Bizâncio - Katerina Yerodiakonou
Bizâncio - Katerina Yerodiakonou
Bizâncio - Katerina Yerodiakonou
Katerina Yerodiakonou
A filosofia em Bizâncio foi, sem dúvida, influenciada pelas antigas doutrinas filosóficas
gregas, as, quais, no fim das contas, proporcionavam aos bizantinos tanto uma estrutura
teórica bem articulada como uma sofisticada linguagem filosófica; apesar disso, o seu caráter
não poderia deixar de ser influenciado também pela fé cristã, na qual os pensadores bizantinos
estavam profundamente imersos. Assim, eles liam e criticavam os textos filosóficos antigos à
luz de suas crenças cristãs e com o propósito de ou rejeitar as opiniões pagãs ou tentar
incorporá-las ao plano cristão. Na verdade, a conexão entre as obras filosóficas bizantinas e a
teologia é admitidamente tão forte que, nos anos recentes, isso se constituiu numa base para
um questionamento sério a respeito da autonomia da filosofia bizantina2. Contudo, Mesmo
que os pensadores bizantinos estivessem preocupados com problemas que surgiam no
contexto de uma tradição teológica cristã e mesmo que suas preocupações teológicas
estivessem em primeiro plano em suas obras filosóficas, há ainda casos abundantes nos quais
os bizantinos discutiam genuínas questões filosóficas que os intrigavam em si mesmas, isto é,
questões que poderiam ser de interesse de qualquer filósofo, independente de sua crença
religiosa.
Além disso, alguns filósofos bizantinos, especialmente João Ítalo no século XI, não
aprovavam a ideia segundo a qual a filosofia devia ser considerada como a criada da teologia
(uma metáfora medieval famosa). Ao contrário, Ítalo seguia o pensamento dos filósofos
antigos, para os quais a teologia é que se configura como parte da filosofia, desde que a
filosofia culmina com a suposta tentativa de compreender o primeiro princípio de tudo o que
há. No mesmo espírito, muitos bizantinos defenderam repetidamente uma abordagem mais
racional em temas teológicos centrais, mesmo temas que tinham a ver com as crenças mais
fundamentais do cristianismo, opondo-se àqueles que consideravam que os cristãos deviam
simplesmente abandonar-se à graça de Deus e à revelação divina. A partir do século IX, Fócio,
Miguel Psellos, João Ítalo, Eustrácio de Niceia e Barlaão da Calábria, para citar apenas alguns,
apoiaram fortemente o uso de lógica tanto na defesa quanto na demonstração de dogmas
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contra pagãos e heréticos. Outros, contudo, incluindo Nicéforo Gregoras e Gregório Palamas
eram inflexíveis em sua opinião de que os estudos de lógica eram inúteis na aquisição do
conhecimento sobre Deus e seus atributos.
Essas observações gerais sobre a filosofia bizantina cobrem um período tão longo e
pensadores tão diferentes, contudo, que apenas podem fornecer uma imagem simplificada,
rudimentar de uma seção da história da filosofia para a qual muito trabalho precisa ser feito8. A
maioria dos textos relevantes ainda estão inéditos ou disponíveis apenas em edições muito
antigas e imperfeitas, apenas quando esses textos estiverem disponíveis em edições críticas e
cuidadosamente estudadas como obras filosóficas sérias, os diferentes estilos, interesses,
visões e abordagens de seus autores poderão emergir inteiramente e propriamente avaliados.
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Enquanto isso, é razoável evitar categorizações apressadas dos pensadores bizantinos como
platônicos ou aristotélicos, uma distinção que, no fim das contas tornou-se importante apenas
perto do fim de Bizâncio, notavelmente na fervorosa controvérsia entre Jorge Gemistos Pleton
e Jorge Scholarios no século XV9. O exame a seguir das opiniões dos bizantinos acerca do tema
dos universaismostrará que tais categorizações podem ser enganadoras. Ao mesmo tempo,
investigar essas opiniões fornecerá um melhor entendimento de como os bizantinos
raciocinavam em temas filosóficos centrais e como eles divergiam das tradições anteriores de
modo sutil e interessante.
