórias Possam ter


cor diferente Uma cor que também é bela Uma
cor que traduza a gente!” Marcelo Serralva, O
Pequeno Príncipe Preto.

Introdução – “Das crianças que vêm da negra noite”

“Uma cor que traduza a gente”, diz o último verso do poema O Pequeno Príncipe
Preto, de Marcelo Serralva. “Do lugar de onde venho |os príncipes são todos pretos |os reis, as
rainhas, todo reino”, arremata o poeta que dá vida e empresta sua voz ao príncipe. “Traduzir a
gente” exige bem mais do que um encontro de línguas e reordenação de vocábulos. Exige
reconhecer a existência do que, a despeito de ser intraduzível, precisa ser nomeado ainda
assim. Para muitas culturas ancestrais, o gesto de nomear indica uma tarefa, a um só tempo,
bonita e difícil. Profunda. Tarefa que rasga o silêncio e faz ecoar um anúncio no mundo. Ela
revela os vínculos atados da pertença ancestral, da memória coletiva e do modo como a
pessoa se apresenta, percebe o mundo e encarna um senso de destinação. Nomear afasta a
morte-em-vida que é a invisibilidade, seguindo os caminhos abertos por Azoilda Loretto da
Trindade (2002)9.
Ao introduzir esse trabalho falando de línguas e nomeações, reitero os nexos traçados
entre a tradução e a imagem. Entre o reflexo e a constituição de identidade, de pertencimento
e autoestima envolvidos nos processos educacionais, que, frequentemente, exilam do reino
encantado das infâncias e de seus imaginários, os bebês e as crianças negras. Como as creches
e escolas, explícita ou veladamente, têm proscrito do círculo e da roda das infâncias as
representações, as cores e nomes associados à negritude? De que modo, de outro lado, os
movimentos sociais negros têm tensionado, no campo da educação — e desde a primeiríssima

9
O presente trabalho é fruto de uma pesquisa em andamento, intitulada “Racismo e infâncias: impactos, desafios
e perspectivas na educação paraibana”, desenvolvida com auxílio financeiro do Edital No. 010/2021 -
FAPESQ/PB - MCTIC/CNPq – Programa de Infraestrutura para Jovens Pesquisadores/Programa Primeiros
Projetos – PPP. No. do termo de outorga: 3195/2021.

65
infância —, os referenciais, modelos e repertórios que não passam “em branco” diante do
redimensionamento de gramáticas, sensibilidades e categorias analíticas da área?
Considerar a preponderância dos marcadores étnico-raciais na reflexão acerca das
infâncias negras brasileiras e, de modo especial, das nordestinas e paraibanas, significa
compreendê-las em sua especificidade geracional, racial, territorial, social, como categoria
plural que recusa planificações, reducionismos e universalismos abstratos. Antes, trata-se de
destacar a heterogeneidade dos modos de ser/estar/sentir/viver das crianças negras em
diferentes espaços-tempos, atravessados por experiências culturais e formativas distintas, que
se esquivam do modelo hegemônico ocidental da criança e da infância no singular. Crianças
que, desde seus corpos-territórios, ensinam, aprendem, brincam e afrontam adultescimentos e
adoecimentos que seguem ditando a ordem do “normal” e do patológico no Brasil. Daí não
serem consideradas aqui nessa pesquisa como “objetos” ou “temas” de estudos, mas,
sobretudo, produtoras de vida, de conhecimento e de tecnologias ancestrais de sobrevivência,
características de quem, como os Ibejis, da tradição Iorubá, conseguem ludibriar Iku, a
morte, e vencer seu ímpeto funesto com alegria e desenvoltura.
A importância de tematizar as questões étnico-raciais desde a primeira infância tem
sido defendida nas últimas décadas por inúmeros especialistas da área da Educação (Bento,
2012; Cavalleiro, 2000, 2006; Gomes, 2012; Oliveira & Abramowicz, 2010; Rosemberg,
1991; Silva, 2015; Trinidad, 2011), com o fito de produzir uma compreensão positiva dos
valores civilizatórios, da história e da memória do grupo racial negro no Brasil e de combater
situações de preconceito e discriminação racial no cotidiano escolar ainda na primeira
infância, por meio de estratégias que envolvem ludicidade, jogos, brinquedos e brincadeiras,
fundamentais ao desenvolvimento de habilidades cognitivas, sociais, socioafetivas e
psicomotoras das crianças.
Compreender os impactos das discriminações raciais nos itinerários educativos das
crianças negras e o modo como o dispositivo de racialidade (Carneiro, 2005) funciona no
espaço escolar é fundamental para proposição de uma educação antirracista, comprometida
com as premissas da igualdade racial e da valorização material e simbólica dos conhecimentos
e práticas afrorreferenciados. Nesse contexto, como as/os docentes e pedagogas/os entendem
e dimensionam essas violências nas trajetórias educativas das crianças atingidas por elas?
Professoras/es da Educação Infantil reconhecem situações de discriminação racial nas
instituições escolares? Quais estratégias mobilizam para o desfazimento de estigmas
historicamente consolidados e afirmação de identidades, representações, memórias, histórias e
culturas negras?

66
Enegrecer os espaços formativos
A escola é um espaço formativo que pode contribuir diretamente para constituição ou
desconstrução de representações sociais, imagens e imaginários ligados à raça e às
discriminações raciais. Na educação infantil, especialmente, as interações e os processos
formativos, tendo lugar em âmbito escolar, influenciam diretamente na construção subjetiva
e intersubjetiva das crianças, resultando no modo como elas se posicionam diante do mundo,
de suas comunidades e compreendem-se a si mesmas como sujeitos de ação e decisão.
Se a construção das subjetividades das crianças brancas e negras é devedora de
mecanismos de diferenciação no espaço escolar, sabe-se que essa percepção não deixa de
reverberar na constituição de hierarquias de humanidades que, desde as infâncias, definem
lugares sociais, identidades — individuais e coletivas — e trajetórias. Cavalleiro (2006)
aponta que a subjetividade e a afetividade nas relações estabelecidas no cotidiano escolar são
aspectos primordiais a serem considerados nas análises em torno das desigualdades no
desempenho escolar, dos índices de acesso e permanência entre crianças negras e brancas no
cotidiano escolar. Com o intento de examinar a socialização das crianças negras no espaço da
pré-escola e na família, no que concerne ao reconhecimento e à construção do pertencimento
racial das crianças, a autora expõe como o silêncio em torno da questão racial impacta
negativamente em seu autoconceito, cristalizando preconceitos e a compreensão negativa de
sua autoimagem.
O currículo escolar, no que lhe concerne, materializa um conjunto de práticas que
buscam articular experiências e saberes das crianças com repertórios socialmente
reconhecidos e valorizados da cultura, que não estão desatrelados também da elaboração do
autoconceito e da autoimagem das crianças pequenas nas creches e pré-escolas. Na Educação
Infantil, compreendido aí o atendimento à primeiríssima infância, isto é, as crianças de até 3
anos, esse repertório é orientado a partir de brincadeiras e interações que funcionam como
eixos das práticas pedagógicas, sendo as mediações didáticas processos fundamentais no
sentido de corporificar os pressupostos e as diretrizes curriculares nacionais previstas para
esta etapa (Brasil, 2010).
Em 2003, com a promulgação da Lei Federal n°10.639/03, que tornou obrigatório o
ensino de história e cultura afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e
médio do país, institui-se uma política pública específica no âmbito da educação, com vistas a
fomentar medidas de ações afirmativas e reparatórias. Enquanto projeto de Estado,
direcionado à valorização da diversidade étnico-racial e ao desfazimento de estereótipos
inferiorizantes, a efetivação do disposto na Lei para Educação Infantil segue, porém, como

67
desafio (Silvério & Souza, 2010). O que é confirmado, por seu turno, pela exclusão dessa
etapa do escopo da referida Lei. Nos antípodas dessa restrição, como alargar seus efeitos e
traçar ações que colaborem nos processos de criação identitárias e nas formas de
ressignificação das diferenças, as quais envolvem diretamente a formação docente nos cursos
superiores em Pedagogia, a elaboração de materiais didáticos e estratégias específicas
direcionadas a esta etapa da formação?
Nessa direção, seguiram-se, em 2004, a publicação das Diretrizes Curriculares para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Africanas e
Afro-Brasileiras, instituídas pelo parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE), e as
Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais, em 2006. Em que pese a
relevância de tais documentos e normativas, no campo da formação de professores/as para a
Educação Básica ainda não são frequentes os componentes curriculares e os espaços de
debates voltados para o tema em tela. A despeito disso, temos visto nos últimos anos
acréscimo significativo de pesquisas ao nível de pós-graduação e práticas pedagógicas
racialmente engajadas, que atestam mudança de paradigma e de preocupações em curso. Isso
não significa que foi dirimida a necessidade de política educacional específica, em todas as
esferas educacionais, com centralidade para o papel e a responsabilidade do Estado brasileiro
e de suas instituições.
Nesse viés, é preciso refletir também como esse debate tem o potencial de contribuir
para que sejam elaboradas estratégias de ação e socialização dos conhecimentos, materiais
didáticos para formação de professores/as e planos de execução das legislações educacionais
antirracistas na Educação Básica e no Ensino Superior. Daí, igualmente, a importância da
reflexão acerca da formação de professores/as da Educação Infantil capazes de combater a
discriminação racial entre as crianças e os demais agentes educativos, incluindo, no
currículo desta etapa, positivamente, os elementos e valores da cultura afro-brasileira (Reis,
2022b).

Desafios e pelejas
As experiências de sociabilidades violentas e de direitos violados marcam as vidas de
um contingente expressivo de crianças e adolescentes nas cidades brasileiras. Nos subúrbios,
periferias e margens dos grandes centros urbanos, as balas “perdidas” seguem, certeiras, ao
encontro de corpos negros. Atravessam os corpos e dilaceram famílias inteiras. Interrompem
trajetórias, histórias e rotinas daqueles/as que, sequestrados/as de si, buscam a justiça como
último apelo à memória de quem foi desaparecido/a de casa e não mais retornará. Os gestos

68
de violência racial inscrevem-se na lógica da aniquilação, da clausura, do desejo de destruição
que embrutece e nega a humanidade de quem, proscrito do círculo dos eleitos, converte-se em
resto, em morto-vivente (Mbembe, 2018). Concomitante a isso, o “processo persistente de
produção da indigência cultural” (Fanon, 2008, p. 97) e da difusão das matrizes eurocêntricas
do saber/poder, compreendidas como superiores, assegura a destituição de formas de vida,
pensamento e experiências extra-ocidentais, resultante na epidermização da inferioridade
(Fanon, 2008, p. 28).
A gestão caótica da pandemia de covid-19 no Brasil, no que lhe diz respeito, impactou
profundamente na morte e na vida de pessoas que, nos diferentes territórios e regiões do país,
experimentaram os efeitos nefastos das políticas genocidas. Fome, despejo, evasão escolar,
empobrecimento, morte: a pandemia expôs, com toda crueza, o retrato da distribuição
desigual da vulnerabilidade no país e da fixidez dos pactos raciais, que seguem ditando as
normas da morbimortalidade e da exclusão, com especial virulência endereçada aos corpos
das crianças negras. Daí, em um cenário de desigualdades estruturais e raciais, que prefigura
quais corpos são reconhecidos como sujeitos de direitos e quais são relegados às chances
dilatadas de morte, as políticas estatais — ou a ausência delas — operarem o reforço de
múltiplas formas de violência, sistêmicas, simbólicas e institucionais.
A discussão acerca da educação em contexto de pandemia não pode ignorar esse
cenário de profundas desigualdades socioeconômicas e raciais, tampouco a cultura de
privilégios que beneficia alguns grupos e impede que transformações estruturais, coletivas e
democráticas, revertam a lógica de desumanização e de (des)vantagens em curso no país. No
estado da Paraíba, a linha da fome expandiu-se na mesma velocidade com que o abandono e a
evasão escolar ampliaram-se. A fome é, hoje, um dos fatores que mais impacta nas biografias
de sujeitos lançados para fora do mapa das instituições escolares, premidos, frequentemente,
ao trabalho forçado e à violência que assassina, em vida, as possibilidades radicadas nas
infâncias desse chão.
Segundo relatório10 Cenário da Exclusão Escolar no Brasil – um alerta sobre
os impactos da pandemia da covid-19 na Educação, publicado pela Organização
Internacional do Trabalho (OIT) e pelo UNICEF, o trabalho infantil aumentou pela primeira
vez em duas décadas. Estima-se que 8,9 milhões de crianças correm o risco de ingressar
no trabalho infantil no mundo nesse ano de 2022. Na Paraíba, pelo menos 60 mil crianças e
adolescentes (de 5 a 17 anos) estão em situação de trabalho precoce, sem considerarmos os

10
Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/relatorios/cenario-da-exclusao-escolar-no-brasil. Acesso em:
20 jun. 2022.

69
casos subnotificados em relação ao número de crianças exploradas pelo trabalho e também
sexualmente. Parte significativa deles trabalha em atividades ligadas à agricultura e à
pecuária, que figuram na lista das piores formas de trabalho infantil. Como A., menina negra
de 13 anos, não uma cifra ou número estatístico, que passava as noites e madrugadas
vendendo doces no Parque Cabo Branco, em João Pessoa, e que foi resgatada pelo Ministério
Público do Trabalho da Paraíba (MPT-PB) em outubro de 2021. Crianças negras,
quilombolas, indígenas são as mais afetadas pelos estilhaços coloniais, que seguem rasgando
seus corpos pequenos e imprimindo neles: dores, feridas e traumas inenarráveis.
Em tempos de pandemia, de insegurança alimentar e de corpos chacinados nas
comunidades periféricas do país, trabalhar, para muitas crianças e jovens, significa garantir,
junto a mães, avós e irmãs/os, a própria subsistência diante da omissão do Estado brasileiro.
Como pensar/propor a descolonização das infâncias e da escola quando essa realidade viola,
diariamente, os direitos humanos de quem é, frequentemente, proscrito do círculo da
humanidade?
É nesse contexto belicoso e complexo das grandes metrópoles urbanas, nos quais as
barbáries cotidianas são naturalizadas, que ensaiamos refletir sobre vivências de infâncias
negras e educação no território paraibano. Sobre experiências que a educação necessita
problematizar junto às comunidades de aprendizado: pensar com as infâncias desde o
território. Desde corpos-territórios que, expropriados de ser, recusam-se a desaparecer.
Teimam em permanecer e em tensionar universalismos, universidades e as tramas cerzidas em
solo urbano, explícitas ou por debaixo dos panos, dos sacos pretos que, de tempos em tempos,
cobrem os corpos negros caídos no asfalto. Insistem também em afirmar o que, sendo
invisibilizado, e silenciado e negado, não deixa de denunciar, com o corpo inteiro, o que está
obscenamente explícito, denegado.
A colonialidade, enquanto fato e força determinante que incide na constituição
subjetiva de corpos e mentes, produz a subjugação das crianças ao mundo dos adultos; das
mulheres aos desígnios do patriarcado; dos corpos não-brancos à branquitude hegemônica,
que pauta referenciais curriculares, estéticos, éticos e epistemológicos válidos, além dos
modos de vida e de pensamento verdadeiros, desejados, sob a chancela do racismo
epistêmico. Em uma sociedade estruturada a partir de pressupostos legados de uma
organização escravagista-colonial, cujos rastros permanecem ativos nos signos e nas práticas
discriminatórias, “uma das características do racismo é a maneira pela qual ele aprisiona o
outro em imagens fixas e estereotipadas, enquanto reserva para os racialmente hegemônicos o
privilégio de serem representados em sua diversidade” (Carneiro, 2011, p. 70).

70
Explicita-se, desse modo, a necro-lógica, que se traduz na pulsão de morte, destruição
e extrativismo predador que não se contenta em usurpar os bens materiais de territórios
saqueados e transformados em mercadorias a serem comercializadas nas bolsas de valores do
Norte Global. Mais do que isso, usurpam-se identidades, memórias, ancestralidades, o fôlego
e o reconhecimento de sujeitos desumanizados, para que o Estado colonial prossiga com suas
políticas de exploração e morte (Mbembe, 2018).
O corpo, como lugar e território de memória, de uma memória ancestral, todavia,
resiste. E persiste na continuidade de grupos, núcleos e quilombos comprometidos com o
desfazimento de estigmas e com a afirmação autorreferenciada da negrura como elemento
fundamental de transformação dos sujeitos negros. Ancorado nas identidades reconstruídas no
chão da diáspora, em comunidade, nos saberes da oralidade e nas lutas cotidianas de
resistência às múltiplas opressões que se interseccionam nos contornos de sistemáticas
violações de direitos fundamentais, o combate que se delineia é pavimentado pela
insurgência. Teimosia. De vidas que se recusam a aceitar o projétil do Estado, a cova rasa e a
vala comum do esquecimento como projeto de vida imposto à população negra. Respirar,
nesse contexto, torna-se o imperativo categórico.
Se o reconhecimento dessa diversidade de modos de ser, pensar, viver e atribuir valor
semântico a diferentes experiências e formas das infâncias expande itinerários de pesquisa e
oferece pistas para redimensionar os estudos antropológicos e filosóficos das infâncias, de
outro lado, a superação da imagem e da ideia de “criança universal” segue desafiando as
matrizes coloniais e patriarcais da epistemologia hegemônica. A dominação epistêmica dessa
construção, não raro, oferece as premissas para políticas públicas de assistência e educação,
desconsiderando as especificidades socioculturais de grupos e comunidades tradicionais e
periféricas. Ao verticalizar a imagem da “criança universal” a partir de parâmetros e ideários
exclusivamente eurocêntricos, rejeita-se a possibilidade do encontro com sujeitos e práticas
culturais que tensionam os paradigmas geopolíticos dominantes. Paradigmas que desencantam
mundos e restringem possibilidades de ser, de sentir e de existir, consolidando o que Azoilda
Loretto da Trindade (2002, p. 9) chama de morte em vida:
Este acontecimento tornou-se emblemático de um ciclo que acredito ser respaldador
de preconceitos: a gente olha mas não vê; a gente vê mas não percebe; a gente
percebe, mas não sente, a gente sente, mas não ama e, se a gente não ama a criança, a
vida que ela representa, as infinitas possibilidades de manifestação dessa vida que ela
traz, a gente não investe nessa vida, e se a gente não investe nessa vida, a gente não
educa e se a gente não educa no espaço/tempo de educar, a gente mata, ou melhor, a
gente não educa para a vida; a gente educa para a morte das infinitas possibilidades. A
gente educa (se é que se pode dizer assim) para uma morte em vida: a invisibilidade.

71
O contexto pandêmico escancarou assimetrias e iniquidades, com recortes de classe,
raça e gênero bem salientados. Em um cenário no qual as variáveis socioeconômicas, raciais e
territoriais definem possibilidades e prejuízos às demandas de desenvolvimento específicas de
cada faixa etária, as famílias, escolas e comunidades experimentam impactos profundos em
suas dinâmicas, impondo reorganização de estratégias, que deve considerar, especialmente, as
infâncias periféricas em suas ações.
As disputas de sentidos não estão dissociadas dos sentidos de um corpo irredutível à
ratio ocidental, eurobranca e cisheteropatriarcal. Corpo indivisível em partes fracionadas,
nem submisso a qualquer razão binária e dicotômica que o toma como coisa a ser investida.
Capital humano, suporte, recurso, fonte de forças produtivas e úteis a serem canalizadas ao
lucro: na contramão das formas de inscrição que financiam comportamentos, gestos e
atitudes, convertendo-os em dividendos aos gestores de futuros e de fraturas, o corpo negro
resiste, insiste, teimoso, enquanto território vivo, dinâmico, que vem a ser pela ação das forças
e fluidos, dos encontros, passagens e confluências que o constituem (Bispo dos Santos, 2015).
Porque se “a vida não é útil”, é imperativo “não negociar uma sobrevivência”, como anuncia
Ailton Krenak (2020, p. 52), no exercício radical de uma existência que não reduz a vida aos
ditames do capital financeiro e racial.
A capitalização do corpo e a colonialização de suas formas e superfícies, com as
marcações de gênero, raça, sexualidade, etnia e território, que lhes são afixadas como traços
naturais de sua constituição, revelam senão modos históricos de forjar sensibilidades e
estratagemas exploratórios, a fim de instituir dominantes e dominados, superiores e inferiores,
por meio de traços epidérmicos e genitais. Como relata Fanon (2008, p. 104):
Depois tivemos de enfrentar o olhar branco. Um peso inusitado nos oprimiu. O mundo
verdadeiro invadia o nosso pedaço. No mundo branco, o homem de cor encontra
dificuldades na elaboração de seu esquema corporal. O conhecimento do corpo é
unicamente uma atividade de negação. É um conhecimento em terceira pessoa. Em
torno do corpo reina uma atmosfera densa de incertezas.

Marginalizados das esferas socialmente reconhecidas e legitimadas do saber/poder


pelo projeto moderno/colonial, isso não se dissocia do fato de que a colonialidade atua sobre
os corpos marcados pela geopolítica racializante, concebendo-os como territórios de extração,
que, esvaziados de humanidade, convertem-se em objetos de discriminações negativas,
encarceramento em massa ou extermínio sistemático — ou tão somente em objetos de estudos
antropológicos. Pois a hierarquização racial, sexual e etária tem a função de operar gradações
nas escalas de humanidade, de modo que as mulheres e crianças negras, situadas na base da

72
pirâmide de opressões, experimentam a violência e a aniquilação subjetiva de modo mais
intenso e extenso.

Considerações finais
Nos últimos anos, uma série de estudos e pesquisas têm produzido importantes
deslocamentos de perspectivas sobre definições e funções que as diferentes experiências e
formas de infâncias assumem em Améfrica Ladina (Gonzalez, 2020). Ao pluralizar a
compreensão das infâncias que orienta esses estudos, desvela-se o alargamento não só
semântico da categoria, mas também o reconhecimento da heterogeneidade de construções
sociais que, em distintos espaços tempos, configuram ontologicamente seu tratamento e suas
formas. As áridas infâncias racializadas em território paraibano nos possibilitam, assim,
tensionar a gramática do campo educacional, para refletir sobre os efeitos do racismo e dos
processos coloniais nos estudos das infâncias. Com os pés na terra e em diálogo com as
infâncias paraibanas, interessa-nos pensar os modos de resistência às necroinfâncias radicados
nos cotidianos, nas brechas e fissuras que, do chão árido, faz emergir, corrente e fluida, a
infância que “engana” a morte (Reis, 2022).
Conta um ìtan iorubá, narrado por nossas mais velhas na comunidade de terreiro do Ilé
Àṣẹ Omiojúàró, que os Ibejis, as crianças gêmeas, enganaram a morte. Quando Iku, a morte,
espalhou armadilhas por todos os cantos e, com voracidade, passou a levar, antes da hora,
todas as pessoas que caíam em sua arapuca, as crianças maquinaram um plano para detê-la.
Nas trilhas perigosas da morte, caminhavam os irmãos tocando tambor, com vivacidade e
alegria, o que deixou Iku maravilhado. Encantado pela música, dançava, sem perceber que os
gêmeos se revezavam no toque do tambor, cujo som ecoava pelos caminhos. Iku, cansado de
tanto dançar, queria um tempo de pausa. Mas, as crianças seguiam a tocata. Quando Iku,
esgotado, já não mais aguentava, os Ibejis lhe propõem um pacto. A música pararia, mas a
morte deveria retirar todas as armadilhas do caminho. Aceito o acordo, a música parou e a
morte descansou. Poderosos, os Ibejis conseguiram realizar o que nenhum outro ser humano
ou encantado havia logrado: na peleja com a morte, levaram a melhor.
Como tem sido difícil para as crianças negras, contudo, enganar a morte. A
aniquilação das infâncias negras é um projeto de Estado pautado por práticas de subjetivação
criminalizantes, que desumanizam as vidas das crianças. Todavia, se as crianças enganam a
morte, as tecnologias de sobrevivência são propostas também pelas infâncias e pelas lutas
ancestrais do Movimento Negro, em nome do direito à vida. Teimosias e descolonizações

73
que, há séculos, e em legítima defesa, atuam na defesa da vida que enfrenta o adoecimento, o
adultescimento e a morte.
A necessária repactuação político-epistêmica e a expansão de categorias analíticas
direcionadas à pesquisa e aos estudos das infâncias, em perspectiva antirracista, precisam
considerar os imaginários, as representações e as experiências de vida, cuidado e criação que
se erigem a partir e com os corpos negros. Crianças negras paraibanas que, entre resistências e
negociações, reinventam dinâmicas sociais de pertença, de sobrevivência e de (auto)afirmação
da vida como potência que resiste a qualquer negatividade. A necessária descolonização e o
enfrentamento às necroinfâncias, orientadas para aniquilação das crianças negras, impõem a
resistência ativa à matriz colonial das relações de poder/saber. As rotas da descolonização,
que reposicionam as relações de poder/saber, exigem deslocamento de universalismos
abstratos e agenciamento das resistências cotidianas contra tudo o que fere de morte e impede
a sutura das feridas coloniais do racismo, do sexismo e de outros ismos que definem lugares e
posições hierarquizadas (Reis, 2022).
É isso que nos interessa, doravante, rastrear e produzir na pesquisa em curso,
analisando como as perspectivas antirracistas que circulam e são defendidas pelas normativas
educacionais materializam-se, ou não, no chão das creches e escolas paraibanas. Mas,
igualmente, na formação de professores/as para educação básica, implicados/as/es com a
efetivação de políticas públicas que promovam — do berço — a equidade racial no país,
quando recordamos, em 2023, os 20 anos de implementação de uma das leis mais importantes
promulgadas no país, direcionada ao combate do epistemicídio negro-brasileiro e à afirmação
da negrura como valor epistêmico e existencial. No enfrentamento ao genocídio das infâncias
negras, que começa no ventre, o desafio é produzir rachaduras, sismos e ruídos que
desloquem lógicas coloniais: o corpo vivo dos combates, a coreografia das esquivas.

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76
“NÓS GOSTAMOS DE OUVIR HISTÓRIAS DE MÁSCARAS
AFRICANAS, DA COR DA PELE E DO BAOBÁ!”: A EDUCAÇÃO
ÉTNICO-RACIAL DE CRIANÇAS EM UMA EMEI E EM MUSEUS
DE BELO HORIZONTE/MG

Andreza Mara da Fonseca


Mestra em Educação (PUC-MG)
[email protected]

Vânia Noronha
Professora da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais (PUC-MG)
[email protected]

Introdução

Este artigo propõe a discussão sobre aspectos presentes em uma pesquisa realizada por
Fonseca (2019), tendo como foco a infância, o currículo, a educação das relações étnico-
raciais e os museus, nos quais se colocou em pauta a temática da negritude. Pensar esses
aspectos encadeados nesta pesquisa possibilitou compreender a inquietação inicial sobre quais
narrativas são elaboradas pelas crianças quando se veem diante de situações que envolvem a
vida das pessoas negras em nosso país. Por isso, a escuta atenta do que diziam as crianças
abrangidas foi fundamental.
Consideradas sujeitos ativos e participativos, que se afetam e se tornam protagonistas
em seu processo de educação e de construção do conhecimento, as crianças expressam o que
pensam, sentem, imaginam. Por isso, é importante criar diferentes ambiências e situações
onde elas possam desenvolver os aspectos que as constituirão em suas subjetividades.
Extrapolar os muros da escola abre possibilidades para o contato com outras realidades,
aguçando-lhes a curiosidade e ampliando a leitura de mundo. Por isso, essas diferentes
ambiências se tornam potentes ações pedagógicas e precisam ser incluídas nas propostas
curriculares também da Educação Infantil.
A pesquisa de Fonseca (2019) foi realizada em 2018 e a turma escolhida para o
acompanhamento desta atividade era composta por 25 crianças de 05 a 06 anos, do turno da
manhã de uma Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) de Belo Horizonte. Foram 18
os sujeitos da pesquisa, sendo 8 meninos e 10 meninas, em sua maioria negros e negras, bem

77
como 2 professoras, responsáveis pela turma. A coleta de dados junto às crianças se deu pela
observação e escuta atenta, tanto na escola quanto nos museus pertencentes ao Percurso
Território Negro. Este Percurso foi definido como locus por atender aos objetivos propostos
para a investigação.
Na escola e nas visitas aos museus, a observação centrou-se na identificação e registro
das narrativas elaboradas pelas crianças sobre as relações étnico-raciais. Ainda foram
realizadas duas entrevistas com as professoras, com o intuito de analisar o trabalho por elas
desenvolvido sobre as relações étnico-raciais e seu entrelaçamento com e pelas práticas
curriculares. Desse modo, foi possível identificar o que é praticado na instituição, as
estratégias de trabalho e a intervenção sobre a temática racial (planejamento das ações antes,
durante e depois das visitas aos museus). As entrevistas, apresentadas na pesquisa de Fonseca
(2019), foram realizadas individualmente, sendo registradas por escrito, gravadas em áudio e
transcritas para utilização neste texto, imprimindo fidelidade às respostas. Para o tratamento
das evidências, utilizou-se a Análise de Conteúdo (BARDIN, 1977), e as etapas por ela
sugeridas.
Inicialmente, discutiremos neste artigo os conceitos que embasaram a pesquisa, a
saber: infância, currículo, educação das relações étnico-raciais e museus. Em seguida,
apresentaremos elementos presentes nas observações realizadas na EMEI e nos museus. O
artigo apresenta algumas narrativas das crianças a respeito das relações étnico-raciais e do
currículo, bem como as análises geradas pelas visitas aos museus. Nas considerações finais
tratamos sobre a emergência do desenvolvimento de ações educativas voltadas para a
discussão da diversidade étnico-racial, construindo, assim, uma educação antirracista, com
vistas a contribuir com a quebra de estruturas em nossa sociedade e com o aniquilamento do
racismo.

Reconhecendo a diversidade como direito à educação

Para entender a educação como princípio, direito social e cidadania, presume-se que
todos os indivíduos são sujeitos, devendo suas histórias, culturas e ancestrais serem estudados
de maneira positiva, sem hierarquização ou subalternização. A efetivação da educação como
um dos direitos fundamentais de cada sujeito, seja ele criança, jovem ou adulto, é o que
qualifica o Estado Democrático de Direito.
O percurso traçado desde a Constituição de 1988 até a normatização decorrente da
aprovação de algumas leis, que consideram a realidade de diferentes grupos sociais, como a
Lei 10.639 sobre a obrigatoriedade do ensino da história da África e da Lei 11.645; a qual

78
prevê o ensino sobre os indígenas, dentre outras, foi caracterizada pela luta de diversos atores.
Como ilustra Silva (2012):
Nas últimas décadas, em novos cenários políticos, os movimentos sociais, com
diferentes atores, conquistaram e ocuparam seus espaços, reivindicando o
reconhecimento e o respeito às sociodiversidades. Identidades foram afirmadas e
diferentes expressões socioculturais passaram a ser reconhecidas e respeitadas, o que
exigiu discussões, formulações e fiscalizações de políticas públicas que respondam às
demandas de direitos sociais específicos. (SILVA, 2012, p. 214).

O respeito pelas sociodiversidades requer a ampliação do entendimento de que esta é


composta por diferentes sujeitos, com histórias de vida, representações, experiências,
identidades, crenças e valores que impregnam os ambientes por onde transitam e as relações
que estabelecem com o mundo, com suas particularidades e semelhanças (GOMES;
GONÇALVES; SILVA, 2015). Indubitavelmente, o direito à educação nos coloca diante do
desafio de construir e implementar propostas voltadas para uma pedagogia da diversidade, e
uma das saídas para tanto é construir ações mais coletivas que atendam às demandas dos
sujeitos (GOMES; GONÇALVES; SILVA, 2015).
Com esse propósito, vale lembrar que o texto da Lei 10.639/03, alterado pela Lei
11.645/08, prevê que:
§ 2° Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas
brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas
áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras. (BRASIL, 2008).

Em se tratando da cultura negra, o objetivo do artigo 26a da Lei 10.639/03, segundo


Santos (2009), é reposicionar o negro e as relações raciais no mundo da educação, o que
requer inserir conteúdos, rever práticas e posturas pedagógicas, materiais e métodos
pedagógicos, conceitos e paradigmas. Além disso, o que está proposto no artigo da lei almeja
transformar a forma como as escolas desenvolvem práticas de educação das relações raciais
no seu cotidiano (marcado pela reprodução da discriminação e pelo silenciamento diante do
racismo), e transversalizar a discussão pelas diferentes disciplinas. Sendo esta uma pauta
bastante robusta, diversa e complexa; a qual se insere diretamente nas relações de poder em
todos os âmbitos de construção e de regulação das práticas educativas.
Conhecer, reconhecer e respeitar as sociodiversidades e identidades múltiplas exige
que a sociedade repense valores fundamentais, suas práticas e/ou posicionamentos diante da
diversidade racial, de modo a repensar sua atuação, por exemplo, frente ao racismo.
Considerado como estruturante e estrutural em nosso país, em decorrência da própria
estrutura social, e de seus valores eurocêntricos, o racismo, infelizmente, ainda constitui as
relações políticas, econômicas, jurídicas e familiares do nosso povo. Pode-se afirmar que o

79
racismo não é uma patologia social e nem um desarranjo institucional e, sim, constitui-se de
um complexo imaginário social, generalizante sobre os negros, que se forja e se retroalimenta
pelos meios de comunicação, pela indústria cultural e pelo sistema educacional (ALMEIDA,
2018). Neste contexto, toda a população brasileira, incluindo as crianças, carece da
necessidade de outro olhar social e cultural, não hegemônico e decolonial, de modo a superar
o racismo. Para isso, torna-se mister alcançar também a produção de conhecimentos e
reinventar as epistemologias, como propôs Santos (2004):
Aprender com o Sul – entendendo o Sul como uma metáfora do sofrimento humano causado
pelo capitalismo – significava precisamente o objetivo de reinventar a emancipação social,
indo mais além da crítica produzida no Norte e da práxis social que ela subscrevera.
(SANTOS, 2004, p. 6).

Em que pese a realidade atual vivida em nosso país e os retrocessos dos últimos anos
em todos os setores, e, em especial, na educação, fica evidente que as relações étnico-raciais e
suas epistemologias precisam continuar a ser discutidas e ampliadas em todo o território
nacional para que a referida Lei 10639/03 comemore os seus 20 anos com os avanços
propalados. As trajetórias dos sujeitos diversos necessitam continuar a ganhar relevância e ser
desenvolvidas em práticas que incluam, entre outras, as experiências de desconstruir para
reaprender de forma gregária, considerando a multiplicidade de formas de ser, viver, agir,
pensar e construir conhecimentos.

A infância, o currículo e a educação museal

Em uma perspectiva de reinvenção das relações, a infância deve ocupar lugar de


destaque, possibilitando a vivência plena da cidadania das crianças. Dessa forma, aponta-se
para o deslocamento do olhar social, combatendo a discriminação, a negligência, o
descompromisso e a invisibilidade de minorias sociais marginalizadas, além de favorecer a
afirmação de uma postura crítica aos padrões excludentes e violentos do conjunto da
sociedade como parte dessa reinvenção.
Pensar na infância remete, inevitavelmente, às concepções modernas que definem os
sujeitos dessa faixa etária a uma categoria social. Diversos autores (CORSARO, 2011;
SARMENTO, 2005; QUINTEIRO, 2002; REIS, 2009) buscam entender a realidade da
sociedade com base na análise de vivências da infância. Vivências estas relacionadas às
classes sociais, ao espaço e tempo em que são geradas, além de suas conexões com as
contínuas e diversas transformações sociais, culturais, econômicas e políticas. Essa análise
permite entender a importância da contextualização dessa infância e suas relações sociais em
diversos aspectos, espaços e tempos.

80
Assim considerada, a criança é reconhecida pelo olhar do adulto como um ser presente
no mundo, uma vez que, como afirma Sarmento (2005, p. 365), “as crianças são competentes
e têm capacidade de formularem interpretações da sociedade, dos outros e de si próprias”.
Alguns pesquisadores (CORSARO, 2011; PLAISANCE, 2004; PROUT, 2010,
ABRAMOWICZ, 2010; QVORTRUP, 2010) concebem e entendem a infância como
experiência, além de considerar a criança como um ser que pensa, age e aprende. O lugar das
crianças nas pesquisas, assim como entendido por estes autores, reconhece-as como sujeitos
que afetam e são afetados pela sociedade, fazem, participam e interferem na cultura. A
garantia de fala e escuta na construção do conhecimento de modo ativo, participante,
competente as define como protagonistas, sujeitos de direitos, com voz e vez.
Portanto, considerá-las como um sujeito de direitos que vive, atua e pensa na
sociedade é importante para refletir sobre a relevância, o papel do meio cultural e das
experiências educativas para a formação e afirmação desse agente social e histórico, que é
orientado por “direitos fundamentais de participação na vida social e cultural, de ser
respeitada e de ter liberdade para expressar-se individualmente” (BRASIL, 2013).
Entendendo a Educação Infantil como processo e prática que se concretiza nas
relações sociais que transcendem o espaço e o tempo escolares, tendo em vista os diferentes
sujeitos que a demandam, reconhecemos que a educação das crianças pequenas se dá “no
processo de socialização da cultura da vida, no qual se constroem, se mantêm e se
transformam saberes, conhecimentos e valores” (BRASIL, 2013, p. 13). Nesse sentido, os
processos educativos na infância precisam contemplar um currículo amplo, inclusivo e crítico
em uma perspectiva decolonizadora, que considere os diferentes grupos étnico-raciais e suas
diversidades culturais.
O projeto de currículo e sociedade sob o prisma da decolonização está assentado nas
lutas dos movimentos sociais, no trabalho de teóricos e pesquisadores sobre direitos civis, na
visibilidade e respeito à ancestralidade, bem como nos modos de ser e viver, contra os
padrões de poder hegemônicos, excludentes, silenciadores e hierarquizantes. Sabemos que o
currículo não é neutro: sua construção, linguagem e significados, muitas vezes, transmitem
procedimentos históricos, sociais e culturais que precisam ser pensados e discutidos de
maneira mais abrangente, visando romper com a colonialidade do saber (WALSH, 2009;
QUIJANO, 2002; SANTOS, 1996). Nesse contexto, o currículo deve se desenvolver por
práticas mediadas pelo respeito, visibilidade, protagonismo e inclusão, com vistas a
decolonizá-lo. Nesse âmbito, a ativista negra Sueli Carneiro, ao afirmar, em entrevista à ONG

81
Fábrica de Imagens, sobre as “práticas sistemáticas” da “colonialidade”, fez o seguinte
apontamento:
Qualquer pessoa negra desde cedo experimenta situações de discriminação, e
geralmente a escola é o primeiro espaço social que a gente tem que se defrontar com
isso, então a discriminação racial foi uma coisa sempre presente na minha vida desde a
infância. Não só porque há práticas sistemáticas de agressão às pessoas negras,
incluindo as crianças, desde as mais tenras idades, como há também no interior da
família. Os meus pais tinham a preocupação de nos alertar, para o fato de que teríamos
que enfrentar essa situação. (CARNEIRO, 2014).

Essas práticas sistemáticas de discriminação são propagadas pelas mídias sociais,


meios de comunicação convencionais (como rádio e TV) e também pela escola, que
materializam no currículo ações individuais, institucionais e estruturais circulantes na
sociedade. Esse círculo estrutural, baseado em padrões coloniais de poder, excludentes e
discriminatórios, precisa ser repensado, principalmente pela escola, para que, também por
meio do currículo, possa contribuir para a construção de “medidas que coíbam o racismo
individual e institucional” (ALMEIDA, 2018, p. 39) e reflita sobre as necessárias e profundas
“mudanças nas relações sociais, políticas e econômicas” (ALMEIDA, 2018, p. 39).
A colonialidade, por ser estruturada de forma triangular nas interfaces do poder, saber
e ser, em um processo de continuidade de um padrão hegemônico, polarizado e excludente,
articula representações hierárquicas (branco/negro), binárias (homem/mulher), dentre outras,
impregnando sentidos que constituem o imaginário, o modo de pensar e ver o mundo,
daqueles a ela submetidos. Uma das consequências da colonialidade na educação é a
reprodução social que faz da escola e do currículo veículos de propagação de seus princípios,
por meio de algumas concepções e técnicas.
Para atuar na direção contrária, é necessário pensar de modo não colonial —
hegemônico e eurocêntrico — fazendo emergir os inferiorizados, incluindo os excluídos,
garantindo voz e escuta aos silenciados, respeitando os não tolerados, jogando luz aos
invisibilizados e rompendo, de forma crítica, reflexiva, emancipatória e protagonista com os
padrões de poder estabelecidos.
A busca pela produção de novos conhecimentos, abordando sujeitos até então
invisibilizados pela história, requer pensar com os subalternizados, com os grupos que não
estão ligados à lógica dominante europeia, com vistas a reconhecer e a valorizar a diversidade
e reelaborar as relações sociais e epistemológicas. Esta ideia concorda Santos (1996), ao
afirmar que:
Essa capacidade e essa vontade [de romper com o colonialismo] serão fundamentais
para olhar com empenho os modelos dominados ou emergentes através dos quais é

82
possível aprender um novo tipo de relacionamento entre saberes e, portanto, entre
pessoas e entre grupos sociais. Um relacionamento mais igualitário, mais justo que nos
faça aprender o mundo de modo edificante, emancipatório e multicultural. (SANTOS,
1996, p. 33).

Para Muniz Sodré (2012, p. 185), a força motriz da diversidade cultural está em
“autossensibilizar-se de maneira a tomar contato com a gênese contingente de suas crenças,
valores e atitudes”. Acreditamos ser esta a intencionalidade do Circuito dos Museus em Belo
Horizonte, ao constituírem o Percurso Território Negro e provocar novas possibilidades de
construções do conhecimento nas crianças em escolas do município de Belo Horizonte. Tal
como diz Gomes (2012), uma iniciativa como essa é reinventar os olhares, as relações, as
trajetórias dos sujeitos diversos por meio de práticas inclusivas.
Para isso, deve-se decolonizar os currículos escolares, na reconstrução horizontal dos
saberes e das relações, realinhando as ações pedagógicas para entender que:
A leitura e a postura decolonial têm a capacidade de acolher temáticas e questões
invisibilizadas pela história. Uma história que durante muito tempo foi (e ainda é)
contada pelos colonizadores do passado e pelos capitalistas do presente. Essa história
inventada e imposta pelo processo colonial vem sendo indagada, questionada e
tensionada por intelectuais e ativistas dos movimentos sociais nos mais diversos
lugares do mundo. Há, também, uma característica central na abordagem teórica e
política decolonial: a sua atenção ao estudar as relações de poder não se limita às
instituições nem somente aos níveis macros das relações de poder. Ela traz e dá
visibilidade aos sujeitos. Nessa perspectiva, ao focar os sujeitos, revela-nos o quanto a
empreitada colonial não foi totalizante. O processo colonial sempre sofreu fraturas, as
quais se tornaram brechas por onde se libertaram os sujeitos “colonizados” e os
conhecimentos por eles construídos. Foram esses sujeitos, nossos ancestrais, que nos
deixaram um legado histórico de resistência. (GOMES, 2017 apud GARCIA; SILVA,
2018, p. 10).

O trabalho pedagógico desenvolvido nos museus reconhece esses equipamentos como


espaços de investigações originais, capazes de anunciar a possibilidade de um diálogo amplo
sustentado em pressupostos pautados na diversidade. Ao deslocar as crianças dos cenários
conhecidos, desencadeiam-se as reflexões relacionadas a este movimento, ampliando os
saberes, os territórios, as histórias, as sensibilidades e as estéticas. Dessa forma, abrem-se
novos horizontes, abarcando outras formas de se conhecer e reconhecer a si próprio e ao
outro, expandindo sua rede de experiências, que podem vir a constituir seu capital cultural 11,
favorecidos por uma educação museal.

11
Bourdieu (1998, 2004, 2007) analisa o capital cultural, caracterizado por uma perpetuação de valores sociais
determinados pela união de conhecimento, informação, sinais linguísticos, posturas e atitudes, considerando suas
particularidades. Por sua vez, essas traçam a diferença de rendimento acadêmico frente à escola.

83
A ampliação do repertório de experiências culturais e subjetivas em equipamentos
dessa natureza pode se dar por meio do acesso a diferentes acervos e artefatos históricos, de
interações com os pares, com o mundo e a possibilidade de outras formas de aprendizagem, já
que, como nos diz Leite (2005):
[...] é no diálogo com o outro e com a cultura que cada um é constituído,
desconstruído e reconstruído cotidianamente. O acesso aos bens culturais é meio de
sensibilização social que possibilita, ao sujeito, apropriar-se de múltiplas linguagens,
tornando-o mais aberto para a relação com o outro, favorecendo a percepção de
identidade e alteridade. (LEITE, 2005, p. 23).

Nesse contexto, os museus têm importante papel na aproximação com a infância e


com a ampliação de seu repertório cultural, pois, mais que colecionar, selecionar, conservar e
preservar objetos que guardam a memória dos povos que habitam o Brasil, os museus
propõem a discussão de temas atuais e relevantes concernentes ao seu patrimônio material e
imaterial. Assim, as instituições museais contribuem para a consolidação da função social
desse espaço, no desempenho da importante tarefa de utilizar o patrimônio cultural como
recurso educacional, turístico e de inclusão social, também para a infância.
Além disso, o museu oferece potencial de participação, por meio do seu educativo, em
seus acervos e ações; em seus cenários provocativos de narrativas e de reflexões sobre a
educação étnico-racial ao criar percursos em que a presença do negro na sociedade esteja em
exposição de modo distinto daquela centrada, por exemplo, no tema da escravização, numa
relação, muitas vezes, subserviente e passiva, no papel de vítima de algozes representados
como síntese de uma raça superior. No Percurso Território Negro do Circuito de Museus, os
negros são vistos como sujeitos reais, históricos, que resistem, produzem saberes e culturas,
interferem positivamente na formação da sociedade brasileira, imprimindo modos de viver.
Essa possibilidade, além de problematizar o presente ao analisar o passado, ainda promove
novas experiências que ampliam as relações das crianças com o conhecimento pela
valorização da cultura afro-brasileira.
Ao trilhar propostas de trabalho educativas com crianças em outros territórios que não
a escola, comprometidos com as lutas antirracistas e, por conseguinte, com as lutas
anticoloniais, ampliam-se os saberes e visões de mundo, em que outros sujeitos sejam vistos,
ouvidos e reposicionados. As práticas desenvolvidas pelas professoras, tanto na sala de aula
quanto nas visitas aos museus colaboraram, assim, com o proposto por Nascimento (2005, p.
4), quando afirma que “pelo fato do museu não ser uma sala de aula, ou um espaço da escola,
carece de novos olhares, de pesquisas sobre as práticas educativas que propõe e que também
são efetuadas pelos professores/escolas que a eles visitam”.

84
A experiência das crianças na escola e no Percurso Território Negro

Pensar os processos educativos na perspectiva do respeito, da valorização e do


reconhecimento da diversidade, com foco nas culturas africanas e afro-brasileiras, requer a
reflexão de todos os envolvidos na educação das crianças pequenas sobre modos de agir,
conceber o conhecimento e a criação de estratégias que articulem a temática racial aos demais
conteúdos. A EMEI pesquisada por Fonseca (2019) desenvolve um trabalho positivado sobre
a educação das relações étnico-raciais e isto pode ser observado nos documentos que orientam
as ações metodológicas como o Projeto Político-Pedagógico (PPP) e o projeto da turma.
Percebemos uma gestão comprometida com o trabalho desenvolvido, dando o suporte
necessário tanto às professoras quanto às estratégias curriculares mobilizadoras para a
realização das visitas das crianças aos museus.
Entretanto, antes da efetivação das visitas, outras estratégias metodológicas para
tratarem sobre a temática foram identificadas, tais como: pesquisas, utilização de imagens e
vídeos, rodas de conversa, contação de histórias e brincadeiras. Assim foi elaborado o projeto
“Brasil e África – um elo de saber” em que as professoras definiram a metodologia de
trabalho de modo a articular as diversas linguagens e envolver os familiares. Desse modo,
uma lista de livros foi elaborada, e, a partir de então, livros, incluindo kits, distribuídos pela
própria rede de ensino, foram enviados para as crianças. Essa prática de leitura se consolidou
como forma de articular os saberes construídos e compartilhados entre família e escola.
Quanto à participação e envolvimento das famílias, as professoras disseram:
Enviei para casa, também né, a explicação do projeto para a família, mostrando como
seriam as etapas do trabalho, colocando a família a par, trabalhando junto com ela para
mostrar o nosso projeto. (Profª. 1).

Além das crianças aprenderem, os pais também estão se envolvendo no trabalho com
essa temática e com a Literatura, é um envolvimento maior na educação dos seus
filhos... esse também é um modo de estar envolvendo a família neste processo. (Profª.
2).

Com vistas a incentivar a prática da leitura, foram confeccionadas, com a participação


das crianças, sacolas literárias, as quais foram pintadas com silhuetas e fortes cores que
remetiam à forma e à cultura do continente africano. A esse respeito, as professoras disseram
que:

A sacola literária é um trabalho com a família. Uma vez na semana a sacola vai para a
casa deles, aí fazemos a escolha dos livros, criando um ambiente em que as crianças
escolham os livros que elas querem levar. Então, os meninos fazem o registro
juntamente com a família, sobre a história que leram. (...) Utilizei também outras
histórias, utilizei outros livros e outras literaturas, como as panquecas de Mama Panya.

85
Parti do Baobá, que o Baobá é da África, e a importância dessa árvore. Aí, fui
pesquisar o Baobá na África, a importância da árvore e através dessa árvore, que os
mais velhos sentam embaixo dela junto com as crianças, e contam as histórias da
África, da ancestralidade. (Profª. 1).

Dentro desse projeto todo eu foquei em algumas literaturas, como “Bruna e a galinha
d'Angola, aí surge a necessidade de falar sobre Angola, onde fica Angola, mostrar o
mapa da Angola... às vezes eu tenho que pesquisar e aprendo muito também. As cores
da bandeira, o significado das cores... confeccionamos a galinha da Angola e contei a
história. Eu fui trabalhando muitas literaturas, não só uma. Cada literatura que eu fui
trabalhando fui pegando um pouquinho do que a gente foi descobrindo que era da
África. (Profª. 2).

Os relatos das professoras mostram que a leitura de histórias desencadeou outras


ações. A disponibilidade e diversidade de materialidade para o trabalho cotidiano com as
crianças foi um tema problematizado pelas professoras, mas não se constituiu como
impeditivo para a sua realização:
Precisa ter materialidade até para esse reconhecimento das cores, porque igual essa
questão do reconhecimento da cor, como é que a gente vai e quer trabalhar que a
criança faça o seu autorretrato, se reconheça, se você não tem material, não tem lápis
que tem a cor da criança, pois se tivesse um dia da cor da criança seria a hora de fazer
marrom, preto e bege, ou aquele rosa que as pessoas teimam em dizer que é o lápis cor
de pele. (Profª. 1).

A construção e ampliação do conhecimento e das experiências por meio das histórias


foram registradas, após cada livro lido e cada descoberta, em um mapa:
Eu fiz um mapa e neste mapa a gente ia colocando as nossas descobertas. A gente
colocou tudo que achamos de África, tipo baobá, nós pegamos o mapa, a gente fez o
mapa e colocava lá o baobá, uma imagem ou um desenho. (Profª. 1).

As rainhas, as coroas africanas também, então cada coisa que a gente foi achando.... as
comidas, as palavras que a gente fala aqui no Brasil que são de origem africana, a
gente ia colocando no mapa da África que estávamos construindo. (Profª. 2).

Para além da mediação com a literatura, outras formas de arte e linguagens foram
utilizadas para ampliar o repertório cultural das crianças:
Outra questão que eu trabalhei também foi a música. Trouxe o tambor para a sala,
onde os meninos puderam tocar. E eu trouxe um conto africano, “O macaco no mar
Franco”, que fala sobre a questão do tambor. Tirei foto, deixei os meninos
manusearem o tambor, sentir e ouvir o som. Depois eles fizeram o registro, um
desenho de observação. (Profª. 1).

Essas narrativas apontam como o vínculo com as questões étnico-raciais e as marcas


dos valores civilizatórios afro-brasileiras, tais como ludicidade, musicalidade, corporeidade,
oralidade e até a culinária, dentre outros, podem ser vivenciados e percebidos de maneira
positiva no cotidiano escolar:

86
Já as palavras de origem africana a gente tá trabalhando a linguagem oral e a
linguagem escrita, também com essas palavras de origem africana. Os meninos
adoraram descobrir algumas palavras que a gente fala o tempo todo e que são de
origem africana, e que vieram para cá com os africanos. Tipo farofa, tutu, ecoincidiu
que no dia que a gente falou sobre o tutu teve tutu no almoço e eles puderam saborear,
foi muito legal. Foi até numa sexta-feira que teve tutu e farofa. (Profª. 1).

Tem muita coisa ainda para trabalhar. Trabalhamos a galinha, a galinha d'angola, tipos
de galinha d'angola, as coisas vão surgindo. Quando eu levei a bandeira da Angola eu
só ia trabalhar as cores mesmo, mas eles perguntaram o que que tem lá no meio, o que
eram aquelas imagens. Fui trabalhar o significado e que ficou bem rico, trabalhei
também a bandeira do Brasil e o significado das cores da bandeira. E assim vão
surgindo outras questões e a gente vai dando continuidade ao trabalho. (Profª. 2).

As palavras nomeiam o mundo, as coisas, os alimentos, as pessoas e a vida e nelas


também estão impressas as marcas afro-brasileiras. Perceber essas relações contribui para a
potencialização de saberes, a valorização de diferentes estéticas e a constituição de
identidades. Para isso, uma professora desenvolveu a atividade do espelho:

Uma outra atividade é a caixa surpresa, que foi um espelho que a gente trabalhou.
Trabalhei com a brincadeira do espelho também, se chama “o que que você tem
diferente de mim?” Depois deste trabalho a gente fez o registro. (Profª. 1).

O uso do espelho permitiu a construção de saberes por meio do corpo, pois, como
alerta Trindade (2013), é preciso:
valorizar os nossos corpos e os de nossas crianças como possibilidades de construções,
produções de saberes e conhecimentos coletivizados, compartilhados. Cuidar do
corpo, aprender a massageá-lo, tocá-lo, senti-lo, respeitá-lo é um dos nossos desafios
no trabalho pedagógico com a Educação Infantil. Dançar, brincar, rolar, pular, tocar,
observar, cheirar, comer, beber, escutar com consciência. (TRINDADE, 2013, p. 36).

Para além da valorização dos corpos, existe também a necessidade de


representatividade; e apresentar diferentes elementos pode colaborar para a formação de uma
subjetividade positiva no olhar sobre o negro. Isso foi possível ao brincar com as bonecas na
sala de aula, conforme apontado pela professora 2:
As bonecas negras estão na sala, as bonecas brancas estão na sala. É preciso trabalhar
de forma natural, sem ter aquele momento específico “agora é hora de trabalhar com a
literatura negra”, “agora é hora de falar sobre o negro”. Isso precisa ser cotidiano,
natural, não precisa ter esses momentos marcados para falar. (Profª. 2).

O trabalho cotidiano, mas intencional, com as bonecas incentiva o cuidado com o bebê
negro, ampliando e valorizando a representatividade e a presença positiva do negro na
sociedade.

87
Após todas essas estratégias, o projeto “Brasil e África – um elo de saber” propôs
conhecer e vivenciar ações por meio de visitas ao patrimônio cultural em museus do Percurso
Território Negro do Circuito de Museus de BH. Esta estratégia foi assim pensada:
Na conversa antes da visita ao museu eu expliquei que a gente ia visitar o espaço. A
gente também não sabia porque também não nos foi informado como era o lugar, eu
nunca tinha ido. Gosto quando tem uma formação antes, que a gente conhece espaço,
conhece a proposta, a gente fica mais seguro do que falar para as crianças antes da
visita. Tanto que eu falei com os meninos que a gente vê algumas coisas que não
podiam colocar a mão, por que no museu né... A gente sabe não pode colocar a mão.
(Profª. 1).

As visitas aos museus Memorial Minas Gerais Vale e Espaço UFMG do


Conhecimento (Circuito Praça da Liberdade), Museu de Artes e Ofícios (Praça da Estação) e
ao Museu Brasileiro do Futebol (Estádio Magalhães Pinto – Mineirão) foram definidas por
possuírem itinerários temáticos que atendem ao recorte das discussões étnico-raciais e da de
valorização da cultura afro-brasileira, por meio do Percurso Território Negro e pelo trabalho
desenvolvido por seus setores educativos, que, nitidamente, desenvolvem uma educação
museal.
Entretanto, por questões políticas e logísticas, as crianças não realizaram todo o
Percurso Território Negro como previsto, sendo possível apenas as visitas ao Museu de Artes
e Ofício (MAO) e ao Espaço do Conhecimento UFMG (EC–UFMG). Esse fato não reteve o
desenvolvimento do trabalho, muito menos as relações com os saberes para ou com as
crianças, pois elas já estavam construindo e formulando vários conhecimentos e
aprendizagens, no universo escolar, como previstos em seu PPP e no projeto da turma.
As visitas aos dois museus foram realizadas após o intenso trabalho das professoras
sobre as relações étnico-raciais, contempladas no currículo em desenvolvimento, na escola.
As narrativas expressas pelas crianças ao longo das visitas refletiram esse trabalho e puderam
ser observadas no momento em que elas faziam inferências sobre a temática ao relembrarem
histórias, imagens, vídeos, brincadeiras, atividades de registro ou pesquisas realizadas junto
aos seus familiares. Essas narrativas revelaram que as crianças possuem repertório de história
e cultura afro-brasileira: elas dialogavam intensamente com a linguagem museal,
interpretando artefatos culturais com os quais entraram em contato, além de conversarem
entre si e com os adultos sobre esses materiais. As crianças buscaram ainda relações entre o
repertório cultural que possuíam para compreender as informações disponibilizadas pelos
espaços dos museus, ou seja, entre o apreendido e o apresentado, realizando comparações e
inferências com base em histórias que conheciam.

88
No Espaço do Conhecimento (EC) da UFMG, as crianças encontraram barquinhos de
papel coloridos espalhados pelo chão e foram convidadas a escolher um para iniciar uma
viagem do Brasil para a África. O deslocamento para o terceiro andar do prédio simulava o
transporte das pessoas escravizadas nos navios negreiros. Nesse momento, elas aprenderam a
canção do Marinheiro12 e a entoaram com alegria e euforia. Uma criança disse: “é a primeira
vez que vou viajar de barco!”. No trajeto, outra criança disse que “já conhecia a África, por
que a professora contava muitas histórias de lá!”. Ao chegarem ao destino, outro barco
maior as aguardava. Nesse barco, feito de um tecido com estampas de símbolos africanos,
cabiam todas as crianças. Além do barco, as crianças se depararam com imagens, mapas e
vídeos que abordavam a experiência da navegação e o encontro de diversas populações e
culturas pelo mundo e nas Américas. Neste momento, uma menina apontou o dedo e disse:
“olha, um mapa da África... Igual ao que tem lá na sala!”, e um garoto que estava bem ao
seu lado afirmou: “é mesmo... aquele que a gente cola nossas descobertas!”, saindo os dois
logo em seguida, sorrindo de mãos dadas. Nitidamente, referiam-se à atividade proposta pela
professora no mapa, feito em cartolina, do continente africano, para que as crianças colassem
imagens, desenhos e palavras que descobrissem ao ouvir histórias sobre a presença negra no
mundo.
Ao passarem pelo local onde se podia aprender sobre a cosmogonia e a história da
criação do mundo pela cultura Yorubá, as crianças imediatamente relacionaram tal fato com a
história contada pela professora no livro “Bruna e a galinha d’Angola” (ALMEIDA, 2011).
A história no livro conta a criação do mundo e foi pintada em um panô, tecido com pinturas
e/ou aplicações que resgatam a arte de contar histórias por meio de imagens, valorizando o
mito e a cultura africana. As crianças recordaram o livro ao verem a imagem, comentando em
seguida sobre como as histórias eram parecidas: “a diferença é a galinha...lá (na história do
livro) é uma galinha d’Angola, aqui é essa branca”, expressou um aluno. Ao finalizarem a
visita, relembraram o que viram e levaram o barquinho para suas casas. No caminho, dentro
do micro-ônibus, um aluno falou que estava indo para casa de barco, que iria “passar pelo
Atlântico como os ‘barcos’ que trouxeram os negros para o Brasil”.
O Museu de Artes e Ofícios (MAO) tem como propósito apresentar ao público um
acervo de artefatos culturais que tratam dos ofícios e profissões presentes no cenário
brasileiro, muitas delas quase em extinção. Ao iniciar a visita, as crianças puderam conhecer
como era o ofício de mercador de escravos e a escravização dos negros foi um tema que
imediatamente revisitou-os quando os alunos observaram um artefato utilizado no comércio
12
“Ô marinheiro... é hora, é hora, é hora de viajar, lá no céu, lá na terra, lá no mar. Ô marinheiro... vamos todos
para o mar.” (Domínio Público)

89
de pessoas. As crianças em coro perguntaram: “- os escravos?” O educador respondeu
positivamente, que os comercializados eram os negros, que eles foram escravizados por
dominarem muitos ofícios que existiam, como o comércio, a produção de cerâmicas, o
trabalho na mineração, dentre outros.
As crianças mostraram interesse pelos artefatos relacionados ao comércio,
principalmente as balanças e os utensílios usados pelos vendedores ambulantes. Também os
utensílios dos dentistas e barbeiros chamaram a atenção. Uma delas disse que: “O dentista
trabalha na sala dentro de centro de saúde, na rua só a moça que vende tempero de frente do
sacolão.” “Eu já fui no dentista!” Desse modo, a criança atualizou a cena, trazendo-a para o
seu próprio contexto. Quanto aos barbeiros, um menino perguntou: “Eles inventavam xampus
como o Chico Juba?”. A monitora não entendeu a pergunta e uma aluna explicou que era
“uma história que a professora tinha contado lá na escola”. A monitora, entrando na
fantasia, disse-lhes que “sim, inventavam xampus e outros cremes”. O menino havia feito
referência a história do Chico Juba (GAIVOTA, 2011), uma criança negra que possuía os
cabelos encrespados e sentia muito orgulho por isso. Gomes (2006), em seus estudos, destaca
que a valorização das raízes negras encontra, na aceitação dos cabelos crespos, um grande
aliado, pois permite a identificação do ser negro ou negra pela estética.
Finalizando pelo ofício de cerâmicas, as crianças elencaram os objetos que tinham em
casa, no trabalho dos familiares e lembraram também da história de Bruna e a galinha
d’Angola. Uma das crianças perguntou: “Cerâmica? Igual ao tio da Bruna, que fez a galinha
de cerâmica para ela?”. Antes mesmo que a monitora respondesse, um grupo de três crianças
afirmou que sim. Em um momento no MAO, uma criança, ao se deparar com algumas
imagens do acervo destacadas pela monitora do Museu, questionou: “Aqui não tem máscaras
africanas?” É que a gente fez lá na escola!”. A monitora, atenta às crianças, respondeu que
em uma exposição temporária haviam máscaras africanas, mas que esta já havia se encerrado.
As visitas aos museus permitiram que as crianças dissessem o que viram, fizeram e também o
que gostariam de ver. Isso indica que um dos aportes da educação das relações étnico-raciais
é a possibilidade de fazer circular conhecimentos que reconheçam “[...] a sabedoria, a
política, a técnica, a arte, o conhecimento, a musicalidade, a religiosidade […] dentre outras
manifestações do povo negro e de outros povos” (GOMES, 2007, p. 3). Esses conhecimentos
contribuem para problematizar saberes hegemônicos e para desnaturalizar as percepções
equivocadas, estereotipadas e preconceituosas, permeadas pela discriminação, provocadoras
de preconceitos e racismo. Ribeiro (2019) nos provoca a pensar que não basta nos

90
autoafirmarmos como não racistas, já que é preciso urgentemente que a opressão aos povos
negros, indígenas e demais minorias seja combatida.

Considerações finais

Este artigo teve como propósito apresentar evidências de pesquisa realizada por
Fonseca (2019), analisando o trabalho com a educação étnico-racial de crianças pequenas na
sala de aula de uma turma de 5 e 6 anos em uma EMEI em Belo Horizonte. O que se
observou, neste estudo de caso, foi que as atividades proporcionaram caminhos para que as
crianças percorressem locais de protagonismo e pertencimento na EMEI e nos museus, as
quais oportunizaram-lhes maior visibilidade às questões étnico-raciais. Assinala-se a
importância da interlocução interdisciplinar entre diferentes equipamentos e escola, bem
como a relação da criança com o espaço museal e seu acervo, ao buscar olhar para o passado,
sob a ótica de referenciais positivos para valorizar a presença do negro no Brasil e no mundo.
Como vimos, a influência da memória ancestral pode ser positivamente estimulada
pelas mediações entre artefatos, imagens e experiências vividas nos museus pelas crianças e
professoras. Ao promover e socializar os conhecimentos e “aprendizados a partir do
patrimônio cultural afro-brasileiro, visando a preservá-lo e a difundi-lo” (BRASIL, 2004, p.
20) acaba-se por produzir uma nova ética, como nos alerta Santos (1997), capaz de ampliar o
significado da participação como exercício da cidadania. O que também contribui para que as
crianças possam articular suas vivências e estruturar seus saberes e conhecimentos de maneira
inclusiva e cidadã.
As práticas das professoras auxiliam no compartilhamento e na construção de
conhecimentos e no reconhecimento do negro como sujeito protagonista, representado de
maneira positiva. Essa reflexão avança no sentido de defender práticas reivindicativas de
direitos, indagadoras, contra-hegemônicas e antirracistas, que garantam voz e escuta às
crianças.
O estudo contribuiu para conceber a educação das relações étnico-raciais como lugar
de conhecimento válido no currículo da Educação Infantil, em uma EMEI, local público de
educação e “onde as diferentes presenças se encontram13”: na busca pelo conhecimento por
meio de práticas contextualizadas. Após revelar todas as ações, práticas e subsídios em que o
trabalho foi desenvolvido com as crianças, reverberam-se as duas grandes temáticas que
sobressaíram no campo: a presença do negro no Brasil e no mundo e as relações presentes no

13
Citação feita por Nilma Lino Gomes, em palestra na SMED/PBH, em 24 de abril de 2017

91
currículo, documentos e práticas. Pois um currículo alicerçado em práticas não
hierarquizadas, que valorizam a diversidade e a presença positiva do negro na sociedade, os
diferentes modos, de ser, viver e saber, de forma planejada e intencional, pode empoderar, dar
visibilidade e o reconhecimento necessário à luta contra o racismo e a discriminação.
As evidências também apresentam a potência do diálogo educacional entre o espaço
da escola e do museu, além de como as crianças, ao percorrer estes dois territórios de
educação, estabelecem relações de aprendizagem quanto às questões étnico-raciais. As
crianças acionam seus conhecimentos para interpretar os artefatos nas visitas aos museus e
dialogam sobre tais conhecimentos entre si e com os adultos (professores e monitores) que
fazem a mediação das visitas, buscam relações entre o aprendido e o apresentado, opinam
sobre fatos históricos, prestam atenção nas imagens, histórias e outros artefatos.
As referências positivas sobre os negros e negras a que tiveram acesso, tanto na EMEI
quanto nos museus, potencializaram uma identidade também positiva nas crianças negras e na
professora negra, assim como possibilitou às poucas crianças brancas o acesso a
conhecimentos sobre a história e cultura afro-brasileira que contradiz a narrativa hegemônica.
Isso coaduna com a alegação feita por Santos (2006, p. 316) de que “temos o direito a ser
iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos direito a ser diferentes sempre que a
igualdade nos descaracteriza.” A potência das narrativas das crianças sobre a importância da
educação das relações étnico-raciais sintetiza o debate: “Nós gostamos de ouvir histórias de
máscaras africanas, da cor da pele e do Baobá!”

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95
JONGO NA EDUCAÇÃO INFANTIL: CULTURA,
ANCESTRALIDADE E IDENTIDADE

Andresa de Souza Ugaya


Professora da Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita Filho
[email protected]

Matheus Henrique de Freitas


Graduando

Maria Luiza Miranda Paulino da Silva,


Graduanda

Abrindo a roda: o Jongo e as comunidades jongueiras

Para abrir uma roda de Jongo, canta-se um ponto de abertura pedindo licença e
saudando aos nossos ancestrais e a todas as pessoas presentes, principalmente aquelas que
mantiveram o conhecimento desta manifestação de geração em geração através de um
processo de identidade e resistência. Na abertura da roda de Jongo, também se faz reverência
à espiritualidade que se faz presente.
A partir desta compreensão, para abrir e fazer girar essa roda, vamos entoar um
ponto da Comunidade Jongueira de Tamandaré da cidade de Guaratinguetá, São Paulo: 14

Eu vou abrir meu jongo, êh!


