Dissertação Keila Kumakura de Souza
Dissertação Keila Kumakura de Souza
Dissertação Keila Kumakura de Souza
Americana
2012
Keila Kumakura de Souza
Americana
2012
Souza, Keila Kumakura de
S715s Ser e viver rastafári: escola, cultura e inclusão / Keila
Kumakura de Souza. – Americana: Centro Universitário
Salesiano de São Paulo, 2012.
89 f..
Banca examinadora
Americana
2012
AGRADECIMENTOS
This study discusses the process of school integration of children that belong to the
Rastafarian culture through the point of view of their parents, when it comes to the
formal process of school education of their children; it identifies and analyzes the
consequences of school integration in the life of children belonging to this culture. From
the theoretical point of view, the study is guided by the reference of Rastafari culture
and by discussions about curriculum, difference, critical multiculturalism, inclusiveness,
subjectivity and identity, supported by the contribution of the contemporary thought.
Through the bibliographical search, it was possible to know the studies that permeate
the discussions on the subject. The field research brings the voices of families that are
related to the Rastafarian House of Menelik-old Rastafarian Community in São Paulo
State, as well as to Sana's families in Rio de Janeiro, by interviewing them. It is possible
to gather that the schools still have a long way to do on effectively inserting different
voices in their daily lives, voices with different tones and timbres, which can echo
through all the dimensions of education. The importance of the struggle of educators
and parents is realizable, as well as the children’s resistance to become this school on a
true reality.
10
Aqui, Zion seria a educação que pode ser construída a partir da inclusão, da
diversidade cultural no ambiente escolar, da compreensão da identidade e diferença na
escola, do “Eu com Eu”.
Desta forma, a introdução sugere uma transformação do processo de inserção
cultural no ambiente escolar: que cada “Eu e Eu” possa caminhar, construir e
possibilitar uma educação que parta da Babilônia a Zion.
Feitas as devidas preleções, explicitarei, então, minha ligação com a temática e o
início desta inquietação.
No ano de 2005, iniciei minha vida como educadora na cidade de Hortolândia,
interior de São Paulo. No ambiente de trabalho, conheci alguns alunos que gostavam de
música do gênero reggae e tinham uma banda deste ritmo caribenho.
Logo, aprofundei meus conhecimentos neste compasso e comecei, também, a
fazer parte da banda.
Com base nas traduções das músicas, nos estudos de seus cantores e
compositores, percebi que havia uma linguagem própria, um dialeto, um discurso por
entre as linhas e palavras que chegavam aos meus ouvidos.
As músicas a que tive acesso na época eram predominantemente de cantores,
compositores e grupos que pertenciam à cultura Rastafári. Sendo assim, iniciei a
pesquisa no sentido da significação daquelas palavras, daquela linguagem, que
transmitiam algo como um “ar” diferente.
Não consigo precisar neste momento o que sentia, o que era, mas sentia que algo
fluía por detrás, pelos lados, pela frente, pela transversal e em todas as direções havia
muito mais do que um ritmo.
Rastafári apresenta múltiplas interpretações: em algumas fontes é visto como
cultura, em outras como filosofia, como religião, é também interpretado como
movimento messiânico, político e social.
Neste estudo, trabalho Rastafári como cultura, pois entendo que a cultura de um
povo trata dos aspectos filosóficos, religiosos, das vestimentas, alimentação, linguagem,
enfim, de sua “maneira de estar no mundo”. A utilização do vocábulo cultura, aqui, visa
ampliar, expandir, desdobrar e não limitar, fixar ou reduzir esta interpretação.
A cultura, neste estudo, está pautada na contribuição de Geertz (1989), em seu
texto A interpretação das culturas.
11
Na teorização sobre este conceito, o autor entende cultura como sendo sistemas
simbólicos, “onde a cultura deve ser considerada não um complexo de comportamentos
concretos, mas um conjunto de mecanismos de controle” (GEERTZ, 1989, p.62).
Como um sistema de signos passíveis de interpretação, a cultura é, para Geertz,
“um fenômeno social, cuja gênese, manutenção e transmissão estão a cargo dos atores
sociais”.
A cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os
acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos;
ela é um contexto, algo dentro do qual eles (os símbolos) podem ser descritos
de forma inteligível – isto é, descritos com densidade (GEERTZ, 1989, p.
24).
12
O grupo de pessoas que ali frequentava formou uma comunidade, Comunidade
Rastafári do Interior Paulista – a Casa de Menelik, com sede inicialmente em Louveira e
posteriormente na cidade de Jarinú, igualmente localizada no interior de São Paulo.
A palavra comunidade gera diversas compreensões. Neste contexto específico,
me referenciarei a duas interpretações, sendo elas:
Comunidade relacionada ao material e econômico como “grupo
territorial de indivíduos com relações recíprocas, que se servem de
meios comuns para lograr fins comuns” (FICHTER, 1973, apud
GROPPO, s.d., p. 06)1.
Comunidade interpretada de um ponto de vista mais cultural e
simbólico, a comunidade é evocada como tendo caráter sagrado, já que
carrega consigo valores morais e religiosos, fundamentando uma
identidade coletiva baseada em símbolos compartilhados. (DURKHEIM,
apud GROPPO, s.d., p. 08)2.
Durante muitos anos frequentei este local e, pouco a pouco, fui me inserindo
nesta cultura, conhecendo e reconhecendo esta recente manifestação cultural no Brasil.
Digo recente, pois somente a partir da década de 80 do século XX surgiram
grupos organizados que vivenciavam Rastafári.
Anteriormente a este período, especificamente desde a década de 60 do mesmo
século, havia mulheres e homens rastafáris no Brasil, mas sem unidades específicas.
Tratava-se de manifestações isoladas, de algumas pessoas que conheceram a
cultura pela estética, pela música reggae ou pelo movimento negro.
Participei de muitos encontros regionais e nacionais, sendo estes gerais, ou seja,
com a participação e desenvolvimentos temáticos de homens, mulheres e crianças, ou
encontros voltados à mulher rastafári e suas temáticas, especificamente.
Em diversos momentos, nestes encontros, a educação das crianças emergia como
problemática das famílias.
Sendo a cultura Rastafári uma cultura diversa da hegemônica manifestada dentro
dos “muros da escola”, assim como muitas outras que também coexistem no mesmo
ambiente escolar formal, a criança rastafári não se sente inserida no currículo e no
1
Texto do autor disponível em:
http://www.educadoressociais.com.br/artigos/comunidade_sociedade_e_integracao_sistemica.pdf
2
Idem
13
ambiente escolar. Considero como “universal” a cultura hegemônica, que por meio das
relações de poder, ou saber-poder, se estabelece nas relações discursivas e subjetivas do
cotidiano escolar formal.
A cultura Rastafári, diferindo deste “padrão hegemônico”, seja na estética
(vestimentas, cabelo), na alimentação, na forma de se organizar (coletivamente), no
conteúdo e metodologia escolar, enfim, em sua cultura própria, não está contemplada,
debatida ou problematizada dentro do currículo hoje estabelecido, fixado e normatizado
pela educação formal.
As famílias apontavam suas dificuldades no processo de sociabilização das
crianças dentro do ambiente escolar formal e discutiam alternativas para a diminuição
das consequências desta problemática na educação das crianças.
Assim, este tema emergiu dos debates com os vários grupos ou casas Rastafári
do país.
A proposta desta pesquisa é apresentar como a escola e suas matrizes
curriculares trabalham ou contemplam as diferentes culturas em seu cotidiano.
Por intermédio da visão dos pais referente ao processo de escolarização de seus
filhos, identifico e analiso quais são os desdobramentos desta inserção escolar, na vida
de crianças pertencentes a esta cultura.
A pesquisa apresenta a cultura Rastafári e suas especificidades, problematizando
a inserção destas crianças no universo escolar.
Quais seriam então as problemáticas significativas cotidianas enfrentadas por
estas crianças no ambiente escolar formal? Como são recepcionadas e de que forma é
tratada a cultura Rastafári e suas especificidades no contexto escolar?
Por meio dos estudos bibliográficos sobre cultura e educação, ou das relações
culturais dentro da escola, percebi que o currículo era tema recorrente nestes estudos.
Assim, fui buscar, nos estudos do currículo e sua relação com a diferença cultural dos
diversos grupos sociais que se apresentam na escola, o subsídio para esta pesquisa.
Alguns autores como Veiga Neto (2002) e Silva (2004 ) salientam que as
mudanças nas perspectivas políticas, sociais e econômicas da modernidade
estabeleceram as necessidades e paradigmas adotados na educação em sua modernidade
seguidos até a contemporaneidade.
14
Veiga Neto (2002) traz o reflexo no currículo da mudança na sociedade da Idade
Média para a sociedade na Idade Moderna. O autor debate principalmente as
transformações ocorridas na percepção do espaço e do tempo. Assim, também, coloca
as transformações da Idade Moderna para a Contemporânea.
Silva (2004) apresenta uma visão da mudança de currículo, desde Comenius até
a era da “Revolução Industrial” e seu estrito vínculo com a mudança nos objetivos
político-sociais da sociedade de cada momento histórico.
A grande problemática aparece quando a educação está pautada em uma
estrutura político-social inexistente, uma estrutura educacional pautada em uma
sociedade da Modernidade com outra realidade.
E a sociedade Contemporânea, com suas múltiplas facetas culturais, sociais e
econômicas, organizada em uma estrutura desestruturante, ou seja, uma estrutura que se
move, que não é fixa, ainda não produziu sua educação.
A sociedade do século XXI fixa suas estruturas escolares no que se refere a
conteúdos, métodos, arquitetura com base nos parâmetros modernos. Tendo sido estes
já perpassados, há uma divergência entre a necessidade educacional/cultural deste
tempo e o que está sendo efetivamente oferecido.
Pelos estudos multiculturais é possível debater a inserção da temática da
diversidade cultural na educação, sendo este um movimento reivindicado pelos diversos
grupos culturais.
O multiculturalismo, como afirma Silva, “transfere para o terreno político uma
compreensão da diversidade cultural que esteve restrita, durante muito tempo, a campos
especializados como o da Antropologia” (2004, p. 86).
Primo pelo debate do multiculturalismo crítico, pois a inserção de diferentes
culturas no cotidiano escolar deve ir muito além do respeito e tolerância. Este debate,
antes de tudo, passa pelo âmbito das relações de poder.
Mas qual poder? Que tipo de poder estou me referindo?
O poder que se enuncia, que se anuncia, que se pulveriza nas relações sociais; o
poder discursivo, poder este que privilegia determinados conteúdos no currículo escolar
em detrimento de “outros”; o poder que, a partir dos “aparatos discursivos e
institucionais”, define o “diferente”.
15
O poder, por ora abordado, será pautado na contribuição de Foucault, que
“concebe o poder não como algo que se possui, nem como algo fixo, nem tampouco
como partindo de um centro, mas como uma relação, como móvel e fluido, como
capilar e estando em toda parte” (SILVA, 2004, p. 120).
O estudo e pesquisa da cultura Rastafári e seus desdobramentos sócio-políticos,
além de ser recente dentro do contexto cotidiano desta cultura, também é inovador no
meio acadêmico, não tendo sido encontrada, no processo da pesquisa bibliográfica,
nenhuma publicação, tese, monografia, artigo ou texto sobre o referido objeto.
Para a cultura Rastafári, esta pesquisa é de suma importância, pois, como
conforme exposto anteriormente, a problemática sobre a escolarização de crianças
rastafári que a pesquisa enfrenta é tema de muitas discussões em conferências e
congregações desta cultura, terminando sempre sem uma resposta ou solução à questão.
Sendo esta pesquisa uma possibilidade de ação, justifica-se a relevância social
na intenção de discutir a problemática de um movimento que, inserido na sociedade
atual, necessita de visibilidade para promover suas especificidades culturais no
cotidiano educacional de seus príncipes e princesas (as crianças na cultura Rastafári são
tratadas por estas denominações até o casamento), contemplando, assim, a teoria e a
prática.
O primeiro capítulo, com a revisão bibliográfica, apresenta o referencial teórico
contemporâneo, construído a partir de estudos sobre cultura e educação, currículo,
multiculturalismo, identidade e diferença bem como inclusão escolar.
O segundo capítulo, trata da cultura Rastafári, sua relação com o pan-
africanismo, seu mito fundacional na linhagem salomônica do império etíope, o
nascimento, na Jamaica, desta cultura e sua diáspora no Brasil.
Por fim, o terceiro e último capítulo apresenta a pesquisa de campo, os subsídios
para a pesquisa qualitativa, a utilização das narrativas como fonte para a pesquisa, as
famílias pesquisadas, suas narrativas e a análise das entrevistas à luz do referencial
teórico.