Supõe-se amplamente que, como na maioria dos assuntos, quanto à sua posição em
relação aos universais, os filósofos bizantinos seguiram os comentadores neoplatônicos da
antiguidade tardia. Linos Benakis, por exemplo, sugeriu que a tentativa dos comentadores
neoplatônicos de conciliar as doutrinas de Platão e Aristóteles quanto ao tema dos universais
foi seguida de perto em Bizâncio por pensadores eminentes como Fócio, João Ítalo, Eustrátio
de Niceia, Nicéforo Blemides, Nicéforo Choumnos, Jorge Scholario (Genádio II) e Bessarion10.
Mais especificamente, Benakis sugeriu que os filósofos bizantinos, via de regra, adotaram a
tese dos três modos de entender os termos dos gêneros e espécies como se referindo a:
(i) os universais antes dos particulares, que são geralmente identificados com as Ideias
platônicas;
Estes três tipos de universais são aqueles que Amônio, um neoplatônico do século V
apresentou primeiro, em seu comentário à Isagoge, de Porfírio; eles também são discutidos
nos comentários de Elias e Davi sobre a mesma obra, nos Prolegômenos, de Olimpiodoro e no
comentário de João Filópono às Categorias, de Aristóteles11. De fato, após a bem conhecida
exposição do problema dos universais no início da Isagoge, todo escritor antigo que comentou
esta obra ou as Categorias de Aristóteles tentou dar uma posição sobre o tema.
O estudo sistemático dos textos não parecem, todavia, dar suporte puro e simples à
opinião segundo a qual os bizantinos aderiram à teoria proposta pelos comentadores antigos
neoplatônicos a respeito dos universais. Na verdade, parecem sugerir que os bizantinos
discordaram desta tradição em alguns pontos que, à primeira vista podem parecer marginais e
obscuros, mas revelam uma abordagem um pouco diferente do problema. Dessa maneira, um
exame atento de suas opiniões específicas sobre os universais serve como uma ilustração útil
das tendências gerais da filosofia bizantina.
Nesse ponto, é útil traçar esquematicamente o que Amônio tinha a dizer sobre os três
tipos de universal, de tal modo que essa exposição pode servir como a apresentação padrão da
posição neoplatônica com a qual as posições bizantinas podem ser comparadas. Nos seu
comentário à Isagoge de Porfírio, Amônio nos pede para imaginar um anel com um selo que é
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um retrato, por exemplo, de Aquiles, o qual então nós pressionamos em diferentes peças de
cera. Alguém que entrasse mais tarde na sala onde estariam essas peças de cera gravadas com
o retrato de Aquiles e observasse as diferentes impressões logo perceberia que todas elas
compartilham de características comuns, isto é, que foram todas feitas a partir de um único e
mesmo selo, essas características comuns ficarão retidas subsequentemente na mente do
observador. De acordo com Amônio, o selo no anel representa o universal anterior aos muitos
particulares, a impressão nas diferentes peças de cera representa o universal nos particulares e
as características comuns que o observador retém mentalmente representam o universal
posterior aos particulares.
Na questão 5, por exemplo, Ítalo fala sobre os mesmos três tipos de universais, na
mesma ordem. Mas há um detalhe em sua opinião pelo qual ele se diferencia. Assim como
Amônio, Ítalo considera o universal anterior aos vários particulares como causas e paradigmas
dos indivíduos perceptíveis. Como tais, esses universais não podem propriamente ser
predicados dos particulares. São separados deles, e existem na mente de Deus. Desse
modo, Ítalo ao mesmo tempo concorda com a opinião de Amônio e acomoda perfeitamente as
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requisições do dogma cristão. Ele então prossegue, contudo, apresentando o universal nos
particulares e o universal após os particulares de um modo diferente da opinião de Amônio.