Eu vou abrir meu jongo, ah!
Primeiro eu peço a licença
Pra Rainha lá do mar
Pra saudar a povaria
Eu vou abrir meu Jongo, êh!
Cachuêra! 15 16

Por meio desta escrita circular, de muitos corpos e percepções, buscaremos


apresentar, brevemente, as raízes da expressão cultural do Jongo. Nos debruçaremos sobre os
aspectos históricos, a musicalidade, os instrumentos, a dança e os valores civilizatórios
africanos intrínsecos ao Jongo e evidenciar sua relevância para o Brasil. Em um segundo
momento, apresentaremos a experiência da abordagem do Jongo dentro do projeto de núcleo
“Qual a minha história? Relações Étnico-raciais na Educação Infantil” que ocorre entre uma
14
(1098) jongo do Tamandaré - YouTube.
15
(1124) Jongo da Tamandaré - YouTube.
16
Cachuêra é a palavra usada pelas comunidades jongueiras do estado de São Paulo para encerrar o ponto de
Jongo que está sendo cantado. Nos estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas usa-se Machado!

96
parceria do Departamento de Educação Física da Faculdade de Ciências a Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e a Escola Municipal Francisco Gabriele Neto.
O Jongo é uma expressão de matriz africana, especificamente da cultura Bantu
trazida ao Brasil por meio de dezenas de povos negros escravizados no período colonial.

O jongo, entendido como dança, uma roda, um gênero poético musical, que, entre suas
características, destaca-se a presença de tambores afinados com o calor do fogo e um
estilo sonoro composto por frases curtas, cantadas por um solista e repetidas ou
respondidas em coro, possui elementos que sugerem vínculos com as práticas culturais
africanas, em especial aquelas vinculadas aos povos bantus (Fernandes, 2012, p. 264).

Não foi “permitido aos negros carregar seus pertences; portanto, só lhes restavam
trazer em suas memórias aquilo que lhes era mais significativo para a reconstrução de suas
identidades” (Fernandes, 2012, p. 263).
Afirma Fernandes (2012) que para que tal reconstrução ocorresse, foi preciso
remodelar os elementos culturais por seus tradutores a partir de uma capacidade de produção
e transformação, o que culminou em um expressivo número de “estruturas que materializaram
essa ideia de ajuste e adaptação dos modos de ser africano no Brasil” (p. 263-264), sendo o
Jongo uma delas.
O Jongo se estabeleceu no Brasil na região sudeste e está presente nos estados do Rio
de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo. Surgindo dentro dos ambientes de
plantação da cana de açúcar e do café. Em dado momento, o processo de tráfico fez com que
o número de negros e negras escravizados nesta região chegasse a compor metade da
população brasileira, o que influenciou a permanência e consolidação da cultura jongueira
(Côrtes, 2000, p. 149).
Também chamado de Batuque, Caxambu, Tambu ou Tambor, o Jongo subverte a
realidade através da manifestação artística, posto que os negros escravizados só eram
autorizados a realizar as festas do Jongo nos períodos de comemoração aos santos católicos, o
que, na perspectiva dos brancos, auxiliava a mantê-los servis e obedientes e, também,
camuflava o processo de desumanização ao qual a população negra africana e
afrodescendente estavam submetidas (Fernandes, 2012; Monteiro, 2013).
Símbolo de resistência, o Jongo também funcionava como uma forma de
comunicação metafórica.
As palavras entoadas em cantos, os chamados pontos, eram pensados para existirem
como enigmas indecifráveis pelos escravocratas e desse modo representavam um
diálogo livre sob um disfarce inteligente que preservava a prática da cultura jongueira.
(Ribeiro, 2021, p. 25).

97
Como expressão de celebração, tradição e coletividade, a roda de Jongo é um lugar
da religiosidade, da dança e da brincadeira (Guerra, 2009, p. 3), elementos estes constituintes
de diversas culturas africanas. Para Sanfilippo (2011, p. 34), o Jongo é uma expressão que
resistiu e influenciou o nascimento de outras expressões afro-brasileiras.
No passado, era proibido a presença das crianças nas rodas de Jongo. O
entendimento era que a tradição exigia respeito e comprometimento, aspectos que só
poderiam ser conquistados através do tempo e da experiência. Outra questão a ser colocada é
que no Jongo havia muitos segredos ou mirongas, algo que as crianças e os jovens não tinham
idade para compreender (tais fundamentos). Assim, estes podiam ficar apenas observando
(André, 2004).
A não participação das crianças nas rodas de Jongo resultava em uma perda do
contato com a vivência da expressão jongueira entre as gerações, posto que o distanciamento
fazia com que os adultos não pudessem transmitir os fundamentos dessa expressão. Permitir
que as crianças participassem foi o que garantiu que o Jongo continuasse sendo preservado
através das gerações de jongueiros (Martins, 2021).
Não se sabe ao certo como se deu a transição da permissão de crianças e jovens
poderem adentrar nesta cultura (Martins, 2021). O que se houve falar é que mestre Darcy,
Mãe Joana e tia Maria do Jongo da Serrinha iniciaram um processo de ensino do Jongo para
as crianças e os jovens, pois os mais velhos estavam morrendo e com estas partidas o Jongo
também poderia morrer, então, entenderam que era preciso dar continuidade a esta expressão
e isso só deveria ser possível se as novas gerações aprendessem esse patrimônio. A partir
deste movimento, pudemos ver constantemente a presença das crianças e dos jovens nas rodas
de Jongo. 17 18 19 20
Na comunidade Jongueira de Tamandaré da cidade de Guaratinguetá, segundo André
do Jongo, as crianças e jovens começaram a participar das rodas na década de oitenta para que
assim o Jongo pudesse se manter vivo e reverenciado com uma tradição na cidade de
Guaratinguetá. 21
Ao se falar do Jongo, uma das palavras-chave é pluralidade, sendo esta vislumbrada na
dança dos corpos, dos pontos e das histórias de cada comunidade, o que reafirma a capacidade
dos negros de produção e transformação das culturais ancestrais africanas. Temos o Jongo do
17
(1095) Jongo com Mestre Darcy - YouTube.
18
(1097) Vovó Maria Joana Rezadeira fala sobre o jongo para o "Programa Arte de A a Z", da TV Educativa -
YouTube.
19
(1097) CULTNE - Jongo da Serrinha - Tia Maria do Jongo - YouTube.
20
(1097) Percursos da Tradição - Jongo da Serrinha - YouTube.
21
(1098) Tamandaré: A tradição do Jongo em Festa - YouTube.

98
Quilombo São José da Serra, de Pinheiral, de Quissamã, de Santo Antônio de Pádua, de
Piquete, de Campinas, de Barra do Piraí, de Angra dos Reis, de Campos, de Guaratinguetá, o
caxambu de Miracema, de Porciúncula entre outros.

[...] o jongo, nos diferentes contextos que é cultivado – periferias metropolitanas e de


pequenas cidades e comunidades rurais -, possui algumas variações quanto à sua
musicalidade, coreografia e simbologia [...] (Fernandes, 2012, p. 267).

A pluralidade que as comunidades de Jongo carregam é diversa e única. Todos os


esforços que os jongueiros e jongueiras esboçam devem ser reconhecidos, principalmente,
quando pensamos em todo preconceito racial, intolerância religiosa e repressão policial que a
classe dominante insiste em reproduzir. Apesar de todas as atrocidades causadas pelo sistema
colonizador e escravagista, os jongueiros e jongueiras de todo país resistem aos séculos de
opressão e marginalização.

Bandoleia jongueiro: os tambores, os pontos e a dança22

O Jongo é dançado ao som dos tambores, os quais estabelecem a comunicação com o


outro mundo: ele carrega a passagem dos antepassados que resistiram e que, por muitas
gerações, vêm transmitindo esse patrimônio cultural. Ao entrar na roda os jongueiros se
aproximam do tambor para tocar seu couro, pedir licença, se benzer e demonstrar respeito
(Monteiro, 2013, p. 6).
Os tambores encontrados nas rodas de Jongo são conhecidos como Caxambu ou
Tambu, que emitem uma sonoridade mais grave, enquanto o agudo recebe o nome de
Candongueiro. Tradicionalmente, a construção dos tambores se dá pela preparação de tronco
de árvore e couro de origem animal, os quais são fixados com pregos nas extremidades do
tronco devidamente preparado. Nas festas de Jongo, os tambores são levados diversas vezes
para perto da fogueira, pois ao longo da noite eles ficam úmidos, e dessa forma, acabam
perdendo sua sonoridade, e por isso precisam estar próximos ao fogo para serem afinados
novamente (Guerra, 2009, p. 3).
Os pontos de Jongo também fazem parte dessa vivência sociocultural. Eles
representam o poder da sabedoria e da poesia e se caracterizam por uma comunicação
metafórica, na qual as palavras entoadas precisavam ser decifradas para serem entendidas, o
que exige experiência para a compreensão de seus significados. Muitos pontos eram

22
Ponto de Jongo no Mestre Gil da Comunidade de Jongo de Piquete. Disponível em:
https://youtu.be/PxP3SA1LXzk. Acesso: 20 nov. 2022.

99
enigmáticos, ou seja, quem recebia um ponto tinha que desatá-lo. Conta-se a história que
antigamente, quando um jongueiro não consegue desatar o ponto, ele fica enfeitiçado,
podendo até mesmo desmaiar, perder a voz, perder-se na mata ou até mesmo morrer (Guerra,
2009, p. 3).
Os pontos de Jongo são caracterizados por frases curtas que trazem consigo as
experiências dos jongueiros com a natureza e com suas vivências cotidianas. Muitos são os
pontos criados de improviso, misturando o português com as heranças das línguas de origem
bantu (André, 2004; André, 2006).
Os pontos podem ser de abertura ou licença, louvação, visaria, demanda, encante e
encerramento, e cada uma dessas vertentes carrega um significado próprio. A abertura se dá
para iniciar a roda; a louvação é utilizada para saudar o local ou algum antepassado jongueiro;
a visaria para alegrar a roda; a demanda para o desafio entre os jongueiros, numa
demonstração de sabedoria; o encante era cantado para iniciar um ponto de enfeitiçamento e o
encerramento cantado para encerrar a festa (André, 2004; André, 2006; Monteiro, 2013).
Segundo Fernandes (2012, p. 268), “na poética musical dos jongos, a mesma palavra
que canta é aquela que encanta. Nos tempos de cativeiro, os pontos proferidos serviam de
estratégias de sobrevivência para os escravizados”. Ainda segundo a autora, era “uma das
poucas vias em que os negros podiam falar de si, por meio das cifras incompreensíveis para os
senhores e os capatazes, os escravizados se organizavam em fugas e rebeliões” (idem). “Essa
tradição poético-musical, se mantém viva — como uma fogueira que insiste em arder —
através da insistência dos jongueiros novos e velhos” (Fernandes, 2012, p. 266).
Quanto à dança, na tradição, é comum que na roda de Jongo ela seja realizada em
casal, com a presença de um homem e uma mulher no centro, embora possam existir
comunidades onde a dança aconteça com apenas uma pessoa ao centro ou de uma maneira
diferentes destas. Existem diversos passos e movimentos associados ao Jongo. Quando a
dança é realizada em dupla, costumam se orientar para as umbigadas, sendo esta uma
característica bastante presente em diversas danças afro-brasileiras. Além disso, também é
comum que a movimentação da roda de Jongo aconteça no sentido anti-horário, pois “dizem
os antigos jongueiros que a roda de Jongo gira ao contrário para enaltecer os que dela
participam e colocá-los mais próximos aos seus antepassados” (Monteiro, 2013, p. 4).
As vestimentas não possuem uma regra, mas comumente há a presença de cores
vibrantes e estampas, deixando o destaque para as saias das mulheres que são longas e
rodadas para evidenciar os giros que a dança do Jongo evoca (Monteiro, 2013, p. 4).

100
Outra característica do Jongo é a fogueira, sendo esta um símbolo africano que remete
a religiosidade, ao culto aos ancestrais (Fernandes, 2012).
Diante o exposto, afirmamos que o Jongo é uma expressão cultural de origem africana,
a qual deve ocupar o currículo escolar e assim oportunizar o aprendizado de valores
civilizatórios e ancestrais que nos tem sido negado há muitos séculos. A partir desta
compreensão, compartilharemos com o leitor uma experiência de abordagem do Jongo numa
perspectiva da Educação Antirracista e para a Educação das Relações Étnico-raciais (ERER).

Tem que ter jongueiro novo23

Tem que jongueiro novo, oh lerê


Porque o Jongo não pode acabar
Cada jongueiro novo que nasce
É um sol novo para raiar.
Cachuêra!
(Tem que ter jongueiro novo - Comunidade de Jongo Dito Ribeiro/Campinas, SP)

Entendendo a importância de uma Educação Antirracista e para a Educação das


Relações Étnico-raciais, elaboramos o projeto Qual a minha história? Relações Étnico-raciais
na Educação Infantil. Este faz parte de uma política da Pró-reitoria de Graduação da
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) de criar núcleos de ensino
para fomentar parcerias, estreitando o diálogo entre universidade e instituições educacionais
(secretarias, diretorias, escolas, ONGs etc). O projeto iniciou-se em 2020 e é desenvolvido em
uma escola municipal de Educação Infantil (EMEI), situada na cidade de Bauru no estado de
São Paulo. Participam do projeto a diretora da escola, sete professoras, três estudantes do
curso de Educação Física da Faculdade de Ciências da UNESP e profissionais de diferentes
áreas convidados a oferta suas contribuições.
Entre os objetivos do projeto está o de apresentar algumas expressões culturais
brasileiras de matriz africana. No caso específico deste trabalho, iremos relatar nossa
experiência com o compartilhamento dos saberes sobre o Jongo em dois momentos distintos:
o primeiro com a diretora e professoras e o segundo com as crianças.
Nossas reuniões acontecem mensalmente às segundas-feiras das 17:30h às 19:30h nas
dependências da escola. Nos meses de maio e junho abordamos o Jongo, seu contexto
histórico, sua musicalidade, corporeidade. Fizemos uma roda de Jongo, onde foi possível

23
Jongueiro Novo, ponto da Comunidade de Jongo Dito Ribeiro. Disponível em: Jongueiro Novo. Acesso: 04
nov. 2022.

101
dançar, entoar os pontos e tocar o tambor, neste caso um atabaque, pois não temos os
tambores oficiais do Jongo, Candongueiro e Tambu.
Para vivenciar o Jongo com as crianças, nós nos organizamos e conseguimos estar em
duas pessoas, sendo a coordenadora do projeto e um bolsista. Fizemos a vivência com quatro
turmas no período matutino e com três no vespertino. Brincamos o Jongo cantando os pontos,
dançando e tocando os instrumentos. Buscamos cantar os pontos de Jongos que falam sobre
elementos da natureza, como, por exemplo, mata, cachoeira, animais e, também, pontos que
fossem curtos e fáceis de aprender como o apresentado abaixo:
Quero ver pinto piando
Quero ver pintor piá
Em terreiro de galinha
Quero ver pinto piá
(Quero ver pinto piando – Comunidade Jongo Dito Ribeiro/Campinas, SP)

No mês de junho, a escola realizou a Semana de Arte Literária que, pela primeira vez,
homenageou uma escritora negra, a Sônia Rosa, que apresenta a literatura infanto-juvenil
numa proposição de colocar as personagens negras em situações cotidianas da vida e sempre
de maneira valorativa quanto à nossa raiz e ancestralidade africana. 24
De acordo com Debus (2017), a literatura negra carrega consigo a capacidade de
problematizar reflexões sobre práticas antirracistas para o universo da infância em diversos
espaços socioeducativos. É preciso ler e contar histórias que empoderam e humanizem,
portanto, essas não podem ser de uma origem única.
Partindo desta perspectiva, a escola destinou uma verba para a compra de vários títulos
da autora para que os livros pudessem ser trabalhados com as crianças, o que durou por volta
de dois meses.
Numa perspectiva de literatura viva, os livros saíram do papel e ‘ganharam vida’.
Imagem 1 – Armário com imagem da Sônia Rosa

Fonte: Acervo pessoal, 2022.


24
Semana de Arte Literária na Escola Municipal Francisco Gabriele Neto. Disponível em:
https://youtu.be/ii0mgo4J5dU. Acesso: 20 nov. 2022.

102
Cada espaço da escola (sala de aula, refeitório, jardim, quadras, paredes) trouxe alguns
elementos dos livros escolhidos pela equipe da escola (gestão, professoras e equipe estendida)
e pelas crianças como podemos ver nas imagens 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8. Toda a comunidade
escolar contribuiu na preparação do evento, inclusive familiares e nós do projeto Qual a
minha história.

Imagens 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 - Espaços da escola de acordo com elementos dos livros

Fonte: Acervo pessoal, 2022.

Dentre os dez livros escolhidos para a Semana de Arte Literária, esteva o Jongo; parte
de uma coleção chamada Lembranças Africanas que se constitui de pequenos livros sobre a
cultura afro-brasileira. O mesmo pode ser visto na imagem 9.2526

Imagem 9 - Capa do livro Jongo

Fonte: Acervo pessoal, 2022.

25
Contação de história, Jongo. Disponível: https://youtu.be/e_3FI7KsRTY. Acesso. 20 nov. 2022.
26
Além deste título, a autora escreveu O tabuleiro da Baiana, Capoeira, Feijoada e Maracatu.

103
Como forma desta obra literária ‘ganhar vida’, nós, do projeto Qual a minha história,
em parceria com o grupo cultural Pavio de Candieiro, fizemos uma roda de Jongo com as
crianças e professoras. Foi uma experiência maravilhosa! As crianças com saias, coletes de
chita, colares coloridos, flores no cabelo (feitos pelas mães em mutirão com a equipe escolar),
dançando, cantando e brincando o Jongo! A imagem 10 mostra alguns destes elementos
citados acima.27

Imagem 10 – Tambores, saias, flores e colares.

Fonte: Acervo pessoal, 2022.

A imagem 11 ilustra o início da vivência com o Jongo com as crianças na Semana de


Arte Literária.
Imagem 11 – Roda de Jongo com as crianças

Fonte: Acervo pessoal, 2022.

Na Semana de Arte Literária, o evento ficou aberto em um dos dias para que
familiares e demais convidados pudessem fruir tudo o que foi construído pela comunidade
escolar a partir do pressuposta da ‘literatura viva’, o que posse ser observado nas imagens 12,
13 e 14.

27
Pavio de Candieiro, disponível em: (3) Pavio de Candieiro | Facebook. Acesso: 20 nov. 2022.

104
Imagem 12, 13 e 14 – Visitação de familiares, amigos e convidados

Fonte: Acervo pessoal, 2022.

Apresentar as danças brasileiras na escola, como por exemplo o Jongo, contribui com
a construção de outras narrativas sobre as culturas afro-brasileiras e africanas no contexto da
educação escolarizada.

[...] dialogar a partir dessas práticas e de modo a compreender seus aspectos


pedagógicos, assim como verificar qual a contribuição que podem oferecer ao ensino
escolar da História da África e da Cultura Afro-brasileira, pode abrir caminhos para o
desenvolvimento de novas propostas educativas nas quais as populações negras
brasileiras, seus saberes e suas práticas sejam protagonistas (Mattos; Abreu apud
Fernandes, 2012, p. 262).

Introduzir as culturas afro-brasileiras de uma maneira valorativa, respeitosa e com


orgulho se faz necessário, posto que, o que temos ainda hoje são muitos preconceitos e
estereótipos voltados a tais culturas, o que ficou evidenciado quando algumas famílias foram
até a escola questionar a direção o porquê dos tambores na escola. A diretora e professora do
aluno, respaldadas por todas as discussões e reflexões tidas ao longo de quase dois anos do
projeto Qual a minha história, se posicionaram dizendo que o que estava sendo ensinado fazia
parte dos objetivos da escola, do currículo comum municipal para a Educação Infantil e da lei
10.639 (Brasil, 2002) que tornou obrigatório o ensino da história e cultura africana e afro-
brasileira em todas as instituições escolares públicas e privadas.
Acreditamos que para superarmos o racismo e praticarmos uma educação antirracista,
é importante buscarmos pedagogias que nos deem sustentação nos modos de ser e de
viver enraizados nas africanidades. Pedagogias que se enraízem nos corpos, jeitos,
afetos que junto com as leituras, palavras e reflexões nos ajudem a transgredir, a
transmutar esse projeto de educação racista (Silva; Montrone, 2020, p. 88).

É inegável a importância de assumirmos o dever de uma educação antirracista dentro


das escolas. É fundamental que gestores, educadores e equipe estendida tornem essa educação
— antirracista e também para as Relações Étnico-raciais — uma ação cotidiana e não apenas
em atividades descontextualizadas em datas comemorativas e festividades, pois “o ensino
alienante que é deslocado da realidade, pode colaborar com a continuidade da opressão e

105
consequentemente com a manutenção de uma lógica que privilegia um conhecimento em
detrimento do outro.” (Silva; Montrone, 2020, p. 99).
O Jongo, assim como outras expressões afro-brasileiras como a Caiumba, o Samba de
Bumbo, o Samba Paulista, a Congada, a Capoeira são modos de ser e de viver. “O Jongo é o
jeito, a maneira de estar no mundo, a maneira de se relacionar com o outro, a maneira de
ensinar e aprender, a forma de construir relações, de dar e receber, de falar, de se relacionar
no e com o mundo” (Silva; Montrone, 2020, p. 94).
Para Fernandes (2012, p. 272), o Jongo é “exemplo de prática que permite o
protagonismo da população negra, pois é símbolo de luta e resistência. Por isso, essa
expressão cultura afro-brasileira se mostra um próspero recurso para a autorrepresentação dos
povos negros nas escolas ou em outros e espaços”.
As comunidades detentoras destes saberes, são estes saberes! Por isso a necessidade da
oralidade que repassa, geração pós-geração, essa cultura, dos registros, dos
compartilhamentos e, imprescindível, as políticas públicas governamentais para fomentar, em
parceria público-privado, a continuidade destes saberes tradicionais.
Com seus fundamentos pautados na ancestralidade, nos tambores, na dança e na
palavra, o jongo resiste, educa e ensina, na medida em que século após século se
mantém vivo, preservando e reinventando as memórias, fazendo presentes e relevantes
os ensinamentos das mulheres e homens que já partiram. O Jongo é uma Prática Social
que se constrói nas relações entre pessoas e nas relações entre os diferentes grupos e
comunidades (Silva; Montrone, 2020, p. 94).

Infelizmente, nos currículos escolares brasileiros, ainda temos a predominância de


conhecimentos eurocêntricos. Há um discurso sobre a valorização da diversidade e
pluralidade cultural, mas o que vemos é uma tímida abertura para outras referências para além
do continente europeu. Para a superação deste currículo monocultural é preciso sermos
propositivos e conjecturarmos outras possibilidades de uma educação verdadeiramente
antirracista e para a Educação das Relações Étnico-raciais.
Quando trazemos a perspectiva da Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER)
para o contexto escolar, estamos combatendo o racismo cultivado por séculos em nosso país,
e para que esse mal seja superado “precisamos propor programas que visem combatê-lo,
“objetivando eliminar preconceitos, corrigir as desigualdades e formar cidadãos livres”
(Cavalleiro, 2001, p. 160).
O Jongo na escola é uma estratégia de resistência “contra uma educação que, muitas
vezes, tenta padronizar, homogeneizar, através de uma concepção monocultural de educação,
que utiliza o currículo escolar como um local de transmissão de uma cultura incontestada e
unitária” (Fernandes, 2012, p. 270).

106
As escolas são lugares propícios para a superação de discriminações cultivadas pela
sociedade brasileira ao longo da história (Silva, 2001). Precisamos de “currículos que deem
visibilidade à diversidade histórica e cultural de cada região brasileira, que contemplem a
história da África e dos afrodescendentes da Diáspora” (idem, p. 125). Elas devem se tornar
“um espaço de desenvolvimento e satisfação para todos os que lá estão presentes” (Cavalleiro,
2001, p. 141) e toda a comunidade escolar torna-se imprescindível nesta luta antirracista.
Acreditamos que “o/a educador/a bem preparado/a é um/a multiplicador/a de
informações corretas e um fator de alteração contumaz e poderoso das situações de
discriminação racial, especialmente no processo pedagógico de ensinar e aprender” (Silva,
2001, p. 70).
Para Romão (2001, p. 176):
participar efetivamente é o princípio imperativo da aprendizagem, é possibilitar que o
aluno tenha liberdade, autonomia e segurança para construir neste processo sua
identidade, considerando as relações que estabelece com a família, no grupo cultural,
étnico e social, mediado pelas relações que estabelece com outros grupos, sem com
isso significar a negação de seus referenciais.

Pensar uma Educação e uma escola livre de opressões é ter consciência de que isso
será um processo a longo prazo. Vivemos em uma sociedade que exacerba diversas formas de
normatividades: ser branco, ser rico, ser forte, ser magro, ser heterossexual etc. Contudo, é
preciso fazer um exercício de reflexão para compreender que essas normatividades
discriminam, marginalizam, oprimem e adoecem as pessoas, consequentemente, os diversos
grupos sociais que não se enquadram nos padrões preestabelecidos.
As práxis pedagógicas alicerçadas na perspectiva da Educação Antirracista e da
Educação para as Relações Étnico-Raciais intenta tornar os contextos escolares mais diversos,
acolhedores, afetivos, alegres e respeitosos. Isto significa a valorização da história de cada
criança, de suas ancestralidades, experiências, percepções e curiosidades, fortalecendo o
entendimento de que as crianças devem ser compreendidas, aceitas e respeitadas em suas
existências como sujeitos no mundo.
Para Fernandes (2012), as estratégias educativas adotadas pelas instituições escolares
“devem apontar para a capacidade criativa e criadora dos povos negros africanos, sejam eles
do continente ou da diáspora, assim como a capacidade dos mesmos de falar por/de si
(Fernandes, 2012, p. 261).
“O jongo, fruto da produção cultural de grupos subordinados e marginalizados, é a
prova viva da capacidade dos povos negros de se reinventaram a partir dos elementos da sua
própria cultura e dos materiais a eles transmitidos pela cultura dominante” (Fernandes, 2012,

107
p. 270) e por toda esta história de luta, resistência e transformação é que esta cultura deve ser
reverenciada por todos nós. A autora ressalta que “uma pedagogia, cuja proposta é tratar, com
seriedade, a História e a Cultura Afro-brasileira, com certeza, caminhará contrária ao
folclorismo ou extremismo, que trabalha no intuito da desvalorização de uma cultura tão rica
e diversificadas (Fernandes, 2012, p. 274).

Fechando a roda: vamos dar a despedida

O Jongo nos ensina sobre histórias de vida, corporeidade, musicalidade,


espiritualidade, respeito aos mais velhos, as crianças, ao tambor e muito mais. Jongo é raiz
africana! Jongo é identidade de povo preto! Jongo é existência e resistência! Jongo é
ancestralidade!
Com o projeto Qual a minha história? Educação das Relações Étnico-raciais na
Educação Infantil, esperamos estar contribuindo para um repensar e ressignificar o projeto
político pedagógico das escolas, bem como, as práxis pedagógicas presentes em tais
contextos. Nosso desejo é que tenhamos uma educação verdadeiramente plural, diversa e
crítica, para, assim, superarmos o racismo, o preconceito e a discriminação racial e fazer
emergir uma nova sociedade, sendo esta, equânime, igualitária, inclusiva que respeite todas as
possibilidades de ser, estar e viver este mundo.
Chegamos até aqui e agradecemos quem firmou com alegria, união,
compartilhamento e fortaleceu os valores ancestrais africanos neste prazeroso encontro. E
para fechar esta linda roda, vamos entoar um ponto da Comunidade Jongueira da Serrinha da
cidade do Rio de Janeiro/RJ:
A benção (benção de Deus)
A benção papai (benção de Deus)
A benção (benção de Deus)
A benção mamãe (benção de Deus)
A benção (benção de Deus)
A benção vovô (benção de Deus)
A benção (benção de Deus)
A benção vovó (benção de Deus)
A benção (benção de Deus)
A benção titia (benção de Deus)
A benção (benção de Deus)
A benção titio (benção de Deus)
A benção (benção de Deus)
A benção madrinha (benção de Deus)
A benção (benção de Deus)
A benção padrinho (benção de Deus)
A benção (benção de Deus)
Machado!
(Benção de Deus de Vovó Maria Joana – Jongo da Serrinha/Rio de Janeiro, RJ)

108
Referências

ANDRÉ, Marcos. Jongo do Quilombo São José da Serra (livro-CD). Rio de Janeiro: Associação
Brasil Mestiço, 2004.

ANDRÉ, Marcos. Jongos do Brasil (livro-CD). Rio de Janeiro: Associação Brasil Mestiço, 2006.

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século 21. Anais eletrônicos do XVI Congresso Brasileiro de Folclore. 2013.

RIBEIRO, Alessandra. Jongo e ancestralidade: salvaguarda e preservação sob o olhar dos


detentores. Campinas, SP: Associação do Jongo Dito Ribeiro, 2021.

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Jongo na Escola. In: CRUZ, Leocardia C. R. Educação das relações étnico-raciais: histórias, culturas
afro-brasileiras e africana. 1ed. – Veranópolis: Diálogo Freiriano, 2020.

109
ERER NA CRECHE: MEMÓRIA E AFETIVIDADE

Carla Santos Pinheiro


Doutoranda em Educação pela Universidade
Federal da Bahia.
[email protected]

Nanci Helena Rebouças Franco


Professora da Universidade Federal da Bahia.
[email protected]

Introdução

O projeto pedagógico “Memórias de Afeto” foi desenvolvido na Creche Maria


Ferreira entre os dias 30 de setembro a 20 de dezembro de 2021. Esse período compreende
não somente a realização das vivências geradoras de aprendizagem com as crianças atendidas
na instituição de Educação Infantil; mas também todo o processo de planejamento,
concretização e avaliação da proposta pedagógica.
O desenvolvimento desse projeto condiz com a transição entre a segunda e a terceira
unidades letivas da rede pública e municipal de um território de identidade pertencente a
Região Metropolitana de Salvador (RMS), na Bahia, ao qual a creche está vinculada, a saber:
o município de Lauro de Freitas. Com base no exposto, a abordagem pedagógica refletida
nessa rede de ensino indicava o fortalecimento em setembro de práticas didáticas que
respaldassem a Cultura da infância, assim como é perspectiva da rede, com enfoque, na
relação da criança com a natureza.
Para a terceira unidade, por seu turno, a temática Valores havia sido a eleita por essa
rede municipal na composição dos repertórios das ações pedagógicas com os bebês, com as
crianças bem pequenas e com as crianças pequenas — ou seja, nas creches, pré-escolas e
centros (municipais) de Educação ou unidades educacionais de Ensino Fundamental com
turmas de crianças matriculadas na primeira etapa da Educação Básica. Para tanto, algumas
literaturas foram sugeridas para a composição das sequências didáticas, dentre elas, aquela
que lastreou as ações do projeto pedagógico aqui apresentado, o livro “Rainhas” (texto da
Ladjane Alves Sousa3 e ilustração de Tamires Lima).
É importante mencionar que a Creche Maria Ferreira está situada no bairro da Itinga,
o mais populoso do município de Lauro de Freitas. Mesmo pertencendo, há mais de 20 (vinte)
anos, à dependência administrativa pública, essa unidade educacional é caracterizada como
uma instituição conveniada (ou alugada como há pouco tempo se habitua a denominar no

110
município) ao poder público. Neste empreendimento, esta creche vincula-se ainda à
Associação Beneficente do Amor à Criança – descrita junto à Receita Federal (RF) como
organização cuja atividade principal é a defesa de direitos sociais.
A comunidade escolar é composta por pessoas negras com nível socioeconômico
baixo como característica. Existem casos de famílias bastante numerosas composta por até 10
filhos/as, sendo que percebemos a responsabilidade das crianças ficando, maioritariamente,
especialmente no acompanhamento educacional, a cargo das mães, tias, irmãs e avós. Ou seja:
das mulheres.
A proposta pedagógica averiguada entende o currículo como a articulação entre a
teoria e a prática por meio da valorização dos saberes e dos conhecimentos de todos/as os/as
envolvidos/as no processo educativo. Assim, as construções tiveram por lastro a escuta
sensível através do respeito dos corpos e das vozes dos sujeitos. A expectativa de
compreensão dessas dinâmicas e engendramentos histórico-sociais que repercutem, até a
atualidade, no tecido social brasileiro foram também direcionamentos valiosos e potentes nas
elaborações da sequência didática aqui exposta.
O ponto de partida para a construção do projeto junto às famílias que integram a
comunidade da Creche Maria Ferreira, no que lhe concerne, teve como marco a perspectiva
de retomada das aulas presenciais para as duas turmas do grupo 3 (G 3) o qual é composto
por crianças entre 3 (três) e 4 (quatro) anos. Com isto, a gestão administrativa e
pedagógica realizou convite aos/às responsáveis legais por essas crianças para apresentar essa
proposição de retorno presencial a esse grupo etário e, consequentemente, dialogar sobre as
propostas pedagógicas para a terceira unidade.
Como uma das etapas da reunião, ocorreu a leitura e a reflexão da literatura “Rainhas”
como expediente para se pensar em um projeto pedagógico — até então com inclinação com
enfoque aos brinquedos e brincadeiras em perspectiva intergeracional em uma espécie de
intercâmbio quanto as brincadeiras mais comuns para as crianças de hoje em dia e aquelas
atividades lúdicas que são consideradas antigas e/ou do tempo dos adultos. Assim, dentre
outras expectativas, os eixos estruturantes das práticas pedagógicas da Educação Infantil, as
interações e a brincadeira, se confirmariam como substrato para o trabalho.
No processo discursivo acerca das memórias de infância por parte daqueles adultos,
como recurso que aproximaria a história literária apresentada à proposta para o projeto
pedagógico, ora o silêncio pelas responsáveis das crianças ali presente, ora o anúncio de não
ter o desejo de rememorar a infância dada às situações de negligência e constrangimentos que
sofria, por parte da primeira mãe que se pronunciou, marcou os rumos daquele planejamento.

111
O retorno às atividades presenciais não aconteceu. Assim envolvendo as outras
turmas, já que aquela reunião acontecera apenas com os responsáveis legais das crianças do G
3, várias atividades foram pensadas para a composição do projeto, das quais, a grande maioria
aconteceu em modalidade remota tais como: contações de história; o relicário da família
(com objetos afetivos); desenhos (de natureza diversas); interações com animais como os
bichos de estimação e; o intercâmbio de brincadeiras demarcadas como de diferentes gerações
entre outros vivências geradoras de aprendizagem. Nesta jornada, duas ações ocorreram,
especificamente com as crianças do G 3, e, em modalidade presencial. Assim, neste trabalho,
centraremos as reflexões para uma delas: a ação denominada como a construção de painel
interativo no muro da creche.
O projeto “Memórias de Afeto” é uma das 10 (dez) propostas finalistas do Prêmio
“Meu Pátio é o Mundo” – Edição 202228. É uma prática educativa que contou com a
colaboração de diversos/as parceiros/as durante todas as etapas — característica que
direcionou ao entendimento de comunidade com a inclusão de todos esses sujeitos. Neste
esteio, essa comunidade é composta ainda pelo Grupo de Estudos Relações Étnico-Raciais na
Educação Infantil (ERÊ)29, da Faculdade de Educação (FacEd) da Universidade Federal da
Bahia (UFBA) – coletivo que promoveu intervenções quanto à formação continuada das
docentes da creche no período do projeto dando, entre outros incentivos, mais robustez ao
arcabouço teórico-metodológico e conceitual dessa experiência pedagógica.
Em parceria com o ERÊ, as experiências dessa prática didática foram socializadas
nas ações do Projeto "Nô vá brinca, vamos brincar, ahi tlhangui? Catálogo de jogos e
brincadeiras africanas e afro-brasileiras" – ação coordenada pela Professora Doutora
Mighian Danae Ferreira Nunes e vencedor do Prêmio Equidade Racial na Educação Básica,
promovido, no ano de 2020, pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e
Desigualdades (CEERT). Através da ação coletiva e com vista a construção de espaços
intencionalmente engendrados para ser mais dialógicos, o projeto buscou-se intercambiar os
diferentes saberes e conhecimentos, pois, “Não existe aprendizagem sem solidariedade, sem
troca, sem afeto, sem cuidado, sem elogios, sem implicação consciente e responsável dos
adultos que estão à frente desse processo” (SANTANA, 2010, p. 21) — especialmente
quando o currículo, assim como preceitua as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Infantil, tem a criança como sujeito central da proposta pedagógica.
28
Ação coordenada pela Organização Mundial para a Educação Pré-escolar (OMEP) em parceria com o
Investimento Social da Arcor (ISA). Ver: <https://www.institutoarcor.org.br/projetos-selecionados-para-o-
premio- meu-patio-e-o-mundo-2022/>.
29
Coletivo coordenado por uma das autoras desse artigo e tem a outra autora como membro.

112
Ressaltamos que a parceria se estendeu a diferentes pessoas e coletivos como, por
exemplo, a autora da literatura “Rainhas”, o Fórum Municipal de Educação Infantil (FMEI-
LF), profissionais de outras instituições da rede de ensino como o/a auxiliar de classe Luane
Valesca Costa Sala e Jorge Guimarães, o Sindicato dos Trabalhadores em Educação da Rede
Pública Municipal de Lauro de Freitas (ASPROLF Sindicato), entre outros/as.
Dentre os fundamentos que serviram de arcabouço e direcionamentos ao projeto,
destacamos: os princípios civilizatórios afro-brasileiros, sistematizados por Azoilda Loretto
da Trindade com destaque à memória; os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS)
e; a afetividade como elemento mediador da aprendizagem. Nessa compreensão, o arcabouço
teórico, metodológico e conceitual dessa pesquisa exploratória conta com a produção dos/das
seguintes estudiosos/as: Cavalleiro (2005), Lima (2010), Santana (2010), Trindade (2010).
Este artigo de natureza qualitativa, de cunho bibliográfico e documental, tem ainda as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DCNERER) e as Sinopses Estatísticas da
Educação Básica do Censo Escolar da Educação Básica de 2021 como fonte de pesquisa e
componentes quanto aos referenciais teórico, metodológico e conceituais.
Considera-se que creches brasileiras conveniadas/alugadas ao poder público municipal
realizam práticas promotoras da igualdade racial. Entretanto, alertamos que tais unidades
educacionais estão situadas em condição bastante delicada devido às características que
anunciam a fragilização e até a precarização, como marcas imanentes ao processo sócio-
histórico desses estabelecimentos que, no que lhe diz respeito, é impulsionado pela omissão
do Estado brasileiro diante da garantia dos direitos educacionais aos/às bebês e às crianças
bem pequenas.

Memórias de afeto na educação infantil: princípios fundantes

O Projeto Memórias de Afeto, a princípio, não foi pensando para uma abordagem
centrada na dimensão afetiva e sim na construção da imagem positiva como integração de
gerações por meio dos brinquedos e brincadeiras — elementos que se entrecruzam, sobretudo,
em ações educativas com crianças negras em turmas de creche. Essa inclinação reafirma ainda
que a proposta curricular dessa creche está em consonância com as DCNEI, sobretudo, na
consolidação dos eixos estruturantes dessa etapa da Educação Básica, a Educação Infantil, na
(re)significação das identidades e memórias positivas que “ampliem a confiança e a
participação das crianças nas atividades individuais e coletivas” (BRASIL 2009, p. 4).

113
A concretização dessa proposta didática se articula ainda com os ODS por meio de
diferentes ações como as que “possibilitem situações de aprendizagem mediadas para a
elaboração da autonomia das crianças nas ações de cuidado pessoal, auto-organização, saúde
e bem-estar” (Ibidem, p. 4). Assim, as práticas do projeto convergem com os ODS, sobretudo
de número 3 (boa saúde e bem-estar); 4 (educação de qualidade); 5 (igualdade de gênero) e;
10 (redução das desigualdades) a fim de potencializar a educação para as relações étnico-
raciais (ERER).
O parecer das DCNERER nos adverte que “Para obter êxito, a escola e seus
professores não podem improvisar. Têm que desfazer mentalidade racista e discriminadora
secular, superando o etnocentrismo europeu, reestruturando relações étnico-raciais e sociais,
desalienando processos pedagógico” (BRASIL, 2004, p. 6). A fim de aprimorar o
conhecimento sobre as temáticas centrais do projeto, as docentes se organizaram para o
estudo mais detalhado de alguns assuntos, especialmente, atinente à questão racial e à
primeira infância que contou com a colaboração do ERÊ da FacEd/UFBA.
Em concordância com Patrícia Maria de Souza Santana (2010, p. 19), consideramos
que “Não silenciar diante de atitudes discriminatórias eventualmente observadas é outro fator
importante na construção de práticas democráticas e de cidadania para todos e não só para as
crianças”. Consideramos que a relevância do projeto incide em provocar impetuosas e
insurgentes rupturas no tecido social brasileiro a fim de aniquilar o racismo através da ERER.
Apesar de não se instituir como centralidade nessa produção, consideramos
conveniente alertar nessa produção acerca da atenção dada às instituições de Educação
Infantil brasileira que não se constituem como unidades públicas em espaços públicos.
Dizemos isto, pois, sabemos que o processo sócio-histórico de composição dos ambientes e
funções das instituições de atendimento à primeira infância brasileira nem sempre primou
pelo caráter educacional.
Ademais, em uma dinâmica em que a ruptura com o passado quanto a função dos
estabelecimentos de atendimento às crianças brasileiras insiste em não querer fazer parte da
história do tempo presente da creche em território nacional devido, especialmente, à
negligência do poder público, consideramos conveniente trazer uma breve contextualização
acerca do emblemático vínculo administrativo que caracteriza a instituição analisada.

Os vieses da dependência administrativa pública e o direito à ERER na educação


infantil

A fragilização quanto aos direitos educacionais dos bebês, das crianças bem pequenas

114
e das crianças pequenas em território brasileiro pode ter como exemplo o recente debate sobre
a responsabilidade do Estado quanto à matrícula na primeira etapa da Educação Básica que,
em setembro de 2022, esteve em votação no Supremo Tribunal Federal (STF) em decorrência
do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 100816630 — cuja relatoria coube ao ministro
Luiz Fux. Questão que, no que lhe concerne, é tema 548 de repercussão geral cuja
aplicabilidade da solução se dará a, no mínimo, a outros 28.826 (vinte e oito mil, oitocentos e
cinte e seis)31 processos que tramitam diferentes instâncias do poder judicial.
O viés higienista, compensatório e assistencialista por muito tempo ocupou a
hegemonia na arquitetura quanto à função dos espaços não privados de atendimento das
crianças, especialmente àqueles de atendimento aos bebês e às crianças bem pequenas, tendo
por algumas de suas consequências a dicotomia entre creche e pré-escola lastreada pelo
critério socioeconômico e a perpetuação no imaginário coletivo de que tais instituições não se
amparam em princípios éticos, políticos e estéticos e nem que as funções sócios-políticas e
pedagógicas sustentam a sua envergadura.
A ideia equivocada de que, em tempos hodiernos, as creches não têm definida sua
função sociopolítica e pedagógica é estrategicamente ressignificada pela insistente
negligência do poder público quanto ao cumprimento de suas atribuições.
Consideramos que a persistência de não legitimação das creches como instituições
educacionais mesmo após a promulgação de legislações e outros dispositivos 32 que
preconizam o direito da primeira infância à Educação e de diversas iniciativas por parte de
profissionais, ativistas e pesquisadores/as dessa área do conhecimento decorre de uma série de
fatores. Nesse conjunto de pressupostos, reiteramos que a atuação do Estado interfere de
maneira potente para a reverberação desse imaginário coletivo, tendo em vista que ao se tratar
da obrigatoriedade da Educação Infantil, a creche não faz parte do escopo das políticas
públicas.
Como ilustração à premissa da descaracterização da creche como ambiente
efetivamente importante para a garantia dos direitos educacionais da primeira infância, pela
30
Para saber mais, consulte: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?
idConteudo=494552&ori=1>.
31
Para saber mais, consulte:: <https://portalamm.org.br/supremo-decide-que-oferta-de-creche-e-pre-escola-e-
obrigacao-do-poder-publico/>.
32
Além das já mencionadas como as DCNEI e as DCNERER compete apontar algumas como: a Constituição de
1988; a Lei Federal no 8.069/90 – o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA); a Convenção sobre os Direitos
das Crianças (1990); a Lei Federal no 9.394/96 – a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) e;
Lei Federal no 13.257/16 – o Marco Legal da Primeira Infância, dentre outras.

115
perspectiva de alguns dispositivos ou organizações, trazemos a Meta 1 do Plano Nacional de
Educação (PNE), regido pela Lei Federal no 13.005/14, que preconiza sobre a Educação
Infantil, mais especificamente sobre a sua universalização.
Neste processo de cisão entre creche e pré-escola, referendada pelas dimensões
impressas na Meta 1 do PBE, a perspectiva é que, até 2016 (há seis anos), o atendimento de
crianças em idade pré-escolar fosse uma meta alcançada em 100% (cem por cento) enquanto à
creche competia o atendimento de, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) até o final da
vigência do PNE, em 2024.
Queremos dizer com isto que: não somos favoráveis à recorrente omissão do Estado
quanto à educação de qualidade para as crianças em idade de creche. Afirmamos que não
podemos inviabilizar os/as bebês e as crianças bem pequenas que são matriculados/as nas
creches brasileiras que não integram o escopo das unidades públicas em espaços públicos.
Independente de considerarmos as necessidades de superação das problemáticas
decorrentes das instituições de Educação Infantil públicas que não se caracterizam como
unidades educacionais em espaços públicos, não podemos perder de vista que os sujeitos
matriculados nesses ambientes não podem sofrer com mais esse preconceito: o de estigma e
silenciamento por pertencer à rede conveniada e/ou alugada ao poder público, como é o caso
das crianças atendidas na Creche Maria Ferreira.
Referente às planilhas mais recentes quanto à divulgação dos resultados do Censo
Escolar da Educação Básica pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira (Inep), as de 2021, em análise às informações sobre a dependência
administrativa das creches conforme as Sinopses Estatísticas da Educação Básica, há o
registro que dentre os/as 3.417.210 (três milhões, quatrocentos e dezassete mil, duzentos e
dez) bebês e crianças bem pequenas matriculadas nas instituições educativas que responderam
à pesquisa estatística, 2.396.032 (dois milhões, trezentos e noventa e seis mil e trinta e duas)
eram atendidas em unidades de ensino que pertenciam à dependência administrativa
municipal.
Com base na análise acima, concernente ao número de matrícula da creche regular no
Brasil, no ano de 2021, sabemos que 70, 1% (setenta inteiros e um décimo por cento) dos
bebês e das crianças bem pequenas estão sendo atendidas pelas redes públicas municipais.
Entretanto, os dados abertos dessa, que é conhecida como a maior pesquisa estatístico
educacional, não nos revelam nesse recorte quantas dessas crianças foram matriculadas em
instituições escolares públicas em espaços não públicos, os conveniados e/ou alugados ao
poder público.

116
O conhecimento empírico quanto ao contexto da rede pública municipal de Lauro de
Freitas/Bahia nos autoriza a anunciar que das mais de vinte instituições de atendimento
educacional a bebês e a crianças bem pequenas vinculadas à mencionada dependência
administrativa, apenas cinco funcionam em espaços públicos; de maneira que quase 80%
(oitenta por cento) desses estabelecimentos são conveniadas e/ou alugadas ao poder público.
A realidade retratada, ao nosso ver, não é especificidade do município de Lauro de
Freitas, já que o conhecimento do panorama quanto aos estabelecimentos de Educação
Infantil em nosso país revela que este cenário é extremamente corriqueiro.
Ciente de que a ausência dessas informações não condiz com a inexistência desses
espaços educacionais, arvoramo-nos a perguntar: quem são as crianças atendidas nas creches
conveniadas e/ou alugadas ao poder público municipal brasileiro? Invisibilizar essas
instituições nas abordagens sobre a implementação de práticas promotoras da igualdade racial
não é mais uma decisão política de exclusão das crianças matriculadas nesses ambientes?
Apesar dos anunciados pressupostos, não é nossa intenção responder nessa produção
essas inquietações. Informamos assim que as nossas convicções não coadunam com a defesa
de proliferação de convênios e ou aluguéis de instituições de Educação Infantil tampouco à
falta de planejamento estratégico para a integração nos ambientes educacionais públicos e em
espaços públicos das crianças já atendidas nos ambientes conveniados/alugados ao poder
público.
Queremos destacar que as creches conveniadas e/ou alugadas ao poder público são
ambientes que, assim como as públicas em espaços públicos, é ocupada por gente. Esses
espaços que sofrem com a omissão do Estado são também compostos por bebês e por
crianças bem pequenas, que assim como as atendidas nos outros ambientes educacionais, tem
vida, tem histórias, tem cultura, são sujeitos de direitos.
Além disto, os/as profissionais que atuam nas creches conveniadas e/ou alugadas
ao poder público não podem ter as suas práticas desmerecidas por meio da perspectiva
do silenciamento devido às características dos espaços em que são docentes. Esses sujeitos,
em sua maioria mulheres, seja quanto à docência ou aos outros cargos e funções
desempenhadas, agem empenhados quanto à garantia dos direitos educacionais das
crianças atendidas nos estabelecimentos em que atuam, apesar da grande ausência do Estado
em muito desses espaços.
Com base no exposto, esse artigo objetiva refletir sobre as práticas educativas
comprometidas com a ERER em uma creche baiana conveniada/alugada ao poder público
municipal. Apesar de a memória ter sido, dentre os valores civilizatórios afro-

117
brasileiros, sistematizados por Azoilda Loretto da Trindade como o princípio fundante para
o averiguado projeto pedagógico, entendemos que os outros valores que constituem esses
escopos (energia vital/o axé, oralidade, circularidade, corporeidade, musicalidade, ludicidade,
cooperatividade, religiosidade e ancestralidade) também atravessaram os itinerários dessa
proposta curricular como pode ser observado no decorrer do texto.

A promoção da igualdade racial em creche: reflexões sobre os procedimentos didático-


pedagógicos

As vivências geradoras de aprendizagens desenvolvidas na Creche Maria Ferreira


prestigiaram estar em consonância com os dispositivos legais que regem a Educação nacional,
assim como outras regulamentações que abarcam sobre as identidades (e seus
atravessamentos) dos atores e das atrizes sociais atrelados/as a esse ambiente educativo. Nesse
sentido, as leis que alteram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei
Federal no 9.394/96, em seu artigo 26, a fim de estabelecer a ERER, através da
obrigatoriedade do Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, Africana e Indígenas nas
instituições escolares brasileiras, ampararam essa proposta pedagógica.
É importante frisar que, ao se tratar da primeira etapa da Educação Básica em interface
com a questão racial, as práticas pretenderam assegurar o cumprimento de documentos que
convergem na expectativa de orientar quanto ao ser e fazer pedagógico desta etapa
educacional, dos quais destacamos: as DCNEI - instituída pela Resolução CNE/CEB no 05/09
e; as DCNERER - instaurada pela Resolução CNE/CP no 01/04. Nesse empreendimento, os
pareceres que servem de base a tais documentos são considerados nas práticas pedagógicas da
creche, dos quais destacamos o CNE/CP no 03/04, cuja relatoria foi da ilustre (e sempre
personalidade negra) Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva.
O Parecer CNE/CP no 03/04 destaca o papel da educação para ocasionar uma fissura
nesse sistema ancorado e gerenciador das hierarquizações entre os diferentes grupos, com
destaque ao quesito étnico-racial e nos revela que no Brasil para a implementação perene da
ERER "é necessário fazer emergir as dores e medos que têm sido gerados. É preciso entender
que o sucesso de uns tem o preço da marginalização e da desigualdade impostas a outros. E
então decidir que sociedade queremos construir daqui para frente” (BRASIL, 2004, p. 5).
Com vistas ao descrito, os procedimentos do projeto “Memórias de Afeto” visaram a
elaboração de caminhos em que os atores e as atrizes sociais pudessem atuar como partícipes
de todas as etapas, ser agentes que reflitam sobre a função sociopolítica e pedagógica dos
ambientes educativos de atendimentos aos/às bebês e às crianças bem pequenas e que elas

118
ponderassem acerca da transformação social como dinâmica que perpassa pelas identidades
individuais e coletivas.
Diante dos direcionamentos para a concretização das propostas pedagógicas,
averiguamos que as repercussões aconteceram nos estreitamentos dos laços de afeto, na
expectativa de que as marcas positivas acerca das experiências nos lares e na comunidade e
em outros ambientes de coexistência tivessem mais ressonância do que as intercorrências
negativas (rechaçando romantismo, pautados na negligência das desigualdades), na perspectiva
de desconstrução de estigmas e estereótipos sobre os grupos étnico-raciais alijados, no
processo sócio-histórico de formação da sociedade brasileira, dos espaços de poder e decisão,
tais como os pressupostos amparados em eixos de subordinação de idade e de gênero.
Dentre os vários exemplos de afetos instituídos no decorrer do projeto, há o de apoio a
mãe cuja filha é autista, de reflexões sobre os esforços para a garantia de direitos aos/as
filhos/as, de disponibilização a dar suporte a outra família, de repensar como construções
sociais (sobretudo o de mulher guerreira) direcionam as práticas sociais, naturalizando-as!
Além de debates sobre a relação cuidado do cabelo e de gênero, de maneira que meninas e
meninos (sobretudo negras/os) têm tratamentos bastante demarcados no tecido social
brasileiro, etc.
As participações ativas das crianças, mesmo em contexto de atividades pedagógicas
virtuais, buscaram incorporar ao projeto o que era suscitado por elas como relevante, como a
aproximação de seus adereços de cabelos às coroas das realezas na expectativa de reafirmar
que em determinados ambientes, sobretudo na família e na comunidade, caberiam sim ser
afirmadas e reafirmadas como membros da realeza – isso em condições saudáveis de
convivência, a que percebíamos condizente com as relações em seus lares.
A intencionalidade em um planejamento pedagógico que culmine na valorização das
vozes e dos corpos desses sujeitos ativos produtores de cultura é encaminhamento que permite
tanto que os/as bebês e as crianças bem pequenas quanto os adultos que com eles/elas
interagem revisitem o seu lugar nos espaços de coexistência servindo de substrato para a
reafirmação de sua imagem positiva.
Nesse empenho, o projeto “Memórias de Afeto” realizou diversas ações dos quais
destacaremos a construção do painel interativo no muro da escola assim como os seus
desdobramentos – atividade realizada em modalidade presencial com as crianças do G 3.

119
O Painel Interativo: dimensões da ERER em uma creche conveniadas

Patrícia Maria de Souza Santana (2010, p. 21), no ensaio “Um abraço negro: afeto,
cuidado e acolhimento na Educação Infantil” aponta que, para a efetivação de práticas
pedagógicas promotoras da igualdade racial, cabe às profissionais da primeira etapa da
Educação Básica “atuar para romper com os preconceitos, através de pesquisas,
levantamentos de informações sobre a comunidade local, assim como do contato com os
familiares das crianças, para permitir um maior conhecimento das suas histórias de vida”.
Quanto a essa premissa, refletiremos sobre os procedimentos atinentes à construção do painel
interativo no muro da Creche Maria Ferreira – uma etapa do projeto pedagógico “Memórias
de Afeto”.
A construção de painel interativo no muro da Creche Maria Ferreira resulta da junção
de algumas expectativas e ações do projeto, das quais elegemos mencionar: a representação
dos personagens e/ou elementos do enredo da literatura “Rainhas”; a valorização das
produções das crianças elaboradas do decorrer do projeto; consolidação de memórias afetivas
com destaque para as crianças que no próximo ano seriam matriculadas em outra instituição
por não mais estarem em idade de creche e, devido à pandemia do coronavírus, estiveram
afastadas das atividades presenciais da instituição por mais de quinze meses, e o
fortalecimento dos vínculos (e das memórias de afeto) entre as crianças e seu/sua familiar na
realização de uma ação que, talvez, não fizesse parte do seu cotidiano.
A escuta sensível quanto aos anseios e ações diárias da comunidade local em interface
com as propostas do projeto em questão foram perceptíveis de diversas formas. A fim de
evitar aglomeração, apesar de atenuadas as medidas quanto ao distanciamento social, a
instituição estruturou escalas de horário para que as crianças e as famílias pudessem
participar, sem um longo período de espera, da construção do painel interativo no muro da
creche.

120
Figura 1: Criança e sua mãe na pintura do muro

Fonte: Arquivo da creche (2021)

Para essa atividade, em específico, além do termo de autorização de imagem e livre


consentimento, os/as responsáveis legais autorizaram a participação das crianças do G 3 com
o material utilizado, já que, por se tratar de uso de tinta, a idade e possíveis alergias poderiam
ser fatores impeditivos. Mesmo antes dessa tomada de decisão, a proposição de se construir o
painel foi pensada em conjunto e, mesmo em termos financeiros, contou com a colaboração
voluntária da família e/ou comunidade.
Diante da conjuntura apresentada, quanto às proposições para que as crianças
pudessem ter acesso a um conjunto de experiências pedagógicas, a instituição recorreu às
ligações telefônicas para os/as seus/suas responsáveis das crianças do G 3, como uma das
alternativas para conhecerem mais de perto suas especificidades para que juntos/as pensassem
em caminhos em que a efetiva participação no processo educativo fosse uma realidade mais
próxima da idealizada.
Essa medida de contato individual com os/as familiares das crianças pequenas do G 3
da Creche Maria Ferreira, em 2021, visava, de certo modo, superar as intercorrências
recrudescidas pela pandemia do coronavírus, sobretudo acerca das desigualdades sociais, já
que nem todas as famílias dispunham de acesso à internet para estar à par de todas as
proposições didáticas do projeto. Cremos que foi uma tomada de decisão muito importante,
especialmente, pelo sentimento de valorização que as pessoas revelavam a partir desses atos.
Ações como marcação de mais de um horário ou de participação em momentos não
corriqueiros ao atendimento educacional, como o final de semana, foram alternativas
declaradas àqueles/as que não se adaptavam ao definido pela maioria à pintura do muro.

121
A referida proposta contemplaria, por exemplo, um pai que queria que seu filho
participasse, mas não poderia, já que ele fora contratado recentemente por uma empresa e sua
companheira estava no pós-parto. Essas implicações, consideraram ainda as especificidades
de uma criança autista e das condições de trabalho de sua progenitora.

Figura 2: Criança e seu pai na pintura do muro

Fonte: Arquivo da creche (2021)

Heloísa Pires Lima (2010, p.87), no artigo “A percepção das relações raciais na
Educação Infantil”, afirma que “O brincar integra a experiência de reconhecimento de si e do
outro no mundo”. A atuação para que as interações e as brincadeiras, assim como delibera as
DCNEI, se estruturassem como eixos que direcionam as práticas pedagógicas nas instituições
de Educação Infantil, que fosse substrato do repertório lúdico-infantil para dialogarmos sem
arestas sobre as relações étnico-raciais e o papel da escola diante desse cenário.
Em consonância com o pensamento da supracitada autora, o reconhecimento
elaborado a partir da destacada reciprocidade resulta na “aprendizagem que irá coordenar,
sintetizar, relacionar diferentes percepções. Todavia, essa apreensão não é neutra, pois se
interrelaciona com diversos contextos” (Ibidem, p. 87).

122
Figura 3: Criança pintando o muro: dimensões do brincar

Fonte: Arquivo da creche (2021)

Ciente de que o afeto e a memória são dimensões e capacidades humanas que


oportunizam conectar pessoas, despertando nelas sensações e emoções que poderiam
suplantar o contexto sombrio em que a humanidade estava vivendo, impresso em seus
cotidianos, pelos fatos decorrentes da pandemia da COVID-19 e dos outros processos
destacados, a Creche Maria Ferreira entendeu a importância quanto ao fortalecimento de
lastros sobre o desenvolvimento emocional a partir de resgate e construção de memórias
afetivas em âmbito familiar, educacional entre outros ambientes de coexistência.

Considerações finais

A motivação principal para a realização do projeto diz respeito ao fomento da


cristalização de memórias positivas que pudessem interferir na formação pessoal e social de
todos/as os/as envolvidos/as no processo educativo, sobretudo, como formas de que se
autorizassem como sujeitos para o gerenciamento de suas vidas e na intervenção contra as
posturas contrárias à equidade racial e de gênero.
A metodologia de privilegiar a efetiva relação escola/família e comunidade de forma
em que todos/as os/as participes se reconhecessem como construtores do projeto permitiu que
reflexões acerca dos projetos de vida e da importância do autoconhecimento e do autocuidado
se fizessem recrudescentes no projeto.
Quanto aos principais aprendizados — resultados e transformações impulsionadas
pelo projeto pedagógico averiguado — consideramos que as crianças agiam de maneira mais
participativa e com anseio de falar de si, ao passo que respeitavam as falas das outras pessoas
(crianças e adultos), expressaram-se por meio de diferentes linguagens, exploraram diferentes

123
portadores, demonstraram que o brincar e a interação fazem parte de sua constituição como
criança e ser humano.
O projeto gerou impactos pessoais, sociais - incluindo a organização institucional, já
que, as interações nos grupos tornaram-se mais dinâmicas, contando com a participação das
crianças e da docente; também, de outros sujeitos, intensificando as trocas de mensagens,
especialmente, de incentivo e de declaração de afeto.
Consideramos com isto que as creches brasileiras conveniadas/alugadas ao poder
público municipal realizam práticas promotoras da igualdade racial, entretanto, estão situadas
em condição bastante delicada devido às características que anunciam a fragilização e até a
precarização como marcas imanentes ao processo sócio-histórico desses estabelecimentos.
Essa realidade permeada por agruras que atravessa o processo social da creche ainda
no tempo presente é impulsionada pela omissão do Estado brasileiro diante da garantia dos
direitos educacionais aos/às bebês e às crianças bem pequenas. Todavia, como sempre
ocorreu no processo sócio-histórico do atendimento a esses sujeitos de direitos no Brasil, há
indivíduos e coletivos que, por meio das diferentes atuações, buscam possibilitar que o
desenvolvimento íntegro e integral dessas crianças, conforme preconizam a LDBEN, consolide-
se efetivamente.

Referências

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educação nacional. Diário Oficial da União. Brasília, 21 dez. 1996. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm>. Acesso em: 14 nov. 2018.

BRASIL. Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a lei n. 9.394, de 20 de dezembro de


1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro- -
Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 jan. 2003.

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CP nº 3,


de 10 de março de 2004. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Relatora:
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva. Brasília: CNE/MEC, 2004. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/res012004.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2018.

BRASIL. Resolução CNE /CEB nº 5, de 17 de dezembro de 2009. Diretrizes Curriculares


da Educação Infantil. Brasília, 2009.

CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Introdução. In.: Educação anti-racista: caminhos


abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade, 2005. p. 11-18. (Coleção Educação para todos).

124
INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO
TEIXEIRA. Sinopse Estatística da Educação Básica 2021. Brasília: Inep, 2021. Disponível
em <http://portal.inep.gov.br/sinopses-estatisticas-da-educacao-basica>. Acesso em: 30 de
set. 2021.

LIMA, Heloísa Pires. A percepção das relações raciais na Educação Infantil. In.: organização
Ana Paula Brandão, Azoilda Loretto da Trindade. Modos de brincar: caderno de
atividades, saberes e fazeres. p. 87-90. Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho, 2010. (A
cor da cultura; v.5).

PARTICIPAÇÃO DA ASPROLF no projeto da professora Carla Pinheiro na Creche Maria


Ferreira. Fórum Baiano de Educação Infantil (FBEI).
https://www.facebook.com/groups/377431185648600/permalink/4777265352331806/ Acesso
em: 20 de maio de 2022.

PROJETO Memórias de Afeto tem como inspiração o livro Rainhas. ASPROLF. 02.12.2021.
Disponível em: https://asprolf.org/projeto-memorias-de-afeto-tem-como-inspiracao-o-livro-
rainhas/ Acesso em: 20 de maio de 2022.

SANTANA, Patrícia Maria de Souza. “Um abraço negro”: afeto, cuidado e acolhimento na
Educação Infantil. In.: organização Ana Paula Brandão, Azoilda Loretto da Trindade. Modos
de brincar: caderno de atividades, saberes e fazeres. p. 17-22. Rio de Janeiro: Fundação
Roberto Marinho, 2010. (A cor da cultura; v.5).

SOUSA, Ladjane Alves. Rainhas. In.: Ilustrações de Tamires Alves. Salvador: EDUFBA,
2018. 24p.

TRINDADE, Azoilda Loretto da. Valores civilizatórios afro-brasileiros e Educação Infantil:


uma contribuição afro-brasileira. In.: organização Ana Paula Brandão, Azoilda Loretto da
Trindade. Modos de brincar: caderno de atividades, saberes e fazeres. p. 17-22. Rio de
Janeiro: Fundação Roberto Marinho, 2010. (A cor da cultura; v.5).

125
AQUILOMBANDO A INFÂNCIA OU POR UMA EDUCAÇÃO
ANTIRRACISTA DAS CRIANÇAS PEQUENAS

Débora Augusto Franco,


Professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro
[email protected]

Aline Moraes da Costa Lins,


Professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro
[email protected]

Ana Clara dos Santos Silva,


Bolsista Jovens Talentos FAPERJ - Instituto
Federal do Rio de Janeiro
[email protected]

Introdução

Este trabalho foi apresentado por uma das autoras do presente artigo durante o XII
Congresso Brasileiros de Pesquisadores/as Negros/as — XII COPENE — “Democracia,
Poder e Antirracismos: avanços, retrocessos legais e ações institucionais”, evento que ocorreu
entre os dias 11 e 15 de setembro de 2022 e que contou com formato híbrido. No XII
COPENE, fizemos uma apresentação oral, em formato remoto, na Sessão Temática - ST 24 -
intitulada “Infâncias, pedagogias e relações étnico-raciais: possibilidades e desafios para a
educação infantil antirracista nos 20 anos da Lei 10.639/2003”, coordenada pelos professores
Otávio Henrique Ferreira da Silva (Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG) e
Moussa Diabate (Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – FEUSP). Na
ocasião, discutimos uma ação de Extensão junto ao Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), um Projeto de Extensão entre os campi Pinheiral e Volta
Redonda.
O presente artigo, portanto, é resultado parcial do projeto de extensão intitulado
"Aquilombando a Infância ou por uma educação antirracista das crianças pequenas",
desenvolvido junto ao Instituto Federal do Rio de Janeiro (campus Pinheiral/Volta Redonda),
cujo objetivo é promover estratégias de promoção da educação antirracista para a educação
infantil em espaços não-formais de educação. Para isso, partimos das noções de
aquilombamento e de mulherismo africana com a finalidade de resgatar a coletividade
ancestral dos processos de socialização do continente e da diáspora e, com isso, produzir
dispositivos de desmonte das lógicas coloniais e individualistas, características da educação

126
ocidental/ocidentalizada. O mulherismo africana, de acordo com Hudson- Weems (2021),
nesse sentido, serve para pensarmos o senso de comunidade e coletividade característicos de
muitas etnias africanas e que é inspiração para os encontros produzidos em nossas Rodas de
Conversa, a partir desse projeto de extensão. Com a metodologia das rodas de conversa, são
feitas reflexões coletivas e participativas sobre as práticas de cuidar na espiritualidade de
matriz africana, trazendo o contexto da resistência negra, os valores que se apresentam nos
saberes dos terreiros, o acolhimento, o aquilombamento, a coletividade, a comunidade e o
lugar desses saberes ao longo da história da resistência negra no Brasil. Entendemos que as
religiões de matriz africana constituem modos de cuidar e de garantir o direito à diversidade
de estilos de vida e à singularização, o que implica na capacidade de promover o diálogo entre
diferentes saberes e, com isso, produzir novas epistemologias para a formação humana e a
socialização das infâncias. Considera-se, ainda, a potência das infâncias no deslocamento das
bases estruturais racistas e da branquitude. Nesse sentido, buscamos com esse projeto
construir caminhos não formais de educação antirracista.
Para alcançar esse objetivo, foram realizadas duas rodas de conversa direcionadas a
mulheres, cuidadoras, mães e profissionais de saúde e educação interessados nos temas das
infâncias e da educação antirracista como dispositivos de educação formal e não formal para
crianças pequenas. Observamos que os atores envolvidos no trabalho formal em educação
experimentam os desafios de articular as ações de implementação da Lei 10639/2003 (Brasil,
2003) nas escolas em que atuam e, com isso, problematizar a fragmentação dos processos de
formação para uma educação étnico-racial também na escola. Observamos, ainda, entre mães,
cuidadoras e profissionais de saúde, a dificuldade de acessar materiais didáticos que
contribuam com a tarefa de formar crianças antirracistas, especialmente na primeira infância.
Entendemos, a partir do dispositivo metodológico das Rodas de Conversa, que trabalhar com
o ensino da cultura africana e afro-brasileira é investir na formação humana como um todo,
provocando transformações subjetivas que afirmam os processos formativos como estratégias
de cuidado e fortalecimento entre os atores envolvidos nas práticas educacionais.
As ações do projeto de extensão trabalham o tema da educação antirracista para
crianças pequenas como estratégia de enfrentamento do racismo institucional e estrutural
desempenhadas tanto por trabalhadores da educação formal e não formal, assim como por
trabalhadores da saúde e da assistência social que atendem crianças e suas famílias ou, ainda,
por mães, mulheres e cuidadoras/cuidadores preocupados com a formação de uma geração
antirracista. O projeto de extensão vem sendo desenvolvido desde o ano de 2021 nos
municípios de Volta Redonda e Pinheiral, interior do Estado do Rio de Janeiro.