Assim convido o leitor a perceber as vozes que até este momento não foram
ouvidas e conhecer as possibilidades de a educação contemporânea sair da exclusão e
incluir as diferentes culturas no contexto escolar, a partir da leitura desta pesquisa que
se inicia.
16
1. O CURRÍCULO COMO PRODUTOR DE IDENTIDADE E DIFERENÇA: O
olhar do Eu sobre o “Outro”
Inicio este capítulo com a problemática do presente estudo, que tem a intenção
de refletir sobre o processo de inserção cultural de crianças Rastafári no ambiente
escolar formal.
Será pertinente contextualizar a educação em nossos dias, como ocorre a
inserção de outras culturas no ambiente escolar formal, sendo este pautado em uma
homogeneização cultural identitária.
Tratarei, aqui, como educação formal, ou ambiente escolar formal, a escola
institucionalizada, regular, seriada, obrigatória, curricular, ou seja, o ambiente
educacional que todas as crianças inseridas na pesquisa frequentam, objetivando o
progresso do nível escolar.
Assim, discuto a escola, seu papel e suas possibilidades na atualidade; a escola
que, em pleno século XXI, permanece com um viés educacional normatizador ou
homogeneizador.
Falo em pleno século XXI, pois o contexto social deste tempo necessita de um
novo ou diferente currículo educacional, que seja capaz de contemplar as diferenças, de
reconhecer a singularidade de cada indivíduo.
No texto De geometrias, currículos e diferenças, Veiga – Neto faz uma
retrospectiva de autores que trabalham com esta mudança na percepção do espaço e do
tempo, com o advento da contemporaneidade:
A escola e seus componentes curriculares atuais não dão conta das problemáticas
e complexidades apresentadas por esta sociedade contemporânea.
17
Utilizo o termo permanência do viés educacional normatizador e
homogeneizador, pois a escola formal, desde o momento de sua massificação ou
“democratização” do acesso, tem este papel ou objetivo: de tornar igual ou
homogeneizar culturalmente a sociedade atendida por ela.
Por meio dos estudos do currículo, pretendo assinalar a realidade escolar atual,
pois acredito que estes estudos mostram com clareza as relações que permeiam o
ambiente escolar, como saber, discurso, cultura, identidade, subjetividade e poder.
Também emergem dos estudos do currículo as possibilidades ou vieses
educacionais diversos da realidade escolar neste tempo.
A definição de currículo é muito diversa e complexa. Dentro da perspectiva à
qual este estudo se propõe, irei, então, seguir a não definição ou não conceitualização do
currículo. Tradicionalmente, o currículo é visto “como um caminho, um curso ou uma
listagem de conteúdos que devem ser seguidos” (GOODSON, 2005, Apud MATIAS,
2008, p. 64).
As primeiras definições sobre o currículo tratavam “a modelagem de condutas e
o disciplinamento dos corpos e se direcionavam tanto para os professores como para os
alunos” (MATIAS, 2008, p. 64).
Veiga-Neto traz suas reflexões sobre currículo, contribuindo com a intenção
desta pesquisa. Diz que “o currículo imprimiu uma ordem geométrica, reticular e
disciplinar, tanto aos saberes quanto à distribuição desses saberes ao longo de um
tempo.” O autor trabalha a relação da transformação do tempo e do espaço na
modernidade com o currículo.
18
A grande contribuição deste olhar para a presente pesquisa será na relação que o
autor faz da espacialização com o surgimento da diferença, que aqui será o ponto
fundamental a ser tratado no processo de estruturação curricular escolar.
...uma história do currículo não deve ser focalizada apenas no currículo em si,
mas também no currículo como fator de produção de sujeitos dotados de
classe, raça, gênero. Nessa perspectiva, o currículo deve ser visto não apenas
como expressão ou a representação ou o reflexo de interesses sociais
determinados, mas também como produzindo identidades e subjetividades
sociais determinadas. O currículo não apenas representa, ele faz. É preciso
reconhecer que a inclusão ou a exclusão no currículo tem conexões com a
inclusão ou exclusão na sociedade (SILVA, 2005, apud, MATIAS, 2008, p.
65).
19
...não existe sujeito a não ser como o simples e puro resultado de um
processo de produção cultural e social.
O louco, o prisioneiro, o homossexual, não são expressões de um estado
prévio, original; eles recebem sua identidade a partir dos aparatos discursivos
e institucionais que os definem como tais (SILVA, 2004, p. 120).
20
Nas teorias do currículo, entretanto, a pergunta “o quê?” nunca está separada
de outra importante pergunta: “o que eles ou elas devem se tornar?”. Afinal,
um currículo busca precisamente modificar as pessoas que vão “seguir”
aquele currículo. Na verdade, de alguma forma, essa pergunta precede à
pergunta “o quê?”, na medida em que as teorias do currículo deduzem o tipo
de conhecimento considerado importante justamente a partir de descrições
sobre o tipo de pessoas que elas consideram ideal (SILVA, 2004, p. 15).
21
Como apresentei anteriormente, principio de um pressuposto: o de que as
escolas aqui pesquisadas trabalham com um viés normatizador e hegemônico. Vejo o
currículo como o principal instrumento deste aparato.
Só é possível manter este aparato hegemônico por meio das relações de poder.
Aqui tratarei como relações de poder o “poder capilar” de Foucault, o poder
descentralizado, o poder que está presente nas relações sociais, o poder que “está em
toda parte e que é multiforme” (SILVA, 2004, p. 147).
Silva traz à tona esta discussão: “que o currículo é também uma questão de
poder” (SILVA, 2004, p. 16).
E é sob esta ótica das relações de poder que se estabelecem as diferenças, sejam
estas culturais, de gênero ou étnicas. “As diferenças estão sendo constantemente
produzidas e reproduzidas através de relações de poder” (SILVA, 2004, p. 88).
Assim, a diferença se apresenta na estrutura escolar pela fixação promovida pelo
currículo, sendo este construído a partir das relações de poder.
A diferença, neste trabalho, será abordada na perspectiva de Silva, não
simplesmente como resultado de um processo, mas sim como algo que é
constantemente produzido, “compreendida, agora, como ato ou processo de
diferenciação” (SILVA, 2000, p. 76).
Primo pelo termo diferença em detrimento de diversidade, pois, nos textos que
me referenciaram, a diversidade aparece com uma perspectiva mais “liberal” ou
limitada do que, nesta pesquisa, quis denominar com o termo diferença.
A diversidade, comumente é utilizada no paradigma do multiculturalismo
“liberal” ou “humanista”. Aqui trabalho com a perspectiva do multiculturalismo crítico,
ao qual creio se adequar o uso da diferença.
O termo diferença também não é por si só, a diferença, mas é relacional com a
identidade. A diferença ou a identidade não existem sozinhas. Uma só é pelo que a
outra não é.
Silva afirma: “Assim como a identidade depende da diferença, a diferença
depende da identidade. Identidade e diferença são, pois, inseparáveis” (2000, p. 75).
A diferença também é aqui tratada de acordo com Silva, como sendo:
Dizer que são atos de criação significa dizer que não são “elementos” da
natureza, que não são essências, que não são coisas que estejam
simplesmente aí, à espera de serem reveladas ou descobertas, respeitadas ou
toleradas. A identidade e a diferença têm que ser ativamente produzidas. Elas
não são criaturas do mundo natural ou de um mundo transcendental, mas do
mundo cultural e social. Somos nós que as fabricamos, no contexto de
relações culturais e sociais. A identidade e diferença são criações sociais e
culturais (SILVA, 2000, p. 76).
Nossos povos têm suas raízes nos – ou, mais precisamente, podem traçar suas
rotas a partir dos – quatro cantos do globo, desde a Europa, África, Ásia;
foram forçados a se juntar no quarto canto, na “cena primária” do Novo
Mundo.
... A distinção de nossa cultura é manifestamente o resultado do maior
entrelaçamento e fusão, na fornalha da sociedade colonial, de diferentes
elementos culturais africanos, asiáticos e europeus (HALL, 2003, p. 31).
24
A cultura Rastafári, que será abordada no segundo capítulo desta pesquisa, é
fruto do hibridismo das culturas cristã, judaica, africano-etíope e caribenha. Fica, neste
contexto, impossível classificá-la, mas, mesmo assim, na realidade social e escolar, esta
cultura é tratada como o “outro”, seja ele “fonte de todo o mal”, “sujeitos plenos de uma
marca cultural”, ou “alguém a tolerar”.
Aqui utilizo o conceito de Canclini para culturas híbridas ou hibridação:
“processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de
forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (2006,
p. XIX).
A cultura Rastafári faz parte dos movimentos pan-africanos, que são culturas em
diáspora, ou seja, culturas representadas fora de seu território ou desterritorializadas.
Ainda focando a realidade desta pesquisa, que estuda uma cultura afro-caribenha no
Brasil, a ideia de diáspora é a “própria ideia de movimento, de viagem, de
deslocamento: diáspora, cruzamento de fronteiras, nomadismo” (SILVA, 2000, p. 86).
Para o conceito de diáspora me aproprio do pensamento de Hall:
Sendo a identidade cultural Rastafári uma cultura híbrida, torna-se tarefa difícil
focá-la pela identidade. “A identidade que se forma por meio do hibridismo não é mais
integralmente nenhuma das identidades originais, embora guarde traços delas”
(SILVA, 2000, p. 87).
Destaco, assim, que a identidade e a diferença estão interligadas neste debate,
pois uma não existe sem a outra. Para falar em diferença é preciso conhecer a identidade
da qual esta diferença se diferencia.
Inicio a exposição do referencial que problematiza a inserção do “outro” no
contexto escolar.
25
1.1 EDUCAÇÃO E INSERÇÃO CULTURAL: A voz do outro no contexto escolar
Para discutir o processo de inserção da cultura Rastafári no contexto escolar,
referencio-me inicialmente nos textos e leis sobre a inclusão escolar, partindo para uma
reflexão sobre a contribuição das teorias multiculturais na escola e, assim, finalizando
com a institucionalização da Lei 10.639 e sua colaboração para a problematização da
diferença no currículo.
As leis que asseguram a inclusão escolar, seja esta inclusão feita por quaisquer
motivos: cultural, físico, mental ou de gênero, por exemplo, têm a intenção do não
silenciamento da diferença no contexto sociopolítico.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é o principal suporte
para a inserção ou inclusão social em todos os âmbitos, mas como aqui trato do
ambiente escolar, este será o foco.
Destaco alguns dos principais pontos para a inclusão escolar contidos neste
documento:
Artigo 1°
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos.
Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em
espírito de fraternidade.
Artigo 2°
Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades
proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente
3
Texto disponível em: http://inclusaoja.com.br/legislacao/
26
de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra,
de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra
situação. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto
político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da
pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autônomo ou
sujeito a alguma limitação de soberania.
Artigo 26°
1. Toda a pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo
menos a correspondente ao ensino elementar fundamental. O ensino
elementar é obrigatório. O ensino técnico e profissional deve ser
generalizado; o acesso aos estudos superiores deve estar aberto a todos em
plena igualdade, em função do seu mérito.
2. A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao
reforço dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais e deve
favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e
todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das
atividades das Nações Unidas para a manutenção da paz.
3. Aos pais pertence à prioridade do direito de escolher o gênero de educação
a dar aos filhos4.
4
Texto disponível em http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm
27
satisfazê-las variam segundo cada país e cada cultura, e, inevitavelmente,
mudam com o decorrer do tempo.
2. A satisfação dessas necessidades confere aos membros de uma sociedade a
possibilidade e, ao mesmo tempo, a responsabilidade de respeitar e
desenvolver a sua herança cultural, linguística e espiritual, de promover a
educação de outros, de defender a causa da justiça social, de proteger o meio-
ambiente e de ser tolerante com os sistemas sociais, políticos e religiosos que
difiram dos seus, assegurando respeito aos valores humanistas e aos direitos
humanos comumente aceitos, bem como de trabalhar pela paz e pela
solidariedade internacionais em um mundo interdependente.
5
Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0008/000862/086291por.pdf
28
A Declaração de Salamanca é uma estrutura de ação para a educação especial
que foi organizada na conferência Mundial em Educação Especial promovida pelo
governo da Espanha em cooperação com a UNESCO, realizada em Salamanca entre
sete e dez de junho de 1994. Em seus artigos, trata das necessidades de mudança na
educação para o atendimento às diferenças:
6
Disponível em http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/salamanca.pdf
29
A inclusão é um movimento social mais amplo, cuja potência é problematizar
os critérios e as condições de pertencimento social que forjam processos de
subjetivação e produção de identidades. Pautando-se na noção de alteridade,
refuta-se a naturalização e a fixação de uma identidade prescrita, cujo padrão
de desempenho intelectual e social delineia uma performance e / ou idealiza
um sujeito previsível, (re) produtivo e normatizado (2010, p. 239).