Ítalo sustenta que tanto o universal nos particulares quanto o universal após os particulares,
diferem dos universais antes dos particulares porque eles surgem após os individuais
perceptíveis, podem ser predicados destes, são inseparáveis e são adquiridos por nossa mente
por meio de abstração. Além disso, é exatamente o modo pelo qual eles são adquiridos por
nossa mente, através de abstração, que faz com que o universal nos particulares seja diferente
do universal após os particulares; os universais nos particulares, de acordo com Ítalo, não são
predicados de muitos particulares, mas apenas aquele particular do qual eles são inseparáveis.
Assim, ele se refere ao universal “animal”, que ele vê como um dos universais nos particulares:
quando ele é predicado de Sócrates, ele não pode ser predicado de nenhuma outra coisa além
de tal, por exemplo, de Platão. Por outro lado, o universal após os particulares é predicado de
muitos particulares e é o mesmo e único universal que é predicado tanto de todos os
particulares considerados juntos quanto de cada um deles separadamente.
Qual é o significado desse detalhe? Quer isto dizer que Ítalo entende que o universal
nos particulares refere-se a formas que estão no particular. Em outras palavras, isso quer dizer
que ele interpreta as formas imanentes de Aristóteles como particulares e não universais?
O pedigree de tal interpretação não é de se negligenciar, pois tanto Proclo como o seu
mestre Siriano13, viam as formas imanentes como particulares, sem implicar de modo algum
que discordassem de Aristóteles nesse ponto. Além disso, apesar de Amônio não ser claro a
esse respeito (de fato, o seu exemplo da impressão nas diferentes peças de cera poder ser
tomado como sugestão de que a impressão é uma e a mesma em todos os casos), não há razão
para acreditar que ele não estaria em acordo com os outros neoplatônicos quanto a esse
ponto. Apesar disso, é claro, isso não quer dizer que tal interpretação da teoria de Aristóteles
seja a correta, é razoável supor que na época de Ítalo, tratar as formas imanentes de
Aristóteles como particulares era algo aceitável, se não mesmo a interpretação padrão.
Mais importante, apesar disso, o ponto no qual Ítalo parece se diferenciar da opinião
de Amônio sobre os universais é o seguinte: ele considera que não apenas o universal posterior
aos particulares, mas também o universal nos particulares é adquirido por nossa mente através
da abstração. Ítalo parece sustentar que o universal posterior aos particulares é adquirido por
nossa mente não apenas através da abstração das características comuns dos individuais
perceptíveis (tal como no comentário de Amônio) mas também que o universal nos
particulares é adquirido por nossa mente por abstração da forma particular incluída na matéria
de cada particular. Portanto, para Ítalo os universais nos particulares não representam o um em
muitos no sentido da noção aristotélica das formas imanentes como era para Amônio.
Mas se tanto o universal posterior aos particulares quanto o universal nos particulares
são adquiridos por nossa mente por abstração isso significa que, para Ítalo eles não são
entes. Ítalo se faz frequentemente essa questão e, com grande detalhe, trata dela em
suas Quaestiones, opondo-se decisivamente à opinião de que os universais não são entes. Na
Questão 58, por exemplo, ele apresenta uma série de argumentos em apoio da posição de
Antístenes segundo a qual os gêneros e as espécies não são entes14. Todos os argumentos que
apoiam a posição de Antístenes procuram demonstrar que os universais não são corpóreos
nem incorpóreos e, por consequência, que não são entes, uma vez que entes tem que ser ou
corpóreos ou incorpóreos. De acordo com um desses argumentos, por exemplo, os universais
não são incorpóreos porque, se fossem os sujeitos dos quais eles são predicados teriam que
ser incorpóreos também, o que é absurdo; por exemplo se nós dizemos que Sócrates é um ser
humano e que o ser humano universal é incorpóreo então Sócrates também seria incorpóreo,
o que é absurdo. Por outro lado, os universais também não são corpóreos porque se fossem
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eles deveriam ser perecíveis, uma vez que corpos são perecíveis, ora, desde que os universais
não são perecíveis eles não são podem ser corpóreos. Portanto, os universais não são nem
corpóreos nem incorpóreos e, portanto, eles não são entes. Na verdade, eles são conceitos
nus desprovidos de toda a realidade e com existência apenas no pensamento.