127
O projeto nos convoca, na condição de docentes, pesquisadoras e bolsistas do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), à participação também
como grupo de estudos, cujos encontros ocorreram quinzenalmente, no ano de 2021, em que
foram feitas as discussões sobre o tema do racismo no campo da educação para a infância,
bem como as reflexões sobre a inserção de docentes, pesquisadores e alunos no plano de
experimentação das práticas de educação antirracista para a infância. Essas ações são
realizadas em conjunto pelos campi Pinheiral e Volta Redonda e estão amparadas por um
Projeto de Extensão “Aquilombando a Infância ou por uma educação antirracista das crianças
pequenas”, em (PROEX/IFRJ), em curso desde 2021.
De modo geral, as atividades de extensão têm o objetivo de promover ações
comunitárias e, nesse trabalho, de apoio à educação antirracista na primeira infância que
fortaleçam as redes de trabalhadores da educação, assistência social e saúde, assim como as
redes apoio e de cuidado à infância, em especial, às mulheres e mães que maternam,
entendendo educação como cuidado. Por outro lado, nossas ações também se voltam para a
implementação da Lei 10639/2003 (Brasil, 2003) na Educação Básica, a partir de atividades de
Desenvolvimento Acadêmico que estão relacionadas à formação dos alunos bolsistas,
inserindo-os na experimentação dessas ações de apoio, que visibilizam as articulações entre
teoria e prática, refletindo sobre a implementação da Lei 10639/2003 nas políticas públicas e
compreendendo as práticas de cuidado e formação integral das crianças.
O papel do Instituto Federal, nessa experiência, é amparar, tanto em teoria como em
campo, a construção do apoio à educação antirracista como uma direção de trabalho e
formação no território. Bolsistas e professoras, então, realizam uma revisão bibliográfica, para
ampliar a compreensão do tema educação para as relações étnico-raciais na primeira infância,
além de vivenciar o desenvolvimento de ações de educação formal e não formal, assim como
elaborar os relatos empíricos e analíticos sobre o acompanhamento das práticas em curso.
Nesse sentido, nossa experiência contribui para a qualificação das relações de trabalho entre
educação formal e não formal.
Além de acompanhar os trabalhadores e cuidadores da educação infantil como
formação, um dos objetivos do projeto é também fortalecer a vivência dos estudantes na
educação pública, enfatizando a formação integral do educando na interface academia-rede de
apoio educacional e, com isso, apostar na formação humana integral e integrada aos princípios
das Leis 10639/2003 (Brasil, 2003) e 11645/2008 (Brasil, 2008) e fortalecer, assim, práticas
antirracistas e de diversidade dentro e fora da escola. Nesse sentido, não dissociamos o
cuidado da dimensão política das práticas em educação. Assim, entendemos que uma educação

128
aquilombada para as infâncias também se expressa como um dispositivo de cuidado em saúde
coletiva, ao passo que o paradigma da afrocentricidade e dos saberes da diáspora é alçado ao
protagonismo e, com isso, contribui para a produção da equidade racial e para o enfrentamento
do epistemicídio provocado pela centralidade dos saberes ocidentais, os quais permeiam as
escolas e a educação, formal e não formal, assim como os currículos institucionais e os modos
de vida e de compreensão de si e do mundo. Para Nobles (2009), as discussões sobre racismo
não têm articulado o sentido de ser africano, de ser negro e de ser negra na perspectiva
africana e/ou afro-brasileira, bem como seus significados psicológicos a partir dos saberes não
ocidentalizados. Para o autor, é importante compreender o uso e a origem das teorias que se
engendram no respeito aos processos psicológicos africanos; e não nos processos ocidentais
que forjam diferentes ontologias da existência.
Em nosso projeto de extensão, os alunos, bolsistas ou convidados, envolvem-se com as
discussões e as ações de educação entendidas também como cuidado em saúde mental das
crianças pequenas e suas famílias, no território, entrando em contato com o cotidiano e
também com as tensões constitutivas do debate sobre racismo, branquitude e afrocentrismo.
Um dos efeitos dessa jornada é a compreensão do cuidado afrocentrado como função de uma
educação antirracista e de toda a rede de educação, e não exclusiva dos serviços formais de
educação, por exemplo.
Atualmente, a ação de apoio que desenvolvemos é aberta às escolas públicas e privadas
dos municípios de Volta Redonda e Pinheiral, com participação livre de trabalhadores da
educação, mas também da saúde e da assistência social. Estabelecemos que, de acordo com o
interesse dos serviços, o grupo formado por docentes e por uma aluna bolsista poderá visitar
uma unidade, onde discutiremos, por meio da tecnologia da Roda de Conversa, um debate
sobre aquilombamento da educação/formação antirracista das crianças pequenas.
Nesses momentos, ocorre a construção coletiva de trabalho de encontrar estratégias de
enfrentamento do racismo institucional que já se faz presente na formação das crianças,
buscando estimular as trocas de saberes e experiências de aquilombamento das infâncias por
meio de perspectivas afrocentradas, potencializando os vários olhares, criando um espaço no
qual o educador possa olhar para o que faz e para o modo como acolhe as infâncias em
desenvolvimento. Com esse procedimento, espera-se que possa entender a importância da
educação antirracista nos primeiros anos de vida, reconhecendo, a partir do cotidiano de
práticas e da problemática do racismo institucional e estrutural, refletir sobre as nossas ações,
intervindo sobre elas para criar estratégias de cuidado que encontrem nas culturas negra
brasileira e afrocentrada, o entendimento das raízes coloniais na formação da sociedade

129
nacional e, a partir disso, buscar resgatar a contribuição do povo negro na formação do Brasil
de hoje, contribuindo para a produção de representavidades negras positivas e,
consequentemente, para a pluriversalidade de existências, de modos de existir. Dessa forma, a
educação antirracista na infância funciona como ferramenta capaz de enfrentar o racismo.
Em concomitância com as ações territoriais, visamos conduzir relatórios das Rodas de
Conversa, momento em que o grupo se debruça sobre as questões que apareceram em ato.
Analisamos, nesse ponto, que o campo de ação do enfrentamento do racismo coloca-se como o
espaço onde docente, estudantes e pesquisadores atuam como trabalhadores- pesquisadores;
pois entendemos que teoria e prática não se opõem, mas se colocam como elementos dessa
experiência pública de construção de estratégias de cuidado e educação na formação
antirracista.

O campo teórico e as experiências

Para sustentar a aposta de trabalhar o aquilombamento da infância a partir de


dispositivos de educação antirracista nos municípios de Pinheiral e Volta Redonda,
buscamos algumas referências que orientam nossas incursões pelo campo de práticas.
Pensando, então, de acordo com Fanon (2020), em “Pele negra, máscaras brancas”, e,
neste caso, com o autor tratando da colonização francesa em terras martinicanas, compreende-
se que o povo negro se encontra em sofrimento psíquico em função das atrocidades e do terror
da violência da colonização, da dominação, da exploração social e econômica e da violência
racial e, aqui, entendemos que a reflexão de Franz Fanon pode servir como um dispositivo de
análise do colonialismo brasileiro. No Brasil, fatores muito complexos, como apagamento de
saberes e de territórios, bem como os entrecruzamentos do racismo estrutural, produziram
uma lógica e organização educacional que permanece assentada nos princípios fundantes
ocidentais, que são, por sua origem, pautados numa cultura de violência racial, enquanto o
currículo se apoia na transmissão dos saberes ocidentais, que, no que lhe concerne, criou a
ideia do homem branco como um universal. Nessa lógica, o branco é visto como expressão
universal de humano, e o negro como expressão da natureza e da emoção, adquirindo um
lugar de especificidade, seja na cultura, seja nos processos de escravização, seja no debate
racial. Para Fanon (2020), há um processo de fixação do negro como não humano e do branco
como expressão única e universal de humanidade, no qual o negro é objeto; e o branco,
sujeito. Essa situação colonial coloca o negro, também, muitas vezes, no lugar de ameaça ao
mundo branco e aos seus privilégios. A suposta ameaça é o que garante, justifica e sustenta a

130
“necessidade” da eliminação do povo preto, sempre a partir de suportes institucionais, como
nos dispositivos de segurança pública, de encarceramento e de morte.
Nosso projeto de extensão nos encaminha a pensar o modo como a história do povo
preto vem sendo contada às crianças pequenas, em seus livros infantis, em rotinas
institucionais e de aprendizagem. Quem seriam os universais das histórias infantis?
Entendemos que há uma necessidade de produzir uma fissura na estrutura e nos modos de
ensino- aprendizagem a partir da primeira infância e que a luta anticolonial, na educação
formal e não formal, pode e deve ser pensada a partir de autores e interlocutores de
pedagogias insurgentes e pluriversais, como Paulo Freire (2018; 2020) e, também, a partir de
uma leitura inspirada em Fanon (2020). Outrossim, Fanon traz contribuições fundamentais
para as análises acerca do sofrimento psíquico da população negra, como, por exemplo, os
estudos dos efeitos do racismo na construção da subjetividade do povo preto que,
experimentando a vida permeada por uma cultura branca que o desumaniza, vivencia um
processo de identificação com o branco e, com isso, aparta-se de sua realidade concreta. No
Brasil, consideramos a população negra como sendo a maioria das pessoas que experimentam
a vida em territórios periféricos, onde a violência colonial opera como um dispositivo ético de
opressão e exclusão. Para nós, autoras, o enfrentamento da violência colonial precisa começar
nas escolas, numa aposta anticolonial, tal como proposto por Paulo Freire (2018), em sua obra
“Pedagogia do Oprimido”, em que o autor destaca que a atitude anticolonial é expressa no
processo de descortínio do posicionamento epistemológico colonialista e na denúncia das
racionalidades privilegiadas, forjadas em detrimento de outras culturas. A anticolonialidade
implica, portanto, uma atitude de denúncia das práticas institucionais preconceituosas de raça,
de classe e de gênero dentro e fora da educação formal. Implica a denúncia das condições de
luta dos trabalhadores camponeses, do genocídio dos povos originários e da arrogância da
branquitude na sociedade brasileira. Em “Pedagogia da esperança”, Freire (2020) afirma que
o medo do oprimido é o que o impede de lutar. Um medo que não significa abstração, mas
concretude na vida cotidiana das pessoas. É um medo causado por motivos concretos, os
quais impedem a autonomia.
Aprendemos uma pedagogia insurgente e aterrada a partir dos textos de Muniz Sodré
(2019), em “O terreiro e a cidade”, quando o autor nos indica uma epistemologia do Axé, que
considera o terreiro como um lutar-território geográfico e subjetivo de formação e
socialização, de cooperação e de comunidade. Nessa perspectiva, entendemos a importância
da produção epistemológica também de Luiz Rufino e Luiz Antônio Simas (2019), em “Fogo
no Mato: a ciência encantada das macumbas”, que nos apontam que os processos educativos

131
enredados com as formas de sociabilidade do terreiro ampliam o nosso olhar sobre educação
como diversidade, o que significa reconhecer a característica do saber como inacabado, e da
dúvida como um caminho pluriversal de formação, educação e escolarização. A dúvida atua
como um princípio ético, já que a certeza e o universal dificultam o acesso a novas
experiências, a novas rotas de aprendizagem. Para os autores, é na lógica de uma
epistemologia das macumbas que a condição de não saber se faz necessária à educação
compreendida pela experiência, pelo conhecimento a partir da vida e da arte. Ou como afirma
Rufino (2019), em “Pedagogia da Encruzilhadas”, é um chamado para que as epistemologias
aquilombem suas construções teóricas e, consequentemente, as nossas práticas formativas,
muito mais por uma via ético-estético- política de descolonização da lógica educacional
eurocentrada que por um manual de capacitação pedagógica. Uma pedagogia das
encruzilhadas implica uma educação que se lance como encantamento e responsabilidade com
as vidas, com as infâncias e com as juventudes negras e periféricas, frente às violências
operadas pelo racismo, pela pobreza, pela marginalização e pelo colonialismo. É a partir
desses autores que entendemos a importância da pedagogia dos Orixás, que nos ensina que
Exú é uma resposta enquanto dúvida, um dispositivo de transformação social e, por isso, de
educação e formação como atos revolucionários.
Entendemos a educação como cuidado e formação integral, algo que se estabelece nas
experiências de vida e comunidade, não apenas no percurso de escolarização. Nesse sentido,
entendemos que uma educação antirracista precisa ser inspirada a partir de práticas de
aquilombamento e de produção do comum, com referência à produção subjetiva e social que
queremos para as infâncias encontrada nos estudos sobre o Mulherismo Africana. Nessa
perspectiva, entendemos o Mulherismo Africana como uma política de cuidado em educação.
O termo Mulherismo Africana foi cunhado em 1987 por Clenora Hudson-Weems (2020) e
estabelece a identidade cultural e ancestral das mulheres africanas e da diáspora. O
mulherismo surgiu também em oposição ao feminismo europeu, entendido como um termo
conceituado e adotado por mulheres brancas e que implica uma agenda projetada para atender
às necessidades e demandas desse grupo em particular, não respondendo, portanto, às
necessidades não apenas das mulheres negras, mas também do povo preto do continente
africano e das diásporas. Nesse sentido, o conceito de mulherismo destaca o aspecto da
complementaridade na relação feminino-masculino ou na natureza do feminino e do
masculino em todas as formas de vida (não hierárquica), bem como a necessidade de luta
coletiva do povo preto.

132
Para Nah Dove (1998), o conceito de mulher e mãe ultrapassa as relações de gênero e
consanguinidade e implica uma responsabilidade de condução espiritual e cultural da vida,
sendo ela o centro da organização social e das responsabilidades comunitárias, que também
envolvem as políticas de cuidado, como as que destinamos às crianças pequenas. Para Dove
(1998), é preciso abordar a cultura como uma arma de resistência e reorientação dos povos e,
para isso, é preciso partir do lugar de cuidado que, por sua parte, está referenciado numa
política de reafricanização, a qual toma como ponto de partida a validade das experiências de
mãe.
Orientadas pelas propostas de Clenora Hudson-Weems e Nah Dove, entendemos o
mulherismo como um modo de educar também possível a partir da realidade da diáspora
brasileira e, nesse sentido, implica transformar os espaços de educação formal e não formal
em lugares de recuperação e reafricanização como forma de enfrentamento do racismo e de
todo o seu contexto de desumanização. Por esse motivo, a escola precisa ser um espaço de
reparação e de desmontagem permanente do branqueamento e da branquitude com o objetivo
de ampliar o poder psíquico, social e cultural de crianças e jovens negros e não negros, já que
entendemos, a partir de Fanon (2020), que o racismo que “desumaniza” os negros,
subalternizando-os, na verdade, desumaniza os brancos, a partir de suas estratégias de
hierarquização e de criação do inferiorizado. O racismo funciona a partir de um sistema
hierárquico que divide a humanidade em superiores (os brancos/humanos) e inferiores (os
negros/desumanos), mediante um sistema de marcas e classificações sociais, subjetivas,
históricas, geográficas e políticas.
Abrimos um parágrafo para aprofundar um pouco esse tema tão caro e que chamamos
tecnicamente de branquitude. Para Bento (2014), em artigo sobre branqueamento e
branquitude no Brasil, quando nos remetemos às questões raciais, é importante questionar o
papel do branco como herdeiro de um legado simbólico e concreto no que tange às
desigualdades raciais. A autora destaca que os “sintomas” da branquitude envolvem o
silenciamento das desigualdades e a proteção de seu grupo de pertença, afastando os brancos
das análises necessárias acerca de seu papel na produção do racismo concreto e simbólico. O
silêncio do branco em torno das questões raciais implica interesses econômicos postos em
jogo, tais como o não reconhecimento das políticas compensatórias. Além disso, o silêncio, a
omissão, a distorção do branco na situação das desigualdades raciais no Brasil têm um forte
componente narcísico, de autopreservação. Para Cida Bento (2014), a branquitude se pauta
em uma espécie de “acordo inconsciente” que ordena que não se dê atenção a um certo
número de coisas: elas devem ser recalcadas, rejeitadas, abolidas ou apagadas. O sujeito

133
branco seria um elo numa cadeia de significados que o erigem ao lugar de servidor,
beneficiário e herdeiro da cadeia intersubjetiva da qual procede, formando o que ela chama de
"pactos narcísicos pela branquitude" por intermédio dos quais o racismo é visto como um
problema do negro. Entendemos não ser possível avançar na luta antirracista sem que a
branquitude se coloque como disponível e sujeita à perda de seus privilégios. E por que não
dar início a este processo de análise e transformação desde a infância?
O enfrentamento do racismo nas propostas educacionais implica compreendermos que
a escola, mas também a família, a comunidade e os espaços não formais de educação,
precisam ser espaços de acolhimento para um "eu ampliado", ou seja, fazer da comunidade
em sua totalidade — escolar ou não —, espaços de “cura” permanente, de pertencimento, de
identidade e de representatividade, tomando curar toda a comunidade do racismo estrutural
como tarefa, a partir de um trabalho contínuo de desmonte das estruturas coloniais ainda
presentes.

As Rodas de Conversa

A primeira proposta de debate coletivo realizado pelo nosso projeto de extensão


aconteceu a partir de um evento promovido pelo IFRJ campus Volta Redonda durante a VI
Semana de Ensino, Pesquisa e Extensão, evento intitulado “Os desafios da educação:
transversalidade da ciência, tecnologia e inovação”, que aconteceu entre os dias 06 a 11 de
dezembro de 2021, de maneira remota. Durante o encontro, oferecemos uma oficina de
sensibilização sobre o tema "Infâncias e racismo”, propondo pensar a construção social das
infâncias e essas como potências transformadoras do racismo estrutural e, para isso,
destacamos a importância da brincadeira, da contação de história e do lúdico. Apresentamos
um episódio do desenho animado Nana & Nilo (2020), dirigido por Sandro Lopes, com
direção de arte de Cris Pereira e letra e música de Renato Noguera e Augusto Bapt, intitulado
“O Jongo do Tongo – Nana e Nilo e os Animais”. Em seguida, solicitamos aos participantes
que contassem um pouco sobre a própria infância na escola e na família. Logo após,
discutimos racismo na infância, representatividades negras nos livros infantis, no currículo
escolar e no percurso escolar de cada um, ou seja, a partir das experiências dos participantes,
incluindo as docentes e a bolsista do projeto de extensão. O objetivo da dinâmica foi colocar
em análise como uma educação de costumes europeizados contribuiu, nas experiências de
vida, para a manutenção do dispositivo racial como instrumento de segregação, discriminação
e preconceito com as crianças negras já nos anos iniciais de vida. Os participantes desse
primeiro encontro trouxeram um pouco de suas experiências pessoais quando crianças, de

134
suas angústias experimentadas em seus processos de escolarização e de suas preocupações
atuais, em especial das mães presentes em relação às suas práticas educativas na atualidade
com seus filhos, filhas e filhes e, com isso, os desafios com a promoção da igualdade racial na
formação das crianças. Mães negras destacaram os racismos vividos desde a infância e a
preocupação com esses efeitos na atualidade, seja em suas vidas e maternagens, seja na vida
de seus filhos. Mães brancas destacaram a preocupação e os obstáculos na formação
antirracista, bem como os efeitos do racismo e a desconstrução de privilégios para as crianças
brancas. A escola foi o centro dos debates nesse primeiro encontro, quando todos os presentes
destacaram o problema do currículo europeizado nas suas formações, na infância e na
atualidade, na educação das crianças pequenas que acompanham/cuidam.
Entendemos que a atividade de análise coletiva das experiências de racismo
institucional na educação escolar e na família, teve como efeito, também pelo artifício da
escuta e do acolhimento, um processo de aquilombamento que é constitutivo da construção
mulherista e comunitária. Esse entendimento possibilita que os elementos constitutivos do
aquilombamento das infâncias auxiliem na incorporação do dispositivo comunitário no
cotidiano das práticas educativas e apresentem-se como um investimento no campo da
formação coletiva de pessoas dispostas à luta antirracista.
Dando sequência às nossas Rodas de Conversa, o segundo encontro aconteceu em abril
de 2022, também de maneira remota, e concretizou-se a partir de convites enviados por
telefone, WhatsApp e e-mail. Nesse encontro, contamos com a presença de mães, professoras
da rede pública e privada da Educação Infantil de Volta e de Pinheiral e de um psicólogo da
assistência social do município de Volta Redonda. Identificamos a dificuldade profissional na
escolha e obtenção de materiais pedagógicos orientados para uma educação antirracista, tanto
nas redes de educação pública e privada quanto na assistência social. O principal impasse, nos
serviços públicos destacados, é a criação de um espaço de diálogo sobre a importância da
educação antirracista em espaços formais e não formais de educação e, portanto, nos
processos formativos escolares ou não, nos processos de produção de saúde e de direitos
sociais, como no trabalho que faz a psicologia na assistência social. O segundo impasse
apontado pelos profissionais dos municípios de Volta Redonda e de Pinheiral foi que, na
certeza de um trabalho antirracista, ou seja, em uma direção de trabalho que se pauta no
recorte de raça como uma perspectiva ética, o obstáculo se concretizava diante de
impossibilidade de executar o trabalho, uma vez que, no âmbito das prefeituras municipais,
não há disponíveis materiais adequados, colocando como um problema a aquisição desses
materiais didáticos. Uma dúvida amplamente apontada também esteve no campo de uma

135
articulação possível entre teoria e prática, ou seja, de que maneira trabalhar o tema do
antirracismo com crianças pequenas, mas também com jovens e adolescentes. Na ocasião,
trabalhamos com os participantes a indicação de materiais pedagógicos e formativos/de
capacitação que se encontram disponíveis gratuitamente na internet como subsídio inicial.
A partir das demandas apresentadas, pensamos a formação continuada, a importância
de capacitação de profissionais para uma educação antirracista e, claro, trabalhamos as
dificuldades a partir do acolhimento das histórias também das mães presentes, que relataram,
dentre outras coisas, a tentativa de empreender em suas famílias uma educação antirracista e,
quando atravessadas por famílias inter-raciais, observam as dificuldades que se colocam,
como quando uma mãe preta se vê deslegitimada por seu companheiro branco em sua aposta
metodológica em uma educação antirracista para seus filhos, destacando o debate sobre a
suposta “democracia racial e o somos todos iguais”. Outro tema levantado pelas participantes
mães foi a possibilidade de trabalhar, com as crianças pequenas, o tema da morte e do luto, e
destacaram o quanto esse tema, na perspectiva eurocêntrica, desnaturaliza a morte e o morrer,
colocando-os em um lugar de absoluto sofrimento e negação, sendo um tema tabu e, por isso,
silenciado por parte de todos. Os participantes solicitaram indicações de materiais didáticos de
base afrocentrada e direcionados para as crianças sobre o tema do luto e destacaram a
presença marcante deste tema no período em que atravessamos a Pandemia de COVID-19.
É aqui, então, que uma educação antirracista, afrocentrada, brasileira e de matriz
africana, ameríndia ou pindorâmica afirme também a sua potência, quando se propõe a estar
ao lado daqueles que estão dispostos a superar os vícios da colonialidade, a deslegitimação
dos saberes e práticas ancestrais de cuidado e educação que estejam implicados no suporte às
produções subjetivas disponíveis aos desmontes dos privilégios, que ampliem a potência das
infâncias e são por ela ampliados. Consideramos, entretanto, que todos nós — docentes,
pesquisadoras, mães, psis, educandos — devemos atentar para a demanda pela nossa
constante formação no cotidiano de nossas ações educativas por uma educação antirracista.

Linhas analíticas sobre uma educação antirracista a partir de nós mesmas

Compreendemos, a partir de nossas vivências em nossos processos de luta por uma


educação antirracista, que a direção de trabalho que tomamos aponta para a construção de
práticas epistemológicas de formação em educação. Assim, afirmamos uma experiência
crítica em educação, conectada com as políticas públicas de promoção da igualdade racial,
com o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas e com o Núcleo de Estudos de Gênero
e Diversidade Sexual, construindo a interface de conhecimento teórico-prático para a

136
formação constante de nós mesmas, de nossos alunos, alunas e alunes; mas também dos
trabalhadores da educação, da saúde e da assistência social que atravessam as nossas vidas e
formações, qualificando-nos para o trabalho em equipe e em rede.
É importante reafirmar, com base em nossa leitura de Clenora Hudson-Weems (2020),
que uma educação afrocentrada se inscreve numa lógica de cuidado coletivo operada entre
mulheres, mães, educadoras e cuidadoras que reafirmam a vida como um quilombo. Nesse
sentido, compreendemos o Mulherismo Africana e o Afrocentrismo como função que produz
a roda, o coletivo, o saber circular, e não o hierárquico, ou seja: espaço em que somos
corresponsáveis pela circulação dos potenciais saberes e problemáticas, e também por uma
interação propícia para que haja circulação de afeto e cuidado sem hierarquias de poder no
processo de formação política para uma educação antirracista.
Entender esse processo de formação de sujeitos políticos é fundamental para a defesa
dos dispositivos que operam articulados no processo de formação integral das crianças
pequenas. Dentre esses dispositivos, criamos um material didático: o livro infantil intitulado
“O menino Akin e as traquinagens de Icu”, escrito à seis mãos por nós, autoras deste artigo, e
após os encontros que nos foram proporcionados pelas Rodas de Conversa. Nós, as autoras,
fizemos a opção por um livro referenciado na cultura Yorubá e apostamos na metodologia
didática dos livros de literatura para adentrarmos o mundo das crianças a partir da nossa
própria imaginação e contando com os efeitos dos afetos produzidos nos encontros com as
mães, educadoras e profissionais preocupados com uma educação antirracista das crianças
pequenas. Buscamos, na escrita do livro infantil, responder a uma das dificuldades apontadas
pelos participantes, ou seja, a ausência de materiais didáticos de orientação afrocentrada e
antirracista, também intencionando orientar que esse caminho precisa ser percorrido e
construído a partir de nossas experiências, criação e inventividade. Buscamos o que há de
mais antigo em cada uma de nós: as nossas infâncias. Com isso, criamos também, a partir dos
rascunhos do nosso livro, outros materiais didáticos para as crianças, como folhas para colorir
e um quebra-cabeça, todos em processo de editoração e que irão compor, no futuro, um
desdobramento das ações do nosso Projeto de Extensão.
Entendemos o aquilombamento nas Rodas de Conversa como espaços coletivos de
cuidado. Em nossa experiência, na Roda, encontramos uma possibilidade de compartilhar os
múltiplos saberes entre os trabalhadores das infâncias e da educação, apostando no
Mulherismo Africana, no afrocentrismo e na afroperspectiva, para utilizar o termo proposto
por Renato Noguera (2014): para poder colocar elementos para uma educação antirracista em
relação, sustentando, com isso, a não hierarquização de saberes, a fim de promover a

137
igualdade racial a partir do processo de cuidar por uma via de produção da roda e da
circularidade.
Inspiradas nos textos de Renato Noguera (2014) e de Noguera e Alves (2020),
entendemos que o campo da educação deve estar comprometimento com o ensino a partir de
uma lógica estética plural e antirracista, capaz de combater as assimetrias baseadas em
critérios étnico-raciais. O que significa apostar numa ética ubuntu, numa ética cooperativa; do
“eu sou porque nós somos”. Podemos, ainda, citar a proposta de Bunseki Fu-Kiau (apud
Santos, 2019) em seus estudos sobre a cosmologia dos povos banto — os Bacongo — que
entende a “filosofia como um modo de vida, uma força vital que move a existência e que nos
conecta a emanações ancestrais no presente” (Santos, 2019, p. 135).
As práticas educacionais precisam garantir o desvio do modo de intervir da lógica de
sobrevoo, como aponta Haraway (1995) racionalista, cientificista e que se coloca como uma
olhar de cima, produzindo hierarquias. É fundamental para uma prática escolar aquilombada
que possamos nos inserir em uma aposta de cuidado e formação, seja na práxis escolar ou nos
cuidados familiares. É preciso uma educação, seja ela formal, seja ela não formal,
comprometida com a produção de conhecimento a partir dos saberes locais e situados e que
seja capaz de acolher todas as infâncias.

Concluindo com alguma direção

Finalizando, portanto, temos nos esforçado para trabalhar com uma proposta de
aquilombamento das infâncias a partir dos processos de formação integral e educacional das
crianças pequenas em nosso projeto de extensão, que se estabelece nos municípios de
Pinheiral e Volta Redonda, porque investimos nessa interface de formação de alunos, de nós
mesmas, docentes e pesquisadoras, e também da comunidade escolar e não escolar que têm
caminhado conosco. Estamos construindo, não sem dificuldades, a adesão das escolas e
famílias a essa estratégia, uma vez que ela mobiliza a transformação das práticas de cuidado e
educação e também a produção de novas subjetividades entre os atores envolvidos na cena do
cuidado. Compreendemos que o próximo passo é sustentar, ao longo do tempo, a
concretização das Leis 10639/2003 (Brasil, 2003) e 11645/2008 (Brasil, 2008) em nossa
região, incluindo o trabalho que realizam os Núcleos de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas
e, claro, o próprio Instituto Federal, mobilizando estratégias de pactuação de agendas de
aquilombamento na educação formal e não formal. Entendemos, desse modo, que a nossa
função como parceiros na construção dessa estratégia deve ser contínua, já que afirmamos que
uma educação antirracista é um processo eminentemente transformador das estruturas raciais

138
de toda a nossa sociedade e, portanto, dependente de um trabalho persistente e permanente na
esperança que crianças e jovens possam, em breve, viver o tempo do antirracismo em espaços
educacionais e em suas experiências de vida, de existência.
Nesse sentido, lembramos aquilo que aprendemos com o intelectual afro-americano e
psicólogo social Wade Nobles (2009), que em seu texto “Sakhu Sheti” nos apresenta uma
psicologia alinhada ao significado de ser africano, a partir da concepção africana de ser
humano: um ser de poder, dono do seu destino, parte finita de uma divindade infinita. Wade
Nobles (2009) nos apresenta o ser africano como uma força espiritual, um filtro cultural de
resistência, de força ancestral do povo preto na diáspora e de sua expressão de resistência à
escravidão e ao colonialismo. Para Wade Nobles (2009), o candomblé e os quilombos, no
Brasil, são fontes de retomada dos sentidos africanos do ser humano. É essa materialidade do
sentido de ser africano que entendemos como fundamental para uma pedagogia dos
quilombos, das encruzilhadas. Como destaca o autor, o processo de sequestro dos povos
africanos significou uma espécie de descarrilamento ou desafricanização, que é quando o
caminho do desenvolvimento africano, em termos de socialização, vida familiar, educação,
padrões de governo, pensamento filosófico, invenções científicas e técnicas sofreram um
descaminho cultural e espiritual com a invasão estrangeira, colocando os povos africanos e da
diáspora fora de sua trajetória de desenvolvimento. O retorno aos trilhos e aos caminhos ou
aos sentidos de ser africano implica uma formação aquilombada, ou, como propõe Nobles
(2009): uma Pulsão Palmarina, isto é, a formação de um corpo político marcado pela beleza
da luta pela liberdade e da resistência dos povos africanos da diáspora. Pulsão Palmarina é a
retomada dos sentidos africanos do ser humano e a reconexão com o nosso desejo de ser
africano e livre. É uma resposta aos processos de embranquecimento que, no contemporâneo,
caracterizam um novo agenciamento para o descarrilamento do povo preto.
Para isso, devemos priorizar, sobretudo, a produção de espaços coletivos, dando
enfoque aos olhares diferenciados e às perspectivas pluriversais, a fim de encontrarmos
estratégias de educação que considerem as complexidades culturais, existenciais e históricas
envolvidas no processo de colonização. Podemos enxergar no Mulherimo Africana e no
aquilombamento dispositivos políticos de produção de subjetividade e História, facilitadores
do fluxo de construção de conhecimento na rede de educação e formação integral, os quais
atuam como suporte aos processos formativos das crianças pequenas. Pretendemos produzir
uma pequena fissura nos saberes do eurocentrismo, a partir de uma Pedagogia dos Quilombos,
fazendo da formação humana, dentro e fora da escola, um lugar de cuidado com a vida
(humana, não humana), com o território, com o coletivo, com a natureza e suas entidades

139
virtuais e ancestrais e com a saúde mental, a partir da criação de espaços comunitários de ação
e de produção de conhecimento contra os epistemicídios.

Referências

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BENTO, Maria Aparecida Silva. (Org.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e
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FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 65 ed. Rio de Janeiro-São Paulo: Paz e Terra Editora. 2018.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança. 27 ed. Rio de Janeiro-São Paulo: Paz e Terra Editora. 2020.

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perspectiva parcial. Cadernos Pagu (5) 1995: pp. 07-41.

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NOBLES, W. WADE. Sakhu Sheti: retomando e reapropriando um foco psicológico afrocentrado. In


NASCIMENTO, E. L. (ORG) Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São
Paulo: Selo Negro, 2009. (Sankofa: matrizes africanas da cultura brasileira, volume 4).

NOGUERA, Renato. O Ensino de Filosofia e a lei 10639. 1 ed. Rio de Janeiro: Pallas
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NOGUERA, Renato; ALVES, Luciana Pires. Exu, a infância e o tempo: Zonas de Emergência de
Infância (ZEI). Revista Educação e Cultura Contemporânea. v. 17, n. 48, p. 533-554, 2020.

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SANTOS, Tiganá Santana Neves. A cosmologia africana dos bantu-kongo por Bunseki Fu-Kiau:
tradução negra, reflexões e diálogos a partir do Brasil. Tese de Doutoramento. orientador Álvaro
Silveira Faleiros. São Paulo, 2019. 233 f.

SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Fogo no Mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de
Janeiro: Mórula Editorial, 2019.

140
SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Mauad
X, 2019.

141
IDENTIDADE E PREFERÊNCIA RACIAL NA PERCEPÇÃO DE
CRIANÇAS PEQUENAS EM CONTEXTO DE EDUCAÇÃO
INFANTIL
Izzie Madalena Santos Amancio,
Equipe Técnica Pedagógica da Secretaria Municipal de
Educação, Cultura, Desporto e Lazer (SEMEC) de
Marcionílio Souza-BA.
[email protected]

Cristina Teodoro,
Curso de Pedagogia do Instituto Humanidades e
Letras, Universidade da Integração Internacional da
Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB).
[email protected]

Introdução

Este texto é um recorte de pesquisa realizada junto ao Curso de Licenciatura em


Pedagogia, da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira
(UNILAB), concluída em 2019, cujo objetivo principal era compreender como as crianças
percebiam as identidades de gênero e de raça. A pesquisa foi desenvolvida em uma instituição
pública de Educação Infantil, localizada em São Francisco do Conde, no Recôncavo da Bahia,
a qual atendia crianças na faixa-etária entre 4 e 5 anos. A cidade, segundo o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE, 2018), possuía uma população estimada de
39.338, sendo que 90% da população se autodeclarava negra. A sala onde a pesquisa foi
conduzida reunia 15 crianças: nove meninas e seis meninos.
É interessante observar, do ponto de vista deste artigo, que foi a partir da década de
1990, com a pesquisa realizada por Eliane Godoy (1996), que a temática sobre identidade de
crianças pequenas começa a ganhar espaço. Naquele momento, foi possível constatar que as
crianças negras, aos 5 anos, em diferentes situações, apresentavam autoestima, autoconceito e
autoimagem negativos. Segundo a pesquisadora, tanto as famílias das crianças quanto a escola
desconheciam o sofrimento vivenciado por elas em seus cotidianos, o que resultava da não
aceitação de si mesmas. Doravante, um número significativo de estudos tomaram a temática
como foco e alguns fatores podem ter contribuído para que isso ocorresse.
Na década de 2000, dois aspectos são importantes e impactaram os estudos sobre
relações raciais e infância no Brasil. Primeiro: a ampliação do debate sobre relações raciais; já
o segundo diz respeito à perspectiva teórica pautada na Sociologia da Infância. Em relação ao
primeiro, a participação do Brasil na III Conferência Mundial das Nações Unidas Contra o

142
Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada pela ONU em
Durban, na África do Sul (2001), foi fundamental para o estabelecimento de uma série de
ações políticas, entre outras, no campo da Educação; a alteração da Lei de Diretrizes e Base
da Educação Brasileira (LDB), provocada pela Lei n. 10.639-2003, e as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Em segundo, com a alteração da LDB, ocorre
um novo marco na história da educação do país: ao iniciar uma perspectiva de visibilidade e
do reconhecimento da população negra e de suas diferentes experiências.
A alteração da Lei de Diretrizes e Bases impactou diretamente os estudos sobre
relações raciais e infância no campo da Educação e, na Educação Infantil, especificamente.
Assim, pesquisas sobre práticas educativas com bebês e identidade étnico-racial de crianças
negras começam a fazer parte das temáticas pesquisadas. Em relação à identidade étnico-
racial, por exemplo, os estudos demonstram que desde muito cedo elementos da identidade
racial revelam-se na vida das crianças. Diferentes autores destacam que, entre 3 e 5 anos, a
criança já percebe a diferença racial e, ao identificá-la, interpreta e hierarquiza como superior
e inferior e, ainda, é nessa etapa que elas desejam mudar o tipo de cabelo e a cor da pele.
Assim, a criança negra parece mais agudamente atenta à diferença racial do que a branca.
Dito isso, a pesquisa realizada, que agora resulta neste artigo, é parte do contexto
apresentado, ou seja, está inserida no escopo dos estudos sobre relações raciais e infância no
Brasil, prioritariamente, aqueles que tem como foco a constituição da identidade de crianças
pequenas em espaços da Educação Infantil. Assim, em vistas a alcançar o objetivo proposto,
ou seja, a percepção das crianças pequenas em relação à identidade e à preferência racial,
foram adotados procedimentos vinculados a abordagem qualitativa. Em relação aos
procedimentos para a “geração de dados”, foram priorizados recursos os quais são usualmente
utilizados em pesquisas realizadas com crianças pequenas: (1) Observação; (2) Contação de
histórias; (3) Bonecas(os) confeccionadas(os) em tecidos e (4) Desenvolvimento de desenhos.
Esses recursos facilitaram a relação entre a pesquisadora e as crianças, permitindo um
clima favorável para a observação das interações com as crianças e entre elas, bem como
possibilitou acesso a significações e narrativas das crianças. Primeiramente, ocorreram
observações em sala de aula, local onde aconteciam todas as atividades com as crianças, pois
a instituição possuía espaços externos limitados. O uso do computador como suporte
viabilizou o registro das interações entre as crianças, suas tramas cotidianas e os seus
diálogos. O interesse era visualizar a cultura da sala de aula, com foco nas crianças. Assim,
foi observado o grupo e o quantitativo de meninas e meninos, identificando a organização da

143
rotina, a estrutura, a organização do ambiente e os momentos em que as crianças compunham
filas, interagiam e reagiam em relação ao que era proposto para elas.
Nos EUA, desde a década de 1940, pesquisadores têm se debruçado sobre a
complexidade de se trabalhar com a identificação racial de crianças pequenas, principalmente,
crianças em faixa etária pré-escolar. O mais famoso estudo a respeito do processo de
identificação étnico-racial de crianças entre 3 e 7 anos foi o desenvolvido por Clark e Clark
em 1947 (1996). O método utilizado pelos autores consistiu em empregar quatro bonecas
idênticas, mas com cor de pele e cabelo diferentes. Perguntas foram feitas sobre a
identificação e a preferência racial. Guardadas as devidas proporções e contextos,
semelhantemente, foram utilizados bonecos para se verificar as percepções das crianças em
relação à identidade, gênero e raça. Foram deixados disponíveis e visíveis bonecas(os), desde
o momento do almoço das crianças, para que elas se sentissem à vontade para pegar, brincar,
rejeitar e questionar os brinquedos de maneira participativa. Foram utilizados oito bonecas(os)
as quais se distinguiam em raça e gênero: quatro bonecas e quatro bonecos, quatro brancas(os)
e quatro pretas(os).
Por fim, a oficina de criação de desenhos foi utilizada ao final da permanência em
campo. A construção de desenhos pelas crianças se deu com o aproveitamento dos espaços da
sala; as crianças ficaram à vontade para produzirem desenhos relacionados às(aos)
bonecas(os). Nesse sentido, foi orientado que elas(es) desenhassem a partir de contextos reais,
imaginados ou significativos para cada uma delas, como mote, foi solicitado que desenhassem
a(o) boneca(o) que gostaram e, também, aquela/e que não gostaram. Após o desenvolvimento
dos desenhos, entregavam e explicavam o que significava/representava para elas.
Nos limites deste artigo, serão privilegiadas as análises que se referem às percepções
das crianças sobre identidade e preferência racial, visando evidenciar os critérios por elas
utilizados. Para tanto, serão apresentadas as análises que envolveram, predominantemente, o
uso das(os) bonecas(os).

Racialização e identidade

Do latim identitas, a identidade, grosso modo, pode ser entendida como o conjunto das
características e dos traços próprios de um indivíduo ou de uma comunidade. Há duas formas
de se compreender a identidade: a coletiva e a individual. A identidade coletiva, como
argumenta Munanga (2012), é uma categoria de definição de um grupo, a qual pode ser
efetivada pelo próprio grupo por meio de alguns atributos selecionados no contexto cultural

144
(língua, religião, arte, sistemas políticos, economia, visão do mundo), e, também, de sua
história, de seus traços psicológicos coletivos, etc., entendidos como mais significativos do
que outros, diferenciando-se dos demais grupos ou comunidades. Para o autor, esses sinais
são chamados, pelos antropólogos, diacríticos. Outrossim, como categoria, a identidade
coletiva pode ser realizada por um processo de autoatribuição, marcado por diferenças em
relação aos outros grupos. Mas, também, a identidade coletiva pode ser uma identidade
atribuída por outro grupo através de outros sinais diacríticos não selecionados pelo próprio
grupo. O autor explica que isso ocorreu, por exemplo, quando os europeus entraram pela
primeira vez em contato com povos diferentes deles: ameríndios, africanos, asiáticos e
atribuíram, a esses povos, identidades coletivas de acordo com seu olhar cultural; identidades
as quais não correspondiam com as formas como aqueles povos se autoatribuíam. Assim, é
importante registrar que tanto o processo de autoatribuição quanto o de heteroatribuição são
marcados pela diferença.
A título de compreensão, segundo Silvério (2020), foi no período da modernidade que
o “Negro” foi criado como e, simultaneamente, uma tentativa de apagamento da diferença
étnica entre os não europeus de modo geral, em especial os descendentes de africanos, e de
construção de uma identidade coletiva negativa, inferiorizante, portanto, colonizadora e
construtora de um Outro mitologicamente sem história e sem cultura. De acordo com o autor,
a criação e racialização do Outro, bem como o estranhamento daí resultante, retiram do
colonizado a possibilidade de ser visto (e, consequentemente, de se ver) como expressão
universal do gênero humano. “É o colonialismo que cria (inventa) o Homem Negro,
extraindo-lhe a possibilidade de reconhecer-se simplesmente como Humano”. (Faustino,
2013, p. 220). Sobre a identidade coletiva autoatribuída, é possível analisar que
Os indivíduos da raça “branca”, foram decretados coletivamente superiores aos da
raça “negra” e “amarela”, em função de suas características físicas hereditárias, tais
como a cor clara da pele, o formato do crânio (dolicocefalia), a forma dos lábios, do
nariz, do queixo, etc. que segundo pensavam, os tornam mais bonitos, mais
inteligentes, mais honestos, mais inventivos, etc. e consequentemente mais aptos para
dirigir e dominar as outras raças, principalmente a negra mais escura de todas e
consequentemente considerada como a mais estúpida, mais emocional, menos honesta,
menos inteligente e portanto a mais sujeita à escravidão e a todas as formas de
dominação. (Munanga, 2004. p. 16).

A maneira como os indivíduos foram racializados, colocando o branco como superior


em relação aos demais, tem impactado na forma de ser, agir e viver, em distintas sociedades,
ao longo da história. Silvério (1999) diz que compreender a complexidade da questão racial
contemporânea requer que se analise o modo pelo qual as sociedades são racializadas. Para
ele, sociedades racializadas são aquelas estruturadas por uma constituição racial cujo

145
funcionamento é direcionado por sofisticados planos de inscrição, a partir dos quais se
estruturam processos que impactam sua estrutura e as relações sociais. Como categoria
analítica, a racialização proporciona descrever a processualidade pela qual se opera certa
dimensão histórica, geográfica e social da questão racial.
Cruz (2016), ao discutir a racialização, argumenta que esta pode ser compreendida,
concomitantemente, como uma nomenclatura histórica e social aplicada ao contexto do
escravismo e da colonização moderna, e como uma categoria analítica que marca as relações
sociais. Há, em vista disso, a possibilidade de inferir nexos teóricos que permitem ler as
práticas contemporâneas como indícios de uma contínua prática racializada que informa e
impacta a vida social. “Como componente histórico e social, é a prática pela qual os grupos
foram “fixados” racialmente como negros, índios etc., sendo assim, um processo de
qualificação de um grupo por critérios adscritos que adquirem sentido em determinado
contexto”. (Cruz, 2016, p. 16).
Isso inclui a constituição da identidade individual, que, de acordo com Munanga
(2012), faz parte do processo de construção do ser, significando sua existência. Assim, o
nome próprio atribuído a criança quando nasce será a sua marca de diferença em relação aos
seus irmãos e aos próprios pais. Ainda, o nome além de se acrescentar sobrenomes de famílias
do pai e da mãe, indicam, em um primeiro momento, se somos homens ou mulheres, meninos
ou meninas. Este processo pode ser considerado como sendo a identidade individual, formada
em composição à identidade pessoal, pelo nome, e, da identidade familiar, pela adição dos
sobrenomes das duas famílias, do pai e da mãe.
No entanto, a discussão sobre identidade é, por si, complexa, e parte de diferentes
compreensões. Para Dubar (1997), o processo de constituição da identidade, o qual o autor
prefere referenciar como formações identitárias, por entender que são várias as identidades
que assumimos, se constitui em um movimento de permanente tensão entre os atos de
atribuição (que correspondem ao que os outros dizem ao sujeito, o que o autor denomina de
identidades virtuais) e os atos de pertença (em que o sujeito se identifica com as atribuições
recebidas e se adere às identidades atribuídas). Enquanto a atribuição corresponde à
identidade para o outro, a pertença indica a identidade para si, e o movimento de tensão se
caracteriza, justamente, pela oposição entre o que esperam que o sujeito assuma e seja e o
desejo do próprio sujeito em ser e assumir determinadas identidades. Assim, o que está em
jogo, para Dubar, é a identificação ou não identificação com as atribuições que são sempre do
outro, visto que esse processo só é possível no âmbito da socialização. O autor sintetiza a
constituição das formas identitárias a partir de dois processos: o relacional e o biográfico. O

146
primeiro diz respeito à identidade para o outro, em que as transações assumem um caráter
mais objetivo e genérico; enquanto o biográfico corresponde à identidade para si, cujas
transações são mais subjetivas, e compreende as identidades herdadas e identidades visadas.
Desse modo, os processos relacional e biográfico concorrem para a produção das identidades.
A identidade social é marcada pela dualidade entre esses dois processos e a dialética
estabelecida entre eles.

Formação da identidade: o foco nas crianças


Com base em estudos realizados no Brasil, Bento (2012) sintetizou alguns aspectos
que ocorrem com crianças a partir dos 3 anos, no que tange a identidade racial, entre outros,
destaca que: 1) muito cedo elementos da identidade racial emergem na vida das crianças; 2)
entre 3 e 5 anos, a criança já percebe a diferença racial e, ao percebê-la, interpreta e
hierarquiza; 3) crianças pequenas são particularmente atentas ao que é socialmente valorizado
ou desvalorizado, percebendo rapidamente o fenótipo que mais agrada e aquele que não é bem
aceito; 4) crianças pequenas brancas se mostram confortáveis em sua condição de brancas e
raramente explicitam o desejo de ter outra cor de pele ou outro tipo de cabelo; 5) com
frequência explicitam que branco é bonito e preto é feio (apontando bonecas, personagens de
livros, colegas, professoras). Segundo a autora, os estudos, ainda, em sua maioria,
demonstram que as crianças de pouca idade têm conhecimento e entendimento do que ocorre
à sua volta, até mesmo quando tudo acontece de maneira silenciosa e rápida, esse
entendimento pode deixar marcas profundas as quais impactam diretamente na constituição da
sua identidade.
Gonzalez-Mena e Eyer (2014) explicam que nos últimos tempos vêm ocorrendo
mudanças significativas na formação da identidade das crianças, já que, anteriormente, como
a maioria dos bebês e das crianças eram cuidadas por parentes, não se pensava muito sobre a
formação de identidade, ou seja, ela era considerada um processo que ocorria naturalmente.
Com a entrada de um número significativo de frequência de crianças em instituições de
educação infantil, para as autoras, o desenvolvimento da identidade delas começa a se tornar
uma preocupação, considerando que bebês e crianças pequenas estão em processo de
formação do senso de si mesmos.

Eles não têm muita certeza sobre quem são, do que gostam e a que lugar pertence. A
formação da sua identidade ocorre à medida que absorvem imagens deles mesmos, ao
se verem refletidos nos olhos dos seus docentes e responsáveis. Eles aprendem se
identificando com os docentes e responsáveis e imitando-os. Eles conseguem perceber
as atitudes e características pessoais de seus docentes e responsáveis. Bebês e crianças

147
aprendem com as percepções dos docentes e responsáveis sobre como as pessoas
agem em situações diferentes. Eles observam como as emoções são demonstradas. A
partir de todas as observações, bebês e crianças descobrem como os outros os
enxergam. Eles começam a desenvolver posturas a respeito de como eles e os outros
devem ser tratados. (Gonzalez-Mena e Widmeyer-Eyer, 2014, p. 285).

As autoras argumentam que a identidade é composta por várias facetas e que uma
delas é o autoconceito. Assim, além da identidade dos bebês e das crianças pequenas ser
formada pelas pessoas com as quais elas interagem, o autoconceito ganha destaque.
Considerando o ambiente, autoconceito está ligado também ao apego, formado pelas
percepções e pelos sentimentos que a criança tem por si mesma quanto a imagem corporal,
assim como a identidade cultural e de gênero. Em relação à identidade cultural ou às culturas,
reforça-se que elas influenciam cada detalhe e cada ação de nossas vidas, incluindo o quanto
nos aproximamos das pessoas; onde nós a tocamos; gestos que fazemos; o que comemos;
como falamos e bebemos e como encaramos o tempo e o espaço — ou seja, como vemos o
mundo. Para elas, pouco pensamos sobre cultura, até encontrarmos alguém de uma cultura
diferente. Isso pode acontecer muito cedo na vida de bebês e crianças quando eles frequentam
uma creche, por exemplo. A questão é: como a exposição a diferentes culturas afeta bebês e
crianças? O que eles fazem com uma segunda ou terceira configuração de mensagens
culturais? Esse não é um fenômeno novo: ao longo de toda a história, membros de
determinadas culturas estiveram envolvidos na criação de crianças vindas de outras culturas.

Dentre os pesquisadores que vêm desenvolvendo estudos nesse território, alguns


autores (Njoroge; Benton; Lewis; Njoroge N., 2009) buscaram compreender o
desenvolvimento das identidades sociais em crianças de variados grupos. Os autores
ressaltaram que desenvolvimento infantil é frequentemente colocado em categorias
como desenvolvimento de língua, motor, de afeto e, mais recentemente,
desenvolvimento de ego e mente. O impacto da cultura sobre essas categorias, no
entanto, é raramente refletido nos debates, particularmente no que diz respeito à raça e
etnicidade, elementos envolvidos na dimensão cultural (Bento, 2012, p. 102).

Hall (1996) amplia o debate ao argumentar que a ideia de identidade é desenvolvida


sob dois enfoques: primeiro, no sentido de conceber uma cultura partilhada, ou seja, os
sistemas culturais unificam os indivíduos em quadros de referência. O segundo enfoque da
identidade cultural se arquiteta no “que nós realmente somos” — e com a intervenção da
modernidade — “o que nós nos tornamos”. Isto é, o autor defende que as identidades culturais
provêm de alguma parte e, portanto, possuem histórias, sofrendo modificações constantes. O
autor também destaca em sua obra A Identidade Cultural na Pós-Modernidade (2003) três
distintas concepções de identidade: o sujeito do Iluminismo, o sociológico e o pós-moderno.
A primeira compreende a pessoa humana como indivíduo centrado, unificado, dotado de

148
razão, de consciência e de ação. Possuidor de uma identidade a qual surge no nascimento e
permanece ao longo da vida. A segunda envolve um indivíduo cuja identidade não é
autossuficiente e centrada, mas formada na relação com outras pessoas, mediadoras de outros
valores, sentidos e símbolos. Aqui, a identidade é formada na interação entre o sujeito e a
sociedade. A concepção do sujeito pós-moderno, entretanto, abarca um sujeito sem uma
identidade fixa, essencial ou estável. É, portanto, formada e transformada histórica e
continuamente de acordo com a cultura que permeia o indivíduo (Hall, 2003). A partir disto,
Hall define as identidades culturais como:
As identidades culturais são pontos de identificação, os pontos instáveis de
identificação ou sutura, feitos no interior dos discursos da cultura e história. Não uma
essência, mas um posicionamento. Donde haver sempre uma política da identidade,
uma política de posição, que não conta com nenhuma garantia absoluta numa lei de
origem sem problemas, transcendental (Hall, 1996 p. 70).

As autoras Gonzalez-Mena e Eyer (2014), como Hall, afirmam que a cultura é um dos
aspectos importantes da formação da identidade e que, a raça, como já mencionado, é outro.
Para elas, ainda que a raça seja uma construção social, e não um fator biológico, o racismo
torna imperativo que os docentes e os responsáveis não menosprezem o grupo racial de
pertencimento da criança quando se trata de formação da identidade. As crianças em
instituições infantis precisam receber uma escuta atenciosa e um cuidado quanto à sua
percepção da identidade racial; e os docentes e os responsáveis precisam observar
detalhadamente a mensagem que as crianças recebem, e incorporá-las ao senso de self delas.
Elas seguem argumentando que algumas crianças podem desenvolver uma identidade racial
negativa quando sem auxílios específicos ou intervenções que potencializem seus
pertencimentos raciais. Outras crianças podem crescer com sentimento de superioridade
racial, exceto se os adultos ao redor delas prestarem cuidadosa atenção ao ambiente e às
mensagens que elas estão recebendo. Bento (2012, p. 111), nessa direção, diz que:
Cada um de nós gosta, em geral, de nossas características que são apreciadas pelos
outros. Necessitamos de imagens positivas acerca de nós mesmos, para podermos
funcionar de modo harmonioso. Precisamos acreditar que somos, ao menos em
alguma medida, “bons”; senão, o ódio e a agressividade que fazem parte de nossa vida
emocional atacam nosso próprio “eu”, com consequências severas para o
funcionamento psíquico. Assim, quando uma criança recebe mensagens contínuas de
que não é tão bonita, tão atraente quanto sua coleguinha, ou de que seus traços são
considerados feios, ou expressão de sujeira, teremos um grande problema na formação
da identidade desta criança.

Concordando com Gonzalez-Mena e Eyer (2014) que, mesmo quando pequenas, as


crianças começam a perceber relações de poder e o grupo ao qual elas pertencem, o qual pode
influenciar a formação da identidade delas. Por exemplo, as crianças são extremamente

149
observadoras e quando crianças brancas percebem que o grupo no poder se parece com elas,
elas entendem que são membros desse grupo e que têm os mesmos direitos. Essas
observações podem crescer e formar um sentimento de pertencimento e de autovalorização, os
quais podem aumentar ao verem a discriminação em ação, incentivando estereótipos
negativos em relação às pessoas com quem elas não se identificam. Semelhantemente, quando
crianças negras observam que o grupo no poder não se parece com elas, especialmente se elas
observam e/ou passam por situações de preconceito, discriminação e exposição — segundo
estereótipos — elas têm menos chance de desenvolver um sentimento de pertencimento e de
valorização. As autoras afirmam que tanto as crianças brancas quanto as negras precisam de
tipos específicos de intervenção quando se deseja que sentimentos de superioridade ou
inferioridade se transformem em percepções de igualdade.

Identidade e preferência racial para crianças em espaços de educação infantil

No percurso de pesquisas com crianças, as metodologias participativas têm sido


consideradas um caminho importante para escutar as crianças, pois atribui a elas o estatuto de
sujeitos do conhecimento. Diante disso, aponta-se como dispositivos metodológicos
fundamentais: a entrevista individual ou em grupo; a observação participante; registros
escritos; fotografia e vídeo; técnicas visuais individuais ou em grupo. Além disso, autores
como Sarmento; Soares e Tomaz (2005, p.54) sugerem o uso de materiais de estímulo como
elementos indutores da troca de informações, permitindo a promoção de discussões acerca das
temáticas investigadas.
Saramago (2001) aponta a escola como um lugar privilegiado para a observação do
grupo de crianças, posto que este é um ambiente que proporciona o contato com um número
significativo de crianças, já agrupadas segundo características comuns como a faixa etária e o
nível de ensino. Este pode ser um proveitoso ambiente para o desenvolvimento do trabalho de
campo, assim como para o contato inicial com os sujeitos da pesquisa — como optamos nesta
pesquisa. A autora aponta, ainda, que as técnicas de coletas de dados utilizadas nas pesquisas
com crianças têm sido caracterizadas pela necessidade de adaptações e reajustes sucessivos
daquelas utilizadas pela Sociologia de modo geral. Nesse sentido, Sarmento (2000, p.84)
explicita que grande parte das pesquisas conduzidas no âmbito da Sociologia da Infância têm
sido realizadas, teórica e metodologicamente, inspiradas na Sociologia Interpretativa, como as
pesquisas intituladas interacionismo simbólico e a etnometodologia, ambas de inspiração
fenomenológica. Como instrumentos, Saramago sugere como eficazes para a pesquisa com

150
criança as entrevistas — conversas — que podem ser conduzidas de maneira individual ou em
grupo, a depender da faixa etária dos sujeitos da pesquisa; e os textos ilustrados e legendados,
a partir dos quais é sugerido um tema para as crianças, as quais deverão escrever um pequeno
texto e fazerem uma ilustração acerca do conteúdo do texto — o relato das observações
empíricas.
Como mencionado, participaram da pesquisa 15 crianças, entre meninos e meninas, de
4 e 5 anos, frequentadores de uma sala de educação infantil, residentes em uma cidade no
Recôncavo da Bahia, com mais de 90% da população que se autodeclara como negra,
segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE, 2018). Para a geração de
dados, além da contação de história, foram utilizados bonecos, buscando compreender as
percepções das crianças em relação à identidade, gênero e raça. As(os) bonecas(os) foram
disponibilizados durante a rotina das crianças, para que elas se sentissem à vontade para
pegar, brincar, rejeitar e questionar os mesmos. Levando em consideração o tempo do
desenvolvimento do Trabalho de Conclusão de Curso, a pesquisadora permaneceu no campo
por uma semana. No total, 8 bonecas e bonecos foram utilizados. Elas e eles foram
encomendados e confeccionadas(os) considerando uma pluralidade de característica, assim,
para o sexo masculino foram colocadas bermudas e blusas e, para o feminino, vestido. Em
relação à raça, (2) dois bonecos eram pretos; 2 (duas) bonecas eram pretas; 2 (dois) bonecos
eram brancos e 2 (duas) bonecas eram brancas, conforme imagem abaixo:

Fonte: Elaborada pelas autoras

No dia em que foi realizada a conversa com as crianças havia, de um total de 15, 14.
Para que as crianças pudessem ter acesso as(aos) bonecas(os), elas/eles foram
disponibilizadas(os) em um canto da sala de aula, organizados em uma ordem numérica que

151
permitisse, posteriormente, identificá-los. Os diálogos aconteceram em dois momentos: o
primeiro, durante a refeição; e o segundo em grupo, após a refeição. Os diálogos
individualizados aconteceram com os bonecos dispostos em um canto da sala, a conversa com
as crianças girou em torno de qual boneca(o) elas gostavam mais, por que, quais as
características físicas da(o) boneca(o), de qual não gostavam, quais as características físicas
da(o) boneca(o) e o porquê não gostavam.
Antes de seguir com a análise dos dados gerados, cabe explicitar que quando as
crianças, em suas respostas, se referiam à cor, observou-se concordância com Guimarães
(2003, p. 103-4), que afirma o seguinte:
Parto da crítica à categoria “cor”, pois a análise dessa categoria, no Brasil, nos leva à
conclusão, sem grande dificuldade, de que a classificação por cor é orientada pela
idéia de raça, ou seja, que a classificação das pessoas por cor é um discurso sobre
qualidades, atitudes e essências transmitidas por sangue. [...] “cor” não é uma
categoria objetiva, cor é uma categoria racial, pois quando se classificam as pessoas
como negros, mulatos ou pardos é a idéia de raça que orienta essa forma de
classificação.

Nesse sentido, as crianças quando se referiam à cor e tão somente à cor para descrever
as(os) bonecas(os), elas estavam, de certa forma, trazendo à baila, a apropriação que estavam
fazendo sobre identidade racial. Do total de quatorze crianças, onze crianças disseram gostar
das bonecas(os) brancas(os) e 4 disseram não ter gostado das(os) bonecas(os) brancas(os). Em
relação às(aos) bonecas(os) pretas(os), 4 crianças disseram gostar das(os) mesmas(os) e 7
disseram não gostar. Total de votos nulos, na categoria gostou: 1 voto, e 3 relacionados àquela
que não gostou.

Tabela 1. Seleção de bonecas/as por classificação racial e de gênero, pelas crianças

Boneca (o) Classificação Gênero Gostou Não gostou


3 Branca Boneca 3 1
1 Branca Boneca 1 2
4 Branco Boneco 4 0
8 Branco Boneco 3 1
TOTAL 11 4
2 Preto Boneco 1 1
5 Preto Boneco 0 2
6 Preta Boneca 0 3
7 Preta Boneca 3 1
TOTAL 4 7
Nulo - - 1 3
TOTAL 1 3
TOTAL 16 14
Fonte: Elaborada pelas autoras

152
Em relação à tabela, um dado que sobressai é o quantitativo de crianças que
demonstram uma preferência pelas/por bonecas(os) brancas(os). A preferência de crianças
pelo grupo racial branco tem sido constatada em diferentes pesquisas realizadas com crianças
pequenas, tanto no Brasil quanto nos EUA. Kenneth Morland (1958), ao pesquisar crianças
brancas e negras, descobriu haver, em ambas, uma predisposição, desenvolvida desde muito
cedo, de se identificarem como brancas. A maioria das crianças, tanto brancas quanto negras,
apresentava essa predisposição desde os 3 anos de idade, podendo permanecer com ela até por
volta dos 5 anos. Essa predisposição pode ser decorrência direta ou indireta da convivência
das crianças, inicialmente com seus pais e, posteriormente, com os professores na escola.
Entretanto, para Morland (1963) essa predisposição somente é desenvolvida pelas crianças
quando elas têm contato com as atitudes e os efeitos da discriminação racial. No Brasil,
resultados alcançados por Trinidad (2011), ao pesquisar crianças em idade pré-escolar, foram
semelhantes. Sendo assim, uma das possibilidades de compreensão é que,
Tanto crianças brancas, como crianças negras, estão acostumadas a ver brancos em
posições superiores em livros, revistas e na televisão. Os brancos moram em casas
melhores, têm mais dinheiro e ocupam posições de poder. [...] Isso sugere que o
aprendizado em preferir uma identificação branca não é simplesmente uma questão
verbal, mas, sim, uma questão social. (Morland, 1958, p. 475).

França e Monteiro (2002) e Silva, Pereira e Camino (2002) realizaram um estudo


sobre os efeitos da cor da pele sobre a identidade e preferência raciais em crianças de 5 a 10
anos. Tanto as primeiras quanto as segundas utilizaram como material de estímulo fotografias
de crianças, as quais foram confeccionadas de modo a considerar diferenças de idade, cor da
pele e sexo das crianças. As crianças eram entrevistadas individualmente quanto à
categorização, autocategorização racial, preferência racial e avaliação emocional da pertença.
Por meio dos resultados dos estudos, os quais objetivaram verificar em que medida a
hierarquia, dada pela cor da pele, em função da ideologia do branqueamento, impactaram nas
relações raciais, na construção da identidade das crianças e na postura destas mediante
identificação com o seu grupo de pertença. Observou-se, ainda, em relação à preferência
racial, uma forte tendência ao grupo branco. Ou seja, no caso, a figura eleita como a mais
comunicativa e inteligente (nível das aptidões sociais) foi uma figura branca.
Na presente pesquisa, para melhor compreensão sobre as justificativas das crianças em
relação aos motivos pelos quais elas gostaram mais de uma boneca(os) do que de outra(o), a
tabela foi reorganizada, conforme segue:

153
Tabela 2. Critérios utilizados pelas crianças para gostar, considerando bonecas(os)
brancas(os)

Nº Boneca (o) Porque?


8 Branco “O cabelo”
Branco,
4-8 “Os dois são brancos”
Branco
3 Branca “Ela é de cabelo rosa”
3 Branca “Ela é Branquinha”
8 Branco “Porque ele é lindo”
2 Branca Não declarou
4 Branco “Porque o cabelo é igual o meu”
4 Branco “Porque ele é bom”
“Porque tem o cabelo cacheado igual o
8 Branco
meu é”
4 Branco “Porque tem short, assim”
Fonte: Elaborada pelas autoras

Ao verificar as respostas, são várias as possibilidades de análise. Primeiro, a


associação estabelecida pelas crianças entre seus traços físicos e aqueles das(os) bonecas(os)
selecionadas(os): “Porque o cabelo é igual o meu”; “Porque tem o cabelo cacheado igual o
meu”, portanto, elas se utilizam de critérios físicos, para mencionar uma possível identidade
racial. Outros critérios interessantes: “Ela é de cabelo rosa”; “Porque tem short, assim”,
demonstra que elas, as crianças, simplesmente explicaram o que mais chamou a atenção nas
características das(os) bonecas(os). No entanto, ganha destaque os critérios que as crianças
utilizaram para justificar os porquês de terem gostado da maioria dos(as) bonecas(os),
brancas(os): o cabelo, a cor da pele, a beleza e por ser bom. Isso pode indicar que as crianças
estão em processo de apropriação de valores socialmente construídos em relação à identidade
coletiva branca, já que, considerando o grupo, elas realizam um processo de heteroatribuição
e evidenciam a maneira como, historicamente, esse grupo tem se constituído, ou seja, como
argumentou Munanga (2012), os brancos: quando se decretaram coletivamente superiores aos
demais grupos em função de suas características físicas hereditárias os tornando — segundo
se pensavam —, mais bonitos, mais inteligentes, mais honestos, mais inventivos, etc.
Os resultados encontrados dialogam com outros estudos realizados com crianças em
idade pré-escolar, como, por exemplo, o mais famoso desenvolvido por Clark e Clark, em
1947, com crianças de idades entre 3 e 7 anos, sobre a identificação racial de crianças negras.
Questionou-se a preferência dessas crianças quanto a quatro bonecas, as quais eram idênticas
sob todos os aspectos, exceto as cores da pele e do cabelo (duas tinham pele e cabelos negros,
enquanto as outras duas eram brancas e tinham cabelos loiros). Os autores verificaram que a
maioria das crianças negras preferiu as bonecas brancas de modo geral: 67% preferiam a

154
boneca branca para brincar; 59% diziam que as bonecas brancas eram bonitas; 60% diziam
que as bonecas brancas tinham uma cor bonita; e, por outro lado, 50% das crianças diziam
que as bonecas de cor pareciam más.