Sendo este, o conceito de inclusão escolar no qual este estudo se pauta, é preciso
discutir esta realidade escolar, que impossibilita ou limita o debate da alteridade dentro
dos muros da escola.
Mantoan narra o esgotamento do modelo educacional vigente, que mantém um
padrão normativo, e a necessidade de um novo paradigma do conhecimento (2003, p.
16).
A autora afirma que a escola não pode mais ignorar a realidade que a rodeia,
marginalizando as diferenças (MANTOAN, 2003, p. 17).
Ainda dialogando com Mantoan, não há como reformar o atual modelo
educacional se não houver uma reforma das mentes daqueles que estão, de alguma
forma, envolvidos com este ambiente, sejam alunos, pais, professores, gestores ou
comunidade escolar em geral (MANTOAN, 2003, p. 20).
Baseada em Marsha Forest, a autora faz uma comparação com o ideal de
educação inclusiva e a ideia do caleidoscópio:
A inclusão sinalizada por Mantoan é uma inclusão radical. A autora crê que esta
deva ser total, deva abranger, em seu interior, todas as formas de diferença. Assim,
encerro esta contribuição do debate da escola inclusiva com as palavras da autora:
31
O multiculturalismo que aqui defendo para uma possível sociabilização das
crianças Rastafáris no ambiente escolar não é de uma convivência harmoniosa entre as
diferentes culturas, mas sim da problematização desta convivência no currículo escolar.
Quando trato da problematização destas diferentes culturas presentes no
cotidiano escolar, refiro-me à inserção desta diferença cultural nos conteúdos
programáticos da escola, não de forma passiva ou pacífica, mas sim ativamente,
conflituosamente, exposta a partir de suas representações e relações de poder.
Encerro minha exposição da relação da pesquisa com o multiculturalismo com
uma referência de Silva, que afirma:
O multiculturalismo nos faz lembrar que a igualdade não pode ser obtida
simplesmente através da igualdade de acesso ao currículo hegemônico
existente, como nas reivindicações educacionais progressistas anteriores. A
obtenção da igualdade depende de uma modificação substancial do currículo
existente. Não haverá “justiça curricular”, para usar uma expressão de Robert
Connell, se o cânon curricular não for modificado para refletir as formas
pelas quais a diferença é produzida por relações sociais de assimetria
(SILVA, 2004, p. 90).
32
A expressão tem origem nos Estados Unidos, local que ainda hoje se
constitui como importante referência no assunto. Nos anos 60, os norte-
americanos viviam um momento de reivindicações democráticas internas,
expressas principalmente no movimento pelos direitos civis, cuja bandeira
central era a extensão da igualdade de oportunidades a todos. No período,
começam a serem eliminadas as leis segregacionistas vigentes no país, e o
movimento negro surge como uma das principais forças atuantes, com
lideranças de projeção nacional, apoiado por liberais e progressistas brancos,
unidos numa ampla defesa de direitos. É nesse contexto que se desenvolve a
ideia de uma ação afirmativa, exigindo que o Estado, para além de garantir
leis antissegregacionistas, viesse também a assumir uma postura ativa para a
melhoria das condições da população negra (2002, p. 198).
A luta pelos direitos civis nos Estados Unidos tem suas raízes nos ensinamentos
de Marcus Garvey, um dos ícones dentro da cultura Rastafári, que iniciou o processo de
“emancipação” do “negro” nas Américas, do qual trato no segundo capítulo desta
pesquisa.
As ações afirmativas, com a intenção de representatividade das “minorias” nas
estruturas de poder, como o acesso à educação, saúde, trabalho ou direitos em equidade,
independente de gênero, etnia, religião, entre outros, chegam ao âmbito educacional.
Como dito anteriormente neste estudo, a escola, por meio do currículo, é
promotora da normatização ou da padronização. Assim, como ação afirmativa, em
2003, o Governo Federal Brasileiro instituiu a Lei 10.639/03, que torna obrigatório o
ensino de História e Cultura Afro-brasileira nas escolas públicas e privadas, inserindo
no currículo escolar este conteúdo velado pelas relações de poder que perpassam a
seleção dos conteúdos a serem trabalhados na escola.
Neste trabalho consta, em anexo, a Lei 10.639/03, na íntegra. Esta lei traz todos
os aspectos jurídicos desta implementação.
A Lei foi instituída a partir das lutas e reivindicações do Movimento Negro
organizado e de outros grupos que há muito lutam pela igualdade racial no país. Aqui
ainda uso o termo “racial”, mesmo estando ciente de seu desuso, pois é dessa forma que
estas organizações tratam o tema.
Nilma Lino Gomes, que foi uma das intelectuais e militantes ativas neste
processo de implementação, reflete sobre como uma “outra” forma de produção do
conhecimento pode colaborar para a inserção dos debates da diferença na escola:
7
Texto da autora, disponível em: http://www.acordacultura.org.br/artigo-25-08-2011
34
2. RASTAFARI: Etiópia, Jamaica, suas vozes emergem no Brasil
Rastafari, como já explicitado anteriormente, será tratado como cultura, visto o
entendimento que esta pesquisadora possui a respeito deste movimento pan-africano.
O pan-africanismo foi um movimento ocorrido no final do século XIX e início
do século XX, sendo que, sua expansão aconteceu a partir do ano de 1920. Seu
nascimento ocorreu não no continente africano, mas sim nas Américas, por meio dos
povos africanos, na diáspora8.
O pan-africanismo foi um movimento sociopolítico e cultural que tinha como
objetivo a união do povo africano e sua superação da opressão física e mental imposta
pelo processo de colonização e de escravidão europeu abrangendo os séculos XV a
XIX.
De acordo com Esedebe o pan-africanismo pode ser considerado como sendo:
Neste momento, farei um recorte para iniciar este capítulo com a história
entrelaçada de Rastafári com a Etiópia Antiga e, assim, depois, voltar ao pan-
africanismo, quando for tratar da Jamaica.
8
Diáspora: Palavra de origem grega significando “dispersão”, designando, de início, principalmente o movimento espontâneo dos
judeus pelo mundo. Hoje se aplica também à desagregação que, compulsoriamente, por força do tráfico de escravos, espalhou
negros africanos por todos os continentes. (LOPES, 2004, p. 236).
35
Segundo a tradição bíblica e também a do livro Kebra Negast, que para a cultura
Rastafári é um livro sagrado assim como a Bíblia, pois conta a história dos Reis etíopes
e a árvore genealógica de Haile Selassie, a Rainha Makeda, conhecedora da sabedoria
do Rei Salomão de Israel, foi visitá-lo. Ficou impressionada com sua sabedoria e crença
no Deus de Israel, ou seja, em sua fé monoteísta.
Na bíblia, a história termina com o retorno da Rainha Makeda à Etiópia,
transformando este reino africano em um reino cristão. Já o livro Kebra Negast- A
glória dos Reis - relata que este encontro não foi somente uma admiração desta Rainha
ao Rei Salomão.
O livro Kebra Negast relata a união da Rainha Makeda com o rei Salomão e o
nascimento de um filho desta união. Esta criança, Menelik I, seria o primeiro imperador
etíope da linhagem do Rei Salomão.
Esse Império Etíope possui sua linhagem na raiz de Davi, Jessé, Judá, Jacó-
Israel, Isaque, Abraão e Adão, por meio do filho do relacionamento da
Rainha Makeda da Etiópia, ou Rainha de Sabá, com o Rei Salomão de Israel.
Essa história é contada na bíblia em 2Crônicas:9 e 1Reis:10, mas é mais bem
detalhada em um livro sagrado etíope intitulado Kebra Negast, que significa
‘a Glória dos Reis’. O intento desse livro é mostrar a linhagem dos Reis
etíopes como tendo origem nos patriarcas bíblicos, assim como a origem da
fé Cristã. (ANDRADE, 2009, p. 08).
36
A cultura Rastafári crê em Haile Selassie como messias, como Cristo Negro,
como Rei dos Reis, Leão conquistador da tribo de Judá. Alguns grupos que manifestam
esta cultura o veem como reencarnação de Cristo, outros como um messias salvador
como Cristo, mas não Cristo reencarnado.
Haile Selassie é o foco da cultura Rastafári, sendo este o centro da fundação
desta cultura, pois sua coroação é o marco inicial da cultura na Jamaica.
É neste momento que muitos jamaicanos atentos às palavras de Marcus Garvey
interpretam a coroação de Selassie como a vinda da salvação, da redenção do povo
negro na África e na diáspora.
A coroação de Selassie também é interpretada pela cultura Rastafári como o
exemplo de igualdade entre homem e mulher, pois a coroação, na Etiópia, até aquele
momento, se dava de outra forma: o imperador era coroado sozinho e, depois de três
dias, a imperatriz era coroada sem cerimônia.
No dia de sua coroação, Ras Tafari quebrou um protocolo ao dizer que sua
esposa seria coroada com ele, ao mesmo tempo. Antes, a rainha era coroada
sem cerimônias, três dias após o rei. Imperatriz Menen foi coroada instantes
depois de Tafari e sentou-se ao seu lado no trono.
Esse ato inspira os seguidores de Ras Tafari, e mostra o local em que o
Homem e a Mulher devem estar, tanto em suas vidas conjugais, como no
governo da Nação e da Vida, lado a lado, de uma só vez, sempre juntos, em
harmonia, equilíbrio e respeito, com igual importância. Alpha e Omega
(masculino e feminino) (ANDRADE, 2010)9.
9
Texto da própria autora, disponível em: http://omeganyahbinghi.blogspot.com/2010/09/rastafari-vida-e-
historia.html
37
inteligente, com grande conhecimento em estudos bíblicos e de diversas religiões e
voltado para o processo de modernização da Etiópia.
38
pouso, misteriosamente, a chuva parou e o sol surgiu. E muitos dos que ali estavam
presentes interpretaram este como um sinal de sua divindade:
Na tese de Danilo Rabelo, o autor relata ainda que o Imperador fez convite aos
líderes ou anciões Rastafáris Prince Edwards e Filmore Alvaranga, para participarem de
duas cerimônias ante sua presença, assim trazendo uma momentânea inclusão da
Cultura Rastafári ao contexto político da Jamaica.
A intenção deste subtítulo é de trazer ao conhecimento do leitor a ligação entre
Etiópia, Haile Selassie e a cultura Rastafári, de uma forma a não primar por um olhar de
defesa desta figura, mas sim mostrar as dicotômicas posições que circundam a
apresentação de Haile Selassie como divindade.
Assim, tendo explicitado a ligação da Etiópia com a cultura Rastafári e a figura
de Haile Selassie, inicio então a relação de Rastafári com o país caribenho Jamaica,
fazendo a inter-relação Etiópia - Jamaica.
39
Os europeus (espanhóis) chegaram em 1494 com Cristovão Colombo,
colonizaram a ilha para exploração e, em pouco tempo, exterminaram os indígenas:
Assim como a maioria dos países que utilizaram a mão-de-obra escrava africana,
a Jamaica criou uma estratificação social às etnias escravizadas.
O negro, historicamente, era tratado com inferioridade. Inclusive, segundo o
autor Danilo Rabelo (2006, p. 46), havia uma pigmentocracia, de acordo com a qual,
quanto mais clara a pele, mais leve era o serviço e, quanto mais escura a pele, mais este
escravo era inferior perante os demais.
Este contexto foi traçando uma insatisfação social dos negros na ilha, que
culminou em diversos movimentos de luta por sua emancipação:
40
2.2.1 O Profeta Marcus Garvey
Marcus Mosiah Garvey nasceu em 1887 em St. Ann’s Bay, na Jamaica. Seu pai,
descendente dos Marroons10, além de mestre de obras, que se tornou conhecido por suas
construções de pedra e tijolos, era diácono da Igreja Metodista e considerado o
advogado da vila.
Como a maioria das crianças jamaicanas, não conseguia terminar seus estudos,
devido à precariedade econômica, ao déficit de vagas nas escolas e à necessidade de
estas crianças trabalharem.
A educação na colônia jamaicana era controlada e deteriorada pela metrópole,
que assim como muitos governos ou estruturas de poder, não permitiam o
desenvolvimento intelectual de seus colonos, visto que a intenção da metrópole era
formar operários, vaqueiros, agricultores e não pessoas emancipadas.
De 1910 a 1911, Garvey viajou para América Central, trabalhando então com seu tio em
uma plantação de banana. Foi com esta experiência que “sentiu na pele”, toda
exploração e humilhação pelas quais passavam os trabalhadores imigrantes.
Nos vários países pelos quais passou, Garvey percebeu o tratamento
diferenciado e o processo de exploração que sofria a grande maioria da população. Tais
experiências reforçam sua visão política e cultural:
10
Eram comunidades rurais do Caribe, de resistência à escravidão, que mantinham suas tradições e
lutavam contra a opressão do colonizador.