A fim de refutar este argumento, Ítalo defende a posição segundo a qual os universais
são incorpóreos. E argumenta que eles podem ser dessa maneira, sem que os seus sujeitos
sejam incorpóreos também. Assim, por exemplo, o gênero substância é incorpóreo, apesar de
ser predicado também de sujeitos que são corpóreos. Ítalo oferece em seguida, uma série
completa de argumentos para apoiar a sua própria tese. Antes de fazer isso, contudo, ele
enfatiza novamente, na questão 3 e, de novo, na questão 8, que é importante traçar o que ele
considera ser a distinção de Aristóteles entre dois sentidos em que algo pode ser dito
incorpóreo.
(i) Algo pode ser incorpóreo per se, verdadeiramente e estritamente falando. Por
exemplo, a alma, os demônios, a causa primeira e os gêneros superiores são todos incorpóreos
em um sentido estrito, porque eles não precisam de um corpo para subsistir.
(ii) Algo pode ser incorpóreo per accidens e por abstração. Por exemplo, tempo,
espaço, linha, superfície e corpo são todos incorpóreos num sentido fraco porque eles
dependem de um corpo para subsistir.
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subsistem em alguma outra coisa. Assim, a posição de Ítalo sobre os 3 tipos de universal pode
ser sumarizada, como se segue: todos os três são incorpóreos, mas o universal antes dos
particulares, são subsistências, enquanto o universal nos particulares e o universal posterior
aos particulares, são entes que subsistem em alguma outra coisa.
O aluno de Ítalo Eustrato de Niceia parece seguir o seu mestre quanto a esse tema,
tanto nos seus comentários sobre as obras de Aristóteles quanto nos seus tratados teológicos,
pois, também na opinião de Eustrato a distinção que importa nesses temas é aquela entre os
universais que são os paradigmas dos indivíduos perceptíveis e que existem na mente de Deus
e os universais que são originados posteriormente aos indivíduos perceptíveis e que subsistem
neles16.
Nem Ítalo, nem Eustrato, portanto, parecem tentar conciliar as opiniões de Platão e
Aristóteles com relação aos universais no sentido em que os neoplatônicos tentaram. Na
verdade, eles discordaram de ambos os filósofos antigos. Eles entendem as ideias platônicas
como pensamentos de Deus e concebem as formas imanentes de Aristóteles, tanto como algo
inseparável dos indivíduos perceptíveis como algo existente na mente humana. Além disso,
apesar de, na sua opinião, apenas Deus e os indivíduos perceptíveis existirem no sentido forte
enquanto subsistências, eles tendem a enfatizar que todos os tipos de universais são entes.
Eles podem ser entes em um diferente sentido dessas subsistências, mas todos eles são entes e
não construções de nossa mente desprovidas de realidade17.
Muitos outros filósofos bizantinos discutiram o tema dos universais. Especialmente
durante os séculos XIV e XV. Apresentá-los como meros continuadores dos comentadores
neoplatônicos quanto a esta questão, antes de estudar suas obras de perto, algumas delas
ainda não editadas, parece não fazer justiça a eles. Além disso, o caso de Ítalo pode
demonstrar que pode haver detalhes sutis, mas importantes nas opiniões bizantinas, os
quais deveriam ser levados em consideração quando tentamos reconstruir o seu raciocínio. Isto
se aplica, certamente, não apenas quanto ao problema dos universais, mas também quanto a
todos os temas filosóficos do quais eles se ocuparam. Tal reconstrução, atenta ao detalhe
crucial deveria ser um pré-requisito antes de alguém se aventurar a compreender as
implicações teológicas da filosofia bizantina ou antes que alguém proceder a uma comparação
com os textos ocidentais relevantes, mais minuciosamente estudados.
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