Tabela 3. Critérios utilizados pelas crianças para gostar, considerando bonecas(os)


pretas(os)
Nº Boneca (o) Porque?
7 Preta X
2 Preto “Por que ele é da minha cor”
“Porque eu gosto de rosa e o cabelo
7-3 Preta, Branca
delas são rosa”
7 Preta “Porque gosto dela”
Fonte: Elaborada pelas autoras

Diferentemente dos critérios utilizados pelas crianças para justificar suas preferências
pelas bonecas(os) brancas(os), em relação às bonecas(os) pretas(os), a situação mudou. Além
de ser um quantitativo menor, em número de crianças que escolheram as(os) bonecas(os), é
importante ressaltar que apenas uma delas explicitou, diretamente, a preferência em função da
cor da pele ser parecida com a sua, as demais, deram respostas generalizadas. No entanto, é
importante registrar que, como argumentado anteriormente, a identidade não é fixa, sendo
assim, essa criança pode estar sendo impactada pelas mudanças que estão em curso, em
função tanto das estratégias do movimento social negro, que reivindica maior valorização da
identidade negra, quanto pelas políticas que vêm sendo implementadas, principalmente no
campo da educação, como desdobramentos dessas reivindicações, especificamente a Lei
10.639/2003. Ou, o que pode ocorrer com essas crianças é que, distintamente da preferência
relacionada às(aos) bonecas(os) brancas(o), em que foram ressaltados os critérios físicos,
entre outros, elas não tinham elementos para especificar os critérios que justificassem suas
escolhas e optaram pela generalização, a qual pode ser compreendida como uma forma de
silêncio.

Tabela 4. Critérios utilizados pelas crianças para não gostar, considerando bonecas(os)
pretas(os)
N° Boneca (o) Porque?
7 Preta “Achei ela feia”
2 Preto “Porque ele é preto”
6 Preta “Porque tem cabelo preto”
6 Preta “Porque ela é preta”
5 Preto Não declarou
X X “Não gostei de nenhuma outra”
6 Preta “Porque o cabelo dela é curto”
5 Preto “Porque ele é feio?”
Fonte: Elaborada pelas autoras

155
Em relação aos critérios utilizados pelas crianças e as justificativas individuais para
não gostar da(os)boneca(o) preta(o), ganha destaque: “Achei ela feia(o)”; “Porque ele é
preta(o)”. Como mencionado, a maioria das crianças que participaram da pesquisa podem ser
identificadas, por um processo de heteroatribuição, como pertencentes ao grupo racial negro.
Chama atenção tal fato, já que, supostamente, ao relacionar tais critérios aos seus próprios
traços físicos, isso pode demonstrar um processo de negação de si. Mendonça (2007), ao
escrever sobre identidade coletiva e identidade étnica, realiza uma distinção. Para ele, é
preciso separar a identidade coletiva (ser brasileiro) e a reivindicação de uma identidade
étnica (ser negro). Para o autor, no Brasil, apesar de o racismo não ser essencialista, ou seja,
não negar o tipo negro em sua humanidade, exige, para a sua aceitação social, que ele
embranqueça, que compartilhe da depreciação coletiva da imagem do negro ou dos credos e
das práticas de desvalorização generalizada de suas especificidades, as quais o identificam
coletivamente com outras pessoas negras. Isso decorre pelos impactos da racialização, que,
entre outros aspectos, possibilitou o desenvolvimento da ideologia do branqueamento
implementada no país. Como argumenta Silvério,
As teorias do branqueamento acabaram por refletir uma orientação política que, de um
lado, assumia a mestiçagem como um dado; de outro, procurava apontar para um
caminho que tinha como ponto de chegada a eliminação ou a redução drástica da
presença, ao menos cromática, do negro (Silvério, 2004, p. 11).

Segundo Petruccelli (1996), a teoria do branqueamento, por meio da imigração,


tornou-se aventada desde o século XIX, visando, sobretudo, minorar a constituição étnica —
negra — e aumentar a presença da raça branca. Para Bento (2002), isso teve impacto direto na
constituição da identidade das pessoas, já que o fenômeno do branqueamento se refere à
ideologia de valorização social do grupo dominante, o qual, nesse caso, é representado pelo
grupo branco. Dessa formulação surge a ideia de que quanto mais clara a cor da pele do
indivíduo, maior a sua beleza, melhor o seu caráter e capacidade intelectual. Carone (2002)
corrobora ao afirmar que o branqueamento, além de estar presente no terreno sociocultural,
também se expressou plenamente no plano da estética. Ou seja, o modelo branco de beleza,
considerado padrão, pauta, na atualidade, o comportamento e a atitude das pessoas, elevando
o desejo de eliminação de traços negros a fim de se aproximar (o indivíduo) ao branco no
plano das aparências (nariz afilado, cabelos lisos, lábios finos, cútis clara). Assim, as crianças,
ao considerarem as bonecas(os) pretas(os) feias(os), além de negarem seus próprios traços,
as(os) consideram assim por estarem distantes da tez, consideradas por elas e presente no
imaginário social: a cor branca.

156
Tabela 5. Critérios utilizados pelas crianças para não gostar, considerando bonecas(os)
brancas(os)
N Boneca (o) Porque?
Branca Não declarou
2 Branca “Porque ela é mais ou menos da minha cor”
3 Branca “Porque não gosta de sapatos Verdes”
“Porque ele não tem uma cor boa e nem tem uma
8 Branco
roupa legal.”
Fonte: Elaborada pelas autoras

A análise em relação as(aos) bonecas(os) brancas(os), diferentemente do que ocorreu


com as bonecas(os) pretas(os), não se verifica explicitadas depreciações em relação às
características físicas delas(es), ou seja, as crianças mencionam: “não gosto porque ela é mais
ou menos da minha cor” e, “porque ele não tem uma cor boa”. Tais respostas são
significativamente diferentes daquilo que afirmaram em relação as(aos) bonecas(os)
anteriores, novamente: “não gosto porque é feia” e “não gosto porque é preta”. Tais respostas
podem indicar que no processo de formação de sua identidade e com base em sua
competência, elas identificaram o que as pessoas supostamente gostariam de ouvir. Ou, como
já analisado: levantar critérios negativos para um grupo que foi coletivamente constituído e
vem sendo mantido, para ser valorizado, pode ser, ainda, um grande desafio para algumas das
crianças pequenas.

Considerações para continuar...

Com este artigo, objetivamos apresentar resultados parciais da pesquisa realizada


como Trabalho de Conclusão de Curso. Nesse sentido, a opção consistiu trazer dados gerados
sobre a questão racial na ótica das crianças frequentadoras de uma instituição pré-escola,
localizada em São Francisco do Conde, no Recôncavo da Bahia. Apesar da premência, tratar a
temática sobre identidade é sempre desafiador, considerando complexidades inerentes e as
diversas possibilidades para a sua compreensão. Por isso, em um primeiro momento, foi
apresentado qual, para este artigo, foi a escolha teórica. Posteriormente, por compreender que
a formação da identidade das crianças pequenas, considerando a raça e a cultura, ainda é uma
lacuna, particularmente no Brasil, buscou-se certo alargamento para compreensão do escopo
teórico e de pesquisadores que vem se debruçando sobre a temática, sem a pretensão de
esgotar a busca e a discussão.
A metodologia utilizada para trabalhar com as crianças, buscando compreender as suas
apropriações e formas de se expressar, ganha importância, já que utilizar as(os) bonecas(os),

157
confeccionados em tecidos e com diferentes tipos raciais, possibilitou a aproximação com
elas, facilitando tanto a linguagem quanto o diálogo. Para aqueles e aquelas que buscam estar
com as crianças e dar visibilidade a forma como elas são e suas competências, podem
concordar que não é um caminho fácil, já que os erros, as idas e vindas e, principalmente,
respeitar e estar com as crianças no aqui e agora, é, e será sempre, um risco necessário de ser
assumido.
Dito isso, mesmo considerando o pouco tempo de pesquisa com as crianças, foi
possível, com os resultados alcançados, perceber como que a racialização, a qual constitui a
sociedade brasileira e seu imaginário, impacta a constituição da identidade das crianças, ao
demonstrar, sem filtro, suas preferências raciais. O branco, tido como belo e o preto, como
feio. A cor preta, indesejada, rejeitada, infelizmente, é o que demonstrou estar sendo
apropriado pelas crianças. Um ciclo que, para além da resistência e lutas, se refaz, e continua
presente.
Sob esse aspecto, é necessário continuar reivindicando a presença, de forma enfática e
sistêmica, da Educação Infantil — compreendida como aquela construída por famílias,
docentes, gestores (internos e externos à instituição), crianças e demais profissionais. Porém,
apresentamos um chamado especial às(aos) docentes, para que, por meio de suas práticas
pedagógicas com as crianças, façam diferença; que aprendam e compreendam o seu papel
diante da formação da identidade das crianças, entre muitas outras, a racial. Concordando
mais uma vez com Gonzalez-Mena e Eyer (2014), que as crianças em instituições infantis
precisam receber atenção quanto à sua percepção da identidade racial, e os docentes e
responsáveis precisam observar detalhadamente a mensagem que as crianças recebem, e
incorporá-las ao senso de self delas. Algumas crianças podem desenvolver uma identidade
racial negativa, sem auxílios específicos ou intervenções. Outras crianças podem crescer
vítimas do sentimento de superioridade racial, exceto caso os adultos ao redor delas prestem
cuidadosa atenção ao ambiente e às mensagens que as crianças recebem.

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160
EDUCAÇÃO INFANTIL E PERIFERIA: COLONIALIDADES E
ENCRUZILHADAS NA BUSCA POR EMANCIPAÇÃO

Otavio Henrique Ferreira da Silva


Professor da Universidade do Estado de Minas Gerais
[email protected]

INTRODUÇÃO
Este texto parte na busca pela compreensão de como professoras e famílias da
comunidade escolar de uma instituição de educação infantil (EI) da periferia atuam na
formação das crianças para o exercício da cidadania. Para tanto, se fez necessário conceituar o
que é ser comunidade escolar periférica no contexto da EI e analisar os desafios para a
educação infantil tornar-se cada vez mais uma política pública que contribua para a superação
das desigualdades sociais e raciais enfrentadas pelas crianças e famílias.
O objetivo geral que orientou a pesquisa mais ampla (Silva, 2022) foi compreender o
que dizem e fazem professoras e famílias da comunidade escolar de uma instituição de
educação infantil da periferia quanto a educação das crianças de 3 anos para o exercício da
cidadania. Percorrendo as hipóteses de que a instituição de EI atende uma comunidade escolar
periférica, a existência de contradições sobre educar crianças para a cidadania frente aos
direitos sociais e a construção de uma sociedade emancipatória, e que os sujeitos periféricos
querem uma vida melhor para seus filhos(as), forjando, neles, resistências contra as opressões
que lhes são impostas.
Trata-se de pesquisa teórica e empírica tendo como base o método do estudo de caso
etnográfico. Na parte teórica aborda-se a relação entre cidadania, periferia e educação infantil.
Tem como aporte os estudos da infância (Sarmento, 2002; Kramer, 1985; Gomes; Teodoro,
2021) e estudos decoloniais-emancipatórios (Fanon, 1961; Freire, 2019a; Sousa Santos, 1999;
Hooks, 2013). A parte empírica constituiu-se por análise de documentos, observação
participante e entrevistas no período de agosto a dezembro de 2019 junto a uma turma de
crianças de 3 anos do Centro Infantil Municipal Palmares, em Betim - MG. É nos três
primeiros anos de vida os quais mais são negados os direitos de cidadania às crianças
(Rosemberg, 2013). Os dados obtidos foram analisados à luz dos estudos da infância e teoria
decolonial-emancipatória.

161
Por colonialidade, entende-se que é uma continuação do colonialismo na sociedade do
Estado Democrático de Direito, pois se continuam processos de expropriação dos bens
naturais e de controle territorial, bem como, por meio das relações do mercado financeiro e
dos Estados-nações modernos, promovendo formas de controle de bens físicos; mas também
formas de colonização das mentes e de auto-colonização, em que os próprios colonizados
criam relações de dependência com as estruturas e culturas coloniais (Fanon, 2008;
Maldonado-Torres, 2020). As evidências da colonialidade na sociedade atual perpassam as
relações de violência de gênero, racismo, exclusão social, pobreza e opressão nas infâncias,
tudo isso como uma herança do projeto moderno-capitalista-colonizador-eurocêntrico;
responsável pela implantação dessas opressões no solo brasileiro e nos demais países
colonizados (Carneiro, 2005; Quijano, 2005; Hooks, 2013; Bispo Dos SANtos, 2015; Gomes,
2017; 2020; Rufino, 2018; Almeida, 2020; Ribeiro, 2020; Grosfoguel; Bernadino-Costa;
Maldonado Torres, 2020; Krenak, 2020).
Já a emancipação trata-se de algo que não tem um fim em si, mas um permanente
processo de contra-colonizar, no qual se pode observar algumas pistas no pensamento de
intelectuais afropindorâmicos e dos aliados. Fanon (2008), por exemplo, sugere que
“queremos, nem mais, nem menos, criar periódicos ilustrados destinados especialmente aos
negros, canções para crianças negras, até mesmo livros de história, pelo menos até a
conclusão dos estudos” (FANON, 2008, p. 132). Bispo dos Santos (2015) acredita que “um
dos meios necessários para chegarmos a esse lugar é transformamos as nossas divergências
em diversidades, e na diversidade atingirmos a confluência de todas as nossas experiências”
(Bispo Dos Santos, 2015, p. 91).
Ao assumirmos o campo teórico-epistemológico da pesquisa como decolonial-
emancipatório, buscamos a confluência entre os diferentes autores e pensamentos que partem
do Sul global, sem deixar de dialogar com autores do norte que, vez ou outra, possam
apresentar contribuições significativas para o campo dos estudos críticos e para a construção
do projeto emancipatório (Sousa Santos; Meneses, 2009), uma vez que não fazemos aqui a
rejeição do método científico, mas sim sua radical reconceitualização (Stetsenko, 2021), numa
espécie de encruzilhada que almeja “a reinvenção dos seres, a partir dos cacos desmantelados,
o reposicionamento das memórias e a justiça cognitiva diante do trauma e das ações de
violência produzidas pelo colonialismo” (Rufino, 2018, p. 74). Deste modo, buscou-se uma
capacidade analítica que melhor compreendesse o contexto político-social, periférico, negro e
brasileiro.

162
Como será analisado nos capítulos adiante, mesmo frente a um cenário conservador e
excludente, há na práxis dos sujeitos periféricos potencialidades educativas emancipatórias
junto das crianças, buscando ensiná-las os caminhos da solidariedade, da consciência crítica,
do empoderamento, de se rebelarem contra injustiças sociais e de desenvolverem o espírito da
convivência coletiva.

1. O CIM PALMARES COMO UMA COMUNIDADE ESCOLAR PERIFÉRICA:


ANÁLISES QUALIQUANTITATIVAS

A periferia do ponto de vista local, isto é, nas zonas marginalizadas das cidades, tem
uma relação direta com a crise global do capitalismo. De acordo com D´Andrea (2020, p. 20)
na “sua acepção urbana, o termo periferia deriva dos debates econômicos ocorridos nas
décadas de 1950 e 1960, que versavam sobre a relação dos países da periferia do capitalismo
com as economias centrais”. Segundo Milton Santos (2009), o problema urbano das más
habitações, dos que moram nas periferias, nas favelas e nos bolsões de pobreza existentes no
centro, é reflexo da concentração de riqueza provocada pela globalização do capital.
De fato, se há crise, trata-se de uma crise global, sendo a crise urbana apenas um
epifenômeno. As condições nas quais os países que comandam a economia mundial
exercem sua ação sobre os países da periferia criam uma forma de organização da
economia, da sociedade e do espaço, uma transferência de civilização, cujas bases
principais não dependem dos países atingidos. As raízes dessa "crise urbana"
encontram-se no sistema mundial (Santos, 2009, p. 31).

Tendo em vista a relação dominadores e povos periféricos, verifica-se que as


desigualdades entre centro e periferia dar-se tanto nos aspectos econômicos, como também
sociais e raciais, por isso que a periferia quanto “mais longe dos centros de poder, mais difícil
é fazer ouvir a própria voz” (Santos, 2007, p. 118). Como continua Carolina de Jesus:
O tenente interessou-se pela educação dos meus filhos. Disse-me que a favela é um
ambiente propenso, que as pessoas tem mais possibilidades de delinquir do que tornar-
se util a patria e ao país. Pensei: Se ele sabe disto, porque não faz um relatorio e envia
para os politicos? O senhor Janio Quadros, o Kubstchek e o Dr. Adhemar de Barros?
Agora falar para mim, que sou uma pobre lixeira. Não posso resolver nem as minhas
dificuldades. ...O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A
fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no proximo, e nas
crianças (Jesus, 2014, p. 25).

As crianças também são impactadas e marcadas pela vivência do cotidiano periférico,


o que torna desfavorável seus processos de formação humana, política e social, conforme
aponta Freire (1997).

163
Não podemos deixar de levar em consideração as condições materiais desfavoráveis
que muitos alunos de escolas da periferia da cidade experimentam. A precariedade de
suas habitações, a deficiência de sua alimentação, a falta em seu cotidiano de
atividades de leitura da palavra, de estudo escolar, a convivência com a violência, com
a morte de que se tornam quase sempre íntimos. Tudo isso é, de modo geral, pouco
levado em consideração não apenas pela escola básica, de primeiro grau, em que essas
crianças estudam, mas também nas escolas de formação para o magistério. Tudo isso,
porém, tem enorme papel na vida dos Carlos, das Marias, das Carmens. Tudo isso
marca, inegavelmente, a maneira cultural de estar sendo dessas crianças (Freire, 1997,
p. 70).

A relação periferia como algo distante do centro seria enganosa, pois, tanto no centro;
ou não, ocorrem também situações de violência doméstica, envolvimento com tráfico, com a
prostituição, como também na periferia existem sujeitos que cursaram o ensino superior, que
se desenvolveram profissionalmente nas áreas dos negócios, artes, ciências e cultura 33. Assim,
é importante atentar-se às armadilhas presentes nos discursos vindos das classes dominantes
sobre a periferia, pois alimentam a discriminação social e racial dos povos periféricos, que,
em geral, são formados por negros e pobres, taxados como povos atrasados, baderneiros,
promotores da degradação urbana e pertencentes a uma área territorial das cidades
consideradas de sujeira social. Ao mesmo tempo que esses discursos das classes dominantes
discriminam a periferia, encobrem as mazelas sociais presentes no centro diante aos seus
interesses políticos, sociais, econômicos e imobiliários (Oliveira, 2018).
O CIM Palmares, apesar de estar em um território com características de subúrbio (D
´andrea, 2020), visto suas proximidades com o Centro Histórico da cidade, desde sua
fundação, esteve voltado para o atendimento da infância periférica. Em entrevista realizada
em 2015 com Lima, que na época estava na condição de avó de uma criança que frequentava
a instituição, mas que, desde a década de 1980, mantinha vínculo com o CIM Palmares; visto
que seus filhos(as) já haviam também frequentado o espaço, pôde-se observar características
da condição periférica do público atendido desde o início das atividades no local.
No contexto de Betim, é a Associação de Proteção à Maternidade, Infância e Velhice
(APROMIV) que demarcará no município as primeiras políticas em prol da primeira infância
periférica com seu surgimento em 1971, pois, anterior a este período, o poder público
municipal destinava recursos apenas aos jardins de infância particulares, os quais estavam
voltados para o atendimento da infância elitizada da cidade (Silva, 2016a; Miranda, 2008).
O Lions Club, instituição filantrópica internacional, foi responsável pela gestão do
CIM Palmares até o ano de 2010 (onde, a partir de então, a instituição foi incorporada à rede
33
Mesmo em todo cotidiano de miséria e fome, Carolina de Jesus foi se constituindo escritora. Vale lembrar
também que o lugar de fala desta pesquisa, cresce e se materializa em palavras, na localização “deperiferia”, ou
seja, de dentro da vivência cotidiana com o contexto periférico.

164
municipal de educação de Betim com gestão direta por servidores públicos da prefeitura
local), é uma associação norte-americana fundada em 1917, especializada em formação de
voluntários para prestação de serviços nas comunidades locais em várias partes do mundo. A
fundação de instituições com estas características seguiu as orientações nacionais e
(inter)nacionais durante o regime militar (1964-1984), onde se sobressai o incentivo aos
governos locais para desenvolverem e implementarem políticas compensatórias de caráter
higienistas ao atendimento da população pobre-periférica. Programas compensatórios seriam
uma espécie de estratégia para o enfrentamento e a superação do problema da miséria. A
educação compensatória foi considerada pelo governo brasileiro, na época, como uma espécie
de educação que resolveria vários problemas sociais, como o fracasso escolar, mas, na
verdade, serviu para esconder a real causa dos problemas sociais da sociedade capitalista-
colonial (Campos, 1979; Kramer, 1984; Silva, 2016b).
Quando se observa a relação entre os bairros Petrolina e Juazeiro, verifica-se que há
uma cultura presente na comunidade escolar, na qual, pensa-se, que a educação ofertada pelo
CIM Palmares — localizado no Juazeiro e bairro mais próximo à região do Centro Histórico
— é superior à educação ofertada pela creche conveniada a qual está presente no bairro
Petrolina há mais de 20 anos. Essa situação, que historicamente os fatos convergem para
confirmar a percepção popular, visto os privilégios que chegaram sempre primeiro nas
instituições mais próximas ao Centro Histórico de Betim, levam muitas famílias do Petrolina
a buscarem vagas para os filhos frequentarem a instituição de educação infantil do bairro
Juazeiro, que, como já apresentamos: das 388 crianças matrículas, 28,53% são do bairro
Petrolina. Sobre este ponto, Rodrigues, moradora de uma ocupação no Petrolina e mãe de uma
criança matriculada no CIM Palmares, ao participar da pesquisa de 2015, relatou que:
A maioria das mães também, igual eu mesmo que moro lá no bairro lá, a gente sabe
né, preferem aqui. Muitas mães deixam de colocar os meninos na creche lá, para
colocar eles aqui, porque aqui já é bem melhor, né, e tipo assim, no final do ano
vamos supor, se as escolas já estiveram muito cheias, tem duas salas aqui do primeiro
ano34, primeira séria né, porque também ajuda alguns pais, né, igual eu tenho um outro
menino dentro de casa, porque, vaga lá embaixo no bairro lá é só de três anos para
cima, entendeu. Aí, eu estou esperando uma vaga aqui até hoje, se Deus quiser ano
que vêm ele [o filho mais novo] vai entrar (Rodrigues, mãe, 2015, grupo de
discussão).

A busca por uma educação que possibilite às crianças e famílias condições de


cidadania para sua inclusão na cidade e sociedade é um dos fatores que, de acordo com Zumbi
e Rodrigues, fazem de muitas famílias do Petrolina uma parte considerável da comunidade
34
O CIM Palmares é uma instituição de educação que cede parte de seu espaço para turmas do 1º do ensino
fundamental da escola municipal do bairro Petrolina. No bairro Juazeiro só tem escola de ensino fundamental da
rede estadual de educação.

165
escolar do CIM Palmares. Nesse sentido, vale retomar o que Kramer (1985) diz sobre o
sentido da classe periférica com a educação de seus filhos:
Essa idéia vai no sentido inverso do preconceito, muito difundido entre nós, de que as
classes médias valorizam a infância enquanto as crianças das classes populares são
menos consideradas por suas famílias e até menosprezadas por elas. Sem querer
romantizar a dureza do trabalho infantil e as adversas condições sociais em que vive a
infância em nosso país, penso que é essencial superarmos o preconceito, percebendo
que essas crianças têm um papel social produtivo e direto no cotidiano de suas
famílias em função mesmo de sua sobrevivência. Por outro lado, nessas mesmas
crianças é concentrada a esperança de melhoria de vida das classes populares que
vêem na escola uma de suas chances de ascensão social (Kramer, 1985, p. 79).

O perfil da comunidade escolar do CIM Palmares é formado por crianças em maioria


declaradas como do grupo de negras35, totalizando 220 (58,5%), sendo pardas: 180 (47,42%),
pretas: 40 (10,31%) e indígenas: 3 (0,77%). As declaradas como do grupo de brancas
compõem 154 (39,69%), sendo brancas 140 (36,08%) e amarelas 14 (3,61%).
A declaração sobre a religiosidade das crianças e famílias em geral mantém a
tendência de religiões cristãs já verificada anteriormente (Silva, 2016b). Assim, declaradas
evangélicas foram 185 (47,68%), cristãs 22 (5,67%) e protestante 4 (1,03%). Estas três
declarações podem ser compreendidas como do grupo evangélico, o que totalizam 211
(54,38%), pois, embora as famílias utilizassem nomenclaturas diferentes, seguir-se-ia a
tendência, como verificado na etnografia. Católicas são 140 (36,08%), não tem religião 13
(3,35%), testemunha de jeová 6 (1,55%), Espírita 4 (0,77%), ateu 3 (0,77%), não declarado 3
(0,77%) e umbandista, kardecismo, judaica, indefinido, ecumênica, budista e agnóstica
tiveram uma declaração cada (0,26%).
Em relação à renda das famílias das crianças:
 38,8% (104 crianças) são de famílias que têm como renda até um salário mínimo36;

 82,5% são de famílias que tem como renda até dois salários mínimos;

 e que 95,1% são de famílias que tem como renda até três salários mínimos.
Conforme define o Decreto Federal 6.135/2007, que institui o Cadastro Único para
Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico), define-se que as famílias de baixa renda
no Brasil são aquelas cujo rendimento mensal é de até três salários mínimos ou renda per
capita de até meio salário mínimo (Brasil, 2007).

35
A declaração de cor/raça foi separada em dois grupos: o grupo Branco corresponde as pessoas declaradas
brancas e amarelas; o grupo Negro corresponde as pessoas declaradas pretas, pardas e indígenas. Fizemos essa
opção, por considerar, assim como Osório (2009), que há uma proximidade socioeconômica entre os
componentes de cada grupo.
36
Salário mínimo vigente para no ano de 2021 é no valor de R$1100,00 (Mil e cem reais).

166
Ao ter em vista os dados socioeconômicos do CIM Palmares, aponta-se que esta
comunidade escolar é em quase totalidade composta por famílias de baixa renda, pois 95,1%
são de famílias cuja renda mensal é de até três salários mínimos. E, ao retomar as proposições
do estudo de D´Andrea (2020), sobre a região periférica ter ao menos 20% da população com
renda per capita de até meio salário mínimo, identificamos que o perfil de renda per capita da
comunidade escolar do CIM Palmares preenche estes requisitos e com números bem
significativos, conforme a seguir.
A renda per capita média das famílias do CIM Palmares gira entorno de R$ 422,47.
Do grupo analisado:
 33,20% (89) declararam ter renda per capita de até ¼ do salário mínimo, isto é R$
275,00;

 76,86% (206) renda per capita de até meio salário mínimo, ou seja, R$550,00.

A presença significativa de pessoas brancas nesta comunidade possibilita compreender


que a população da periferia não é formada apenas por negros, embora estes sejam sempre
maioria nos indicadores de vulnerabilidade social, mas é formada também por pessoas
brancas pobres.
Observa-se que 25,40% dos pais e 19,2% das mães das crianças não concluíram a
educação básica e, também, 84,76% dos pais e 81,09% das mães só estudaram até o ensino
médio.
Um total de 98 crianças e famílias (25,26%) do CIM Palmares declararam receber
Bolsa Família. A renda média das famílias que recebiam o Bolsa Família fixou-se em torno de
R$914, 12 e a renda per capita média destas famílias foi entorno de R$219,51. Destas
famílias, 61,22% se declararam evangélicas.
Observa-se que a baixa escolaridade é ainda maior entre as famílias que recebem o
Bolsa Família, pois 49,33% dos pais e 34,4% das mães das crianças não concluíram a
educação básica. Também, 93,33% dos pais e 92,2% das mães só estudaram até o ensino
médio. E: 57,29% destas famílias não possuem um lar próprio, habitando, consequentemente,
em imóveis alugados, “invadidos” ou cedidos.
Em geral no CIM Palmares, 41% (159) das crianças e famílias do CIM Palmares não
possuem um lar próprio, ou seja: moram em imóveis alugados (64,77%) – (103), cedidos:
28,30% (45) ou “invadidos”: 6,91% (11).
A condição periférica do território e dos sujeitos participantes é a tônica base do
campo social analisado, tendo em vista as condições de vulnerabilidade e marginalização de

167
ordem: a) econômica — onde o perfil da comunidade é majoritariamente de baixa renda, com
até 3 salários mínimos; b) racial — uma comunidade em maior parte formada por pessoas
negras, a qual, historicamente, têm poucos direitos básicos assegurados para usufruírem de
uma condição mínima de cidadania, o que representa estar mais distante ainda da condição de
emancipação plena; c) social — pois são sujeitas e sujeitos periféricos; e no meio deste grupo
analisado há muitos pais e mães de crianças do CIM Palmares que só concluíram a
escolaridade básica, um número significativo de pais e mães destas crianças nem sequer
concluíram a educação básica, número, este, que é maior entre o grupo de famílias atendidas
pelo programa Bolsa Família, e também, um percentual considerável das crianças e famílias
não habitam em lar próprio; d) distância — além dos desafios em termos de locomoção no
território e acesso às políticas públicas e direitos sociais serem mais precários ainda aos
moradores do bairro Petrolina, os quais representam quase 30% da comunidade escolar do
CIM Palmares — que é um bairro amplamente periférico e historicamente enfrentam um
processo de exclusão social, cultural e político dentro do plano público da cidade; e) e estas
marcas periféricas analisadas foram localizadas também nas narrativas sobre as histórias de
vida dos sujeitos-adultos participantes da pesquisa, de maneira mais intensa nas falas de
Rayane (professora), Carolina (professora), Ayana (mãe), Abayomi (mãe), Dandara (mãe),
Adenike (mãe)37; mas também presentes, de forma menos intensa, nos dizeres de Núbia
(professora), Pedro (pai) e Luena (mãe). As favelas existentes nas cidades são apenas parte
dos efeitos do que o colonialismo provocou nos países subdesenvolvidos.

A educação das crianças em contexto periférico

A presença da colonialidade na educação das crianças do CIM Palmares


Realizar a educação das crianças de três anos utilizando a violência verbal é uma
prática também presente no cotidiano do CIM Palmares, como narrado por sujeitos
participantes da pesquisa. Na instituição havia professoras que não fizeram um curso superior,
como era o caso de Rayane. Porém, a prática opressora de gritar com as crianças no ambiente
educativo era proferida até mesmo por pessoas formadas, ou em formação no curso superior
de pedagogia, conforme assinalou Rayane.
Aquele refeitório ali, meu filho, era uma cantareira alto, cantando, e eu falava assim:
isso não é educar nunca, ou eu estou louca e estou muito velha e ultrapassada. Qual
faculdade que ensina que isso é educar? Que tudo ali do refeitório, quase todo mundo
fazia faculdade, cantando alto e grita com o menino, falando come depressa menino e
que não sei o quê. O menino não está querendo comer e fica enfiando na boca a colher
37
Estes nomes são fictícios para resguarda os sujeitos e instituição.

168
cheia, e vai, vai. Um dia, eu até falei com uma lá, tive que falar. Falei Jeová me
segura, mas eu vou falar, a criança vomitou na mesa de tanto ficar empurrando na
boca a comida, aí a criança foi e vomitou. Aí veio até as outras Otavio, vir e debochar
da criança, e eu falei “Jeová me segura senhor”. E eu respirei perto da minha
turminha, aí disseram: “Tá vendo? Guloso, quer comer muito”. Aí eu peguei e falei
assim: “Olha, mas também né, três colher de comida enfiando na boca dessa criança”,
eu falei pra ela que até eu vomitava, porque eu não como depressa, eu gasto 40
minutos pra eu almoçar (Rayane, professora, 2019, entrevista).

Para a vida das crianças e jovens brasileiros das periferias, o atendimento das
instituições de educação infantil e escolas representam mais do que ter acesso ao
conhecimento. É também um lugar de guarda, cuidado, proteção, alimentação e inclusão em
que as crianças oprimidas-periféricas devem ter acesso para serem reconhecidas como sujeitos
de direitos, como cidadãos. Entretanto, como Freire já ressaltou que tudo “isso é, de modo
geral, pouco levado em consideração não apenas pela escola básica, de primeiro grau, em que
essas crianças estudam, mas também nas escolas de formação para o magistério” (Freire,
1997, p. 70).
E por que persiste na sociedade, nas escolas, nas universidades, nos centros de
formação e entre as famílias e as professoras a forte tendência de pouco considerar a realidade
sociocultural das crianças oprimidas-periféricas nas práticas educativas cotidianas e nas ações
pedagógicas? Por que ainda prevalece entre nós uma ideia romanceada, quase ingênua, que
concebe a criança como ser angelical, sem carne, sem osso, sem sangue, sem cor, sem sexo,
sem cheiro, sem classe, sem origens ancestrais, sem origens coloniais?
São questões que nos remetem diretamente a um horizonte mais amplo, o qual nos
provoca a investigar os contextos que possibilitam e que fortalecem a hegemonia do projeto
moderno-capitalista-colonizador-eurocêntrico, o qual faz da sociedade brasileira um lugar
com fortes traços colonizadores e autoritários, o que consequentemente traz os seus
desdobramentos para estrutura da educação brasileira, a qual uma elite branca-colonial-
capitalista ainda lhe domina os postos estratégicos na regulamentação e no planejamento da
educação nacional.
O autoritarismo e a colonialidade possuem relação intrínseca, em que as tentativas de
controle e governabilidade daqueles que fogem dos padrões eurocentrados ocorrem por meio
da violência e disseminação do medo. Não obstante, na cena pública brasileira ocorrem
constantes ataques contra os direitos humanos e representações identitárias de mulheres,
negros, indígenas, pobres, encarcerados, população LGBTIQA+.
Outra situação observada na pesquisa foi apresentada por Carolina, também sobre a
alimentação na instituição. Ela relata que um dia em que precisou se direcionar à cozinha da

169
instituição para buscar biscoitos para Lélia e necessitou da ajuda da coordenadora pedagógica
Joana para conseguir o biscoito, mesmo sendo este um direito da criança oprimida-periférica
de comer, devido as suas necessidades alimentares especiais, que:
Aí a Joana falou assim: “Acabou o biscoito? Quem falou que acabou?”. “Falaram na
cozinha”. “Mas quem falou que acabou?”. “Ah, não sei”. Ainda falei com ela, desse
jeito: “Não me põe em situação difícil não, por favor”. Ela: “Tá doida, espera aí”. Aí,
nem é maisena, é leite, você coloca no leite e ele é rapidão. Você põe no leite e ela
consegue tomar café junto com os meninos. Aí, ela foi lá pegou e me falou: “Sempre
que acabar o biscoito da Lélia, ela não pode ficar sem biscoito, aí você me procura”.
Aí a Joana já me perguntou: “Quem que te falou que acabou o biscoito da Lélia?” Aí
eu falei assim: “Ô Joana, não me põe em situações difíceis, que eu não vou te falar, eu
não sei o nome da tia”. Não vou não uai, eu acho chato. Você acha que eu fiz certo?
[...] Aí, ela foi lá e arrumou o biscoito. Aí, às vezes a pessoa me acha até chata, mas é
muita responsabilidade, essa menina teve até problema de pulmão, então é muita
responsabilidade, tem que ter cuidado porque é eu que sou responsável (Carolina,
atendente pedagógica, 2019, entrevista).

A passagem acima trata-se de uma negativa que Carolina recebeu de uma das
profissionais da cozinha quando solicitou que fosse servido para Lélia o biscoito de maisena
que diferia daquele que estava sendo oferecido no café da manhã. A criança não conseguia
comer o biscoito de água e sal com facilidade devido aos seus problemas de saúde. Identifica-
se nesta situação a manifestação da colonialidade no trabalho da cozinha escolar, na prática de
profissionais que seguem as orientações de um cardápio alimentar previamente elaborado
pelos órgãos gestores, mas que oferecem, contudo, uma alimentação padronizada a todos,
tornando a alimentação uma espécie de “linha de produção” capitalista, reforçando o caráter
colonialista-eurocêntrico do currículo alimentar hegemônico o qual pouco considera as
especificidades das crianças, inclusive das crianças com deficiência ou com outras
necessidades especiais. Por isso,
torna-se evidente uma associação original entre a educação escolar hegemônica e o
projeto colonial, mas, mais do que isso, o debate realizado possibilita que
identifiquemos a incorporação pela escola, desde o século XVI até os dias atuais, do
modus operandi do colonizador, ao que temos denominado “colonialidade da
educação escolar” (Ramalho; Leite, 2020, p. 9).

No plano das relações micropolíticas estabelecidas dentro do CIM Palmares observa-


se também uma postura antiética quando a profissional da cozinha usa de um falso
testemunho ao afirmar que “o biscoito acabou”, o que logo depois foi desmentido por Joana,
visto haver — até o momento do requerimento feito por Joana — em estoque o biscoito
solicitado, endossando, ainda, que a criança “não pode ficar sem [o seu] biscoito”. Joana,
coordenadora pedagógica responsável pelo trabalho pedagógico das turmas de creche da
instituição, novamente emerge como um sujeito mediador importante e engajado em busca

170
por desburocratizar e contra-colonizar os empecilhos existentes diante das práticas
alimentares da instituição, visando, com sua intervenção, garantir a alimentação adequada às
crianças oprimidas-periféricas e a efetivação de seus direitos básicos de cidadania conforme
propõem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (Brasil, 2013).
Lélia, menina negra, pobre, moradora da periferia do bairro Petrolina e com
deficiência, era a única criança oprimida-periférica da Turma Quilombinho que não convivia
com a mãe e/ou o pai durante o período da pesquisa. Esta criança representa o perfil da
maioria das crianças e adolescentes abrigados no Brasil de acordo com dados de pesquisa
recente do Conselho Nacional de Justiça, pois dos 34.157 acolhimentos em andamento, 64,3%
são de crianças negras (pretas e pardas), sendo que “A maioria das crianças e adolescentes
acolhidos são da etnia parda (48,8%), 34,4% são da etnia branca, 15,5% preta, 0,8% indígena
e 0,4% amarela” (Conselho Nacional De Justiça, 2020, p. 63).
Verifico aqui a necessidade de articular a alimentação com qualidade social com a
formação decolonial-emancipatória, pois, ao conceituar o que é lugar de fala, Ribeiro (2020)
lembra de Anastácia, uma negra escravizada, quem usava a máscara do silêncio cujo
propósito inicial era o de a impedir de comer durante o trabalho.
Anastácia foi obrigada a viver com uma máscara cobrindo sua boca. Kilomba explica
que, formalmente, a máscara era usada para impedir que as pessoas negras
escravizadas se alimentassem enquanto eram forçadamente obrigadas a trabalhar nas
plantações, mas segundo a autora a máscara também tinha a função de impor silêncio
como para praticar tortura. [...] Kilomba nos incita a pensar sobre quais são os limites
impostos dentro dessa lógica colonial e nos faz refletir sobre as consequências da
imposição da máscara do silêncio (Ribeiro, 2020, p. 76; 77).

Anastácia, violentada em seus direitos fisiológicos, de existir e se expressar por meio


da proibição de alimentar, se assemelha às crianças do CIM Palmares quando violentadas no
direito de alimentar, e por isso estão sendo castradas no seu direito emancipatório de também
se expressarem. Na perspectiva dos sujeitos da periferia, a alimentação da instituição pública
é em si uma condição/formação emancipatória em que as crianças comem juntas, dividem o
alimento, experienciam limites e liberdades da convivência coletiva, possibilitando-as
confrontar-se com as desigualdades que o projeto moderno-capitalista-colonizador-
eurocêntrico acentua no mundo externo ao ambiente da educação infantil que é, nas palavras
de Adenike, o de ter pessoas “que vêm pra escola e vêm com a barriga vazia, tem criança que
não tem” e quando entram na instituição podem acessar a alimentação e voltar para casa com
a barriga cheia e o corpo cuidado.

171
Valores decoloniais-emancipatórios na educação das crianças do CIM Palmares
Na pesquisa no CIM Palmares foi possível perceber uma grande preocupação dos
familiares das crianças de três anos em respeitar as especificidades delas, como também pode
ser observado a seguir nos discursos de Abayomi. Ela tem uma única filha, assim como
Adenike. A filha de Abayomi é Monifa, que tem três anos e estava em seu segundo ano na
instituição. Abayomi alegou que tem sim expectativas em relação às escolhas da filha, como
por exemplo:
Ah, eu espero a Monifa, se formar na escola, escolher um curso pra ela, ter uma
profissão bacana, que ela goste. Não que seja bacana, mas que ela goste, que ela seja
feliz. E eu acho que nem tanto a remuneração hoje em dia faz tanta diferença, mas ela
estando feliz porque tem muita gente que ganha bem e não é feliz no que faz, né? Ela
se dedicando, ela sendo feliz, se sustentando, entendeu? Formando a família dela, eu
acho que eu espero é isso. Fazendo as coisas certa, não aprontando. E é isso mesmo,
ela buscar a felicidade dela, né? Sem atropelar ninguém. Sem querer nada do outro.
Caminhando com as próprias pernas dela e sendo uma mulher de bem (Abayomi, mãe,
2019, entrevista).

O desejo de que a filha seja feliz em sua vida é algo que está nas expectativas de
Abayomi para a caminhada da filha. Nas famílias da classe trabalhadora o trabalho tem um
valor base, mas, conjuntamente, a mãe pensa, de forma aberta, a possibilidade de Monifa
alcançar uma profissão “bacana” que possa ser uma profissão com formação superior e com
um salário o qual lhe proporcione qualidade de vida, como, também, na possibilidade de a
filha seguir outro caminho se assim ela se sentir mais feliz.
Ainda sobre o que disse Abayomi, destaca-se o sentido emancipatório de cidadania,
expresso em: para que a filha possa “ser” alguém sem “atropelar ninguém”, ser uma “mulher
de bem” e que caminhe “com as próprias pernas”. O caminhar com as próprias pernas tem a
ver com um sentido feminista — feminista negro — de empoderamento da mulher na
sociedade de classes, sentido que vem do próprio exemplo de sua mãe, quem migrou do norte
de minas para Belo Horizonte sozinha com os filhos para ter condições de criá-los. Quando
Abayomi diz que espera que a filha “não atropele ninguém” é um sentido contra-hegemônico
ao projeto do capitalismo, pois se não atropelar ninguém, pode até não alcançar um posto
profissional no mercado dos melhores salários; mas, também, não viverá com contas a se
prestar à justiça ou aos projetos morais da sociedade e, portanto, a tendência é ser mais livre e
feliz, estando distantes de lógicas predatórias.
As famílias das crianças do CIM Palmares querem que os(as) filhos(as) tenham
consciência crítica, e cada uma delas, conforme suas condições e possibilidades, buscam
dialogar e orientar as crianças da melhor maneira possível para o caminho de um senso de
coletividade, como mostra o relato de Ayana.

172
Delas terem consciência. A consciência porque no meu caso, eu nunca tive, assim,
muitos recursos. Graças a Deus e a minha mãe, o arroz com feijão na minha casa não
faltou. Então, assim, tudo que me faltou um dia eu vou tentando mostrar pra elas que
comigo, pra mim faltou, mas que pra elas, pode não faltar ou pode faltar porque a
gente não sabe [...]. Então, na questão do desperdício, a gente tenta passar pra elas
essa consciência assim, porque, por mais que, Deus abençoando a gente, por mais que
nunca venha a faltar pra elas, mas pra outros faltam. “Não desperdiça uma folha de
caderno”. “Usa a folha de caderno todinha, e se precisar saltar algumas linhas, salte,
mas faça o possível pra não ficar arrancando folha de caderno, pra não ficar
desperdiçando”. É tanto na questão do alimento, quanto na questão, assim, de caderno,
de coisas assim, que usa no dia a dia, pra poder usar. Eu acho assim, se você usar com
consciência, coisa material você tem por mais tempo. Quando você usa com mais
consciência, de que aquilo você vai precisar, de que aquilo não é descartável, você tem
por mais tempo. Então, são coisas que a gente vai tentando passar pra elas (Ayana,
mãe, 2019, entrevista).

Ter consciência para Ayana é não desperdiçar, desde as coisas do dia a dia, como
também lembrar que o alimento falta “pra outros” que precisam comer e que estes precisam
ser lembrados pelas filhas e por toda a sociedade.
Nesse sentido, a professora Núbia concorda que a instituição de educação infantil tem
um papel muito importante para o desenvolvimento do senso de convivência coletiva. Ela,
então, declara:
Eu acho que ajuda no desenvolvimento deles, né? Ué, eles vão aprendendo aos
poucos, com o brincar, com tudo na educação infantil. Eu acho que isso ajuda quando
eles vão chegar lá, com o relacionamento com outras crianças, que aqui tudo é junto,
você vê? Eles fazem tudo junto. Eles, é, comem juntos, até na hora de almoçar, de
brincar. Então eles têm que aprender, é junto, eles têm que aprender a dividir um
brinquedo, eles aprendem tudo, nada é só de um. Porque você sabe que criança
quando é em casa, sozinha, é tudo meu, é meu, é meu, é meu, e aqui você sabe que é
nosso. Eu quando converso, eu falo que aqui não é nada seu, é de todo mundo. Aqui
eles vão aprendendo nisso, eles saem daqui menos individualistas, essas coisas tudo
(Núbia, professora, 2019, entrevista).

Há uma grande potencialidade “contra colonial” (Bispo Dos Santos, 2015, p. 49) no
trabalho da instituição de educação infantil quando este se fortalece desde tenra idade a
relação entre os pares, conforme se observa no discurso de Núbia em “eles saem daqui menos
individualistas”, havendo uma educação para o senso de coletividade desde as brincadeiras
quando nos momentos de alimentação e aprendizagem, os quais são divididos e
compartilhados entre as crianças.

As encruzilhadas presentes na educação das crianças do CIM Palmares


O poder adulto cristaliza-se duplamente na educação. De um lado, é o adulto e
somente ele, quem educa a criança, seja diretamente, seja indiretamente quando
propõe seus subtítulos (por exemplo, os grupos) que representarão, como ele, a
sociedade concebida para o adulto. De outro lado, é a educação formal ou informal

173
que permite substituir a adequação da sociedade à criança pela adaptação da criança à
sociedade (Rosemberg, 1976, p. 1466).

Iniciamos este tópico com a citação de Rosemberg (1976) sobre o adultocentrismo na


educação das crianças brasileiras, esta, diretamente e/ou indiretamente realizada pelos adultos
educadores para que as crianças tenham seus corpos e mentes adaptados à manutenção da
sociedade a qual satisfaz as próprias vontades dos adultos (Bujes, 2000; Lima-Siva, 2006; D
´Almeida, 2009; Ferreira, 2013; Noguera, 2019; Noguera; Alves, 2019).
Isso pode ser percebido no contexto do CIM Palmares, na função pedagógica que a
fila desempenha na educação das crianças. A “questão da fila”, no contexto da educação
infantil, está também implicada em relações macro e micropolíticas pautadas pelo
adultocentrismo estrutural. Entendemos a influência do caráter estrutural da relação do adulto
para com a criança oprimida-periférica, pois, percebe-se que o adultocentrismo está
naturalizado na sociedade contemporânea e a
infância, na perspectiva adultocêntrica, é somente um período de transição e de
aquisição dos elementos simbólicos presentes na sociedade, tendo a criança, assim,
uma condição de ser menor, ser inferior, lugar que lhe é dado pelo grupo dominante
correspondente: os adultos e as adultas” (Santiago; Faria, 2015, p. 73).

Em diálogo com Rayane, a professora disse como se sente na encruzilhada por não
concordar, por exemplo, em fazer a fila com a intensidade com que se faz na rotina da
instituição, mas, conjuntamente, ser preciso cumprir ordens que recebe de seus superiores na
hierarquia do sistema educacional.
Sob outro enfoque, cabe destacar que Rayane não abdica de toda a sua autonomia.
Utiliza, às vezes, estratégias com as crianças como: “Na fila hoje todo mundo vai andando e
subir com um pezinho só e pulando” ou: “Hoje nós vamos subir de mão dada, tudo
comportado né”, ressignificando a ideia de fila e de organização do grupo de forma lúdica,
possibilitando com que as crianças utilizem seus corpos para outros movimentos que não
sejam os padronizados e de docilização de seus membros e sentidos. Na continuidade da
conversa com Rayane, emergem outros elementos simbólicos presentes na sociedade e
utilizados na educação das crianças por meio da fila de modo a adaptá-las aos princípios da
sociedade (Rosemberg, 1976).

Otavio - Agora tem uma outra coisa quando você fala assim, da fila, a fila…

Rayane - Dos sonhos!

174
Otavio - A fila dos sonhos! Então, algumas coisas eu entendi, que você falou porque
ano que vem, você sempre faz essa colocação também, do ano que vem…

Rayane - Isso, que eles vão estar em outra turminha…

Otavio - Eles vão fazer dessa forma e tal. Mas aí, qual é o sentido dessa fila na
formação da criança?

Rayane - Isso é muito cobrado aqui, muito, a primeira reunião nossa, as reuniões eles
focam muito nessa tecla de fila, fila... e que os meninos não sabem fazer fila. Eu já
ouvi gritos também “Que vocês não sabem fazer fila até hoje!” e não sei o quê... Então
eu fico tentando evitar eles sofrerem ano que vem, e eu também, né, se eu ouvir.
Segundo os meus ex-alunos, eu vou sofrer também... Porquê, igual a Joana, um dia
ela chegou e falou assim: “Agora, com esse jeito de servir almoço diferente, a gente
colocava eles na mesa e servia eles na mesa, só que agora, para trabalhar a fila,
justamente o objetivo era esse para eles aprenderem a fazer fila. Aprenderem a
respeitar o lugar”. “Você chegou primeiro, então você vai ser o primeiro”. “Você
chegou depois e você vai ficar depois”, porque às vezes a vida inteira eles vão usar
fila” (Rayane, 2019, entrevista).

A fila junto das crianças da Turma Quilombinho ganha o adjetivo de “dos sonhos”,
mas não é uma fila com contribuições para o presente das crianças. Não é uma “fila da vida
em tempo real das crianças”. Mas o “sonho” ganha um sentido do vir a ser, de algo para o
futuro, e o adultocentrismo se manifesta nesta prática porque é “o adulto, e somente ele, quem
educa a criança, seja diretamente, seja indiretamente quando propõe seus substitutos (por
exemplo, os grupos) que representarão, como ele, a sociedade concebida para o adulto”
(Rosemberg, 1976, p. 1466). Segundo, por outro lado, porque “é a educação formal ou
informal que permite substituir a adequação da sociedade à criança pela adaptação da criança
à sociedade” (Rosemberg, 1976, p. 1466). As crianças — na lógica adultocêntrica e
colonialista — são educadas para fazerem a fila diante de justificativas de inferiorização
delas, como denunciado por Rayane em “Eu já ouvi gritos também ‘Que vocês não sabem
fazer fila até hoje’ e não sei o quê” ou genéricas-adultocentradas em “a vida inteira eles vão
usar fila”, que se referem à vida adulta e não ao presente em que as crianças vivem suas
infâncias.
Quando Rayane explica sobre o sentido da fila na educação das crianças, aparece um
possível exemplo de sua utilidade na infância em: “evitar eles sofrerem ano que vem”. Isto
revela uma dualidade entre outra face colonialista da fila e o “sonho” como uma utopia de
educação para as crianças. Primeiro, se elas não forem educadas aos três anos, para
aprenderem a enfileirar, com 4 anos podem ser agredidas/ofendidas/violentadas ainda mais
com os gritos dos chamados “educadores”, taxadas como algo menor ou inferiorizada por
ainda não terem apreendido a fazer a fila (Santiago; Faria, 2015). Segundo, é preciso

175
considerar também que, dentro da lógica institucional do CIM Palmares, Rayane focaliza
ensinar a fila para que as crianças não sejam desrespeitadas em suas especificidades, assim: o
“sonho” também pode ganhar o sentido de fazer fila para caminhar rumo aos sonhos delas, e,
se os sonhos estão ausentes, “Tornar-se presentes significa serem consideradas alternativas às
experiências hegemónicas, a sua credibilidade poder ser discutida e argumentada e as suas
relações com as experiências hegemónicas poderem ser objecto de disputa política” (Sousa
Santos, 2002, p. 15).
O temor de Rayane faz com que ela mesmo procure ensinar a fila para suas crianças
numa pedagogia do “controlar sem ser rude”, em que é preciso destacar-se que: a) a
professora mesmo não é muito a favor da fila por ela padronizar o ser criança o que é algo
colonizador contra elas; b) mas a fila é muito cobrada pela equipe gestora e não é uma ordem
que fere seus princípios religiosos e morais de professora, porque estes também estão
centrados nos valores da sociedade adultocêntrica-colonizadora; c) mesmo a criança
oprimida-periférica sofrendo para aprender a fazer fila, isto pode ser pior ainda se ela não
aprender com três anos, pois, no ano seguinte, com 4 anos, dificilmente encontrará uma
educadora com afeto e sensibilidade, e possivelmente vivenciará um processo ainda mais
violento para aprender a fazer fila, algo que é constatado pela experiência de Rayane com os
seus “ex-alunos” e de seus relatos sobre a colonialidade da educação escolar presente no
ambiente educativo e entre seus pares educadores; d) e ainda, a alternativa que Rayane
encontra para exercer o trabalho pedagógico com as crianças, diante desta encruzilhada, é
ensiná-las a fila, propondo associações lúdicas como “dos sonhos”, “brincar de floresta”
durante os deslocamentos, ir andando de mãos dadas, “pulando de um pé só” e,
sincronicamente, oferecendo atenção, afeto, cuidado e amor a elas. Por isso, o que estava
ausente, o que é sonhado foi realizado alterando a lógica dominante, mesmo que no plano
imaginário (Sousa Santos, 2002).
Nesse sentido, em meio a encruzilhada educativa que se encontra, Rayane contra-
coloniza buscando, assim como nas gingas, “encontrar saídas para as arapucas que obstruem”
(Rufino, 2018, p. 73) as liberdades das crianças no contexto da educação infantil.

Miradas à guisa de conclusão


O pensamento decolonial-emancipatório é circular, se faz na dialética entre o que veio
antes, a realidade e o que transcende. Contra-atacar o colonial ainda existente na educação das
crianças durante a primeira infância, de certa forma foi o que, em linhas gerais, buscou-se/ e
ainda se busca por meio desta pesquisa.

176
De um lado, os caminhos nos quais as crianças da educação infantil em contexto
periférico são educadas para a cidadania são embaraçosos. De outro, é preciso considerar que
há na práxis dos sujeitos periféricos educadores potencialidades educativas emancipatórias
que inserem os filhos da precisão (Beneditto, 1999) durante o caminhar às margens, em uma
busca pelo ser mais em comunhão com os Outros. Por isso, o jogo entre as ideias que
confluem é circular.

Figura 18 – A confluência emancipatória de educar crianças oprimidas-periféricas para


a cidadania

Fonte: Autor, 2022.

Olhando deperiferia os sujeitos periféricos querem ser cidadãos plenos e emancipados


e o CIM Palmares representa um lugar público, lugar-comum, de iniciação a esse caminho por
meio da educação (Arendt, 2018).
Olhando de cidadania, a periferia se encontra à margem, mas se encontra também em
luta. E mesmo que as forças conservadores tentem descontruir o sentido emancipatório ao
construir uma narrativa com os sujeitos e sujeitas da periferia de cidadania enquanto
individualidade e de disciplinarização dos corpos periféricos como corpos disciplinarizados e
corpos a serem aniquilados, por meio de farsas como a de cidadão de bem, os sujeitos e
sujeitas periféricas, mesmo encontrando situações-limites, demonstram resistência e por isso
buscam educar seus filhos e filhas para uma realidade melhor do que tiveram, do melhor que
possam ser, uma educação emancipatória para o bem comum. Há na periferia o desejo de
respeito ao tempo infância, às subjetividades das crianças, um desejo de reforçar a empatia, de

177
superação do racismo e de qualquer forma de violência contra as crianças, as mulheres,
negros e Outros historicamente marginalizados.
Da mirada que parte da educação, se o aparato legal curricular aponta a educação para
a cidadania, essa não pode acontecer longe da realidade das crianças oprimidas-periféricas e
do território em que elas habitam. Os problemas sociais são preocupações presentes na
relação adulto-criança. Mas, para além dos problemas sociais presentes na periferia, há no
quer-fazer dos sujeitos e sujeitas oprimidos-periféricos a preocupação para que os próprios
adultos repensem a maneira como eles se relacionam com as crianças, de modo que nos
momentos educativos com as crianças se desconstrua o tempo alienante e cronometrado das
instituições que tendem a burocratizar sua rotina pedagógica em prol dos discursos de uma
vida útil e economicamente produtiva.
Em outras palavras, considera-se que há na periferia sentidos decoloniais-
emancipatórios na educação das crianças, mesmo quando os processos educativos são
influenciados por normalizações, moralizações e discursos que conformam os modos de ser,
poder e saber na sociedade/sistema capitalista.
Com esta pesquisa, verifica-se a necessidade urgente do poder público de colocar em
sua agenda a construção de um trabalho pedagógico na educação infantil, de caráter
emancipatório e descolonizador, visto que no contexto local, estadual e nacional,
paulatinamente se discute a relação entre educação infantil, cidadania e periferia tendo com
vistas à superação das desigualdades sociais e raciais. É preciso avançar com uma mudança
pedagógica-curricular na educação infantil voltada para a pluralidade de infâncias e crianças.
Destarte, os resultados desta pesquisa podem contribuir nestes termos.
Os caminhos construídos para análise do perfil de uma comunidade escolar periférica
podem ser aplicados nos contextos de outras instituições de educação infantil para melhor
conhecer a realidade da comunidade escolar. O Brasil está situado na periferia mundial e,
tendo em vista as políticas de educação infantil nas periferias urbanas, os resultados da
presente pesquisa podem contribuir para a compreensão dos desafios para se avançar com as
políticas públicas da área em contextos semelhantes.

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181
ITINERÁRIOS DE UMA PESQUISA SOBRE TENSÕES ÉTNICAS
E “RACIAIS” NA EDUCAÇÃO INFANTIL38

Christian Muleka Mwewa


Professor da Universidade Federal do Mato Grosso
do Sul
[email protected]

Alex Sander da Silva


Universidade do Extremo Sul Catarinense
[email protected]

Introdução39

A sociedade brasileira é constituída por diferentes grupos étnicos que a


caracterizam, em termos culturais, como uma das mais ricas do mundo. Entretanto, a história
dos sujeitos pertencentes a alguns desses grupos, negros e indígenas, por exemplo, é marcada
por desigualdades e discriminações que impedem, em certa medida, o acesso aos bens
culturais produzidos pela sociedade em sua totalidade. Este impedimento é a materialização
do lugar social ao qual os subalternizados são destinados, ou seja, identificar-se como aqueles
que não podem ter acesso à tais bens. Coloca-se aqui o primeiro desafio para a mudança deste
quadro. É preciso não se identificar com o lugar da falta para a superação da subalternidade.
Diante disto, para atender à pretensão do presente texto, apropriamo-nos do conceito
adorniano de ‘não-identidade’. Pretende-se explicitar as questões étnicas e “raciais” e indicar
algumas possibilidades de abordagem para as pesquisas neste campo. Nos referimos às
relações entre pretos, pardos, amarelos, negros (não-brancos) e brancos, tensionadas e
tangenciadas pelas dimensões da diversidade cultural, geracional, econômica, social e de
gênero.
Como é sabido, raça, como categoria biológica, no que tange aos seres humanos,
existe somente uma, mas diante de justificativas pseudocientíficas com finalidades

38
Agradeço à Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, conforme Portaria UFMS 141/2020; o presente
trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -
Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001/This study was financed in part by the Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001; e apoio do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (18/2021 – Universal – Processo 402665/2021-0).
39
Para atender às questões de comitê de ética, o presente projeto foi submetido no Edital: FOMENTO
INTERNO da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul na Modalidade de Projeto Institucional. Foi
aprovada na Plataforma Brasil sob o número de CAAE 52956015.8.0000.0021.

182
discriminatórias, legitimou-se a diferenciação entre os seres humanos, classificando-os, de
forma hierárquica, em diferentes “raças”. (Munanga, 2005-2006).40
Negamos, portanto, a subdivisão da humanidade em diferentes raças, mas a aceitamos
no tocante e flagrante subalternização social; por isso escrevemos o termo raça entre aspas, ou
seja, “raça”41.
Tomamos como campo paradigmático alguns centros de Educação Infantil da cidade
de Três Lagoas (MS), analisando documentos produzidos para e nos Centros Educacionais
em questão. A escola torna-se local privilegiado onde se explicitam os critérios que
qualificam e desqualificam os sujeitos por meio de dispositivos sociais (gênero, poder
aquisitivo, faixa etária, local de moradia etc.) e culturais (desempenho linguístico, ter viajado
por outros países, acesso à Arte etc.). Esse procedimento de (des)qualificação é potencializado
quando se agrega o critério étnico e “racial”. Assim, o presente texto objetiva indicar
possibilidades teóricas e metodológicas no contexto das pesquisas sobre as socializações,
tensionadas e tangenciadas por questões étnicas e “raciais” no contexto Educação Infantil.
Para desenvolvimento de pesquisas deste porte, faz-se necessário a mobilização de
uma equipe de pesquisadores que devem contar com todos os níveis, desde iniciação
científica, mestrado, doutorado até estagiários de pós-doutoramento. A equipe deve estar sob
a supervisão de um coordenador, além da colaboração (in)direta de pesquisadores de
diferentes instituições nacionais e estrangeiras para a melhor analisar os dados. Pode-se iniciar
por um levantamento documental e bibliográfico, eleger o itinerário da pesquisa que deve se
apropriar do instrumental etnográfico que contemple análise documental (registros da
secretaria estadual de educação, dentre outros), observação dos contextos formativos e das
relações entre crianças/adultos, crianças/crianças.

40
Por compreender que “raça” como categoria biológica em relação aos seres humanos, existe apenas uma, mas
os discriminadores se apropriam desta categoria socialmente para legitimar os seus preconceitos, validando,
portanto, uma atuação racista de maneira hierarquizada na qual os considerados da “raça” branca ocupam o topo
da pirâmide social, cultural, econômico, educacional dentre outros.
41
O termo “raça”, na sociedade, vale pelo seu manejo conceitual como instrumento socialmente discriminatório,
mas que não encontra respaldo nas classificações biologias que determinam as raças. Nesta operação há uma
dimensão patológica sadomasoquista, pois os não-brancos, que são discriminados justamente por algo
inexistente (diferenças entre os seres humanos enquanto raça), se aferram a defender seus direitos enquanto raça
negra ou indígena, por exemplo. Porém, num gesto acusatório, se dirigem ao seu algoz “como branco”,
aceitando a diferenciação inexistente. O sadismo reside na presentificação do abjeto (negro, o Outro do branco),
pois, ao afirmar a sua presença, confirma o fracasso do algoz que não logrou em dizimá-lo e, por isso, sofre. Já o
masoquismo se manifesta na aceitação de ser o Outro do branco, o qual não encontra reciprocidade naquele, mas
se conforma no lugar em que foi colocado, ou seja, de negro ou indígena. Essa operação só pode ser pensada
como um ciclo ambivalente, no qual um não existira sem o outro. Por isso é estrutural (Fanon, 1952).

183
Mapear os Centros de Educação Infantil42. A partir desse mapeamento, pode-se
indicar, qualitativa e quantitativamente, por meio dos documentos da Secretaria de Educação
do Município em questão, o número de matrículas das crianças na perspectiva étnica e
“racial” frente às diretrizes estaduais e nacionais; depois, fazer uma incursão paradigmática
nesses C.E.I.s apoiados em instrumentos etnográficos de pesquisa de campo e que tomará os
documentos para a análise bibliográfica, também, como instrumentos metodológicos (campo).
Os instrumentos, quando possível, devem se basear na observação (in loco) dos contextos
formativos (educativos) e a incursão nos documentos produzidos para e na escola como
principais instrumentos de geração/coleta de dados (Amaral, 2015); questionários devem ser
aplicados a gestores, professoras, faxineiras, porteiros e responsáveis; cadernos de campo e/ou
filmagens, registros de áudios e fotografias, se forem permitidos, sem a identificação dos
envolvidos quando não autorizada; conversas informais e formais com a utilização de
recursos audiovisuais se necessários e permitidos.
É importante não sufocar (engessar) os procedimentos metodológicos para que se
possa projetar e perspectivar ou, até mesmo, especular. O objeto poderá demandar outras
formas e recursos para sua apreensão. Em outras palavras, as certezas revestem, os/as
pesquisadores/as, de uma cegueira ensurdecedora diante das múltiplas possibilidades do
objeto.
Neste sentido, é importante apoiar-se em autores que centram seus estudos, de uma
forma mais abrangente, nas relações sociais, gênero, etnia, pertencimento, crítica cultural e
sociedade. O referencial teórico, neste caso, poderá transitar nas diversas áreas das ciências
humanas (educação, filosofia, sociologia, antropologia, estudos culturais etc.).

Métodos e procedimentos
Após a realização de um levantamento bibliográfico, elegeu-se o itinerário da
pesquisa etnográfica que contemplou análise documental (registros das secretarias municipal,
estadual e federal de educação), observação dos contextos educativos e das relações entre
crianças e adultos, ou seja, buscou-se uma descrição densa da realidade e dos documentos
pesquisados como procedimento metodológico.

42
Esse levantamento (mapeamento) pode ser feito a partir da autodeclararão dos pais, mães e/ou responsáveis,
com alguns desdobramentos em andamento, por exemplo, a análise do perfil socioeconômico, gênero e cultural
dessas crianças, mediante referências teóricas indicadas e outras a serem selecionadas a depender dos dados.
Pensamos que a análise de documentos nos poderá auxiliar a adentrar o campo com mais segurança, em outras
palavras, com menos vacilações para a atividade de etnográfica no contexto escolar dos Centros de Educação
Infantil. Para Geertz (2012), “o etnógrafo inscreve o discurso social: ele anota. Ao fazê-lo, ele o transforma de
acontecimento passado, que existe apenas em seu próprio momento de ocorrência, em relato, que existe em sua
inscrição que pode ser consultado novamente.” (p.14).

184
A pesquisa em andamento, na sua primeira fase, objetiva mapear, qualitativa e
quantitativamente, o número de matrículas das crianças, na perspectiva étnicas e “raciais”, a
partir dos documentos da secretaria de educação do Município de Três Lagoas e do Estado de
Mato Grosso do Sul, interrogando sobre as proximidades e distanciamentos legais; depois
concentra-se nos Centros de Educação Infantil (0 a 5 anos) em Três Lagoas (por ser o
município onde está localizado o Campus da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul ao
qual a coordenação da pesquisa está vinculada) para uma posterior incursão com instrumentos
de inspiração etnográfica: questionários; cadernos de campo; observação; conversas informais
e formais com a utilização de recursos audiovisuais, se necessário. Para as observações,
anteriormente citadas, deve ser considerado os livros, as bonecas, os brinquedos, os jogos, as
músicas, as imagens expostas, os espaços, os objetos que tematizam a diversidade enquanto
elementos a serem observados e geração de dados43 na pesquisa de campo.
Ao realizar uma pesquisa com inspiração etnográfica, utilizamos, como um dos
instrumentos, a análise documental como estratégia para o desenvolvimento do projeto para
além de operar com o conceito de ‘não-identidade’. Outra estratégia, também, foi o
levantamento do número de matrícula de crianças não-brancas (pretas, pardas, amarelas e
negras) em comparação com as crianças brancas, efetuado nos Centros de Educação Infantil
do município envolvido nesta pesquisa, que por ora se centra em Três Lagoas em um centro.
Foram contabilizadas as crianças cujas fichas de matrícula constam a declaração feita por seus
pais, mães e/ou responsáveis44.
Outra estratégia utilizada foi consultar a secretarias de educação para a geração de
dados (os dados dos quais dispõem sobre a dimensão étnica das crianças matriculadas nos
C.E.I’s dos municípios indicados)45. Isso nos possibilitará uma melhor compreensão sobre a
ocupação das escolas, no que tange as matrículas de crianças não-brancas. Porém, esse dado
numérico por si só não é eloquente se não for comparado com a frequência desses/as
alunos/as. Por isso, justifica-se a inserção dos/as pesquisadores/as de diferentes níveis
formativos, como, por exemplo, Iniciação Científica, formandos/as em cursos de graduação
com produção de Trabalhos de Conclusão de Curso, mestrandas/os, doutorandas/os e pós-

43
A autora utiliza “o termo geração de dados – e não coleta de dados – com base em Graue e Walsh (2003), que
sinalizam o fato de que os dados não “andam por aí”, esperando que algum investigador os recolha; ao contrário,
eles provêm das relações e das interações complexas que o investigador estabelece com o campo investigado.”
(SIMÃO, 2013, p. 1).
44
Os números coletados encontra-se em tratamento qualitativo. Por isso não podem ser apresentados sob risco de
não serem fidedignos, pois até o momento a secretaria de educação de Três Lagoas-MS não os confirmou.
45
Tais dados estão em tratamento e confirmação pela secretaria por isso não pudemos apresenta-los.