41
Uma crítica ao modelo econômico de Garvey é que este reproduz os preceitos do
lucro capitalista, substituindo um capitalismo controlado por uma maioria “branca” por
um controle de uma associação de “negros”.
Há por parte do movimento Garveyta, assim como de outros movimentos de
emancipação da etnia negra nas Américas, uma sobreposição do negro pelo branco. A
intenção desta pesquisa não é a de defender este olhar, mas sim de explicitar os
paradigmas defendidos pelo movimento.
Em primeiro de Agosto de 1914, Garvey cria a U.N.I.A. (Associação Universal
para o Progresso do Negro), tendo sua primeira sede na Jamaica, contando com Garvey
como Presidente, Adran A. Daily como secretário, e Amy Ashwood como secretária
correspondente (a qual viria a ser a primeira esposa de Garvey). Inicia-se a organização
proposta por Garvey:
42
de poder que perpassam o processo de colonização europeia na África, Ásia e Caribe.
Em seu manifesto, Garvey estipulou claramente os objetivos da Associação:
Garvey propunha uma emancipação da etnia negra em todos os locais onde esta
havia sido escravizada e inferiorizada. Assim, em muitos de seus discursos, é comum a
propagação de uma superioridade do negro e até de um Imperialismo Negro.
O momento histórico era propício para o surgimento de um líder como Garvey,
pois, após a participação na 1ª Guerra Mundial, os negros estavam cada vez mais
descontentes, também devido à Revolução de Outubro na Rússia em 1917 e ao impacto
dela sobre os movimentos de libertação nacional.
Garvey viaja para os EUA, em 1916, com o intuito de conhecer a realidade
norte-americana e expandir as ações da U.N.I.A.; viajou por 38 dos então 48 estados
norte-americanos. A partir deste reconhecimento do território, decidiu criar uma
U.N.I.A. na cidade de Nova Iorque. Seu envolvimento com esta unidade foi tão grande
que, em 1917, as oficinas centrais de Kingston haviam se convertido em uma extensão
dela. Os motes espalhados pela U.N.I.A. eram “Um Deus, um objetivo, um destino” e
“África para os africanos de casa ou no exterior”.
Os preceitos aqui expostos estão relacionados diretamente às ideias de Marcus
Garvey, visto que em muitos momentos, a perspectiva defendida pelo líder jamaicano se
contrapõe ao referencial teórico exposto no primeiro capítulo por esta pesquisadora.
Garvey fez um chamado na véspera de sua saída da Jamaica, para que os negros
participassem do movimento mundial objetivando promover o interesse nacional,
industrial, comercial, social e intelectual da raça negra. Esse chamado culminou na
união da U.N.I.A. e a Liga de Comunidades Africanas, um verdadeiro marco na luta dos
povos negros no século XX.
43
Na década seguinte, o movimento encontrou seu apogeu. Entre 1925 e 1927, nos
Estados Unidos, existiam entre 719 e 725 divisões, e mais de 1100 divisões haviam se
disseminado por 41 países, conforme se segue:
Em 1919, Garvey não somente estabeleceu a Black Star Line, mas também
fundou a Corporação Negra de Indústrias (NFC). A NFC criou uma série de
negócios, entre os quais temos a cadeia de tendas cooperativas de alimentos,
um restaurante, uma lavanderia a vapor, uma sala de costura, uma tenda de
modas e um editorial. A corporação estava valendo 1 milhão de dólares,
segundo uma cédula do estado de Delaware. A corporação oferecia “200 mil
ações ordinárias à raça negra pelo motivo de 5 dólares por cada ação”. O
objetivo era: construir e por em funcionamento fábricas nos grandes centros
industriais dos EUA, América Central, nas Índias Ocidentais e África, para
fabricar qualquer tipo de mercadoria comerciável (LEWIS, 1989 apud
ANDRADE, 2010, p. 35).
Em 1925, Garvey foi acusado e culpado por fraude pelas ações da Black Star
Line, sendo sentenciado a cinco anos de prisão, no estado da Geórgia.
Em novembro de 1927, Garvey foi perdoado pelo então Presidente Calvin
Coolidge e deportado para a Jamaica.
45
Lá chegando, fortaleceu a U.N.I.A. jamaicana e intensificou suas ações no
âmbito cultural, criando a Edelweiss Park Amusement Co. Ltd., com a intenção de
promover eventos culturais em Kingston.
Durante a década de 30 do século XX, as relações entre Garvey e a U.N.I.A.
norte-americana ficaram estremecidas, pois ambos queriam ser a central da organização.
Em 1935 Garvey mudou-se para Londres, mantendo sempre contato com a
U.N.I.A. jamaicana. Foi neste ambiente e em função do clima do local que sua saúde
ficou debilitada por ataques de pneumonia e asma.
Em janeiro de 1940, teve um ataque cardíaco que paralisou seu lado direito. Em
junho do mesmo ano, Marcus Mosiah Garvey faleceu aos 53 anos de idade.
Na tradição popular jamaicana é considerado como um profeta inspirado por
Deus (Um Deus na visão cristã, visto que a cultura aqui relatada tem sua fundação
judaico-cristã).
Nos livros de história, Marcus Garvey aparece como um líder político
interessado em promover a igualdade socioeconômica entre negros e brancos:
47
Também há a intenção, por parte dos rastafáris, quando não compram produtos
externos, de não contribuir com as grandes empresas, assim, sempre que necessitam
consumir, procuram comprar de pequenos produtores.
É muito comum os rastafáris denominarem esta vivência como uma vivência
ancestral, pois se espelham em alguns exemplos de antigos povos africanos que
retiravam seu sustento da natureza, vivendo coletivamente, onde cada um, dentro
daquela comunidade, tem seu papel social, para que nada falte àquele coletivo.
Citam ainda que esta seria a vivência original, do primeiro homem e mulher na
terra. Assim, salientam que os rastafáris estão a trazer novamente este modo de vida à
sociedade atual.
Andrade, quando se refere à Lei original, refere-se à Lei do Amor, que, para a
cultura Rastafári, seria a vivência pacífica e harmoniosa com todos os seres.
Em sua tese de doutorado, Danilo Rabelo traz várias afirmações das simbologias
Rastafári, das quais destaco as que ele, citando Jah Ahkell, reconhece como comuns
entre os diversos grupos:
Nas falas dos autores sobre a cultura Rastafári, ou dos integrantes desta cultura,
sempre que há a referência a Deus, este é o Deus cristão, Deus único, onipotente,
onisciente, onipresente. Novamente ressalto que a base desta cultura é judaico-cristã.
Em alguns momentos, este Deus também será denominado de Jah Rastafari, forma
como os rastafáris se referem a Deus.
11
Texto da própria autora, disponível em: http://omeganyahbinghi.blogspot.com/2010/09/rastafari-vida-e-
historia.html
48
Sobre a divindade de Selassie, podemos dizer que todos os grupos rastafáris, ou,
como é comum dizer dentro desta cultura, todas as casas rastafáris, concordam, mas de
forma diferente. Há alguns grupos que veem Selassie como Deus encarnado, ou seja, o
próprio Deus. Outros acreditam que ele é a reencarnação de Jesus Cristo e há, ainda,
organizações que veem em Selassie um messias, assim como Jesus, porém não o
próprio reencarnado. De uma maneira ou de outra, todas as manifestações da cultura
Rastafári creem em Selassie como poder de Jah.
No texto de Uiarra, veja-se como é a visão apresentada sobre a divindade de
Selassie:
Pelos estudos e vivências que tive sobre Rastafari nos últimos anos, posso
afirmar e explicar que, quando se referem ao negro, não estão se referindo à pele negra,
12
Texto do autor, disponível em http://www.geledes.org.br/jamaica/orastafari27/09/2009.html
50
mas sim ao reconhecimento da ancestralidade negra. Um descendente de negros pode
ter a pele branca, mas ainda é um afro-descendente.
Também segundo meu entendimento sobre esta divisão que a cultura Rastafári
faz acerca de branco e negro, o branco representa o colonizador, o explorador, o
“sistema capitalista”. O negro seria o povo colonizado, explorado, ou que sofre com as
problemáticas socioeconômicas.
Ainda neste texto de Uiarra o autor, quando se refere ao negro e ao branco, ou ao
bem e ao mal, está vinculado sim a um olhar cartesiano, maniqueísta, mas é necessário
perceber que esta cultura está pautada em um paradigma cristão, que por sua vez tem
seus preceitos estruturados em um contexto cartesiano, neste dualismo de bem e mal,
Deus e diabo e céu e inferno.
A alimentação dentro da cultura Rastafari é denominada de vital, ou seja, o que
consideram alimentos vivos. Rejeitam-se alimentos mortos que contenham sangue,
porque os adeptos da cultura Rastafári creem que Jah lhes deu todas as sementes, frutos,
raízes, folhas, para sua sobrevivência, por isso não precisam se alimentar de animais
mortos. Esta alimentação tem como base a vida, a vida que os alimenta, a luz que entra
nos corpos e os mantém saudáveis, desde os primórdios:
52
O ritual congregacional e místico é o Nyahbinghi14. A forma de louvor vem por
meio dos tambores. O Nyahbinghi é, para os rastafáris, a batida do coração, o um, dois.
Para a cultura Rastafári, este é o som natural da vida que os religa com os ancestrais.
Assim, como em todas as culturas de matriz africana, os tambores são louvados
e respeitados como instrumentos sagrados:
53
Assim, se algum homem não respeita sua companheira ou sua “irmã” como uma
rainha, então está se desviando da vivência Rastafári.
Dentro da cultura Rastafári, as mulheres costumam se organizar também
individualmente para racionarem sobre seus propósitos e necessidades próprias.
O modo de vida rastafári busca viver de acordo com a origem, em sintonia com
a natureza, com as leis pregadas por Jesus Cristo, “[...] se inspirando ritualisticamente
nos tambores africanos” (ANDRADE, 2009, p. 14)16, utilizando a GanJah (cannabis)
em suas meditações, tratamentos para cura etc..
A utilização da ganjá, cannabis sativa, pelos rastas, também se dá de forma
muito variada, creio que se pode afirmar que é, sobretudo, de consciência individual.
Alguns grupos não a utilizam nem veem benefícios em seu consumo. Outros grupos a
consagram como erva sagrada, trazida por Jah para a meditação, para religá-los com o
cosmo espiritual. Também é interpretada como forma de libertação para o homem
negro. Ainda hoje existem membros da cultura Rastafári que a consomem, mas que não
a sacralizam, não faz nenhum tipo de ritual para sua utilização, apenas reconhecem suas
propriedades medicinais e espirituais.
Termino, assim, a exposição das principais simbologias da cultura Rastafári,
com as palavras de Andrade:
Foi nesse contexto que aqueles que viriam a ser chamados de Rastas foram
consolidando sua forma de vida “roots”, do inglês “de raiz”, baseada nas
escrituras, nas leis da Mãe Natureza, Mãe África e suas tradições milenares
trazidas em mentes, corpos e corações (ANDRADE, 2009, p. 14) 17.
16
Texto não publicado enviado pela autora por email [email protected] em 17 de agosto de
2009.
17
Texto não publicado enviado pela autora por email [email protected] em 17 de agosto de
2009.
54
3. A NARRATIVA E A PESQUISA QUALITATIVA – As vozes: minha, suas e
nossas
A presente pesquisa utiliza-se das narrativas das famílias como fonte de
documentos para o estudo. Assim, neste momento, trago a contribuição desta
metodologia para as pesquisas em educação.
Chamo de narrativa, a perspectiva de Pedro Rocha dos Reis, o qual apresenta a
seguinte definição:
Também aqui trarei a contribuição da pesquisa etnográfica, que tem como foco a
descrição da cultura. O trabalho tem a intenção de estudar uma cultura, mas dentro do
contexto escolar.
Assim, o objeto da pesquisa não é a cultura, mas sim como a educação oferecida
às crianças rastafáris na escola, interfere em seu processo de sociabilização.
55
Tendo claro então, que o foco aqui é o processo educacional e que a
pesquisadora não é da área da Antropologia, utilizo a Etnografia dentro das proposições
trazidas por André:
56
3.1 - RASTAFÁRI EM CADA EU – As famílias e sua vivência da cultura
O universo da pesquisa de campo foi composto por quatro famílias
entrevistadas, sendo duas oriundas da cidade de Sana, distrito de Macaé e uma oriunda
de Niterói, localizadas no estado do Rio de Janeiro; uma família da capital da cidade de
São Paulo.
As entrevistas foram possíveis graças à integração das famílias com a
Congregação Rastafári que frequento no interior de São Paulo, na cidade de Jarinú.
O contato com as famílias do estado do Rio de Janeiro foi primeiramente
executado por Luísa Benjamin, uma amiga, que apresentou a proposta da pesquisa e
tateou o interesse e disponibilidade das famílias em participar do estudo.