185
doutorandas/os), nos Centros de Educação Infantil para a geração/coleta (produção) e
posterior análise e divulgação dos dados em periódicos de impacto nacional e internacional.
Até o momento os membros da equipe em nível de graduação e mestrado já estão inseridos
em campo.
Segundo Geertz (2012), o etnógrafo pode enfrentar alguns problemas durante o
período da pesquisa, como, por exemplo, “[...] uma multiplicidade de estruturas conceptuais
complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente
estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e
depois apresentar.” (p. 20). Além das observações com os devidos registros (estratégia),
mediante inserção no campo de pesquisa, é importante destacar que utilizamos outros
instrumentos, neste contexto, por exemplo, o diálogo permanente e constante com a equipe
que faz parte desta proposta e os parceiros (outros pesquisadores) com os quais mantemos e
manteremos um profícuo contato.
No decorrer da pesquisa pretendemos utilizar outros instrumentos, como por exemplo,
filmagens, fotografia, diálogos a serem gravados, caderno de campo e questionários que serão
aplicados a professoras/es, pais, gestores e outros agentes pertencentes ao contexto dos
Centros de Educação Infantil. Os instrumentos, enunciados acima, configuraram-se em parte
da estratégia para descrever os dados na tentativa de uma reconstrução contextual do ponto de
vista da diversidade étnica e “racial” para entender como se expressam tais relações com a
atribuição de significado às questões sociais da/na realidade pesquisada. Esse procedimento se
substancializou nos objetivos específicos enquanto itinerários que orientam para o objetivo
geral da pesquisa. Assim, esses objetivos, em alguma medida, configuram-se em etapas que,
no seu conjunto, iluminam o objetivo geral, neste momento, inapreensível na sua completude
de forma independente.

Para uma identificação da pesquisa


Temos como pretensão apresentar uma melhor explicitação das relações étnicas e
“raciais” no contexto da Educação Infantil em Mato Grosso do Sul por meio do conceito de
‘não-identidade’ em Três Lagoas-MS. Pode-se dizer que um investimento significativo na
Formação Cultural, em termos adornianos, para infância, em consonância com a formação dos
agentes responsáveis pelas nossas crianças, em um período significativo do dia, poderá
acarretar mudanças no futuro para as crianças.
Apoiamo-nos, perifericamente, no tema geral da Dialética Negativa por meio da
categoria de não-identidade, paradoxalmente para apresentar o tema da identidade

186
tangenciada pelas relações étnicas e “raciais” no contexto da educação infantil. Faz-se
importante dissertar sobre o conceito de ‘não-identidade’, alicerce das nossas operações
analíticas, para posteriormente apresentarmos o campo em que esse conceito servirá para a
interpretação e análise dos dados.
Podemos tomar como indicação teórica a operacionalização do conceito de ‘não-
identidade’ realizada em outra ocasião (Mwewa, 2010). Na ocasião foram analisados os
processos formativos de três personagens de romances clássicos por meio dos conceitos de
formação cultural e ‘não-identidade’. Esse último como norteador do livro de Theodor
Adorno Dialética Negativa (2003 [edição francesa], 2009 [edição brasileira] e 1973 [edição
alemã]).
Dentre alguns comentadores do projeto da Dialética Negativa, como, por exemplo,
Christophe David (2006), Rolf Tiedemann (2006), Hans-Günter Holl (2007) e Marcos Nobre
(1998), há um consenso quanto à temática central desta obra de Th. W. Adorno. Para eles,
Adorno, por meio das obras de Kant e Hegel, recoloca o problema da possibilidade de
existência da metafísica tal como a formulou Aristóteles. Ou melhor, pergunta-se qual é a
atualidade da metafísica, uma vez que Kant, Hegel e Marx se dedicaram, de certa forma, a
mostrar seus limites. Em uma palavra, “la métaphysique est- elle toujours possible après
Auschwitz?”, interroga-se, retomando a pergunta adorniana, David (2006). Vejamos um dos
limites que Adorno aponta em Kant:
Cependant l'absolu, tel que la métaphysique se le représente, serait le non-identique
qui ne surgirait qu'après la disparition de la contrainte de identité. (...) Il appartient à la
détermination d'une dialectique négative de ne pas se reposer en elle-même comme si
elle était totale; c'est là sa figure d'espérance. (...) Certes Kant a pour sa part conçu,
dans la détermination de la chose-en-soi comme essence intelligible, la transcendance
comme non-identique, mais il l'a assimilée au sujet absolu et s'est donc encore incliné
devant le principe d'identité. (Adorno, 2007, p. 490).

Segundo Marcos Nobre (1998, p. 165), “Adorno insistia em que Hegel havia
acrescentado algo de ‘não-kantiano’ em sua crítica (...) [e] a filosofia kantiana é
simultaneamente uma filosofia da identidade (...) e uma filosofia da ‘não-identidade’...”. A
questão recém-colocada sobre a possibilidade da metafísica é a questão sobre a qual Adorno
vai se debruçar. Mas, dentre outras questões, Adorno também trata da possibilidade de
experiência do sujeito na sociedade, regida sob o imperativo da “ontologia do estado falso [ou
seja, ontologia da não-identidade]”, como afirma Nobre (1998).
Segundo esse autor, “não se trata apenas de constatar que a verdade não é realizável
sob as condições sociais vigentes, tornando-se, portanto, utopia. Trata-se de constatar que a
verdade é realizável e que não se realiza ao mesmo tempo”. Logo, “é certo que a práxis foi

187
‘adiada por tempo indeterminado’, mas, por outro lado, Adorno tem diante de si a
‘possibilidade concreta da utopia’, e é somente diante dessa possibilidade que a dialética se
torna a ‘ontologia do estado falso’.” (Nobre, 1998, p. 157-158). Nesse “estado falso”,
implementado pelo mundo administrado, “para Adorno, a possibilidade concreta da utopia
não é a realização da identidade de sujeito e objeto. ‘O estado falso’ é o ‘estado de
identidade’, a ‘absorção do conceituado no conceito’.” (Nobre, 1998, p. 158). Ou seja,
traduzimos o objeto tal qual o concebemos intelectualmente, movimento do qual a
problemática da não-identidade se afasta para uma apreensão sensível do objeto. Esse
afastamento fomenta a possibilidade de manutenção da tensão da identidade com o estado
falso e desigual. Em tempos de pandemia, a desigualdade objetiva encontra na subjetividade o
locus privilegiado por meio da autocobrança.
Reafirma-se o caráter contingente do pensamento, ou seja, o fato de que o objeto nos
convida a pensar sobre ele para a confirmação do movimento do pensar frente ao fato ou
objeto. Adorno afirma que:
la métaphysique est la forme de conscience dans laquelle on cherche à percevoir plus
que ce qui arrive ou ce qui ne se contente pas d’arriver, car cela doit être pensé dans la
mesure où ce qui arrive, comme on dit, nous invite à le faire. (Adorno, 2006 apud
Tiedemann, p. 217).

Segundo Christophe David (2006, p. 7-8), na mesma trilha de Aristóteles frente às


Ideias platônicas, Adorno define a metafísica a partir de um duplo gesto: ela critica e salva.
Em outras palavras, é o que se propõe Adorno ao criticar e salvar o nominalismo que
“prouvant ainsi l’actualité de la métaphysique dans un contexte déterminé à la fois par la
question de la fin de la philosophie et par les effets sur la culture de ce qu’il désigne
métonymiquement du nom d’ ‘Auschwitz’.” (David, 2006, p. 8). O autor afirma que, para
Adorno, a possiblidade de Auschwiz foi determinada pela “decomposition interne” da
metafísica, que se configura para este autor em “dernière instance” da História. A metafísica
deveria nos encaminhar a não-identificar-se com o horror de Auschwitz e, no Brasil, com o
horror da escravidão negra e indígena. Mas, a repetição de novelas de época reafirma o quão
nos identificamos com o algoz, uma vez que essas atingem audiências consideráveis.
Pode-se dizer, segundo David (2006, p. 9), que o nominalismo, cuja hegemonia
Adorno critica, reflete a racionalidade que gerou Auschwitz. Esta mesma racionalidade está
na origem do conceito de “não-identidade”. A “não-identidade”, segundo Nobre (1998), “é
propriamente o limite do pensar, pensar que, segundo Adorno, quer dizer identificar. [Neste
sentido] a dialética é ‘a consciência consequente da ‘não-identidade’”. (p. 166). Portanto, ao
identificar (pensar) não nos identificamos com o horror.

188
O conceito de “não-identidade” refere-se também ao indivíduo singular que se
diferencia daqueles que são transformados em exemplares e funcionalizados no mundo
administrado. Em uma palavra, é aquele que não se identifica com mundo que o concebe.
Assim, diz David (idem), em relação ao nominalismo criticado por Adorno, “en engendrant le
‘monde administré’, le nominalisme n’a pas aidé le singulier à s’imposer: il a même au
contraire contribué à l’exclure”, portanto, “Auchwitz – continua o autor –, c’est, selon Adorno
et Horkheimer, la réaction du ‘monde administré’ pour protéger le règne du particulier, de
l’identique contre la menace que représentent le singulier, le ‘non- identique’”. Vejamos mais
de perto esta passagem: pode-se dizer que o nominalismo de certa forma obscurece a
possibilidade do singular que poderia se impor frente à funcionalização dos exemplares.
Assim, Auchwitz se torna um choque (momento de ruptura) que veio socorrer o particular e o
idêntico, que esperam pela sua continuidade no mundo administrado. Exemplificaremos esse
processo de maneira mais próxima. É importante lembrar de que os exemplos são aqui
tomados como dispositivos didáticos e não quanto à facticidade dos conceitos. O singular (o
não-idêntico aos exemplares produzidos no mundo administrado, que é a transformação dos
indivíduos em exemplares e sua funcionalização) representa uma ameaça frente ao reino do
particular, do idêntico. É possível, por exemplo, pensar em Diadorim como aquela que
representa o “não-idêntico”, o singular no sistema jagunço de Riobaldo, especificamente.
Pode-se dizer que a batalha final, em que se deu a morte de Diadorim, simboliza, assim como
outras barbáries (sendo o sertão uma metáfora social, é a morte de seres humanos que está em
questão), a derrota da civilização jagunça? E a morte de Diadorim afirmaria a vitória do
idêntico no sistema jagunço? Porém, não sucumbir, a exemplo de Diadorim, abre caminho
para a crítica imanente dos mecanismos que nos dominam.
Nesse mundo, portanto, é preciso um sujeito que tenha força,
une force represente bien ...une conséquence philosophique qui s’en tient fermement
et de façon critique à la possibilité de l’expérience sensible (...); Adorno la désigne
comme le non-identique et marque ainsi [la] présupposition d’objectivité de la vérité.
(Holl, 2007, p. 526).

Somente pela “não-identidade”, na excelência do singular, é que se pode diferenciar-se


diante de um contexto que prima pela identificação e dissolução de todos no mesmo espaço.
Em outras palavras, “trata-se de considerar o singular sem reduzi-lo à ideia em que se dissolve
e perde o que faz dele singular; mas também se trata de destruir o seu caráter de ‘dado’” —
essa destruição se refere à possibilidade —, “de destruir a identificação corriqueira entre
singularidade e imediatidade, de modo a restar espaço para a crítica do estado de coisas em
que o singular se oferece primeiramente.” (Nobre, 1998, p. 171). O próprio Adorno

189
arremataria, sobre a questão da “não-identidade”, dizendo que “la régression de la consciense
est le produit de son manque d’autoréflexion. (...) De façon latente, la non- identité est le telos
de l’identification, ce qu’il faut sauver en elle; l’erreur du penser traditionnel est de considérer
l’identité comme son but.” (2007, p. 184). É o mesmo erro em que recaem aqueles que tomam
Diadorim como igual no sistema jagunço, por aparentar uma masculinidade externa. Aqui,
insistimos que ela expressava, sim, uma outra feminilidade diante do mundo objetivo.
Assim, a possibilidade de “destruição” da identidade, quando pensada de modo a
reduzir o sujeito a um simples exemplar, reside na crítica imanente, ou seja, na crítica da
totalidade do contexto vivenciado. É importante entender a “imanência” como “a totalidade
daquelas posições de identidade cujo princípio é reduzido a nada na crítica imanente.” (Nobre,
1998, p. 173). De certa forma, trata-se de invalidar toda e qualquer crítica feita de fora. Ou
melhor, “temos de pensar antes de mais nada que ‘dentro’ e que ‘fora’ estão sendo
pressupostos e que implicações têm esses pressupostos para a análise.” (Nobre, 1998, p. 174).
Dificilmente essa crítica, quando feita somente de fora, respeitaria a coerência interna
do objeto, a qual é essencial para que se configure de maneira a possibilitar a si mesma.
Enquanto se coloca uma necessidade de “destruição” da identidade pela crítica imanente,
também é por meio dela que se deve vislumbrar a restituição do objeto. Os próprios elementos
internos do objeto “recém-destruído” pela crítica é que servem de base para a busca do
encontro da sua verdade. Do contrário, a crítica em nada ajudaria e possibilitaria a
reincidência dos limites apresentados pela coisa/objeto. A alternativa para que isso não ocorra
é proceder de maneira imanente, pois este procedimento, “por ser o mais essencialmente
dialético [dialética significa intransigência contra toda e qualquer reificação, diz Adorno em
Crítica cultural e sociedade], resiste contra isso”, isto é, contra os critérios dos
administradores da cultura, por exemplo.
Portanto, “uma crítica como esta não se limita ao reconhecimento geral da servidão do
espírito objetivo, mas procura transformar esse reconhecimento em força de observação da
própria coisa.” (Adorno, 2001, p. 22-23). Mesmo que o resultado final seja a sua morte, isto é,
a sua impertinência, pois a experiência não pode ser subtraída do processo da vida. Não é
possível, no momento da morte, anular o vivido pela pessoa que acaba de morrer, pelo
contrário; ela é somente marcada por isso: a sua experiência enquanto “vivente”, como diria
Mia Couto. Portanto, não se identificar significa lutar contra barbárie coletiva e qualquer nível
de reificação subjetiva subjugada ao coletivo. Mas, conjuntamente, esse processo tende a
identificar (pensar) o não-idêntico como objeto de aniquilação coletiva. É a partir desse

190
conceito que perspectivamos o estudo a ser desenvolvido, tendo como objeto as relações
étnicas e “raciais” no contexto da Educação infantil como campo.
Por fim, pode-se dizer que a “não-identidade”, segundo Nobre (1998), “é propriamente
o limite do pensar, pensar que, segundo Adorno, quer dizer identificar. [Neste sentido] a
dialética é ‘a consciência consequente da ‘não-identidade’”. (p. 166).
Mais abaixo veremos uma outra definição da “dialética”, proposta por Adorno. Este
conceito de “não-identidade” refere-se, no contexto deste trabalho, também, ao indivíduo
singular que se diferencia daqueles que são transformados em exemplares e funcionalizados
no mundo administrado. Em poucas palavras: é aquele que não se identifica com o mundo que
o concebe. Assim, retomando o que diz David (idem), em relação ao nominalismo criticado
por Adorno, “en engendrant le ‘monde administré’, le nominalisme n’a pas aidé le singulier à
s’imposer: il a même au contraire contribué à l’exclure”, portanto, “Auchwitz – continua o
autor –, c’est, selon Adorno et Horkheimer, la réaction du ‘monde administré’ pour protéger
le règne du particulier, de l’identique contre la menace que représentent le singulier, le ‘non-
identique’”.
Portanto, é no movimento de identificar-se (designação de outrem) e não-identificar-
se (autorreconhecimento) alicerçado em sua relação ambivalente, especialmente no contexto
formativo, que o sujeito não-branco contextualiza seu entorno social subjetivamente
objetivado. Se o sujeito/indivíduo é o não-idêntico, assim como a arte é para Adorno, deve-se
saber que um dos objetivos últimos da arte não é sua realização, mas sim a implementação de
“ranhuras na paisagem”. Em termos de hierarquias racializadas socialmente, diríamos que se
identificar como não-branco é reafirmar a potencialidade de equidade social diante das
camadas subalternizadas contrárias a aceitação da pseudodemocracia racial. Pode-se dizer
pseudo em dois níveis: (1) porque não existem raças, mas sim a raça humana; (2) porque não
pode haver democracia a partir de algo que não se difere (Mouffe, 2006). Assim, tal potência
pode tornar-se não utilitária para aqueles que a pretendem idílica na permanente conformação
do status quo, ou seja, ser potência não pode se esgotar em si, pois é preciso ser
operacionalizada no (re)existir do ser não-branco. Em outras palavras, o fato de saber-se que é
potente não pode conformar o sujeito nas condições sociais em que vive. Mas sim,
impulsioná-lo a tornar-se ato diante das diferenças e subalternizações ao não gozar do lugar
do branco.

191
Para a qualificação do principal problema abordado na pesquisa
A ideia das nossas indicações foi construída a partir da proposta da Lei 10.639/03, que
se tornou 11. 645/2008, incluindo nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação o
estudo das “Relações Étnico-Raciais e o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana” e a temática indígena, que se consolida na Resolução 01 de 17 de junho de 2004, do
Conselho Nacional de Educação. Esse instrumento foi criado no contexto dos ideais de uma
política ampla que visa corrigir injustiças, eliminar discriminações e promover a inclusão
social e a democracia para todos no sistema educacional brasileiro, premissas essas
defendidas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 2004). É possível
dizer que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional assegura o direito à igualdade de
condições de vida e de cidadania, assim como pode garantir igual direito às histórias e
culturas que compõem a nação brasileira, concluem os elaboradores do documento. Portanto,
a lei 10.639/2003 que se tornou 11.645/2008 pode ser considerada como uma das principais
ações afirmativas que potencializa as lutas da população negra por uma sociedade equânime.
Pode-se dizer que a base dessas diretrizes “constituem-se de orientações, princípios e
fundamentos para o planejamento, execução e avaliação da Educação, e tem por meta,
promover a educação de cidadãos atuantes e conscientes no seio da sociedade multicultural e
pluriétnica do Brasil, buscando relações étnico-sociais positivas, rumo à construção de nação
democrática” (Art. 2) (Brasil, 2004). Isso se configura numa importante estratégia pedagógica
para levar, para o contexto educativo, pela primeira vez, a discussão das relações étnicas no
Brasil, tantas vezes silenciada ou desqualificada pelas avaliações de que no Brasil possuímos
uma democracia racial (Brasil, 2004).
A escola, como uma das instituições responsáveis pela preservação das tradições,
reforça nosso passado através de suas práticas cotidianas. (...) A escola exerce função
[teatralização do patrimônio nacional] ao transmitir em cursos sistemáticos o saber
sobre os bens que constituem o acervo natural e histórico (Gonçalves, 1999, p. 33).

Neste sentido, coloca-se no centro do debate a problematização dos conceitos de raça,


identidade negra, racismo, democracia racial, cultura negra, cultura afro-brasileira,
pluralidade cultural e cultura brasileira. A política educacional proposta pelas Diretrizes exige
o aprofundamento desses conceitos e sua contextualização no processo histórico (Brasil,
2004). Para além do evidente envolvimento de educadores, segundo o que consta no
documento, as Diretrizes convocam os profissionais de história para uma ampla reflexão
sobre a história da cultura afro-brasileira em suas dimensões de pesquisa, ensino e, por que
não dizer, também, extensão (Brasil, 2004). A atual proposta das Diretrizes busca a
valorização da consciência política e histórica da diversidade, reafirmação de identidades e de

192
direitos, e ações afirmativas de combate ao racismo e a discriminações, trazendo algumas
considerações e contribuições para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana em
nosso país (Brasil, 2004).
É possível dizer, segundo o documento das diretrizes, que, no presente, ainda se deve
avaliar e criticar as reais condições encontradas pelos educadores no sistema educacional para
poderem realmente implementar a referida Lei, estudar e refletir a respeito de documentos.
Contribuições como estas são centrais para apontar caminhos e auxiliar na qualificação
daqueles que atuam na área da educação, em especial. Em meio a tantos desafios, as
Diretrizes têm aberto caminhos e nos feito pensar. Pensando do ponto de vista educacional, é
notório o crescimento do interesse de professores e secretarias de educação pela sua
implementação, o que evidencia uma premente demanda social na luta contra o racismo.
(Brasil, 2004).
Fúlvia Rosemberg (1991) denuncia a importância de problematizarmos algumas
questões relativas à raça, classe e gênero desde os anos iniciais da educação, considerados,
segundo a autora, como marginais na composição e compreensão do contexto educacional. É
na esteira dessas indicações que este projeto encontra o seu maior desafio. Para tanto,
daremos especial atenção aos limites e possibilidades de trabalho com os conceitos de raça,
por exemplo, enfatizados nas diretrizes para aprofundar a discussão e compreensão da cultura
afro-brasileira e identidade negra no Brasil.
Em seus trabalhos, Rosemberg (1999 e 2005) afirma que compartilha da visão de que
as desigualdades observadas entre brancos e negros, no acesso a bens materiais e simbólicos,
devem-se ao racismo constitutivo da sociedade brasileira. Isso quando adotamos a concepção
de que o racismo brasileiro opera simultaneamente nos planos material e simbólico: no plano
simbólico, vivemos em sociedade que produziu e se sustenta em uma ideologia da
superioridade natural dos brancos sobre os demais, inclusive dos negros, afirma a autora.
Segundo Rosemberg (1999 e 2005), esse plano do racismo é devastador, mas insuficiente para
explicar toda a desigualdade racial brasileira. No plano material, diz a autora, negros (e
indígenas), em seu conjunto, não têm acesso aos mesmos recursos públicos que brancos. Para
Rosemberg (idem), isso se deve à história da colonização e escravidão e às condições atuais
de repartição dos bens públicos.
Porém, a autora supracitada considera que para se dirimir as desigualdades raciais no
plano material, não se pode afastar a ideia de que grande percentual de negros no Brasil é
pobre, e grande percentual de pobres no Brasil é negro. Pensar, simultaneamente, nas
condições socioeconômicas e ao pertencimento étnico-racial a que se pertence é entender o

193
racismo estrutural-material e simbólico no caso brasileiro, pois não tivemos, após a abolição
da escravidão, um sistema de classificação “racial” legal-oficial, sustentando um sistema de
distanciamento “racial” formal e legal, conclui a autora. É de conhecimento de todos que os
recursos públicos brasileiros não são igualmente distribuídos para pobres e não pobres e para
as regiões mais ou menos pobres, fomentando, assim, diferenças ao nível individual e
regional. Em outras palavras, gera uma categorização da discriminação e uma distribuição
estratificada (estratos) da pobreza, como por exemplo, entre crianças pequenas, crianças
pequenas pobres e crianças pequenas negras, crianças pequenas indígenas.
[...] a discriminação da qual os negros e mestiços são vítimas apesar da “mistura do
sangue” não é apenas uma questão econômica que atinge todos os pobres da
sociedade, mas sim resultante de uma discriminação racial camuflada durante muitos
anos[...] (Munanga, 2005-2006, p. 53).

Nesse contexto, a educação vem assumindo também, ou principalmente, primeiro a


função de fortalecimento ou recriação identitária do ser negro (Pinto, 1993; Gonçalves e
Silva, 2000) para além de reforçar os dispositivos descriminatórios (gênero, étnico ou
geracional, etc.). Apesar disso, paradoxalmente, avançamos, pois antes a educação (que
ocorre em contextos educativos, em especial) destinava-se apenas à segunda função, tanto que
hoje vivenciamos os seus resultados que tornam imprescindíveis projetos (pesquisas) como
estes. Se concordamos com o escrito nas Diretrizes, no sentido de que é importante “acabar
com o modo falso e reduzido de tratar a contribuição dos africanos escravizados e de seus
descendentes para a construção da nação brasileira” (Brasil, 2004, p. 18), não podemos criar a
expectativa de existência de culturas cristalizadas no tempo ou preservadas intactas ao longo
de tantas gerações. Tal preservação pode ainda resultar em discriminação étnica.
A cultura amplamente divulgada mostra o seu limite ao integrar os sujeitos em certas
sociedades, pois não conseguiu nos livrar da desigualdade, muitas vezes, promovida a partir
da sua organização. A busca, portanto, não é pela cultura amplamente divulgada ou pela
considerada “marginalizada”, mas sim pelas possibilidades de realização da tão requerida
liberdade por sociedades que as concebem enquanto princípio para suas relações. Assim, é
possível dizer que a cultura que abre mão de se propagar ainda pode confirmar possibilidades
de se pensar o sujeito a partir de outras bases no contemporâneo, tendo a si mesma, a cultura,
como referência.

Considerações finais
Ao perscrutarmos os nossos objetivos, esperamos que as nossas reflexões inovem no
sentido de fomentar uma articulação étnica e “racial” diante dos dispositivos subalternizantes

194
de diferenciação social que pouco se moveram ao longo dos tempos, ao menos não
suficientemente para sua total anulação. Pretendemos assim, com os nossos resultados, um
imediato impacto na produção educativa em diálogo com o plano social e político para atingir
os envolvidos na promoção da Educação Infantil (família, professoras/es, gestores, políticos
dentre outros). Ora, aí reside a originalidade do projeto, além de especificar o seu recorte na
Região centro-oeste no estado do Mato Grosso do Sul, carente de pesquisas de alto
nível/impacto Nacional e Internacional em articulação com grupos e Núcleos de pesquisa de
excelência.
É preciso entender as tensões étnicas e “raciais” para além da dicotomia brancos e
negros, mas também, na intersecção desses dois polos, ou seja, entre pretos, pardos e
amarelos. Que no seu conjunto são discriminados como não-brancos. Procedimento este que
pode ter um potencial de amenizar o preconceito racial socialmente operacionalizado que gera
a discriminação, a homogeneização (uma vez que nega a diferença em não ser branco) e a
hierarquia étnico-racial. Já de partida, essas denominações, no seu conjunto, legitimam o
preconceito que gera discriminação na sociedade brasileira, isto é, entre brancos e não-
brancos; e na sua individualidade.
Destaca-se no presente texto o desafio de disseminar, a partir da educação infantil, a
ideia de que não há diferenciação genética entre os seres humanos, mas sim, social,
econômica e política entre sujeitos diferentes que buscam direitos iguais. Esta ideia pode ser
disseminada desde a mais tenra idade. Não se trata de uma simples afirmação vazia e sem
efeitos, mas sim de uma mudança paradigmática, uma vez que se explicita cientificamente a
materialização de desigualdades na Educação Infantil no que tange ao acesso e quiçá à
permanência. A infância, aqui, é tomada como um “conceito que permite revolucionar a
organização escolar em relação aos tempos e espaços vividos pela criança, aos métodos de
ensino, à formação de professores e às relações de poder entre adultos e crianças.” (Quinteiro
e Carvalho, 2012, p. 141). Porém, a nossa perspectiva é compreender o contexto dos C.E.I’s
como contextos formativos longe da dicotomia adultocêntrica, professor e aluno. As crianças
que coabitam tais contextos formativos não podem ser reduzidas a meros receptáculos de
metodologias de ensino que prescindem do seu protagonismo no processo formativo. Assim
sendo, o procedimento metodológico aqui explicitado, pode inspirar outras pesquisas
semelhantes na região ou ser aperfeiçoado para que outras etapas futuras abranjam mais
municípios.

195
Uma vez que a pesquisa pretende explicitar e problematizar as relações sociais no
contexto educativo norteadas pelas relações étnico- raciais na diversidade (cultural, sexual, de
gênero, étnico-racial e crença religiosa etc.).

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198
DAS EXPERIÊNCIAS DE RACISMO À EDUCAÇÃO
ANTIRRACISTA... O QUE NOS DIZEM 12 EDUCADORAS INFANTIS
DO MUNICÍPIO DE TEIXEIRAS - MG?

Tainara Batista Barros


Profª da Rede Municipal de Teixeiras
Mestranda em Educação pela Universidade
Federal de Viçosa.
[email protected]

Rita de Cássia de Souza


Profª do Departamento de Educação da
Universidade Federal de Viçosa.
[email protected]

Maria Simone Euclide


Profª do Departamento de Educação da
Universidade Federal de Viçosa
[email protected]

Introdução

O presente trabalho objetiva apresentar os resultados parciais de uma pesquisa


qualitativa que se concentrou em conhecer as experiências de educadores/as infantis da rede
municipal da cidade de Teixeiras – MG em relação ao racismo no contexto escolar, bem como
sensibilizá-los para atuarem na proposição de uma educação antirracista.46
O racismo é um elemento demasiadamente complexo da nossa sociedade que permeia
as relações sociais nos atravessando em todas as instâncias, reproduzido no cotidiano, de
maneira inconsciente e não intencional, até mesmo por aqueles que querem combatê-lo. O
próprio, enquanto elemento estruturante da nossa sociedade, está presente nos mais variados
espaços, inclusive no espaço escolar.
O primeiro passo para se construir uma educação antirracista consiste em reconhecer a
presença do racismo no âmbito da educação. Implica rever as práticas implementadas
cotidianamente nas escolas que, de maneira velada ou não, ajudam a perpetuar relações
abusivas, violentas e discriminatórias desde os primeiros anos de vida das crianças, atingindo
negros e não negros. Os primeiros sendo diminuídos em sua humanidade e dignidade e os
segundos aprendendo a classificar, hierarquizar e subestimar pessoas, diminuindo as
possibilidades de uma convivência pacífica, igualitária e respeitosa entre os seres humanos.

46
Pesquisa - Educação antirracista: apreciações, reflexões e coproduções com educadores/as infantis do
município de Teixeiras – MG. Pesquisa autorizada pelo Comitê de Ética. CAAE: 57019122.6.0000.5153

199
Defendemos que a prática de uma educação antirracista deve ser implementada quanto antes,
a partir da realização de um trabalho institucional das escolas a fim de combater essa forma de
violência que tanto fere a dignidade humana. As escolas, enquanto uma das principais
agências de formação das novas gerações, precisam valorizar a diversidade racial e cultural,
reconhecendo as diversas realidades vivenciadas por seus atores, no intuito de combater toda
forma de desigualdade social, discriminação, preconceito e racismo (Trindade, 1994).
Rosemberg (1998), Silva (2018) e Farbelow (2015) demonstram que o racismo
impacta a trajetória dos estudantes negros, comprometendo-lhes o processo de escolarização.
Nesse sentido, vale destacar que a baixa escolarização afeta toda a vida dos sujeitos; não só
economicamente, mas também como cidadãos, como pessoas, acarretando baixa autoestima, a
ideia de não lugar e a introjeção de um sentimento de incapacidade, limitando as
possibilidades de continuarem o percurso escolar (Munanga, 2019). Por isso, ações contra o
racismo devem ser implementadas de forma contínua e permanente desde o início do processo
de escolarização de todos os estudantes.
Bento (2012), Cavalleiro (1998) e Rosemberg (2014) defendem a importância de um
trabalho sobre as relações étnico-raciais desde a primeira infância, pois, é nessa etapa que as
crianças iniciam o processo de construção da sua identidade e se relacionam com outros
sujeitos para além de sua família e de sua comunidade. Nessa fase, as crianças estão
elaborando suas primeiras impressões e saberes sobre o mundo. Deste modo, é
imprescindível que nele haja representações diversas para que elas possam ver a si e aos
outros como sujeitos/protagonistas.
Os professores são agentes fundamentais de parceria na luta antirracista, sendo
necessário que eles sejam sensibilizados para essa pauta e estejam munidos de embasamento
teórico e metodológico para, de fato, implementarem práticas antirracistas em todos os
âmbitos da educação escolar.
Assim, considerando a relevância da atuação dos educadores nos cotidianos escolares,
procuramos conhecer as experiências de educadores infantis — professores de educação
infantil e auxiliares de desenvolvimento infantil — do município de Teixeiras – MG em
relação ao racismo no contexto escolar, em vista de, também, sensibilizá-los para atuarem na
proposição de uma educação antirracista desde a primeira infância.
A cidade de Teixeiras, no estado de Minas Gerais, está localizada no interior da Zona
da Mata Mineira. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística –
IBGE (2021) a estimativa da sua população residente em 2021 era de 11.680 habitantes.

200
A rede de ensino municipal é composta por 9 instituições atendendo desde a educação
infantil (creche) até o final da primeira etapa do ensino fundamental (5° ano). Das 9
instituições de ensino, 7 oferecem a etapa da educação infantil, sendo que 3 exclusivas para
este nível de ensino, como se vê no quadro a seguir:

Quadro 1 - Estabelecimentos de ensino e suas modalidades de abrangência na cidade de


Teixeiras-MG em 2022

Nome Modalidade de Ensino

Centro Municipal de Educação Infantil Primeiros


Educação Infantil
Passos

Creche Municipal Maria Angélica Educação Infantil


Creche Municipal de Teixeiras Educação Infantil
Escola Municipal da Floresta Educação Infantil

Educação Infantil, Ensino


Escola Municipal de Roberts
Fundamental

Educação Infantil, Ensino


Escola Municipal Maria Leonor Botelho
Fundamental

Educação Infantil, Ensino


Escola Municipal Maria Said Schettini
Fundamental

Escola Municipal Antônio Carlos Ensino Fundamental


Escola Municipal Professora Paula Lelis Fialho Ensino Fundamental
Fonte: As autoras, 2022.

No que tange aos profissionais que atendem os estudantes da etapa da educação


infantil em 2022, a rede municipal possui 40 professores e 29 auxiliares de desenvolvimento
infantil totalizando 69 profissionais que são o foco desta pesquisa. A inclusão deste último
grupo — auxiliares de desenvolvimento infantil — decorre do entendimento de que esses
profissionais, ao atuarem diretamente com as crianças, auxiliando-as em tarefas essenciais do
cotidiano — higienização, alimentação, entre outras —, exercem, bem como os professores,
um papel fundamental na formação humana das crianças.
Conforme já dito anteriormente, o racismo atinge a todos e os educadores, estando
inseridos neste contexto racializado, não ficam isentos desta lógica racista que hierarquiza
seres humanos de acordo com suas características fenotípicas. Assim sendo, a proposta de
desconstrução do racismo começa pelos educadores. Deste modo, propiciar momentos de

201
trocas sobre esse assunto é condição necessária para que educadores possam se sensibilizar
e se movimentar na contramão deste sistema de opressão que tem comprometido
subjetividades, trajetórias escolares e de vida de tantos seres humanos.

Metodologia
A presente pesquisa é qualitativa do tipo investigação apreciativa (IA). Essa
metodologia, cujos pioneiros são David Cooperrider e Diana Whitney (2006), tem como
grande diferencial a apreciação dos pontos positivos, fazendo com que as pessoas possam
compartilhar suas experiências de maneira otimista e orgulhosa. A escolha deste método
ocorreu devido à sua potencialidade de fazer com que as pessoas possam compartilhar suas
experiências de maneira leve, oportunizando a participação coletiva e cooperativa dos sujeitos
ao longo da investigação.
Assim, o objetivo do olhar apreciativo não está em culpabilizar os sujeitos, mas sim
apreciar os pontos positivos, no caso desse estudo, identificando e destacando as forças e os
recursos empregados ou possíveis de serem implementados pelos educadores a fim de
combater o racismo presente no cotidiano escolar.
Para realização desta pesquisa primeiramente contactamos a secretária municipal de
educação a fim de obtermos autorização. Após o aceite da secretaria do município, contatamos
os especialistas de educação básica que atuavam no âmbito infantil. Esse primeiro contato
com os especialistas ocorreu por mensagens de voz via WhatsApp.47 Ao todo eram 5
especialistas que atendiam essa etapa (educação infantil) que era o foco da pesquisa.
Nesse primeiro contato, foi apresentada a proposta da pesquisa aos especialistas para
que estes ficassem a par do estudo que seria realizado, bem como também solicitar-lhes
o agendamento de uma data para que pudéssemos nos reunir com os educadores a fim de lhes
apresentar a proposta da pesquisa. A ideia inicial era utilizar em torno de 15 a 20 minutos da
reunião de módulo dos profissionais para expor nossa pesquisa. Dos 5 especialistas, 4 nos
retornaram. Todavia, a proposta inicial de apresentar a pesquisa durante as reuniões de
módulos dos educadores se mostrou inviável por duas razões: os auxiliares de
desenvolvimento infantil não participavam dessa reunião, que é obrigatória apenas para os
professores, e também os módulos estavam suspensos devido à realização de um curso
promovido em parceria com a secretaria de educação do município.
Logo, foi necessário buscar outras maneiras de articulação. Uma alternativa
encontrada foi a realização de uma reunião presencial com os especialistas. Desde modo,
47
Aplicativo de mensagens instantâneas que permite enviar mensagens de texto e compartilhar outros formatos
de mídia, incluindo mensagens de voz e vídeo, com indivíduos ou grupos

202
encontramo-nos pessoalmente com uma especialista que atua em duas instituições no período
da manhã, sendo que, por incompatibilidade de horário, não conseguimos nos encontrar
pessoalmente com a sua colega do período da tarde. Com os demais especialistas, o encontro
presencial se mostrou inviável devido as suas limitações de horários.
Desde modo, foi solicitado aos especialistas, por meio de mensagens via WhatsApp,
que apresentassem aos professores a proposta da pesquisa, informando sobre o questionário
que lhes seria disponibilizado. Em seguida, enviamos aos especialistas via mensagem de
WhatsApp um breve texto de apresentação da pesquisa seguido de um link para o
preenchimento do questionário. Essa mensagem foi encaminhada pelos especialistas em seus
respectivos grupos de WhatsApp, haja vista, que cada escola possui o seu próprio grupo.
O formulário on-line foi criado via Google Forms e organizado de maneira que os
participantes somente poderiam responder às questões após o preenchimento do Termo de
consentimento livre e esclarecido - TCLE. O questionário era composto por 22 questões (11
perguntas abertas e 11 fechadas), sendo 13 perguntas obrigatórias e 9 opcionais. A partir das
questões buscamos conhecer o perfil dos educadores, suas experiências acerca do racismo e
da educação antirracista, bem como sensibilizá-los para esta temática.

As educadoras participantes deste estudo


Dos 40 professores/as de educação infantil e 29 auxiliares de desenvolvimento infantil,
obtivemos as respostas de 10 professoras e de 2 auxiliares de desenvolvimento infantil.
As primeiras 7 perguntas do questionário tinham como foco conhecer o perfil dos(as)
participantes. As 12 educadoras que responderam o questionário se identificaram como sendo
do sexo feminino. Nesse sentido, no que diz respeito a feminização do trabalho na educação
infantil, Oliveira e Santos destacam que “embora muitos avanços tenham sido alcançados,
ainda há muito a ser feito para que o trabalho com crianças seja desvinculado das qualidades
femininas e atributos maternos.” (2019, p. 404). Os referidos também enfatizam sobre a
importância de qualificação para atuação nesse âmbito.
Assim, das 10 professoras, 9 possuem graduação e 1 professora não respondeu sobre
sua formação. 2 professoras mencionaram que possuem duas graduações. Ademais, 8
professoras possuem pós-graduação lato sensu. Em relação às 2 auxiliares de
desenvolvimento infantil, 1 possui nível médio — escolaridade mínima exigida para o cargo
— e a outra possui graduação em educação infantil e pós-graduação lato sensu.

203
No que tange ao tempo de atuação no âmbito da educação infantil, entre as 10
professoras temos uma média de 4 meses a 17 anos de experiência. Conforme pode ser
observado no gráfico abaixo.

Gráfico 1: Tempo de experiência das professoras participantes


2.5

1.5

0.5

0
17 anos 15 anos 14 anos 12 anos 10 anos 8 anos 3 anos 4 meses

Fonte: As autoras, 2022.

No que diz respeito às auxiliares, uma possui 2 anos e a outra possui 3 anos de
experiência.
Quando perguntadas sobre sua cor/raça, das 10 professoras, 6 se autodeclaram brancas
e 4 pardas. Sobre as duas auxiliares, ambas se autodeclaram brancas. Assim, conforme as
autodeclarações, não tivemos nenhuma participante declarada preta nesse estudo.
Em relação às educadoras que se declararam pardas, vale ressaltar que o pardo ocupa
um local considerado de fronteira, ora mais próximo da branquitude, ora mais próxima à
categoria preta. No nosso país, o número de pessoas que se reconhecem como pardas é bem
superior àquelas que se dizem pretas. Apesar de sermos um país negro, a identificação com o
termo preto ainda traduz processos de um trabalho que precisa ser feito no que tange aos
nossos pertencimentos raciais intrínsecos. Em relação à composição das turmas das
educadoras participantes, de um total de 182 crianças atendidas, apenas 25 foram
consideradas, por elas, negras. Duas educadoras relataram não ter nenhum estudante negro
em sua turma.

204
Embora tenhamos identificado que, dentre as participantes da pesquisa, nenhuma se
identificou como preta, vale ressaltar que o racismo é um problema de todos e que deve ser
combatido por todos. A proposta de uma educação antirracista não é uma exclusividade de
educadores negros, ela deve estar presente no trabalho de todos os educadores,
independentemente de sua origem étnico-racial. Todos os educadores têm o dever de ofertá-
la, bem como todas as crianças têm o direito de recebê-la, e, atualmente, no Brasil, esta oferta
está embasada por legislações como as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008.
A Lei n° 10.639/2003 diz que: “Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio,
oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira”
(Brasil, 2003, p. 1). Do mesmo modo, segundo a Lei n° 11.645/2008: “Nos estabelecimentos
de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo
da história e cultura afro-brasileira e indígena” (Brasil, 2008, p. 1). Ademais, as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) determinam que, na elaboração das
propostas pedagógicas de creches e pré-escolas, seja assegurado o “[…] reconhecimento, a
valorização, o respeito e a interação das crianças com as histórias e as culturas africanas, afro-
brasileiras, bem como o combate ao racismo e à discriminação” (Brasil, 2010, p. 21).
Tais legislações enfatizam a necessidade de que a história das culturas africanas, afro-
brasileiras e indígenas estejam nas salas de aula desde a educação infantil, bem como o
combate ao racismo e à discriminação. Dado isso, visamos conhecer quais são as experiências
das educadoras infantis de Teixeiras em relação ao racismo e à educação antirracista.

Das experiências de racismo à educação antirracista...


O primeiro passo para se combater o racismo é reconhecer que ele existe e que é um
problema que carece de atenção e solução. Assim, entendendo a importância de se reconhecer
situações de racismo, tanto dentro quanto fora do espaço escolar, foi realizada a seguinte
pergunta: “Você já sofreu e/ou presenciou alguma situação de racismo?” Como as educadoras
poderiam marcar mais de uma alternativa, obtivemos 19 respostas.
Chama atenção que, das 12 participantes, 7 afirmaram ter presenciado situações de
racismo. Sendo que 2 relataram também já ter sofrido racismo. Ou seja, embora em um grupo
tão pequeno, mais da metade já percebeu situações de racismo, seja fora, seja em um
ambiente escolar, o que revela o quanto estas situações ainda são tão visíveis na nossa
sociedade. Como o estudo tem uma maioria branca, é esperado que não tenham vivenciado
situações de racismo, mas é notório que estas situações não passaram despercebidas a este
público.

205
Por outro lado, 5 educadoras nunca sofreram nem presenciaram racismo dentro e/ou
fora da escola. Essas afirmações nos leva a questionar se tais alegações seriam, de fato, falta
de vivência desta realidade (o que seria ideal), ou seriam fruto de uma ausência de
sensibilidade em identificar situações de racismo.
O racismo está enraizado em nosso tecido social, por isso, nem sempre é fácil
identificar a presença dele em nossas relações cotidianas, isso faz com que diversas situações
possam ocorrer sem que sejam percebidas. Devido a isso é fundamental criar uma
sensibilidade neste sentido, observando, por exemplo, quem são a maioria das pessoas em
cargos de poder e, em contrapartida, quem são aqueles que estão em cargos e posições
socialmente considerados subalternos.
Após esta questão sobre as experiências de racismo, as participantes podiam,
opcionalmente, justificar sua resposta e duas delas o fizeram:

“Já presenciei situações adversas, e senti que já sofri discriminação por ter o cabelo
crespo, apesar de ser branca.” (professora – branca -, resposta ao questionário,
2022).

“Sofria racismo quando era pequena por ser muito branca.” (professora – branca -,
resposta ao questionário, 2022)

A primeira afirmativa demonstra a necessidade de um melhor entendimento sobre o


colorismo e o que é ser negro. A miscigenação brasileira, fruto de violências contra mulheres
negras e indígenas e a eugenia, dificulta, por vezes, os sujeitos a reconhecerem o seu
pertencimento étnico-racial, o que tende a fazer com que pessoas negras de pele mais clara, ao
“disfarçarem” suas características fenotípicas, possam ser “toleradas” pela branquitude. De
acordo com Silva (2017),
[...]o colorismo apresenta-se como mais uma faceta de discriminação racial e, ainda
que não seja possível mensurar e comparar as discriminações raciais existentes, trata-
se de um tipo discriminatório extremamente cruel e violento. Tem o intuito de
estabelecer uma desagregação inter-racial, inclusive (SILVA, 2017, p. 13).

A presença deste mecanismo cruel pode gerar em pessoas negras de pele clara uma
sensação de não lugar, sendo, por vezes, consideradas “brancas demais” para serem negras ou
“negras demais” para serem brancas. Contudo, tendo em vista a opressão racista, é comum
que pessoas negras de pele clara tenham dificuldade de se denominar como tal, afinal, ser
negro em um país racista implica em sofrer discriminações de toda ordem, tendo, inclusive,
menor expectativa de vida.
Ter uma pele clara não é suficiente para escapar ao racismo. Conforme a resposta
apresentada pela educadora, vemos que qualquer indício de descendência negra pode ser

206
usado para diminuir e desqualificar pessoas que o apresentem. Aliás, em se tratando de uma
pesquisa cuja totalidade de participantes é do sexo feminino, não surpreende que o cabelo
seja um referente importante em uma sociedade racista, que tem, especialmente nos cabelos
das mulheres, delimitado de maneira bastante visível e marcante o que é considerado belo e
adequado desde os primeiros anos de vida. Mesmo uma mulher branca sabe que os cabelos
crespos não são aceitos e há uma infinidade de produtos cuidadosamente preparados para
esconder ou minimizar a aparência de uma possível herança genética negra.
A segunda resposta deixa muito evidente a incompreensão de que pessoas brancas não
sofrem racismo. Nunca houve situações de exclusão, preconceito e dominação de pessoas
negras sobre brancas no contexto brasileiro. Em nossa sociedade, o racismo é estrutural e está
presente em todas as relações. Trata-se de uma lógica de racialização que hierarquiza seres
humanos, dividindo-os em raças superiores e inferiores, fundamentando e perpetuando uma
série de exclusões e violências vivenciadas por pessoas negras e indígenas que, devido às suas
características fenotípicas, são colocadas em uma posição de subalternidade social. Tais
exclusões e violências não acometem pessoas brancas, haja vista que dentro dessa lógica
racializada as mesmas ocupam uma posição de superioridade social.
Logo, seguindo essa lógica de relação de poder, embora uma pessoa branca possa ser
criticada em função de sua cor, isso não constitui racismo, que acomete todo um grupo de
pessoas com as mesmas características e afeta suas vidas do ponto de vista social, cultural,
escolar, profissional e econômico. No entanto, esta resposta foi muito importante para esta
pesquisa, demonstrando explicitamente o quanto esta temática ainda é incompreendida pela
população e, neste caso, por uma professora da educação infantil, ou seja, alguém responsável
pela formação inicial de centenas de crianças, e que precisa, urgentemente, conhecer o que é
racismo e seus nefastos efeitos sobre as pessoas. Dizer que pessoas brancas sofrem racismo é
invisibilizar a opressão que sofrem pessoas negras no Brasil, é desconhecer os efeitos de se
viver em uma sociedade cujo preconceito é estrutural, o que só desqualifica e fragiliza a luta
por uma educação e uma sociedade antirracistas.
A fim de proporcionar mais reflexões sobre a temática racial, objetivamos
compreender o racismo e a educação antirracista a partir do olhar das educadoras.

O racismo e a educação antirracista na perspectiva das educadoras infantis


Compreender o que é o racismo, entendendo o modo como ele se faz presente nas
nossas relações sociais, é crucial para buscar estratégias a fim de combatê-lo. Nesse sentido,

207
procuramos conhecer o que é racismo na perspectiva das participantes. Quando perguntadas
sobre o que é racismo, as educadoras responderam:

1 – “Preconceito ou discriminação na diversidade entre as pessoas.”


(professora – parda -, resposta ao questionário, 2022).
2 – “É uma forma de preconceito, discriminação contra alguma
pessoa pelo fato de não pertencer a um mesmo grupo, seja com relação a
cor da pele, religião, gênero, costumes, etc.” (professora – parda -,
resposta ao questionário, 2022).
3 – “Não aceitação de sua cor ou do outro.” (professora – branca -,
resposta ao questionário, 2022).
4 – “Preconceito por causa da cor.” (auxiliar – branca -, resposta ao
questionário, 2022).
5 – “Discriminação por cor, de características ligadas ao negro,
cabelo, sexualização dos corpos.” (professora – branca -, resposta ao
questionário, 2022).
6 – “Forma de discriminação que leva em conta a raça.” (professora
– branca -, resposta ao questionário, 2022).
7 – “Agressão devido à raça, crença ou etnia.” (professora – branca -,
resposta ao questionário, 2022).
8 – “Uma violência sofrida pelos negros.” (professora – branca -,
resposta ao questionário, 2022).
9 – “Tratar outra pessoa de forma diferente por causa de sua cor,
raça, religião, ou outra coisa.” (professora – parda -, resposta ao
questionário, 2022).
10 – “Preconceito, discriminação por parte de um indivíduo,
comunidade ou instituição contra uma pessoa.” (professora – branca -,
resposta ao questionário, 2022).
11 – “É uma forma de discriminação.” (professora – parda -, resposta
ao questionário, 2022).
12 – “Discriminação a uma raça.” (auxiliar – branca -, resposta ao
questionário, 2022).

Das 12 educadoras, 8 utilizaram termos como: preconceito e/ou discriminação. Apenas


4 educadoras não utilizaram esses termos, uma delas, apesar de não usar a palavra
discriminação, traz a ideia, enfatizando o tratamento diferente dado às pessoas devido a sua
origem étnico-racial (Resposta 9). As demais respostas trazem termos como violência e
agressão devido à cor/raça.
Para tratarmos sobre o racismo é imprescindível discutir sobre alguns termos e
conceitos essenciais para podermos entender a operacionalidade dele em nosso cotidiano.
Dentre esses, podemos destacar os termos preconceito e discriminação. O primeiro trata-se do
julgamento prévio de algo ou alguém, enquanto o segundo trata-se de distinções, separações
que culminam em um tratamento diferente. Quando tratamos desses termos em relação ao
racismo, isto é, o preconceito e a discriminação racial, é preciso que tenhamos em mente que

208
os mesmos estão intrinsecamente relacionados a um contexto de exploração e escravização:
fundamentado na hierarquização de seres humanos.
Nas respostas das educadoras notamos certa dificuldade em nomear quais são os
grupos acometidos pelo racismo. Apenas 2 nomearam o grupo de pessoas negras como
aquele sendo discriminado e violentado (respostas 5 e 8), demonstrando entender a quem o
racismo, de fato, atinge em nossa sociedade. É preciso compreender o recorte racial
reconhecendo o que racismo acarreta na vida de pessoas negras e indígenas, trazendo-lhes
inúmeros prejuízos pessoais e sociais.
Em suma, o racismo é a base da discriminação e do preconceito racial. É a estrutura
racista que fundamenta e normaliza as desigualdades raciais existentes nos mais diversos
espaços, o que faz com que o preconceito e a discriminação racial persistam. Ademais, vale
destacar também que o racismo é uma forma de violência não apenas física, mas também
psicológica e emocional que impacta a integridade e a dignidade humana (Oliveira, 2020). O
mesmo precisa ser contraposto, urgentemente, inclusive no âmbito da educação. Dessa forma,
esforçamo-nos para entender o que as educadoras participantes compreendiam como sendo
uma educação antirracista.
Sobre isso, quando questionadas acerca do que é uma educação antirracista, 11
educadoras responderam, sendo que 1 declarou ser uma pergunta “difícil de responder”.
Assim sendo, considerando as 10 respostas obtidas sobre o assunto, construímos três
categorias a partir das respostas das participantes. Vale destacar que 2 professoras deram,
praticamente, a mesma resposta, sendo que ambas respostas se encaixavam em mais de uma
categoria. Conforme pode ser visto no quadro abaixo.

Quadro 2: Respostas das educadoras e categorias construídas


Cargo Resposta da educadora Categoria
“É uma forma de combater e enfrentar o racismo
A educação antirracista como
e a exclusão escolar, pois é na escola onde as
Professora uma forma de combate ao
crianças constroem os seus primeiros
racismo.
aprendizados sobre a vida.”
A educação antirracista como
“Ensinar as pessoas a se defender, lutar contra
Professora uma forma de combate ao
o racismo.”
racismo.
“A educação antirracista é aquela que combate
toda e qualquer expressão de racismo na escola e
no território, reconhece e valoriza as várias A educação antirracista como
Professora contribuições passadas e atuais, em todas as uma forma de combate ao
áreas do conhecimento humano, de racismo.
africanos e afro-brasileiros para o Brasil e o
mundo.”

209
“É aquela que ativamente combate toda e
qualquer expressão de racismo na escola e no
território, reconhece e valoriza as várias A educação antirracista como
Professora contribuições passadas e atuais, em todas as uma forma de combate ao
áreas do conhecimento humano, de racismo.
africanos e afro-brasileiros para o Brasil e o
mundo.”
“Desenvolver na escola os primeiros A educação antirracista como
Professora aprendizados sobre as desigualdades e respeito uma forma de respeito a
ao próximo, indiferente à sua cor ou etnia.” todos.
A educação antirracista como
“Tratar todos sem diferenciação de nenhuma
Professora uma forma de respeito a
espécie.”
todos.
A educação antirracista como
Professora “Educação que valoriza todas as raças.” uma forma de respeito a
todos.
A educação antirracista como
Professora “Trabalhar o respeito entre todos.” uma forma de respeito a
todos.

“Conscientizar sobre a miscigenação de raças e A educação antirracista como


Auxiliar mostrar a importância de respeitar as diferenças uma forma de respeito a
sociais, raciais e culturais.” todos.

A educação antirracista como


“A construção do conhecimento na valorização uma forma de valorizar a
Auxiliar
da cultura afro-brasileiros.” cultura afro-
brasileira e africana.
“A educação antirracista é aquela que combate
toda e qualquer expressão de racismo na escola e
A educação antirracista como
no território, reconhece e valoriza as várias
uma forma de valorizar a
Professora contribuições passadas e atuais, em todas as
cultura afro-brasileira e
áreas do conhecimento humano, de
africana.
africanos e afro-brasileiros para o Brasil e o
mundo.”
“É aquela que ativamente combate toda e
qualquer expressão de racismo na escola e no
A educação antirracista como
território, reconhece e valoriza as várias
uma forma de valorizar a
Professora contribuições passadas e atuais, em todas as
cultura afro-brasileira e
áreas do conhecimento humano, de
africana.
africanos e afro-brasileiros para o Brasil e o
mundo.”
Fonte: As autoras, 2022.

A educação antirracista como uma forma de combate ao racismo


O prefixo “anti” trazendo a ideia de algo que vai contra nos fornece fortes indícios do
que podemos compreender da proposta de uma educação antirracista: ir contra o racismo.
Ademais, além de contrapor, a mesma também traz a noção de movimento, ação. Logo, ser
antirracista é se movimentar, agir, visando combater o racismo encrustado na nossa

210
sociedade. Desta forma, uma educação antirracista consiste na implementação de ações que
combatam o racismo no âmbito escolar.
Para se implementar uma educação antirracista é preciso, antes de tudo, reconhecer a
presença do racismo nas nossas relações cotidianas, pois, o racismo e o “ser racista”, enquanto
construções sociais oriundas de um contexto histórico de dominação e exploração, criaram um
mundo a partir de uma lógica racializada, e nós, enquanto seres relacionais, que interagimos
com este mundo e com os sujeitos que nele estão, incorporamos essa ideia de racialização e a
reproduzimos nas nossas relações cotidianas, ainda que sem perceber.
O racismo é uma violência, muitas vezes sutil, silenciosa, contudo, extremamente
destrutiva, podendo acarretar inúmeros prejuízos, tanto a curto quanto a longo prazo. No que
tange ao enfrentamento dessa violência, o campo da educação consiste em um espaço
importante para que isso ocorra. Gomes (2003), ao abordar educação, identidade negra e
formação de professores(as), vislumbra a escola como uma instituição em que, além dos
conteúdos e saberes escolares, se aprende e compartilha crenças, valores e preconceitos
diversos como de raça, de gênero e de classe. Ademais, de acordo com Jesus (2018), as
instituições escolares, ao silenciarem diante das mais diversas formas de discriminações,
contribuem para a perpetuação das desigualdades existentes dentro e fora do ambiente
escolar.
Como, sabiamente, já nos disse Paulo Freire: “Se a educação sozinha, não transforma
a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda.” (Freire, 2000, p.67). Deste modo,
podemos reconhecer que apesar de não suficiente, a educação é parte fundamental na
construção de uma sociedade antirracista devido ao seu papel formador das futuras gerações e
as educadoras participantes demonstram compreender essa dimensão ao vincularem a
educação antirracista à uma maneira de se combater o racismo encrustado na nossa sociedade.

A educação antirracista como uma forma de respeito a todos


O racismo afeta as crianças negras, comprometendo a construção de uma identidade
positiva, bem como também impacta na possibilidade de uma relação respeitosa entre as
crianças das mais diversas origens étnico-raciais.
A partir da ótica racista, o que ocorre é uma hierarquização das diferenças na qual
determinados grupos são colocados em uma posição de superioridade enquanto outros são
inferiorizados socialmente. A apresentação e a representação de um mundo monocromático
para as crianças, desde muito pequenas, afetam bruscamente o modo como elas veem a si e
aos outros ao seu redor. A assimetria entre os diferentes grupos étnico-raciais impacta

211
substancialmente na construção da identidade das crianças, comprometendo o
estabelecimento de laços de respeito entre elas. Por isso, é fundamental que haja, desde a
primeira infância, a contemplação da diversidade existente, visando a não reprodução de
estereótipos.
De acordo com Moreira - Primo (2020), as intervenções que visem o fortalecimento da
identidade de crianças negras e à superação do racismo:
[...] “devem considerar que as crianças precisam ter acesso a informações sobre os
diversos grupos étnico-raciais, mas esse conhecimento não pode ser transmitido de
maneira a reproduzir e legitimar o racismo, quando, por exemplo, retrata-se de forma
depreciativa e desvalorativa o grupo dos negros, e, quando, ao contrário, retratam o
grupo branco.” (Moreira – Primo, 2020, p. 83).

As educadoras demonstram compreender o quanto é primordial que as crianças sejam


socializadas em um ambiente no qual as diferenças possam ser contempladas, celebradas,
possibilitando que elas possam reconhecer a si e aos outros enquanto sujeitos/protagonistas.
Também, 1 professora afirmou:
“Tratar todos sem diferenciação de nenhuma espécie.” (professora – branca -,
resposta ao questionário, 2022).

Tal afirmação dessa educadora demostra uma reflexão interessante acerca das ações
que discriminam, inclusive crianças, no cotidiano escolar. O tratamento assimétrico pode
ocorrer até mesmo sem que as pessoas percebam, devido à lógica de racialização que permeia
os imaginários sociais. Deste modo, um olhar mais atento e reflexivo no cotidiano escolar se
faz fundamental para que o respeito a todos, mencionado pelas educadoras, seja aprendido
também por intermédio de exemplos.

A educação antirracista como uma forma de valorizar a cultura afro-brasileira e


africana
A escola, enquanto formadora das novas gerações, é um importante espaço de
socialização de crianças e adolescentes, local onde lidam com a diversidade e constroem seus
valores e sua identidade. Por isso, é preciso que a escola explore a pluralidade presente,
valorizando sujeitos, histórias e culturas que, durante muito tempo, foram omitidas e
falseadas, trazendo, em contraposição, ações afirmativas que busquem desconstruir as visões
eurocêntricas, abarcando a diversidade presente em nossa população.
A história de um povo é o ponto inicial do processo de construção de sua identidade.
Por esse motivo, as ideologias de dominação buscaram falsificar e destruir as histórias dos
povos que subjugaram. Do mesmo modo que a história da África foi refutada na historiografia

212
colonial, isto é, vista apenas pela ótica do colonizador, a história do negro no Brasil passou
por essa mesma estratégia de falsificação e de negação (Munanga, 2015).
Em contraposição a isso, leis como a 10.639/2003 e a 11.645/2008 visam contemplar
“o outro lado da história”. Assim, as referidas leis visam a contemplação das culturas negra e
indígena a fim de que sejam reconhecidas as contribuições desses povos na composição do
Brasil, proporcionando também o conhecimento acerca dos costumes e das histórias dos
mesmos.
Em suas respostas, as educadoras pontuavam sobre a relevância da valorização da
cultura africana e afro-brasileira, demonstrando compreender esse movimento como sendo
crucial na promoção de uma educação antirracista.
Nesse sentido, vale reforçar que esse movimento, para além de ofertar o conhecimento
acerca desses povos, proporciona aos estudantes o reconhecimento de sua pertença étnico-
racial, bem como contribuem também para a não estereotipação e estigmatização desses
povos historicamente marginalizados.

Da formação continuada à prática...


Quando perguntadas se já receberam alguma formação para trabalhar as relações
étnico-raciais na escola, apenas 2 professoras afirmaram ter recebido e aprendido bastante, 4
disseram ter recebido e aprendido pouco e outras 4 afirmaram nunca ter recebido
formação. Das 2 auxiliares, 1 afirmou ter recebido e aprendido pouco, enquanto a outra disse
nunca ter recebido formação.
Também, quando perguntadas se já receberam alguma formação para desenvolver uma
educação antirracista, novamente 2 professoras afirmaram ter recebido e aprendido bastante,
enquanto outras 2 afirmaram ter recebido e aprendido pouco. As demais (6 professoras)
afirmaram nunca ter recebido formação para o desenvolvimento de uma educação antirracista.
No que tange às auxiliares, 1 afirmou ter recebido e aprendido pouco, enquanto a outra disse
nunca ter recebido formação.
Sobre o desenvolvimento de uma educação antirracista, 6 professoras afirmaram que
desenvolvem uma educação antirracista com muita frequência, 2 disseram que desenvolvem
com pouca frequência, 1 afirmou desenvolver uma educação antirracista com pouquíssima
frequência e também 1 afirmou não desenvolver uma educação antirracista. Em relação às 2
duas auxiliares, ambas afirmaram que desenvolvem uma educação antirracista com pouca
frequência.

213
Curiosamente, as educadoras, apesar de afirmarem terem recebido pouca ou nenhuma
formação para desenvolverem uma educação antirracista, relataram que a desenvolvem com
muita frequência, provavelmente, à sua maneira.
Buscando conhecer mais sobre o trabalho desenvolvido pelas educadoras, fizemos a
seguinte pergunta: Caso você desenvolva uma educação antirracista, quais são as práticas que
você realiza? Das 10 professoras, 8 responderam:

1 – “Contação de histórias, bonecas.” (professora – parda -, resposta ao questionário, 2022).


2 – “Por meio de histórias e atividades lúdicas.” (professora – parda -, resposta ao
questionário, 2022).
3 – “Enquanto professora de educação infantil, contribui para educação antirracista por meio
das histórias, pois meus alunos têm de 2 a 3 anos, sendo muito novos para compreender coisas
complexas.” (professora – branca -, resposta ao questionário, 2022).
4 – “Conversa- dialogando-contando histórias.” (professora – branca -, resposta ao
questionário, 2022).
5 – “Mostrando a realidade evidenciando as diferenças e igualdades entre nós seres humanos.
Valorizando todas as culturas.” (professora – branca -, resposta ao questionário, 2022)
6 – “Respeito às diferenças, não fazer distinção das crianças pela cor da pele.”
(professora – branca -, resposta ao questionário, 2022).
7 – “Ensinar o respeito com o próximo, em todas as áreas.” (professora – parda -, resposta
ao questionário, 2022).
8 – “Debatendo sobre raça, racismo, etnia, preconceito, discriminação dentro e fora da sala
de aula.” (professora – branca -, resposta ao questionário, 2022).

A prática mais mencionada foi a utilização de histórias. Das oito respostas, 4


mencionavam o recurso da história. As bonecas também apareceram como um recurso em
uma das respostas
Sobre a existência de materiais nas escolas para trabalhar a educação antirracista, os
livros foram os mais mencionados, em seguida vieram os filmes. Além disso, 3 educadoras
mencionaram que a escola não possui nenhum material para trabalhar uma educação
antirracista.

214
Gráfico 2: Número de resposta sobre a existência de
materiais disponíveis na escola para trabalhar a educação
antirracista
Livros
9

Filmes
4

Cartazes
2

Brinquedos
2

Jogos
1

Outro(s) material(is)
2

Não há material(is)
3

0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Fonte: As autoras, 2022.

Como a questão sobre os materiais se tratava de uma pergunta fechada, havia um


campo para acrescentar a existência de outros materiais, o qual foi preenchido por apenas uma
professora, que respondeu:
“O próprio cotidiano, refletindo sobre as atitudes.” (professora – branca -, resposta
ao questionário, 2022)
O cotidiano, enquanto sendo o espaço no qual a vida acontece, de fato, nos oferta uma
infinidade de oportunidades para interferir nas mais variadas situações, inclusive nas situações
de racismo. Entretanto, é importante que os educadores estejam munidos de sensibilidade e
embasamento teórico e metodológico para interferir da melhor maneira possível nessas
situações, para que não contribuam e fortaleçam o racismo presente nos cotidianos escolares.
Além disso, a existência de materiais específicos voltados para esta temática abre espaço para
que o racismo seja discutido nas escolas sem a necessidade da existência de situações
cotidianas que fomentem a discussão. Outrossim, permitem trabalhar o tema de maneira
impessoal, sem envolver diretamente os estudantes.
Nesse estudo, também visamos saber se as participantes conheciam as leis
10.639/2003 e 11.645/2008. Em relação à primeira, 5 das professoras disseram conhecer
muito a lei, 4 afirmaram que já ouviram falar, mas não sabem do que se trata e 1 afirmou
desconhecer a referida lei. Já em relação à lei 11.645/2008, 3 professoras afirmaram conhecê-
la muito, 6 disseram que já ouviram falar, mas não sabem do que se trata, e 1 afirmou

215
desconhecer a mencionada lei. No que tange as 2 auxiliares, ambas afirmaram desconhecer
tanto a lei 10639/2003 quanto a 11.645/2008.
Em suma, 3 educadoras desconhecem as leis 10.639/2003 e 11.645/2008. Ademais,
menos da metade das educadoras afirmaram conhecer muito a lei 10.639/2003 e um número
ainda menor afirmou conhecer muito a lei 11.645/2008, apesar do tempo de vigência de
ambas, apontando o quanto tais legislações ainda não estão incorporadas no cotidiano escolar.
A última questão do formulário era opcional para que as participantes pudessem
acrescentar algo em relação à pesquisa. Todavia, não houve comentários em relação ao
estudo.

Considerações finais
O presente trabalho objetivou apresentar os resultados parciais de uma pesquisa
qualitativa que pretende conhecer as experiências de educadores/as infantis da rede municipal
da cidade de Teixeiras – MG em relação ao racismo no contexto escolar, bem como
sensibilizá-los para a atuarem na proposição de uma educação antirracista.
Em linhas gerais, as 12 educadoras infantis do município de Teixeiras – MG que
participaram deste estudo demonstraram compreender o racismo como algo relacionado ao
preconceito e à discriminação. No que tange à educação antirracista, foram construídas, a
partir das respostas das educadoras, três categorias para designá-la: a educação antirracista
como uma forma de combate ao racismo; a educação antirracista como uma forma de respeito
a todos; a educação antirracista como uma forma de valorizar a cultura afro-brasileira e
africana. Entendemos que tais categorias estão intrinsecamente relacionadas, de modo a
proporcionar uma educação antirracista.
Ademais, apesar de afirmarem, de modo geral, que possuem pouca formação para o
desenvolvimento de uma educação antirracista, as educadoras relataram que a desenvolvem
utilizando, especialmente, histórias, tendo como principais recursos fornecidos pelas escolas
os livros. Contudo, apesar de os livros serem uma ferramenta importante para o trabalho dos
educadores, é fundamental que também sejam fornecidas mais diversidade de materiais a fim
ampliar o leque de possibilidades de trabalho, oportunizando que outras estratégias também
possam ser empregadas. Além disso, conhecer as legislações que fundamentam a proposta de
uma educação antirracista é essencial para implementá-la no cotidiano escolar.
Em suma, para o enfrentamento do racismo no âmbito da educação, é necessário,
primeiramente, realizar um trabalho com os professores a fim de sensibilizá-los para essa
pauta. É fundamental que haja espaços de diálogo nos quais propostas para a implementação

216
de uma educação antirracista possam ser discutidas, promovendo reflexões sobre práticas já
existentes e fomentando outras visando a extinção desse modelo perverso que habita nossa
sociedade e escola, desde os primeiros anos de vida das crianças.

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1996, modificada pela Lei n° 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e
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em Educação) - FGV - Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, p. 249. 1994.

219
FORMAÇÃO DE PROFESSORES: POSSIBILIDADES DE
IMPLEMENTAÇÃO DA LEI Nº10.639/2003 NA EDUCAÇÃO
INFANTIL

Adriana Bom Sucesso Gomes,


Professora para a Educação Infantil da Rede
Municipal de Educação.
Mestra em Educação pela Universidade Federal de
Minas Gerais
[email protected]

Rogério Correia da Silva


Professor da Universidade Federal de Minas
Gerais
[email protected]

Tânia A. Ambrizi Gebara,


Professora da Universidade Federal de Minas
Gerais
[email protected]

Introdução

O presente texto trará recortes da pesquisa concluída realizada junto ao Programa de


Pós-graduação, Mestrado Profissional – Educação e Docência da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), com assento na linha de pesquisa Infâncias e Educação Infantil, com
especial atenção ao contexto de efervescência de políticas de governo no município de Belo
Horizonte (BH), no Estado de Minas Gerais (MG), e os resultados encontrados na
investigação. Nesse sentido, destacam-se os conhecimentos e os saberes que emergem das
práticas formativas vivenciadas pelas professoras participantes da investigação. Nesse
processo investigativo, foi uma opção nossa escolher as referências que discutem as
africanidades brasileiras48 para compreender o currículo que emerge na formação proposta
pelos Núcleos de Estudos das Relações étnico-raciais. Pensar a formação de professores no
viés das africanidades brasileiras é refletir sobre um currículo que incluía componentes dos
saberes tradicionais, das práticas culturais dos afro-brasileiros; além de considerar o corpo, as
narrativas e as experiências dos professores(as) como constituintes do processo de formação.

48
Africanidades brasileiras são elementos estruturantes da nossa sociedade, “às marcas da cultura africana que,
independentemente da origem étnica de cada brasileiro, fazem parte do seu dia a dia” (Silva, 2005 p. 155).

220
A investigação abordou o tema da formação docente, articulando diferentes categorias
de análises como: infâncias, educação infantil, relações étnico-raciais; teve como foco a
formação continuada e em serviço das professoras49 da Educação Infantil para a educação das
relações étnico-raciais. Refletir sobre esse tema é também pensar um currículo de formação
em interface com as especificidades da criança e os princípios basilares da Educação Infantil,
a saber, as interações, o brincar, o cuidar/educar articulados aos preceitos das Leis nº
10.639/03, nº 11.645/08 e das Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-
raciais (DCNERER).
As categorias aqui propostas entrecruzam-se no contexto da Educação infantil, se
configurando como um tema relevante no âmbito da universidade e fora dela, no sentido de
ampliar a discussão no campo científico em consonância com a legislação (LDB) nº
9.394/200350, artigos 26-A e 79-B pela Lei nº 10.639/03 51 e as DCNERER. Além de provocar
reflexões sobre a implementação das Leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08 52 e o que estabelece as
DCNERER para a construção de uma educação antirracista na primeira etapa da educação
básica.
Pesquisadoras como Gomes (2005) e Cavalleiro (2003) afirmam que alguns dos
desafios relativos à implementação da Lei nº 10.639/03 passam necessariamente pela
formação de professores na perspectiva da Educação das Relações Étnico-raciais (ERER).
Essas formações confrontam com algumas dificuldades que revelam a existência do racismo
na nossa sociedade, como a pouca adesão por parte de professoras e gestoras sobre a
importância de desenvolver uma prática envolvendo a temática racial com as crianças em sala
de aula (Queiroz, 2012; Leal, 2017). Um dos desafios para o desenvolvimento de um trabalho
antirracista na escola é o acesso às famílias e às crianças, as quais apresentam resistência em
relação às manifestações culturais de matriz afro-brasileira (Ivazaki, 2018).
Vale reiterar que o racismo no Brasil transcende a dimensão do comportamento
individual, pois ele estrutura a base da formação da sociedade, constituindo-se em um sistema
49
Utilizaremos neste estudo o termo “professoras” porque o quadro de docentes das Instituições de Educação
Infantil se apresentar majoritariamente constituído por mulheres. A própria pesquisa aponta esse dado ao ter uma
amostra inicial de 11 professoras da Educação Infantil em seu estudo.
50
A Lei nº 9.394/2003 define e regulamenta o sistema educacional brasileiro.
51
"Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o
ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos
Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura Negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o
currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
"Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como 'Dia Nacional da Consciência Negra'."
52
Lei nº 10.639/2003, alterada pela Lei nº 11.645/2008, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-
brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio.

221
de opressão que organiza as relações em diversos âmbitos, ou seja, estrutura as relações de
poder nas esferas política, jurídica e econômica, produzindo desigualdades (Almeida, 2019).
Por isso, o que está em jogo ao discutir o racismo na nossa sociedade é o seu caráter
estrutural, sendo assim, “falar sobre racismo no Brasil é, sobretudo, fazer um debate
estrutural” (Ribeiro, 2019, p. 5).
Gomes e Laborne (2018, p. 12) explicam que a principal característica do racismo que
estrutura a nossa sociedade “é a sua capacidade de se afirmar através da sua própria negação”,
da ideia da democracia racial, “tendendo a encobrir ainda mais todo o processo de
reconhecimento da discriminação brasileira” (Schucman, 2010, p. 45).
Dessa forma o racismo que organiza os pensamentos, discursos e práticas nas
instâncias institucionais no nosso país,
trata o poder como elemento central da relação racial. Com efeito, o racismo é
dominação. [...] o domínio se dá com estabelecimento de parâmetros discriminatórios
baseados na raça, para manter a hegemonia do grupo racial no poder. Isso faz com que
a cultura, os padrões estéticos e as práticas de poder de um determinado grupo tornem-
se no horizonte civilizatório do conjunto da sociedade (Almeida, 2019, p. 40).

Assim, o racismo institucional se constitui como uma engrenagem reguladora de


poder. A partir da ideia de raça, ele firma as hierarquias nos organismos institucionais,
reproduzindo e reconfigurando a manutenção do racismo, por meio de silêncios, negações,
piadas, estereótipos, segregação e outras formas de discriminação e preconceito racial em
relação à população negra e indígena. Para diversos autores (Castro, 2015; Costa, 2013;
Garcia, 2019; Feital, 2016; Marchi, 2016; Oliveira, 2016), foi na base dessa dinâmica que se
constituiu o racismo institucional que se instaura também nos espaços educacionais,
desenhados no mito da democracia racial.
Referente às Instituições de Educação Infantil, vale destacar que elas acolhem crianças
com corpos diferentes, cada qual com sua subjetividade, vivências e experiências em
constante relação com outros corpos pertencentes a grupos étnico-raciais distintos e com o
mundo que as cercam. Por isso, precisa superar o silenciamento, a naturalização do racismo e
as dificuldades em lidar com as tensões provocadas pelas questões raciais em seu ambiente,
desenvolvendo ações que favoreçam a educação das relações étnico-raciais com todas as
crianças, negras e não negras, de maneira tal que a diversidade racial seria vista sob a ideia de
qualidade ou condição de diferir (Castro, 2015; Costa, 2013; Feital, 2016; Leal, 2016; Marchi,
2016; Oliveira, 2016; Santos, 2015).

222
A formação continuada e em serviço para as professoras da Educação Infantil com a
temática racial favorece o processo de construção de conhecimentos docente sobre as
questões raciais, possibilitando o reconhecimento e a desnaturalização do racismo
institucional presente nos espaços da Educação Infantil, além de provocar reflexões e
indagações necessárias para a construção do senso crítico, ético e político diante as questões
raciais (Ivazaki, 2018; Santos, 2015).
É nesse espaço de conhecimento sistematizado sobre o campo da formação continuada
de professoras da Educação Infantil e o contexto de efervescência de políticas de governo em
Belo Horizonte (MG), pensadas na promoção da equidade racial, que o estudo em questão se
insere e consolida sua contribuição para o campo da Educação Infantil em interface com a
ERER.
Este artigo está organizado em três seções, a saber: na primeira seção, abordamos a
importância de se desenvolver uma prática antirracista com as crianças pequenas nas
Instituições de Educação Infantil, para que o direito de conhecer a sua cultura e histórias de
todas as crianças seja garantido; já na segunda, situamos este estudo no campo das políticas
públicas para a educação das relações étnico-raciais, dando destaque às experiências da Rede
Municipal de Belo Horizonte; por fim, na terceira, apresentamos parte da metodologia da
pesquisa, trazendo informações sobre o campo, os sujeitos participantes, os instrumentos
utilizados para a coleta dos dados e os resultados da investigação.

Crianças e as relações étnico-raciais


Os estudos de Mary Del Priore (20004) e Marcos Cezar de Freitas (2003) tratam
aspectos da história da criança no Brasil, realizando uma análise sobre em quais contextos se
encontravam as crianças no nosso território no período colonial. Os autores revelaram, numa
perspectiva ampla da história, que as taxas de mortalidade infantil eram altas, devido à
ausência no tratamento de doenças. As crianças não tinham oportunidades de vivenciar
brincadeiras, tão pouco, alimentação saudável e direito a saúde e a educação. “[...] Havia, de
fato, descaso, omissão, pouca disposição para com esse serviço que dava muito trabalho”
(Freitas, 2003, p. 53). Assim, as crianças foram negligenciadas pelo estado e pelos adultos,
deixando-as vulneráveis à diferentes formas de violências, seja no campo simbólico e/ou
material. Quanto à criança negra, por todo um condicionamento sociocultural, sofreu ainda
mais os efeitos do abandono.
Contudo, o século XXI foi marcado pelos progressos nas políticas públicas voltadas
para a infância, um dos marcos legais que merece destaque foi a promulgação da Constituição

223
Federativa do Brasil de 1988 (CF/88), na qual as crianças e suas infâncias começaram a
ocupar espaços na agenda pública, e, inclusive, passa a salvaguardar direitos enquanto sujeito
social e histórico. Posto isso, Castro (2015), Garcia (2019), Ivazaki (2018) e Oliveira (2016)
ressalvam que os campos de conhecimento como a antropologia, a filosofia, a psicologia e a
sociologia da infância avolumaram os debates sobre a criança e têm contribuindo para a
compreensão das culturas infantis, surgindo a ideia das infâncias como uma construção social,
uma ideologia política e econômica que muda em cada tempo e espaço na história social.
As inflexões da linha de pensamento da sociologia da infância abriram espaços para
outras releituras da criança e infâncias, inclusive para se fazer uma reflexão da criança e as
infâncias brasileiras. Nesse sentido, Abramowicz e Oliveira (2011), Almeida (2009), Kramer
(2008) confirmam que as categorias de raça e de classe devem ser pensadas como eixos que
entrecruzam o debate sobre a criança e infâncias; não só por serem constitutivas da criança,
mas também pela presença da diversidade dos povos em nosso país. À vista disso,
Abramowicz e Oliveira (2011) revelam que a chave para a compreensão da criança e das
infâncias é a diferença, é considerar a criança a partir das categorias que as diferenciam.
Nessa lógica, a escola precisa pensar na diversidade dos corpos das crianças, que eles têm cor,
passar de uma “visão que pensa a criança para uma visão que vê a criança” (Abramowicz;
Oliveira, 2011, p. 53).
Conforme as autoras Abramowicz e Oliveira (2011), lançar um olhar sobre a criança
— e negra — no ambiente escolar torna-se compreensível se pensarmos que as características
biológicas ainda são usadas para classificação racial. Assim, a identificação racial entre as
crianças pode levá-las a (re)produzirem comportamentos racistas e discriminatórios em
relação à criança negra, seja de forma consciente ou inconsciente, originários do imaginário
social. Fazzi (2012) e Lima (2008) se aproximam do suposto ao apontarem que as crianças em
tenra idade apresentam pistas de já serem capazes de identificar as pessoas a partir de suas
características físicas, uma vez que essa atitude é apreendida através dos discursos que
circulam no meio social, seja na família, na escola e ou na mídia. Portanto, é na sociedade que
ideia de raça é construída e o racismo é apreendido, é na cultura e nas relações étnico-raciais,
ou seja, “relações imersas na alteridade e construídas historicamente nos contextos de poder e
das hierarquias raciais brasileiras, nos quais a raça opera como forma de classificação social,
demarcação de diferenças e interpretação política e identitária” (Gomes, 2010, p. 22) e na
forma que somos educados aprendemos a ver as diferenças raciais, a classificá-las, a
hierarquizá-las e a construir as desigualdades sociais (Gomes, 2010). É nas relações, ou seja,
no contato com o outro, que a criança adquire consciência do seu corpo e do valor atribuído a

224
ele e é também através da socialização que ela vai construído sua autoimagem e a imagem do
outro.
Para Gomes e Silva (2015), a Educação Infantil se revela como lugar privilegiado para
ver as crianças e suas relações étnico-raciais como mais que uma questão temática a ser
tratada sem seu currículo, pois é também através das relações que a criança constrói sua
identidade, se constitui enquanto sujeito; por isso a dimensão relacional é constituinte da
formação da criança. Sendo assim, as relações que a criança estabelece no ambiente da
Educação Infantil
“[...] são frutíferas para compreender como elas se apropriam dos significados sociais
e como constroem seus sentidos [...] em relação as suas identidade e identificações
étnico-racial” (Trinidad, 2011, p. 127).

Sob esse ponto de vista, Munanga (2015, p. 29) destaca a Lei nº 10.639/03 como um
importante instrumento que viabiliza a integração da história da África e dos afro-brasileiros
no currículo escolar, favorecendo o processo de resgate da memória e da valorização das
culturas e saberes invalidados, negados, apagados e invisibilizados no percurso histórico
social do nosso país. Com isso, o autor nos provoca a pensar no quão a aplicabilidade da
referida Lei na Educação Infantil pode possibilitar o processo da construção identitária e de
pertencimento racial da criança, uma vez que seu processo de desenvolvimento ocorre de
maneira relacional.
A partir dessa perspectiva, Fazzi (2012) e Kramer (2008) sugerem que a Educação
Infantil pense em ações pedagógicas voltadas para a educação das relações raciais. Um
trabalho que atenda a diversidade das nossas crianças, dito de outra forma, um trabalho que
prima por um projeto de educação para relações étnico-raciais com crianças negras e não
negras em consonância com o que preconiza as políticas de governo.
As políticas públicas voltadas para a erradicação ao racismo, como as Leis n os
10.639/2003, 11.645/2008 e as DCNERER contribuem para a afirmação da garantia de
direitos, visto que primam pela transformação curricular das escolas. Somente a partir de um
currículo que reconheça e valorize a diversidade racial e que poderemos vislumbrar uma
educação mais justa e equânime.
Os estudos e as reflexões do campo da sociologia da infância brasileira, articulado
com a compreensão da importância da implementação da Lei nº 10.639/2003 e o que dispõe
as DCNERER nas escolas desde a Educação Infantil, apontam para a necessidade de nos

225
debruçarmos com maior ênfase no tema da formação das professoras da Educação Infantil
para as relações étnico-raciais.

Experiência em Belo Horizonte: Políticas de governo para a Educação das Relações


Étnico-raciais

No âmbito nacional, o resultado da intensificação das lutas e reivindicações dos


movimentos negros teve seu ápice no governo de um presidente oriundo das camadas
populares: Luís Inácio Lula da Silva.
Dentre outras ações, foi sancionada a Lei nº 10.639/2003 que alterou a LDBEN, nº
9.394/1996, incluindo os artigos 26-A e 79- B, estabelecendo a obrigatoriedade do ensino da
história e da cultura da África e dos afro-brasileiros em todas as instituições de ensino. Essa
Lei foi complementada pela Lei nº 11.645/2008 ao incluir a temática indígena.
Na sequência, instituíram-se as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e africana 53
(DCNERER), tendo como base o Parecer do Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno
(CNE/CP) nº 3/2004.
Em 10 de março de 2004, foi instituído o Plano Nacional de Implementação das
Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o ensino da
História e Cultura dos Afro-brasileiros e Africana (PLANAPIR). O PLANAPIR se constitui
como um documento pedagógico orientador para o sistema de ensino, no sentido de
possibilitar a efetivação das Leis n os 10.639/03, 11.645/08 e a DCNERER no currículo oficial
das instituições escolares.
Também são notáveis as legislações a saber: Lei nº 12.288 de 20 de julho de 2010, que
cria o Estatuto da Igualdade racial e a Lei nº 12.711, de 20 de agosto de 2012. Lei Federal que
viabilizou o acesso de estudantes negras/os à universidade, sendo importante para a
democratização das universidades públicas e a reparação social.
Neste contexto de efervescência de debates sobre a temática racial e de políticas
públicas educacionais nas agendas de órgãos governamentais, a nível nacional, destacamos as
experiências da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte/MG, cidade onde a
pesquisa foi desenvolvida. Ressalvamos que, ao fazer esta retrospectiva histórica da
experiência de Belo Horizonte, intentamos contextualizar a experiência dos Núcleos de
Estudos das Relações Étnico-raciais na cidade, a qual vem, ao longo de quase duas décadas,
53
Resolução CP/CNE nº 1, de 17 de junho de 2004 tendo por base o Parecer CP/CNE nº 3, de 10 de março de
2004.

226
desenvolvendo ações exitosas antirracistas, o que tem se revelado como um eixo da política
de Belo Horizonte — potente para o combate ao racismo.
No que se refere a fomentação de políticas públicas voltadas para a erradicação do
racismo na cidade, em respostas as reivindicações dos Movimentos Negros e dos negros e
negras em movimento (Gomes, 2017), a Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte
(SMED/PBH) debruçou-se nas discussões com lideranças dos movimentos sociais,
professores (as), pesquisadores e universidades sobre as questões raciais e possibilidades de
ações antirracistas no contexto escolar desde a década de 1990.
A Prefeitura municipal de Belo Horizonte, em 21 de março de 1990, sancionou a Lei
Orgânica do Município, cujo Artigo 182, inciso VI, instituiu a inserção da história e cultura da
África no currículo das escolas da Rede Municipal de Educação (RME/PBH, demonstrando
que o Município de Belo Horizonte se atentou para necessidade da inserção da pauta racial no
âmbito educacional antes da alteração da LDBEN/2003, que estabeleceu as Leis n os
10.639/2003 e 11.645/2008.
A Lei Orgânica/1990 também apontou em seu Art. 163 § 4º que “É vedada a adoção
de livro didático que dissemine qualquer forma de discriminação ou preconceito”. Sob esse
ponto de vista, em 2004, colocou-se em prática a política dos Kits de literatura afro-brasileira
distribuídos aos estudantes no Município de Belo Horizonte, que “nos anos subsequentes
foram incorporadas a história e a literatura indígena” (ENEDINA ALVES, coordenadora da
Gerência de Relações Étnico-Raciais – GERER, conversa informal, 19/07/2020).
Sob à luz do Estatuto da Igualdade Racial em 2010, a Secretaria Municipal de Belo
Horizonte promulgou a Lei nº 9.934/2010, que “dispõe sobre a Política Municipal de
Promoção da Igualdade Racial”, também criou o Conselho Municipal de Promoção da
54
igualdade Racial” (COMPIR) , afirmando o Plano de Promoção da Igualdade Racial. O
COMPIR atualmente está vinculado à Subsecretaria de Direito e Cidadania – SUDC e a
DEPIR., que atuam no enfrentamento ao racismo institucional, acompanhando as ações
previstas no Plano Municipal de Promoção da Igualdade Racial – PMPIR.
De acordo como Art. 2 da Lei nº 9.934/2010, o PMPIR objetiva “a redução das
desigualdades raciais no Município, com ênfase na população negra, mediante a realização de
ações exequíveis a longo, médio e curto prazo, com reconhecimento das demandas mais
imediatas, em como das áreas de atuação prioritárias”, alinhando a política de Belo Horizonte
com a política nacional.

54
O COMPIR, por meio da Resolução nº 01/2019, conforme revisão do Plano Municipal de Promoção da
Igualdade Racial, foi criado em 2009, com a intenção de adequá-lo à realidade atual da sociedade. Anterior a
essa foi a revisão em 2016.

227
Com isso, o poder executivo acatou a pauta do reconhecimento das desigualdades
raciais, reparação social e a valorização da população negra enquanto atores na construção da
cidade.
Assim, o Plano de Promoção da Igualdade Racial se constitui em “um instrumento de
planejamento, implementação e monitoramento de Política Municipal de promoção da
Igualdade Racial” (PMPIR, 2019, p. 8), são diretrizes para que a cidade de Belo Horizonte
possa implementar política de promoção da igualdade racial por meio da transversalidade e
intersetorialidade, envolvendo diversos atores da cidade como a saúde, a educação, a
segurança pública e os setores de políticas urbanas e sociais.
Vale destacar, também, como um marco das políticas públicas em Belo Horizonte, a
Resolução do Conselho Municipal de Educação (CME/BH) n° 003, de 20 de novembro de
2004, em seu Art. 9º propõe que os órgãos e instituições integrantes do Sistema Municipal de
Ensino pensem em medidas que garantam a formação continuada dos professores em
exercício, ainda instituiu, em 2013, as Diretrizes Curriculares Municipais para Educação das
Relações Étnico-raciais (DCMERER).
O texto reflete, em alguma medida, o esforço da Prefeitura de Belo Horizonte, por
meio da Secretaria de educação, que desde 2004, de maneira mais sistemática, tem
proposto ações que direcionam para a construção da educação antirracista em Belo
Horizonte, sobretudo com a criação do Núcleo de Relações Étnico-raciais
(DCMERER, 2013, p. 4).

De acordo com as DCMERER,


a formação de profissionais da educação, a mobilização de estudantes e o investimento
em materiais didáticos pedagógicos, eixos que estruturam o Núcleo, tem incidido de
maneira fundamental na rede municipal de educação com vistas ao enfrentamento dos
embates relacionados ao racismo no Brasil, em especial nas escolas municipais
(DCMERER, 2013, p. 4).

As ações e políticas públicas sistematicamente articuladas, ao longo das últimas três


décadas, demostra o esforço do município em sustentar uma política de governo voltada para
a promoção da igualdade racial de maneira ininterrupta no campo educacional. Quanto aos
Núcleos de Estudos das Relações Étnico-raciais, vale destacar que é um eixo da Política de
Promoção da Igualdade Racial, a SMED, em consonância com a Lei Municipal nº 9.934/2010
e as Leis Federais nos 10.639/2003 e 11.645/2008, e se iniciou na regional Barreiro em 2005 e
foi se organizando nas demais regionais nos anos subsequentes. Em 2017, estruturou-se de
forma sistematizada nas nove regionais da cidade. Contemplando as nove Diretoria Regionais
de Educação da cidade com a oferta de formação continuada e em serviço para a Educação
das Relações Étnico-Raciais aos profissionais da RME e Rede parceiras. Há três formatos de

228
encontros formativos, denominados regionalizados, reúnem um grupo menor, com pessoas
pertencentes aquela regional, tendo como característica tratar a prática pedagógica na
perspectiva da ERER, possibilitando uma reflexão sobre a práxis antirracistas desenvolvidas
em sala de aula, inter-regionais: reunir três regionais de maior proximidade geográfica para
potencializar a discussão, a troca e a interação entre os integrantes dos Núcleos e os
centralizados, que se constitui no momento de reunir as nove regionais em seminários e
palestras para dar visibilidade aos trabalhos que foram realizados ao longo do ano e de
fortalecimento das pessoas e das ações promovidas pelos Núcleos. Os encontros contam com
uma estrutura de organização comum, a saber: momento de fruição artística e cultura, rodas
de conversas, relato de experiência da prática e estudo teórico. Contudo, há flexibilidade e
autonomia dos coordenadores das regionais de tomar decisões e definir ações a serem
desenvolvidas nos seus encontros, apontando um caráter particular e de protagonismo dos
núcleos relativos ao campo de formação de professores com recorte racial; com maleabilidade
de sua organização, conforme a demanda e a realidade de cada regional.

Contextualizando o campo da pesquisa, os instrumentos utilizados e os sujeitos

Na investigação realizada, objetivamos compreender as estratégias metodológicas


utilizadas no Núcleo de Estudos da Educação das Relações Étnico-raciais da Regional Leste
de Belo Horizonte/MG do ponto de vista dos sujeitos de pesquisa. Entendemos, por
estratégias metodológicas, o agrupamento de mecanismos, ações, recursos materiais ou
humanos utilizados com intencionalidade pedagógica, ou seja, com o objetivo de ensinar,
educar, mobilizar os(as) participantes para os processos de formação docente.
As formações dos Núcleos são abertas a todos os profissionais da rede municipal de
ensino e instituições parceiras. Isso significava dizer que, dentre os profissionais da Educação
Infantil que participavam do curso, encontramos, além das professoras, acompanhantes de
Educação Inclusiva, técnicos da gerência, coordenadoras, bibliotecários, diretores e pessoal
administrativo. Dessa forma, nosso estudo optou pesquisar professoras da Educação Infantil
que estivessem atuando em sala de aula, por entendê-las como sujeitos presentes na base da
Instituição Escolar, estabelecendo uma relação direta com a criança.
Dentre os objetivos traçados, pretendemos caracterizar quais estratégias metodológicas
de formação utilizadas pelo Núcleo são mais significativas na visão das professoras; analisar
as contribuições dos encontros formativos para a trajetória profissional e pessoal dessas
docentes; e; por fim; entender como é realizada a gestão do Núcleo de Estudos da regional

229
Leste. Logramos entender, sob a visão das professoras, contribuições dos encontros
formativos para sua formação profissional e pessoal no que se refere as relações étnico-
raciais.
A metodologia proposta é de natureza qualitativa, por compreendê-la da mesma forma
que Flick (2009, p. 16), ou seja, como “um conjunto de práticas interpretativas e materiais que
torna o mundo visível”, oferecendo possibilidades metodológicas para o desenvolvimento de
um trabalho com pessoas e suas subjetividades. Contudo, utilizamos também a abordagem
quantitativa, especialmente na fase exploratória, realizando uma triangulação dos dados; com
a intenção de garantir-lhes uma análise substancial. A análise de dados foi realizada sob os
princípios da análise de conteúdo.
Utilizamos como instrumentos para coleta de dados a observação de campo com
visitas à Gerência das Relações Étnico-raciais (GERER), a análise de documentos como lista
de presenças dos encontros formativos dos Núcleos de Estudos e documentos que orientam as
suas ações de formação, a construção de um questionário, entrevistas semiestruturada com as
professoras da Educação Infantil e conversas informais com a coordenadora e gerente da
GERER, realizadas na plataforma Google Meet, gravadas, transcritas e analisadas.
Organizamos o estudo em três fases que se complementaram. Estruturamos a primeira
fase de cunho exploratório, que consistiu em escolher o campo a ser investigado, ou seja, um
dos Núcleos entre as nove regionais de BH/MG. Definimos critério para sua escolha: seria
aquele Núcleo que tivesse maior frequência de professoras da Educação Infantil. Utilizamos,
para isso, as listas de presença dos encontros de formação realizados no ano de 2019. O
Núcleo de Estudo da Regional Leste foi selecionado por comprovar maior frequência de
Professoras da Educação Infantil nos encontros presenciais do referido ano. A segunda fase
caracterizou-se pela imersão em campo da pesquisadora, que englobou a realização do contato
inicial com o Núcleo da Regional escolhida e com as professoras da Educação Infantil
participantes dos seus encontros formativos. E a última fase se constituiu na realização das
entrevistas, com cinco professoras selecionadas, sob os critérios a saber: ter respondido ao
questionário e desejar participar da entrevista (todas).
Selecionamos: tanto professoras que participavam da formação há um longo período
como também aquelas que, apenas recentemente, começaram a participar dos encontros. A
questão de ser frequente aos encontros do Núcleo (todas) também foi um aspecto importante
considerado. Interessava à pesquisa selecionar professoras que estivessem trabalhando com a
temática racial com as crianças ou que já tivessem desenvolvido um projeto voltado para a
educação das relações étnico-raciais com sua turma na instituição em que atuam. Todavia,

230
gostaríamos que fizessem parte de amostra aquelas que ainda não desenvolveram projetos
com a temática, pois, interessava-nos saber os motivos da professora que não desenvolveu
trabalho para a educação das relações étnico-raciais com suas turmas. Por fim, garantimos
que, em nosso grupo de entrevistadas, tivéssemos profissionais atuantes nas duas redes de
ensino presentes na formação: as professoras das Escolas Municipais de Educação Infantil
(EMEI) do município e as educadoras que atuavam nas creches comunitárias e filantrópicas
parceiras/conveniadas à Secretaria Municipal de Educação que atendem crianças do
município.
Concluímos essa etapa com a seleção de cinco respondentes para a realização das
entrevistas, sendo que duas representavam EMEI’s e três creches parceiras. Assim, a
amostragem contou com cinco respondentes que se declaram pertencentes ao grupo racial
negro. Maysa, Lica, Dinha e Mari afirmaram ter prática com o tema em sala de aula e uma
respondente, Bibi, declarou-se “sem prática” com o tema racial. Todas as respondentes
fizeram escolha por nomes fictícios no lugar de nomes verdadeiros, para preservarmos a
identidade.
Ao traçar o perfil das professoras participantes da pesquisa, identificamos que todas as
professoras são mulheres que se autodeclararam como pertencentes ao grupo racial negro. Na
amostra de nove respondentes, oito se autodeclararam “ser” da cor preta e uma da cor parda.
Somado a isso, de acordo com informações da SMED, o quadro docente na Educação Infantil
é constituído por um número maior de mulheres que auto se declaram “pretas e pardas”,
corroborando com o que a nossa amostra apontou.
Os dados nos impulsionaram a reconhecer a importância de se realizar uma
investigação de maneira articulada e interseccional, entendemos que as categorias raça,
gênero e classe são constituintes das identidades dos sujeitos e forjam tensões nas relações e
desigualdades em todas as dimensões sociais, dentre elas, ressalvamos o campo da educação e
do trabalho.
Akotirene (2019, p. 21) conceitua a Interseccionalidade como “um sistema de
opressão interligado”.
A Interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as
consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da
subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o
patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas de discriminatórios criam
desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias,
classes e outras. Além disso a Interseccionalidade trata da forma como as ações e
políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo
aspectos dinâmicos ou ativos do desempoeiramento. (Crenshaw, 2002, p. 177).

231
A Interseccionalidade se preocupa, conforme Crenshaw (2002, p. 50), com as
desigualdades impostas pela matriz de opressão, que classifica os corpos por meios dos eixos
que cruzam as múltiplas identidades das mulheres.
Reiteramos que reconhecemos que todas as mulheres estão sujeitas à discriminação de
gênero, por estarem sob uma estrutura social dura, machista e sexista, entretanto, é preciso
pensar que o entrecruzamento e a sobreposição de outras variáveis de suas identidades, como
raça, classe, religião, orientação sexual, regionalidade, fazem a diferença no jogo de poder das
relações sociais, são combinações que podem expô-las a diferentes tipos de violências e
discriminações. Crenshaw (2002) chama a atenção para o fato que a mulher negra é
marginalizada racialmente e, por isso, suas experiências e as violências que sofrem diferem
das mulheres brancas, mesmo estando ambas em uma posição social marcada pela
subordinação de gênero.
Segundo as múltiplas identidades, as mulheres vão se encaixando em subgrupos de
maior ou menor vulnerabilidade. Por isso, Crenshaw (2002) adverte que é preciso atenção nas
diferentes formas que o gênero intersecta outras identidades e o modo pela qual essas
intersecções contribuem para as particularidades das vulnerabilidades de cada subgrupo de
mulheres, pois, raça, classe, etnia e gênero são eixos de poder que estruturam os terrenos
sociais, econômicos e políticos, determinando quais mulheres sofreram mais abusos de
direitos e desvantagens.
A violência contra as mulheres baseadas na raça ou etnia é, para Crenshaw (2002,
p.178), a forma mais danosa de opressão interseccional, por se configurar em uma violação de
gênero que gera desigualdades no grupo de mulheres. As cinco entrevistadas, guardadas as
proporções, relataram que foram vítimas de diferentes formas de racismo e opressão; seja pela
cor da pele ou pelos traços físicos. Tudo isso, por estarem inseridas em um sistema de
opressão, em que (Bento, 2002), a branquitude é valorizada e referenciada como padrão de
beleza, de intelectualidade, de superioridades. Inclusive nos campos profissional e
educacional, apontando que, no grupo de mulheres, os seus corpos são diferenciados,
racializados pela classificação a partir de seus fenótipos, assim o eixo de poder raça sobrepõe
suas identidades as colocando em desigualdades em relação às mulheres brancas, ao
posicioná-las em uma estrutura de opressão e discriminações raciais.
O percurso metodológico foi um intenso desafio, os dilemas, os critérios, as opções e
as tensões vivenciadas em tempos pandêmicos ocasionaram demandas para a reformulação e
a reorientação, mas os caminhos trilhados fortaleceram o processo investigativo.

232
As estratégias metodológicas e suas contribuições para a formação pessoal e
profissional das professoras da Educação Infantil

Para Dias (2012), a apropriação pelas professoras, dos novos saberes oriundos de
cursos de formação — tendo como eixo a categoria raça — ocorre por intermédio da
mobilização dos seus conhecimentos, experiências e reflexões sobre os conteúdos abordados.
Sob esse entendimento, indagamos as entrevistas sobre os recursos que elas
observaram serem utilizados nos momentos dos encontros de formação. Nesse sentido,
elencamos algumas questões nas entrevistas visando melhor compreender esses momentos;
especialmente nos encontros presenciais do Núcleo da Regional Leste. Faziam parte das
questões a indicação inicial de algumas estratégias metodológicas já consideradas pelos
gestores como elementos da constituição de um currículo. Dessa forma, tínhamos de antemão
a informação de que o relato de experiência da prática, o estudo teórico, o diálogo com a
academia e o momento inicial que antecedia a atividade principal do encontro, marcada por
alguma vivência corporal ou artística, chamado pelos participantes e coordenação da
formação como o momento “deleite” eram estratégias eleitas pela gestão da SMED, as
gerências, denominadas DIRE’s, e coordenadores das regionais para compor o currículo de
formação dos Núcleos de Estudos das nove regionais. Restava-nos apenas saber se as
professoras também elegeriam essas estratégias como significativas em sua formação.
As respondentes apontaram haver uma preparação da ambiência para acolher as
participantes nos encontros de formação da Regional Leste, como uma música ambiente, a
exposição de obras literárias com a temática racial e o lanche coletivo.
Havia um combinado para que houvesse um espaço guardado para um café coletivo
e, nesse momento,
[...] você tinha uma interação que você tinha com seu colega do lado que trocava ali
no momento do café, uma coisa. — Ah eu fiz isso e foi legal. E assim são mil
possibilidades, né. Então não tem como sair do entrar e sair do mesmo jeito. (rsrs) Não
tem. (Lica, professora de EMEI, entrevista 03/05/2021).

Mediante o relato da professora, compreendemos o café coletivo como uma estratégia


que promovia a interação do grupo — a interação é um fenômeno social que se constitui na
relação com o outro e envolve a ação de partilhar. Sob essa perspectiva, acreditamos que o
café coletivo foi um momento que abriu espaços para que as participantes pudessem
estabelecer uma relação de trocas. Outrossim, representava um aproveitamento do espaço e do
tempo em que as participantes estavam disponíveis à aprendizagem, em um momento de
comunitarismo.

233
Sob as narrativas das entrevistadas, percebemos que os estilos musicais utilizados no
Núcleo estão impregnados dos elementos da cultura afro-brasileira — são músicas que
despertam emoções. Para Caetano, Paulino e Santos (2020), a música negra, ou as que trazem
marcas africanas, provocam vivências de outras sensações que não são rotineiras, portanto,
habitam valores civilizatórios que deslocam as pessoas, aflorando sentimentos.
A formação com o tema principal se iniciava com o que as respondentes e membros
dos Núcleos de Estudos denominam como “momento deleite”, um espaço reservado na
formação para a fruição artística,
[...] ali era passado uma contação de história negra ou indígena. Ou uma música ou um
vídeo. Sempre tinha uma coisa que, vamos dizer assim, uma parte cultural. Mais
artístico cultural né, para depois a gente iniciar realmente os estudos contava com uma
apresentação artística ou alguma atividade de natureza cultural africana ou indígena.
(Lica, professora EMEI, entrevista 05/05/2021). [...] E você percebe o quanto que isso
marcou. E aí Adriana eu fico impressionada.

Lica aponta que o Núcleo de Estudos se preocupa em valorizar e dar visibilidade ao


repertório cultural de matrizes africana e indígena em seus encontros formativos,
apresentando uma particularidade necessária ao campo de formação para a educação das
relações étnico-raciais.
A inclusão do repertório de matriz africana está ancorada na experiência dos afro-
brasileiros (Oliveira, 2012, p. 40), daí surge as especificidades da nossa forma cultural 55 e da
composição da nossa tradição56, “a incorporação de elementos culturais em contextos
diferentes do original implica, naturalmente, em modelos adaptados assumindo versões locais
[…]” (Sodré, 2009, p. 9), inclusive com as possibilidades (Sodré, 2009) de um arranjo que
pode integrar elementos da cultura indígena e europeia.
Outra estratégia eleita como potente nos encontros de formação foram os relatos de
experiências de vida e da prática pedagógica. Bibi (professora de creche, entrevista
06/05/2021) disse que: “Eu vivi a experiência os relatos em que as pessoas falam um pouco
da história da vida delas”. A professora Maysa declara que nesse momento:
Ah me sensibiliza porue as vezes as meninas começam a contar né, sobre as
experiências e assim, elas choram. (rsrs). E você percebe o quanto que isso marcou. E
55
Forma cultural, diz respeito ao escopo cultural presente em qualquer narrativa e espaço passível que lhe dar
condições de produção de sentido territorializado, ou seja, o afro-brasileiros reescreve a cultura africana dando
sentido ao seu modo de existir e resistir no mundo. É uma epistemologia que está para a ética porque comporta
uma atitude frente ao mundo, (OLIVEIRA, 2012, 34-35).
12
No que diz respeito à tradição, o ponto de partida é a afirmação de que os povos africanos têm uma
cultura autêntica que lhes confere um eu particular irredutível ao de qualquer outro grupo (Mbembe, 2001, p.
13), sendo assim, entende-se que os afro-brasileiros tem uma cultura que difere das demais em nosso território
56
No que diz respeito à tradição, o ponto de partida é a afirmação de que os povos africanos têm uma cultura
autêntica que lhes confere um eu particular irredutível ao de qualquer outro grupo (Mbembe, 2001, p. 13), sendo
assim, entende-se que os afro-brasileiros têm uma cultura que difere das demais em nosso território.

234
aí Adriana eu fico impressionada nessa questão mesmo de perceber a criança sabe.
Porque se o professor não percebe isto na criança ali é pra vida toda. você vê que o
sofrimento quando as meninas compartilham as situações que elas tiveram foi na
infância e hoje adultas elas lembram disso. E ainda sabe...ainda sofrem. Se
emocionam. Eu acho que me enriquece nesse sentido assim sabe, de eu ficar atenta.
Desse cuidado que eu preciso ter com a criança ali da Educação Infantil para que
desde agora, desde cedo. [...] (Maysa, professora em Creche, entrevista, 05/05/2021).

Nessa mesma direção, Dinha expressa a emoção ao ouvir um relato de experiências


de vida e o movimento de se pensar a criança negra na Educação Infantil, ao dizer que
[...]fico muito triste sabe, alguns relatos de pessoas que eu acho que não deveriam nem
ouvir o que elas ouviam, porque isso é muito comovente pra gente. Pra nossa raça
negra, né. É muito comovente. É muitas coisas que acontecem, nós não deveríamos
nem ouvir porque isso fere mesmo a alma da gente. [...] E com as crianças, né, elas
ainda sofrem muito preconceito, tanto racial como social. […] Eu vejo tantas crianças
sentindo sabe e passando por tantas coisas e que não tem como a gente fazer, no
momento alguma coisa por elas. E isso dói. (Dinha, entrevista, 07/05/2021).

Em relação aos relatos de experiências, as professoras, mulheres negras, apontaram-


nos como possibilidades de troca e de aprendizagem nos encontros de formação do Núcleo.
Maysa e Dinha fazem uma conexão entre os relatos de experiência de vida e as crianças
negras com quem atuam. Afirmam que: as crianças também sofrem em função do preconceito
racial, expressando em relação a isto um sentimento de impotência — o que lhe causa
também dor.
As ideias das respondentes sobre as contribuições do relato de vida na formação vão
ao encontro com a pesquisadora Machado, V. (2013, p. 17) que considera que “De todas as
histórias’ a maior e a mais significativa é a das pessoas, simbiose de todas as histórias na
vida”.
Uma simbiose que faz parte do pensamento afro-brasileiro, na qual o corpo negro pode
representar mais que si próprio e sua subjetividade, “extrapolando a dimensão do indivíduo”,
Gomes (2003, p. 79), podendo simbolizar um corpo coletivo, Machado, A. (2014, 2019), um
corpo político que representa a luta e a resistência de sua comunidade.
Por isso, as professoras, enquanto mulheres negras, sentiram-se representadas,
colocando-se no lugar uma da outra; semelhantes entre si.
Segundo as respondentes, os relatos da prática contam com participantes dos Núcleos,
convidados de fora com diferentes experiências e campos do conhecimento, artistas,
pesquisadores, lideranças de movimentos sociais. Assim,
se dava trocas entre membros dos próprios Núcleos. Ou até mesmo trocas com
membros de outros grupos, eram levados. [...]que a gente mais podia levar para a

235
nossa prática, em sala de aula, [...]era feito sempre assim ou uma pessoa do próprio
Núcleo ou fora, que vinha trazer uma troca[...]. (Lica, entrevista, 03/05/2021).

Dessa forma, os relatos da experiência da prática se constituem em uma estratégia


metodológica em que, por meio de trocas e interações entre as professoras participantes dos
Núcleos de Estudos e atores externos, possibilitam reflexões sobre a própria prática, a respeito
do cotidiano escolar e sobre as questões raciais, inclusive na Educação Infantil. Além disso,
favorece rupturas epistemológicas nas lógicas de que o racismo opera no contexto social; por
conseguinte, no campo educacional (Castro, 2015; Costa, 2013; Garcia, 2019, Ivazaki, 2018).
O que favorece o reconhecimento e a desnaturalização do racismo institucional presente
também nos espaços da Educação Infantil.
Nessa direção, as respondentes também destacaram as rodas de conversas e a vivência
de campo como estratégias metodológicas robustas nos encontros de formação da regional
Leste.
Pudemos verificar que a roda de conversa provê uma relação mais horizontal,
possibilitando o diálogo nos encontros de formação ao escutar Mari explicar que a
participação das professoras da Educação Infantil acontece de forma mais efetiva nesse
formato formativo.
Ao ser interpelada sobre a sua fala “que as professoras de Educação Infantil têm pouca
participação nos momentos dos relatos de experiência”, Mari faz uma pausa e diz: “É, espera
aí... É! Não é que eles não abrem muito espaço, tem a roda de conversa — todo mundo tem o
direito de falar e tudo […]. É! A gente participa mesmo é na roda ali de conversa [...]. (Mari,
entrevista, 13/05/2021), apontando que as rodas de conversa se constituem em um momento
em que todos têm a oportunidade de falar.
Pudemos verificar o sentimento de coletividade que a circularidade promove em um
importante momento de roda de conversa contado por Mari. Ela nos contou haver
uma roda de conversa com 3 indígenas. Eu lembro que até a gente foi para fora porque
eles não conseguiam ficar dentro da sala fechada. Foi muito legal porque a gente fez a
roda de conversa lá fora. Ao ar livre. Lá na praça da estação. Então assim foi muito
legal também (Mari, entrevista, 13/05/2021).

A partir da fala da Mari, entendemos que a roda de conversa realizadas nos encontros
dos Núcleos abre possibilidades para que as histórias das populações negras e indígenas —
que tiveram suas histórias invisibilizadas e silenciadas — sejam contadas por eles.
De acordo com Petit (2015, p. 127), por sermos pessoas que nos afirmamos na relação
comunitária, o princípio de circularidade permite uma relação entre as pessoas, tempos e com

236
o mundo, que os interconectem. Por isso, precisamos valorizar a integração que a
circularidade nos proporciona.
Nessa mesma direção, Trindade (2006) reitera que a questão da roda e da circularidade
tem uma profunda marca nas manifestações culturais afro-brasileiras, por isso, “a roda tem
um significado muito grande, é um valor civilizatório afro-brasileiro, pois aponta o
movimento, a circularidade, a renovação, o processo, a coletividade” [...], (Ibidem, [2005?], p.
34) e a horizontalidade.
No que se refere a vivência de campo, Maysa apontou que a visita de campo foge ao
convencional ao dizer “saí do prédio”, e extrapola: “são os Núcleos se apropriando dos
espaços da cidade para promover a aprendizagem de forma criativa e prazerosa”, ao dizer que
elas procuram espaços da cidade que são muito bacanas. Tem as formações lá no
Museu de Artes e Ofícios, nosso Deus eu vou em todas. Teve lá e ... aí sai da regional,
né. Ali do prédio da regional e vai nesses espaços da cidade que é muito legal. Eu
lembro que a gente fez lá, a gente fez também no museu no circuito da Liberdade.
(Maysa, entrevista, 05/05/2021).

Os elementos culturais afro-brasileiros e indígenas expostos nos espaços “museais”


contam história e guardam memórias, portanto, pode possibilitar que as participantes do
Núcleo ampliem seu repertório cultural sobre a cultura negra e indígena, pois “são artefatos
civilizatórios do patrimônio material e imaterial desse legado, os valores veiculados por uma
filosofia negra baseada na sabedoria dos ancestrais [...], (Petit, 2015, p. 163).
Os conteúdos trabalhados como uma estratégia de formação também foram percebidos
pelas respondentes. Bibi acredita que “o Núcleo dá essa oportunidade para a gente estar
aprofundando na história, né. Na origem. Na história do negro, na origem” (Bibi, professora
Creche, entrevista, 06/05/2021).
Bibi também toca na questão de elevar a autoestima da população afro-brasileira, ao
dizer que “a gente tem que valorizar a nossa cor”. Nesse sentido, Gomes (2020) entende que:
O corpo localiza-se em um terreno social subjetivamente conflitivo. Ao longo da
história, ele se tornou um emblema étnico. [...] ele é um símbolo explorado nas
relações de poder e de dominação para classificar e hierarquizar grupos diferentes. O
corpo é uma linguagem, e a cultura escolheu algumas de suas partes como veículos de
comunicação. (Gomes, 2020, p. 250).

Os sinais diacríticos, como cabelo, cor de pele, nariz, ainda são usados como formas
de identificar e “racializar” os corpos negros. Para a autora, a discriminação racial que
atravessa as relações de poder na sociedade produzem sentimentos nos afro-descentes como
baixa autoestima, negação, rejeição do seu pertencimento étnico-racial, assim: “ver-se e
aceitar-se negro, implica, sobretudo, a ressignificação desse pertencimento étnico/racial no

237
plano individual e coletivo” (Gomes, 2020, p. 254), logo, é preciso trabalhar a identidade
negra sob os eixos que intersectam as identidades das professoras como a raça, gênero,
crença, religiosidade (Crenshaw, 2002).
Nesse sentido, Mari explica que apreendeu conhecimentos sobre as religiões de matriz
afro-brasileira nos encontros do Núcleo, a partir do processo histórico da colonização do
Brasil, discorrendo, em sua fala, uma indignação em relação a esse processo perverso que
forjou a discriminação dessas religiões.
As percepções que as entrevistadas tiveram sobre os conteúdos tratados nas formações
sinalizam que eles têm a intencionalidade de provocar reflexões críticas sobre as histórias e
culturas dos africanos, afro-brasileiros e indígenas, no sentido de que as professoras possam
construir seus saberes sobre a educação das relações étnico-raciais sob a perspectiva da
interculturalidade.
Para erradicar o racismo, faz-se necessário contar a história por uma perspectiva
intercultural, que critique o padrão de saberes construídos na colonialidade do saber, indo a
contrapelo dessa forma de opressão, valorizando os conhecimentos dos afro-brasileiros e
indígenas, saberes que, aliás, são desconsiderados pelo racismo epistêmico.
Outra estratégia metodológica destacada pelas respondentes foram os recursos
humanos. Elas apontaram as pessoas que realizam as formações, sendo a gestoras da GERER;
coordenadora do Núcleo; convidados externos; as professoras que fazem os relatos de
experiências da prática; as ferramentas tecnológicas como audiovisual e obras literárias com a
temática racial.
Na cultura afro-brasileira (Oliveira, 2012. p. 12), “a pessoa é uma síntese dos
elementos que compõe o universo, é o resultado da integração” de todos os seres vivos que
vivem conectados. Dessa forma, a pessoa é o fio condutor que liga e leva os conhecimentos
por meio da oralidade, da história falada, porque a cultura afro-brasileira é criada na
cooperação com o outro. E é nesse processo de socialização que as identidades subjetivas e
coletivas são tecidas (Oliveira, 2012, p. 12).
Petit (2015) confirma que usar o recurso humano nas formações de professores como
uma estratégia metodológica é estar em sintonia com o pensamento afro-brasileiro ao dizer
que:
Em subgrupos e em coletivos maiores é que se atinge de modo geral maior
heterogeneidade e riqueza de ideias, noções e conceitos, ·permitindo assim
problematização e, sobretudo, a construção de relações comunitárias, algo muito
valioso na cosmovisão africana, uma vez que eu só existo por meio dos outros, ou
seja, alimento-me do convívio e da troca. A educação precisa dessa dimensão
espiritual para gerar afetos transformadores (Petit, 2015, p. 182).

238
É na interação, nas relações horizontais de trocas, que a pessoa transmite seus
saberes ao grupo, e com ele aprende, dado que a forma de ensinar e aprender da cultura
afro-brasileira se dá no coletivo! Sendo atravessada pelo afeto e pelo respeito ao outro.
As palestras, seminários e assembleia foram evidenciadas pelas respondentes como
uma estratégia que possibilita a troca e o diálogo entre atores externos, como pesquisadores
e academia. Nesse sentido,
[...] o Núcleo foi ganhando outras potências. Foi agregando aí a academia que foi
trazendo também outras experiências pra gente[...]. Então ele foi trazendo um outro
olhar também da pesquisa para dentro do Núcleo sabe. E que foi muito enriquecedor,
né, porque a gente começou a ter acesso a outras linhas de pesquisa e outras visões
para além da prática, né. Dos relatos de prática. (Lica, entrevista, (03/05/2021).

Esses momentos de diálogo entre a academia e professoras também se conectam com a


perspectiva da interculturalidade por possibilitar que a academia reflita sobre o mecanismo
que incorporou diversas histórias culturais em um padrão de poder; impondo uma “hegemonia
de controle de todas as formas de controle da subjetividade, da cultura e em especial do
conhecimento, da produção de conhecimento” (Quijano, 2005, p. 121), excluindo importantes
saberes tradicionais e culturas dos afro-brasileiros e indígenas nos currículos da academia.
Outra questão apontada pelas respondentes foi a existência do silenciamento das
questões raciais nas instituições de Educação Infantil; há resistência de colegas perante essa
temática — os quais negam a existência do racismo. A partir das narrativas das entrevistadas,
compreendemos que ainda paira o discurso do mito da democracia racial nas instituições de
Educação infantil, escamoteando as diferentes formas que o racismo reverbera nos ambientes
escolares.
Diante disso, as respondentes consideram os Núcleos como um ambiente formativo
que promove a comunicação no e com o coletivo, favorecendo as trocas e diálogos. Elas
afirmam que os encontros formativos favorecem a construção de concepções a respeito da
temática racial, dão coragem para o enfrentamento das tensões que a temática étnico-racial
causa no ambiente escolar devido ao mito da democracia racial, silenciamento e negações.
Elas declararam que perderam o medo de se posicionar politicamente perante aos debates que
envolvam o tema étnico-racial. Apontaram, também, que as formações são enriquecedoras,
porquanto ampliam-lhes o repertório teórico e pedagógico, robustecendo conhecimentos e
possibilidades de desenvolvimento de práticas antirracistas com as crianças pequenas.
Notamos, ainda, que a expressão “dar coragem” foi recorrente nas falas das entrevistadas,
quando se referiam aos Núcleos, tal expressão atravessa as compreensões que as professoras

239
têm em relação às contribuições dos encontros formativos dos Núcleos nas suas formações;
tanto no campo profissional como pessoal.
A partir das narrativas das entrevistadas, compreendemos que esses encontros
formativos contribuem para a formação profissional e pessoal das participantes, contudo,
afetam cada participante de uma maneira diferente: a depender do seu estágio de
conhecimento e envolvimento com as questões raciais, das suas subjetividades e experiências.
Para algumas, a formação serve para sensibilizá-las, para outras, em vista de as fortalecerem-
nas não apenas enquanto mulher e negra, mas também no robustecer de suas ações; para
outras, ainda, servem como aprofundamento dos conhecimentos e saberes de suas ações. E
temos, além disso, que considerar que as formações têm de lidar com aquelas pessoas
resistentes à temática étnico-racial

Considerações Finais

Como dito, os Núcleos de Estudos das Relações Étnico-raciais oferecem formação em


rede, apresentando uma estrutura organizacional comum, por isso, ao revelar os dados da
Regional Leste, pudemos ter uma noção de como as demais regionais funcionam.
As estratégias metodologias que compõe o currículo do Núcleo de Estudos apontam
para uma busca de rompimento com as lógicas de que o racismo opera no contexto social e,
por conseguinte, no campo educacional, com o mito da democracia racial ao reconhecer a
existência do racismo e das desigualdades sociais. Dessa forma, as estratégias metodológicas
utilizadas nos encontros de formação apontam esforços para que se rompa com o racismo
epistêmico, o qual privilegia um conhecimento único, desprezando os conhecimentos das
populações negras e indígenas e das demais camadas populares (Oliveira, L, 2018), ao
valorizar outros conhecimentos — inclusive os que são construídos na prática e nas
experiências de vida, favorecendo o reconhecimento e a desnaturalização do racismo
institucional presente nos espaços da Educação Infantil.
O estudo com mais profundidade do Núcleo de Estudos da Regional Leste de Belo
Horizonte nos revelou que as africanidades brasileiras foram colocadas em evidência e
orientaram os encontros formativos dos Núcleos de Estudos das Relações Étnico-raciais,
apontando um currículo específico que emerge na formação de professores para a Educação
das relações étnico-raciais. Indicando que seus encontros formativos são organizados sob um
currículo cuja perspectiva é de uma pedagogia que logra desconstruir ideias equivocadas da
história e cultura dos africanos, afro-brasileiros forjadas pelo racismo estrutural e epistêmico.

240
Os relatos das respondentes nos indicaram que os Núcleos de Estudos se debruçam em
ações para mobilizar, sensibilizar e instrumentalizar as professoras para a implementação da
Lei nº 10.639/2003 nos currículos das escolas da RME/BH.
A potência do Núcleo de Estudos das Relações Étnico-raciais no campo de formação
de professores para a educação étnico-raciais evidencia sua relevância como um eixo da
política pública da cidade de Belo Horizonte/MG para a erradicação do racismo.

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244
RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E A EDUCAÇÃO INFANTIL: AS
AÇÕES DOS/AS GESTORES/AS NA/PELA EFETIVAÇÃO DA LEI
10.639/2003
Cecília Maria Vieira
Doutoranda em Educação pela Universidade de Brasília
[email protected]

Rachel Benta Messias Bastos


Professora do Instituto Federal de Goiás
[email protected]

Thaís Regina de Carvalho


Professora da Universidade Federal de Goiás
[email protected]

Gestão educacional na/pela luta antirracista

Imersos/as no contexto histórico e social do Brasil, abordar sobre a Educação das


Relações Étnico-Raciais (ERER), nos mais diversos espaços e com diferentes sujeitos, torna-
se um movimento essencial para a luta antirracista. Nessa direção, o presente texto tem como
intuito enfatizar os aspectos referentes aos desafios e papel da equipe gestora no processo de
implementação de políticas e práticas pedagógicas antirracistas na educação infantil.
Ao focar nosso estudo nas especificidades da ERER na gestão educacional, é
necessário assinalar que a discussão sobre disputas, poder e tensionamentos está presente de
maneira significativa, haja vista que: problematizar sobre as relações raciais na nossa
sociedade significa romper com os ciclos de privilégios e silenciamentos perante o
racismo e desigualdades raciais. Além disso, conforme Ângelo de Souza (2014), a gestão
não é um espaço neutro e está atrelada à efetivação da política. Para o autor:

[...] a gestão escolar pode ser compreendida como um processo político, de disputa de
poder, explicitamente ou não, no qual as pessoas que agem na/sobre a escola pautam-
se predominantemente pelos seus próprios olhares e interesses acerca de todos os
passos desse processo, com vistas a garantir que as suas formas de compreender a
instituição e os seus objetivos prevaleçam sobre as dos demais sujeitos, a ponto de, na
medida do possível, levar os demais a agirem como elas pretendem. [...]. A gestão é a
execução da política, é por onde a política opera e o poder se realiza. (SOUZA, 2014,
p. 15).

Portanto, a gestão educacional é fundamental no cotidiano das unidades educativas,


sendo necessário que os princípios de uma gestão democrática sejam considerados, assim
como que os sujeitos que ocupam esse espaço compreendam as suas responsabilidades
enquanto agentes transformadores.

245
Em especial, no que diz respeito a uma educação antirracista, Thaís Carvalho (2013)
constatou que o envolvimento e o comprometimento da gestão, tanto do sistema de ensino
quanto da unidade de educação infantil, podem ser salientados como um dos diferenciais nas
proposições e execução das políticas de promoção da igualdade racial em uma rede municipal
de ensino. Dessa forma, é possível reafirmar a importância da gestão no processo de
implementação da Lei n.º 10639/2003 (BRASIL, 2003), a qual também compõe as atribuições
da gestão, já que se trata de uma alteração no artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação, tornando obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira em
todas as instituições de ensino. Sendo assim, esses sujeitos também precisam participar de
momentos formativos que favoreçam a compreensão da inserção da ERER nas suas demandas
diárias.
Este é um desafio que se constitui como uma tarefa árdua, pois envolve problematizar
sobre o racismo estrutural (ALMEIDA, 2019; GOMES, 2012) e buscar estratégias para a
superação do mesmo. Lélia Gonzalez (2020, p. 185) aponta que: “O racismo, enquanto
construção ideológica e um conjunto de práticas, passou por um processo de perpetuação e
reforço após a abolição da escravatura, na medida em que beneficiou e beneficia
determinados interesses.”
Nessa direção, é pulsante a ruptura da reprodução de relações raciais que se
manifestam de modo hierárquico, desigual e assimétrico. Para que isso ocorra, o Movimento
Negro atua enquanto um dos principais agentes ao questionar, denunciar, bem como realizar
proposições por meio da produção de saberes. Em acordo com Nilma Lino Gomes (2017,
p.24, o Movimento Negro é “[...] um importante ator político que constrói, sistematiza,
articula saberes emancipatórios produzidos pela população negra ao longo da história social,
política, cultural e educacional brasileira [...].”
Enfatizando a agência do Movimento Negro também vale mencionar a participação
desses sujeitos no processo de produção dos documentos orientadores para o trabalho
pedagógico com a ERER na educação básica, dentre eles destacamos: Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura
Africana e Afro-brasileira (BRASIL, 2004); Orientações e ações para educação das relações
étnico-raciais (BRASIL, 2006); Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares
Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-brasileira e Africana (BRASIL, 2009); Educação Infantil e práticas promotoras da
igualdade racial (BRASIL, 2012). Tais materiais contam com subsídios que favorecem o

246
entendimento de que todos/as os/as envolvidos/as no cotidiano educacional são responsáveis
pela efetivação de uma educação antirracista.
No tocante à gestão, torna-se percetível o seu papel tanto na proposição quanto no
acompanhamento das ações que almejam contemplar a ERER. Conforme Brasil (2012),
A gestão de um ambiente educativo que tem como objetivo educar para a igualdade
racial não é tarefa de uma pessoa só. As Secretarias de Educação dos municípios, por
meio de suas equipes técnicas, os gestores das unidades educativas, diretores,
coordenadores pedagógicos, os professores e equipe de apoio, as famílias e a
comunidade precisam se unir com o objetivo de transformar a situação de
discriminação existente nos ambientes escolares. Muitas são as dimensões que
precisam ser pensadas para que uma real mudança de atitudes, procedimentos e
conceitos em relação às desigualdades sejam implantadas em uma creche ou pré-
escola. (Brasil, 2012, p. 13, grifo nosso).

Portanto, o trabalho com a ERER não se restringe à prática docente, sendo primordial
que a gestão educacional atue de modo direto por meio de ações intencionais que
proporcionem as condições necessárias para o desenvolvimento de uma educação antirracista
desde a primeira etapa da educação básica.
Essa perspectiva, fomenta reflexões sobre as estratégias e recursos que vêm sendo
recorridos em âmbito da gestão para a implementação da Lei n.º 10.639/2003, a partir da
defesa de que o trabalho com a temática não pode ser reduzido à execução de propostas
isoladas. Nesse sentido, enfatizamos a relevância e necessidade de estudos que tenham como
foco compreender as ações desenvolvidas em âmbito da gestão educacional. Considerando o
exposto, a presente produção textual apresenta como objetivo: analisar as ações realizadas
pela equipe gestora dos Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIs), integrantes da
rede municipal de educação de Goiânia, no que se refere à educação das relações étnico-
raciais.
Este estudo é um recorte da pesquisa em andamento intitulada: “Educação das relações
étnico-raciais e crianças de zero a três anos de idade: um estudo sobre as práticas pedagógicas
na rede municipal de Goiânia”, a qual vem sendo desenvolvida desde o ano de 2020 em
parceria entre a Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás e o Instituto
Federal de Goiás — Campus Goiânia Oeste. O objetivo da pesquisa é: analisar as práticas
pedagógicas da educação infantil, em especial as direcionadas às creches (zero a três anos) da
rede municipal de educação de Goiânia, no que se refere às ações que visam abranger a
educação das relações étnico-raciais. Para isso, estão sendo realizadas análises documentais,
levantamentos bibliográficos e aplicação de questionários junto a docentes e equipe gestora.
Neste texto, abordaremos a respeito das análises preliminares dos questionários
aplicados às gestoras de cinco Centros Municipais de Educação Infantil da rede municipal de

247
educação de Goiânia no segundo semestre do ano de 2021. Dentre as respondentes estão as
diretoras e as coordenadoras pedagógicas, totalizando, nessa primeira etapa da pesquisa, seis
participantes. O questionário está organizado por eixos, os quais contemplam aspectos sobre:
Perfil da/o respondente; Atuação; Concepção de educação das relações étnico-raciais na
educação infantil; Formação continuada; Acervo; Aspectos administrativos e pedagógicos
(somente para a direção); Trabalho pedagógico (somente para a coordenação pedagógica).
Dentre esses aspectos, este texto apresentará a análise referente aos seguintes itens das
respondentes diretoras e coordenadoras pedagógicas: “Perfil da/o respondente; Atuação;
Concepção de educação das relações étnico-raciais na educação infantil”. E, especificamente,
também apresentará a análise de dados relacionadas ao item “Aspectos administrativos e
pedagógicos” das respondentes ocupantes do cargo de direção da unidade de educação
infantil.
Adiante, iremos expor um debate sobre o papel da gestão na defesa do direito de uma
educação antirracista. Logo, apresentaremos as primeiras análises dos dados coletados a
respeito da inserção da ERER em âmbito da gestão com intuito de identificar e compreender
as possibilidades, bem como os desafios e caminhos a serem trilhados para a implementação
da Lei n.º 10.639/2003 na educação infantil.

A defesa do direito de uma educação antirracista como justiça: a função da gestão


democrática

Há um consenso que uma gestão profissional, qualificada e democrática na educação


básica é fundamental para garantir que os espaços educacionais promovam os direitos à
educação e o desenvolvimento integral de todas as crianças, independentemente de sua
cultura, corporeidade, estética e presença no mundo. O primeiro passo nessa direção e o
compromisso de conhecer, agir e mudar, conforme destacam Maria Aparecida Silva Bento,
Silvia Carvalho e Hédio Silva Júnior (2011), é um processo que envolve, sem dúvida,
conhecer a legislação da ERER, a história do povo negro, suas lutas e resistências e a herança
ancestral dos povos africanos. As autoras e o autor enfatizam ainda que o compromisso de
educar para igualdade racial deve ser de toda a gestão e um projeto de toda comunidade
escolar.
Evidentemente, efetivar esse compromisso por parte da gestão significa estar atento/a
ao compromisso ético e político circunscrito na proposta política pedagógica da instituição. O

248
parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) n.º 02/2009 referente às Diretrizes
Curriculares Nacionais da Educação Infantil (2009) destaca que:
[...] deverão prever condições para o trabalho coletivo e para a organização de
materiais, espaços e tempos que assegurem:
– a apropriação pelas crianças das contribuições histórico-culturais dos povos
indígenas, afrodescendentes, asiáticos, europeus e de outros países da América;
– o reconhecimento, a valorização, o respeito e a interação das crianças com as
histórias e as culturas africanas, afro-brasileiras, bem como o combate ao racismo e à
discriminação;
– a dignidade da criança como pessoa humana e a proteção contra qualquer forma
de violência – física ou simbólica – e negligência no interior da instituição ou
praticadas pela família, prevendo os encaminhamentos de violações para instâncias
competentes. (BRASIL, 2009, p. 20).

A legislação destaca o papel relevante dos coletivos na elaboração da proposta política


pedagógica que enxerga o currículo como um conjunto de práticas pedagógicas, que orientam
e colaboram cotidianamente nas intuições para organizar, planejar e avaliar práticas
promotoras da igualdade racial. Para dar centralidade a essas práticas na educação infantil, é
indispensável entender que: estamos enfatizando um processo, que começa com a gestão
democrática, passa pelos/as profissionais da instituição e parcerias com as famílias e a
comunidade. Tudo isso permeia os processos formativos que auxiliam na elaboração de
propostas embutidas do compromisso de “conhecer, agir e mudar” (Brasil, 2012).
Indubitavelmente um verdadeiro dilema, uma vez que a maioria das instituições ainda
atua pedagogicamente orientada com propostas eurocentradas, com uma visão folclorizada
das populações negras e indígenas, e ainda marcadas pelo compasso de datas
comemorativas. Em corroboração a essas ideias, Lélia Gonzalez (1982, p. 3) afirma que
“Estamos cansados de saber que nem na escola, nem nos livros onde mandam a gente estudar,
não se fala da efetiva contribuição das classes populares, da mulher, do negro, do índio na
nossa formação histórica e cultural. Na verdade, o que se faz é folclorizar todos eles.”
Outro entrave desta natureza, destaca Cecília Vieira (2011), é justamente romper com
este epistemicídio da história única e do silenciamento sobre as questões étnico-raciais nos
espaços educacionais. Sua pesquisa instiga os/as gestores/as a criar estratégias para pensar a
superação dos silenciamentos sobre o trato das subjetividades das crianças e incluir o
princípio da diversidade étnico-racial nas práticas da gestão educacional de maneira cotidiana.
Pondera, ainda, que o silenciamento colabora para a continuidade e a manutenção do racismo
em uma sociedade marcada pelas desigualdades sociais entre negros, indígenas e brancos.
Romper com esse silenciamento possibilita reeducar para as relações étnico-raciais,
realizar a desconstrução de estereótipos e desenvolver práticas pedagógicas promotoras da

249
igualdade racial com vistas à conquista de relações mais justas e democráticas para todas as
crianças. Coaduna com seu pensamento Eliane Cavalleiro (2006), quando afirma:
O silêncio que envolve essa temática nas diversas instituições sociais contribui para
que as diferenças sejam entendidas como desigualdade e os negros como sinônimo de
desigual e inferior. Em muitas situações, encontramos nas escolas educadores e
educadoras que dizem (e se sentem) compromissados com o seu fazer profissional,
mais que se mostram cegos para as suas ações, principalmente quando são analisadas
as relações interpessoais estabelecidas no cotidiano escolar no cotidiano escolar [...]
são muitos os profissionais da escola que não percebem os conflitos raciais entre os
alunos e também não compreendem em quais momentos ocorrem as atitudes e práticas
discriminatórias e preconceituosas que impedem a realização de uma educação
democrática. Um olhar atento e preocupado para as relações estabelecidas na escola,
porém, flagra tratamentos diferenciados em função do pertencimento racial dos
alunos. Essa diferenciação pode ser considerada uma atitude antieducativa, que
concorre para difusão e permanência do racismo na nossa sociedade (CAVALLEIRO,
2006, p. 87-88).