A partir deste primeiro momento, por meio do ambiente virtual: internet, emails
ou recados no facebook, foi feita a aproximação com as famílias e marcado o local e a
data para as entrevistas.
As famílias do Rio de Janeiro foram incluídas na pesquisa pelo critério de
pertencimento a uma real manifestação da Cultura Rastafári e pela aproximação de meu
contato, no Rio de Janeiro, Luísa Benjamin.
No estado do Rio de Janeiro, seriam entrevistadas sete famílias, mas três delas
não estavam em Sana, pois algumas famílias ficam em trânsito entre Sana e Niterói, ou
Sana e Rio de Janeiro. Assim, por não estarem presentes no local da pesquisa, não
puderam participar da mesma.
Na transcrição, foram inseridas apenas duas famílias de Sana e uma de Niterói,
pois, a partir das transcrições, percebi uma repetição nas falas. As crianças de Sana
estudam na mesma escola. As famílias têm uma afinidade na concepção de vida
Rastafári e, morando no mesmo local, acabam tendo uma vivência muito parecida. Para
que não houvesse uma repetição excessiva, excluí, pelo critério de contribuição nas
falas, uma das entrevistas, mas ela aparece ao longo do texto, com as contribuições mais
pertinentes.
Quanto à família do estado de São Paulo, já havia uma aproximação minha com
ela, pois faz parte da mesma Congregação a que pertenço e frequento, já tinha
conhecimento da pesquisa e de seus objetivos. Foi necessário, apenas, marcar as datas e
locais para a gravação das entrevistas, o que foi feito também por meio da internet e por
emails.
57
No estado de São Paulo, a família incluída na pesquisa foi selecionada por sua
manifestação Rastafári, aproximação pessoal e por terem crianças em idade escolar
frequentes neste ambiente.
Primeiramente, houve a apresentação desta pesquisadora às famílias, visto que
as famílias do Rio de Janeiro não eram conhecidas ou próximas a mim.
Também foi apresentado o objetivo da pesquisa e qual seria sua utilização e
divulgação, visto que muitas famílias ficaram preocupadas com esta questão.
Para iniciar, houve o diálogo sobre a Cultura Rastafári no Brasil, quais seus
caminhos e questões, as diferenciações entre as manifestações da Cultura Rastafári.
Permeou-se, então, o universo educacional e as problemáticas referentes ao processo de
inserção escolar das crianças pertencentes à referida cultura.
Em Sana, cheguei primeiramente ao local aonde iria me hospedar. O lugar era
um camping pertencente a um dos anciões rastas mais conhecidos do país, que é
reconhecido pelos rastas do Rio de Janeiro como Elder18.
Ras Makandal, como é conhecido o Elder, não estava presente no momento da
minha chegada, uma vez que havia ido para a Bahia com sua senhora. Fui recebida por
um dos irmãos que cuidam do camping quando Makandal está ausente.
Charlie ou Charlinho, como é chamado, me levou até o outro andar do local,
onde me apresentou a dois outros irmãos que também cuidam do camping, Ras Pedro e
Ras Cipó. Fui muito bem recebida pelos irmãos, que me levaram até o quarto onde
ficaria hospedada.
Conversamos bastante, nos apresentamos e expliquei o objetivo da visita, falei
sobre a pesquisa e as famílias que já havia constatado. Explicaram-me que algumas
famílias não estavam por lá, pois passam uma temporada no Rio de Janeiro ou em
Niterói.
Charlie me levou para conhecer sua esposa e disse que ela poderia me ajudar a ir
até a casa das famílias. Conheci então Aparecida, que foi muito solícita e compreendeu
a questão; debatemos um pouco sobre o assunto, visto que ela também tinha formação
em educação.
Neste mesmo dia fomos tentar achar uma das famílias. Trabalho árduo, pois
Aparecida conhecia a região onde as famílias moravam, mas não sabia quais eram as
18
A palavra Elder na cultura Rastafári significa o ancião ou o com maior autoridade dentro de um
coletivo, geralmente são as pessoas mais velhas e as que lideram o trabalho eclesiástico.
58
casas. Andamos muito e não encontramos as casas. Como já estava muito tarde,
resolvemos voltar no outro dia.
Os nomes das pessoas entrevistadas que utilizo a partir deste momento, são
fictícios, são nomes de reis e rainhas etíopes, ou nomes bíblicos que têm representação
dentro da Cultura Rastafári.
No dia seguinte, levantei cedo e fui ao encontro de Aparecida; ela é artesã e
expõe na praça central da cidade. Casualmente, enquanto estava lá, passou uma moça,
Tsehay, mulher Rastafári, que eu não conhecia e não havia contactado.
Aparecida disse que seria interessante falar com ela, que seria muito bom para a
pesquisa. Então, nos apresentou e começamos a conversar. Expliquei-lhe sobre a
pesquisa e pedi para fazer a entrevista. Ela concordou e fomos para um lugar mais
reservado (as mulheres rastas são muito reservadas quanto aos aspectos da cultura).
Assim, cedeu a entrevista sobre sua experiência.
Em seguida, nos dirigimos para a casa de Worqitu, esposa de Makonnen, um
irmão com o qual eu já havia falado por email. Apesar de Makonnen não estar, a esposa,
que já estava à minha espera, me recebeu. Conversamos por um longo tempo, mas ela
não autorizou que eu fizesse nenhum registro, nem com a câmera de vídeo, nem com a
câmera fotográfica. Depois que cheguei ao meu quarto, anotei o que consegui me
lembrar de nossa conversa.
Ainda nesse mesmo dia, fui para a casa de Makeda e Salomão, casal antigo de
Sana; aliás, a família Rastafári mais antiga da cidade; eles moram lá há mais de 23 anos.
Também tinham muita experiência na questão da pesquisa, visto que têm 10 filhos.
Foram maravilhosos, gostaram muito da problemática apresentada e
contribuíram imensamente para a pesquisa.
No dia 17 de julho, fui a uma congregação Rastafári denominada Nova Flor, que
fica em um bairro de chácaras em Niterói.
Liguei para irmã Yodit, com quem eu havia falado pelo facebook. Conversamos
muito e suas posições foram de grande valia para a pesquisa, visto que ela também
leciona em estágios, pois está se formando em geografia na UFRJ.
Creio que seja necessário retomar algumas questões, ainda que de forma
superficial, uma vez que já as aprofundei no momento anterior em que tratei da
cosmologia da Cultura Rastafári.
59
As famílias entrevistadas no Rio de Janeiro são Rastafári. Entretanto, dentro da
Cultura Rastafári há ordenações ou Ordens de diferentes seguimentos. Todas têm os
mesmos princípios, pois são partes da mesma Cultura, porém há algumas diferenças em
sua organização.
As famílias do Rio de Janeiro seguem a Cultura Rastafári, sem, no entanto,
pertencer a uma ordem específica, simplesmente vive Rastafári em seus princípios.
Duas das famílias entrevistadas no Rio de Janeiro fazem parte da organização que citei
anteriormente, denominada Nova Flor, que traz para Rastafári alguns princípios do
Santo Daime19.
Já em São Paulo, a família entrevistada faz parte da ordem Rastafári Boboshanti,
uma Congregação Sacerdotal da Cultura Rastafári. Dentro desta ordem, mulheres,
homens e crianças são vistos como Deusas e Deuses em carne, ou seja, são
manifestações do divino em vida. Por assim ser, são constantemente chamados de
Imperatrizes, Profetas, Príncipes e Princesas, respectivamente. Por assim ser e a partir
deste momento, seguem tais denominações aos nomes das pessoas entrevistadas,
A família de São Paulo foi ao encontro da pesquisadora na data marcada, na
cidade de Jarinú, interior paulista, onde possuem uma casa cujo local é de encontro e de
Congregação desta organização Rastafári Boboshanti.
A família anfitriã da Imperatriz Taitu e Profeta Abraão, me recebeu de forma
amorosa.
Primeiramente, foi feita a entrevista ou diálogo com a família de Imperatriz
Taitu, que juntamente com seu Rei, Profeta Abraão, foi expondo sua visão sobre a
educação, como ela é, como poderia ser, já que a experiência com seus três filhos
estudando em uma escola de metodologia Waldorf se distingue das outras, por esta ser
uma escola de abordagem educacional diferenciada.
Caracterizarei as famílias por cidades da Etiópia, visto que o mito fundacional
desta cultura ali se inicia.
Assim, a primeira família será:
Família Aksum
Esta família foi muito valorosa para o desenvolvimento da pesquisa, pois os pais
já percorreram um longo caminho, tanto na vivência da cultura Rastafári, quanto no
processo de escolarização de seus filhos. Não são jovens, têm uma experiência muito
grande na questão da educação dos filhos, seja ela educação escolar ou não. São dez
filhos, entre bebês, crianças e adolescentes. A filha mais velha já está cursando a
Universidade.
Residem em Sana – Rio de Janeiro - há 23 anos. A família é composta pelo pai
Salomão, pela mãe Makeda e por dez filhos entre meninos, que aqui denominei de
Menelik e meninas, para quem também utilizei uma nomeação etíope, Menen. Assim,
quando os pais se expõem sobre o processo de escolarização, não o estão direcionando a
20
É uma bebida utilizada nos rituais de Santo Daime A bebida, de uso bastante difundido pelos povos
indígenas da região, é obtida pela cocção de duas plantas, o cipó Jagube (banesteriopsis caapi) e a folha
Rainha (psicotrya viridis) ambas nativas da floresta tropical. Ela tem propriedades enteógenas, isto é,
produz uma expansão de consciência responsável pela experiência de contato com a divindade interior,
presente no próprio homem (texto disponível em: http://www.santodaime.org/origens/index.htm).
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nenhuma das crianças, mas sim à experiência cotidiana de todas as suas crianças, tanto
das que já frequentaram, quanto daquelas que estão frequentando a escola.
Esta família é Rastafári há muitos anos, mas não segue nenhuma ordem
específica. Vivencia Rastafári em seu cotidiano: na forma de se alimentar, em suas
crenças e na forma de educação de seus filhos.
Família Adwa
Esta família reside em Niterói, e é composta pelo pai Tafari, pela mãe Yodit e
por uma filha, Shewa, de dois anos, que frequenta uma creche há pouco tempo. As
problemáticas relacionadas à inserção da criança ainda são mínimas, mas, quando
começamos a conversar, percebi que a postura da mãe, como educadora e mulher
Rastafári, contribuiriam muito para a pesquisa.
A família pertence ao Grupo Nova Flor, do Rio de Janeiro, que utiliza a Ayuasca
dentro de Rastafári.
A mãe e o pai são novos. A mãe, Yodit, foi quem concedeu a entrevista. Tem
experiência em educação, visto que estuda geografia na Faculdade de Educação da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ, tendo, assim, uma postura muito
crítica a respeito da educação disponibilizada nas redes de ensino e a respeito de qual
educação deseja para sua filha.
Família Shashemene
Família com a qual tenho contato há muito tempo, é formada pelo pai, Profeta
Abraão, pela mãe, Imperatriz Taitu, pela Princesa Itege, pelo Príncipe Jacó e por uma
princesa de 3 anos que não entrou no universo da pesquisa.
É, dentro das famílias pesquisadas, a família que mais manifesta a vivência
Rastafári. As crianças são aquelas que, esteticamente, mais representam a cultura dentro
do grupo pesquisado, pois têm dreads nos cabelos, utilizam a caída e o turbante e
vestem as roupas apropriadas dentro da Ordem Boboshanti.
A família atua diretamente com seus trabalhos no Congresso Negro
Internacional Etíope Africano.
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Reside na capital de São Paulo, e em Jarinú, interior do estado onde se localiza a
sede do Congresso Negro Internacional Etíope Africano. Seus filhos estudam em uma
escola privada de metodologia Waldorf.
A mãe, Imperatriz Taitu, foi quem participou da entrevista. Sua contribuição foi
muito importante para o desenvolvimento desta, visto que esta família é a única que tem
seus filhos em uma escola privada e desta forma, contribuiu para a ampliação do campo
de estudo.
Cosmologia e Estética
Tratarei aqui como Cosmologia a linguagem ou símbolos próprios da Cultura
Rastafári que circundam a vivência das famílias. Como Estética, neste trabalho, não
quero tratar de beleza, do belo, mas sim da aparência, da visibilidade corporal
manifestada pelas famílias.
Iniciei com esta temática, pois foi recorrente a preocupação das famílias não só
com a questão estética do cabelo, das vestimentas, como também a assimilação dos
corpos a este ambiente escolar, por exemplo, a alimentação, as novas músicas, palavras
e desejos que suas crianças traziam ao retornar deste encontro com o outro.