Nessa direção, conforme afirmamos anteriormente, os/as gestores/as da Educação


Infantil tem um papel diferenciado. Contudo, estes/as precisam encarar o dissabor advindo da
resistência, as dificuldades de vencer os silenciamentos e esses desafios estão intrinsecamente
relacionados à invisibilização e à naturalização da desigualdade racial brasileira, o que
permite solidificações e resistências teóricas, ideológicas e políticas para identificar e
enfrentar as práticas racistas presentes no cotidiano escolar (CAVALLEIRO, 2006).
Recapitulando, romper com esses processes tão naturalizados significa incluir nas
propostas político-pedagógicas a promoção da discussão antirracista e sua legislação enquanto
uma das tarefas dos/as gestores/as, profissionais, famílias e parceiros/as. O silêncio que
perpetua no espaço escolar precisa ser planejado para ser cessado, o que envolve pensar o
material pedagógico, o universo semântico e a minimização dos efeitos do racismo.
Marly Silveira (2002, p. 35) destaca algumas pistas ou estratégias de uma educação
comprometida com a diversidade que apresentamos sistematizadas no Quadro 1.

Quadro 1 – Estratégias da educação para a diversidade étnico-racial


1. A ênfase na autorreflexão sobre a atuação na escola, sobre o quanto aprendem com as crianças, ou
seja, a pressuposição de que as professoras de instituições de educação infantil podem e devem sentir-
se educadoras no sentido amplo da palavra;
2. A atenção para o fato de que educadores e gestores sempre podem estar posicionados em relação
aos grupos discriminados em razão de seus preconceitos e/ou de seus próprios pertencimentos,
inclusive eventuais privilégios simbólicos e materiais decorrentes da condição de ser identificado
como branco;
3. O reconhecimento da alienação provocada pela força do mito, ou seja, a possibilidade de que o mito
da democracia racial brasileira ainda esteja presente na ideia de diversidade da política curricular para
o ensino fundamental;

250
4. O reconhecimento da discriminação institucional como elemento fundamental. Instituições foram
feitas para se conservar – resistem a mudanças. Processos de sensibilização e formação sem mudanças
nas estruturas avançam mais lentamente – a criação de regras institucionais para o cotidiano das
instituições pode ajudar muito;
5. As possibilidades mobilizadoras de crítica e ação social, por meio de conceitos que ainda
guardam esse potencial, tais como igualdade, liberdade, cultura e outros.
Fonte: Elaborado pelas autoras (2022), com aportes de Silveira (2002, p. 35).

Embora passadas duas décadas, as estratégias mencionadas por Marly Silveira (2002)
se mantêm pertinentes e necessárias. Assim, o Quadro 1 nos ajuda a matutar sobre o que
Grada Kilomba (2019) chama atenção para descolonizar o conhecimento, e nos indica que
os/as gestores/as e professores/as a despeito de raça, classe e gênero, precisam refletir sobre
suas subjetividades e como estas afetam as dinâmicas do seu trabalho. Trata-se de reconhecer
os impactos do mito da democracia racial como um fator operante na manutenção do racismo
institucional, no silenciamento das subjetividades negras e não negras nas propostas
curriculares e na organização dos coletivos para promover uma educação emancipadora e
transgressora, como propõe bell hooks (2017): que consiga lutar por um projeto educacional
emancipatório com vistas a exercer a justiça curricular defendida por Nilma Lino Gomes
(2019).
Para Nilma Lino Gomes (2019), lutar pela democracia é lutar por um projeto
educativo emancipatório, o que inclui colocar a infância negra e pobre no currículo. Uma
gestão emancipa quando faz a articulação entre raça, classe e gênero como princípios
pedagógicos e epistemológicos presentes nas propostas — de maneira libertadora e afirmativa
— nos currículos e nas práticas pedagógicas. Essa ação vem precedida da compreensão de
que:
Construir um currículo emancipatório na Educação Infantil que compreenda a raça
como um dos seus eixos epistemológicos e pedagógicos significa compreender os
sujeitos da educação inseridos no mundo. O direito à saúde, ao trabalho e à segurança
estão intrinsecamente articulados à educação. Se eles falham, também falhará a
educação. Se a ausência da garantia desses direitos afeta todos os sujeitos da educação
em toda e qualquer categoria de idade, a infância será a mais prejudicada. E se a
infância será a mais prejudicada, sofrerão ainda mais as crianças negras pela já
constatada vivência do racismo e da confluência das desigualdades, das injustiças e
seus impactos que recaem sobre a sua diferença racial inscrita na pele, no corpo, na
ancestralidade. (GOMES, 2019, p. 1024).

Seguindo a perspectiva de Nilma Lino Gomes (2019), enfatizamos que os


apontamentos realizados pela autora precisam ser considerados pela gestão educacional na
defesa do direito de uma educação antirracista. A seguir, apresentaremos as análises dos

251
dados coletados junto às gestoras — diretoras e coordenadoras pedagógicas — de unidades de
educação infantil da rede municipal de educação de Goiânia.

Gestoras – diretoras e coordenadoras – e as ações da educação das relações étnico-


raciais
Na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) n.º 9.394/1996 (Brasil,
1996), a gestão democrática se caracteriza como um dos princípios do ensino, a qual deve ser
estabelecida e normatizada pelos sistemas de ensino. Em cumprimento a esta legislação
nacional, a gestão educacional tem como procedimento e concepção, a organização
democrática — administrativa e pedagógica — caracterizada pelos processos coletivos de
participação e decisão social, haja vista a relação intrínseca da educação e sociedade.

Sua efetivação na escola pressupõe instâncias colegiadas de caráter deliberativo, bem


como a implementação do processo de escolha de dirigentes escolares, além da
participação de todos os segmentos da comunidade escolar na construção do Projeto
Político-Pedagógico e na definição da aplicação dos recursos recebidos pela escola
(OLIVEIRA; MORAES; DOURADO, 2020, n.p.).

Nesta lógica, a ocupação de cargos nas unidades de ensino da rede municipal de


Goiânia ocorre mediante a instauração de um processo eleitoral, ou seja, de eleição direta na
qual os servidores/as, discentes (maiores de 12 anos) e pais e/ou responsáveis elegem seu
representante, especificamente a direção, conforme o documento Regulamento das Eleições
de Diretores dos Centros Municipais de Educação Infantil e Escolas Municipais, a Resolução
CME nº 121, de 14 de novembro de 2017.
Esta forma de definição da gestão das unidades de ensino não é neutra e está
regulamentada pelas políticas da educação. Essa gestão é considerada pelos movimentos
sociais como a efetivação de processos democráticos por garantir a participação e ação de
todos/as os/as envolvidos/as, com a finalidade de:
Analisar a gestão da educação, seja ela desenvolvida na escola ou no sistema
municipal de ensino, implica em refletir sobre as políticas de educação. Isto porque há
uma ligação muito forte entre elas, pois a gestão transforma metas e objetivos
educacionais em ações, dando concretude às direções traçadas pelas políticas
(BORDIGNON; GRACINDO, 2001, p. 147).

Este procedimento e entendimento de análise das transformações da gestão em ações


constitui a investigação e estudo dos dados referentes à aplicação dos questionários da
pesquisa mencionada anteriormente, a saber: Educação das relações étnico-raciais e crianças
de zero a três anos: um estudo sobre as práticas pedagógicas na rede municipal de Goiânia. O

252
foco é investigar sobre a atuação das gestoras educacionais — diretoras e coordenadoras —
em relação à efetivação da legislação antirracista, especificamente a Lei n.º 10.639/2003.
Os dados dessa análise são provenientes das respostas de 06 (seis) participantes
gestoras — direção e coordenação pedagógica —, cujo perfil das respondentes e a atuação
profissional estão descritas nas sínteses apresentadas nos Quadros 2 e 3.
Quadro 2 – Perfil das respondentes gestoras (diretoras e coordenadoras).

Identidade de
Gestoras/cargo Formação acadêmica Raça/cor Idade
gênero
Diretora 01 Pedagogia Branca Mulher cisgênero 52-57
Diretora 02 Pedagogia e Filosofia Branca Mulher cisgênero 34-39
Diretora 03 Pedagogia Branca Mulher cisgênero 40-45
Coordenadora 01 Pedagogia Preta Mulher cisgênero 34-39
Coordenadora 02 Pedagogia Branca Mulher cisgênero 40-45
Coordenadora 03 Pedagogia Parda Mulher cisgênero 40-45
Fonte: as autoras (2022) a partir da análise de dados dos questionários da pesquisa (2021).

O perfil das respondentes indica que todas as gestoras são formadas em Licenciatura
em Pedagogia, exceto uma que possui também outra formação, a Filosofia. As gestoras têm,
em sua maioria, idade acima de 40 anos e, majoritariamente, elas declararam como de
cor/raça “branca” e, como identidade de gênero, a definição “mulher cisgênero”. O
gênero é uma ferramenta analítica oriunda dos movimentos interseccionais de construção
social, histórica e biológica, conforme explica Guacira Lopes Louro (1997).
O gênero compõe os entrecruzamentos da relação cor/raça. Historicamente, as
mulheres brancas ocuparam os cargos de gestão na educação e em outros lócus sociais.
Distintamente desta realidade, Lélia Gonzalez (2020, p. 88) afirma que “[...] quatro quintos da
força de trabalho negra têm uma inserção ocupacional caracterizada por baixos níveis de
rendimento e de escolaridade”. Refere-se ao racismo estrutural que reproduz a dominação e as
ideologias políticas da colonialidade (Almeida, 2019).
Dada a natureza contraditória que institui socialmente essa compreensão sobre a
raça/cor, torna-se necessário, nesta análise, a seguinte definição estabelecida por Nilma Lino
Gomes (1995):
raça não é usado com um sentido reduzido e tradicional, ou seja, que os agrupamentos
sociais com características biológicas semelhantes, geralmente transmitidas por
hereditariedade e que são visíveis a olho nu como: a cor da pele, o tipo de cabelo,
entre outros são superiores ou inferiores entre si. Abandona-se o determinismo
biológico que perpassa o termo e o redimensiona com uma perspectiva política.
Entendo raça como um conceito relacional, que se constitui historicamente e

253
culturalmente, a partir de relações concretas entre grupos sociais em cada sociedade.
(Gomes, 1995, p. 49).

Portanto, a raça é compreendida como uma categoria lógica-histórica. Dando


continuidade na análise do perfil das respondentes, destacam-se os elementos da atuação
profissional: o tempo de serviço na rede municipal; o tempo de serviço nos Centros
Municipais de Educação Infantil; o ano que assumiram o cargo de diretora e coordenadora
pedagógica; e a identificação dos/as profissionais e das crianças em relação a/à cor/raça.

Quadro 3 – Atuação profissional das respondentes gestoras (diretoras e coordenadoras).


Tempo Tempo Ano que
Identificação dos/as Identificação
serviço/Rede serviço/Centro assumiu o
Gestora/cargo profissionais – das crianças –
Municipal Municipal de cargo de
cor/raça cor/raça
Goiânia Ed. Infantil gestão
Branca Branca Preto
Diretora 01 29 21 2020
Preto Pardo Pardo
Branca Branca
Diretora 02 13 13 2018
Preto Parda Preto Parda
Diretora 03 11 16 2020 Parda Parda
Branca Branca Preta
Coordenadora 01 10 05 2021
Preta Parda Parda
Coordenadora 02 05 05 2019 Parda Parda
Coordenadora 03 16 16 2020 Parda Parda
Fonte: as autoras (2022) a partir da análise de dados dos questionários da pesquisa (2021).

Os dados da atuação profissional e identificação racial constituem elementos


essenciais da teorização da diversidade étnico-racial na/pela gestão e prática antirracista. A
identificação está relacionada ao entendimento sobre a “identidade”, que significa na
epistemologia negra: ancestralidade-geracional, história-memória, pertencimento-
reconhecimento e eu-outro. Maria Aparecida Silva Bento, Silvia Carvalho e Hédio Silva
Júnior (2011, p. 79) explicam que a “identidade é a característica central do sujeito, formada a
partir da assimilação ou da apropriação, em momentos-chave de seu desenvolvimento, dos
aspectos, atributos ou traços dos seres humanos que o cercam”.
A identidade é um direito essencial da pessoa humana e sua constituição está
vinculada aos grupos e com próprio corpo num processo de construção de si e do outro
(Bento; Carvalho; Silva Júnior, 2011). Em relação à identidade étnico-racial dos profissionais
e das crianças, segundo às gestoras, a maioria dos sujeitos pertencentes às unidades de ensino

254
são “pardos/as”. Esta definição é algo complexo e oriundo da formação do povo brasileiro
através dos processos histórico-coloniais da miscigenação no nosso país.
Kabengele Munanga (2004, p. 52) afirma que é realmente complexo definir quem é
negro/a no Brasil, principalmente quando a temática em debate se refere às cotas raciais-
sociais. Sobre as definições:
Há pessoas negras que introjetaram o ideal de branqueamento e não se consideram
como negras. Assim, a questão da identidade do negro é um processo doloroso. Os
conceitos de negro e de branco têm um fundamento eteno-semântico, político e
ideológico, mas não um conteúdo biológico.

Associada à essa definição e à discussão dos processos históricos-políticos da


miscigenação brasileira e a luta antirracista, tornou-se fundamental nesta investigação da
pesquisa, indagar as gestoras — diretoras e coordenadoras — sobre a concepção de educação
das relações étnico-raciais na educação infantil. As respondentes apresentaram as seguintes
argumentações, conforme descrito no Quadro 4.

Quadro 4 – Respostas das gestoras — diretoras e coordenadoras — sobre a


compreensão de educação das relações étnico-raciais.
Questão Gestoras Respostas
Que as crianças devem aprender que todas as pessoas são diferentes, que
Coordenadora
existem raças diferente e que todas são especiais. Trabalhar o respeito e a
Pedagógia 01
valorização do ser humano independente do que ele seja!
E uma ação educacional de atendimento direto à população
Coordenadora
afrodescendente, por meio da oferta de políticas de ações afirmativas e
Pedagógia 02
pedagógicas inscritas na Educação.
Garantir que a criança tenha de si e do outro uma concepção positiva de
ser humano, independente da raça/etnia, construindo com a criança, em
Coordenadora
grupo momentos de interação, estudo de acordo com a faixa etária,
Pedagógia 03
propiciando eventos que promovam a união do coletivo em torno do
O que você tema.
compreende Compreendo como a Educação que valoriza, respeita a cultura
por educação afrodescente. A temática étnico-racial na educação infantil é muito
Diretora 01
das relações importante e faz parte no nosso Projeto Político Pedagógico, visa garantir
étnico-raciais uma educação que supere o racismo e as desigualdades geradas por ele.
na educação Compreendo como a Educação que valoriza, respeita a cultura
infantil? afrodescendente. A temática étnico-racial na educação infantil é muito
importante e faz parte no nosso Projeto Político Pedagógico, visa garantir
uma educação que supere o racismo e as desigualdades geradas por ele. É
Diretora 02
abordar as diferenças entre os grupos humanos e os fatores distintos de
suas próprias diferenças, raça se dirigi aos subgrupos de acordo com suas
características biológicas enquanto a etnia revela os aspectos culturais,
linguísticos, religião e costumes.
É um momento oportuno dentro da instituição para promover o bem
Diretora 03 comum a auto aceitação e a aceitação do outro, valorizando o indivíduo
em sua especificidade.
Fonte: Elaborado pelas autoras (2022) a partir da análise de dados dos questionários da pesquisa (2021).

255
A compreensão das gestoras sobre a ERER na Educação Infantil apresenta definições
que expressam a seguinte síntese: a valorização dos seres humanos e da cultura; o respeito à
diversidade e diferença étnico-racial; e a ERER como ação educacional na Educação Infantil.
Agrega-se a tais conceituações a importância dos estudos sócio-políticos sobre a cultura e
história africana, afro-brasileira e indígena e as especificidades da prática pedagógica na
educação infantil.
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2007), ao tratar sobre o ato de aprender, ensinar
e relações étnico-raciais no Brasil, afirma que:
A educação das relações étnico-raciais tem por alvo a formação de cidadãos, mulheres
e homens empenhados em promover condições de igualdade no exercício de direitos
sociais, políticos, econômicos, dos direitos de ser, viver, pensar, próprios aos
diferentes pertencimentos étnico-raciais e sociais. Em outras palavras, persegue o
objetivo precípuo. De desencadear aprendizagens e ensinos em que se efetive
participação no espaço público. Isto é, em que se formem homens e mulheres
comprometidos com e na discussão de questões de interesse geral, sendo capazes de
reconhecer e valorizar visões de mundo, experiências históricas, contribuições dos
diferentes povos que têm formado a nação, bem como de negociar prioridades,
coordenando diferentes interesses, propósitos, desejos, além de propor políticas que
contemplem efetivamente a todos (Gonçalves & Silva, 2007, p. 490).

Trata-se de uma tarefa formativa e um desafio de aprender e ensinar a ERER em


sociedades multiétnicas e pluriculturais (Gonçalves & Silva, 2007), haja vista que “O Brasil,
como outras sociedades ocidentais se descobre multicultural quando os oprimidos, que alguns
designam como “minorias inúteis”, reagem” (Gonçalves & Silva, 2007, p. 498). A efetivação
da ERER significa um enfrentamento a essas contradições e ao racismo, bem como a
existência de políticas públicas é uma necessidade da luta permanente por uma
educação antirracista.
Em consonância com essas ideias, a Diretora 01 afirmou que “A temática étnico-
racial na educação infantil é muito importante e faz parte no nosso Projeto Político
Pedagógico, visa garantir uma educação que supere o racismo e as desigualdades geradas por
ele”. Esta afirmação corrobora com a análise dos dados referentes a seguinte indagação
apresentada às gestoras: a concepção de relações étnico-raciais está presente no Projeto
Político Pedagógico (PPP) da instituição? De que forma?
Todas as gestoras afirmaram “sim” em relação à existência da concepção de relações
étnico-raciais no PPP. As respondentes também explicaram sobre a forma como a ERER é
apresentada como ação didático-pedagógica no PPP, conforme Quadro 5.

256
Quadro 5 – Ações da ERER estabelecidas nos PPPs das instituições de ensino.
Questão Gestoras Respostas
Coordenadora Através do projeto institucional com sugestão de trabalhar as
Pedagógia 01 relações étnico raciais.

Quando trata a criança como sujeito de direito, no tópico “Da


Coordenadora
organização do trabalho Pedagógico”, que dispomos de
Pedagógia 02
destaque para trabalhar o tema, bem como dispomos de
materiais para o trabalho.
A concepção de Coordenadora Através de um projeto que envolva a literatura, a arte, as rodas
relações étnico- Pedagógia 03 de conversa...
raciais está
Está inserida no tópico de assuntos a serem abordados durante
presente no
todo o ano, procurando incluir sempre as crianças, valorizando
Projeto Político Diretora 01
e utilizando bastante livros literários, filmes, brincadeiras, de
Pedagógico da
forma lúdica abordar o tema.
instituição? De
De forma superficial para este momento, já foi mais
que forma?
Diretora 02 significativo, hoje outras demandas ocultaram o projeto étnico-
racial.

Acolhendo a criança como sujeito de direitos e no tópico:


Diretora 03
“Organização do trabalho Pedagógico”...indicando caminhos
para trabalhar a temática.
Fonte: as autoras (2022) a partir da análise de dados dos questionários da pesquisa (2021).

As gestoras registraram de que maneira a concepção de relações étnico-raciais está


descrita, explicada, estabelecida nos PPPs a partir das seguintes ações, reiteradas por pelo
menos duas gestoras: 1) desenvolvimento de projeto institucional, pedagógico; e 2) no trato
da criança como sujeito de direito, no tópico “Da organização do Trabalho Pedagógico”.
Dentre as respostas das gestoras, destaca-se também a afirmação da Diretora 02: “De forma
superficial, para este momento, já foi mais significativo, hoje outras demandas ocultaram o
projeto étnico-racial”. A afirmação elucida o trato didático-pedagógico histórico atribuído à
ERER, da invisibilidade e superficialidade.
Em busca também de outras elucidações que detalham as ações da gestão na
implementação da legislação antirracista, será apresentada ainda a análise de dados
relacionadas ao item do questionário da pesquisa “Aspectos administrativos e pedagógicos”
das respondentes ocupantes do cargo de diretoras de unidades de educação infantil.

Diretoras de unidades de educação infantil e as ações da educação das relações étnico-


raciais
As diretoras de unidades de educação infantil desenvolvem um trabalho de gestão que
está pautado em ações administrativas-pedagógicas. A primeira questão sobre essas ações,
indaga a respeito do trabalho de diversidade étnico-racial nas unidades de ensino. Todas as

257
diretoras confirmaram a existência de trabalhos sobre a ERER. A complementação desta
indagação indicava para as gestoras a necessidade de explicitar sobre os tipos de trabalhos
desenvolvidos nas unidades escolares, conforme Quadro 6.

Quadro 6 – Tipos de trabalho desenvolvido na unidade escolar.


Tipos de trabalhos Quantidade
Projetos institucionais 1
Projetos de trabalho 2
Atividades culturalmente significativas 3
Nenhuma das alternativas 0
Fonte: as autoras (2022) a partir da análise de dados dos questionários da pesquisa (2021).

Esses três tipos de trabalhos constituem a forma de organização da ação educativa e


pedagógica na educação infantil. As atividades culturalmente significativas é o tipo de
trabalho mais utilizado, segundo as gestoras diretoras. O documento de orientação do trabalho
na educação infantil estabelece que as atividades culturalmente significativas:
[...] consistem em ações planejadas intencionalmente, para e com as crianças, de
acordo com a observação de suas necessidades, interesses e curiosidades, articulando-
as aos conhecimentos do patrimônio da humanidade. Consistem em ações que são
importantes por fazerem parte do contexto cultural e social das crianças, em vivências
que ampliem, diversifiquem e complexificam seus conhecimentos (Goiânia, 2022, p.
07).

Sobre essas ações planejadas, foi indagado às diretoras sobre o ano de ocorrência das
ações no âmbito da gestão e os tipos de experiências desenvolvidas nas unidades de ensino.
Em relação à data de início dessas ações, uma diretora respondeu que as ações foram iniciadas
em 2012 e duas responderam 2018 e 2020. Compreende-se que o desenvolvimento dessas
ações envolve a realização de um trabalho coletivo, com parceiros internos e externos às
unidades educativas. A esse respeito a indagação às diretoras foi direcionada para a
identificação dos seguintes parceiros, conforme o Quadro 7.

Quadro 7 – Parceiros no trabalho da ERER nas instituições de ensino.


Parceiros Quantidade
Familiares/Comunidade 2
Universidade 0
Movimento Negro 1
Grupos de valorização afro 1
Sem parceiros 1
Fonte: as autoras (2022) a partir da análise de dados dos questionários da pesquisa (2021).

258
As diretoras que explicitaram sobre a existência de um trabalho com parceiros,
familiares/comunidade, também esclareceram sobre a forma como ocorre essa relação de
parceria. Uma diretora afirmou apenas que é “boa” a parceria, e a outra explicou que a
parceria ocorre “Através de apoio com palestras aos profissionais e reunião de pais e/ou
responsáveis pelas crianças matriculadas”.
Além desse aspecto essencial da parceria para a efetivação da implementação da Lei
n.º 10.639/2003, outro fator preponderante é a existência de recursos financeiros. Com este
entendimento, foi indagado às diretoras se elas consideram “que a educação das relações
étnico-raciais é ponderada nos momentos de decisão orçamentárias”. Duas diretoras
responderam que “às vezes” e outra afirmou que “raramente” a ERER é ponto de pauta na
divisão orçamentária da gestão financeira pública.
Ainda nesta busca por desvelar o papel e atuação da gestão educacional, foram
apresentadas às diretoras indagações sobre os avanços a respeito do trabalho com diversidade
étnico-racial, conforme descritos no Quadro 8.

Quadro 8 – Avanços a respeito do trabalho com diversidade étnico-racial.


Questão Gestoras Respostas
Não há barreiras, tanto o grupo de profissionais quanto as
Diretora 01
Quais avanços você crianças são receptivos a temática.
Estamos com uma expectativa muito grande quanto a colaboração
mútua entre Cmei e a Universidade. Precisamos sempre avançar
identifica a respeito
Diretora 02 quanto ao assunto que Educação tem um papel fundamental para
do trabalho com a superamos o Racismo que vemos ao longo de nossa história e muito
diversidade étnico- nos entristece.
racial? Os avanços iniciaram a partir do movimento da criação de um
Diretora 03
projeto institucional.
Fonte: as autoras (2022) a partir da análise de dados dos questionários da pesquisa (2021).

As repostas das gestoras indicam o quanto ainda se faz necessário a luta permanente
pela implementação da Lei n.º 10.639/2003, haja vista o imperativo da existência e efetivação
de práticas pedagógicas antirracistas. Para tanto, é contínua a finalidade da formação, de
estudos e trocas de saberes e aprendizagens através de um exercício Sankofa da educação das
relações étnico-raciais.

Guisa de conclusão
A partir da perspectiva de gestão educacional que envolve disputas, poder e
negociação, ao longo do presente texto foram abordados aspectos referentes à implementação
da Lei n.º 10.639/2003 com foco no papel da gestão educacional. Em meio aos debates, é

259
possível afirmar que quando comprometidas com a luta antirracista, as ações realizadas pelos
sujeitos que ocupam os cargos de gestão — direção e coordenação — podem ser vistas como
um dos diferenciais para a concretização de práticas pedagógicas antirracistas na educação
básica. No entanto, isso demanda a compreensão de que o racismo no Brasil se manifesta nos
mais distintos ambientes e de diversas formas, isto é: explícita e implicitamente. Esse
reconhecimento e rompimento com as desigualdades e preconceitos gerados por ele ainda
podem ser assinalados como um dos desafios para a efetivação da referida Lei.
Conjuntamente a esta análise teórico-histórico, a investigação qualitativa de dados
sobre as ações das gestões de instituições de ensino na implementação das legislações
antirracistas, especificamente em relação a esta da obrigatoriedade do ensino de história e
cultura africana e afro-brasileira, explicita o imperativo da luta permanente por uma educação
antirracista. Muitos avanços ocorreram desde a proclamação destas legislações antirracistas.
Entretanto, o movimento de ensinar a transgredir para uma educação libertária, como nos
instiga bell hooks (2013), ainda se faz necessário mediante a teorização e exercício Sankofa
de ruptura e transformação de bases do racismo estrutural. Trata-se de movimentos conjuntos
pela descolonização de currículos e saberes com a práxis da margem ao centro das relações
sociais-raciais.

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260
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implementação da Lei 10639/03 no município de Goiânia. Dissertação (Mestrado em Educação),
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262
“AGORA VOU CONTAR O MEU CONTO PARA VOCÊS57”:
MENINAS NEGRAS, YOUTUBE E RESISTÊNCIA

Andrea Barbosa de Andrade


Mestra em Educação Universidade Federal do Paraná
[email protected]

Lucimar Rosa Dias,


Professora da Universidade Federal do Paraná
[email protected]

Introdução

Esse texto resulta de reflexões produzidas na feitura da dissertação intitulada “Sou


Criança, Sou Negra, Também Sou Resistência”: narrativas de meninas negras no YouTube”,
defendida em 2020 no Programa de Pós-Graduação em educação na Universidade Federal do
Paraná.
Diferentemente das nossas infâncias, assim como da concepção de criança que as
suleiam58 — a da criança imatura, que precisa ser protegida e moldada a fim de tornar-se, no
futuro, um adulto produtivo, alguém que virá a ser — as infâncias que observamos nesta
pesquisa são ativas, falam, de si, reclamam e indicam seu lugar no mundo. Por isso, a
apresentação de quem são as meninas negras e o que elas produzem é o que priorizamos
apresentar, e nos desculpem o spolier59 .Mas é com elas que fizemos a pesquisa e adiantamos
que, elas sobre elas que queremos falar, pois elas falam, se posicionam e constroem narrativas
potentes contra o racismo e por infâncias livres de preconceitos para todas as crianças, negras
e não negras. As meninas da pesquisa são: Elis Catanhede conhecida como Mc Elis.

57
trecho da canção “Minha Rapunzel tem Dread” (2016) composta pela Mc Sophia. Seu nome de batismo é
Soffia Gomes da Rocha Gregório Correia. Ela é rapper e foi a primeira criança que identificamos, quando
realizamos a pesquisa ela não estava no perfil etário, mas sem dúvida é a precursora deste grupo de meninas.
Suas músicas tratam de beleza de meninas negras, questionam o racismo no Brasil. Ela é inspiração para muitas
meninas negras.
58
Aqui o termo “nortearam” é substituído pelo termo “sulearam” mantendo-se o significado da palavra:
‘direcionar, orientar o caminho’. Esta escolha tem cunho ideológico e compreende que as produções realizadas
no hemisfério sul são potentes em orientar e direcionar conhecimentos e reorganização da produção científica
pensando na perspectiva de Boaventura de Souza Santos que nos convoca a refletir tendo como referência o Sul
global.
59
Spoiler é um termo em inglês comumente utilizado nas mídias digitais para se referir a ação de antecipar fatos
ou a descrição de um importante desenvolvimento do enredo em um programa de televisão, filme ou livro que,
se previamente conhecido, pode reduzir a surpresa ou suspense para um espectador ou leitor pela primeira vez.

263
FIGURA 1. ELIS CANTANHEDE

Fonte: Página da Mc Elis no Facebook60

Mc Elis, no “alto” de seus quatro anos, ainda trocando os sons do “r” e do “l”,
responde para quem questiona o seu cabelo sem titubear: “Isso não é peluca, é meu cabelo (...)
e meu cabelo já nasceu assim e minha mãe já botou pro alto, não uso cleme, só uso cleme que
fica pro alto (...) não é peluca, meu cabelo não é liso e eu sou pleta 61”. Este vídeo, postado no
ano de 2016, e compartilhado muitas vezes, trouxe notoriedade a Elis Cantanhede. Filha de
Renata Morais, empresária e responsável pelo baile Crespinhos S/A no Rio de Janeiro e de
China Cantanhede. A pequena Elis dança desde os dois anos e, aos seis, em 2018, fez sucesso
ao lançar um clipe de funk infantil com uma letra inquietante contra o racismo.
Assim como Elis, mas agora da região nordeste do país, a piauiense Tatielly Lima, aos
6 anos, incentiva as pessoas a terem autoestima e gostarem de si mesmas como são. Tatielly
riou o jargão “maravigold”, ela fez sucesso por sua espontaneidade e carisma. Em vídeos que
circulam pela internet, a pequena fala sobre cabelo crespo, beleza negra e sobre feminismo. O
primeiro vídeo compartilhado no Facebook, por sua mãe, Tatiane Lima, a menina afirma:

60
Foto retirada da página oficial de Elis MC no Facebook, em 05/06/2016, após ter seu vídeo afirmando ser
“peta” e “não ter cabelo liso” postado por sua mãe Renata Morais em 26/04/2016 em sua conta no Facebook
visualizado por mais de 1 milhão de pessoas no Facebook, hoje o vídeo conta com 2,1 milhão de visualizações.
A foto pode ser acessada na página da Elis Mc, no link:
<https://www.facebook.com/elismcdancer/photos/a.126016317817771/129859314100138/?type=3& theater>
Acesso em 10/05/2020.
61
O vídeo original pode ser acessado na página da mãe da Elis, Renata Morais, no link:
<https://www.facebook.com/RenatynhaSMG/videos/1068336369897138/> acesso em 19/06/2020.

264
“Quem é recalcado, ó, partiu moda. Aqui, não quero ter cabelo liso, não. Quero ter cabelo
cacheado.”

FIGURA 2. TATIELLY LIMA

Fonte: Página Tatielly Cachos no Facebook

Tanto Elis quanto Tatielly compartilham da liberdade de se expressarem na infância e


o acesso a espaços possibilitados pelas mães, as quais divulgam suas narrativas no Facebook
ou YouTube. Diferentemente de nós e das crianças com quem convivíamos que, nesta idade
entre 5 e 8 anos, começávamos a ter espaços para falar ao entrar na escola; entretanto, esses
espaços não eram para todos/as e nem sempre eram de escuta, pois pouco podíamos expressar
nossos sentimentos — eram mais lugares de obediência e de responder aos adultos.
Os corpos só tinham livre movimento e podiam falar de forma menos vigiada no
parquinho e, entre os pares, brincávamos de pião, mãe da rua, pega-pega, esconde-esconde,
fita e de tantas outras brincadeiras e jogos simbólicos. Uma atividade em especial da pré-
escola era a Festa do João Grandão. Neste dia podíamos nos vestir com as roupas dos nossos
familiares e éramos adultos por um momento, imitávamos o jeito de andar da mãe, a fala do
pai, trejeitos, mandos e desmandos. Na pré-escola não apenas os hábitos de casa permeiam os
jogos de faz de conta e as relações sociais entre as crianças, como também, iniciam-se as
descobertas de pertencimento de raça e cor para muitas crianças e por isso é importante
sabermos que nem tudo é brincadeira e harmonia na vida de crianças negras.

265
Carolina Monteiro, a terceira criança dessa pesquisa, revela episódios sofridos na
escola em seu primeiro vídeo no YouTube intitulado “Carolina e seu cabelo crespo na escola”,
postado 08/01/2014:
Um dia na escola a gente estava vendo um livro bem bonito, aí eu falei assim, e daí eu
falei assim: nossa! O black dessa mulher era bem bonito, bem crespo e bem cheio. Aí
eu falei assim: Nossa que mulher mais bonita. Aí minha amiga falou assim: Carolina
credo, ela começou a rir, ela falou assim: credo, ela é feia. Aí no outro dia na escola a
minha amiga falou assim: Carolina, por que você não abaixa mais o seu cabelo? Aí eu
falei assim: Não. Eu gosto do meu cabelo assim, bem black. Então, quando eles
falarem que seu cabelo é feio, você fala assim: Não, meu cabelo é muito bonito, ele é
muito poderoso.

Ela ganhou notoriedade aos 6 anos, após ter mais de 100 mil visualizações no vídeo
postado por sua mãe, a empresária Patrícia Santos, no qual relatava ter sido alvo de
comentários racistas por parte de outras crianças em sua escola. Assim como Elis e Tatielly,
Carolina enfrenta o racismo com uma narrativa de resistência, responde exaltando a beleza de
seu cabelo crespo e afirma: “Meu cabelo não é duro, sabe que é duro? Duro é aguentar gente
ignorante falando que meu cabelo é duro”62. Carolina também apresenta sugestões de como
reagir a outras situações racistas, indica livros infantis de temática africana e afro-brasileira,
além de brincadeiras típicas de sua idade.
FIGURA 3 – CAROLINA MONTEIRO

Fonte: Página da Carolina Monteiro no Facebook 63

62
O vídeo original de Carolina, postado em 11 de março de 2015, em seu canal no Youtube conta com mais de
600 mil visualizações e pode ser visualizado no link: <https://www.youtube.com/watch?
v=d1d0JxGTGOg&t=64s> Acesso em 02/04/2020. Apesar deste ter sido o vídeo que trouxe notoriedade para
Carolina Monteiro ela já havia feito um vídeo um ano antes, em 2014 aos 5 anos, com teor semelhante.
63
Foto retirada da página oficial de Carolina Monteiro no Facebook, postada em 18/09/2015 com a legenda: “Da
série #dicasdaCarolina# Hahaha!”. Pode ser visualizado no link:
<https://www.facebook.com/CarolinaMonteirooficial/photos/a.1567163133543694/1621489548111052/?
type=3&theater> Acesso em 02/04/2020.

266
As três crianças, Elis, Tatielly e Carolina usam as redes sociais, como o Facebook e a
plataforma de vídeos do YouTube para interagir com seus pares de modo a enfrentar, tensionar
posições, mas também como espaços brincantes, ampliando o jogo imaginário, bem diferentes
de infância anteriores, que ocupavam o quarto, o quintal ou a rua de casa, lugar dos encontros
e brincadeiras típicos da infância dos anos 1990 nos bairros periféricos Brasil afora.
Diferente também da infância pesquisada por Fernandes e descrita na tese intitulada
“Trocinhas do Bom Retiro”, de 2004, que se tornaria um marco nas discussões sobre a
infância no Brasil. Fernandes observou e descreveu o que se intitulou “cultura infantil”, ou
seja, os fazeres e relações próprios desta categoria geracional que é a infância, numa análise
rica e minuciosa sobre os processos de socialização entre as crianças de um mesmo grupo. Os
estudos sobre a infância e a criança, porém, só passariam a constituir-se como campo teórico
no Brasil a partir da década de 1990, conforme Abramowicz (2015), e os impactos da
compreensão destes estudos iriam demorar a alcançar alguns rincões deste país.
A escola era do silenciamento da voz e do controle rigoroso dos corpos das crianças,
da memorização das letras nas cartilhas, dos castigos corporais e simbólicos — quando se
usava o “chapéu de burro64”, prática que já não era pedagogicamente correta, mas era
socialmente aceitável e continuou presente em muitas escolas como um resquício da educação
punitiva de décadas anteriores.
Os castigos corporais e o controle da voz e dos corpos das crianças se estendiam
também ao âmbito familiar, e ainda que contássemos os abusos ocorridos no ambiente
escolar, não éramos acreditados ou aquelas eram situações aceitáveis pelas famílias.
Paralelamente, neste período a Sociologia da Infância se consolidava como campo teórico no
Brasil e assomava contribuições importantes para as quebras de paradigmas sobre a Infância.
Dentre as quais destacam-se, no Brasil, as contribuições de várias pesquisadoras do cenário
nacional e internacional cujas discussões sobre a não universalidade da infância e a agência
infantil são fundamentais, pois pesquisaram o campo das Infâncias, da criança e da educação
infantil, avançando nas reflexões sobre as formas de produção das culturas infantis.
Assim como o conceito de criança é ressignificado neste período: “As crianças são e
devem ser vistas como atores na construção e determinação das suas próprias vidas sociais,
das vidas dos que as rodeiam e das sociedades em que vivem. As crianças não são os sujeitos
passivos de estruturas e processos sociais” (PROUT, JAMES, 1990, p.9). Já o conceito de
diferentes infâncias como resultado de realidades em confronto seria demarcado somente nas

64
O chapéu de “burro” era utilizado como forma de punição das crianças que tinham dificuldade escolar. Como
punição, ela colocava um chapéu em forma de cone para que toda a turma a identificasse como alguém que não
deu conta de aprender determinado conteúdo.

267
décadas posteriores (DEMARTINI, 2001). Este conceito se tornaria importante para
compreendermos que não existe “A Infância”, mas “as infâncias” múltiplas, diversas e
específicas em suas características individuais, seja por conta de seu período histórico, cultura
e meio social, raça ou etnia, posicionamento geográfico, ou tantas outras diferenças que
impactam a maneira como as crianças vivenciam a infância.
Assim como as diferenças geracionais, décadas depois de nossas próprias infâncias.
Aquela vivida no quintal, com brincadeiras de rua e sem horário marcado para começar e
acabar, em muito se distancia e difere da infância das crianças na atualidade, assim como as
“janelas” de acesso à voz e escuta também se modificaram. As crianças,
contemporaneamente, conversam com os adultos na sala e à mesa, os brinquedos do chão e do
quintal estão restritos aos limites da casa e foram incluídos nesse repertório jogos e
brinquedos tecnológicos. O acesso à informação deixou de ser feito exclusivamente por meio
dos livros e se tornou interativo e digital. Depois dos anos 2000, a conversa nas famílias
passou a ter muitas janelas e em todas é possível haver crianças.
A inquietação despertada pela compreensão dessas mudanças sociais e, em
simultâneo, pela tomada de consciência do racismo estrutural e estruturante da sociedade,
como Nilma Lino Gomes (2017) conceitua, motivaram a vontade por estudar a temática das
relações étnico-raciais assim como reflexões sobre a aplicação da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação em seus artigos 26-A e 79-B (incluídos pelas Leis 10639/03 e 11.645/08) que
tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira, africana e indígena, tema
também presente nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2009) —
especialmente em seu Artigo 8°, o qual inclui a obrigatoriedade de abordar o tema na
educação infantil.
No Grupo de Estudos e Pesquisas em Diversidade e Inclusão (GEPEDI/UFMS 65),
quando estudávamos a Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER), principalmente no
uso da literatura de temática africana e afro-brasileira como instrumento de trabalho com
crianças pequenas. No grupo surgiram as primeiras ideias do que viria a se tornar a presente
pesquisa, quando, durante uma oficina de formação de professores/as, emergiu a questão de
como o/a negro/a vinha sendo representado/a nas mídias digitais. Fato que instigou uma
investigação inicial no Facebook que, neste período, ganhava popularidade no Brasil. Apesar
de o foco da pesquisa inicialmente não estar direcionado à criança negra, o levantamento nos

65
Este grupo foi criado pela professora Lucimar Rosa Dias que em 2014 se transfere para Universidade Federal
do Paraná e lá funda um novo grupo chamado ErêYá – Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação para as
Relações Étnico-raciais.

268
despertou a atenção quando constatamos a abundância de páginas enfatizando a infância
negra, sempre com títulos que as exaltavam, como: “Crianças negras são lindas”, “Crianças
negras no poder”, “Beleza negra de crianças”, “Bebês negros lindos”, dentre outros.
Discutimos muito sobre o tema, mas naquele momento não avançamos, além disso.
Em 2018 retomamos a questão das crianças e as mídias, pois haviam surgido vídeos
com grande repercussão nas mídias sociais, como YouTube e Facebook, protagonizados por
crianças negras pequenas, que assim como Elis Cantanhede, Tatielly Lima e Carolina
Monteiro, apresentavam narrativas de enfrentamento ao racismo afirmando a beleza negra e a
valorização de seu pertencimento racial. Este fenômeno deu origem ao artigo “Infâncias
Negras e Resistências no Ciberespaço66” que inicia as discussões sobre a autoria de luta
antirracista de crianças negras no ambiente virtual e que nos levou ao objetivo principal desta
pesquisa que foi: Compreender se o conteúdo produzido por meninas negras, entre 05 a 11
anos, mapeado no YouTube, desde a criação de seus canais até fevereiro de 2019, tinha
relação com o que vem sendo entendido como parte da luta antirracista no Brasil e podem
configurar uma forma de educação antirracista, ou seja, se podemos afirmar que há crianças
negras que estão participando de forma efetiva da luta contra o racismo e como elas o fazem.
Como sustentação teórica para pensar esta pesquisa nos ancoramos no campo dos
Estudos Culturais e dos Estudos Críticos da Infância, e tomamos como referência o conceito
de Infância entendida esta como categoria geracional e de criança na qualidade de sujeito de
direitos, produtora de cultura, que intervém, modifica e é modificada pelo contexto social em
que está inserida, conforme os estudos de Sarmento e Cerisara (2004), Rocha (2001).
Também foi importante considerar a produção que põem em relação os conceitos de raça e
infância trabalhos pelas pesquisadoras: Dias (2012, 2018), Dias, Tristão (2018), Dias,
Andrade, Cardoso (2022) Rosemberg (2006), Trinidad (2011), Nunes (2017), Damião (2007)
e Cavalleiro (1998), dentre outras, compreendendo que as concepções de infância e de criança
são construções sociais e históricas que são interconectadas.
Os estudos culturais possibilitaram discutir o conceito de raça, que perpassa toda a
pesquisa, especialmente a partir de Munanga (1997) de Gomes (2005) afirma que:
[...] as raças são, na realidade, construções sociais, políticas e culturais produzidas nas
relações sociais e de poder ao longo do processo histórico. Não significam, de forma
alguma, um dado da natureza. É no contexto da cultura que nós aprendemos a
enxergar as raças. Isso significa que, aprendemos a ver negros e brancos como
diferentes na forma como somos educados e socializados a ponto de essas ditas
diferenças serem introjetadas em nossa forma de ser e ver o outro, na nossa

66
Inicialmente publicado em um congresso e posteriormente na DIAS, Lucimar Rosa; CARDOSO, Cíntia.
Resistências Negras Infantis no Ciberespaço. Journal of African And Afro-Brazilian Studies, v. 1, n. 1, 2022.
Disponível em: < https://revistas.ufpr.br/afro/article/view/86184> Acesso em 8 de Out. 2022.

269
subjetividade, nas relações sociais mais amplas. Aprendemos, na cultura e na
sociedade, a perceber as diferenças, a comparar, a classificar (BRASIL, 2005, p. 49).

Outro conceito importante para pensar infância e criança é o de interseccionalidade


cunhado por Crenshaw (1989), feminista e professora especializada em estudos sobre raça e
gênero, utilizado pela primeira vez numa pesquisa em 1991 sobre as violências vividas por
mulheres de negras nos Estados Unidos. Inicialmente o conceito de interseccionalidade foi
utilizado para explicar as opressões de raça e gênero que impediam a contratação de mulheres
negras em uma empresa, embora esta tivesse entre os/as funcionários pessoas negras e
mulheres, ou seja, raça e gênero estavam presentes no grupo de empregados/as.
No entanto, ao questionar de qual gênero e cor eram as pessoas contratadas, conclui-se
que havia homens negros e mulheres brancas compondo o grupo, ou seja, mulheres negras
não estavam contempladas pela política da empresa, com esse argumento Crenshaw (1989)
consegue ampliar o escopo de contratação. Tal conceito, atualmente, é largamente utilizando
para apresentar variáveis que podem ser somadas explicando os modos como operaram para
subalternizar determinados grupos, nesse sentido pensar infância e raça, por exemplo, nos
ajuda a compreender melhor a multiplicidade de crianças que existem nesta categoria
estrutural que é a infância.
No contexto dos estudos culturais e dos estudos críticos da infância, a
interseccionalidade pode ser observada ao compreendermos a infância como uma categoria
geracional subalternizada que pode ser atravessada pelas opressões de raça, classe e gênero,
dentre outras. Porém, na pesquisa nos concentramos em meninas negras, como escolha
metodológica, pois dada a abrangência das intersecções, era necessário fazer uma escolha,
nesse sentido não fizemos o debate de classe entre as crianças escolhidas e tão pouco do
gênero, embora seja perceptível que há uma grande maioria de crianças meninas youtubers,
dado que por si só, isso possibilitaria uma abrangente discussão de gênero, a qual optamos por
não abarcar, devido à natureza da pesquisa e limitações temporais.
Ao tratarmos de crianças negras e narrativas antirracistas é importante apresentarmos
alguns conceitos que permeiam esta discussão, tais como: o próprio conceito de narrativa,
raça, o de branquitude e o de antirracismo. A compreensão sobre o ato das crianças narrarem
sobre si mesmas e com isso empreenderem uma luta antirracista está orientanda na concepção
de Jesús Martín-Barbero (2014), sobre o que ele denomina de contar/narrar. Para o autor
[...] toda identidade se gera e se constitui no ato de narrar-se como história, no
processo e na prática de contar-se aos outros. É do que nos fala a preciosa polissemia
em castelhano do verbo contar. Pois contar significa narrar histórias, ser considerado
pelos outros; significa também fazer contas. Nesse único verbo temos a presença das
duas relações constitutivas. Em primeiro lugar, a relação do contar histórias com o

270
contar para os outros, com o ser considerado. Isso significa que para sermos
reconhecidos pelos outros é indispensável contar nosso relato, já que a narração não é
só expressiva, mas também constitutiva do que somos tanto individual como
coletivamente (2014, p. 20).

No Brasil, o cotidiano da população está permeado de ações e narrativas racistas que


se fundamentam no conceito de raça e que fora construído pela ciência moderna nos séculos
XIX e XX e respaldo para que a diversidade humana fosse dividida por características
fenotípicas (Munanga, 2004). A raça se torna, assim, um importante componente das
estruturas sociais, diferenciando, hierarquizando e subalternizando grupos por meio dos
fenótipos, nomeando “o outro” e privilegiando o branco como referência de humanidade,
estabelecendo e mantendo as desigualdades sociais e produzindo representações perversas da
negritude:
A representação negativa ou não representação dos grupos minoritários dentro de uma
sociedade atua de forma perversa sobre a própria subjetividade da vítima: a própria
autodepreciação torna-se um dos mais fortes instrumentos de opressão sobre os
sujeitos pertencentes a grupos cuja imagem foi deteriorada. Portanto, o
reconhecimento incorreto ou não reconhecimento de uma identidade marca suas
vítimas de forma cruel, subjugando-as através de um sentimento de incapacidade, ódio
e desprezo contra elas mesmas, e desta forma a política de reconhecimento não é
apenas um respeito a esses grupos, mas também uma necessidade vital para a
constituição dos indivíduos (Schucman, 2010, p. 49).

As opressões estabelecidas e mantidas pelos privilégios do branco em detrimento aos


não brancos é conceituada como Branquitude. Segundo Schucman (2010) é a noção de
privilégio a característica fundamental da branquitude, que se mantém por estratégias de
invisibilidade que possibilitam a sujeitos brancos de aparência mais próxima ao europeu
usufruir de privilégios simbólicos e materiais, silenciando os não brancos e estabelecendo a
branquitude como norma e valor. Já o conceito de antirracismo estabelece então uma oposição
aos privilégios advindos da branquitude normativa ao evocar o enfrentamento ao racismo e a
todas as formas de preconceito que são associadas à cor da pele ou ao pertencimento racial.
Para os afro-brasileiros, para aqueles que se chamam a si mesmos de "negros", o anti-
racismo tem que significar, entretanto, antes de tudo, a admissão de sua "raça", isto é,
a percepção racializada de si mesmo e dos outros. Isso significa a reconstrução da
negritude a partir da rica herança africana — a cultura afro-brasileira do candomblé,
da capoeira, dos afoxés etc. —, mas significa também se apropriar do legado cultural e
político do "Atlântico negro" — isto é, o Movimento pelos Direitos Civis nos Estados
Unidos, a renascença cultural caribenha, a luta contra o apartheid na África do Sul etc.
(Guimarães,1995, p. 43).

Djamila Ribeiro (2019) no livro Pequeno Manual Antirracista conceitua o antirracismo


como a ação de se colocar conscientemente na luta contra o racismo, reconhecer privilégios
de ser branco, ler autores/ras negros/as, questionar a cultura que consumimos e reconhecer

271
que nossos desejos e afetos são construídos socialmente por representações sociais sobre o
branco como belo e amável. Essas representações se materializam nas narrativas e imagens
veiculadas diariamente nas mídias e outros espaços sociais.
Agir de maneira antirracista é também construir uma contra narrativa em relação à
ideia de desumanização da pessoa negra, ou seja, realçar a beleza negra, conhecimentos
produzidos por negros/as, e para as pessoas negras é, sobretudo, agir de modo a reconhecer
em si as mesmas possibilidades que uma pessoa branca possui socialmente. A partir destes
pressupostos, algumas perguntas sulearam67 a pesquisa, tais como: Há crianças negras na
plataforma do YouTube produzindo conteúdo? Que tipo de conteúdo? Eles dialogam com a
pauta da luta antirracista68? De que forma essas narrativas educam? Sendo assim, o problema
da pesquisa consistiu em investigar se há crianças negras produzindo conteúdo educacional
antirracista no YouTube.
O objetivo geral da pesquisa foi compreender se o conteúdo produzido por meninas
negras, entre 05 a 11 anos, mapeado no YouTube, tinha relação com o que vem sendo
entendido como parte da luta antirracista no Brasil e que podem configurar uma forma de
educação antirracista. Já os objetivos específicos foram: mapear crianças negras nesta faixa
etária no YouTube, conhecer quem eram as crianças negras que tinham maior número de
visualizações e examinar as narrativas produzidos por estas crianças a luz da perspectiva
antirracista. O fato de escolhermos as mídias digitais, como espaço do nosso corpus de
pesquisa, exigiu de nós refletirmos sobre os usos das tecnologias digitais pelas crianças na
elaboração das culturas infantis contemporâneas. Luís Mauro Sá Martino (2015) e Pierre Lévy
(1999, 2003), dentre outros, nos ajudarão a compreender os conceitos de mídias digitais e
cibercultura, termos que serão recorrentes neste estudo. Segundo Martino, o termo
cibercultura
[...] designa a reunião de relações sociais, das produções artísticas, intelectuais e éticas
dos seres humanos que se articulam em redes interconectadas de computadores, isto é,
no ciberespaço. Trata-se de um fluxo contínuo de ideias, práticas, representações,
textos e ações que ocorrem entre pessoas conectadas por um computador – ou algum
dispositivo semelhante – a outros computadores (Martino, 2015, p. 27).

Ou seja, o ciberespaço pode ser compreendido como o lugar no qual as crianças negras
observadas se articulam, brincam, socializam ideias, constroem e divulgam suas narrativas e
se conectam a outras crianças, negras e não negras. Julgamos importante destacar as
67
Aqui o termo “nortearam” é substituído pelo termo “sulearam” mantendo-se o significado da palavra:
‘direcionar, orientar o caminho’. Esta escolha tem cunho ideológico e compreende que as produções realizadas
no hemisfério sul são potentes em orientar e direcionar conhecimentos e reorganização da produção científica
pensando na perspectiva de Boaventura de Souza Santos que nos convoca a refletir tendo como referência o Sul
global.
68
Já anunciamos a resposta no início do artigo.

272
narrativas antirracistas que as crianças negras produzem, sobretudo, porque a criança negra
vem sofrendo historicamente maior silenciamento e opressão geracional em relação à criança
branca e é fundamental entender o contexto no qual são essas narrativas se constroem. Para
Raquel Recuero (2014, p.294), “os discursos legitimam e reforçam elementos de
diferenciação de classe e raça”.
A autora salienta que as redes sociais possibilitam a ampliação dos discursos sociais
que podem manifestar ideologias legitimadas pelas relações que ocorrem na esfera física da
sociedade. A fim de compreender as narrativas destas meninas negras no YouTube nos
referenciamos no método netnográfico, proposto por Kozinets (2014), como base para
construção da metodologia de pesquisa.
O autor define o método netnográfico como interpretativo e investigativo sobre o
comportamento cultural de comunidades on-line. Ele tem sido utilizado em pesquisas na área
da comunicação, antropologia e ciências sociais como uma etnografia digital, ou seja, uma
imersão na cultura de um grupo, por um determinado tempo no universo digital. A
netnografia vem sendo utilizada para compreender os processos de sociabilidade e de
representações sociais em comunidades virtuais, entretanto, é importante considerar que as
relações que se estabelecem no ambiente virtual possuem características específicas. Amaral,
Natal e Viana (2008) aponta que as pesquisas em ambientes digitais, diferentemente de
ambientes físicos, são passíveis de mudanças e de múltiplas transformações, pois a
informação nestes ambientes acontece de forma acelerada, assim como as relações sociais que
se constroem nesses ambientes podem ser rapidamente alteradas.
Por isso, as pesquisas sobre a cibercultura começam a ganhar relevante espaço nas
áreas de Antropologia, Comunicações, Design e as relacionadas às tecnologias, bem como na
educação. Para isto, surgem novos métodos que se legitimam a partir das reorganizações
sociais, os quais se apoiam no uso das tecnologias, tal como a netnografia ou “etnografia
virtual” (Passareli; Junqueira; Francisco, 2012), e por isso a escolhemos como base para esta
pesquisa, porém a adaptamos para as especificidades das pesquisas com e sobre crianças.
Pesquisas a respeito de infâncias negras em mídias digitais, acreditamos, contribui
com o campo de estudos sobre educação para as relações étnico-raciais e as infâncias negras,
ao passo que apresentamos considerações sobre ser criança negra no Brasil e de que forma as
narrativas das crianças investigadas possibilitam o enfrentamento ao racismo na perspectiva
da infância. Entendemos que compreender as narrativas das meninas negras no YouTube pode
ajudar professores e professoras da educação infantil e dos anos iniciais a abordar em suas
práticas docentes a perspectiva da educação antirracista.

273
Portanto, para além de ampliar a compreensão de como o racismo pode ser vivenciado
nas relações das crianças na infância, os vídeos, músicas e narrativas presentes nos canais da
Mc Elis, da Tatielly Cachos e da Carolina Monteiro podem ainda ser utilizados para
possibilitar a representatividade positivada da criança negra e como material paradidático na
elaboração de propostas que ampliem a compreensão racial e as discussões sobre racismo,
preconceito e empoderamento. Meninas e meninos negros e não negros podem se beneficiar
dessas narrativas de valoração da cultura e estética negra.

“Estou muito feliz de ver a história acontecer. Crie uma princesa que pareça com você”:
crianças negras, mídias e pesquisas

A frase que intitula este item é um trecho da canção “Minha Rapunzel tem Dread”
(2016) composta pela Mc Sophia, cuja letra é uma crítica a pouca existência de princesas com
fenótipos negros na literatura infantil amplamente difundida nas escolas brasileiras e um
convite às crianças negras a criarem representações para si mesmas. Ao abrirmos este item
com esta frase, objetivamos evidenciar os resultados encontrados no levantamento
bibliográfico sobre a criança negra na mídia brasileira, seu não lugar, seus modos de
representação e as identidades construídas a partir delas, e para isto, iniciamos elencando
conceitos sobre mídia, redes sociais, raça e infância que permeiam a pesquisa.

Mídia, Cibercultura e Redes Sociais: apontamentos sobre o campo


De modo geral, a mídia ocupa espaço importante no cotidiano da sociedade e, por
esse motivo, é necessário investigar e compreender como representações sobre a identidade,
em especial a da criança negra, está presente nestes ambientes. Para isso, torna-se basilar
trazermos algumas reflexões sobre o conceito de mídia e suas tendências atuais,
especialmente, as mídias digitais.
A mídia de acordo com Setton (2011, p.8) é “todo aparato simbólico e material
relativo à produção de mercadoria de caráter cultural”, ou seja, a mensagem, o conteúdo é a
dimensão simbólica que se dissemina por meio de algum tipo de material seja televisão, rádio,
jornais e revistas impressas ou não, propaganda, literatura e livros didáticos e o cinema podem
ser caracterizados como mídia. É “todo um campo da produção da cultura que chega até nós
pela mediação da tecnologia” (Setton, 2011, p.8) . Setton explicita que considera “as mídias,
enquanto agentes sociais de socialização, agentes sociais de educação. Defendo que as mídias
desenvolvem uma função educativa” (Setton, 2011, p. 8).

274
Neste sentido, é importante considerarmos que as crianças vivenciam diferentes tipos
de experiência com as mídias, sejam elas sociais ou digitais. As crianças também são
educadas pelas mídias a que têm acesso, por isso a importância do/a professor/a usar as
diferentes mídias como aparato educativo, de modo crítico. Podemos assim afirmar que a
mídia exerce papel socializador e educativo e não apenas o papel de entretenimento. Tal como
opera como instrumento de poder, disputas e dissensões.
Como Setton afirma, "elas funcionam como transmissoras de valores, padrões e
normas de comportamentos e servem como referências identitárias” (p.9). No entanto, não há
uma única direção neste processo de produção e acesso, pois “toda prática midiática é um ato
de troca, um ato que exige negociação de informação” (Setton, 2011, p.9). As “mídias
digitais”, isto é, foram ampliadas com o advento da rede internet e segundo Martino69 (2015),
no Brasil começa a ter maior expressão a partir da década de 1990. Sendo importante
considerar que neste período a diferença de oportunidades e possibilidades de acesso foi
chamada de “barreira digital”, pois a posse de computadores ligados na rede era praticamente
inacessível a maior parte da população. Com a expansão do acesso à rede o uso desses meios
tornou-se parte do cotidiano de um número significativo de pessoas no Brasil, seja por
computadores, tabletes e principalmente por celulares, cada vez mais conectando pessoas.
Este novo elemento está alterando os modos pelos quais se produz cultura na sociedade
contemporânea. Setton indica que
[...] o aprendizado das gerações atuais se realiza pela articulação do ensinamento das
instituições tradicionais da educação – família, escola (dentre outras) – com os
ensinamentos das mensagens, recursos e linguagem midiáticos. A educação
contemporânea esta vivenciando um conjunto de transformações que influenciam a
natureza de nossas relações pessoais e de sensibilidade e, consequentemente, passam a
condicionar as instituições que regulam nosso aprendizado, nossa formação, cognição
afetiva, psicológica, portanto, nossas percepções sobre o mundo (2011, p.22).

Já Lévy (1999) conceitua o relacionamento humano influenciado por meio das redes
virtuais de “cibercultura” que Martino (2015) sintetiza como
A reunião de relações sociais, das produções artísticas, intelectuais e éticas dos seres
humanos que se articulam em redes interconectadas de computadores, isto é, no
ciberespaço. Trata-se de um fluxo contínuo de ideias, práticas, representações, textos e
ações que ocorrem entre pessoas conectadas por um computador – ou algum
dispositivo semelhante – a outros computadores (MARTINO, 2015, p.27).

Apesar de nem sempre manter correspondência com o que ocorre nos espaços off-
line, ou seja, nas relações que se dão no âmbito físico-social. As relações sociais que se
estabelecem nas redes virtuais são consideradas cultura por serem entendidas de modo

69
Ver o livro Teorias das mídias Digitais - Linguagens, ambientes e redes, de 2015.

275
abrangente como produção humana que ocorre no ciberespaço, definido como "espaço de
comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos
computadores" por Lévy (1999, p. 92). Compreendemos assim que “a cibercultura é a
transposição para um espaço conectado das culturas humanas em sua complexidade e
diversidade” (Martino, 2015, p. 28). Ou seja,
O mundo virtual do ciberespaço, portanto, não se opõe ao que seria um mundo “real”,
das coisas desconectadas. Ao contrário, a noção de cibercultura leva em consideração
que essas duas dimensões se articulam. A expressão “mundo virtual” pode se opor a
“mundo físico”, mas não a “mundo real”. O mundo virtual existe enquanto
possibilidade, e se torna visível quando acessado, o que não significa que ele não seja
real. (Martino, 2015, p. 31).

O espaço virtual permite a conexão de pessoas desconhecidas fisicamente, criando a


possibilidade de relacionamentos por meio de mensagens e compartilhando ideias em
diferentes e variadas plataformas de comunicação. O que Henry Jenkins (2009) denomina
como “Cultura da Convergência”. Ela ocorre na interação entre indivíduos que somam
contribuições, transformando-as e as devolvendo às redes (Martino, 2015, p.34) numa
retroalimentação contínua e participativa. Desta forma, a noção de cultura no contexto da
Cultura da Convergência é plural e dinâmica e pode compor-se de diferentes e variadas
culturas que se conectam, combinando-se e modificando-se.
O receptor se torna, na Cultura da Convergência, alguém produtivo, que não apenas
vai reinterpretar as mensagens da mídia conforme seus códigos culturais, mas também
vai reconstruir essas mensagens e lançá-las de volta ao espaço público pela via dos
meios digitais. (Martino, 2015, p.37).

É interessante compreender a Cultura da Convergência, visto que, a partir dela, pode-


se observar grupos que antes não tinham espaço de agência se projetando nos espaços virtuais
e movimentando um considerável número de seguidores. Assim, com apenas um vídeo ou
postagem, uma pessoa anônima pode tornar-se potencialmente um influenciador digital. Este
conceito, criado por Jenkins (2008), refere-se a três fenômenos distintos e interligados: o uso
complementar de diferentes mídias, a produção cultural participativa e a inteligência coletiva.
Compreender esses fenômenos torna-se imprescindível quando observamos que
muitas crianças orientam suas escolhas e preferências a partir dos influencers que seguem.
Mais uma vez, a relação da criança com o espaço midiático pode ser compreendida como uma
relação educativa. Caberia aqui compreender como este mundo digital pode ser (ou não) o
espaço para o letramento racial crítico, pois hoje as tecnologias são consideradas materiais
pedagógicos e, de acordo com Cavalleiro (2001, p. 154) “o contato com materiais

276
pedagógicos displicente com a diversidade racial colabora para estruturar em todos os/as
alunos/as uma falsa ideia de superioridade racial branca e de inferioridade negra".
Entretanto, este fenômeno de influencers digitais também é um espaço de disputas de
pertencimento étnico-raciais. No Movimento Negro podemos observar alguns exemplos de
plataformas que se enquadram neste fenômeno, como a página Quilombo Intelectual 70, criada
em 2018, na plataforma do Facebook, e que divulga produções acadêmicas de autores e
autoras negras, indígenas e Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros
(LGBTT), contemporâneos ou não, que abordam as questões étnico-raciais e de gênero em
diversas áreas. Ainda podemos apresentar a página Geledés - Instituto da Mulher Negra71,
uma organização política brasileira de mulheres negras que atuam contra o racismo e sexismo,
fundada em 30 de abril de 1988, que possui, além de homepage própria, páginas no
Facebook, Twitter e Instagram.
As Comunidades Virtuais são “teias de relações pessoais” construídas no ciberespaço
por indivíduos que estabelecem, durante um período longo, conversas sobre assuntos comuns.
“Uma pessoa não se torna necessariamente racista ou homofóbica na internet, mas racistas e
homofóbicos podem se aproveitar da arquitetura das comunidades virtuais para encontrar
quem compartilhe de sua visão da realidade” (Martino, 2015, p.44-45).
Assim, é possível Comunidades Virtuais articularem-se politicamente com pautas
conservadoras ou emancipatórias, pois encontram possibilidade de compartilhamento de
ideias interagindo e fazendo circular modos comuns de pensar e não necessariamente se
tornarão ações políticas, mas apresentam potencial de mobilização para tanto. Para Setton
(2011, p.9)
As mídias são tão poderosas quanto seus companheiros de práticas pedagógicas, a
família e a escola, por exemplo. A particularidade do mundo contemporâneo é que estas
instâncias vivem hoje em uma intensa e tensa rede de interdependências às outras agências
socializadoras, agindo simultaneamente na formação moral e cognitiva do indivíduo na
atualidade. Entretanto, a relação que se mantêm mutuamente pode ser expressa por arranjos
muito variados. São relações que chamamos de complementaridade ou mesmo de ruptura.
São essas relações estabelecidas nas Comunidades Virtuais, no espaço da cibercultura,
que emergem diferentes identidades e nas quais diversas representações sociais podem
transformar-se e difundirem-se. A cibercultura é um espaço marcado por tensões e conflitos
70
A idealizadora e gerente da página é Franciéle Carneiro Garcês da Silva, bibliotecária negra, mestra em
Ciência da Informação e doutoranda em Ciência da Informação. A página está disponível no site
www.facebook.com/quilombointelectual
71
Geledés - Instituto da Mulher Negra foi fundado em 1988 por Solimar Carneiro, Edna Roland, Sueli Carneiro,
Nilza Iraci, Ana Lucia Xavier Teixeira e Maria Lucia da Silva.

277
que também expressam as hierarquias sociais. Geralmente as crianças que ganham destaque
nas redes sociais são chamadas de “Youtubers mirins” ou “mini influencer” ou às vezes como
“Mini digital influencer”, especialmente, as que passam a ser patrocinadas por marcas
comerciais.
Porém, em nossa concepção de infância não cabem os adjetivos mirim ou mini, por
isso, consideramo-las como Crianças Influencers ou Crianças Youtubers por entendermos que
o uso destes termos mini ou mirim adjetiva as crianças, reforçando a ideia da categoria
infância como subalternizada à adultez, por isso de menor importância. Ao reflexionarmos
sobre cultura infantil, podemos rapidamente associá-la ao jogo de pares, folclores e parlendas
bem conhecidos de nossa própria memória de infância, no entanto, o acesso e o domínio das
tecnologias digitais possibilitam às crianças novas interações que denominamos como
“cultura infantil digital”, pois sabemos haver distintos modos de ser criança, refutando,
portanto, a ideia de uma criança ou infância universal, e também das muitas linguagens que as
crianças utilizam.
Isto é, as crianças que possuem acesso à internet e aos aparelhos digitais estão
elaborando novas formas de brincar, interagir e socializar. Até crianças que não dominam a
linguagem escrita se utilizam da linguagem visual ao acessar ícones de aplicativos, páginas,
blogs, jogos que as interessem; e nestes espaços interagem com outras crianças e criam
comunidades virtuais e se conectam tanto ao fazerem referência uma à outra quanto ao
curtirem e comentarem reciprocamente em suas postagens, chegando em alguns casos a
tornarem, essas relações, presenciais e a participarem nos canais umas das outras em desafios
e brincadeiras.
Assim, é possível identificar algumas semelhanças nos modos descritos por Fernandes
(2004) sobre a cultura infantil ao que ocorre nos espaços virtuais. Crianças maiores de 5 e 6
anos interagem, brincam e produzem culturas ainda que não se conheçam pessoalmente. Um
dos espaços bem frequentados por crianças são os canais de jogos. Há no YouTube canais
voltados para jogos online, como o Minecraft72, que conta com diversos canais nos quais são
explicadas formas de jogar, estratégias e que possibilitam a interação entre jogadores, muitos
desses canais são administrados por crianças como o Rafael jogos e brincadeiras 73,

72
Minecraft é um jogo eletrônico criado pelo desenvolvedor de jogos Markus Persson que permite a construção
usando blocos (cubos) em um mundo onde é possível fazer construções e viver no seu próprio ambiente, usando
vários tipos de blocos.
73
O canal Rafael jogos e brincadeiras apresenta principalmente os jogos Free Fire e Minicraft, mas veicula
também alguns momentos de interação do Rafael em seu cotidiano e pode ser visitado no endereço eletrônico:
https://www.youtube.com/channel/UCJ6_WA_QnaC56yYto2pZ2vA

278
apresentado por Rafael que — embora não se tenha esta informação — ele aparenta ter entre
5 e 7 anos.
Martino (2015) salienta que os avanços tecnológicos, assim como a ampliação do
acesso aos bens de consumo, modificaram o cenário social brasileiro nas últimas duas
décadas, considerando-se que “até os fins dos anos 1990 os computadores pessoais eram, por
assim dizer, inacessíveis à maior parte da população” (Martino, 2015, p. 13). A possibilidade
de troca de informações, compartilhamento e interação entre os diferentes usuários, ou
internautas, denominada Interatividade, que é a “interferência e interação entre usuários, ou
usuários, programas e conteúdo, em diferentes níveis e formas, nos sistemas de comunicação
digital em rede” (Martino, 2015, p. 11) pode influenciar na construção de identidades e na
disseminação de padrões, valores, comportamentos, ideologias e conhecimentos que
possibilitam a construção ou reprodução de estereótipos.
Temos, por princípio, que as crianças não são apenas receptoras de estímulos,
informações e discursos que as cercam. Consideramos as crianças como participantes ativas
das ações do cotidiano, estejam elas relacionadas ao campo cultural, de produção econômica
ou de consumo. Articulamos a esta concepção a reflexão de Gomes (2017) sobre o
Movimento Negro como Educador, assim nos propomos a pensar as crianças negras como
participantes ativas da luta antirracista, pois muitas vivenciam o ativismo em suas rotinas de
vida, frequentam reuniões com seus familiares, participam de discussões relacionadas ao
campo racial. Estão nestes espaços a maioria das vezes como acompanhantes dos familiares,
porém esta participação não é desprovida de aprendizagem, ela produz efetivamente um
conhecimento que esta criança vai ressignificar e atuar a partir dele.74 Neste contexto, estudar
sobre narrativas e ativismo de crianças negras na mídia é um desafio visto que, este ator
social, tem sido pouco pesquisado. O central quando se trata de crianças negras são pesquisas
relacionadas ao fracasso escolar, a pobreza ou as consequências do racismo na esfera
educacional.
Esse fato torna relevante entendermos que o fenômeno de crianças ocupando espaço
midiático em evidência em uma plataforma de vídeos com significativo acesso como é o
YouTube pode se apresentar como um campo de estudos em expansão, pois há várias crianças
brancas ocupando esse locus, a exemplo: as gêmeas Melissa e Nicole de 11 anos do canal
Planeta das Gêmeas, Isadora Castro de 12 anos do canal Bela Bagunça e Issac de 10 anos do

74
No começo da pesquisa em 2018 foram identificadas cerca de 10 crianças no espaço do Youtuber, porém
quando finalizamos o texto 2020 para defesa, havia várias muitas outras crianças em outras mídias como o
Instagram, inclusive meninos, que espero possam aparecer em outras pesquisas.

279
canal Issac do Vine — todos com mais de 7 milhões de inscritos em seus canais. E as crianças
negras?

Conclusão

Com base nas análises realizadas podemos compreender que as crianças negras
participantes desta pesquisa são, de fato, agentes de narrativas antirracistas no YouTube, pois,
desde a infância, articulam saberes apreendidos com seus familiares em consonância com a
produção do Movimento Negro nas suas múltiplas formas. Além disso, suas narrativas
educam e (re)educam ao ensinar outras crianças a questionar e indagar o mundo ao seu redor,
buscando compreender o racismo, o preconceito e a discriminação racial das quais são vítimas
e elaboram suas respostas, suas estratégias de resistência de modo singular, em consonância
com sua etapa geracional na qual estão: a infância.

Referências

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Carlos: EDUFSCar, 2015.

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https://revistas.ufpr.br/afro/article/view/86184> Acesso em 8 de Out. 2022.

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280
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JENKINS, Henry, Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2008.

281
MÍDIA E INFÂNCIA: CRIANÇA NEGRA

Tatiane Cosentino Rodrigues


Professora da Universidade Federal de São Carlos
[email protected]

Vitória Marinho Wermelinger


Doutoranda em Sociologia pela Universidade
Federal de São Carlos

Marcelo Matheus Presse Leite


Graduando em Pedagogia pela Universidade
Federal de São Carlos

Introdução

O presente capítulo reúne dados de uma pesquisa 75 mais ampla, em desenvolvimento,


que objetiva analisar a produção acadêmica sobre infância e criança, com destaque para o
período de 2010 a 2021. Os objetivos específicos visam identificar a construção da ideia de
Primeira Infância no Brasil e o surgimento da ideia de infância e criança negra em um
contexto globalizado. Este capítulo se desenvolve a partir de um recorte que focaliza o debate
sobre infância e criança negra na esfera pública, em específico na cobertura da mídia escrita
brasileira, realizamos um levantamento na Agência Amazonas, Agência Brasil, Correio
Braziliense, Folha de S. Paulo, ISTOÉ e VEJA. A escolha das respectivas mídias se deu a
partir do critério de poder de alcance e influência destes veículos.
A esfera pública assume uma posição destacada nas sociedades democráticas;
conforme Costa (1995), porque é a arena onde se produz o amalgama da ‘vontade política’ e a
justificação das decisões políticas previamente acertadas. Uma análise dos eventos e questões
levantadas pela cobertura jornalística proporciona uma rica oportunidade de investigação e de
análise da sua interação com o campo da cultura política (Porto, 2001). Nesse sentido, a forma
pela qual os diferentes veículos de comunicação respondem ao debate sobre infância, em
particular sobre criança negra, desvenda, para além da cultura profissional do jornalismo
desenvolvida no país, as tensões, divergências e impasses sobre um dos mais antigos dilemas
brasileiros que é o problema da integração efetiva das populações não-brancas, em especial
dos descendentes de africanos.

75
Pesquisa intitulada Relações étnico-raciais e primeira infância: aspectos psicossociais, educacionais e culturais
coordenada pelo Instituto Amma Psique com financiamento da organização internacional Porticus.

282
Neste levantamento, buscamos identificar as principais características da cobertura da
mídia escrita sobre infância com foco em crianças negras, procurando caracterizar a
periodicidade das publicações, a distribuição regional das notícias, os principais temas e
tendências.
O periódico Agência Amazônia produz conteúdos sobre os estados da Amazônia
Brasileira. A Agência Amazônia é parte do Grupo Cenarium. A Agência Brasil é uma agência
pública de notícias que foi criada no ano de 1990. A criação da Empresa Brasil de
Comunicação (EBC), em 2007, fez com que a Radiobrás e a Agência Brasil passassem a
integrar o sistema público de comunicação, junto com a TV Brasil, a Radioagência Nacional e
as rádios MEC AM e FM, por exemplo. A Agência Brasil deu início a sua cobertura na web
em 1996, publicando o Serviço de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente, um boletim
semanal distribuído por assinatura. As publicações do noticiário, incluindo o material
fotográfico. O Correio Braziliense, por sua vez, é um jornal com sede em Brasília e que
pertence aos Diários Associados, que também é integrado por outros veículos de
comunicação. O jornal Folha de S.Paulo faz parte do Grupo Folha, que é um dos principais
conglomerados de mídia do país. O grupo coordena o Datafolha, que é um dos principais
institutos de pesquisa do país, bem como uma agência de notícias (Folhapress) e o Centro
Tecnológico Gráfico-Folha (CTG-F).
A IstoÉ é uma revista criada em 1976 que conta com publicações semanais. A revista
é publicada aos sábados pela Editora Três. A Veja, também, é uma revista de distribuição
semanal, ela é publicada pela Editora Abril às quartas-feiras. A revista, criada em 1968, faz
parte do grupo Abril e conta com edições que tratam regionais, como a Veja São Paulo, Veja
Rio, Veja Brasília e Veja BH.

Breve Histórico acerca dos Direitos da Criança


Por conta das cruéis e inevitáveis consequências das I e II Guerras Mundiais, foi
principalmente a partir do século XX que se começou a pensar mais sobre a situação das
crianças ao redor do mundo, o que fez com que importantes marcos que influenciam na
história do direito das crianças ocorressem. Em 1919 é criada a Liga das Nações, a atual
ONU. Neste momento, a comunidade internacional começa a se voltar para a necessidade da
criação de parâmetros de proteção social e governamental para as crianças. Em 1924, a
Declaração de Genebra é adotada pela Liga das Nações, tornando-se assim o primeiro tratado
internacional sobre os direitos da criança. A Declaração abrange os direitos específicos da

283
criança, bem como estabelece o princípio de que, em qualquer situação, seja em situação de
guerra ou não, a criança deve ter prioridade para receber assistência.
Em 1947 é criado o UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), com a
finalidade de fornecer cuidados às crianças órfãs e abandonadas na Europa após a II Guerra
Mundial. Em 1953 este se tornou parte permanente da ONU, mantendo a responsabilidade de
defender os direitos das crianças. Atualmente, as ações do UNICEF são de alcance mundial.
No ano seguinte, em 1948, também sob recomendação da UNESCO, é criada a Organização
Mundial para a Educação Pré-Escolar (OMEP). A OMEP foi pensada principalmente no
intuito de zelar pelo direito à educação nos primeiros anos de vida, que eram entendidos como
os mais cruciais para a formação humana. Ainda em 1948, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos é adotada pela ONU. A declaração é responsável por afirmar no artigo 25
que “a maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais”, o que serviu
de alicerce para futuras garantias de direitos deste grupo. Em 1959, a Declaração dos Direitos
da Criança é proclamada, o que foi um importante passo no reconhecimento universal dos
direitos das crianças. O ano 1979 foi tido como o “Ano Internacional da Criança”. Em 1979, e
uma década depois, as Nações Unidas propuseram a assinatura da Convenção dos Direitos da
Criança (CDC).

As Crianças no Brasil
O histórico dos direitos das crianças trazido no presente artigo conta com o texto
“Trajetória dos Direitos da Criança no Brasil - De Menor Desvalido a Criança Cidadã,
Sujeito de Direitos” de Vital Didonet como a principal fonte. Didonet (2016) nos aponta que
as crianças no Brasil foram entendidas pelo Estado como um assunto doméstico, de
responsabilidade familiar — até meados do século XX — e que os casos entendidos como
responsabilidade governamentais eram os das crianças “desvalidas” e delinquentes. Neste
período eram as organizações sociais, e principalmente as de cunho religioso e filantrópico,
que se responsabilizavam pelos serviços de acolhimento de crianças órfãs ou abandonados,
bem como pelas famílias em situação de extrema pobreza, ainda de acordo com Didonet
(2016).
Apresentamos aqui as ações voltadas para o direito da criança no Brasil desde a sua
independência, em 1922. Durante o primeiro período político da história do Brasil, o Império,
que durou de 1822 a 1889, as ações políticas que se destinam à infância se limitam a três. A
primeira é a implementação do Projeto de José Bonifácio para proteção do menor escravo, em
1823, mas que na realidade tinha como foco a preservação da mão de obra e não o cuidado

284
com a criança. Em 1924, a Constituição do então império garante a gratuidade da instrução
primária para todos os cidadãos e mais tarde. Em 1971, entra em vigor a Lei do Ventre Livre,
que previa que os filhos de mães escravizadas já nascessem livres da escravidão. É importante
destacar que o Brasil aboliu a escravatura somente no ano de 1888.
Durante a Primeira República, que durou de 1889 até 1930, podemos destacar no ano
de 1890 os Decretos n. 439 e n. 658, os quais estabelecem a organização de serviços de
assistência à infância desvalida no Rio de Janeiro; bem como a criação do Código Penal que,
em seu artigo 27, declara os menores de nove anos como isentos de crimes e os de 10 a 14
inimputáveis no caso de agirem sem o completo discernimento. Já no século XX, podemos
destacar a criação do Juizado de Menores no Rio de Janeiro em 1923, que contava com um
abrigo para onde eram encaminhadas crianças em situação de abandono e de delinquência.
Ainda em 1923, também foi instituído o Decreto n° 16.272, o qual regulamenta a assistência e
a proteção aos menores abandonados e delinquentes. No ano de 1927, foi promulgado o
Código de Menores, responsável por consolidar as medidas de assistência e proteção às
crianças e adolescentes, para além de estabelecer a criação do juizado privativo de menores e
elevar a inimputabilidade penal para 14 anos e manter a idade mínima de 12 anos para o
trabalho.
Já na Era Vargas, houve a elaboração de duas Constituições: uma em 1934 e a outra
em 1937. Ambas apresentam resoluções sobre as crianças e adolescentes brasileiros. A
Constituição Federal de 1934 proibia, em seu artigo 121, o trabalho infantil (aos menores de
14 anos) e o trabalho noturno aos menores de 16, para além de proibir o trabalho em
indústrias insalubres aos menores de 18 anos. O artigo 138 desta versão da Constituição é
responsável por assegurar os serviços de amparo à maternidade e à infância. Na Constituição
Federal de 1937 é declarado em seu artigo 127 a obrigatoriedade de o Estado conceder
assistência à infância e à juventude, assegurando-lhes condições físicas e morais para o
desenvolvimento de suas faculdades, para além de conceder aos pais o direito de solicitar
auxílio do Estado para a subsistência e a educação dos filhos. Também é estabelecido no
artigo 129 o dever do Estado em relação à criação de instituições de ensino público para os
que não tivessem condições de acessar o ensino por meio de escolas particulares. Por meio
desta Constituição, o abandono dos filhos menores é definido como falta grave dos pais,
cabendo ao Estado prover a subsistência destes.
Em 1940, por meio do Decreto – Lei 2.024, sob tutela do Ministério da Educação e
Saúde, o Departamento Nacional da Criança entra em vigor. É função do departamento
garantir assistência à mãe e à criança. Em 1941 entrou em vigor o Serviço de Assistência ao

285
Menor (SAM), por meio do Decreto-lei no 3.779, que visava prestar auxílio e assistência
social aos menores desvalidos e infratores. Dentre as medidas do SAM estavam os
reformatórios e casas de correção para os adolescentes infratores.
Em 1961, por meio do Decreto nº 48.961, foi instituído no Ministério da Educação e
Cultura a campanha nacional de educação e reabilitação de deficientes mentais (CADEME).
A CADEME tinha a função de promover em todo o Brasil “a educação, treinamento,
reabilitação e assistência educacional das crianças retardadas e outros deficientes mentais de
qualquer idade ou sexo”.
A partir de 1964, o Brasil começa a enfrentar uma ditadura militar que se expandiu até
o ano de 1985. Durante esse período houve a criação da Fundação Nacional do Bem-Estar do
Menor (FUNABEM), no ano de 1964. A Fundação tinha como função, ao menos na teoria,
implementar a política nacional de bem-estar do menor. Segundo Didonet, é a partir deste
momento que o Estado começa a se tornar responsável pelo atendimento das demandas, por
meio de instituições próprias. Em 1967, foi promulgada uma nova Constituição. Ficou
previsto no Art. 166. desta Constituição que a família, a maternidade, a infância e a
adolescência terão proteção especial dos poderes públicos, quanto à sua constituição,
preservação e educação. O documento também garantiu no Título IV que o ensino primário é
obrigatório para todos, dos sete aos quatorze anos, e gratuito nos estabelecimentos oficiais.
No ano de 1979, a Lei no 6.697 foi responsável por instituir o novo Código de Menores que
visa garantir proteção e vigilância aos menores que se encontrem em situação irregular.
Segundo Didonet (2016), é partir da implementação do Código de Menores que se começa a
utilizar a expressão “menor em situação irregular”; e até os dias atuais ainda se ouve com
frequência a utilização do termo “menor” no que diz respeito às crianças e adolescentes que
são marginalizados pela sociedade, em geral, negros/as, e que se encontram em situação de
vulnerabilidade.
Em 1988, foi promulgada a nova Constituição brasileira, a qual está em vigor até os
dias atuais. Os direitos da criança se concentram no art. 227

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao


jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação,
ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
(CONSTITUIÇÃO 1988, ART. 227).

Em 1990, é revogado o Código de Menores e o Estatuto da Criança e do Adolescente


(ECA) é sancionado. O ECA teve grande importância por instituir na legislação nas políticas

286
públicas brasileiras uma nova concepção de infância. A partir do ECA as crianças e os
adolescentes passam a ter seus próprios direitos, particulares da idade e da fase de
desenvolvimento pelas quais estão passando.
Em 2016 é aprovada a Lei Nº 13.257, que estabelece “princípios e diretrizes para a
formulação e a implementação de políticas públicas para a primeira infância em atenção à
especificidade e à relevância dos primeiros anos de vida no desenvolvimento infantil e no
desenvolvimento do ser humano”.
Não podemos esquecer que vivemos em um país que enfrentou 388 anos de regime
escravocrata, e como demonstra o levantamento das leis sobre infância no Brasil: as crianças
negras são pouco ou quase nada representadas neste âmbito. Segundo dados da UNICEF
(2010), vivem no Brasil 31 milhões de crianças negras. Dentro desse número, cerca de 17
milhões destas crianças negras vivem na pobreza. No que diz respeito à educação, uma
criança negra entre 7 e 14 anos tem 30% mais chance de estar fora da escola do que uma
branca nesta mesma faixa etária.

O levantamento das mídias escritas

A análise das mídias se deu através de buscas por notícias que fizessem referência aos
termos: creche, "primeira infância", infância, criança e "criança negra". Os resultados desta
busca podem ser vistos no quadro a seguir:

Quadro 1 - Resultado em números por palavras-chave


Palavras- Agência Agência Correio Folha de
ISTOÉ VEJA
chave Amazonas Brasil Braziliense S.Paulo

creche 21 1666 1684 3461 3040 1299

"primeira
11 307 245 835 531 1803
infância"

infância 125 1930 6122 10000 12600 5099

criança 1540 14391 15001 10000 216000 25350

"criança negra" 0 37 12 119 63 727

Fonte: Elaboração dos autores

Os resultados encontrados na Agência Brasil e na Folha de S.Paulo compreendem o


período de 01/01/2010 à 31/12/2021. Os números do Correio Braziliense são referentes ao

287
período de 2010 a 201976. Para os demais periódicos as buscas foram feitas sem definição de
período específico devido à ausência dessa opção nos filtros de busca das respectivas
plataformas.
Neste conjunto de resultados, concentramo-nos na análise das matérias localizadas
pela palavra-chave "criança negra". Para isso, foram consideradas apenas as matérias que não
se repetem e que pudessem ser acessadas via link. Nessa etapa, optou-se por prorrogar a
análise dos dados obtidos na revista ISTOÉ e VEJA, visto que o mecanismo de busca disposto
nos sites apresenta inconstância na exibição de resultados 77 e exigirá uma fase de trabalho
adicional para a conferência dos dados.
No quadro abaixo, é exposto o número de matérias encontradas com o termo “criança
negra” por periódico e ano:

Quadro 2 - Resultados encontrados para o termo "criança negra" por periódico e ano
Jornal 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 Total

Agência
0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Amazonas

Agência
3 5 3 5 1 1 0 0 2 3 8 4 35
Brasil

Correio
1 2 3 4 2 0 0 0 0 0 − − 12
Braziliense

Folha de
2 2 1 1 1 3 3 4 3 8 12 15 55
S.Paulo

Fonte: Elaboração dos autores

É possível perceber que na Agência Brasil, os resultados declinam após 2013,


chegando a atingir zero publicações durante os anos de 2016 e 2017. Na Folha de S.Paulo, por
outro lado, os valores sobem após 2014, atingindo o ápice de matérias em 2021, com 15
publicações. O Gráfico 1 ilustra este movimento de ascensão do tema, em especial na Folha
de S.Paulo e Agência Brasil.

76
As buscas no Correio Braziliense foram feitas pela Coleção Digital de Jornais e Revistas da Biblioteca
Nacional, pois o site oficial não exibiu resultados para os termos pesquisados. A Coleção Digital de Jornais e
Revistas da Biblioteca Nacional pode ser acessada pelo site: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx.
77
Em novas buscas com o termo “criança negra”, por exemplo, o site exibiu resultados diferentes ao encontrado
no primeiro levantamento (por vezes menores, por vezes maiores). Isso pode significar que determinadas
matérias podem ficar de fora dos resultados aleatoriamente, acarretando uma análise incompleta. Em
comparação, nos novos levantamentos feitos sem definição de período específico realizados na Agência Brasil e
na VEJA, os resultados aumentaram, indicando a publicação de novas matérias. Essa inconstância em que os
números obtidos diminuíram foi observada apenas na revista ISTOÉ.

288
Gráfico 1 - Resultados encontrados para o termo "criança negra" por periódico e ano

Fonte: Elaboração dos autores

No quadro 3 é apresentada a relação de matérias com o termo “criança negra” por


mídia escrita e mês:

Quadro 3 - Resultados encontrados para o termo "criança negra" por mídia escrita e
mês
Jornal Jan. Fev. Mar. Abr. Mai. Jun. Jul. Ago. Set. Out. Nov. Dez. Total

Agência
0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Amazonas

Agência
3 2 1 0 4 3 6 1 1 2 10 2 35
Brasil
Correio
Braziliens 0 2 0 1 1 2 3 1 2 0 0 0 12
e
Folha de
3 1 5 3 2 4 2 7 4 6 15 3 55
S.Paulo

Fonte: Elaboração dos autores.

É possível perceber, a partir do quadro 3, que a maioria das publicações acontecem no


mês de novembro. Isso pode estar relacionado com o Dia Nacional da Consciência Negra,
celebrado em 20 de novembro. O Gráfico 2 evidencia esse fato que se realiza na Folha de S.
Paulo e na Agência Brasil.

289
Gráfico 2 - Resultados encontrados para o termo "criança negra" por mídia escrita e
mês

Fonte: Elaboração dos autores

A análise qualitativa das mídias: permanências e a emergência de novas temáticas,


interlocutores/as e abordagens
A leitura integral das notícias localizadas nos permite caracterizar o enquadramento
que este tema vem recebendo pelas mídias impressas, apontando permanências e mudanças
nestas abordagens. Desta forma, propomos uma divisão deste enquadramento em duas
décadas (2010 e 2020). Ao final da primeira, por volta de 2018-2019, é possível perceber uma
mudança gradual de temas, interlocutores/as e abordagens.
A concentração destas publicações no mês de novembro já sugere que não se trata de
uma agenda permanente dos veículos, mas sim uma acionada pela proximidade do dia 20 de
novembro, feriado nacional, instituído oficialmente em novembro de 2011, dia nacional da
consciência negra.
A total ausência de resultados na Agência Amazonas para a palavra-chave "criança
negra" precisa ser melhor compreendida 78, mas a hipótese inicial é a de que esta ausência
reitera a invisibilidade da população negra nesta região do país.
De 2010 a 2018, os temas prioritários nos três jornais: Folha de S. Paulo, Agência
Brasil e Correio Braziliense foram violência e racismo, representatividade e desigualdade. A
partir de 2018, vimos a repetição destes temas acrescidos por uma pluralidade temática que
78
Esta hipótese será melhor trabalhada a partir da leitura e análise dos textos das outras palavras-chave.

290
compreende a representatividade, a saúde mental, a maternidade, o preconceito racial e a
escola, a história e a cultura afro-brasileira, as personalidades negras, a literatura, os
brinquedos e as políticas de ação afirmativa.
Nos dois períodos há um tema comum nos três jornais, e também nas duas décadas: o
tema da adoção.

Quadro 4 - Número e localização de matérias dedicadas à temática da adoção

Jornal Número Datas Títulos


26/06/2002 Cai resistência à adoção de criança negra e
mais velha
08/08/2010 "Preconceituoso" hoje é pai de filha negra

Folha S. Paulo 4 Criada por uma família branca, demorei anos


30/12/2018
para aprender a amar a negra

Minha vida mudou quando encontrei uma


20/06/2019
carta da mãe biológica
Perfil mais buscado para adoção, crianças de
25/05/2011
até 3 anos são apenas 3% em abrigos
MPE constata que mais de 50% dos jovens
30/09/2011 abrigados no RJ voltaram a viver com
família em três anos
Crianças negras ainda são preteridas por
19/11/2011
Agência Brasil 6 famílias candidatas à adoção
"Pesquisa aponta que adolescente tem menos
26/02/2012
chance de ser adotado"
Adotar significa abrir-se para uma nova
12/05/2013
aventura, no melhor sentido da palavra
Casal conta como rotina de vida mudou com
25/05/2019
adoção de irmãos"
Correio 12/02/2013 Cresce o número de adoção de negros
2
Braziliense 12/06/2012 Debate sobre adoção de deficientes
Fonte: Elaboração dos autores.

De forma geral, os textos nesta temática da adoção caracterizam o perfil mais


procurado e desejado na adoção de crianças brasileiras, apresentam indicadores de crianças
que estão em situação de abrigo por raça/cor; bem como relatos de casais brancos que
adotaram crianças negras, de adultos negros, adotados por famílias brancas, e que
compartilham experiências e opiniões sobre o tema. A Folha de S.Paulo na matéria de 2002,
intitulada "Cai resistência à adoção de criança negra e mais velha" apresenta dados no CNJ
do cadastro nacional de adoção que indicam que o índice de adultos que só quer filhos
brancos foi de 30% para 29% entre 2010 e 2014 e a proporção de pessoas que aceitam
maiores de três anos cresceu de 29% para 42,5% no período, a hipótese é a de que os cursos

291
de sensibilização oferecidos no processo mostram que os filhos, independentemente da idade,
são para a vida inteira.
Na primeira década analisada, o tema do racismo e violência é recorrente e
majoritário, especialmente na Folha de S. Paulo e no Correio Braziliense, retratando situações
de violência e morte de crianças negras, situações de racismo em diferentes ambientes, como
escolas, restaurantes, shoppings e concessionárias de veículos. O quadro abaixo exemplifica
esta concentração temática nos primeiros anos da década de 2010.

Quadro 5- Número e localização de matérias dedicadas à violência e racismo

Jornal Número Datas Títulos


Suspeito de tirar menino etíope de mesa é
17/01/2012
indiciado
Após polêmica nas redes sociais Pão de Açúcar
22/08/2013
retira estátua de loja
Folha S. Paulo 5 Aposta em não indiciamento em Ferguson
26/11/2014
expõe farsa de processo
25/09/2015 Gente boa
Shopping Pátio Higienópolis é acusado de
07/06/2017
racismo por pai de criança negra
Missa e passeata lembram 20 anos da chacina
19/07/2013
da Candelária, no RJ
Polícia civil vai investigar racismo contra
25/01/2013
Agência Brasil 3 criança em concessionária
Secretaria de Políticas de Promoção da
24/01/2013 Igualdade Racial sugere treinamento para
combater racismo institucional
21/07/2011 Perícia descarta tiroteio na morte de Juan
23/07/2011 DF segrega, diz antropólogo
Correio Braziliense 4
21/07/2010 Racismo contra garota será apurado
05/09/2014 Torcedora nega racismo
Fonte: Elaboração dos autores.

Neste período, a Agência Brasil enfatiza o lançamento da Campanha da Unicef, no


mês de novembro, de combate ao racismo contra crianças nas matérias intituladas "Unicef
lança campanha para combate ao racismo contra crianças" e "Unicef lista dez maneiras de
contribuir com uma infância sem racismo".
O tema da violência permanece constante, mas a partir de 2015 há uma diminuição na
frequência de matérias sobre violência associadas ao descritor "criança negra". Num cenário
nacional de agravamento e aumento da violência retratados, por exemplo, no Atlas da
Violência (2021) do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro

292
de Segurança Pública (FBSP), assim como o aumento de morte de crianças, e adolescentes,
em maior número negras, de forma violenta, observou-se uma ênfase nesse tema a partir de
situações pontuais que são abordadas de forma mais individualizada sem o recorte sistêmico,
o próprio conceito de racismo estrutural é localizado nas matérias mais recentes, a partir de
2015.
A Folha de S. Paulo mantém a regularidade deste enfoque, de 2017, a última notícia
indicada no quadro acima, localizamos mais seis matérias sobre o tema: "Menino acha árvore
de natal no lixão e fotos viralizam nas redes (01/12/2021); "Por amor ao meu filho, quero
justiça (15/09/2021); "Em nova acusação de agressão contra criança negra, Pão de Açúcar
afasta funcionário"(03/03/2021); "Idosa é condenada por chamar menino de "negrinho,
macaco e orelhudo" em SP" (16/06/2020); "Aluno é chamado de macaco, gorila e veadinho
em escola, Polícia civil investiga (26/11/2019); "Não pode ficar como mais uma vítima de
bala perdida, diz tia de Ágatha" (23/09/2019). O aumento da violência e morte de crianças
pelo que se denomina de "balas perdidas" é expressa na matéria que retrata a morte de
Ágatha, de oito anos, quando voltava para casa, no Complexo do Alemão, zona norte do Rio
de Janeiro.
A partir de 2016, observamos nas matérias localizadas com o descritor "criança negra"
a emergência e a diversificação de abordagens Nossa hipótese é que esta pluralização está
relacionada ao processo de discussão e implementação das políticas de ação afirmativa, a lei
10.639/2003, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 e
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional para incluir no currículo oficial da Rede
de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras
providências e, por fim, ao processo ainda recente, de políticas e regulação públicas para a
primeira infância como um direito social.
De 2015 a 2021, vimos emergir temas como: a) literatura, brinquedos e bonecas
negras; b) impacto do racismo no desenvolvimento infantil; c) autoestima, estética, cabelos e
maternidade; d) Escola e currículo e d) Diversidade racial na publicidade e representatividade.
No quadro abaixo relacionamos as matérias identificadas com estes temas, organizadas por
jornal e data.

293
Quadro 6- Número e localização de matérias dedicadas aos temas emergentes pós-2015

Temas emergentes Num. Jornal Título Data


Literatura infantil: como protagonistas
Agência Brasil 20/11/2021
negros abrem novos horizontes
Bonecas negras representam 6% dos
Agência Brasil 18/10/2020
modelos disponíveis no mercado
Professora escreve livro sobre princesa
Agência Brasil 21/06/2019
guerreira quilombola
Festa literária das periferias reúne
Agência Brasil 05/11/2018
escritores negros no Rio
Mauricio de Sousa se emociona ao falar
Folha de S.
de filho e diz que discute personagem 27/10/2021
Paulo
Literatura, gay com roteiristas
brinquedos e 9 Folha de S. Bonecas negras ensinam respeito à
bonecas negras 24/08/2020
Paulo diversidade
Com rosto ainda desconhecido,
Folha de S. primeira escritora negra no Brasil é
26/07/2020
Paulo redescoberta após décadas de
anonimato
Folha de S. Faltam hérois negros, diz Lázaro
11/2015
Paulo Ramos ao lançar terceiro livro infantil
Projetos no Brasil e nos EUA lutam
Folha de S.
contra o racismo por meio da 13/10/2019
Paulo
distribuição de livros
Racismo e violência contra crianças e
Agência Brasil 13/07/2020
adolescentes são desafios do país
Impacto do racismo Estudo aponta como o racismo
no desenvolvimento 3 Folha de S.Paulo prejudica o desenvolvimento de 09/12/2021
infantil crianças
Folha de S. Como falar sobre preconceito com
10/10/2015
Paulo crianças?
Folha de S. Autoestima da criança negra exige
01/08/2022
Paulo esforço extra da família
Folha de S.
Meninas negras podem ser sereias 26/11/2021
Paulo
Folha de S. Mães dizem se preocupar mais com
09/05/2021
Paulo aceitação e autoestima dos filhos
Folha de S. Desigualdade entre negros e brancos
Autoestima, estética 19/11/2020
Paulo começa no útero no Brasil
e cabelos e 7
maternidade Autoestima de crianças negras é
Folha de S.
demolida pelo racismo, diz autora de 09/03/2020
Paulo
livros infantis
Folha de S.
Eu sou racista 14/02/2020
Paulo
Fernanda Souza sobre racismo: "serei
Folha de S.
mãe de uma criança negra, tenho que 30/09/2016
Paulo
entender esse universo"
Medidas preventivas são pouco
Agência Brasil 16/07/2021
adotadas por crianças, aponta estudo
Mais de 20% das crianças estão
Escola, currículo,
Agência Brasil matriculadas em escolas sem 21/11/2020
história e cultura
8 saneamento
afro-brasileira e
africana Cresce o número de negros em
Agência Brasil 20/11/2020
universidades, mas acesso é desigual
Agência Brasil Unicef cria podcast para ensinar cultura 20/11/2020
afro-brasileira

294
Foco em testes tem sido devastador
Folha de S.
para crianças não brancas, diz 27/04/2021
Paulo
pesquisadora
Folha de S. Novo ensino de história da África no
19/11/2019
Paulo país destaca resistência e cultura afro
Folha de S. Inclusão desigual amplia distância entre
19/11/2016
Paulo negos e brancos na educação
Folha de S. Por diversidade, creche no Rio faz
26/04/2019
Paulo promoção para alunos negros
Diversidade racial na publicidade vive
Agência Brasil 19/12/2020
estagnação, indica pesquisa
Ex-consulesa da França celebra
Folha de S.Paulo 19/11/2021
representatividade negra na SPFW
Para Guel Arraes, política de cotas
Folha de S.
pautou inclusão negra na TV e no 21/10/2021
Paulo
Diversidade racial na cinema
publicidade e 6 David Jr. diz que trabalha para que
Folha de S.
representatividade crianças negras sonhem com lugares 07/08/2021
Paulo
altos
Folha de S. Vera Egito: representatividade é
25/05/2016
Paulo essencial em uma sociedade desigual
Folha de S. H&M fecha lojas após protestos contra
14/01/2018
Paulo propaganda considerada racista
Fonte: Elaboração dos autores.

No tema "Literatura, brinquedos e bonecas negras" estão reunidas matérias que


analisam o número ainda emergente de literatura e brinquedos, em especial as bonecas com
representação e participação de personagens negros e negras. Alguns exemplos são
apresentados, autores e autoras negros/as de literatura são entrevistados e apresentam a
centralidade e a importância da literatura e do brinquedo na primeira infância. Em entrevista
concedida por Mauricio de Sousa, por exemplo, na matéria intitulada "Mauricio de Sousa se
emociona ao falar de filho e diz que discute personagem gay com roteirista" o cartunista e
escritor conta sobre o processo de revisão de sua obra, ampliação dos personagens e da
importância de trazer para o conjunto de seus personagens, por exemplo, um personagem gay.
Neste tema estão incluídos também vários exemplos de iniciativas bem-sucedidas de trabalho
com literatura infantil e a questão étnico-racial em diálogo com as mudanças previstas no
campo normativo pela lei 10.639/2013. Sobre as bonecas, a matéria registra que a despeito do
baixo número de bonecas negras disponíveis no mercado, há um crescente de fabricação de
bonecas negras e que estas experiências estão imbricadas às experiências de racismo e
discriminação vivenciadas por pessoas que hoje atuam na diversificação do perfil étnico-racial
de bonecas e bonecos negras/os e que crescem junto com o desenvolvimento de ações
pedagógicas e formativas de afirmação do pertencimento étnico-racial e contra o racismo e a
discriminação racial.

295
Na temática "Impacto do racismo no desenvolvimento infantil" observamos um
primeiro artigo que apresenta indicadores produzidos pelo Fundo das Nações Unidas para a
infância e que apontam o racismo e a desigualdade como obstáculos significativos para que os
direitos das crianças e dos adolescentes sejam garantidos. Os números apresentados indicam
que as crianças negras são maioria no trabalho infantil, vítimas de homicídio, no número de
meninas entre 10 e 14 anos que engravidam.
Na matéria intitulada "Estudo aponta como racismo prejudica o desenvolvimento de
crianças" é apresentada uma síntese dos principais resultados do estudo "Racismo, educação
infantil e desenvolvimento na primeira infância", publicado pelo Núcleo Ciência pela
Infância. O material tem por objetivo indicar — a partir da análise de investigações
qualitativas em saúde e educação produzidas no Brasil e nos Estados Unidos — como o
racismo estrutural prejudica o desenvolvimento de crianças negras entre zero e seis anos, e
que ações e políticas públicas devem ser tomadas para combater essa problemática.
Por último, ainda neste tema, a partir de uma situação de racismo em uma escola do
Rio de Janeiro, com crianças pequenas, são apresentadas possibilidades e caminhos de
trabalho com crianças sobre este tema e os prejuízos para o desenvolvimento infantil quando
se opta por não abordar e silenciar a temática.
No tema "Autoestima, estética, cabelos e maternidade" estão reunidas matérias que
relacionam a discussão sobre estética, autoestima e participação e atuação das famílias. A
matéria intitulada "Desigualdade entre negros e brancos começa no útero no Brasil", por
exemplo, apresenta a disparidade de acesso ao pré-natal entre gestantes negras e brancas. Tal
disparidade provoca, por exemplo, a ocorrência de maior número de casos de sífilis congênita,
segundo dados do Grupo de Trabalho da População Negra da Sociedade Brasileira de
Medicina de Família e Comunidade. Até um ano de vida, crianças negras terão 22,5% a mais
de chance de morrer em comparação às brancas. A matéria reúne uma série de outros dados,
como acesso à creche, licença maternidade, acesso a saneamento básico e o impacto da
violência na saúde física e mental das crianças negras. A ideia central defendida é a de que
crianças negras são mais dependentes da atenção primária e dos serviços públicos de saúde
para atender às suas necessidades. Outro ponto central defendido na matéria é a
preparação/mudança da educação médica para que o cuidado à saúde das famílias negras seja
aperfeiçoado. "Precisamos falar como fazer a abordagem de uma família sobre o conteúdo
racial quando a criança está na barriga e depois quando nasce".
Neste tema estão reunidos relatos de mulheres, especialmente mães, diante de
situações de racismo com seus filhos ou de mães brancas que estão preocupadas com a pouca

296
convivência de seus filhos/as com crianças não brancas, considerando os contextos étnico-
racial homogêneos, principalmente das escolas particulares. Neste tema, são entrevistados
médicos pediatras que falam sobre a chegada do racismo como uma das queixas nos
consultórios pediátricos, enfatizando-se os efeitos do racismo para a saúde, numa perspectiva
mais ampliada de saúde.
No tema "Escola, currículo, história e cultura afro-brasileira e africana'' estão reunidas
as matérias que apresentam experiências de desenvolvimento de conteúdos e abordagens
pedagógicas voltadas para a implementação da lei 10.639/2003. Sobre a importância da ação
afirmativa no ensino superior como uma política que pode criar outros regimes de
representação e estímulo para crianças pequenas.
Neste tema estão reunidas as matérias que indicam ainda um cenário de desigualdade
étnico-racial na educação brasileira e que aprofundou ou se tornou mais evidente no contexto
da pandemia COVID-19. Na matéria intitulada "Foco em testes tem sido devastador para
crianças não brancas, diz pesquisadora", Sonya Horsford, professora da Universidade
Columbia, avalia que no contexto pós-pandemia o foco excessivo em avaliações educacionais
de larga escala estigmatizou crianças não brancas e prejudicou o seu bem-estar emocional. A
pesquisadora fala em sua entrevista sobre a necessidade de um currículo escolar que inclua
questões sobre justiça social, meio ambiente, sobre a verdade histórica dos países, sobre o seu
papel em uma sociedade democrática, além de leitura e matemática.
Por último, no tema "Diversidade racial na publicidade e representatividade" estão
reunidas as matérias que enfatizam, a partir de exemplos, como campanhas publicitárias,
séries, filmes e materiais audiovisuais são espaços centrais de atuação e mudança num regime
de representação e que pode atuar no fortalecimento e impulsione crianças negras a se verem
representadas de forma positiva. Neste tema, mas mesmo na primeira década analisada, há
entrevistas realizadas com personalidades negras e negros que concedem entrevistas
abordando suas experiências pessoais, sobre o racismo no Brasil e outros contextos, sobre a
importância da discussão sobre representatividade, são recorrentes as participações de
Thiaguinho, Thais Araújo, Lázaro Ramos, Lewis Hamilton e Angela Davis (quando de sua
vinda ao Brasil).
Finalizamos a análise proposta para este capítulo sinalizando que a abordagem da
temática étnico-racial associada à infância e criança negra ainda está concentrada no mês de
novembro, respondendo a agenda de mobilização e luta do dia 20 de novembro. A despeito
desta concentração, vimos emergir uma transição do enquadramento a este tema que se
concentrou na década de 2010 nos temas da discriminação e violência e que passou, a partir

297
de 2015, a contemplar temas que ampliam o debate para a escola, a saúde, a família, o brincar,
a literatura, a estética e a representatividade. A leitura completa de todas as matérias e a
análise dos argumentos mobilizados, assim como dos/as interlocutores/as, sugerem que esta
diversificação está diretamente relacionada ao contexto e resultado do processo de
implementação das políticas de ação afirmativa, das mudanças curriculares provocadas pelas
discussões sobre a implementação da história e cultura afro-brasileira e africana, sobre a
ampliação do debate e centralidade deste tema no desenvolvimento de uma proposta de
educação a qual compreende que o racismo compromete o desenvolvimento de todas as
pessoas, em especial de crianças negras e não negras.
Em matéria publicada na Folha de S. Paulo no dia 01/01/2021, intitulada "O que 2020
ensinou sobre racismo ao Brasil", Andrea Lopes da Costa afirma que o ano de 2020
oportunizou ao país o contato com situações de racismo que ocuparam o noticiário com
frequência, o que teria tornado frequente o uso do conceito de racismo estrutural, são
relacionadas várias situações de violência racial do ano de 2020 articuladas aos dados/efeitos
raciais da pandemia pela covid. No caso das crianças negras, são citadas a desumanização, a
adultização como estratégias potentes na produção do racismo estrutural. Tomadas como
adultas, crianças negras têm negada sua condição de fragilidade e, portanto, de necessidade de
cuidados, tornam-se objeto de negligência e alvos potenciais de inúmeras balas perdidas que,
no ano de 2020, mataram mais de uma dezena somente no Rio de Janeiro.
O texto de Andrea Lopes da Costa, publicado no primeiro dia do ano de 2021, sintetiza
como a violência que se impõe às crianças, em especial às crianças negras, e o não
reconhecimento destas crianças como tal, assim como os impactos diferenciados da covid por
cor/raça, produzem material farto para um enquadramento que privilegie a violência, no
entanto, temas afirmativos de vida se impuseram, com a participação frequente de mães e
mulheres negras que insistem em problematizar, questionar e criar outras experiências de vida
para crianças negras e não negras.

Referências

BRASIL. Lei nº 6.697 de 10/10/1979. Código De Menores. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-1979/l6697.htm. Acesso em: 18 ago 2022.

BRASIL. Constituição (1824). Lex: Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março de


1824.

BRASIL. Constituição (1934). Lex: Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de
1934.

298
BRASIL. Constituição (1937). Lex: Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro
de 1937.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado
Federal: Centro Gráfico, 1988.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8.069/90. São Paulo, Atlas, 1991.

BRASIL. Estatuto da Primeira Infância. Lei n. 13.257, de 08 de março de 2016. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm. Acesso em: 18 ago. 2022.

BRASIL. Lei nº 2.040 de 28 de setembro de 1871. Lei do Ventre Livre. Disponível em:
http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/496715.

COSTA, S. A democracia e a dinamica da esfera publica. In: Lua Nova. no 36, 1995

DIDONET, V.. Trajetória dos Direitos da Criança no Brasil - De menor e desvalido a criança cidadã,
sujeito de direitos. In: Primeira Infância: Avanços do Marco Legal da Primeira Infância. Brasília,
2016.

PORTO, M. A midia brasileira e a eleiçao presidencial de 2000 nos EUA: a cobertura do jornal Folha
de S. Paulo. 2001.

299
ORGANIZADOR

Otavio Henrique Ferreira da Silva

Doutor e mestre em educação pela Universidade Federal de Minas Gerais, licenciado


em pedagogia pela Universidade de Uberaba e em matemática pelo Centro Federal de
Educação Tecnológica de Minas Gerais, bacharel em administração pela Faculdade
Pitágoras de Betim. É professor da Universidade do Estado de Minas Gerais, no
Departamento de Educação, Campus Helena Antipoff - Ibirité/MG e professor e
coordenador do Mestrado em Segurança Pública e Cidadania - Faculdade de
Políticas Públicas - FaPPGeN/UEMG. Líder do grupo de estudos e pesquisas
"Infâncias, Matemáticas e Relações Étnico-Raciais" - IMERER/CNPq. Pesquisa,
ministra aulas e cursos sobre os temas: "educação infantil", "Infância", "periferia",
"educação para as relações étnico-raciais", "decolonialidade",
"contracolonialidade", "emancipação", "gestão democrática", "cidadania",
"democracia", "formação de professores", "o legado de Paulo Freire" e
"etnomatemática". Filiado à Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Educação - ANPED e à Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as -
ABPN. Bolsista de Produtividade em Pesquisa - PQ/UEMG. E-mails:
[email protected] ou [email protected]

300
AUTORES

Adeildo Vila Nova

Doutorando em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica


de São Paulo (PUC-SP), Mestre em Serviço Social e Políticas Sociais
pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Bacharel em
Serviço Social e Especialista em Gestão de Pessoas pela Universidade
São Judas Tadeu (Campus UNIMONTE), Assistente Social Judiciário
no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) e Primeiro-
Secretário na Associação das/os Assistentes Sociais e Psicólogas/os do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (AASPTJ-SP).
Pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Crianças e Adolescentes com
ênfase no Sistema de Garantia de Direitos (NCA-SGD | PUC-SP), do
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Aprofundamento Marxista (NEAM
| PUC-SP) e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Identidades (NEPI | PUC-SP). Co-
Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Sociedade Punitiva, Justiça Criminal e
Direitos Humanos - Profa. Andrea Almeida Torres (GEPEX-DH-AAT | UNIFESP). E-mail:
[email protected]

Adriana Bom Sucesso Gomes

Mestra em Educação e Docência pela Universidade Federal de Minas


Gerais (UFMG-2023). Possui especialização em Psicopedagogia Clínica
e Institucional pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG-
2012). Graduada em Pedagogia, Licenciatura, Gestão e Coordenação de
processos Educativos (2009). Atualmente é professora da Rede
Municipal de Belo Horizonte, atua na Educação Infantil e integra a
coordenação ampliada dos Núcleos de Estudos das Relações Étnico-
raciais da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte –
SMED/PBH. E-mail: [email protected]

Alex Sander da Silva

Filósofo pela Universidade do Sul de Santa Catarina (1996) e Mestrado


em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (2005).
Doutorado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande de Sul (2010). Realizou estudos pós-doutorais (PNPD/CAPES)
no núcleo de História e Filosofia da Educação (PPGE/UNIMEP, 2014).
Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Formação Cultural e
Sociedade – GEFOCS. Membro do Núcleo de Estudos Afrobrasileiro e
Indigena – NEABI. Atualmente é professor do Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade do Extremo Sul Catarinense
(UNESC). E-mail: [email protected]

301
Aline Moraes da Costa Lins

Cientista social pela Universidade Federal Fluminense (UFF),


professora de sociologia do Instituto Federal de Educação Ciência e
Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), campus Volta Redonda. Mestre
em Educação pela Faculdade de Formação de Professores da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP/UERJ). Coordenadora
do Núcleo d Gênero e Diversidade Sexual (NUGEDS/IFRJ), campus
Volta Redonda. E-mail: [email protected]

Ana Clara dos Santos Silva

Bolsista Jovens Talentos FAPERJ. Discente do curso Técnico em


Automação Industrial concomitante ao Ensino Médio pelo Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ),
Campus Volta Redonda. E-mail: [email protected]

Ana Cristina Juvenal da Cruz

Graduada em História pela Universidade Estadual Paulista - UNESP-


Assis (2006). Mestre (2010) e Doutora (2014) e em Educação pela
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com período sanduíche
na École des hautes études en sciences sociales (EHESS), em Paris -
França. Professora Adjunta na UFSCar no Departamento de Teorias e
Práticas Pedagógicas (DTPP) e no Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPGE). Atualmente é Diretora do Centro de Educação e
Ciências Humanas (CECH / UFSCar) e Coordenadora do GT 21
Educação e Relações Étnico-Raciais da Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Educação - ANPEd. Desenvolve estudos e
pesquisas na área de educação com ênfase em relações étnico-raciais, estudo e ensino das
histórias africanas e afro-brasileiras e da diáspora negra. Email: [email protected]

Andrea Barbosa de Andrade

Mestra em Educação pela UFPR na linha Educação, Diversidade,


Diferença e Desigualdade Social, graduação em Pedagogia pela
UFMS. Estuda discursos antirracistas de crianças negras nas mídias
digitais e a produção de novos tipos de cultura infantil por crianças
negras. Atua como Coordenadora Pedagógica e Professora da
Educação Infantil. Possui experiência na formação de professores da
Educação Infantil e Ensino Fundamental com foco na Educação para
as Relações Raciais, Literatura Afro-brasileira e Diversidade Étnico-
Racial.

302
Andresa de Souza Ugaya

Graduação, especialização, mestrado e doutorado pela Faculdade


de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas.
Docente do Departamento de Educação Física da Faculdade de
Ciências da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho. Supervisora do Programa de Mestrado Profissional em
Educação Física em Rede Nacional (ProEF) e vice-supervisora do
Núcleo Negro para Pesquisa e Extensão (NUPE). Preside o
Comitê de Ação Cultural (CAC). Coordena o Laboratório de
Corporeidade, Cultura e Arte (LACCA) e o grupo cultural Pavio
de Candieiro. Participa do grupo Batuque das MariA.

Organizadora dos eventos Café Ancestral e África Que Soma. É membra da Associação
Brasileira dos/as Pesquisadores/as Negros/as (ABPN) e da Associação Nacional de Pós-
graduação e Pesquisa. Membra do Conselho Municipal de Políticas para as Mulheres e do
Conselho de Alimentação Escolar. É artista-brincante, capoeira, mãe do Acauã. Amante das
culturas populares, de viagens, cachoeiras, trilhas, montanhas, mares e esportes de aventura. E-
mail: [email protected]

Andreza Mara da Fonseca

Professora da Educação Básica, Educação Infantil e Ensino


Fundamental 1º e 2º Ciclos, na Prefeitura Municipal de Belo
Horizonte, MG. Doutoranda em Educação pela Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” -UNESP/RC , Mestra
em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais -PUC Minas como bolsista da FAPEMIG, Especialista em :
Mídias na Educação (UFSJ), História da África e Culturas Afro-
Brasileiras pela (UFMG) e Práticas de Letramento e Alfabetização
(UFSJ). Pedagoga pela Universidade do Estado de Minas Gerais
(UEMG) .Integrante do Núcleo de Estudos de Educação das
Relações Étnico-Raciais de BH (SMED), associada da ABPN.
Integrante do Grupo de Pesquisa im@go/UNESP, LAMER/ IFPR,
em Estágio Científico Avançado (Doutorado Sanduíche) - Centro
de Investigação em Estudos da Criança- Universidade do Minho
/Portugal (CIEC/ UMinho). E-mail: [email protected]

Ayodele Floriano Silva

Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós Graduação em


Educação da Universidade Federal de São Carlos (PPGE/UFSCar).
Mestre em Educação pela mesma instituição em 2022. Pedagoga
pela UFSCar. Médica Veterinária pela Universidade Estadual de
Londrina – (UEL) em 2007 e especialista em Biologia Aplicada à
Saúde em 2008, na mesma instituição. Mestre em Ciências pela
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo
(FSP/USP) em 2011. E-mail: [email protected]

303
Carla Santos Pinheiro

Doutoranda em Educação pelo PPGE/FACED/UFBA. Mestra em


História/PPGEAFIN/UNEB. Profa. do CMEI Marisa Letícia Lula da
Silva da rede pública municipal de Lauro de Freitas/BA. Membro do
Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Infantil, Crianças e
Infâncias (GEPEICI) e do Grupo de Estudos Relações Étnico-
Raciais na Educação Infantil (ERÊ). Pesquisadora do Grupo de
Estudos e Pesquisas sobre Política Educacional, Cultura Escolar e
Ensino de História (GEPEN/PONDERA) da UVA. Membro do/a:
Fórum Municipal de Educação Infantil de Lauro de Freitas (FMEI-
LF); Posse de Conscientização e Expressão (PCE); Gr. de Est.
Relacionado à Educação Infantil (GEREI) e; Comitê BA da Campanha Nacional pelo Direito à
Educação. Ganhadora do XXI Prêmio Arte na Escola Cidadã (PAEC) e finalista do Prêmio Meu
Pátio é o Mundo 2022/ OMEP/ARCOR.

Cecília Maria Vieira

Doutoranda em Educação pela Universidade de Brasília - UNB


(2019-2023), Mestra em Educação pela Universidade Federal de
Goiás - UFG (2011), Especialista em Políticas Públicas e Docência do
Ensino Superior UFG (2005), Psicóloga pela Pontifícia Universidade
Católica de Goiás – PUC/GO (2004) e Pedagoga pela Universidade
do Vale Acaraú - UVA (2012). Professora da Educação Básica e do
Ensino Superior. Atuou como coordenadora, apoio técnico da
Gerência de Ensino Fundamental e da Gerência de Infância e como
psicóloga na Associação Pestalozzi Renascer e no Centro Municipal

de Apoio a Inclusão Maria Thomé Neto, na estimulação cognitiva e no atendimento de


crianças e suas famílias da Rede Municipal de Educação de Goiânia. Coordenadora do
NEADI/GENINHAS-UFG. Também coordena o Coletivo Diáspora Africana do Cerrado,
Membro externo da Comissão de Heteroidentificação da UFG, Associada da Associação
Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as – ABPN e Coordenadora Nacional do Fórum da
Educação Básica -ABPN. Ex- Presidenta do COMPIR de Goiânia– Go e atualmente
conselheira. Experiência na área de psicologia no atendimento clínico, seleção de pessoal,
grupos de trabalhos e na elaboração de projetos com ênfase em psicologia do Desenvolvimento
Humano, Inclusão, Saúde Mental com recorte nas Relações étnico-raciais, Infância negra,
Formação de professoras(es) e palestras. Experiência em trabalhos com Formação de
Professores para a Lei 10.639/03 e Práticas Pedagógicas Promotoras de Igualdade Racial na
Infância. E-mail: [email protected]

304
Christian Muleka Mwewa

Foi investigador Visitante no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da


Universidade de Lisboa (2017-2018). Realizou uma estância na
Universidad Nacional de La Plata (Argentina, 2017). Realizou
estudos pós-doutorais na Universidade Federal de Santa Catarina
(2017) e na Universidade Federal de Santa Maria (2017-2018).
Doutor em Ciências da Educação pela Universidade Federal de
Santa Catarina (2010) com estágio doutoral na Université Paris I
Panthéon-Sorbonne (2008). Professor nos Programas de Pós-
graduação em Educação (Mestrad/CPTL e Mestrado e Doutorado
/FAED) na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Líder do Grupo de Pesquisa
Formação e Cultura em Sociedade - EduForP (UFMS/CNPq). Gestor do Protocolo de Parceria
n. 15/2021‐UFMS com o Museu Nacional de Etnologia de Mocambique- MUSET
E-mail: [email protected]

Cristina Teodoro
Possui estágio de pós-doutoramento em infância e diferença, pela
Universidade de São Paulo. Doutorado em Educação: Psicologia da
Educação, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Mestrado em Educação, pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo e Graduação em Pedagogia, pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. Professora Adjunta Efetiva da Universidade
da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB).
Coordenadora do grupo de pesquisa Educação, Infância,
Racialização e Decolonialidade (GPEIRD). Tem experiência e
interesse nos seguintes temas: educação, identidade étnico-racial;
educação e relações étnico-raciais, infância; criança; Educação
Infantil, formação docente para a Educação Infantil, currículo e
prática docente para a Educação Infantil, políticas para a infância.

Débora Augusto Franco

Psicóloga. Especialista (2009) em Psicologia Jurídica pela


Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestra (2011) em
Psicologia, área de concentração “Estudos da Subjetividade”, pela
Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora (2017) em
Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio). Foi professora da área de Psicologia Escolar/Educacional
do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de
Janeiro (IFRJ), campus Belford Roxo e campus Pinheiral, entre 2018
e 2023, onde iniciou, em parceria com o IFRJ, campus Volta
Redonda, o Projeto de Extensão intitulado “Aquilombando a
Infância”. Foi vice-coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-
brasileiros e Indígenas– NEABI/IFRJ (2020/2022), campus Pinheiral

e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação em Direitos Humanos


(IFRJ/campus Pinheiral – 2020/2022). Em março 2023 assumiu a cadeira de Psicologia Social
e Relações Étnico-raciais no Departamento de Psicologia Social e Institucional, do Instituto de
Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail:
[email protected]

305
Diego dos Santos Reis

Pós-doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP).


Doutor, Mestre e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor do Departamento de
Fundamentação da Educação da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB) e do Programa de Pós-Graduação Humanidades, Direitos e
Outras Legitimidades (Diversitas/FFLCH) da USP. É líder do
Travessias – Grupo de Pesquisa em Filosofia e Educação
Antirracista (CNPq/UFPB). Ìyáwo do Ilé Àṣẹ Omiojúàró. E-mail:
[email protected]

Iberê Araujo da Conceição

Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós Graduação em


Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (PPGS/UFSCar).
Mestre em Sociologia pela mesma instituição (2021). Graduação
sanduíche em Ciências Sociais pela UFSCar pelo Programa de
Desenvolvimento Acadêmico Abdias do Nascimento. Bacharel em
Ciências Biomédicas pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” (UNESP). E-mail: [email protected]

Izzie Madalena Santos Amancio

Pedagoga/UNILAB, Mestra em Educação/UFSC, Doutoranda em


Educação/UFPR. Integrou a equipe técnica pedagógica da
Secretaria de Educação de Marcionílio Souza-BA, enquanto
Supervisora Técnica da Educação de Jovens e Adultos
(2022/2023). Gestora da Promoção da Igualdade Racial do
município de Marcionílio Souza-BA. Uma das organizadoras do
livro Traduzindo a África Queer (2019) e Transvivências Negras:
Entre afetos e aquilombamento (2021). Tem interesse nas seguintes
áreas de investigação: Diversidade, Diferenças e Educação,
Identidade racial e de gênero, formação de professores, culturas e
infâncias, com ênfase em crianças trans e negras.
[email protected]

Lucimar Rosa Dias

Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do Mato Grosso


do Sul (1988). Mestra em Educação pela Universidade Federal do
Mato Grosso do Sul (2007). Doutora em Educação pela Universidade
de São Paulo (2007). Professora da Universidade Federal do Paraná
atuando na Pós-Graduação na Linha Diversidade, Diferença e
Desigualdade Social em Educação (2014- ) Diretoria de Políticas em
Educação Étnico-racial e Educação Escolar
Quilombola/SECADI/MEC (2023-). E-mail: [email protected]

306
Marcelo Matheus Presse Leite

Graduando em licenciatura em pedagogia pela


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail:
[email protected]

Maria Luiza Miranda Paulino da Silva

Graduanda do Departamento de Educação Física da Faculdade de


Ciências da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho. Aluna bolsista do projeto de núcleo coordenado pela Ugaya
"valores civilizatórios afro-brasileiras na educação infantil: a
África em você, em mim, em nós". Grande admiradora de poesia,
arte, rap, saraus de poesia, grafite e outras manifestações culturais.
E-mail: [email protected]

Maria Simone Euclides

Doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará- CE.


Mestra em Extensão Rural e Pedagoga pela Universidade Federal
de Viçosa - MG. É pesquisadora filiada à Associação Brasileira de
Pesquisadores/as Negros/as (ABPN) e foi pesquisadora na Latin
American Studies Association (LASA), de 2019 a 2020. É
vinculada ao Núcleo Brasileiro, Latino Americano e Caribenho de
Estudos em Relações Raciais, Gênero e Movimentos Sociais (N
´Blac), certificado pelo CNPQ e o Grupo de Pesquisa Educação
Gênero e Raça (EDUCAGERA), da Universidade Federal de
Viçosa. Professora Adjunta II no Curso de Licenciatura em
Pedagogia do Departamento de Educação da Universidade Federal
de Viçosa e Professora Orientadora no Programa de Pós -
Graduação Stricto Sensu em Educação da mesma instituição. Tem
experiência na área de Educação e Diversidade, atuando principalmente nos seguintes temas:
gênero, raça, racismo, desigualdades educacionais, trajetórias educacionais e educação do
campo. E-mail: [email protected] do Departamento de Educação da
Universidade Federal de Viçosa e Professora Orientadora no Programa de Pós - Graduação
Stricto Sensu em Educação da mesma instituição. Tem experiência na área de Educação e
Diversidade, atuando principalmente nos seguintes temas: gênero, raça, racismo,
desigualdades educacionais, trajetórias educacionais e educação do campo. E-mail:
[email protected]

307
Matheus Henrique de Freitas

Estudante de Educação Física pela UNESP Bauru. Aluno


voluntário do projeto "Valores Civilizatórios Afro-Brasileiros na
Educação Infantil: A África em você, em mim, em nós" e bolsista
PIBIC de Iniciação Científica em educação étnico-racial,
orientado pela Dra. Andresa Ugaya. Professor de dança, bailarino
profissional, circense e artista independente, interessado pela
corporeidade na arte e na educação, pela política e pautas sociais.
E-mail: [email protected]

Nanci Helena Rebouças Franco

Pos-Doutora em Sociologia da Educacao pela Universidade do


Minho, Portugal. Drª em Educação pela Universidade Federal da
Bahia (UFBA), Mestra em Educacao pela UFBA. Licenciada e
Bacharel em Ciencias Sociais pela UFBA. Atualmente é Professora
Associada IV do Departamento 1 da Faculdade de Educacao da
Universidade Federal da Bahia e do Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPGE). Coordenadora do curso de Pedagogia (diurno).
Integra o Coletivo de Docentes Negras e Negros da Faced/UFBA.
Coordena o Grupo de Estudos ERE – Relacões Etnico-Raciais na
Educação Infantil. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Politica e
Gestao da Educacao, do Nucleo Integrado de Estudos e Pesquisas sobre Infâncias e Educacao
Infantil (NEPESSI), do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educacao Infantil, Criancas e
Infâncias (GEPEICI).

Rachel Benta Messias Bastos

Doutora em Educação (2009-2013); Mestre em Educação (2004-


2006) e Pedagoga (1999-2002) pela Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Goiás (FE/UFG). Professora no Instituto
Federal de Goiás - IFG, câmpus Goiânia Oeste (2010-
atual ). Coordena (IFG) o grupo de extensão, pesquisa e ensino
Geninhas em movimento na práxis para uma educação
antirracista. Integra o NEADI UFG; a Associação Brasileira de
pesquisadores/as negros/as e a Associação Nacional de Pós-
Graduação em Educação - ANPED. Desenvolve estudos e
pesquisas nas áreas de: Fundamentos Sócio-Históricos da
Educação; Epistemologia Negra; Educação das relações étnico-
raciais; Práticas pedagógicas antirracistas na educação infantil;
Ações Afirmativas e Políticas de promoção da igualdade racial. E-
mail: [email protected]

308
Rita de Cássia de Souza

Psicóloga pela Universidade Federal de Minas Gerais (1997),


mestrado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais
(2001) e doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo
(2006). Atualmente é Profª Titular da Universidade Federal de Viçosa.
Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Educação,
atuando principalmente nos seguintes temas: história da educação,
escola nova, indisciplina escolar, metodologias diferenciadas de
educação, construcionismo social, práticas colaborativas e dialógicas e
pesquisas relacionais.E-mail: [email protected]

Rogério Correia da Silva

Pedagogo pela Universidade Federal de Minas Gerais (1994), mestrado


em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (1999) e
doutorado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais
(2011). Possui pós-doutorado em Antropologia pela Universidade
Federal de Santa Catarina. Atualmente é professor associado da
Universidade Federal de Minas Gerais. Tem experiência na área de
Educação, com ênfase em Educação Pré-Escolar, atuando
principalmente nos seguintes temas: educação infantil, criança e infância
indígena, prática e processos de aprendizagens, organização de espaços e ambientes na
Educação Infantil, jogos e brincadeiras e culturas infantis, educação para as relações étnico
raciais. E-mail: [email protected]

Tainara Batista Barros

Pedagoga e Mestranda em Educação pela Universidade Federal de


Viçosa. Tem especialização em Psicopedagogia e Educação Especial
(2019) e Atendimento Educacional Especializado (2020). Possui
experiência de oito anos trabalhando na educação infantil em
instituição filantrópica na cidade de Viçosa (2011 - 2019). Atuou
como professora de ensino fundamental na Prefeitura Municipal de
Ervália-MG (2019). Atualmente trabalha como professora de ensino
fundamental pela Prefeitura Municipal de Teixeiras-MG. E-mail:
[email protected]

Tânia Aretuza Ambrizi Gebara

Pós-doutora pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação


da Universidade Federal de Minas Gerais Doutora (2014) e mestre (2004)
em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Graduada em
Pedagogia (1999) pela mesma instituição e graduada em Matemática
(Licenciatura Plena) pela Universidade Federal de São Carlos (1992).
Atualmente diretora do Centro Pedagógico da Escola de Educação Básica e
Profissional da UFMG - CP/EBAP/UFMG (2023/2025). Profª do Centro
Pedagógico, atua no 1º Ciclo de Formação Humana. Professora do
Mestrado Profissional Educação e Docência - Promestre/FaE/UFMG - Linha: Infâncias e
Educação Infantil. É coordenadora e uma das fundadoras do Projeto Ciclo Permanente de
Estudos e Debates sobre Educação Básica. Lidera o grupo de pesquisa Infâncias e Educação:
concepções e práticas no ensino fundamental de tempo integral. E-mail: [email protected]

309
Tatiane Cosentino Rodrigues

Profª do Departamento de Teorias e Prática Pedagógicas e do


Programa de Pós Graduação em Educação da UFSCar. É líder
do grupo de Pesquisa CNPq "Educação e relações étnico-
raciais". Coordenou projeto internacional do Programa de
Desenvolvimento Acadêmico Abdias Nascimento (CAPES).
Realizou pós-doutorado na Universidade Paris Nanterre (2019-
2020), no Centre de Recherche Éducation ef Formation
(CREF-EA 1589). Équipe Éducation Familiale et Interventions
Sociales auprès des familles com bolsa FAPESP e
Print/CAPES. E-mail: [email protected]

Thaís Regina de Carvalho

Doutora em Educação (2018) pela Universidade Federal do


Paraná (UFPR). Mestre em educação (2013) pela mesma
Universidade. Graduada em Pedagogia (2010) pela
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
Atualmente é professora do curso de pedagogia da Faculdade
de Educação da Universidade Federal de Goiás. Coordena
(UFG) o grupo de extensão, pesquisa e ensino Geninhas em
movimento na práxis para uma educação antirracista. Integra o
Núcleo de estudos africanos, afrodescendentes e indígenas -
NEADI-UFG; a Associação Brasileira de pesquisadores/as
negros/as - ABPN, e a Associação Nacional de Pós-Graduação
em Educação - ANPED. Desenvolve estudos e pesquisas na
área de: práticas pedagógicas antirracistas na educação infantil,
políticas de promoção da igualdade racial na educação básica e
ensino superior, estágio e formação docente. E-mail:
[email protected]

Valter Roberto Silvério

Professor Titular de Sociologia do Departamento e Programa


de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de
São Carlos - UFSCar (Brasil) /Pesquisador do CNPq. Member
of the International Scientific Committee for Volume IX, X and
XI of the General History of Africa - GHA – UNESCO.
Coordenou a tradução dos 08 volumes da História Geral da
África. Lider do Grupo de Pesquisas do CNPq:
Transnacionalismo negro e diáspora africana. Consultor da
UNESCO para a Revisão Técnica dos volumes IX, X e XI da
GHA. Email: [email protected]

310
Vânia de Fátima Noronha Alves

Doutora em Educação USP (2008). Mestre em Educação


Universidade Federal de Minas Gerais -UFMG (1998).
Especialista em Educação Física Escolar Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais - PUCMINAS (1995); Especialista em
Lazer UFMG (1994). Graduada em Educação Física UFMG
(1984). Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação
da PUCMINAS e dos cursos de graduação em Educação Física e
Pedagogia. É membro do Colegiado do PGED. Email:
[email protected]

Vitória Marinho Wermelinger

Doutoranda em Sociologia pelo Programa de Pós Graduação


em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos
(PPGS/UFSCar). Mestre em Sociologia Política pela
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
(PPGSP/UENF). Graduação em Ciências Sociais pela
Universidade Federal Fluminense de Campos dos Goytacazes
com período sanduíche na Universidade Eduardo Mondlane,
em Moçambique, pelo Programa de Mobilidade Acadêmica da
UFF. E-mail: [email protected]

311

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