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O papel da família para uma escola inclusiva
Durante as entrevistas, algumas famílias deram ênfase ao papel delas dentro do
ambiente escolar e em como acreditavam e experienciavam que este processo de
inserção da família colaborava para uma melhor sociabilização das crianças neste
ambiente.
Assim, como terceiro tema das entrevistas, trago as dificuldades, contribuições e
vivências destas famílias na escolarização formal de seus filhos.
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Worqitu relata que infelizmente a escola que Zauditu frequenta não aborda
conteúdos de outras culturas, a não ser no dia do folclore, ou do índio, ou ainda no mês
de novembro, trazendo um olhar fragmentado para as crianças destas culturas.
Quanto aos princípios fundamentais, Worqitu parte mais de um olhar social do
que cultural. Expõe que os princípios seriam de respeito, de amor, de crítica à atual
sociedade e sua forma de viver, de educação ambiental. Crê mais em uma postura
escolar que contemple as diferenças e não em uma escola que seja unicamente Rastafári.
Família Aksum
Cosmologia e estética
Makeda inicia sua fala com as problemáticas relacionadas à estética,
principalmente porque esta é uma família negra e uma das poucas famílias em que as
crianças mantinham seus cabelos com dreads.
“Aqui no Sana, muitas pessoas acham que tem uma cultura diferente, por vir
várias pessoas de fora, mais alternativas, mas não é. A escola é igual as outras ou até
pior, pois como eu já tinha te falado anteriormente, quando eu vim morar aqui no Sana
há 23 anos, não tinha nenhuma criança negra na escola, pois a colonização aqui é de
alemães, suíços e franceses.
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Quando cheguei à escola, que eu fui lá à escola pela primeira vez, só tinha
aquelas crianças loirinhas, só branquinhas, todos eles, e não tinha nenhuma criança
negra na escola. Eu prestei muita atenção nisso. Depois eu fui saber que só tinha uma
comunidade negra aqui no Sana, que é onde eu moro hoje, que eram descendentes de
quilombos e a gente só viu esse povo de negro aqui, aí eu falei: “Cadê os negros desses
lugar?” aí eu fui saber que tinha esse local e nós viemos pra cá, aí nós chegamos à
conclusão de que eles não colocavam seus filhos na escola porque já existia aquela
diferença, aquela separação, tipo apartheid. Já havia naquela época aqui, os negros
aqui tinham um complexo de inferioridade e eram tratados com diferença, foi aí que a
gente foi, eu fui, eu intimei as pessoas, “vamos botá as criança na escola” aí eles
falavam “não a gente tá aqui há muitos anos e nunca ninguém foi pra escola.
E os pais, a maioria não tinha leitura nenhuma, os pais eram nascidos, criados
aqui e eram analfabetos. Eles falaram “a gente não vive até hoje sem estudo, pra que a
gente vai botá nossos filhos na escola?” Mas aí como era a única opção de ensino na
época, eu fiquei preocupada com a situação, e falei: “Gente vamos botá as criança na
escola porque elas têm o direito de estudar também”, aí que eles começaram a colocar
os filhos na escola.
Aí depois acabou esse negócio de que os filhos dos negros não estudavam. Hoje
em dia você vai lá e eles estão misturados.
Mas aquelas crianças brancas, já não aceitavam os negros não, foi assim um
choque porque eles já estavam acostumados a só ter brancos na escola entendeu? Já
era aquela cultura, aquela cultura de superioridade, aí depois foi mudando, a gente
chegou teve esse processo de conscientização, eles colocaram na escola, nós colocamos
os nossos na escola, fomos tendo os nossos filhos e inserindo eles na escola.
Como eles eram além de negros, de outra cultura, eles tinham dreads também,
aí o preconceito era maior ainda, eles “cortaram uma volta”, todos eles tinham dreads,
as crianças ficavam zuando eles, fazendo brincadeiras ruins e os próprios professores
não os respeitavam e a gente até certa idade conseguiu ir controlando, a gente vai
conscientizando, vai falando que não tem nada a ver, mas chega certa idade na
adolescência, 15 anos.
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Até essa idade, as crianças foram muito resistentes, todo mundo de dread,
quando chegou essa adolescência foi muito difícil a ponto de eles brigarem, de sair na
“porrada” até.
Minha filha, a mais velha Menen, uma vez na sala, teve uma dinâmica, uma
vivência entre as crianças, que um tinha que falar para o outro o que daria para o
outro amigo, teria que falar o que daria de presente para o amigo, mas não falaria o
nome do amigo, só falaria o presente e eles tinham que adivinhar quem era o amigo, aí
uma menina falou “pra essa pessoa eu daria um pote de creme e um pente”. Isso foi
assim terrível, porque todo mundo riu, todo mundo já sabia que era minha filha, ela se
estressou, brigou no final da aula com a menina e nesse dia ela chegou em casa se
trancou no banheiro e cortou todos os dreads, foi bem traumatizante pra ela, porque
todo mundo encarnou e teve briga no final, ela brigou com a menina no final da aula e
o professor também não soube lidar com a situação, ficou uma situação muito
desagradável e foi assim que minha filha mais velha tirou os dreads e eu nem vi nada,
quando eu vi ela já não tinha mais dreads nem um, aí eu expliquei pra ela que a gente
tem que ser resistente, a gente tem que lutar contra isso, mas ela era adolescente não
conseguiu lutar contra isso, ela não conseguiu segurar isso, é muita opressão.
E assim foi um por um tirando os dreads pela opressão sofrida na escola, e na
sociedade e agora quase nenhuma das crianças tem dreads.
Nós, como pais, íamos lá à escola, mas na nossa frente era uma coisa, depois
eles faziam outra.”
As dificuldades dentro do processo de sociabilização dessas crianças ocorreram,
segundo Makeda, principalmente durante a adolescência.
Por ser um momento de escolhas, não tinha mais como impor, como manter. Na
infância, a gente ainda influencia, o principal problema que a gente enfrentou foi o da
aparência mesmo.
Sempre foi muito complicado, mas até certa idade, a gente controlava. Não sei,
às vezes eu acho que na babilônia é mais fácil essa questão racial, porque pela minha
própria experiência, minha infância passei em Santa Teresa no Rio de Janeiro, e lá
essa questão racial não era assim como é aqui, tinha muita criança negra e era todo
mundo junto e misturado, muitos professores negros, era tudo junto, não tinha essa
coisa do racismo que tinha aqui, aqui era colonizadores que se julgavam superiores
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mesmo, e eles até achavam que as crianças negras não tinham que estudar mesmo.
Sabe, vamos continuar aquela tradição dos negros, se os pais negros são aqueles que
são os empregados dos brancos, os filhos deles vão ser dos nossos filhos, já tinha
aquela cultura, pra que eles vão estudar se eles vão ser empregados dos nossos filhos
amanhã?”
Sobre a questão da alimentação na escola, esta família traz o desrespeito sofrido
no modelo cultural alimentar de suas crianças.
“Salomão: eu me lembro de um episódio que a professora falou pra eles assim:
“Come carne, seus pais não estão aqui não, não tem problema não, pode comer seus
pais não estão vendo.”
Makeda: aí eles chegavam da escola e vinham e contavam pra gente, aí eu ia lá
à escola e brigava, sempre tive a fama de brigona daqui.
Salomão: e até eles entenderem o porquê a gente não comia carne, eles falavam
que a carne não fazia mal não, que a carne faz bem, que a carne tem proteína. Não
respeitavam nosso posicionamento. Na realidade eles não tinham informação de nada,
não tinham a formação e não têm até hoje. Na época tinha professores que nem
formados eram, estavam na sala de aula dando aula pro aluno e ensinavam coisas
erradas, porque não sabiam, e se a criança fosse corrigir essa pessoa, ela não gostava
não, a ignorância da professora era tanta que ela não aceitava que um aluno fosse
corrigir ela.”
Fiz um questionamento à mãe sobre a principal dificuldade, se seria a questão da
aparência.
Makeda: Sim, porque foi o que houve maiores consequências psicológica. Se
bem que quando as crianças são acostumadas desde pequenos a viver de certa forma,
elas acabam por si só, caminhando assim. Por exemplo, a Menen até hoje não suporta
o cheiro de carne, ela passa até mal, então eu acho que isso é muito da educação de
casa, já vai do costume.
Também houve um momento mais o menos, quando a Menen tinha uns 15 anos,
todos os jovens aqui daquela época só ouviam funk, ela começou a andar com uns
colegas da escola e a ouvir funk, aquelas músicas horríveis, aí eu pensava: “Poxa
como pode, nasceu e foram criadas ouvindo reggae, e nós nunca passamos isso pra ela,
e agora elas querem ouvir isso”, mas isso foi uma fase muito rápida que passou e a
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essência mesmo que elas foram criadas é o que ficou, não tem jeito pode passar o que
for, a influência de todos os jovens, mais a influência do berço é o que conta. Por conta
própria ela viu que não era a realidade dela, que não era o mundo dela e por conta
própria ela foi se afastando daquelas pessoas e buscando outras coisas pra ela.
Hoje ela faz faculdade na Universidade Federal Fluminense UFF, faz produção
cultural, ela é totalmente voltada para as causas, ela é totalmente consciente, só os
dreads que ela não quer, mais a questão da filosofia, da alimentação e principalmente
a questão da negritude, isso tá nela, isso é a essência dela.
Dizem que os pais são os espelhos dos filhos e eu sempre fui naturalista, sempre
vivi dentro da filosofia Rastafári, sempre fui contra qualquer coisa artificial, nunca usei
maquiagem, não utilizo cosméticos e eu achei que por eles me verem vivendo assim e
por eu educar eles assim desde a infância, eles também seguiriam esta forma de vida,
que eles seriam assim como eu sou, mas não é assim, não adianta brigar, eles vão ser
do jeito que eles têm que ser, pode ser que não seja assim com todo mundo, mas comigo
foi assim, foi triste, foi uma decepção.
No começo pra mim foi muito difícil, porque a gente tem uma maneira de ser, a
gente abdicou muita coisa da babilônia, a gente não quer essas coisas da babilônia pra
gente, a gente abriu mão de muita coisa, por exemplo, Salomão por ser um dos
pioneiros do reggae no Rio de Janeiro, a gente poderia tá hoje com muito dinheiro,
porque o reggae virou moda hoje em dia, mas a simplicidade pra gente é o segredo da
vida, a gente ama viver assim, a gente prefere viver simplesmente a viver na ostentação,
então como a gente abdicou da babilônia e dessas coisas todas, veio morar aqui, por
aqui até é muito mais difícil né, principalmente quando a gente chegou aqui.
Então eu achei que elas iriam ser os nossos espelhos, mas elas não são, a
babilônia ilude, então elas usam aqueles cremes no cabelo, maquiagem, pinta unha e
eu acho que parte dessa influência vem da escola, mas em muito da televisão.
Eu fiquei um tempão sem televisão em casa, mas teve certo momento que não
dava mais, eu, por exemplo, não gosto, eu não vejo televisão, a gente nunca deixou as
crianças verem determinados programas, tipo novela não, mas eles sempre davam um
jeito de ver, e é aquilo, liga televisão e eles assimilam aquilo, pro pai foi um choque
bem maior, e tipo ele não aceitava por exemplo: a Menen fazer as sobrancelhas, ele
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fala assim pra ela “sua sobrancelha já é feita por Deus, você vai fazer o que” foi uma
coisa que fugiu do nosso controle, tipo o que fazer?
70
uma escola muito boa. Macaé é uma cidade muito rica, voltada para o petróleo, e
assim nossa escola acaba tendo muitos recursos. Se você for lá, ela tem auditório,
anfiteatro, ela tem toda uma estrutura, tem local pra horta, tem tudo, a infraestrutura, a
obra da escola é muito boa, ela falta ser administrada diferente.
Infelizmente têm certas regras na escola que não podem ser quebradas, coisas
que fazem parte do currículo né.
71
Makeda: eu creio que alguns professores estão dispostos a mudar a sua postura
e conteúdos abordados na sala de aula, também acho interessante que seja feita
periodicamente atividades com as crianças voltadas a Rastafári pelos próprios pais,
isso demanda uma organização dos pais rastas do Sana, com atividades não só
voltadas para Rastafári, mas voltados à África, conceitos de negritude e a educação
ambiental.
As últimas reuniões que eu fui à escola, eu briguei muito, principalmente pela
questão do bullying, que é uma questão muito séria. Eu acho que todas as crianças
sofrem bullying de alguma forma, minhas crianças mesmo sem o dread ainda sofrem
bullying, eu tenho uma das minhas meninas que é a Menen, ela tem problema de
crescimento ela tem 8 anos mas o tamanho é de uma criança de 5 ou 4 ano, então ela
passa por muitas coisas na escola, as crianças implicam muito com ela.
Na realidade, porque as crianças não respeitam as coisas, porque elas não são
ensinadas a respeitar e eu falo sempre isso na reunião, porque os pais estão presentes,
aí eu falo “gente, por que as crianças fazem isso, porque os adultos fazem isso em casa
na frente das crianças”, então a gente tem que prestar muita atenção no que a gente
faz, como a gente fala, como a gente se refere as outras pessoas, porque se um adulto
fala dessa forma de outro adulto que não deveria, a criança tá vendo e ela vai fazer
também, ela aprende, ela vai fazer como os pais, ela vai aprender com os pais como
tratar os outros, chamar de gordo, então eu cobro isso na reunião de pais, cobro isso
da escola, quando eu tô falando eu olho um por um, no olho de cada pai, eu falo “a
responsabilidade não é só da escola de estar acontecendo essas coisas”, mas a escola
mesmo nunca fez um trabalho sobre bullying com eles, aqui nem se fala sobre isso, eu
sou a única mãe que fala sobre isso, eu falo com a diretora, eu falo com a professora e
eu falo com os pais.
Tinha uma diretora aqui, que desde quando nós chegamos aqui, nós entramos
em guerra, nós brigávamos muito, no primeiro dia de aula ela chamou todo mundo no
pátio e disse “nós temos uma aluna negra aqui agora”, chamou atenção de todo
mundo, era Candance filha de Salomão, esse foi o primeiro dia de aula da Candance
na escola, ela era super preconceituosa, nós conseguimos tirar ela da direção da
escola. Essa senhora foi proibida de dar aula, ela era diretora e professora e ela é
assim desse tipo, a gente fala pra ela “a senhora é nazista”, mas com o tempo nós
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aprendemos muita coisa, com a espiritualidade, a tolerar certas coisas, nós fomos
conquistando essas pessoas, e chegou certo ponto que essa senhora nazista, outro dia
virou para Menen e falou assim “você hein, quem diria, você era uma menininha tão
feia e tá um mulherão tão lindo” aí a Menen falou “Nossa mãe, a dona Maria não
muda, não tem jeito, deu vontade de falar: e seus netos?”. Dona Maria outro dia
também falou assim “nossa eu briguei tanto com o Salomão por causa dessas músicas
dele, mas hoje eu acho tão bonito” e até ela mandou a neta dela vir comprá um CD
aqui na minha porta.
Família Adwa
Cosmologia e Estética
Sobre as problemáticas estéticas, Yodit relata suas experiências após aderir à
Cultura Rastafári.
Eu estudo em São Gonçalo, é tipo um gueto gigante, eu estudo na Faculdade de
Formação de Professor FFP da UERJ, aí tu imagina eu passando na rua lá em São
Gonçalo com esses cabelos “Vai sua Bob Marley, vai sua maluca, tu gosta de fumá
uma erva, hahaha”, as meninas no banheiro dizem “Oh colega, por que você faz isso
com o seu cabelo, oh colega, tô vendo que a tua raiz é lisa colega, pô eu gasto mó
dinheiro pra alisar o meu” aí eu falo pô eu acho o teu tão bonito, sabe eu tento ficar
desconstruindo aquela coisa de tudo certinho, de ter o cabelinho liso, aí uma vez o meu
marido viu um moleque passando aqui em Niterói novinho, deveria ter uns 14 anos,
cheio de dread pro alto, branquinho e tal, classe média, aí meu marido falou assim
“olha lá, será que ele, sabe que ele tá fazendo, o que ele tá usando na cabeça, pô,
aquele cara o que ele tá fazendo, será que ele vai aprender alguma coisa com aquilo,
será que aquilo é válido pra ele” aí eu falei “eu acho que sempre é válido, porque
mesmo que ele nunca fale nada de Rastafári, de Haile Selassie e essa história toda, ele
vai sentir o que é o preconceito, porque não tem como as pessoas mais pozudas,
tratarem bem um dreadlook, mesmo que ele não tenha nenhuma relação com o
Rastafári, mesmo que ele seja branco, eu acho que com branco é pior ainda, porque
eles falam assim “Cara, tu é branco e quer ser preto”, falam isso pra mim e eu sou de
origem preta. Como assim eu quero ser preta? Eu sou preta, dá licença eu não sou
morena eu sou é preta.
73
Porque isso é sempre bom, só quando a gente sofre o preconceito, a gente
entende o que é o preconceito, se não vai ser sempre aquela hipocrisia, “que isso não
existe preconceito.”
Yodit ainda relata um pouco sobre os olhares que são lançados sobre sua estética
ao deixar sua filha na escola:
Bem a gente sente a diferença, o preconceito no olhar dos pais das outras
crianças, minha filha ainda é muito pequena e seus coleguinhas também, mas a visão
deles sobre mim não deve ser boa não, sempre vejo alguém olhando e comentando com
os outros.
A educação e segurança que passarei para ela serão fundamentais no momento
que ela tiver que enfrentar isto.
74
não só na questão de cumprir um tempo fora de casa, de sociabilizar com outras
crianças, mas, na formação do indivíduo melhor, uma formação da saúde, da
consciência, gostaria que ela tivesse essa oportunidade.
Eu sou muito otimista, eu imagino toda uma linha educacional, como uma forma
de não precisar mandar as crianças pra escola, de fazer a educação em casa, mesmo
que quando meu filho ficar mais velho e ele queira fazer vestibular, mas a base ele terá
sobre os nossos princípios. Um primeiro momento seria a ação nas escolas, porque é o
que a gente pode fazer agora, acredito também na estruturação da escola integral não
só Rastafári, mas que seja completa na formação do ser integral, essa escola seria uma
construção coletiva e pública, mas não interferiria no processo de intervenção nas
escolas públicas. Creio que essa interferência seria um primeiro momento, seria
disseminando esta ideia para construção de um futuro até para facilitar a aceitação
dessa escola integral, para que as pessoas que não fossem rastas também queiram uma
educação integral para seus filhos, uma educação mais natural, porque aí a pessoa já
vai ver na escola, o professor já falou, ele já construiu um tambor, a aceitação seria
diferente.
Minha história é que eu nasci aqui em Niterói, me criei aqui, estudei em escola
pública, sou de comunidade carente, sinto meio como uma obrigação de trabalhar
dentro das escolas públicas dessa forma diferenciadas e acho interessante também a
criação de escola voltada para esse tipo de realidade também.
Então são essas questões que acabam deixando a gente assim insegura, tem a
pressão da família, que vai falar assim: “Não, como você não vai botá a sua filha? Ela
precisa socializar com as crianças!” Sabe pô eu tenho uma conhecida que trabalha
com crianças, educação infantil e ela defende essa questão que a criança tem que
conviver com esse choque cultural, choque de classes e que ela tem que aprender a
lidar com isso e tal. Eu não tô dizendo que tem que separar assim por categorias, é bom
até ela sabê lidar com isso, mas são influências muito fortes, se realmente houvesse
uma manifestação da diversidade nas escolas, mas não há a maioria das crianças vão
seguir uma cultura hegemônica e as outras minorias vão sendo oprimidas, mas eu acho
também que é papel do profissional saber lidar com essa situação ou o professor é que
vai ministrar essas situações, ele vai ver ali que tá rolando essas diferenças então eu
acho assim que a atuação dele, de repente a formação do professor tem que ser mais
75
voltada pra isso entendeu, por isso a pedagogia Waldorf me interessa, a formação do
professor nesta metodologia é muito voltada pra esses detalhes, da criança, da coisa
particular de cada uma, porque hoje o próprio professor vê as crianças como massa,
então acaba não tratando da forma como deveria, eu sei que o professor da escola
pública não tem condições de verificar cada aluno porque tem mais de 40 alunos por
sala, trabalha manhã, tarde e noite porque ganha mal, enquanto o professor da escola
Waldorf tem no Máximo 20 alunos por sala e ganha muito bem pra isso, e vai
permanecer com esses alunos durante vários anos, então têm todas essas questões né,
parece que são dois pontos né, o que a gente almeja e aonde a gente tá, tá bem distante,
bem diferente.
Eu trabalhei um tempo na faculdade, eu fiz uma pesquisa sobre educação
indígena e aí tinha aquelas regras de ser diferenciada, bilíngue aí eu achei interessante
e eu fiquei pensando porque a nossa não pode ser assim, porque a gente não pode ter
esse respeito de ser diferenciado, porque ter essa educação especial, porque são
pessoas completamente diferentes, mas por eu ser de origem de comunidade, eu sempre
defendo aquela coisa assim, de atuação nas escolas públicas mesmo, dos guetos,
sempre critiquei aquela visão do professor que vai lá à escola da periferia e vê aquelas
crianças e fala que as crianças não querem nada, que são aqueles que futuramente vão
pro tráfico, é um exército que vai sendo formado.
A formação profissional é superimportante na interferência, nos acontecimentos
dentro da escola, que a pessoa ver a opressão ocorrendo e o que ela faz, qual é o papel
do educador nesse momento, de ver o aluno discriminar, segregar, aí ele vira ali
preenche o quadrinho de horário e o diário e vai embora.
Em uma escola que eu fiz estágio, a gente tinha um quadrinho que eu falava que
era o X9, as crianças deixavam uma fotinha 3x4, chegava ao conselho de classe a
professora tal falava assim “Tá vendo essa menina aqui, essa mulatinha, essa
mulatinha aqui não presta” aí eu pensava assim caraca, aquilo assim descia rasgando
e eu grávida, com a emoção mais à flor da pele, saía de lá chorando, pensando gente
como é que pode um educador pensar assim e ela passa aquilo ali para as crianças e
destrói um monte de geração, destrói um monte de sonhos.
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Yodit traz diversas reflexões sobre as formas de a família ou a própria
comunidade Rastafári interferir de uma forma positiva no ambiente escolar:
Eu gostaria que a escola pública se emancipasse e tivesse esse perfil mais
natura. Não querendo perder as esperanças, eu acho isso um processo muito demorado
e difícil, porque não é só uma questão pedagógica, é uma questão política, eu acho que
a gente deve defender o nosso direito à diferença, de querer algo diferente, porque eu
acho muita submissão você aceitar tudo da forma como impõem e não questionar nada,
aceitar o que dizem que é bom.
Eu gostaria de iniciar aqui práticas de oficinas na escola, parcerias de
atividades nas escolas, nós podemos verificar como está sendo feito em outros estados,
quais são as experiências das casas Rastafári em outros lugares pra gente poder fazer
aqui também e para as pessoas também que poderiam se movimentar, ver o que dá
certo ou não nas experiências de interferência das casas Rastafári na comunidade
escolar, eu vejo que os rasta aqui dos Sana e de Niterói têm que buscá mais uma união,
têm que procurar estar mais juntos para poder realizar atividades em conjunto, no
coletivo para o benefício de todos.
Família Shashemene
Cosmologia e estética
A mãe, Imperatriz Taitu, inicia sua entrevista apresentando as dificuldades,
principalmente estéticas, que seus filhos perpassaram quando entraram na escola:
Tenho duas meninas e um menino, duas princesas e um príncipe, assim como
nós chamamos nossos filhos.
Bem, a inserção dos meus três filhos foi um pouco complicada e problemática
por conta da nossa cultura, da nossa maneira de viver. Sofremos alguns preconceitos e
fomos hostilizados, principalmente os meus filhos. Hostilizados por outras crianças,
pelos pais que têm preconceito e não conhecem a nossa cultura, então para as crianças
é muito difícil o processo de sociabilização para uma sociedade que não está
preparada para nos receber, para a sociedade que não está preparada para acolher
principalmente o povo africano, o povo negro, ou pessoas de distintos caminhos,
distintas religiosidades.
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As meninas, as princesas usam a caída, foi bem complicado, e é até hoje, mais
de cinco anos que eles estão na mesma escola e eles ainda sofrem preconceito e eles
ainda sofrem no dia-a-dia por conta da vestimenta. Então, este lenço que nós princesas
e imperatrizes usamos, as crianças apontam, puxam, tentam arrancar. Arrancam rindo
dos nossos cabelos, riem da nossa maneira de ser. Com o príncipe, meu filho as
crianças arrancam o turbante, são apontados, são vítimas de deboche. Então o
processo de sociabilização de crianças da nossa cultura é bem complicado nesta
sociedade que não está preparada para nos receber. Para receber qualquer cultura que
seja diferente da deles (europeizada).
Não cessam! Até hoje a Senhora comentou que sente alguns olhares.
Alguns olhares e meus filhos seguem sendo hostilizados, sendo debochados.
Mesmo sendo a mesma turma há cinco anos, mesmo assim eles seguem sendo alvo de
deboches. Bem chato, bem desagradável. Eles choram. Imagina se fosse numa escola
tradicional como isso seria.
Eles chegam a casa e contam pra Senhora.
Contam tudo pra mim, eles relatam, e eu como mãe me sinto muito mal. Muito
chateada, triste e eu estou fazendo o que eu posso diariamente, abrindo mão até de
outras coisas pra estar lado a lado com eles na escola. Ainda assim acontece muito
preconceito.
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A escola que as crianças frequentam trabalha com algum conteúdo sobre África
e sobre outras culturas como Indígenas, Quilombolas, Ciganas?
Não.
Nem em Novembro, nem no dia do Índio, nenhuma outra atividade é feita com
eles envolvendo outras culturas?
Não, nada, nunca. Nem desenhos.
E a Senhora vê a possibilidade de estar conversando com a direção da escola
para sanar um pouco dessas problemáticas?
É importante principalmente alertar a escola em relação à Lei 10.639 ao qual
toda escola privada e pública se põe em obrigatoriedade em responder à essa Lei e
manifestar a cultura negra, manifestar a história da África e de povos indígenas dentro
das escolas, principalmente observando o ensino infantil e fundamental. Então nós
temos que ir lá para cobrá-los e saber que nós como membros também do movimento
negro, informá-los que nós estamos atentos a isso e que nós vamos cobrar para que
eles cumpram com essa necessidade.
79
E a escola sempre foi aberta com qualquer colocação que a Senhora fizesse,
qualquer pedido, a escola sempre acatou?
É eles sempre se mostraram disponíveis para auxiliar nessas questões das
diferenças, sempre tentaram homogeneizar ensinando as crianças. Mas trata-se de uma
cultura homogênea Europeia.
Então, a Senhora acha que o papel da comunidade familiar da escola é muito
importante para que a escola possa melhorar nesses pontos? Melhorar nos pontos tanto
de conteúdos de outras culturas quanto no processo de inclusão mesmo?
Fundamental. A escola sem os pais não existe, não é nada. A escola por si
própria não resolve nada. Ela só traz uma proposta, mas o faz acontecer, é mão com
mão, força com força, toda comunidade. Então a escola tem que estar aberta para
receber a comunidade e de coração aberto escutar o que os pais e a comunidade têm a
dizer.
Uma forma então de amenizar essas situações hoje dentro deste contexto escolar
seria a inserção ativa dos pais na escola tanto cobrando quanto oferecendo conteúdos?
Exatamente, participando lado a lado da coordenação pedagógica, da direção e
com os pais. Se inserir na escola e souber tudo o que está acontecendo, conhecer as
famílias, conhecer os amigos dos seus filhos, conhecer os que não são amigos dos seus
filhos, conhecer todos os pais da escola, o máximo de pais que você puder ter contato e
contato sincero mesmo, dentro e fora da escola, manter uma relação social.
80
incluídas neste padrão cultural hegemônico, justificando o atendimento ou a recepção
delas na escola.
Percebe-se, pela narrativa dos pais, que a escola tem muito a evoluir ou a
problematizar acerca das diferentes culturas neste ambiente educativo e formador de
identidades, visto que é perceptível a falta de preparo, não só dos educadores, mas do
corpo gestor e da própria estrutura do currículo para atender a multiplicidade cultural
presente na escola.
Conforme afirma Mantoan, a estrutura escolar como um todo deve se refazer,
mas antes disso, as próprias pessoas envolvidas neste ambiente têm que se reformar
mentalmente (MANTOAN, 2003, p. 20).
As famílias relatam sua dificuldade não só pelo fato das crianças terem
problemas de aceitação pelo coletivo, mas também pela introjeção da cultura
“universal” permeada no ambiente escolar.
O processo de formação da identidade e da diferença, já discutidas
anteriormente, está intrinsecamente vinculado ao processo educacional, pois tanto a
identidade quanto a diferença estão cotidianamente sendo produzidas neste ambiente e
estabelecidas pelas relações de poder (SILVA, 2004, p. 88).
Assim, quando o currículo expõe um único modelo a ser seguido, acaba por
moldar as crianças que ali se apresentam.
Deve haver uma mudança urgente no paradigma sobre o qual esta escola está
fundamentada, para poder incluir estas diferenças, ao ponto de que estas crianças não se
sintam mais como estranhas e também de que não alterem seu modo de vida,
adequando-se ao modelo estabelecido pelo currículo.
Sobre esta possível e necessária mudança, Mantoan descreve um modelo escolar
capaz de trabalhar com as diferenças:
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os alunos, e as estratégias de trabalho pedagógico são adequadas às
habilidades e necessidades de todos (MANTOAN, 2001, p. 52).
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cultural na escola, esta condição ainda é ínfima. A aplicação da Lei 10.639/03, ou de
sua substituta 11.645/08, também é tímida.
A lei 10.639/03, mesmo sendo obrigatória desde 2010, ainda não alcançou seus
objetivos, pois uma das indagações feitas durante as entrevistas componentes desta
pesquisa era se havia algum trabalho na escola que tratasse de história e cultura afro-
brasileira ou indígena.
A maior parte das respostas das famílias foi negativa ou, quando positiva,
sempre era tratada superficialmente, da forma como se trata na perspectiva humanista
ou liberal.
É perceptível a necessidade da cobrança por parte da comunidade escolar, para
que estes avanços jurídicos alcançados por meio da luta dos grupos excluídos possam
ser postos em prática.
Mesmo não sendo o foco deste estudo, atrevo-me aqui a apontar que grande
parte desta prática está nas mãos dos educadores.
A formação de professores para esta nova realidade educacional é fundamental.
Sem este preparo, este estudo, os profissionais da educação não têm o repertório
necessário à criação de novas alternativas didáticas e metodológicas para a educação
inclusiva.
Na voz dos pais foi notado o despreparo para lidar com a diferença destes
profissionais. O educador não sabe como lidar com os atritos ocorridos cotidianamente
dentro da sala de aula pela presença da diferença.
Veja-se o caso da família Aksum, que além de manifestar esteticamente a cultura
Rastafari também é negra, o que na fala dos pais percebe-se igualmente ser motivo de
exclusão não só por parte da comunidade escolar, mas uma exclusão social na própria
cidade.
A família relatou que a cidade é de colonização europeia, assim tendo uma
resistência à presença de negros no ambiente público, incluindo a escola. Nesta situação
vemos não só uma exclusão, mas um preconceito declarado e, nos casos relatados por
esta família, a escola só colaborou para a perpetuação destas situações sofridas pelas
crianças. Em algumas destas situações, o corpo gestor e educador da escola provocou ou
cometeu o preconceito.
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A aplicação da lei 10.639/03 e de uma proposta multicultural na escola viria
muito a colaborar com estas situações de exclusão no ambiente escolar e,
consequentemente fora dele, sendo este promotor de subjetividades.
Pode-se notar que as práticas de uma educação inclusiva estão fora também do
contexto da escola privada. A família Shashemene, que tem seus filhos matriculados em
uma escola conhecida por uma metodologia alternativa à metodologia homogeinizante -
escola Waldorf -, relata suas dificuldades assim como as outras famílias.
Neste contexto privado, a mãe diz que as práticas de exclusão também fazem
parte do cotidiano escolar privado. As dificuldades com o currículo são as mesmas da
escola pública, não há inserção multicultural em nenhum momento segundo o relato da
família.
A mãe diz que seu benefício perante as escolas públicas é devido à alimentação,
pois nesta escola privada o alimento oferecido é vegetariano, diferente das escolas
públicas onde há o consumo de carne.
A questão alimentar foi um dos pontos abordados mais repetidamente pelas
famílias. Nas escolas públicas, principalmente na idade de até seis anos, não há a
possibilidade de levar outro alimento sem ser o que é oferecido pela prefeitura. Assim,
as famílias ficam reféns do processo alimentar, pois ou as crianças ficam sem comer, ou
as famílias têm que buscá-las antes da merenda.
Quanto a esta questão manifestada pelas famílias, creio que uma escola
democrática e inclusiva sanaria esta problemática, visto que criaria alguma forma para
que estas crianças fossem atendidas pela alimentação pública oferecida, fazendo com
que sua diferença não as excluísse.
A cultura Rastafári, apresentada neste estudo, mostra sua peculiaridade frente à
cultura universal massificada no contexto escolar, suas dificuldades, seus desafios.
Nesta análise, dialogando com estas problemáticas e com os referenciais aqui
expostos, enuncio algumas possibilidades de uma escola inclusiva, multicultural, onde a
diferença permeie todas as estruturas que baseiam a formação escolar, não desprezando
os desafios para esta nova realidade.
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Ouvindo as vozes das famílias nas entrevistas é notada a preocupação destas
com o cotidiano escolar de seus filhos. Assim também é perceptível a presença delas no
dia a dia de suas crianças.
As famílias veem a necessidade da cobrança dos pais para que a escola
realmente inicie este trabalho de multiplicidade curricular, principalmente porque os
pais estão apoiados juridicamente para exigir que seus filhos tenham uma educação que
inclua suas especificidades ou suas diferenças.
Em algumas escolas percebe-se a abertura para a participação dos pais, não só
no cotidiano escolar, mas também na proposição de conteúdos e metodologias
diferenciadas para a complementação dos trabalhos.
A posição da família perante a escola é fundamental para que esta possa
transgredir o currículo instituído e passe a inserir outros conteúdos em seu contexto.
É claro que, neste estudo, não pretendo dizer que este é o papel da família e que
esta inclusão depende dela.
Mas como foi recorrente esta questão nas entrevistas, achei pertinente discuti-la,
uma vez que muito contribuiu para esta pesquisa, tornando-se um dos ícones na divisão
das entrevistas em temas.
O ideal de escola inclusiva não é este, em que conteúdos sejam inseridos
aleatoriamente. Porém, como foi observada diante da realidade escolar, esta alternativa
encontrada por algumas famílias já é um avanço.
A presença da família também é fundamental para a cobrança da aplicabilidade
das leis já existentes na direção de uma abertura à diferença e para a aproximação da
comunidade escolar com esta cultura ainda recente no Brasil.
Percebe-se que, com a inserção da família no ambiente escolar, o processo de
sociabilização das crianças ocorre mais facilmente. Se a família está acompanhando a
situação escolar de seu filho e, juntamente com o corpo gestor e educador, tenta
problematizar as diferenças, pouco a pouco a comunidade escolar vai se aproximando
da cultura e, conhecendo-a, passa a desmistificar certos preconceitos.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa teve a intenção de conhecer e questionar o cotidiano escolar de
crianças Rastafáris, pois há muito tempo esta pesquisadora percebia estas vozes
clamando por serem ouvidas.
A pesquisa foi realizada nos Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, sendo
que foram entrevistadas seis famílias, mas neste estudo só foram utilizadas quatro
entrevistas, sendo três famílias do estado do Rio de Janeiro e uma do estado de São
Paulo.
Por meio dos estudos bibliográficos tive acesso às discussões que circundam a
temática da identidade e da diferença na escola.
Percebi, primeiramente, que estas temáticas da identidade e da diferença estão
perpassadas, antes de qualquer coisa, pelas relações de poder, poder este que também
direciona os conteúdos curriculares.
Por sua vez este currículo, subjetivamente, padroniza um modelo de cultura e de
sujeito que está bem distante da cultura e do ser Rastafari, assim nascendo o processo de
exclusão escolar e social.
Os estudos sobre escola inclusiva, educação multicultural e de diversos
documentos jurídicos que apontam para uma perspectiva de mudança na realidade
escolar fizeram com que esta pesquisa tomasse corpo e com que minhas indagações
fossem sendo cada vez mais instigadas a prosseguir com esta busca.
A Educação, partindo de uma perspectiva da diferença, seja ela cultural, étnica,
sexual, ou de outros segmentos, necessita de uma reestruturação. É preciso permitir
novas formas, criar alternativas, buscar em experiências com êxito em outros locais a
possibilidade da convivência com a diferença.
Convivência não harmoniosa, mas sim problematizada, não silenciada, mas sim
enunciada e assim discutida coletivamente, construindo uma nova escola sem currículos
fixos, engendrados em um padrão normativo.
Esta realidade depende muito da mutação paradigmática dos corpos que
vivenciam esta educação, sejam educadores, gestores, educandos, pais ou funcionários.
Esta tarefa não é fácil, mas este estudo propõe possibilidades de uma escola que
contemple as diferenças e não que as fixe ou que as trabalhe superficialmente.
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Sinto que a diferença da cultura Rastafári pode aqui ser ouvida a quem se
permitir ouvir. Quem tiver ouvidos que ouça. O silenciamento de suas diferenças não
faz mais parte deste grupo, aqui se pode ouvir não só as crianças narradas, mas muitas
outras que estão em igual ou semelhante situação.
A cultura Rastafári é apenas uma das culturas inseridas no caleidoscópio das
diferenças presentes na escola, mas por meio da defesa de sua voz ativa neste contexto
“Eu e Eu”, pretendi, neste estudo, trazer à tona diferentes tons e timbres que possam
ecoar por todas as dimensões da educação.
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